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cidade e encontraram as celas de presos civis com as paredes escurecidas, o que lhes deu
impressão de pouco asseio. Na cela dos presos civis havia cinco detidos, entre eles, Manoel
dos Passos Magalhães, registrado como “preto liberto”, preso por ofensa e que por “falta de
proteção para promover seu livramento”, não tinha esperança de soltura. Joaquim Correa,
preso como escravo fugitivo, se dizia liberto; nascera na Ilha de São Tomé, no meio do
Atlântico, e infelizmente não deixou testemunho das andanças e navegações que o trouxeram
a Desterro. Talvez fosse marinheiro. Como Manoel, reclamou de não ter recursos para custear
seu pedido de relaxamento da prisão. A cela das mulheres estava desocupada naquela
ocasião, mas também tinha as paredes escurecidas pela fumaça, o que, associado à falta de
resultaram na abdicação de Dom Pedro I, em 7 de abril, não tinha chegado a Desterro ainda.
Quando chegou, no dia 20, a Câmara externou todo o júbilo pela “feliz revolução
ordenou que os cidadãos iluminassem a frente das casas por três dias, a contar do dia 20, e
alegria pelo evento; para evitar “tumulto de pretos ou outra qualquer desordem”, pediu ao
ajuntamento de escravos e libertos. Aparentemente, não foi deles que partiu o tumulto, mas
dos próprios membros do 8o Batalhão, que, com os soldados de outros batalhões estacionados
província e comandante de armas. Este, o chefe de esquadra Miguel de Sousa Mello e Alvim,
não teve alternativa senão renunciar. A situação continuou instável por mais um tempo; em
Os presos devem ter acompanhado aqueles eventos através das grades da cela,
conversas dos que vinham da rua, já que a cadeia ficava no térreo do próprio prédio da
Câmara. Talvez cogitassem que lado tomar nos conflitos que opunham brasileiros a
portugueses. Talvez acreditassem que “o amor da liberdade”, tão propalado naqueles dias,
pudesse inspirar sentimentos de piedade ou justiça em algum cidadão que os ajudasse a sair
da prisão. A situação deles era tão miserável, que viviam das esmolas de passantes para se
alimentar, pois não recebiam comida na cadeia. Manoel Guimarães, o preto liberto, estava
preso há quase um ano e meio, e Joaquim Corrêa, de São Tomé, há alguns meses. Faziam da
cela sua moradia, em resumo. Os membros da comissão indicada pela Câmara para verificar
as condições de salubridade nas prisões encontraram a cela “varrida e sem imundícies”, mas
cheia de fumaça que escurecia as paredes. Vinha de um fogo que os presos mantinham
sempre aceso. Quando a comissão sugeriu que o fogo fosse extinto, os presos reclamaram.
libertos, entretanto, geralmente aparecem como a mão de obra responsável pela construção
dos prédios mais antigos ou em histórias pitorescas, como o trabalho das lavadeiras nos rios e
córregos da cidade ou o transporte de água potável e dejetos das casas. Quando não são mão
não figuram na história da cidade no século XIX. Os exemplos seriam muitos. Experimente
você lembrar-se de alguns livros que leu sobre Florianópolis ou folhear alguns deles.
Protagonistas negros são raros, vai concordar. O motivo disso é que Florianópolis, há
bastante tempo, tem sido vista e interpretada como terra de “tradições açorianas”, e o estado
de Santa Catarina como próspero graças à fixação de europeus. A economia catarinense antes
da fundação das colônias de Blumenau e Joinville é tida como insignificante, e assim, o auge
da escravidão no litoral catarinense e na Ilha de Santa Catarina não tem recebido muita
atenção até agora. Neste livro, trazemos elementos para formar outra imagem da história da
Uma história diversa. Diversa em todos os sentidos que a palavra possui: diversa
porque diferente da história contada até agora; diversa porque múltipla e porque expõe a
é prerrogativa de Santa Catarina; ocorre nos outros estados da região Sul e em vários países
das Américas que receberam contingente significativo de africanos, mas que construíram
africanos em Buenos Aires, e em algumas províncias, até o início do século XIX, não
vezes inéditos, os capítulos aqui reunidos inserem Santa Catarina na história do Atlântico
Negro, uma história partilhada por habitantes da Europa, das Américas e da África, que
fornecimento de mão de obra para as unidades produtivas nas Américas, mas também a
Como se dava o tráfico de escravos para Santa Catarina? De onde vieram os africanos
que aqui viveram como escravos e libertos? Em quais atividades econômicas foram
Como se dava a relação com os senhores, e quais as formas de resistência adotadas pelos
escravos? Que espaços os africanos e seus descendentes criaram para suas manifestações
vida das pessoas “livres de cor”, e como se manifestava a discriminação, antes e depois da
século XX dessem conta da pluralidade de práticas culturais dos habitantes do território que
veio a constituir Santa Catarina. Ninguém pode abrir mão de pensar historicamente, de se
preocupar com os processos, embates cotidianos e jogos de poder que envolveram sujeitos de
portanto, de reconhecer que a história da experiência africana deve ser integrada à história de
Trata-se, ainda e acima de tudo, de situar Santa Catarina no Atlântico negro e permitir
enxergar “a flor na senzala”. Essa expressão, consagrada por Robert Slenes, remete à
partilhavam a visão de mundo dos senhores de escravos e caracteriza uma releitura das ações
pública de Desterro e reclamaram das paredes enegrecidas pela fumaça ignoravam (ou não
procuravam saber) o significado que os presos atribuíam ao fogo, que mantinham sempre
aceso. Enxergar “a flor na senzala”, ou nesse caso, nas enxovias da cadeia pública, implica se
perguntar sobre as trajetórias que trouxeram Manoel Guimarães e Joaquim Corrêa à Ilha de
ancestrais contra todos os males. Mesmo sem termos certeza de que Manoel Guimarães e
Joaquim Corrêa provinham de região ou de grupos de tradição ovimbundu ou bakongo, é
plausível supor que aqui no Brasil tivessem se familiarizado com suas práticas. Além de
aquecer, secar o ambiente úmido e afastar insetos, os dois africanos provavelmente investiam
significado sagrado àquele fogo aceso na cela, pois os ajudava a enfrentar as adversidades .
quais ainda não temos provas, mas é importante levantá-las. Só assim, personagens como
Manoel Guimarães e Joaquim Corrêa deixam de ser figuras pitorescas, ilustrações de como o
passado era “exótico”. Também dessa forma superam a condição de vítimas à qual costumam
ser relegadas figuras como eles nos discursos de denúncia da invisibilidade. Nessa coletânea,
africanos e seus descendentes, fossem escravos, libertos ou livres, são tratados como
mesmo sem formar um grupo coeso, deixaram marcas na constituição da sociedade em que
viveram.
Convidamos você, leitor, seja catarinense nato ou adotado, visitante ou amante da Ilha
de Santa Catarina, a percorrer os capítulos desse livro. Venha com os olhos abertos para
revisitar velhos episódios e encontrar novos sujeitos; com os ouvidos prontos para ouvir
velhos sons, mas experimentar novas sensações; e com disposição para conhecer e
Referências bibliográficas
MAMIGONIAN, Beatriz G.; RACINE, Karen. People in the Making of the Black Atlantic.
In: The Human Tradition in the Black Atlantic; 1500-2000. Lanham, MD: Rowman and
Littlefield, 2010, 1-8.
PEDRO, Joana Maria et al. Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa
Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
1
Arquivo Histórico Municipal de Florianópolis (doravante AHMF). Registro Geral da Câmara Municipal de Formatado: Português (Brasil)
Desterro (1830-1831). Relatório da Comissão para visita das prisões civis, militares e eclesiásticas e de todos
os estabelecimentos públicos de caridade. Fls 79v. a 82.
2
AHMF. Registro Geral da Câmara Municipal de Desterro (1830-1831), fls. 73-73v. As manifestações da
Câmara em torno da abdicação estão entre as folhas 70 e 74v.
3
Ver carta de João Moreira da Silva para José Gonçalves dos Santos Silva, de 20 de julho de 1867, sobre os
eventos do 22 de abril de 1831 em Desterro. O documento está publicado em “A Abrilada em Santa Catarina:
um documento”. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Ver também:
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: Memória. v. 1. Florianópolis: Ed. do Autor, 1972,
p. 11-13.
4
SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: Esperanças e Recordações na Formação da Família Escrava;
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.