Sunteți pe pagina 1din 10

Observações Sobre o “Sincretismo Afro-Brasileiro”1

(Kàwé Pesquisa. Revista Anual do Núcleo de Estudos Afro-Baianos Regionais da UESC I (1): 132-
137 - 2003)

Marcio Goldman2

Não deixa de ser curioso e significativo que um simpósio sobre mitos abra espaço para uma
discussão do chamado “sincretismo afro-brasileiro”. Eu gostaria de aproveitar a oportunidade e
iniciar com a hipótese de que este tema seja justamente um mito -- não, ao menos por ora, num dos
vários sentidos técnicos que o conceito possui na antropologia social ou cultural (bem como em
outras ciências humanas), mas no sentido mais banal do termo, o de um certo tipo de mistificação.
Mistificação bastante bem sucedida, devemos reconhecer, já que o problema concentrou a
atenção de praticamente todos os pesquisadores das religiões afro-brasileiras, bem como de boa
parte de seus fiéis. Já em 1946, Roger Bastide isolava os principais tipos de interpretação do
sincretismo: uma, de caráter “sociológico” (e político, poderíamos acrescentar), sustentando que os
santos católicos não passariam de simples disfarce para os orixás africanos -- disfarce que visaria a
proteção do culto contra as perseguições religiosas e policiais. A segunda interpretação seria, ainda
segundo Bastide, de ordem “psicanalítica”, comportando duas variantes: a) a escravidão teria
gerado, entre os negros, um “complexo de inferioridade” que acabou por provocar a “projeção” dos
deuses dominados sobre os santos dominantes; b) “as divindades negras se assimilam aos santos
católicos que despertam nos negros os mesmos complexos ancestrais” (Bastide 1946: 177-178).

1 Este texto foi apresentado originalmente como conferência ao 3º Simpósio Internacional Sobre
Mitos, promovido pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, em agosto de 1994.
2 Marcio Goldman é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro), pesquisador do CNPq, e pesquisador do NuAP
(Núcleo de Antropologia da Política -- Pronex 1997), com o projeto “Concepções de Política e
Formas de Participação: o Caso do Movimento Afro-Cultural de Ilhéus, Bahia”. É autor de Razão e
Diferença. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994), Alguma
Antropologia (1999), e organizador, com Moacir Palmeira, de Antropologia, Voto e Representação
Política (1996).
2
Além de uma crítica a essas interpretações e da apresentação de um modelo próprio -- o
sincretismo seria o efeito de uma “mentalidade analógica” que não pode deixar de tentar
interelacionar tudo com o que se defronta -- Bastide chama a atenção para pelo menos dois fatos
cruciais. Em primeiro lugar, a existência de um sincretismo dos atos e dos ritos, ao lado daquele das
crenças; em segundo, a necessidade de adoção de uma postura um pouco nominalista frente a esta
questão. Ou seja, a constatação de que “o sincretismo assume formas diferentes segundo a natureza
das representações coletivas dos povos assimiladores” (idem: 186-187). Não existiria, portanto, um
sincretismo, mas sincretismos, e mesmo no interior dos cultos afro-brasileiros as formas de
assimilação e incorporação seriam variáveis.
Ora, como se sabe, costuma-se sustentar que estes cultos, tomados em seu conjunto, teriam
sido engendrados pelo choque e interpenetração de religiões de proveniência africana trazidas para
o Novo Mundo pelo tráfico de escravos com práticas religiosas oriundas de crenças indígenas, do
catolicismo popular e do espiritismo de origem européia. A intensidade dessa miscigenação variaria
segundo os casos, mas as características essenciais das novas religiões seriam o culto a um panteão
de divindades e a crença na possibilidade destas divindades possuírem os fiéis devidamente
preparados para recebê-las: panteísmo e transe ou possessão seriam, portanto, os traços centrais dos
chamados cultos afro-brasileiros.
Em suas grandes linhas não há evidentemente nada a objetar a uma tal definição. Ela coloca
entretanto, quando encarada com mais cuidado, algumas dificuldades sobre as quais vale a pena

insistir. Em primeiro lugar, a questão da origem africana. O que parece à primeira vista apenas um
problema de estabelecimento de um fato histórico, recebe imediatamente uma série de valorações
que põem em dúvida a aparente neutralidade e objetividade do julgamento. Pois essa origem
africana pode ser objeto tanto de uma desqualificação preconceituosa, etnocêntrica e mesmo racista
-- que insistiria, como se fez a partir do século XIX, sobre a inferioridade de uma tradição estranha
a um patrimônio cultural tido como superior -- quanto de reinvindicações zelosas. Trata-se então, e
ao contrário, de enaltecer o passado étnico e de constituir-se em defensor e preservador de uma
tradição muito antiga, o que, é claro, desloca o debate na direção de saber quem, tendo conservado
melhor essa ligação com as “raízes”, tem o direito de falar em seu nome, desqualificando aqueles
mais permeáveis à influência do novo meio. E é aqui que emerge de imediato o problema do
“sincretismo religioso”.
3
Do ponto de vista tradicionalista, o grau de pureza de um grupo de culto poderia ser
facilmente mensurado em termos de sua menor permeabilidade aos elementos indígenas, católicos e
espíritas. Uma espécie de “continuum” poderia ser constituído partindo dos grupos tidos como mais
puros (em geral os candomblés Ketu de Salvador) e chegando até a umbanda, dominante no centro-
sul, com toda uma série de intermediários. Esse modelo pode ser encontrado de forma explicita ou
implícita tanto entre membros dos grupos em questão -- que evidentemente valorizam os extremos
do “continuum” de forma congruente com sua posição: superioridade africana ou superioridade
“branca” -- quanto entre pesquisadores de diversas disciplinas, desejosos de encontrar critérios
“objetivos” para fixar os limites e os pontos médios do esquema. É claro que a discussão tende a ser
infinita e que o mesmo traço (a ausência de sacrifícios animais, por exemplo) pode ser usado pelos
fiéis como argumento em defesa da maior ou menor fidelidade às “raízes”, como demonstrou
Beatriz Góis Dantas (1987). Do lado dos pesquisadores, por sua vez, não é difícil encontrar debates
eruditos sobre a “africanidade” desta ou daquela característica deste ou daquele centro de culto.
Cada um escolhe sua África, a África real sendo suficientemente rica, complexa e diversificada para
fornecer “provas” para praticamente qualquer afirmativa. Não se deve subestimar tampouco a
influência da produção acadêmica sobre os grupos de culto: os fiéis utilizam a bibliografia
disponível para dirimir dúvidas e fixar padrões tidos como mais puros ou tradicionais, o que
representa uma contribuição (de utilidade e mérito duvidosos) das ciências humanas para a tarefa de
codificação destes cultos.

Em termos mais claros, o debate em torno da origem africana dos “cultos afro-brasileiros” me
parece carecer de qualquer importância, servindo apenas como instrumento de legitimação que
produz automaticamente, é claro, a desqualificação de outrem. O famoso sincretismo não é a
alteração artificial de uma relação originalmente pura, qualificando-a ou desqualificando-a, mas um
processo histórico interessante e complexo onde uma série de traços díspares são combinados
segundo uma lógica perfeitamente inteligível, dando origem a realidades novas, nem superiores
nem inferiores às mais antigas3. E se um certo horror pela novidade e pela diferença é bem
compreensível em fiéis preocupados com debates religiosos e legitimações políticas, ele é no

3 “Os negros introduzidos no Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais
variadas regiões da África” (Bastide 1960: 30). A idéia de uma África pré-colonial como universo
fechado, homogêneo e autônomo não passa, é claro, de uma imagem idealizada e falsa.
4
mínimo estranho em pesquisadores movidos por um desejo, ao menos relativo, de objetividade.
É verdade que essa perspectiva, que poderia ser denominada historicista, foi substituída em
parte -- pois ainda é bastante corrente -- por uma visão sócio-política que, colocando entre
parênteses toda referência a origens, influências, etc..., busca fazer dos cultos afro-brasileiros o
reflexo direto ou invertido de condições sociais atuais. Ou seja, abandona-se o primeiro e privilegia-
se o segundo adjetivo da equívoca expressão “cultos afro-brasileiros”. Trata-se agora de indagar não
mais acerca do caráter pretensamente puro ou impuro dessas diversas manifestações religiosas, mas
a respeito de sua inserção na sociedade abrangente: reforço ou inversão das relações sociais
dominantes? E, neste último caso, não se estaria ainda obedecendo a uma lógica das aparências e
das falsas compensações? Além do fato de que esta perspectiva abandona completamente a atenção
aos aspectos estruturais do culto -- que a visão historicista, por boas ou más razões, sempre manteve
-- pode-se perguntar se mesmo adotando uma posição interessada exclusivamente no nível sócio-
político não se estaria incorrendo em simplificações excessivas. Em primeiro lugar, dizer que algo
“reflete” a “sociedade abrangente” é reificar singularmente esta última noção que, se possui alguma
consistência, só pode ser concebida como produto de múltiplos níveis e instituições. As religiões
afro-brasileiras certamente compõem a sociedade brasileira e dizer que elas a refletem significa
paradoxalmente excluí-las deste conceito supostamente abrangente. Além disso, essas religiões,
como toda religião e como tudo no mundo, constituem o locus de conflitos e batalhas que não são
apenas exteriores mas que as permeiam e dilaceram por dentro. Bastide já o havia percebido: uma

religião pode ser objeto de uma estratégia de opressão e domínio e, simultaneamente, um ponto de
apoio para o protesto e a revolta (Bastide 1960: 470-471). Os cultos afro-brasileiros sempre foram,
e são, as duas coisas.
Mas esse elemento de conflito, claro mesmo para uma observação superficial, transparece
igualmente nos debates acerca da pureza e do sincretismo, uma vez que trata-se aí de desqualificar
inimigos reais ou virtuais. Transparece também nos trabalhos de alguns pesquisadores
excessivamente preocupados em estabelecer um código válido para todos os grupos de culto, código
que outros se apressam em manipular em benefício próprio. Como se as relações entre os homens e
destes com os deuses só pudessem obedecer a sistemas rígidos determinando rigorosamente o
permitido e o proibido. Ao contrário, o que encanta nos cultos afro-brasileiros é essa possibilidade
empiricamente verificável de manipulação, reinterpretação e cisão, de não conformidade a um
5
código pré-estabelecido que alguns não se cansam de tentar impor, revelando assim,
paradoxalmente, uma fascinação pelo modelo cristão.
Isso não significa, é claro, que não existam elementos estáveis e estruturais comuns aos vários
grupos de culto. Ocorre apenas que estes elementos não devem ser buscados no plano de uma
obediência estrita a um código explicitamente formulado. Retornando à difundida concepção da
qual se partiu, pode-se concordar que o culto dos orixás e a possessão sejam os traços centrais que
respondem pelo caráter religioso dos sistemas aqui em questão. E embora o próprio conceito de
religião esteja longe de se achar firmemente estabelecido, pode-se ao menos constatar que todo
sistema dito religioso funciona sobre diversos planos, entre os quais se encontram os já
mencionados planos histórico e sócio-político. A eles devemos acrescentar, contudo, as dimensões
propriamente internas ao sistema. Tentemos isolar algumas delas no caso específico de uma dessas
religiões -- o candomblé -- a partir das características centrais já mencionadas (culto dos orixás e
possessão). Minhas informações provêm em sua maior parte de uma longa e já antiga experiência
de campo em dois terreiros da nação Angola. Deixando de lado qualquer preocupação com o caráter
“impuro” e “sincrético” desta nação -- que alguns ainda se comprazem em apontar -- creio, contudo,
que o esquema subjacente deduzidos das idéias e práticas dos grupos em questão se aplica a todo o
universo dos cultos afro-brasileiros.
Em primeiro lugar, há uma cosmologia ou mesmo uma ontologia. Talvez ela possa ser
resumida como uma espécie de monismo supondo a existência de uma essência única que se

diversifica em várias modalidades constituindo tudo o que existe e pode existir no universo. Essa
essência, que se assemelha claramente à noção melanésia de mana, tornada célebre pela Escola
Sociológica Francesa, recebe no candomblé o nome de axé. Ora, essa diversificação do axé se
manifesta inicialmente nas próprias divindades, nos orixás, já que cada um encarna uma modalidade
específica da essência geral. Por seu turno, cada coisa ou ser existente no mundo -- pedras, plantas,
animais, seres humanos, etc... -- “pertence” a um desses orixás na medida em que compartilha com
ele essa essência simultaneamente geral e individualizada. Cada ser é uma espécie de
“cristalização” provocada por um movimento descendente que partindo dos aspectos mais gerais e
homogêneos atinge os níveis mais específicos e diversificados. Em uma linguagem mais
“religiosa”, poder-se-ia dizer que a partir de um fonte comum (Olorum, a divindade suprema e que
não recebe qualquer culto? Ou Irôko, a árvore sagrada de cuja seiva teriam se originado os orixás?)
6
desce-se para os “orixás gerais” e destes para os “orixás individuais” aos quais pertence tudo o
que existe.
Essa cosmologia se desdobra então imediatamente em uma mitologia e numa série de
sistemas de classificação extremamente sofisticados. Os mitos representam a polivalência das
divindades: simultaneamente essências imóveis (que necessitam de um intermediário -- Exu -- para
se comunicar com os homens), força da natureza (raios, trovão, rios, etc...), instituições culturais
(guerra, justiça...) e indivíduos que viveram no passado (reis, rainhas, guerreiros...). O cosmos, a
natureza, a cultura e o homem estão sintetizados nesse sistema que poderia ser chamado de total, no
sentido de Marcel Mauss. Por outro lado, tudo o que existe pode ser grupado em classes de acordo
com o orixá ao qual pertence, gerando sistemas de classificação do tipo dos descritos de Durkheim
a Lévi-Strauss.
Mas, como já foi dito, também os seres humanos estão repartidos entre os orixás, e esse ponto
é central. Pois existe sem dúvida, ao lado da cosmologia, da mitologia e dos sistemas de
classificação, uma verdadeira antropologia no candomblé, ou seja, uma concepção acerca da
natureza do ser humano, ou o que os antropólogos sociais costumam denominar hoje de uma “noção
de pessoa”. Esta, como acontece na maior parte das sociedades humanas -- com a notável exclusão
de certas ideologias ocidentais -- é concebida como múltipla e “folheada”, para retomar uma
expressão de Françoise Héritier a propósito dos Samo do Alto-Volta (Héritier 1977: 65) . A
“pessoa” é composta por uma série de elementos materiais e imateriais que incluem o orixá

principal (o Olori, dono da cabeça), um número variável de orixás secundários, o Exu, o Egum, o
anjo da guarda, a alma... O que é interessante nesse sistema e lhe concede uma certa especificidade
é o fato de que essa pessoa não nasce pronta e acabada, mas é construída no processo de iniciação
através de uma longa série de rituais -- as “obrigações” -- que se escalonam por um largo período de
tempo. A pessoa, no candomblé, é feita, fato que é explicitado nas representações conscientes dos
membros do culto. Ora, a “feitura da cabeça” é a contrapartida da “feitura do santo”, o que significa
que também o orixá é construído no processo de iniciação. “Fazer a cabeça” e “fazer o santo” são o
ponto central do candomblé e correspondem à produção ritual de duas entidades individualizadas a
partir de um substrato genérico, o “orixá geral” e um indivíduo que poderia ser considerado ainda
indiferenciado e apenas potencialmente destinado a converter-se em pessoa.
Isso introduz uma outra dimensão do candomblé e dos demais cultos afro-brasileiros,
7
dimensão que considero fundamental. Trata-se da ênfase em uma “ritualística”, que demonstra que
toda a cosmologia, a mitologia, os sistemas de classificação, a antropologia, estão a serviço de
operações rituais visando uma eficácia simbólica. Reduzir as religiões afro-brasileiras a um sistema
intelectual e cognitivo é um grave erro; significa, entre outros equívocos, não levar a sério a
afirmativa eternamente repetida pelos fiéis e sacerdotes de que o importante nesses cultos não são
os esquemas classificatórios ou mesmo o aspecto visível e espetacular das grandes festas públicas,
mas o que é feito em segredo, dentro da camarinha, longe dos olhares dos leigos. Esse savoir-faire é
a marca distintiva deste tipo de religião, o lugar de uma variabilidade e criatividade que só podem
embelezar o culto, afastando-o dos monótonos códigos das grandes religiões. Se a qualificação de
“mágico” pudesse ser esvaziada do conteúdo etnocêntrico daqueles que, no século XIX e mesmo
hoje, negavam aos cultos afro-brasileiros sua condição religiosa, talvez ela pudesse ser a melhor
designação para esse aspecto do sistema. Mágico quase no sentido da antropologia social clássica: a
composição da vontade humana (mais que sua imposição) com as forças naturais e sobrenaturais.
Todas essas dimensões parecem pois convergir na direção do ritual. Este se apresenta sob dois
aspectos fundamentais, diferentemente marcados segundo os casos: sacrifício e possessão. Rituais
que mantêm entre si uma dupla relação, complementar e suplementar ao mesmo tempo.
Complementar porque o sacrifício, ou uma série de sacrifícios escalonados ao longo das obrigações
periódicas, é a condição para que a possessão se processe normalmente. Estabelecendo uma via de
contato entre homens e deuses através da vítima, o sacrifício permite que os segundos encarnem nos

primeiros quando das ocasiões prescritas ou necessárias. Por outro lado, tanto a possessão quanto o
sacrifício constituem operações redundantes, no sentido em que nos dois casos trata-se de preencher
uma distância aberta originalmente pelo pensamento classificatório. Assim, ao lado de uma lógica
metafórica, existe nos cultos afro-brasileiros, e em toda religião, uma lógica metonímica que busca
o contato e que responde pelo caráter propriamente religioso, para além do aspecto puramente
cognitivo, de todo o sistema.
Ora, desse ponto de vista e possessão parece bem representar o aspecto central do culto.
Trata-se aí, como Bastide já percebera, de uma espécie de essência do ritual, um rito vivenciado no
corpo e não apenas posto em ação: “ritual-experiência-vivida” (Bastide 1958: 200). Reúnem-se aí,
com efeito, todas as dimensões do sistema, produzindo a experiência sintética do culto. Na
possessão, o mundo dos deuses e o dos homens convergem para o mesmo ponto; o fiel e seu orixá
8
tendem a se superpor; os diversos componentes da pessoa humana buscam sua unificação e
equilíbrio, livrando o homem de toda submissão e elevando-o a uma estatura quase divina. Pois,
como já foi dito, ao menos no candomblé o deus não é um elemento simplesmente exterior ao
homem, a ele reunindo-se apenas periodicamente: a divindade habita no interior do ser humano, é
feita dentro dele ao mesmo tempo em que sua pessoa é construída.
Talvez seja exatamente neste tipo de experiência sintética que a permanência histórica dos
cultos afro-brasileiros -- fenômeno que tanto intrigou os pesquisadores desde o século passado -- e o
recurso a ele por parte de um certo número de indivíduos possam ser parcialmente entendidos.
Reunindo os vários planos da existência, estes cultos fornecem uma chave de inteligibilidade que
pode ser aplicada à natureza, à cultura, às relações sociais e à relação consigo mesmo. Sistema total
dotado simultaneamente de um alto coeficiente de organização interna e de uma enorme capacidade
de absorver mudanças externas, ele foge continuamente de toda codificação rigorosa. Dinâmica
interna que impulsiona essas religiões na direção de uma plasticidade cada vez mais fundamental,
onde os códigos cedem paulatinamente o lugar a práticas rituais infinitamente adaptáveis.
Para ser um pouco mais preciso, eu diria que os cultos afro-brasileiros em geral são
atravessados por um duplo sistema de forças: centrípetas, visando a codificação e a unificação
dessas religiões, e centrífugas, que pluralizam as variantes de culto, acentuam suas diferenças e
fazem proliferar estruturas paralelas. O que chama a atenção nos “estudos afro-brasileiros” é
justamente o não reconhecimento desta ambiguidade fundamental e a consequente tendência a

ignorar ou desprezar a dimensão centrífuga, tratando-a como uma espécie de defeito de


funcionamento do sistema. Trata-se, como mencionei acima, da sombra do modelo cristão que,
como se sabe, desenvolveu-se historicamente através de uma luta contra as “heresias” e de um
esforço para suprimir tudo o que se afastaria do “dogma”. Esforço apenas parcialmente bem
sucedido, se atentarmos para a eterna e incessante proliferação de interpretações, seitas e novas
religiões no interior do próprio cristianismo.
Além disso, essa fixação no modelo codificador e centralizador tem produzido igualmente
uma série de interpretações equivocadas a respeito da explosão de novas formas de religiosidade,
entre as quais se incluem não apenas os cultos afro-brasileiros como religiões na aparência
completamente distintas deles: evangélicas, “orientais”, nova era…. Se minha interpretação for
correta, eu diria que o que há de comum entre essas formações tão heterogêneas é justamente sua
9
ênfase nos aspectos rituais e “eficazes” das práticas religiosas em contraste com suas dimensões
cosmológicas e de crença. É também, e consequentemente, uma inflexão na direção dos fluxos e
processos em oposição aos códigos que tendem a ocupar uma posição central nas religiões mais
tradicionais. Se aceitarmos, com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972), que a sociedade ocidental
contemporânea, o “capitalismo”, funcione sobretudo a partir da “axiomatização” de fluxos e não de
sua “codificação”, teríamos talvez os meios de compreender não apenas as razões profundas da
“sobrevivência” das religiões afro-brasileiras, como a explosão de novas formas de vida religiosa
que tem nos intrigado já há algum tempo.
Eu dizia no início que o “sincretismo” poderia ser encarado como um mito no sentido mais
banal do termo. Talvez seja possível agora, para concluir, retornar a este ponto e perceber que trata-
se igualmente de um mito em um sentido mais técnico. Escrevendo em 1955, Claude Lévi-Strauss
estabelecia que “o pensamento mítico procede da tomada de consciência de certas oposições e tende
à sua mediação progressiva” (Lévi-Strauss 1955: 259). Poderíamos pois indagar se a questão do
“sincretismo afro-brasileiro” não corresponde a um esforço, dividido entre fiéis e pesquisadores,
destinado a tentar conciliar cosmologia e ritual, cognitivo e afetivo, tradição e inovação,
sobrevivência e adaptação. Tarefa certamente impossível de ser plenamente realizada e que o
reconhecimento do caráter intrinsicamente ambíguo e absolutamente contemporâneo dos cultos
afro-brasileiros poderia tornar definitivamente inútil.

Bibliografia

Bastide, Roger
1946 -- Contribuição ao Estudo do Sincretismo Católico-Fetichista. In: Estudos Afro-
Brasileiros. Perspectiva, São Paulo, 1973.
1958 -- O Candomblé da Bahia (Rito Nagô). CEN, São Paulo, 1978.
1960 -- As Religiões Africanas no Brasil. Pioneira, São Paulo, 1971.

Dantas, Beatriz Góis


1987 -- Pureza e Poder no Mundo dos Candomblés. In: Carlos Eugênio M. de Moura, org.,
10
Candomblé -- Desvendando Identidades. EMW, São Paulo, 1987.

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix


1972 -- L'Anti-Œdipe. Minuit, Paris.

Héritier, Françoise
1977 -- L’Identité Samo. In: Claude Lévi-Strauss, org., L'Identité. Bernard Grasset, Paris.

Lévi-Strauss, Claude
1955 -- A Estrutura dos Mitos. In: Antropologia Estrutural. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
1975.

S-ar putea să vă placă și