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Boaventura de Sousa Santos – A Era dos Coletivos de

Solidão – Jornal de Letras | 23 de outubro, 2019


A Era dos Coletivos de Solidão

Boaventura de Sousa Santos

Jornal de Letras | 23 de outubro, 2019

A combinação tóxica entre capitalismo, colonialismo e patriarcado que caracteriza este


início de século, longe de ser apenas uma dominação tricéfala particularmente virulenta
nos modos de exploração e de discriminação que privilegia, está a assumir a dimensão
de um novo modelo civilizatório, uma nova era que, muito para além de desfigurar as
instituições, as representações e as ideologias preexistentes, propõe-se criar novas
subjetividades para quem o novo modelo é o único modo imaginável de vida. É um
processo em construção e obviamente só se consolidará se não houver resistência eficaz.
Para que tal resistência ocorra é necessário fazer um diagnóstico radical do que está em
causa. Como qualquer outro processo histórico tem uma longa e sinuosa evolução.
Sendo uma evolução civilizacional, contou com cumplicidades de forças ideológica e
politicamente muito díspares. Foram essas conivências que tornaram possível o
consenso de que o processo era irreversível e não havia alternativa. Podemos ver hoje as
principais fases por que foi avançando. A primeira fase consistiu numa crítica radical do
Estado e na afirmação da sociedade civil como única fonte de virtude e de eficácia. A
sociedade civil forte, que antes era a outra face do Estado democraticamente forte,
passou a ser o oposto do Estado forte e, por isso, só possível se o Estado fosse fraco.
Numa segunda fase, uma vez neutralizado o Estado, a sociedade passou a ser
questionada em nome da autonomia do indivíduo. Ou seja, começou por virar a
sociedade contra o Estado para depois virar o indivíduo autónomo contra a sociedade.
Mas a autonomia que proclama é uma autonomia uberizada, isto é, a autonomia de
indivíduos que não têm condições para ser autónomos. A autonomia da auto-
escravatura.

O objetivo deste modelo civilizacional é substituir o conceito de responsabilidade social


pelo conceito de culpa. Os problemas que isso pode suscitar não são problemas
políticos. São problemas de polícia ou de terapia. Estamos a entrar numa era não
relacional em que os atributos que definem grupos de população são naturalizados e
separados entre si de modo a não ser visível a relação que há entre eles. Criam-se assim
segregações que não se tomam como tal e antes parecem o resultado natural de
diferenças que não suscitam outro sentimento que não o da indiferença. Assim,
diferenças e hierarquias, que até há pouco eram consideradas chocantes e revoltantes,
tendem hoje a ser percebidas como triviais e até aceitáveis porque expressão de
características inatas em relação às quais a sociedade pouco pode fazer. Por exemplo, a
concentração da riqueza tem vindo a aumentar escandalosamente nas últimas quatro
décadas e a ostentação da riqueza convive indiferentemente com a mais abjeta pobreza.
Por sua vez, as discriminações por motivos raciais, sexuais, religiosos ou outros ganham
crescente aceitação entre públicos insensíveis às lutas dos movimentos anti-racistas,
anti-sexistas, anti-homofóbicos, anti-fundamentalistas, os mesmos públicos que estão
sempre disponíveis para ignorar ativamente as conquistas contra a discriminação que
esses movimentos têm obtido. Assim, quem é rico merece ser rico porque tem as
qualidades para o ser, tal como quem é pobre merece ser pobre por não ter as qualidades
necessárias para deixar de o ser. Na construção deste modelo civilizatório estão
envolvidos vários processos. Muitos dos quais parecem nada ter a ver com ele.

1. Do conhecimento à informação. O novo modelo civilizatório assenta na produção


aparentemente ilimitada de informação e na confusão entre informação e conhecimento.
É cada vez mais comum a ideia de que vivemos numa sociedade de informação. A
abundância de informação não é um bem incondicional. Lembremos que em caso de
inundação o recurso mais escasso é água potável. Semelhantemente, vivemos hoje
inundados por informação, mas carecemos cada vez mais de informação potável, isto é,
confiável. Por outro lado, informação não é conhecimento (qualquer que seja o tipo de
conhecimento). A informação fornece dados enquanto o conhecimento visa
compreender ou explicar a origem, o significado e as implicações dos dados. A
informação é o presente simultaneamente eterno e efémero, enquanto o conhecimento é
a ponte entre o passado, o presente e o futuro. Estas diferenças tornam-se cada vez
menos evidentes quando, para sonho de uns e pesadelo de outros, parece próximo o
tempo em que um supercomputador desvendará o segredo da vida e do universo ao
prever a estrutura tridimensional das proteínas em todas as suas (infinitas) sequências.
E, não por acaso, a mais poderosa biomáquina, um ícone exemplar da inteligência
artificial, chama-se Mente Profunda (deep mind) e os seus processos designam-se como
tecnologia de aprendizagem profunda. A verdade é que, mesmo que tal seja possível, a
máquina nunca poderá explicar ou entender os resultados a que chegar. Mas para o novo
modelo civilizatório o significado dos dados está cada vez mais reduzido à utilidade
económica que eles possam ter para quem os detenha.

2. Das relações sociais aos dados. A confusão entre conhecimento e informação é


fundamental para ocultar ou trivializar as relações sociais e as desigualdades de poder
que estão por detrás dos dados. As formas de dominação modernas reproduzem-se por
via da extração de recursos assente em relações de poder desigual que tornam possíveis
decisões unilaterais e a apropriação indevida de valor. Historicamente, essa extração
teve duas formas principais: os recursos naturais (a exploração da natureza) e os
recursos humanos (de que o trabalho escravo é a forma mais brutal). Hoje, a estas duas
formas juntam-se uma terceira: a extração de dados. Esta extração é cada vez mais
massiva em função da imensa agregação de dados tornada possível pelas novas
tecnologias de informação e comunicação, os big data. Aliás, a obtenção destes dados
tem a mesma designação que o extrativismo mineiro: escavação de dados (data
digging). O próprio termo “dados” contém em si toda a ambivalência da armadilha
digital. Os dados são efetivamente roubados; mas, depois de manipulados e vendidos a
utilizadores comerciais ou políticos, são devolvidos ao público como sendo oferecidos
e, de facto, propriedade comum. O país com o maior número de utilizadores do
facebook é a Índia, mas os centros de dados obtidos por este meio estão localizados nos
EUA, na Europa e em Singapura. A apropriação do valor dos dados está concentrada
numa empresa, mas quem é que se sente ao serviço de uma empresa quando o uso, a
entrada e a saída da empresa são livres?

A manipulação destes dados por parte das grandes empresas de comunicação eletrónica
é a grande responsável pela progressiva substituição das relações sociais pelos dados
enquanto explicação, fundamento, sentido e valorização da vida coletiva. Os dados são
obtidos por instrumentos tecnológicos cujos parâmetros e critérios não são do domínio
público por estarem protegidos por patentes. Esta opacidade é a condição essencial da
suposta transparência dos dados e, portanto, da sua utilização aparentemente neutra. A
sociedade métrica em que estamos a entrar visa transformar o carácter relacional da vida
social em desempenhos individuais quantificados e sem outra relação entre si senão as
diferenças numéricas e as agregações que são feitas a partir delas. Tudo o que não é
quantificável é desqualificado mesmo que seja a felicidade ou sentido da vida e da
morte.

3. Da política à polícia e à terapia. As relações sociais e as desigualdades de poder que


podem explicar os dados deixam de ser visíveis e relevantes enquanto causas. São
tratadas quando muito como consequências. Os conflitos que fatalmente geram são
despolitizados. Passam a ser assunto de polícia e nisso consiste a criminalização
crescente do protesto social. Em alternativa, são temas para terapia contra a depressão, a
alienação, a fadiga crónica, o impulso suicidário. A terapia permite que indivíduos
solitários não se sintam sós. Fazem parte de comunidades imaginadas de consumidores
de ansiolíticos, de álcool, de drogas, de medicinas alternativas, de academias de
prontidão física, de meditação. São coletivos de partilha de destino sem esperança ou
cuja esperança reside em perder o medo de viver sem ela.

4. Das redes à solidão coletiva. Os big data não visam individualmente os indivíduos
(passe o pleonasmo); visam coletivos homogéneos de indivíduos, organizados
invisivelmente segundo os seus gostos de consumo, de política ou de religião. Desta
forma, os big data permitem combinar a máxima personalização com a máxima
massificação. Os indivíduos, longe se sentirem sós ou isolados, sentem-se auto-
escolhidos por grupos mais ou menos vastos com quem não têm outras relações senão
as que a internet permite. As redes sociais são a expressão mais acabada da nova
solidão, a pertença superficial, seletiva, isenta de compromissos extra-comunicacionais
a coletivos cada vez mais organizados pelo mercado comercial, político ou religioso dos
big data. Claro que as redes sociais também permitem intensificar a comunicação que
começou por ser física e presencial, mas do ponto de vista dos big data a única
dimensão comunicacional que conta é a digital. E é mesmo crucial que entre o indivíduo
massivamente personalizado e o objeto de consumo não existam intermediários. O
indivíduo tem à sua disposição um mundo que considera feito por si, apesar de ter sido
feito por outros, e que pensa ser seu, apesar de ser pertença, muitas vezes patenteada, de
outros.

5. Do pensamento crítico à peritagem. O estudo crítico, livre e independente das


assimetrias sociais não é bem-vindo neste mundo da sociedade métrica. Os dados são
“tratados” por peritos que aparentemente não têm nenhuma lealdade ou preferência
senão a que se espelha nos dados. São considerados objetivos por serem tidos por
neutros e não por serem conhecidos os critérios e os métodos que mobilizam as suas
análises. Enquanto no caso do liberalismo científico a neutralidade (que, de facto, nunca
existiu) era o resultado da aplicação de metodologias que garantiam a objetividade, na
peritagem a objetividade é o resultado da suposta neutralidade. O perito é o juiz sempre
parcial na farsa da imparcialidade da era não-relacional.

Este tipo de peritagem é um híbrido entre informação e conhecimento, e traduz-se em


análises e relatórios preparados por encomenda de quem tem interesse em que os dados
sustentem certas conclusões, e não outras. Este híbrido dificilmente pode ser produzido
nas universidades e centros de investigação, pelo menos enquanto umas e outros se
pautarem pelo princípio de que o valor do conhecimento nunca é redutível ao valor de
mercado que possa ter ou não ter. Não admira, pois, que a peritagem seja cada vez mais
um monopólio de empresas de consultoria. Estas empresas nunca podem oferecer
conclusões desconfortantes para os clientes e nunca podem prever os piores cenários
sob pena de os seus próprios acionistas as desertarem. Foi por isso que nenhuma dela
previu a crise financeira de 2008 nem preverá qualquer crise futura. Na era dos
coletivos de solidão, a consultoria é a voz dos poderes que criam os coletivos e o
silenciamento dos indivíduos coletivamente solitários.

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