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Índice:
1. Introdução
2. A propósito da periodização da história dos judeus no Brasil
3. Judaica Pernambucensis
4. Menasseh ben Israel e o Brasil
5. Sobre a presença dos crisãos novos na capitania de São Vicente e a formação da
etnia paulista
6. Judeus em São Paulo: um pouco de sua história
7. Algumas questões concernentes a metodologia na pesquisa da história moderna dos
judeus e o conhecimento de suas fontes
8. O Marquês de Pombal e a Inquisição
9. A imigração israelita à Argentina e ao Brasil e a colonzação agrária
10. A contribuição dos imigrantes israelitas ao desenvolvimento brasileiro
11. A religião e a imigação israelita no Brasil
12. A Vós Meu Senhor, o Rei...
13. Uma imigação de judeus ao Brasil em 1891
14. Osvald Boxer e o projeto de colonização de judeus no Brasil
15. As muitas histórias do major Eliezer Levy
16. O primeiro Congresso Israelita n Brasil
17. Yehuda Wilensky e Leib Jaffe e o movimento sionista no Brasil, 1921-1923
18. Os Protocolos do Primeiro Congresso Sionista no Brasil (1922)
19. O sionismo e os judeus no Brasil
20. História oculta: como se lutou para a criação do Estado de Israel
21. Prefácio à brochura “Osvaldo Aranha”
22. Crônica do judaísmo paulista
23. A Escola Israelita Brasileira Talmud Thora Beth Jacob
24. O Macabi de São Paulo e sua evolução
25. José Nadelman e a história dos judeus em São Paulo
26. Uma colonização judaica no interior de São Paulo
27. Instituições comunitárias de ajuda e amparo ao imgrante israelita de São Paulo
28. Subsídios à história da educação judaica no Brasil
29. A presença israelita na Revolução de 1932
30. A visita de Albert Einstein à comunidade do Rio de Janeiro
31. Lasar Segall na imprensa iídiche
32. O mascate Adolfo
33. Uma carta do Rabino A. I.HaCohen Kook no epistolário do Rabino Jacob
Braverman
34. A imprensa iídiche como fonte para o estudo dos judeus no Brasil
35. Jacob Schneider e a comunidade judaica no Brasil
36. Identidade judaica, memória e a questão dos indesejáveis no Brasil
37. A correspondência de Leib Malach com Baruch Schulman
38. Uma carta de Jossef Halevi à Baruch Schulman
39. Jacob Nachbin, precursor da historiografia judaica no Brasil
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Passaram-se mais de 20 anos desde que foram publicados os "Estudos sobre a comunidade
judaica no Brasil" e que de certa forma teve o mérito de abrir um novo campo de pesquisa e
estimular os estudos sobre a imigração contemporânea e a formação das comunidades
judaicas em território brasileiro. Pouco a pouco as nossas universidades encontraram
interesse e foram incorporando a temática. Teses acadêmicas passaram a revelar, através de
pesquisas científicas mais rigorosas, os múltiplos aspectos da vida comunitária judaica em
vários Estados e cidades do país, a política governamental em relação a essa imigração, a
participação de individuos e comunidades nos vários setores da vida social, econômica,
cultural e política da nação bem como a história particular de certas instituições de caráter
filantrópico, educacional, e de outra natureza, desfazendo mitos e eliminando, de uma vez
por todas, "histórias" que não tinham qualquer basamento documental, escrita ou de outra
natureza. A existência do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, com as suas seções
estaduais, foi um fator importante para desenvolver o interesse na história contemporânea
dos judeus no Brasil. A preocupação em reunir e preservar toda documentação concernente
a essa temática favoreceu àqueles estudiosos que ambicionavam trabalhar na área, além de
evitar que se perdesse as fontes para tais estudos. O Arquivo procurou valorizar e criar uma
nova mentalidade no seio da comunidade judio-brasileira orientando pessoas e famílias a
zelarem pelos seus papéis, cartas, fotografias e todo tipo de documento, que naturalmente
passava de uma geração a outra, não somente como elementos para seu auto-conhecimento
mas que, numa dimensão mais ampla, auxiliava na reconstituição da memória dessa
imigração. Algumas tentativas que antecederam o A.H.J.B. com o fito de reunir
documentos sobre a história dos judeus no Brasil remontam aos anos 20 quando o Instituto
Científico Judaico de Vilna (YIWO) fundado em 1925, e transferido mais tarde para Nova
York, dirigiu-se, em 1928, ao escritor Menashe Halpern para que se incubisse pessoalmente
da missão de juntar material para àquela instituição, o que de fato o levou a anunciar sua
missão, naquele mesmo ano, no jornal “Idische Folkstzeitung” (a Gazeta Israelita)
publicado no Rio de Janeiro. Quando nos anos 40 formou-se uma seção brasileira do
YIWO, agrupando ao redor de sí a intelectualidade judia de fala ídiche, entre os quais
destacava-se o premiado escritor Meir Kucinski, foi reunido um precioso material relativo
ao que se publicava no Brasil que foi enviado à sede central em Nova York. Ainda em
setembro de 1959 o Círculo de Amigos do YIWO no Rio de Janeiro relatava em carta
dirigida à revista Aonde Vamos? sobre doações recebidas pela entidade que era presidida
por Esther Schechtman e funcionava no local da Biblioteca Bialik. A existência de uma
seção do YIWO no Brasil foi importante para salvar uma rara documentação, em especial
os primeiros periódicos judaico-brasileiros, que anos mais tarde pude pessoalmente
consultar no imenso e notável acervo de cultura ídiche daquela extraordinária instituição.
A primeira intuição de que a história dos judeus no Brasil ainda estava por ser feita a teve o
dedicado historiador autor da obra Judeus no Brasil Colonial, Arnold Wiznitzer, que em 2
de outubro de 1952 publicava um artigo na revista Aonde Vamos? no qual propunha a
criação de uma Sociedade Brasileira de História Judaica. Efetivamente em 23 de dezembro
de 1952, sob sua iniciativa, fundou-se o Instituto Judaico Brasileiro de Pesquisa Histórica
no Rio de Janeiro. Os seus objetivos foram definidos do seguinte modo:a) realizar e
fomentar a pesquisa da história dos judeus do Brasil;b) organizar e manter uma biblioteca e
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arquivo que deverá reunir, na medida do possível, originais ou cópias de todas as obras e
documentos publicados até a data, no país e no exterior, sobre a história dos judeus no
Brasil; c) colher , em original ou cópia, protocolos das sociedades israelitas, jornais,
documentos ou objetos que testemunhem as atividades transcendentais de judeus ou
entidades israelitas no Brasil; d) publicar semestralmente uma coletânea denominada
"Revista do Instituto Judaico Brasileiro de Pesquisa Histórica", que será editada em
português e hebraico; e) realizar , freqüentemente, conferências sobre a história dos judeus
no Brasil; f)manter um seminário - que deverá funcionar a partir de abril próximo- para
estudantes e estudiosos da história judaica. O Comitê de Iniciativa era composto de, além
de Arnold Wiznitzer, que deixou uma obra significativa como historiador, pessoas de certo
prestígio na comunidade que deram apoio ao empreendimento o representante diplomático
de Israel no Brasil, general David Shaltiel e seu conselheiro Mordechai Schneurson, rabinos
Y.Fink, H. Lemle. F. Pinkuss, M. Zinguerevitch, M. Kresch, na verdade apenas figuravam
sem qualquer participação mais ativa. Também o rabino e historiador I.S. Emmanuel e o
Prof. David José Perez, e outras figuras com certa projeção no cenário cultural da
comunidade, entre eles Fernando Levisky, Dr. Hans Klinghoffer, Dr. Isaac Izecksohn, o
cientista Dr. Fritz Feigl, a escritora Elisa Lispector, e ativistas como o Dr. Alfred
Hirschberg, José Marx, Yoshua Averbach e Aron Neumann estavam envolvidos com o
projeto da instituição, conforme podemos constatar na matéria publicada no Aonde Vamos?
número 500, de 15 de janeiro de 1953. Efetivamente a personalidade central do Instituto foi
Arnold Wiznitzer, que publicou uma longa série de artigos importantes na revista Aonde
Vamos? sob a direção de Aron Neumann, que seriam reunidos e reelaborados
posteriormente resultando no livro que publicaria em 1960, em inglês, e, em 1966, em
português, sob o título Judeus no Brasil Colonial. Dois estudos valiosos sobre os judeus
sob domínio Holandês, de autoria de I.S. Emmanuel, também saíram a lume no mesmo
periódico Aonde Vamos? O mesmo I.S. Emmanuel, que se destacou por seus trabalhos
sobre as comunidades caribenhas e sobre os judeus de Salônica, foi rabino da comunidade
sefaradita do Rio de Janeiro, desde maio de 1950 permanecendo no Brasil até os finais de
1953, período no qual dedicou-se ao estudo do judaismo brasileiro sob o domínio holandês.
Já em junho daquele ano o Instituto apresentava um relatório de suas atividades no qual se
enumerava os trabalhos de Wiznitzer publicados no periódico Aonde Vamos? bem como
sua receptividade de parte de estudiosos e historiadores do Brasil e do exterior. Sem dúvida,
é inegável o empenho pessoal de Wiznitzer no sentido de chamar a atenção para essa área
de estudos a que ele mesmo deu uma notável contribuição histórica. O Instituto continuou
existindo durante alguns anos e, conforme a Assembléia Geral de 21 de novembro de 1954,
foi eleita uma nova diretoria para 1955-1956 na qual figuravam como presidente e
professor de pesquisa Arnold Wiznitzer; vice-presidentes Prof. David J. Perez e Aron
Neumann; secretário geral Dr. Fernando Levisky; editor Dr. Isaac Izecksohn, tezoureiro
Prof. Mendel Kresch, secretário, Elisa Lispector. Wiznitzer, que nesse interim havia
pesquisado em arquivos de vários países, voltaria a lecionar nos Estados Unidos, o que
levaria a paralisação e o encerramento das atividades da instituição que fundara. Contudo,
interessante lembrar, que ainda nos anos 50 uma outra tentativa para se criar um Instituto de
Pesquisa e arquivo histórico judaico seria feita pelo historiador Isaías Golgher, em Belo
Horizonte, porém sem que pudesse estruturar seu projeto sendo, no entanto, uma espécie
de antecipação do futuro Instituto Histórico Judaico Mineiro criado muitos anos mais tarde.
Desde então abriu-se um grande hiato e passaram muitos anos até o surgimento, em 1976,
do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, fundado por um grupo de professores e alunos de
5
coletâneas, que abordavam novos aspectos referentes à essa imigração, mas que não se
restringiram tão somente a ela, senão que, por vezes, tocavam em temas concernentes à
presença de judeus e cristãos-novos no período colonial e sob o domínio holandês no
Brasil. Mas o difícil acesso a esses trabalhos, de parte do público mais amplo, excluindo-se
o pequeno grupo de pesquisadores interessados na área, publicados em forma de artigos
em livros, Anais de Congressos e periódicos tais como o Jornal do Imigrante, Shalom,
Herança Judaica, Boletim Informativo do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, Revista da
USP, American Jewish Archives e outros editados no país e no exterior, levou-me a
organizar o livro que a EDUSP ora oferece aos seus leitores. Um certo número de artigos
exigiu uma revisão de conteúdo que a distância do tempo e o conhecimento acumulado
obrigou-me a faze-lo afim de retificar dados e inserir novas informações que minhas
pesquisas levantaram nos últimos anos bem como adicionar novo material documental aos
mesmos. Devo também observar que certos conceitos, assim como minha visão sobre
várias questões, alteraram-se com o passar do tempo, o que pode ser apreendido no
confronto entre as publicações originais e os estudos atuais. Obviamente, por se tratar de
uma coletânea de artigos, inevitável é que certas informações possam, por vezes, parecer
repetitivas. Porém evitei, na medida do possível, que isso acontecesse, mantendo somente
as estritamente indispensáveis por razões de inteligibilidade e estrutura do texto em
questão. Creio que a presente coletânea, que inclui alguns poucos estudos sobre o período
colonial, somada aos livros “Jacob Nachbin” ( Nobel,1985), “Manasche: sua vida e seu
tempo” (Editora Perspectiva, 1996; edição em inglês, The Jerusalem Foundation,
Jerusalém, 1998) e mais recentemente “David José Pérez: uma biografia” (Garamond, Rio
de Janeiro, 2005) poderá, no seu conjunto, servir como instrumento auxiliar ao pesquisador
interessado na história contemporânea dos judeus no Brasil, acreditando que ainda estamos
dando os primeiros passos para o seu pleno conhecimento. Aproveitei o ensejo para dar aos
leitores, em forma de apêndice documental, as “Crônicas” das comunidades escritas entre
os anos de 1953 e 1959 para o “Léxico dos ativistas sociais e culturais da comunidade
israelita do Brasil”, projeto editorial de Henrique Iussim (Zvi Yatom), que, infelizmente,
não pode ser levado adiante, pois o material relativo às comunidades maiores, a de São
Paulo e Rio de Janeiro, além da pequena comunidade da Bahia, nunca chegou a ser
publicado. Na parte concernente à São Paulo acrescentei a original “Crônica da
comunidade paulista” do escritor Meier Kucinski que deveria integrar a brochura do
“Léxico” dedicada àquela comunidade. Por outro lado encontrei dentre esse material do
projeto de Iussim uma tradução ao português de algumas partes da obra de Isaac Raizman,
“ A fertl yohrhundert idische presse in Brazil” (Um quarto de século de imprensa judaica
no Brasil), até hoje o único trabalho abrangente sobre a história da imprensa judaica no
Brasil, para o qual julguei útil acrescentar mais alguns excertos traduzidos por mim do
original em ídiche a fim de incluí-lo como Apêndice à este livro. A importância desse
material, inédito em português, impeliu-me a publicá-lo na integra, já que no seu conjunto
reune uma preciosa informação histórica relativa à imigração e a formação dessas
comunidades. Finalmente devo observar que sem o auxílio dos arquivistas e bibliotecários
das instituições com as quais tive contato durante várias décadas para a realização de
minhas pesquisas no Brasil, em especial o Arquivo do Estado de São Paulo, o Arquivo
Nacional no Rio de Janeiro, o Arquivo do Museu da Imigração, o Arquivo Histórico
Judaico Brasileiro e outros, assim como os do exterior, tais como o Arquivo para a História
do Povo Judeu (Archion leToldot haAm haYehudi, junto à Universidade Hebraica de
Jerusalém; do Central Zionist Archives (HaArchion haZioni), de Jerusalém e o Instituto
7
Ciêntífico Judaico (YIWO) de Nova York, não teria realizado muitas de minhas hipóteses
de trabalho. A todas essas pessoas, cujas vidas estão voltadas à preservação da
documentação histórica, desejo agradecer pela sua dedicação e prestatividade sem as quais
seria impossível chegar a qualquer resultado científico-histórico. Ao mesmo tempo sou
muito grato às inúmeras pessoas, amigos e famílias que abriram seus acervos pessoais
colocando-os generosamente à minha disposição.
8
1
. Ed. Biblos, Rio de Janeiro, 1962, pp. 9-12.
9
O critério adotado por Serebrenick se assenta sobre uma posição historiográfica, conforme
ele mesmo o define na introdução de sua obra, de que “o estudo da história dos judeus no
Brasil não pode ater-se às fases e aos marcos gerais da evolução política e social do país,
senão orientar-se, ao revés, segundo os fatos e acontecimentos históricos que hajam
repercutido especificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos
judeus”. Antes de discutirmos os critérios de Serebrenick, devemos ainda observar que a
sua periodização se estende até o ano de 1900, sendo que, na obra mencionada, encontra-se
um estudo de Elias Lipiner sobre “A nova imigração judaica no Brasil”, que trata do
período que se inicia em 1900 até a década de 60 aproximadamente, mas sem uma
definição cronológica exata.
Quanto ao critério estabelecido pelo nosso autor para a periodização
apresentada mais acima, julgamos que ele peca pela base ao tentar isolar a história dos
judeus no Brasil da própria história geral brasileira, do mesmo modo como consideramos
impossível isolá-la da história dos judeus como um todo .
Nesse sentido, nem o autor é fiel ao critério estabelecido por ele mesmo, pois
em boa parte acaba por aceitar balizas cronológicas que constituem marcos importantes na
história do Brasil como tal, a começar pela primeira fase, que se estende de 1500 a 1570,
onde se fala na “ampla integração dos judeus na vida econômica do país compreendendo os
três subperíodos”, etc. Além do mais, o autor, sob o aspecto intrínseco ou do conteúdo
histórico, atribuído a cada divisão demonstra desconhecer a própria história do Brasil,
assim como dessa imigração, pelo fato de não a ter pesquisado nos arquivos públicos e
particulares que preservam a sua documentação.
É verdade que a periodização da história do Brasil não deixa de ser
problemática, como toda periodização, mas desde Varnhagen, Capistrano de Abreu,
Oliveira Lima, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, e poderiamos acrescentar muitos outros,
pelo menos segundo as opiniões abalizadas de José Honório Rodrigues e Sérgio Buarque de
Holanda, se estabeleceram pouco a pouco os critérios interpretativos para se fixarem os
períodos da história brasileira2.
2
Sobre a periodização da história do Brasil, a melhor síntese foi escrita por José Honório Rodrigues em sua
obra “Teoria da História do Brasil”, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1969, pp. 125-144.
10
3
José Honório Rodrigues, em sua obra já citada, diz, com inteira razão, que “uma história detalhada do
desenvolvimento de uma comunidade representa a mais legítima contribuição à história nacional”, p. 151. Ele
mesmo demonstrou interesse pela história dos judeus no período holandês e do período colonial ao comentar
a obra de Arnold Wiznitzer em um artigo intitulado “Os Judeus no Brasil” , publicado no “O Jornal”, de 30
de outubro de 1952 e republicado na revista Aonde Vamos?, em 6 de novembro de 1952, ele escrevia: “De
1773 até o prícipio do século XX, a história dos judeus no brasil, por efeito ou não da indistinção determinada
por lei ou por falta de pesquisa e conhecimento dos documentos, não é conhecida.”
11
4
Ed. espanhola, Barcelona, 1947, pp. 156-7.
13
3. JUDAICA PERNAMBUCENSIS
Alguns perfís de judeus e judaizantes em Pernambuco
5
V. sobre eles Mello, José A. G. de, Gente da Nação, Ed. Massangana, Recife, 1989, pp.117-166; v. também
Almeida, Horácio de, História da Paraíba, Imprensa Universitária, João Pessoa, 1966, tomo I, pp.147-159. O
autor de Gente da Nação anotou 15 processos relativos a pessoas com o mesmo nome em Portugal nos anos
de 1542 a 1593.Por fim identificou Branca Dias com a personagem do processo da Inquisição de número
5.736 existente na Torre do Tombo.
6
Lipiner, E., Terror e linguagem, um dicionário da Santa Inquisição, Contexto Editora, Lisboa, 1998, pp.174-
176.
14
Igreja, e acabou por se livrar da pena que lhe havia sido imposta. Como bem
demonstrou José Antônio G. de Mello, a família de Branca Dias compõe quatro
gerações de processados pela Inquisição, a começar por sua avó Violante Dias. 7
Também pertence ao rol desses cristãos-novos a figura exótica do calceteiro Jorge
Dias Caia, que era visto como “sacerdote” dos judeus em Olinda, e é descrito na
denunciação de 1591 pela sua conduta de cripto-judeu que para avisar os judaizantes
que deveriam se reunir em Camaragibe e no Engenho São Martinho, e talvez em
outros lugares, ele se apresentava descalço com um pano atado num pé e com a
espada na cinta, o que não era de seu hábito cotidiano, indicando desse modo que
haveria um ajuntamento de seus irmãos de fé. Durante a Primeira Visitação do Santo
Ofício, entre 1591-1595, não somente eles foram denunciados como judaizantes mas
também seus filhos e parentes bem como muitos outros cristãos-novos que habitavam
a região de Pernambuco. Elias Lipiner lembra bem que o fato da legislação
portuguesa da época, destinada a impedir a saída dos cristãos-novos do reino sem
licença especial, embora confirmada e renovada sucessivamente a sua força de
observância, não era observada com absoluta inflexibilidade, continuando a
emigração clandestina dos cristãos-novos para o Brasil.8 A maior parte dessa
imigração concentrou-se na região do Nordeste por ser esta o principal polo da
atividade econômica na colônia daquele tempo e na qual, ao par da extração de
madeira e de produtos naturais, desenvolvia a atividade açucareira de vital
importância para a época, e muitas vezes como pioneiros como o foi no caso de
Diogo Fernandes e Pedro Álvares Madeira, conforme assinalou José Antônio G. de
Mello.9 Porém devemos observar que todas conjecturas referentes ao número de
cristãos-novos que viviam na região nordestina desde o século XVI e seguintes,
carecem de melhor fundamentação uma vez que as fontes centrais que os mencionam,
ou sejam, os processos inquisitoriais e os documentos relativos às duas Visitações, a
de 1591 e a de 1618, não nos permitem qualquer avaliação estatística segura sobre os
mesmos, excetuando os que efetivamente são denunciados como tais. Em geral os
poucos estudos demográficos sobre o período colonial são discordantes em suas
conclusões, como bem observa Tarcizio do Rêgo Quirino em seu livro Os habitantes
do Brasil no fim do século XVI, baseado em boa parte numa leitura apurada dos
documentos relativos às Visitações .10 O autor está convicto de que “mesmo somando
em uma só parcela todos os que têm alguma raça de cristão novo [ quer dizer,
incluindo meio cristão-novo] chegamos a um total de 12,5%, bastante pequeno para a
influência que lhes é atribuída”. Porém, comparativamente à Bahia, parece não haver
diferenças apreciáveis na composição da população das duas maiores capitanias, a
não ser de se revelar um número maior de “meios cristãos-novos” superior em
Pernambuco, o que torna maior a percentagem de pessoas de origem judaica (10,9%)
na Bahia e 14% em Pernambuco. Em números reais estamos falando em algumas
centenas de indivíduos que não atingiriam um total acima de um a dois milhares de
pessoas considerando o número da população branca ou “portuguesa” existente na
época. O que está muito longe das afirmações ou avaliações bizarras de certos
7
Vide Genealogia de Branca Dias, Mello, J. A.G. de, op. cit. ,entre pp. 134-135.
8
Lipiner, E., Os judaizantes nas capitanias de cima, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1969, p.15.
9
Mello, J. A.G. de, Gente da Nação, ed. Massangana, Recife, 1990,p.8.
10
Instituto de Ciência do Homem-Univ. Fed. de Pernambuco, Recife, 1966, pp.14-15.
15
historiadores que lidam com a presença dos cristãos-novos no Brasil, sem que
diminua o fato de terem os cristãos-novos desempenhado um papel notável na
sociedade colonial em seu período decisivo de formação, assim como o foi na
economia predominante naquele tempo em que se fizeram representar como
destacados e bem sucedidos senhores de engenho, produtores e exportadores de
açúcar, quando este era um bem apreciado e sumamente valioso na atividade
mercantil da época. Nesse sentido, figura exemplar de homem bem sucedido
economicamente e de projeção social impar é o cristão-novo João Nunes, contratador,
mercador, senhor de engenhos, português nascido em Castro Daire, morador em
Olinda, e que fora preso durante a Primeira Visitação, com denúncias na Bahia e em
Pernambuco, porém sempre conseguindo habilmente livrar-se de suas malhas as
custas de seu poder financeiro e influência. 11 Porém outro tipo de cristão-novo
judaizante que não atua na esfera econômica mas se notabiliza como intelectual e
homem culto com o desejo de deixar seu nome gravado na memória dos homens
como literato é o não menos famoso Bento Teixeira, autor da Prosopopéia. Sobre ele
muito se escreveu, desde Barbosa Machado, em sua Biblioteca Lusitana, publicada
em 1741, até os nossos dias, visando-se identifica-lo como autor de certas obras, seja
por representar uma figura trágica de perseguido e processado pela Inquisição, ou
ainda pela sua trajetória de vida que o transformou em uxoricida acrescido ao fato de
figurar como um dos primeiros autores na história da literatura brasileira. A
descoberta de um exemplar de sua obra, em 1872, na Biblioteca Nacional de Lisboa,
por Varnhagen, logo seguido do achado de outro, no mesmo ano no Rio de Janeiro,
por B.F. Ramiz Galvão, que a publicaria em 1873, conseguiu dirimir a dúvida quanto
a autoria da Prosopopéia, mas não quanto a verdadeira identidade do seu autor. Isto
viria mais tarde por ocasião da publicação das Denunciações da Bahia, prefaciado por
Capistrano de Abreu, e as Denunciações de Pernambuco, por Rodolfo Garcia, em que
este último, associou o autor ao cristão-novo vítima da nefanda instituição. Nesse
sentido também a primeira edição da Prosopopéia, de Lisboa, 1601 editada por
Antônio Alvares e organizada pelo livreiro Antônio Ribeiro juntamente com outro
texto para o qual escrevera o prólogo, a saber o “Naufrágio que passou Jorge de
Albuquerque Coelho, capitão e governador de Pernambuco”, de autoria do piloto
conhecido por Afonso Luís Piloto e redação final de Antônio de Castro, “poeta e
sabedor do seu latim”, foi objeto de abundantes especulações até que se cristalizasse
uma opinião comum aceita pela maioria dos estudiosos. 12 Arnold Wiznitzer que
escreveu sobre o judaizante e procurou comprovar seu judaismo através da leitura das
estrofes 6, que se reporta aos quatro elementos: ar, fogo, água e terra, e 35 no qual se
lamenta a injustiça na qual o mau prospera e o justo é castigado pelo sofrimento, (em
hebraico “zadik verá lo rasha vetov lo) na Prosopopéia, bem como pela figura
impressa no final da última estrofe, que pensa ser uma Fênix, símbolo dos cristãos-
novos judaizantes adotada pela comunidade Neve Shalom de Amsterdão, o que seria,
11
V. Siqueira, S. A., O comerciante João Nunes, Separata dos Anais do V Simpósio Nacional dos Professores
de História, Campinas, 1971,pp.231-249; Mello, J.A.G. de , op. cit.,pp.51-79; Lipiner, E., op. cit., pp.194-203.
12
Souza, J. Galante de, Em torno do poeta Bento Teixeira, Instituto de Estudos Brasileiros-USP, São Paulo,
1972, dedica boa parte de seu conscencioso estudo ao esclarecimento da questão da autoria e identificação do
autor.
16
no seu entender, clara indicação do poema ser escrito por um judaizante. 13 A verdade
é que dificilmente poder-se-ia ver nessas estrofes qualquer sinal de judaismo pois seu
conteúdo é inteiramente universal e não caracterizam, em especial, um conteúdo
específico judaico. Por outro lado o símbolo da Fênix, que tem uma longa trajetória
mitológica no mundo grego, e penetrou no judaismo rabínico,14 também foi adotada
pelos cristãos-novos judaizantes devido seu significado simbólico da eternidade de
Israel e sua fé superior confirmada pelos mártires queimados pela Inquisição. J. Lúcio
de Azevedo publicou um soneto de David Jesurun dedicado ao famoso mártir vítima
da Inquisição, frei Diogo da Assumpção: “Foste ouro que estiveste soterrado/ Nas
minas da cruel Inquisição;/ Mas como o fogo tira a corrupção/ Quiseste nele ser
purificado.// Foste Fênix que aumenta seu estado/ Por não ter nele a morte jurisdição,/
E assim ardeste vivo em conclusão/ Que hás de nascer das cinzas renovado.// Anjo
que a Manoé apareceu,/ Vítima que oferece a Deus no fogo,/ Que ambos subis em
flama ao céu propício,// Lá rides de quem cá nos ofendeu,/ Sem querer que vos
chamem Frei Diogo,/ Mas áureo Fênix, anjo e sacrifício.//15 Uma vez que essa ave
mitológica vive 500 ou 1000 anos e é consumida pelo fogo para renascer das próprias
cinzas, ela também aparece na literatura rabínica, do mesmo modo que na Patrística
cristã, como prova da ressurreição dos mortos. 16 Mas a ave ou pássaro que vemos na
gravura da Prosopopéia não é uma Fênix. Ali encontramos uma ave com três filhotes
bicando seu próprio peito para alimentá-los, o que não condiz com a representação
conhecida da Fênix, sempre configurada envolta em chamas sob seu corpo, assim
como podemos verificar no símbolo adotado pela comunidade Talmud Torá de
Amsterdão, resultado da unificação das três anteriores.17 Daí a conclusão de Rubens
Borba de Moraes, em artigo sobre Bento Teixeira, afirmar que a ave é um pelicano,
que também possui um significado cristão, entre outros, o do Cristo que derrama seu
sangue para salvar a humanidade.18 Curiosamente a mesma ave se encontra no
13
“Bento Teixeira, autor da Prosopopéia”, in Aonde Vamos?, n. 502, 29 de janeiro de 1953, p.2. Duas
perguntas são inevitáveis em relação ao julgamento de Wiznitzer: a) como poderia ter visto uma Fenix ,
sempre representada com chamas, na figura da ave com seus filhotes da Prosopopéia? ;b) teria de fato visto o
símbolo da Fenix em algum documento relativo à comunidade Neve Shalom? Ou confundiu-a com a Talmud
Torá?
14
Sobre a Fenix, fazem referência vários dicionários sobre mitologia, entre os quais o Dicionário da mitologia
grega e latina de Pierre Grimal, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 4ª ed., 2.000 e o Dicionário de mitos literários
de Pierre Brunel, UNB- J. Olympio Editora, Rio de Janeiro,1997. O mito no judaismo parte de uma
interpretação da palavra hebraica “hol”, que se encontra em Jó, 29:18 :“dias numerosos como “hol”, (que
significa “areia”), mas que, posteriormente, atribuiu-se um o significado adicional como sendo Fenix, que em
hebraico é denominada “Hul”. A literatura midráshico-rabiníca é rica em referências expressivas sobre a
Fenix tal como a encontramos no Bereshit Raba, 19, 5: “ ...com exceção de uma ave que se chama Hul, como
está escrito (Jó, 29:18)...vive mil anos e no final desse tempo um fogo sai de seu ninho e a queima, e resta
dela algo como um ovo que dele volta a crescer asas, e torna a viver.” V. Bereshit Raba, ed. Machberot
leSifrut,Tel Aviv, 1956, vol.1, p.134. A menção da Fenix, ou Hul, a encontramos na literatura apócrifa, no
Apocalipse grego de Baruque, cap.6, no qual a Fenix absorve com suas asas os poderosos raios do Sol e desse
modo evita que a vida na terra seja queimada. Também é mencionada a Fenix no Livro de Enoque, versão
eslava, cap. 6, numa descrição fantástica de sua forma. V. Kahana, A., Hasefarim hahitzonim (Os livros
apócrifos), Massada, Tel-Aviv, 1959, vol.1, pp. 109-110; 418.
15
História dos Cristãos Novos Portugueses, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 2 ª ed., 1975, p.161.
16
V. Ginzburg, L., The Legends of the Jews, The JSPA, Philadelphia, 1967, vol.VII, p.51.
17
V. Encyclopaedia Judaica, Ktav Pub. House, Jerusalem, 1971-2, vol. 13, p.482.
18
Moraes, R. Borba de, Muitas perguntas e poucas respostas sobre o autor da “Prosopopéia”, in Comentário,
ano V, vol. 5, n.1, 1964, pp.78-88. O mesmo autor levanta vários e interessantes questionamentos sobre o
17
acréscimo do sobrenome Pinto ao de Bento Teixeira que se encontra em Barbosa Machado e no segundo
volume da História trágico marítima de Bernardo Gomes de Brito, de 1736, que reimprimiu o “Naufrágio”
atribuindo-o também ao autor da Prosopopéia; idem, Bibliografia brasileira do período colonial, IEB-USP,
São Paulo, pp. 376-7.
19
O pyut se encontra na coletânea de Masha Itzhaki e Michel Garel, Poésie hébraïque amoureuse, Somogy
Éditions D’Art-Musée d’art et d’histoire du judaisme, Paris, 2000, pp.177-181. A crônica de R’Efraim de
Bonn foi publicada por A.M. Habermann, Sefer Gzeirot Ashkenaz veTzorfat (Livro das perseguições na
Alemanha e França), Ofir, Jerusalém, 1971, 2ª edição.
18
vários lugares após voltar a Olinda e nesse lugar, por ocasião da visitação
inquisitorial faria sua confissão, em 21 de janeiro de 1594. Preliminarmente, tanto na
Bahia quanto em Pernambuco acumularam-se as denuncias sobre o cristão-novo
Bento Teixeira, “mestre de ensinar moços o latim e ler e escrever”, que se veria
forçado a se apresentar perante a mesa do Santo Ofício denunciando a outros e
confessando as suas próprias culpas. O processo 5.206, com sua confissão, o qual foi
objeto de estudo profundo do notável historiador José Antônio G. de Mello, revela as
atitudes e as manifestações “heréticas” do cristão-novo.20 Mas no confronto atento
entre as denunciações e a confissão permite-nos concluir o quanto ele se esforçou
com inteligência e sutileza intelectual a diminuir a gravidade das acusações ao opor
explicações sobre os mesmo fatos que comprometesse o menos possível a
necessidade de demonstrar sua fidelidade e apego ao cristianismo. Por outro lado a
fácil denúncia de pessoas e a declinação dos nomes de cristãos-novos revela certa
fragilidade em sua personalidade que não se propunha- como muitos outros o fizeram
na longa história do marranismo- a adotar uma postura que poderia levá-lo à morte na
fogueira. Contudo o auto que o tribunal mandou fazer sobre sua pessoa não lhe era
em nada favorável e ele seria preso por ordem do Visitador expedida em 19 de agosto
de 1595. Na mesma prisão de Olinda, antes de embarcar para Portugal ele se
encontraria com outro preso, Diogo Lopes, que vivera no Rio de Janeiro.21 Preso,
Bento Teixeira , apresentaria em 17 de setembro um longo requerimento em sua
defesa- que nos dá uma preciosa informação sobre sua vida- indicando várias
testemunhas que passaram a ser ouvidas. 22 Ele acabaria sendo levado a Lisboa, onde
permaneceria preso no Paço dos Estaus e ouvido em interrogatório a partir de 28 de
fevereiro de 1596, mostrando-se negativo durante todo o tempo em relação a qualquer
prática judaica. O processo inquisitorial que se realizou de acordo com os
procedimentos estabelecidos na rotina do tribunal do Santo Ofício acabou por se
prolongar também devido o fato de testemunhas no Brasil, que conheceram o réu,
deverem ser ouvidas. A um dado momento, Bento Teixeira, que se mantivera
insistentemente negativo, percebera que a balança de suas testemunhas lhe era
desfavorável e assim resolvera mudar de atitude, talvez com o receio de obter o
perdão do tribunal. Assim sendo decidira confessar que, sob a influência de sua mãe,
adepta da lei de Moisés, adotara desde adolescente os ritos judaicos, mas que
ultimamente se arrependera e por isso pensava em dizer a verdade, não o fazendo
antes por temor da infâmia e o temor das denuncias que deveria fazer sobre outras
pessoas. E de fato ele denunciou judaizantes que tivera contato em vários momentos e
lugares por onde passara e vivera. As confissões estenderam-se até meados de abril e
sua ratificação até 19 de outubro de 1598, onde aparecem novos detalhes de sua vida
e sobre sua esposa. No final o réu foi beneficiado por suas confissões e o parecer dos
inquisidores, de 3 de dezembro daquele mesmo ano foi condenado em cárcere e
hábito perpetuo, com confiscação de seus bens e excomunhão maior, e como pena e
penitência de suas culpas vá ao auto-da-fé e abjure publicamente seus heréticos erros
20
V. Mello, J. A.G. de, “Bento Teixeira e a Prosopopéia” , in Estudos Pernambucanos, Imprensa
Universitária, 1960, pp.5-43; idem, Gente da Nação, pp.81-116; Siqueira, Sônia A., O cristão-novo Bento
Teixeira, in Revista de História, USP, 89, 1972, pp.395-467.
21
Dines, A., Vínculos do Fogo, Companhia das Letras, São Paulo, 1992,pp.199-201.
22
Mello, J.A.G., Gente da Nação, pp.89-95.
19
em forma, sentença lida “no auto público da Santa Fé na sala desta Inquisição de
Lisboa”, em 31 de janeiro de 1599. Além de abjurar, ele passaria nos cárceres das
assim chamadas Escolas Gerais para ser instruído na doutrina cristã até outubro do
mesmo ano, quando se lhe deu o consentimento para soltá-lo. Não sabemos qual foi o
motivo que o levou novamente voltar à prisão, confirmado por um laudo médico de
abril de 1600, que dizia encontrar-se muito enfermo, vindo, pouco após, a falecer em
julho daquele ano. Entre as testemunhas de Bento Teixeira figurava o nome de
Ambrósio Fernandes Brandão autor do Diálogos das Grandezas do Brasil, uma das
mais importantes obras de informação sobre o Brasil, e em particular sobre o
Nordeste colonial. Ele também se veria às voltas com o Santo Ofício devido ser
denunciado como cristão-novo judaizante. O pouco que conhecemos de sua biografia
indica que viveu em Pernambuco para onde teria vindo de Portugal em 1583 como
feitor do cristão-novo e senhor do engenho de Camaragibe, Bento Dias Santiago. Ele
participou da expedição que foi organizada para a conquista da Paraíba por Martim
Leitão, como capitão de mercadores. De 1597 a 1607 residiu em Portugal e exerceu a
função de tesoureiro geral da Fazenda dos Defuntos e Ausentes. Em 1607 regressou a
Pernambuco seguindo mais tarde para a Paraíba, onde em 1613 já possuía dois
engenhos e conforme Horácio de Almeida estava montando um terceiro. 23 Foi na
Paraíba que escreveu, em 1618, a obra “enciclopédica” Diálogos das Grandezas do
Brasil, sobre a qual, durante muito tempo, foi questionada a verdadeira identidade de
seu autor até que Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e José Antônio G. de Mello a
associassem ao nome de Ambrósio Fernandes Brandão.24 A leitura atenta de sua
obra, a qual se desenvolve através de um diálogo entre dois personagens, Brandônio,
entusiasta em relação à riqueza da terra e Alviano, reinól recém-chegado, crítico
pessimista da mesma, chamou a atenção de historiadores sobre a menção unilateral de
citações escriturísticas do Velho Testamento, e não do Novo, e para sua interessante
concepção- ainda que não fosse original - de que os povos indígenas do continente
seriam descendentes dos antigos hebreus.25 Creio que ainda falta uma leitura mais
atenta dos “Diálogos” no referente as citações do Velho Testamento e sua utilização
exemplar na literatura rabínica tradicional no sentido de se localizar tradições orais
que poderiam perfeitamente fazer parte do “judaismo” ibérico e seu marranismo. “A
vinha de Noé”, “os descendentes do perverso Cã” , “o santo profeta Rei Davi”, “o
profeta Daniel no lago [poço] dos leões”, são temas de uma exegese judaica
tradicional que merece, em seu contexto literário uma reflexão maior no sentido de
identificar o judaismo de seu autor. Mas pelo fato de nunca ter sido processado pela
Inquisição poucos elementos temos para saber sobre sua fé, senão pela denúncia que
foi feita ao Inquisidor Antônio Dias Cardoso, em 9 de novembro de 1606, em Lisboa,
por um “mourisco de nação” de nome Miguel Fernandes de Luna. Nela consta que o
denunciante servia a Ambrósio Fernandes Brandão, cristão-novo que mora na
23
Almeida, H., op. cit., p.210.
24
Vide o Prefácio de Leonardo Dantas Silva na edição dos Diálogos das Grandezas do Brasil,
ed.Massangana-Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 1997, no qual faz a apreciação dos manuscritos e a
Introdução de José Antônio G. de Mello, que descreve os passos havidos para a identificação de seu autor.
25
Alberto Dines chama a atenção para a estrutura do “Diálogos” que são em número de seis ao longo de seis
dias com um intervalo do sétimo para reflexões, o que seria um indício de seu judaismo. V. Dines, A., A
presença judaica no Brasil, breve roteiro (II- A Inquisição na Colônia), in Morashá, ano VIII, n. 28, abril
2.000, p.34.
20
Calçada do Congro...para lhe consertar um jardim de uma horta... Além dele havia
ainda em serviço na dita horta, um “hortelão” de nome Antônio Álvares. Na casa
moravam Ana Brandoa-que parece ser a mulher de Ambrósio- Joana Batista, irmã
bastarda desta, Mícia Henriques e Duarte Brandão, filhos, de Ana Brandoa...que o
dito Ambrósio Fernandes em todos os dias de sábado se recolhe em um estudo seu e
nele está quase todo dia e não sai fora de casa, nem faz pagamento nem contrato no
dito dia com pessoa alguma, sendo recebedor do Consulado e tendo negócios na dita
casa.” O mesmo denunciante “viu a dita Ana Brandoa...estar lendo um livro, que não
sabe que livro é”, e a irmã bastarda desta, Joana Batista, possuía “um livro defeso” e
o filho, Duarte Brandão, era “letrado” .26 Conforme o autor do Gente da Nação a
última menção sobre sua pessoa data de 1623 27 sendo que seus filhos Luís Brandão,
Jorge Lopes Brandão e Francisco Camelo Brandão seriam os herdeiros dos engenhos
de sua propriedade que o tempo fez passar a outras mãos. Temos a possibilidade de
especular sobre os motivos que levou o suposto cristão-novo, ou judeu, a escrever o
“Diálogos das Grandezas do Brasil” no ano de 1618, ano da Segunda Visitação
inquisitorial ao Brasil sob a responsabilidade do licenciado Marcos Teixeira, que
sediada na Bahia, atuou desde 11 de setembro daquele ano até 26 de janeiro de 1619 e
na qual foram denunciados dezenas de judaizantes nessa região.28 Entre os
denunciados encontram-se aqueles que mantinham contato com o continente europeu,
com Flandres e a cidade de “Nostra Dama” (Amsterdão) e que evidencia uma
atividade econômica dos cristãos-novos brasileiros numa escala mundial, devido o
seu contato e ligações, mesmo de parentesco, com as comunidades de judeus
portugueses na Holanda, Hamburgo e outros lugares. A liberdade de movimento
outorgada aos cristãos-novos pelo decreto de 4 de abril de 1601, revogando a
proibição de sair de Portugal sem licença especial ou ainda venderem suas
propriedades a não ser com permissão, permitiu, esse desenvolvimento que levou a
prosperidade de muitos dos que se estabeleceram no Brasil. São anos em que a
política portuguesa em relação aos cristãos-novos oscila entre uma jurisdição que
concede uma relativa liberdade e a supervisão controladora das almas para que não
caiam na tentadora heresia, mas sem coerência e sujeita ao sabor de governantes que
ora pendem para um lado ora para outro.
O “Diálogos” é, assim nos parece, fruto de uma visão otimista sobre possibilidades e
potencialidades de enriquecimento que a colônia oferece àqueles que querem emigrar
e viver nessa terra. Esse otimismo espelha de fato uma fase de prosperidade e
crescimento da industria açucareira no Nordeste, atividade na qual o próprio autor
estava envolvido, e que acompanhou o aumento progressivo do número de engenhos
e o de sua produção. A cobiça dos holandeses em relação ao Nordeste brasileiro
decorrente de informações, também de holandeses e estrangeiros 29 que viviam em
26
Mello, J.A.G. de, Introdução ao Diálogos das Grandezas do Brasil, pp.XXI-XXII.
27
Mello, J.A.G. de, op. cit., p.27.
28
Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Officio à Cidade do Salvador da Bahia de
Todos os Santos do Estado do Brasil, no anno de 1618, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1936, com
introdução de Rodolfo Garcia e onde aparece a figura de um Melchior de Bragança, converso e terrível
denunciante que ensinara hebraico nas Universidades de Alcalá e Salamanca.
29
Mello, J.A.G. de, Dois relatórios holandeses, Sep. da Revista de História-USP, São Paulo, 1977, na qual
transcreve a Memória de Adriaen Verdonck, escrita em 20 de maio de 1630, brabantino que residia em
21
Pernambuco desde 1618 ou 1620, e que forneceu informações valiosas aos invasores que ocuparam a vila de
Olinda em fevereiro de 1630.
30
Mello, J.A. G. de, Tempo dos Flamengos, Col. Pernambucana, Recife, 1978, p.38. O autor que observa que
uma das cópias do “Diálogos”, se encontrava na Biblioteca de Leyden indica o quanto os holandeses
procuravam obter um conhecimento sobre a região.
31
Kellenbenz, H., A participação da Companhia de Judeus na conquista holandesa de Pernambuco, Univ.
Fed. da Paraíba, 1966. Trata-se de um depoimento feito perante o arcebispo de Charcas, conselheiro da Santa
Inquisição, em março de 1633 por um capitão Estevan de Ares de Fonseca, natural de Coimbra, sobre um
Francisco de Brito que tomou parte na companhia dos Judeus, em 1629. O documento que se encontra na
Inquisição de Toledo.
32
Sobre Moysés Navarro vide o artigo de Wiznitzer, A., Soldados judeus no Brasil Holandês (1630-1654) in
Aonde Vamos?, n,733, 11 de julho, 1957; n.734, 18 de julho, 1957. Mello, Tempo dos Flamengos; Wiznitzer,
A., The Records of the Earliest Jewish Community in the New World, A. J. H. S., New York, 1954.
22
Recife e Olinda que se refere ao fortim dos judeus, excubiae Iudaeorum.33 Durante a
rebelião portuguesa de 1645, muitos deram suas vidas para impedir a expulsão dos
holandeses motivados, acima de tudo, pelo temor de que teriam de estar novamente
sujeitos às perseguições inquisitoriais e à vingança dos rebeldes. Nieuhof recorda que
a preocupação permanente dos judeus os levava a ficar atentos quanto as intenções
dos portugueses, e em 13 de outubro de 1644, certo judeu, Gaspar Francisco da
Cunha, e mais dois outros de destaque na colônia comunicaram ao Conselho que
haviam sido informados por alguns judeus do interior, com os quais mantinham
correspondência, que os portugueses estavam conspirando contra o Brasil Holandês. 34
O temor era plenamente justificado pois ao conquistarem Serinhaém e seu forte em
agosto de 1645 os lusos batizaram dois judeus, Jacques Franco e Isaac Navarro. 35 Frei
Manoel Calado menciona um judeu que estava catequizando e outros que foram
enviados a Portugal, além de outros mais.36 Ainda o mesmo Nieuhof é que nos revela
o estado de espírito dos judeus quanto a possibilidade dos holandeses virem a ser
derrotados: “Os judeus, mais que os outros, estavam em situação desesperadora, e,
por isso, optaram por morrer de espada na mão ao invés de enfrentar seu destino sob
o jugo português: a fogueira.” 37 Wiznitzer, calcula o número de judeus no Brasil
holandês não terem excedido a 1.450 almas numa população total de homens livres
de 2.899 pessoas, sendo que no ano de 1645, cerca de 350 judeus serviram as forças
armadas holandesas. Mas as discrepâncias numéricas entre os historiadores quanto a
questão relativa à população judaica sob domínio holandês ainda demanda um estudo
mais apurado.38 Além dos marranos anteriores à invasão, que voltaram abertamente
ao judaismo, e os judeus que tomaram parte na conquista acompanhando a armada
invasora, vieram judeus da Holanda, desde o estabelecimento do domínio batavo e
mais acentuadamente nos anos de prosperidade em que Maurício de Nassau foi
governador do Brasil Holandês, de janeiro de 1637 a 1644. Uma carta enviada à
Companhia das Indias Ocidentais, em 5 de dezembro de 1637 revela que a Câmara
dos Escabinos de Olinda queixava-se de que o território estava sendo inundado de
judeus que chegavam em todos os navios e pouco após a representação da Igreja da
Reforma no brasil queixava-se de que os judeus realizavam publicamente seus rituais
em dois lugares do Recife.39 As levas conhecidas de 1638 sob a chefia de Manoel
Mendes de Castro e a de 1641-2 liderada pelos Hahamim Isaac Aboab da Fonseca e
Moisés Raphael de Aguilar eram compostas de um número maior de pessoas. Com o
levante de 1645 obviamente o número de judeus irá decrescendo e com a derrota final
dos batavo e a capitulação calcula-se que cerca de 600 judeus saíram do Brasil para se
33
Wiznitzer, A., Soldados...p.4.
34
Joan Nieuhof, Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, ed. Itatiaia-Edusp, São Paulo, 1981, p.
124. Nieuhof esteve no Brasil de 1640 a 1649.
35
Idem, ibidem, p.216.
36
V. Nota de rodapé 281, p. 216, de José Honório Rodrigues, na edição citada da obra de Nieuhof.
37
Idem, ibidem, p.290.
38
Certos historiadores chegaram a adotar a absurda cifra de 5.000 judeus vivendo sob domínio holandês,
enquanto J. Lúcio de Azevedo se refere a 600, I. S. Emmanuel cerca de 1.000, Egon e Frieda Wolff, no
entanto dá para o ano de 1648, ano da assinatura dos Estatutos da comunidade de Recife e Maurícia, cerca de
350, em oposição a Wiznitzer que calcula , para o mesmo ano cerca de 720. Para essa questão vide Wolff, E.
e F., A Odisséia dos Judeus de Recife, C.E.J.-USP, São Paulo, 1979, pp. 274-6.
39
Wiznitzer, A., O número de judeus no Brasil Holandês (1630-1654), in Aonde Vamos? n.585, 9 de
setembro, 1954.
23
40
Idem, ibidem, p.4. Wiznitzer se baseia na afirmação do famoso Haham Saul Levi Mortera, contemporâneo
dos acontecimentos, que em seu livro “Providencia de Dios com Yisrael, y verdad, y Eternidad de la Ley de
Moseh y Nulidad de las demas Leyes”, descreve o momento da capitulação e a generosidade do governador
Francisco Barreto de Menezes “que proibiu que as pessoas da nação hebraica fossem tocadas ou molestadas, e
estabeleceu severas penas contra os que violassem esta proibição. Além disso permitiu que os judeus
pudessem vender suas mercadorias e autorizou o embarque para a Holanda de mais de 600 pessoas de nosso
povo que estava lá.”
41
V. Encyclopaedia Judaica, Keter Pub. House, Jerusalem, 1971-2, vol. 2, p.95-6.
42
Emmanuel, I. S., Fortuna e Infortúnios dos Judeus no Brasil (1630-1654), in Aonde Vamos?, n.632, 4 de
agosto,1955.
24
na qual o autor é identificado pelo conjunto das letras iniciais de cada verso. A seguir
vem o longo e comovente poema de louvor a Deus, o “Mi Kamoha” ( Quem é como
Tu ?, pois não há como Tu, e quem se compara a Ti?, pois nada é semelhante a Ti),
elaborado, assim ele o diz, com o mesmo estilo e ritmo que se encontra no conjunto
de suas “pobres sacolas de poemas”, “amtahot shirai”, dividido em duas partes, sendo
a primeira em forma de “bakasha” (súplica a Deus para a salvação e ajuda) e uma
segunda parte, na qual estão embutidos os detalhes dos acontecimentos, nos quais o
“descendente de Amalek” visava a destruição do povo de Israel, porém Aquele que o
guarda e zela por ele não o abandonou. Novamente, nessa última parte, ele se
identifica como autor com as letras iniciais dos versos que formam seu nome “Isaac
Aboab ben David, hazak” (esta última palavra significa “fortifique”, no sentido de
força e coragem). Anexo ao poema encontra-se o “Vidui veTefilá” (Confissão e
Oração) que escreveu “e ordenou para que se rezasse em momentos de angústia e
perigo quando as tropas do rei de Portugal vieram para nos destruir e Deus nos salvou
de suas mãos”. Na verdade a leitura desses escritos, permeados de expressões bíblicas
e mishnaico-talmúdicas que caracteriza os diversos modelos e formas do “pyiut”, da
poética litúrgico-sinagogal, ou “shirat kodesh”, poesia sagrada, que atinge seu
momento alto na Idade Média,47 confirma a sólida cultura religiosa de Aboab da
Fonseca, que além de revelar elevada sensibilidade poética , quis deixar registrado
para a história não somente as “res gestae” dos homens, mas, acima de tudo as
“niflaot”, as maravilhas que operou o Deus de Israel. Aboab também escreveu-
supõe-se que ainda no Brasil- uma gramática hebraica, Melehet haDiqduq, e
Kayserling, faz referência a uma obra, desaparecida, De la conligacion (sic) de los 13
Articulos de la Fé, que afirma também ter sido escrita no Brasil, porém sem qualquer
certeza sobre a data. Ele esforçou-se para criar um clima de harmonia entre as duas
comunidades, a Zur Israel e a Magen Abraham, que por vezes disputavam entre si,
para propor finalmente uma unificação. Ao voltar para Amsterdão, com a derrota
holandesa em 1654, Aboab foi indicado como Haham , mestre no Talmud Torá,
diretor de ieshivá (academia de estudos talmúdicos), membro de beit din ( tribunal
rabínico) e nessa atribuição ele participou da decisão que levou a excomungar, em
1656, a Spinoza. Sua produção literária inclui sermões, elegias, um Vidui
(Confissão), um tratado sobre castigo e recompensa, sob o título de Nishmat Haim
(Espírito da Vida), uma tradução ao espanhol com comentário sobre o Pentateuco
intitulada Parafrasis Commentada sobre el Pentateuco, publicada em 1681, e a
tradução do espanhol ao hebraico das obras do cabalista Abraham Cohen de Herrera,
Beit Elohim (“Casa de Dios”) e Shaar haShamaim (“Puerta del Cielo”), publicadas
em 1655.48 Na introdução dessa obra ele lembra, novamente, a intervenção divina e o
milagre da salvação que libertou os judeus da “escaldante fornalha que era o Brasil,
um verdadeiro Egito”. Sábio, orador brilhante, foi seguidor do falso-messias Sabatai
47
Sobre isso temos em espanhol a clássica obra de José M. Millás Vallicrosa, La poesia sagrada
hebraicoespañola, ed. C.S.I.C., Madrid-Barcelona, 1948, 2ª ed., na qual a poética hebraica medieval é
estudada por um dos luminares dos estudos hebraicos na Espanha. A bibliografia fundamental encontra-se em
hebraico e reúne um extraordinário grupo de estudiosos das universidades de Israel, assim como de outros
centros de estudos, do quilate de um H. Y. Schirmann, Ezra Fleisher, e outros, que continuaram e ampliaram a
monumental obra de Leopold Zunz, no século XIX.
48
Sobre sua produção literária vide Kayserling, Meyer, Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, Prol.Y.H.
Yerushalmi, ed. Ktav Pub. House, New York, 1971, pp.26-27.
26
49
Sobre esse movimento vide Scholem, G., Sabatai Tzvi, o messias místico, ed. Perspectiva, São Paulo, 1995.
50
V. Falbel, N., “Menasseh ben Israel e o Brasil, in O Brasil e os Holandeses, org. Paulo Herkenhoff,
Sextante, Rio de Janeiro, 1999, pp.160-175.
51
Antônio Ribeiro dos Santos em sua obra Memórias da literatura sagrada dos judeus portugueses no século
XVII, editada em Lisboa, em 1792, na Memória III, p. 300, cita a frase mas observa que “Wolffio, o autor da
Bibliotheca Hebraica, t, III, p.709, a ouvira dizer a hum Judeo Portuguez”. Por outro lado afirma que “o Padre
Antônio Vieira o ouviu [a Aboab] pregar muitas vezes, e se maravilhou de seu grande juízo.”
52
Sobre Aboab da Fonseca e seus laços familiares vide Wolff, E. e F., A Odisséia dos Judeus de Recife, CEJ-
USP, São Paulo, 122-133; Emmanuel, I.S., New Lights on early American Jewry, in American Jewish
Archives, 7, 1955, pp. 3-64.
53
Emmanuel, I.S., Fortuna e Infortúnios dos Judeus no Brasil, in Aonde Vamos?, n. 643, 20 de outubro, 1955.
Emmanuel adota o título da obra de Barrios como sendo “Triumpho del Gobierno Israelitico Theocratico.”
54
V. sobre eles e a numerosa família Sarfati (com diversas grafias) em Wolff, E. e F. op. cit., pp.63-69.
55
V. Kayserling, op. cit., p.31.
27
56
Remedios, J. Mendes dos, Os judeus portugueses em amsterdam, F. França Amado, Coimbra, 1911, pp.61-
67.
57
V. o estudo definitivo sobre este personagem na obra do eminente Prof. Yosef Kaplan, Menatzrut
leyahadut, haiav upfealo shel haanus Itzhaq Orobio de Castro (Do cristianismo ao judaismo,vida e obra do
marrano Isaac Orobio de Castro), Magnes Press, The Hebrew University, Jerusalem, 1982, cap.6, pp.98- 108;
Mendes dos Remedios, op. cit., lista certos questionamentos de Isaac Orobio de Castro junto às obras de
Aguilar.
58
A data de sua vinda, 1641, juntamente com seu tio Aguilar, é indicada por ele mesmo durante o inquérito
inquisitorial. V. Lipiner, E., Izaque de Castro:o mancebo que veio preso do Brasil, Massangana, Recife, 1992,
pp.53 e 117-118. Se for verdadeira a informação de Isaac de Castro, teria razão I.S. Emmanuel, que afirma ser
a vinda de Aboab em 1641, sob o argumento que Menasseh ben Israel, o substituiu em sua atribuição na
congregação Talmud Torá de Amsterdão naquele ano, partindo do pressuposto que Aboab e Aguilar vieram
juntos.
59
Azevedo,J. Lúcio de, op. cit., pp.483-4, trás um pequeno extrato do processo 11.550 da Inquisição de
Lisboa no qual o réu afirma nunca ter sido batizado.
60
V. Lipiner, E., op. cit., pp. 48-50.
28
uma vez que o tribunal estava convicto que era cristão batizado. 61 Há um dado momento
Isaac de Castro tomou consciência de que não escaparia da extrema condenação, a fogueira,
a não ser que abjurasse de sua fé e abraçasse o cristianismo. A partir daí ele aceitou seu
destino e decidiu morrer como mártir, tal como outros o fizeram desde que o Tribunal do
Santo Ofício foi estabelecido na Península Ibérica passando a estender seus tentáculos nos
domínios de Espanha e Portugal nos quatro cantos do mundo. O “Kidush haShem”, o
morrer santificando o Nome, e não apostatar ou transgredir os princípios da fé, vinha de
uma longa tradição no judaismo, desde o domínio grego-romano na Palestina. Foi na Idade
Média, e em particular durante a passagem das Cruzadas pelas comunidades judias de
Ashkenaz (Alemanha), que o Kidush haShem se manifestou numa dimensão jamais vista
anteriormente. Mas desde o século XIV com os batismos forçados e com a instalação
oficial dos tribunais da Inquisição o martirológio, numa escala mais ampla, despertou como
postura admirada e cultuada entre os judaizantes da Diáspora ibérica, continuamente
supervisionados em sua fé ,onde quer que se encontrassem. Os tribunais da Inquisição
espanhola nos seus territórios coloniais, desde o México até o Perú, assim como os que
foram instalados nas colônias portuguesas incluindo-se as Visitações no Brasil, que levou
ao queimadeiro um número expressivo de vítimas, fortificou o sentimento de admiração e o
culto pelos mártires judeus.62 Com certeza o jovem Isaac de Castro conhecia bem a historia
passada-presente de seu povo e a presença próxima do martirológio que “santifica o
Nome”. As suas últimas confissões são de um judeu convicto que quer morrer na sua fé, e
que procura observar as festividades e os preceitos.63 Os esforços dos clérigos, durante o
tempo em que esteve encarcerado, para convertê-lo, foram em vão, e mesmo sob vigilância,
como era hábito e obrigação na meticulosa máquina do Santo Ofício, o prisioneiro em sue
calabouço não deixou as práticas judaicas, observando jejuns, sábados e as festividades
sagradas. Podemos imaginar as inúmeras discussões sobre os fundamentos da fé, que
lembra as polêmicas judaico-cristãs no período medieval que o moço teve que suportar com
a intenção misericordiosa de salvar sua alma, e seu corpo, ao mesmo tempo que ele se
mostrava irredutível em sua crença no Deus de Israel. O seu ilustrado tio Moisés Raphael
de Aguilar já o devia ter introduzido nesse mundo sutil da disputa teológica, pois ele
mesmo tinha entre seus escritos um comentário sobre o capítulo 53 de Isaias, um dos
capítulos polêmicos tirado diretamente da “auctoritas”. E quanto a salvação de sua alma o
jovem missionário estava seguro de que ela era imortal, assim como aprendera de seu tio
autor de um tratado sobre a questão sob a visão teológica da fé judaica, e mais ainda
quando ele caminhava para o martírio em nome do Deus de Israel. Em 17 de novembro de
1647, devido suas “falsas opiniões e heresias” o réu foi entregue à justiça secular, o que
significava a condenação à morte pela fogueira, “sem efusão de sangue”, como consta em
sua sentença, usual e cínico eufemismo usado no código semântico do Santo Ofício, para
quem vai morrer.64 O jovem Isaac de Castro tornou-se uma figura emblemática do
61
V. as pertinentes observações sobre Isaac de Castro em Dines, A., Vínculos do Fogo, Companhia das
Letras, São Paulo, 1992, pp.209, 211, 216, 220-223, e outras.
62
V. Roth, C., A History of the Marranos, Hermon Press, New York, 1974, pp.146-167.
63
Wiznitzer, A., Os Judeus no Brasil Colonial, ed. Pioneira-EDUSP, São Paulo, 1966, p.99.
64
Sem dúvida o melhor estudo sobre Isaac de Castro, que elenca as fontes e a bibliografia existente, ainda é
de Elias Lipiner que estudou meticulosamente o processo 11.550, além de outros relativos ao mesmo, que
resultou no trabalho intitulado citado acima.
29
65
Menasseh ben Israel, em sua obra Esperança de Israel, editada em 1650, se refere a ele no item LXV,
pp.99-100 de seu livro ao falar do martirológio: “ Ishak de Castro Tartas, conocido nuestro, y harto inteligente
en las letras Griegas y Latinas, no se por que furtuna, pasando daqui a Pernambuco, siendo alli captivo de los
Portuguezes, fue lo mismo que cercado de lobos carniceros. Embianle a Lixboa, donde tiranicamente preso,
de edad de 24 años, es quemado vivo...” Utilizei-me da edição Editorial Plata S. A., Chur. 1974.
30
Muito se escreveu sobre Menasseh ben Israel66, aliás Manoel Dias Soeiro, uma
das personalidades mais marcantes da diáspora ibérica do século XVII, devido não somente
ao seu papel na comunidade judaica de Amsterdam e fora dela, mas também a sua múltipla
atuação como intelectual que soube se integrar na criatividade cultural da época a ponto de
angariar respeito geral no continente europeu, fora do âmbito judaico, Nascido em 1604 na
ilha da Madeira67, de uma longa linhagem de cristãos-novos, seu pai Gaspar Rodrigues
Nunes ou Joseph bem Israel, que vivenciara a perseguição inquisitorial, acabaria por se
estabelecer em La Rochelle e, logo em seguida, na Holanda, onde assumiria um nome
hebraico.
Como seu pai, os demais parentes, seguindo o costume dos marranos que
voltavam ao judaísmo, afirmavam a sua fé com os nomes bíblicos; e assim sua mãe passou
a ser Rachel68, sua irmã Esther (Hester) e seu irmão Ephraim. Em Amsterdam, ele
encontraria uma comunidade de fala luso-espanhola de alto nível e receberia uma educação
esmerada, tendo inicialmente freqüentado a escola local que lhe deu uma formação ampla
na literatura rabínica, encontrando-se entre seus primeiros mestres Isaac Uziel, rabi da
comunidade Neveh Shalom (Habitação da Paz), que acabaria deixando a função ao
brilhante discípulo, em 1622. Além de Isaac Uziel, do qual recebeu conhecimentos
talmúdicos e rabínicos, Menasseh teve a influência de homens como o controversialista
Saul Levi Morteira e Elias Montalto (Felipe Rodrigues de Castelo Branco), este último
famoso médico. Entre seus colegas incluiu-se uma plêiade de sábios que saíram da mesma
escola e se destacaram pela rica produção literária em todos os campos da cultura, desde os
estudos teológicos, a exegese bíblica, a literatura rabínica e homilética até a apologética ou
controversialista anticristã, sem excluir as ciências seculares como Matemática, a
Astronomia, a História e a Medicina numa Holanda que seria nesse tempo um verdadeiro
centro da ilustração européia. Dotado de um talento incomum para os estudos, ele
ingressaria aos 12 anos na Santa Irmandade de Talmud Tora e passaria a freqüentar as
Yeshivot ou Academias de estudo do Talmud, que eram naturalmente dirigidas para
estudantes mais velhos69. Com 17 anos, escreveu seu primeiro livro, Safah Berurah (Língua
Clara), sobre a gramática hebraica.
66
Recentemente foi editada uma bibliografia por J. H. Coppenhagen, Menasseh ben Israel, A Bibliography,
Misgav Yerushalaim (Institute for Research on the Sepharadi and Oriental Jewish Heritage, Jerusalém. 1990,
407 p. + 13 p. em hebraico).
67
Durante muito tempo o lugar de nascimento foi objeto de controvérsia. Meyer Kayserling, na Biblioteca
Espanhola-Portuguesa Judaica, Strasbourg, 1890, Ktav Pub. Soc., Nova York, 1917. p. 68, ainda refere ter
nascido em Lisboa, assim como José Amador de los Rios, Estudos Históricos Políticos y Literários sobre los
judios de la España, 2ª ed., Ed. Argentinas Solar, B. Aires, 1942, p. 512. Mas Maximiano Lemos, Zacuto
Lusitano, Porto, 1990, p. 360-61, trás o testemunho dos documentos inquisitoriais (apêndice de doc. 7 e 8) nos
quais se indica claramente a ilha da Madeira.
68
Ele casaria em 1623, também com Rachel, descendente da família Abravanel. Sobre os Abravanel, vide
Alberto Dines, O Baú de Abravanel, Companhia das Letras, SP, 1990, e J. H. Coppenhagen, op.cit., p. 38-46,
com as genealogias elaboradas po H. P. Salomon.
69
Antonio Ribeiro dos Santos, nas Memórias da Literatura Sagrada dos Judeus Portugueses no Século XVII,
p. 334-5, se refere a ele com as seguintes palavras: “Era dotado de hum grande engenho e penetração; tinha
31
hum juízo profundo, e apurado, e nenhum dos seus lhe levava vantagem no conhecimento das Línguas
Hebraica, Arabiga, Grega, Latina, Castelhana e Portugueza, pelas quaes havia adquirido hum longo cabedal
de erudição e doutrina. Com razão foi tido pelo Judeo mais douto, e sabio do seu seculo”.
70
Ver o importante estudo de KATCHEN, Aaron. L. Christian Hebraists and Dutch Rabbis (Seventeenth
Century Apologetics and the Study of Maimonides, Mishneh Torah). Harvard University Press, Cambridge-
Mass., 1984, pp. 16-7.
32
Menasseh ben Israel também faz parte e é fruto desse movimento extraordinário
que pode ser visto como uma Idade de Ouro holandesa, pois esteve envolvido e manteve
um relacionamento com algumas de suas figuras mais exponenciais, a começar pelos
hebraístas Gerbrandus Anslo (1612-1643), o teólogo Constantin l’Empereur (1591-1664),
do qual teria sido professor de hebraico, a hebraísta Rainha Christina Augusta (1626-1689),
Jacob Alting (1618-1679), e chanceleres como o da rainha Christina da Suécia, Johan
Adler-Salvius (1590-1652), seu culto bibliotecário Isaac Vossius (1618-1689), o Professor
Christoph Arnold (1627-1685), de Nüremberg, o nosso filósofo Gaspar van Baerle (Barléu)
(1584-1648), os místicos Jacob Boehme (1575-1624), Paul Felgenhauer (1593-c.1680) e
Abraham Frankenberg (1593-1652), o teólogo Simon Episcopius (Bisschop) (1583-1643),
Samuel Sorbiere (1615-1670), o jurista e pioneiro do direito internacional Hugo Grotius
(1583-1645), Gerhard Johann Vossius (1577-1649) o polêmico filósofo Claude Salmasius
(1588-1653) e muitos outros, além do renomado Rembrandt71.
71
Ele lembra ao leitor no Thezouro dos Dinim, terceira e última parte, (“Economica”), editada por ele mesmo
em 1647, que escreveu “mays de 300 Epístolas escritas a vários letrados e senhores, sobre as mui diversas e
difficultosas questoens”. Na segunda parte do Conciliador, “Amsterdam”, Nicolaus Ravensteyn, 1641, p. 8,
ele escreve: “Respondi tambien a mas de CL Epístolas de hombres doctos de toda Europa, sobre muchas
preclaras dudas y questiones...”
33
72
LEMOS, M., op. Cit. P. 361.
73
ROTH, Cecil, A Life of Menasseh ben Israel, The Jewish Pub. Soc. of América. Philadelphia, 2ª edição,
1945, p.52-3. Aproveito o ensejo para agradecer a Alberto Dines, meu amigo e colega, que me forneceu de
sua preciosa biblioteca o exemplar de Roth, bem como outros textos, sem os quais não teria levado a efeito
este modesto estudo.
74
Vossii Epistolae, I. 345. Apud ROTH, C., op. Cit., p.59-60; Gerardi Joannis, Vossii et Clarorum ad cum
Epistolae Collectore Paulo Colomesio, Londini, Typis R. R. et M. C. Impensis Adielis Mill, 1690, p. 344-345,
in Coppenhagen, J. H., op. Cit., p. 158.
75
Grotii Epistolae, p. 696, apud ROTH, C., op. Cit. p. 60; Hugonis Grotii Epistolae, Amstelodami, Ex
Typographia, P. et I Blaev, 1687, v. XI, p. 60, in Coppenhagen, J. H., op. Cit., p. 109.
34
vossas armas, do preço com que eu comprei o generoso humano, que são as minhas cinco
chagas; e do preço do preço com que os judeus compraram a mim, que são os trinta
dinheiros de Judas... E se Deus compôs assim as armas de Portugal, se Deus não achou
inconveniente nesta união; que muito é que o imaginasse assim um homem?” 82 A
preocupação de Vieira, “patriótica e econômica”, como diz Saraiva, tem também como
fundo uma convicção religiosa profético-messiânica, de influência bandarrista, e portanto
judaico-cristã, que leva a crer na unificação de destinos de Israel, isto é, dos judeus e
Portugal.83 É interessante notar que Menasseh ben Israel via na independência de Portugal
da Espanha, em 1640, e na conquista holandesa “cessando o antigo ódio”, uma
possibilidade de conciliação entre os dois países, em que “seguirá a desejada paz”, ambos
tendo em comum o sentimento de rejeição para com a Espanha. 84 Vieira, no entanto,
prognosticando o destino de Portugal, falando da guerra de 24 anos no Brasil, descreve
como sendo um milagre da Providência o feito da frota mercantil do Brasil diante do
Recife, rendendo 17 fortes reais. E em espaço de três dias se recuperou o que se tinha
ganho em 24 anos e perdido para Nova Holanda.85 Vieira também tivera, em 1647, um
papel decisivo na mobilização de fundos, graças aos empréstimos de dois cristãos-novos,
Duarte da Silva86 e Antônio Rodrigues Marques - mais tarde perseguidos pela Inquisição -
que permitiram enviar ajuda militar ao Brasil.87 Mas sua concepção sobre a importância dos
judeus ou cristãos-novos para Portugal, assim como seu bandarrismo88 poderiam ter raízes
mais profundas, desde quando “portugueses” e “judeus”, para o restante do continente
europeu, eram tão sinônimos quanto na Idade Média o eram as palavras “mercator” e
“judaeus”. O fato é que o jesuíta que tanto fizera para o reino seria processado pela
Inquisição, em 1663, devido a um escrito de 1659 intitulado Esperanças de Portugal89,
82
Sermões, pref. e ver. Por P. Gonçalo Alves, Lello & Irmãos, Porto, 1959, v. III, t. VIII. p. 79.
83
SARAIVA, A. J., op. cit., p. 32.
84
Conciliador, segunda parte, “Epístola Dedicatória”.
85
Sermão de São Roque, de 1644, ibid. p . 82. Vieira procura mostrar o quanto a Companhia Ocidental foi
vital para restaurar o domínio português no Brasil, com a participação do capital judeu ou cristão-novo, com
uma exemplificação a sua notável exegese que o leva a concluir que “a bondade das obras está nos fins, não
está nos intrumentos”, assim como “Deus era Deus quando sustentava a Elias por ministério de corvos,
como... por ministério de anjos”.
86
Ver BAIÃO, A. , Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, v. II, Seara Nova, Lisboa, 1953, p. 266-
386. Sobre a participação dele no comércio de Pernambuco, ver o importante estudo de Evaldo Cabral de
Mello, Olinda Restaurada (Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654), Ed. Forense-Universidade RJ,
EDUSP, SP. 1975, p. 103.
87
A reação positiva causada aos portugueses em 1645 pela tomada de Dunquerque, que se encontrava em
mãos espanholas, pelos franceses, não iludiu Vieira, que via no evento conseqüências desastrosas para
Portugal, pois os holandeses teriam desse modo liberado sua esquadra para incursionar no Norte do Brasil.
Além da narrativa de SOUTHEY, R., História do Brasil, ed. Obelisco, SP, 1965, v. III, ver também VIEIRA,
Cartas, v. III, p. 561-563, ed. J. L. d’Azevedo, Coimbra, 1925.
88
Sobre Bandarra e seu profetismo, vide LIPINER, E., O Sapateiro de Trancoso e o Alfaiate de Setúbal,
Imago, Rio de Janeiro, 1993; também Gonçalo Anes Bandarra e os Cristãos-Novos, Trancoso, 1966, onde se
encontra no anexo as trovas de Bandarra, editadas em Barcelona em 1809. Ver Azevedo, J. L., História de
Antônio Vieira, ed. A. M. Teixeira, Lisboa, 1918-20, 2 v., e do mesmo autor A Evolução do Sebastianismo, 2ª
ed., Lisboa, 1947.
89
O título completo é Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vida de El Rei
D. João IV escritas por Gonçalo Eanes Bandarra, ver sobre ele AZEVEDO, J. L., História de Antônio Vieira,
ed. A. M. Teixeira, Lisboa, 1918-20, 2 v., e do mesmo autor A Evolução do Sebastianismo, 2ª ed., Lisboa,
1947.
36
sofrendo outras acusações pelas quais seria condenado em 1667.90 Mas não deixa de ser
notável o cruzamento de idéias que viria criar a suposta influência de Menasseh sobre
Vieira, acusado de judaísmo, quando ao se examiná-lo, em 29 de novembro de 1666, em
Coimbra, na Casa do Oratório da Santa Inquisição, lhe foi perguntado em que livro leu, ou
que razão tinha para saber que os judeus admitiam ou reconheciam a redenção espiritual
por Cristo, se não a seguiam eficazmente. Ele responderá que “não leu em livro algum o
conteúdo na pergunta e nem na resposta acima dada; nem o ouviu de outras pessoas, mas de
um judeu público, circuncidado, chamado Menassés ben Israel, português natural de
Lisboa, segundo dizia, morador na cidade de Amsterdam, Holanda, havia 18 ou 19 anos, o
qual ali ensinava publicamente o judaísmo debaixo do nome de teologia”. 91 Vieira ainda
dirá que estava ali numa estalagem provando a Menasseh a redenção espiritual de Cristo. 92
A propósito desse fato, Antônio Baião traz, em apêndice final ao se estudo sobre o processo
de Vieira, a transcrição de um manuscrito do século XVIII em que um clérigo dizia ter
ouvido através de alguns religiosos da Companhia de Jesus, contemporâneos do Padre
Vieira, que este, na Holanda convencera um insigne rabino que o Messias esperado por eles
era Cristo Senhor Nosso, cujo primeiro advento ou vinda ao mundo em carne mortal
confessavam os cristãos, porém que o rabino por sua vez convencera o padre que o mesmo
Cristo, antes do último advento ao juízo universal, havia de vir outra vez ou em própria
pessoa, ou na de um seu substituto, para tomar posse do domínio e império universal
temporal que há no mundo, como verdadeiro filho de Deus, rei e senhor não só no
espiritual, mas também no temporal.93 Vemos, desse modo, que o contato de Vieira com
Menasseh, que supomos ser o “insigne rabino”, se transformou num debate teológico como
dos muitos havidos entre cristãos e judeus no passado e que gerou no decorrer do tempo um
gênero literário próprio. Porém há algo de inusitado nesse texto singelo que de imediato nos
chama atenção, ou seja, que ambos contendores acabaram por aceitar parte de suas mútuas
e supostas verdades religiosas.
dispersos também no Mundus Novus, o que vai ao encontro da sua crença de que a
redenção messiânica ocorrerá quando o povo de Israel estiver espalhado pelos quatro cantos
do mundo. Daí seu esforço em convencer a Inglaterra de Cromwell, onde seu livro tivera
um eco formidável entre religiosos e visionários, em obter uma resolução do Parlamento
britânico para readmitir oficialmente a volta do judeus, após a expulsão em 1290, no tempo
de Eduardo I. Na interpretação de Menasseh, bem como na de outros exegetas que o
antecederam, entre eles Abraham ibn Ezra e o notável Isaac Abravanel, o nome do reino,
em francês “Angle-Terre”, era traduzido m hebraico por “Ktze-haaretz”, isto é, o fim da
terra, o que preencheria a expectativa messiânica segundo a profecia bíblica, apoiada em
Deut. 28:64 e em Daniel 12:7. Nesse sentido, os esforços de Menasseh foram coadjuvados
por um marrano, David Abravanel Dormido, cujos filhos viveram no Brasil e que, com a
reconquista de 1654, perderam seus bens e voltaram à Holanda. Dormido que vivia na
Holanda, transferiu-se para a Inglaterra e dirigiu ao governo inglês duas petições, numa das
quais narrava sua desventura pessoal solicitando a ajuda diplomática para recuperar o que
havia perdido no Brasil, e na outra descrevendo a opressiva atuação da Inquisição que
afugentava os marranos ao norte da Europa e portanto poderia beneficiar o país caso os
admitissem na Inglaterra.95 Mas não temos que confundir esse messianismo de Menasseh
com o que irá ocorrer nos anos 60 com o movimento messiânico de Sabetai Tzvi, fruto de
uma tradição proveniente da mística luriana (de Isaac Luria, 1534-1572) e dos círculos de
seus seguidores posteriores associados às reações ao crucial momento histórico das
perseguições de Bogdan Chmielnitzki, em 1648, na região da Europa Oriental. Por outro
lado, devemos considerar também o papel do quiliasmo cristão representado por Peter
Serrarius (1580-1669) e por Paul Felgenhauer (além de outros), autor do Bonum Nuntius
Israeli, em 1655, os quais fizeram parte do círculo de amigos de Menasseh. Muitos sábios
de Amsterdan, como de outros lugares da Europa, seriam contaminados pelo fervor
messiânico da época. Mesmo Isaac Aboab da Fonseca não escaparia ao fascínio que Sabetai
Tzvi iria exercer sobre esses homens, crendo que ele era o Messias tão esperado.96
95
Ver ROTH, C., op. cit., p. 176-224 e 225-247, no qual me baseei.
96
Engana-se Saraiva, op. cit., p. 36, ao exagerar que o livro de Menasseh terá um papel importante na gênese
do movimento messiânico que desembocará na proclamação de Sabetai Tzvi como Messias, em Esmirna, em
1666. Para o conhecimento da sabataísmo indispensável se faz a leitura da obra de Scholem, G., Sabatai Tzvi,
o Messias Místico, Ed. Perspectiva, SP, 1995-1996, 3 v.
97
Sobre o messianismo medieval videl Falbel, N., Maimônides e o messianismo judaico medieval, in Anais
da IV Reunião da Soc. Bras. de Pesquisa Histórica, São Paulo, 1985, p. 153-158. Para uma visão geral do
messianismo judaico, vide as obras fundamentais de SILVER, A. H., A History of Messianic Speculation in
Israel, Beacon Press, Boston, 1959; SCHOLEM, G. The Messianic Idea in Judaism, N. Y., 1971,
SARACHEK, J., The Doctrine of the Messiah in Medieval Jewish Literature, 2ª ed., New York, 1968;
AESCOLY, A. Z., Hatnuot haMeshichiot be Israel (Os movimentos messiânicos em Israel), Jerusalém, 1956
(hebraico).
98
A literatura apócrifa e pseudo-epigráfica judaica, entre eles e o texto conhecido como Baruch ( Siriaco) e o
de Ezra IV, ambos escritos aproximadamente entre 70-80 e 90-100 de nossa era, isto é, após a destruição do
38
seja, o de Israel. Aqui confluem as idéias de Vieira inspiradas pelo profetismo bem anterior
de Bandarra e seu contemporâneo, o falso messias David Reubeni e seu arauto Schlomo
Molco (Diogo Pires), ambos vítimas da Inquisição, e as de Menasseh ben Israel. 99 No
Esperança de Israel, ele procurará provar que as dez tribos passaram ao continente pelo
estreito de Anian, ou pela China, e muitos são os testemunhos de que elas se encontram
espalhadas na imensidão do Novo Mundo. Ele surpreenderá o leitor ao mencionar que em
Pernambuco “ha poco mas de 40 años, oito tabajares” que se adentrarm naquele território,
após quatro meses de caminhada, encontraram, “una gente blanca, com barbas, de comercio
y policia...”.100 Podemos assim supor que a convicção messiânica nesse particular levantada
por Menasseh em seu livro era também compartilhada por membros da comunidade de
Pernambuco, independente da expectativa gerada pelos acontecimentos da época e pelo eco
que sua obra causara no mundo não-judeu. A idéia de que a população indígena americana
descendia das dez tribos perdidas de Israel não era nova, pois autores cristãos a adotaram,
porém a afirmação não da descendência, mas da existência das tribos originais com a língua
hebraica e a religião bíblica em várias partes do planeta 101 é que poderia causar impacto e
entusiasmo no livro Esperança de Israel. Nele encontramos todos os elementos centrais da
escatologia messiânica judaica tradicional como o embate final do Messias ben Yoseph, ou
Efraim, que lutará contra as forças do mal de Gog e Magog, que morrerá, e ao qual
sucederá o messias triunfante, o Messias ben David. No processo de Vieira, acusado de
judaísmo, fica patente o quanto essa visão messiânica em sua essência era diferente da
cristã102, o quanto o padre jesuíta era suspeito de estar sob influências das trovas de
Bandarra. Mas ao mesmo tempo enquanto na Holanda os dois representantes do Velho e do
Novo Testamento podiam, livremente, numa estalagem, intercambiar suas preocupações
espirituais e refletirem sobre a redenção da humanidade, ambos teriam que ter muita cautela
se quisessem faze-lo em Portugal, como bem provaria a experiência. Por mais paradoxal
que seja, o exílio, apesar da dolorosa nostalgia, compensava os seres humanos com a
prazerosa tolerância.103
Segundo Templo de Jerusalém, já se referem às 10 tribos. Ver KLAUSNER, J., Haraion hameshichi be Israel
(A idéia messiânica em Israel), ed. Massada, Tel-Aviv, 1950 (hebraico).
99
Para Vieira, o Quinto Império, apesar de universal, é o de Portugal, mas associado à idéia das duas nações,
a portuguesa e a judia, numa comunhão de destinos e sustentada na crença de que o messias anunciado por
Bandarra era D. João IV.
100
Esperança de Israel, p. 35-6. Além do mais usará de vasta literatura “geográfica” para apontar aqui e acolá
sinais e testemunhos da presença de Israel no continente americano e em outros. Sempre baseado em Daniel, a
exegese rabínica interpretará o primeiro império como sendo o da Babilônia, o segundo o Medo-Persia, o
terceiro o Grego e o quarto o de Roma. No Esperança de Israel, parágrafo XVII, p. 95-101, está implícita
essa exegese ao falar das imensas calamidades (profetizadas) sob as quatro monarquias, que inclui o tempo da
Inquisição e seus mártires, cujos nomes são lembrados.
101
Menasseh dedica boa parte de seu livro a demonstrar com testemunhos de viajantes que estiveram “nos
quatro cantos do mundo” e escreveram sobre a presença de tribos hebraicas nas paragens que visitaram.
102
No Processo de Vieira, ed. UNESP-FCEB, Anexos no. 46, p. 405-6, consta o seguinte: “A qualidade da
censura teológica provém da matéria da proposição, das provas e das refutações da mesma contra a fé e da
tendência para o erro contrário: portanto, a matéria desta proposição, as provas e a dedução são contra a fé
acerca da redenção espiritual de Jesus Cristo e tendem para o erro judaico contrário sobre a Redenção
temporal através do homem. Logo tornam àquele que alega, prova e deduz suspeito de judaísmo”. A lógica
aristotélica baseada no silogismo era uma arma eficiente nas mãos da Inquisição.
103
Gaspar Barléu (1584-1648), amigo de Menasseh, e autor do polêmico Epigrama dedicado a Menasseh ben
Israel em sua obra De Creatione Problemata (1635), em sua História dos Feitos Recentemente Praticados
39
Durante Oito Anos no Brasil, ed. Itatiaia, EDUSP, SO, 1974, p. 136, falando dos judeus no Brasil holandês,
se expressa desse modo: “A maioria do judeus foi da Holanda para o Brasil. Alguns de nacionalidade
portuguesa simularam a fé cristã sob o domínio do rei da Espanha. Agora, livres do rigor papista, associam-se
abertamente aos judeus, sob um dominador mais indulgente, prova evidente de que, pelo terror, se provoca a
hipocrisia e se criam adoradores da realeza, mas não de Deus”. Barléu escreveu a Cornélius van der Myle,
curador da Universidade de Leyden, uma carta de recomendação em 7 de setembro de 1633, em favor de
Menasseh, que desejava dedicar aos Estados da Holanda o seu Conciliador.
40
104
A verdade é que a frota da descoberta de Cabral traz a figura extraordinária do judeu converso Gaspar da
Gama, objeto da monografia de Elias Lipiner: Gaspar da Gama, um Converso na frota de Cabral, RJ, Nova
Fronteira, 1987
105
Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição, São Paulo, Pioneira, 1969; Os Cristãos-Novos: Povoamento e
Conquista do Solo Brasileiro: 1530-1680, São Paulo, Pioneira, 1976; Os Cristãos-Novos e o Comércio no
Atlântico Meridional, São Paulo, Pioneira, 1978.
106
Sobre ele ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional, São Paulo,
Pioneira/MEC, 178, pp. 8, 38, 98, 166; Os Magnatas do Tráfico Negreiro, Séc. XVI e XVII, São Paulo,
Pioneira/Edusp, 1981, pp. 6, 20, 129.
107
Primeira Visitação do Santo Ofício: Denunciações da Bahia, p. 314.
41
em São Vicente, casando-se com a filha do capitão-mor, Jerônimo Leitão, e ele aparece nas
Denunciações do Santo Ofício relativas à Primeira Visitação ao Brasil.108
Quando teriam vindo? Difícil precisar, pois quando, em 1532, Martim Afonso de Souza
entrou no porto em São Vicente, dois anos após o estabelecimento das donatárias, já
encontrara habitantes europeus, que no dizer de Paulo Prado seriam “remanescentes de
naufrágios ou das viagens de 1501 ou 1503, das de d. Nuno Manuel, da nau Brêtoa, e de
Christovam Jacques, ou de outras anônimas...”.109 A figura controvertida e desconhecida do
Bacharel de Cananéia,110 com seu clã familiar que incluía Gonçalo da Costa, Antonio
Rodrigues, Mestre Cosme, Duarte Peres (ou Pires) e também a não menos controvertida
personalidade de João Ramalho. Este último, sobre o qual derramou-se muita tinta devido
ao suposto “kaf” de sua assinatura, é mencionado na carta de Tomé de Souza dirigida ao rei
d. João III, de 1º de junho de 1553, como natural de Coimbra e possuidor de uma prole
abundante com muitos descendentes.111 O fato é antes da chegada de Martim Afonso
encontramos núcleos de populações que as fontes lembram serem como náufragos,
desertores ou desterrados, além de viverem amancebados com mulheres índias, 112 sem
informar exatamente quando chegaram.
Basílio de Magalhães, na sua Expansão Geográfica do Brasil
113
Colonial, falando da prole de João Ramalho e da geração mameluca que começou a
nascer antes da chegada de Martim Afonso de Souza, localizada em Santo André, frisa
desde logo ser produto do ajuntamento dos primitivos povoadores de São Vicente, Santos,
São Paulo, Itanhaém, Iguape e Cananéia. O insigne historiador observa, com ironia, que
houve aqueles ,e lembra a J.J. Machado de Oliveira que no se Quadro Histórico da
Província de São Paulo,114 pretendia distinguir do nome de paulistas o “nome odioso” dos
mamelucos tendo-os na conta de “mescla híbrida e impura”, apenas capazes de “feitos anti-
abomináveis à semelhança do que também havia de escrever sobre os produtos miscigêneos
da América o etnólogo germânico Hellwald”. Basílio de Magalhães arrebata dizendo que
“aquele ilustre escritor não queria que se confundissem os paulistas com os seus
descendentes de sangue caboclo como se houvesse algum desdouro em aquele povo
108
Denunciações da Bahia, 1591-1593, São Paulo, P. Prado, 1925, p. 355. V. Costa Pôrto, Nos Tempos do
Visitador, Recife, UFP, 1968, pp. 162-3; v. Elias Lipiner, Os Judaizantes nas Capitanias de Cima, SP,
Brasiliense, 1969, pp. 26-8.
109
Paulística, Rio de Janeiro, Ariel, Rio de Janeiro, 1934, pp. 44-5.
110
Interessante é a tentativa de Augusto de Lima Júnior, no artigo “Mineiros e Paulistas de Origem Judaica”
(in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol V, 1958, pp. 146-58), artigo recheado de
incorreções e preconceito inconsciente, resultado visível do desconhecimento do judaísmo. Diz que Gonçalo
Costa ou Duarte Peres era judeu, ficando isso patente pelo nome Cananéia que dera ao seu pouso na nova
terra. Ele também adota o critério- errôneo- do nome para identificação de quem é judeu ou descendente de
judeu.
111
Idem, ibidem, p. 47. Provavelmente estabeleceu-se em Piratininga em 1513, vindo de São Vicente, e
fundou a povoação de Santo André da Borda do Campo. Ver o Livro de Tombo do Mosteiro de São Bento da
Cidade de São Paulo, editado por d. Martinho Johnson (São Paulo, 1977, p. 102), com as referências
bibliográficas, entre elas: A. de E. Taunay, “João Ramalho e Santo André da Borda do Campo”, in Rev.do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XXIX, 1932 (Conferências Comemorativas do IV
Centenário da Fundação de São Vicente), pp. 41-91.
112
Luís, Washington, em Na Capitania de São Vicente (São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980), desenvolve esse
aspecto com excelente conjunto de provas e documentação histórica.
113
3.ª ed., Rio de Janeiro, Epasa, 1944, pp. 92-3.
114
2.ª ed., São Paulo, 1897, p. 87.
42
115
Idem, ibidem, p. 93. Em nota de rodapé, o historiador lembra Pierre François-Xavier de Charlevoix
(Histoire du Paraguay, Paris, 1761), que dizia: “(...) de ce mélange il sortit une génération perverse dons les
desordres en tout sens furent poussés si loin, que l’on donna à ces métis le nom de Mamelucs, à cause de leur
ressemblance avec ces anciens esclaves des Soudans d’Egypte”.
116
3.ª ed., São Paulo-Rio de Janeiro, Ed. Weiszflog Irmãos, 1920, pp. 229-37. O saudoso prof. Alfredo Ellis
Jr., em sua importante obra Os Primeiros Troncos Paulistas (CEN, col. Brasiliana, vol. 59, 1976), apesar da
impregnação antropologista e etnologista, típico da historiografia da época, demonstra com conhecimento
seguro dos fatos o papel histórico positivo do mameluco, resultado do cruzamento racial que marcou a
formação da população paulista.
117
Idem, ibidem, p. 95.
118
. Idem, ibidem, p. 96 (grifos nossos).
43
119
Idem, ibidem, pp. 96-7.
120
Ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), São
Paulo, Pioneira, 1976, p. 7: “Que características revelaria então? Julgamos nós, à luz da história paulista, que
seriam traços fisionômicos (sic!) maior resistência biológica, mais adaptabilidade ao meio, amor à liberdade,
extraordinária mobilidade e destemor, enfim”.
121
Doc. para a História do Açúcar, pp. 25 e 31, apud Costa Porto, op. cit., p. 154.
44
acentuava o quanto para os conversos era impossível deixar a sua antiga fé 122. Séculos de
ódio teológico, associado a outros fatores, que afirmavam a caeccitas judaeorum e a
obstinação do povo de cerviz dura, contribuíram acentuadamente para gerar esse
permanente clima de desconfiança em relação aos cristãos-novos, mesmo que fossem fiéis
à nova religião. Por vezes a saída do reino lhes era vedada, já que eles constituíam-se num
fator importante da economia e da sociedade portuguesa, e isso tornar-se-á mais patente nos
inícios do século XVII, quando terão que comprar sua licença para sair livremente de
Portugal, ou quando terão de obter outras mercês com o perdão geral que lhes outorgou
Clemente VIII, em 1604123.
Portanto, não é de surpreender que na Segunda Visitação Inquisitorial ao
Brasil, do licenciado Marcos Teixeira, em 1618, se haja disseminado o pavor, não somente
entre os cristãos-novos na Bahia e adjacências, mas também entre os da região sulina, que
receberia um reforço dos foragidos do norte. Claro é que devemos distinguir na Capitania
de São Vicente as duas topográfias, isto é, da região litorânea e a do planalto, esta tendo
como barreira natural a Serra de Paranapiacaba, que devido a sua densa vegetação na época
dificultava o acesso aos lugarejos ou vilas que se encontravam em Piratininga. Mas o
intercâmbio entre os povoados do litoral e as terras do planalto era inevitável, constituindo-
se a Vila de São Paulo um lugar ideal para refúgio daqueles ameaçados continuamente
pelos membros do Santo Ofício. A fama dos cristãos-novos paulistas como implacáveis
predadores de índios, nesse tempo, estava estabelecida, e suas incursões provocavam
reações de parte dos clérigos e religiosos dos territórios vizinhos da região do Prata, que por
vezes solicitavam a instalação da Inquisição no Brasil, também devido a sua presença e ao
êxodo provocado pela visitação124. Obviamente, à época seus interesses econômicos eram
bem mais amplos e voltavam-se também para a região do Peru e das minas de Prata de
Potosi, cujos mandatários tinham a mesma preocupação em relação aos portugueses que
por lá andavam.
Boleslao Lewin, em seu El Judio en la Epoca Colonial, cita a “Ley de Indias”,
de 1625 (Libro IX, Titulo XXVI), que se refere a isso: “Porque desde el Brasil entram por
tierra en la Província del Paraguay, e pasan a las del Perú muchos Estrangeros
Flamencos, Franceses y de otras Naciones (...)”. Do mesmo modo chama a atenção a Real
Cédula de 17 de outubro de 1602, que ordena que se faça sair os portugueses e estrangeiros
que teriam entrado na região do Prata sem licença:
122
. Ver N. Falbel, “Um argumento polêmico em Vicente da Costa Matos”, in Em Nome da Fé (Estudos in
memoriam de Elias Lipiner), São Paulo, Perspectiva, 1999, pp. 91-113. Por vezes, propor-se-á sua expulsão,
assim como ocorreu entre 1621 e 1623, e outras ocasiões.
123
J.G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio..., op. cit., p. 12; J. Lúcio Azevedo, História dos Cristãos-
Novos, 2.ª ed., Lisboa, Liv. Clássica Editora, 1975, p. 162.
124
Lafuente Machaim, Los portugueses en Buenos Aires en el Siglo XVII, B. Aires, pp. 103-4.
45
nuestra santa fee Catholica Judaiçantes y que en los puertos de las indias ay mucha gente
desta Calidad (...)”125
125
B. Lewin, El Judio en la Epoca Colonial, B. Aires, Ed. Colégio de Estudos Superiores, 1939, pp. 51-2.
126
Ele não figura no Catálogo de frei Pedro Monteiro. Ver N. Falbel, O Catálogo dos Inquisidores de Frei
Pedro Monteiro e sua Complementação por um Autor Desconhecido, São Paulo, CEJ da USP, 1980.
127
ANTT, Inquisição de Lisboa, Contra os Cristãos-Novos, ms. n.º 24, apud J. G. Salvador, Cristãos-Novos,
Jesuítas e Inquisição, op. cit., pp. 108-9.
46
encontrava com entraves de toda natureza128, assim como o faria o padre Antonio Vieira.
Este último, profundo conhecedor da mentalidade portuguesa, tinha visão da importância
do ativismo econômico dos cristãos-novos para a manutenção das conquistas ibéricas, e ao
intentar demonstrar isso incorreu no pecado de defesa dos “heréticos judeus” e suspeita de
judaísmo, levando-o ainda a ser processado pela Inquisição129. Mas é preciso ainda lembrar
que o êxodo de judeus e cristãos-novos de Portugal não se restringiu apenas a homens de
negócio, pois abrangeu uma vasta gama de profissionais e artesãos que desempenhavam um
papel econômico importante na sociedade ibérica, ainda que a historiografia que trata do
assunto tenha por hábito focalizar os que exerciam uma atividade mercantil. Basta
examinar as profissões dos que foram processados pela Inquisição para se inteirar do
quanto elas abrangiam praticamente todos os ramos da atividade humana, das mais
humildes, entre elas a de curtidor, tecelão, alfaiate, sapateiro, ferreiro, coureiro, tratante e
outras, até as denominadas liberais, tais como professor universitário, médico ou físico,
advogado, além de clérigos e militares. A sociedade portuguesa, na metrópole e na colônia,
contava com a presença dos descendentes dos judeus conversos desde que foram obrigados
a aceitar o batismo, a partir de 1497. Era inevitável a penetração desse elemento
numericamente significativo em todos os aspectos da vida social ibérica, e do mesmo modo
que ocorreu na Espanha muito antes, devidos às conversões em massa no ano de 1391,
ocorreria posteriormente em Portugal, adicionado a um processo de mesclagem devido aos
casamentos entre famílias de cristãos-velhos e cristãos-novos, mesmo havendo de um lado
certo repúdio e de outro uma tendência endogâmica a fim de preservar sua identidade
religiosa. Porém, o repúdio se manifesta fundamentalmente a partir das restrições impostas
pelos estatutos de pureza de sangue, que limitavam a ascensão social daqueles que
possuíam “sangue infecto”. O famoso médico cristão-novo Ribeiro Sanches, em um
opúsculo escrito em 1735 intitulado “Origem da Denominação de Cristão-Velho e Cristão-
Novo em Portugal”, assim como d. Luís da Cunha no conhecido Testamento Político
dirigido a d. José, é de opinião que a instituição inquisitorial promove entre os perseguidos
cristãos-novos o judaísmo mais do que o refreia ou elimina130. Ele dirá que “foi mais
notória a diferença entre cristão-novo e cristão-velho depois que se estabeleceu o costume
de tirarem inquirições, de todos aqueles que queriam entrar no Estado Eclesiástico, ou
cargos honrosos da República”, sendo originado tal coisa do decreto da Sé de Toledo, feito
no ano de 1547131. Mas no distante Brasil a questão assumia proporções menos graves, e os
que aqui aportavam estavam dispostos desde o início a serem mais tolerantes e menos
preconceituosos, pois a realidade os impelia a seguir o impulso da vida e da sobrevivência,
128
Duarte Gomes Solis, Alegación em Favor de la Compañia de la India Oriental, ed. e pref. por Moisés
Bensabat Amzalak, Lisboa, 1955. Ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio... (op. cit., pp. 16-7),
que chama a atenção ao fato de que Solis se referia ao Brasil, e não à Índia.
129
Ver Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição (ed. transc., glossário e notas de Adma Muhana, São
Paulo, ed. UNESP-FCEB, (1995), e o seminal estudo de Alberto Dines, Vínculos do Fogo, I, (São Paulo,
Companhia das Letras, 1992), que se refere a Vieira com uma penetração original em seus escritos e
pensamentos; A. Baião, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, I, Lisboa, 1936, pp. 205-316.
130
Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal, 2.ª ed, pref. de Raul Rego, Porto, ed. Paisagem, 1973.
131
Idem, ibidem, p. 36.
47
132
C. R. Boxer, em O Império Colonial Português, Lisboa, Ed. 70, 1969, pp. 279-303, dedica atenção à
questão da “Pureza de Sangue” em toda a extensão do Império português.
133
J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico, 3.ª ed., Lisboa, Livr. Clássica Editora, 1978, cap. “O
Império do Açúcar”, pp. 215-87. O caso de João Nunes, estudado por Sonia Aparecida Siqueira (Separata dos
Anais do V Simpósio Nacional dos Prof. Univ. de História, Campinas, 1971), é ilustrativo por se tratar de um
magnata do açúcar denunciado à Inquisição; ver E. de O. França, Engenhos, Colonização e Cristãos-Novos na
Bahia Colonial (Separata dos Anais do IV Simpósio Nacional dos Prof. Univ. de História, São Paulo, 1969).
Porém, para o estudo da presença dos cristãos-novos em Pernambuco, e sob o domínio holandês, e o papel
que tiveram na economia açucareira, são indispensáveis os trabalhos de José Antonio Gonsalves de Mello, a
começar do clássico Tempo dos Flamengos e a terminar com a obra Gente da Nação, Recife, Massangana,
1989.
134
Como bem demonstrou J. P. Calógeras, Formação Histórica do Brasil (Rio de Janeiro, Pimenta de Mello,
1930, p. 25), “S. Vicente e São Paulo, a antiga Piratininga, durante centenas de anos foram os postos
avançados donde irradiaram as expedições militares à procura da fronteira sulina (...) não somente em relação
aos hispanos, mas também em relação aos invasores franceses e holandeses”.
135
São Paulo, Itatiaia-USP, 1980.
48
136
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, Denunciações da Bahia (1591-1593), São Paulo,
ed. P. Prado, 1925, p.314.
137
Prado, P., Paulística, Rio de Janeiro, ed. Ariel, 1934, p. 45.
49
desta vila de São Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e os fiz cercar e
juntar para se poderem aproveitar todas as povoações deste campo e se chama a vila de
Santo André, porque onde a sitiei estava uma ermida deste apóstolo e fiz dela a João
Ramalho natural do termos de Coimbra que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá
veio. Tem tantos filhos e netos, bisnetos e descendentes dele o não ouso dizer a V.A., não
tem cã na cabeça nem no rosto e anda nove léguas a pé antes de jantar...” A verdade é que
pouco se sabe sobre ele, nem quando chegou ao Brasil e tão pouco seus antecedentes
ibéricos. Mesmo porque quando chegou o donatário Martim Afonso de Souza, em 1532, a
São Vicente, assim nos diz Washington Luís, o lugar “já era um porto conhecido, com lugar
marcado nos rudimentares mapas da época, uma espécie de pequena feitoria portuguesa, de
iniciativa particular, visitada por esquadras para o tráfico de escravos, onde se forneciam
vitualhas necessárias à navegação de longo curso, se construíam bergatins e se contratavam
línguas da terra.” 138 O próprio Martim Afonso que viera do sul e se deteve em São Vicente
elevano-a a vila e dando os primeiros passos administrativos da pequena povoação trouxera
consigo cristãos-novos para se estabelecerem na região ajuntando-se aos demais que já se
encontravam ali, tais como o bacharel, mestre Cosme, fernandes Melchior, Henrique
Montes e Francisco Chaves, conforme nos informa o historiador José Gonçalves
Salvador.139 Da aldeia de Santo André da Borda do Campo, núcleo onde viveu João
Ramalho, nasceria a cidade de São Paulo, pois em 1560 Mém de Sá transferiria seus
moradores para Piratininga, “lugar mais forte e mais defensável , e mais seguro assim dos
contrários como dos nossos índios...”, dessa forma se expressavam os moradores Jorge
Moreira e Joannes Alves em carta de 1561, dirigida à Regente D. Catarina. Os seus
descendentes seriam os mamelucos caçadores de índios, “peças” do comércio escravo e
caçadores de ouro e pedras preciosas. Esses cristãos-novos deram uma contribuição
decisiva para odesenvolvimento da vila de Piratininga e os seus nomes se encontram entre
as famílias que constituíram os seus núcleos dirigentes desde o século XVI, ou seja, dos
primórdios da fundação da vila. Com a descoberta das minas de ouro e prata do Perú, São
Paulo passou a ser uma via de acesso até aquele território que podia ser alcançado em uma
Segunda etapa através do Paraguai. Além do mais a industria açucareira em franco
desenvolvimento prometia riquezas a todos e estes fatores foram suficientes para atraírem
cristãos-novos que se aventuravam nessas regiões em busca de subsistência mas também , e
talvez acima de tudo, a liberdade que não usufruiam em outro lugar, contribuindo desse
modo à povoação do território.
Eram eles sertanistas, bandeirantes que desbravavam os sertões em busca de
minerais preciosos e que, devido às suas incursões em direção ao sul asseguravam aquelas
fronteiras de qualquer domínio espanhol. Somente assim podemos entender a relativa
tolerância das autoridades da época diante da destruição brutal das reduções jesuíticas
praticada por esses aventureiros impiedosos que apresavam os índios das missões. E não é
de estranhar que em vários documentos da época, escritos por jesuítas espanhóis, os
portugueses de São Paulo são vistos e identificados como hereges e judeus capazes de
cometerem as maiores barbaridades contra o gentio catequizado pelos inacianos.
Já em 1613, as atas da Câmara de São Paulo, se referem abertamente a
“cristãos-novos e homens da nação hebréia” mostrando, provavelmente, que havia não
138
Na Capitania de São vicente, São Paulo, ed. Itatiaia-Universidade de São Paulo, 1980, p. 65.
139
Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição, São Paulo, ed. Livraria Pioneira-Universidade de São Paulo, 1969,
p.187.
50
como com as do norte tornaram-se mais fáceis como no caso de Minas gerais e Bahia, que
se fazia também através do rio São Francisco.
O “rush” mineralógico atraiu o elemento cristão-novo e não é de se estranhar
que na luta entre paulistas e “emboabas” se encontrava Manuel Nunes Viana, um cristão-
novo. Além do mais é bem possível que o recrudescimento da atividade inquisitorail no Rio
de Janeiro, a partir de 1705, que levou a uma perseguição tenaz aos judaizantes naquela
região tenha uma relação direta com a prosperidade da região vizinha.
Desse modo, encontramos entre os estrangeiros que começavam a visitar o país
e nele se estabelecer também os que professavam a fé judaica. Podemos observar entre eles
judeus ingleses, alemães, e na segunda metade do século uma acentuada imigração vinda da
Alsacia-Lorena, que acabou se organizando como uma comunidade própria. Não somente
na cidade de São Paulo eles de encontravam presentes, mas também se instalaram em
cidades do interior paulista tais como Campinas, Jundiaí, Ribeirão Preto, Rio Claro, Franca
e outras.8 Sua presença individual pode ser observada nessas cidades no decorrer de todo o
século XIX, e em lugares como Campinas chegaram a formar uma colônia significativa do
ponto de vista numérico e de sua atuação econômico-social. A sua ocupação é a mais
diversificada, e podemos dizer que na São Paulo pouco desenvolvida das primeiras décadas
do século passado – que Auguste de Saint-Hilaire descreve como possuindo uma população
limitada, com cerca de 20.000 habitantes, mas com edifícios públicos bem conservados,
com ruas largas e praças públicas9 – tais imigrantes judeus vindos de vários países da
Europa introduziriam os hábitos de vida do Velho Continente, trazendo um aporte
civilizatório à província que recém saía de seu acanhamento colonial. E Saint-Hilaire nos
informa que “encontra-se na cidade uma profusão de lojas bem sortidas e bem instaladas,
onde se vê uma variedade tão grande de artigos quanto nas do Rio de Janeiro”, e,
profetizando, ainda dirá mais adiante: “o Brasil ainda deve continuar totalmente agrícola,
não tendo ainda alcançado a fase em que seria vantajoso instalarem-se nele grandes
indústrias. Entretanto, quando chegar essa época, é por São Paulo que se deve começar”.
Portanto, a cidade começava a atrair os imigrantes europeus que pouco a pouco introduziam
um comércio diversificado, que se assentava fundamentalmente sobre os produtos
importados da manufatura ou indústria européias.
Os judeus franceses trouxeram à cidade de São Paulo o bom gosto no vestir e
também o consumo do supérfluo, estabelecendo na capital paulista casas de jóias e afins.
Mas empreenderam a instalação de companhias de seguros, ateliês de fotografias, lojas de
calçados, fazendas e couros, etc. Outros eram importadores de alto vulto e acabaram
ascendendo na sociedade paulista pela sua riqueza e iniciativas sociais. É o caso do judeu
alemão Victor Nothmann, irmão de Maximilian Nothmann, que vivia no Rio de Janeiro,
bem como o de Frederico Glete, lembrados hoje pelos nomes dados a duas ruas da cidades.
Sobre os judeus alemães Glete e Nothmann, assim como seus confrades católicos ou
protestantes, nos relata Paulo Cursino de Moura no seu livro de evocações sobre São Paulo
de outrora:11 “Não foi ele (Glete) o primeiro germânico que teve a inspiração de contribuir
para o engrandecimento de São Paulo. Quando Glete se estabeleceu em São Paulo, a
colônia alemã aqui já era antiga e prestante. Mas, modorramente, ia acompanhando o andar
dos tempos e da civilização, como podia. De 1870 para cá, coincidindo com a vitória da
guerra Prussiana e com os primeiros arrancos do nosso progresso no governo provincial,
desse verdadeiro realizador – João Teodoro Xavier, de quem não nos cansamos de lembrar
–, o empreendimento alemão em terras paulistanas tomou vulto extraordinário. Em tudo e
por tudo. Em todos os ramos de atividade. Na administração e nas empresas particulares.
52
Pode-se dizer que os alemães foram desbravadores da rotina comercial em São Paulo. Até o
café deve sua assombrosa exportação de hoje a Theodor Wille, o extraordinário
comerciante alemão que em 1845 teve a glória de exportar diretamente para a Europa a
primeira saca de café da então província de São Paulo” (...) “As tentativas para o
abastecimento de água e para a rede de esgotos, obra de alemães. Arruamentos.
Calçamentos. Jardins Públicos. Em tudo, a experiência, o arrojo, a ambição do germânico
no São Paulo antigo.”
Da aldeia de Santo André da Borda do Campo, núcleo onde viveu João
Ramalho, nasceria a cidade de São Paulo, pois em 1560 Mem de Sá transferiria seus
moradores para Piratininga, “lugar mais forte e mais defensável, e mais seguro assim dos
contrários como dos nossos índios...”, assim diziam os moradores Jorge Moreira e Joannes
Alves em carta de 1561 dirigida à Regente d. Catarina. Os seus descendentes seriam os
mamelucos caçadores de índios, “peças” do comércio escravo e caçadores de ouro e pedras
preciosas.
Das filhas de João Ramalho várias casaram-se com cristãos-novos, entre eles
Lopo Dias, Pascoal Fernandes e Bartolomeu Camacho, e com as suas netas casaram-se
Manuel Fernandes e Cristóvão Dinis. Esses cristãos-novos deram uma contribuição
decisiva para o desenvolvimento da vila de Piratininga e os seus nomes se encontram entre
as famílias que constituíram seus núcleos dirigentes desde o século XVI, ou seja, dos
primórdios da fundação da vila. Com a descoberta das minas de ouro e prata do Peru, São
Paulo passou a ser uma via de acesso até aquele território, que podia ser alcançado em
segunda etapa através do Paraguai. Além do mais, a indústria açucareira em franco
desenvolvimento prometia riquezas a todos, e esses fatores foram suficientes para atrair
cristãos-novos que se aventuravam nessas regiões em busca de subsistência, mas também, e
talvez acima de tudo, da liberdade que não possuíam em outro lugar, contribuindo assim
para a povoação do território.
Eram eles sertanistas, bandeirantes que desbravavam os sertões em busca de
minerais preciosos, e que devido à penetração em direção ao Sul, asseguravam aquelas
fronteiras de qualquer domínio espanhol. Somente desse modo podemos entender a relativa
tolerância das autoridades da época perante as destruições selvagens das reduções jesuíticas
por parte desses aventureiros impiedosos que faziam o apresamento dos índios das missões.
E não é de se estranhar que em vários documentos da época, escritos por clérigos espanhóis
da ordem jesuítica, os portugueses de São Paulo sejam vistos e identificados como hereges
judeus capazes de cometerem as maiores barbaridades contra o gentio catequizado pelos
inacianos.
Já em 1613, as atas da Câmara de São Paulo se referem abertamente a
“cristãos-novos e homens da nação hebréia”, mostrando que havia não somente judeus
batizados ou cristãos-novos, mas também aqueles que não eram, ou seja, “homens da nação
hebréia”. O fato é que, em 1625, o elemento cristão-novo no Sul era tanto que um frade,
Diogo do Espírito Santo, resolveu escrever à Inquisição pedindo sua interferência direta, o
que levaria ao envio de um visitante daquela instituição, Pires da Veiga, a chegar ao Rio de
Janeiro em 1627.
A medicina, que foi uma ocupação judaica tradicional desde os tempos
medievais na península ibérica, assim como em outras regiões do continente europeu, teve
sua continuidade em terras brasileiras, e nas capitanias do Sul vamos encontrar cristãos-
novos exercendo a profissão de médicos. Alguns nomes que registram sua presença em São
Paulo são os do dr. José Serrão, genro de Fernão Dias Paes, dr. Antonio Vieira Bocarro,
53
Paulo Rodrigues Brandão e talvez outros que não conhecemos. Apesar de tudo, o Rio de
Janeiro, nessas primeiras décadas do século XVII, era mais favorecido por esses
profissionais, ao contrário de São Paulo, que ainda nesse tempo se ressentia pela falta de
médicos. Mas aqui e acolá, já na segunda metade daquele século, aparecem os esculápios
dr. João de Mongelos Garcez, Francisco Rodrigues Brandão, filho de Paulo Rodrigues
Brandão, dr. João Rodrigues de Abreu, Domingos Pereira da Gama e outros.
Também encontramos cristãos-novos, e em bom número, entre os que exerciam
a advocacia, assim como entre os funcionários da administração pública colonial, apesar de
nem sempre ser fácil sua identificação. O historiador José Gonçalves Salvador, em sua obra
já citada, afirma que eram cristãos-novos os advogados Antônio Camacho, o licenciado
Salvago, Geraldo de Medina, Belchior de Araujo e Luiz Fernandes Francês, todos eles
atuantes em São Paulo durante o século XVII.
A influência judaica em São Paulo ou a presença de cristãos-novos judaizantes
no planalto de Piratininga se faz sentir durante o século seguinte, isto é, no século XVIII,
pois muitos dos criptojudeus e seus descendentes aparecem nos processos da Inquisição
portuguesa nesse tempo, ainda que os mais antigos fossem os residentes no Rio de Janeiro e
adjacências.
A verdade é que, com o passar dos anos, os judeus ou os cristãos-novos
judaizantes de São Paulo foram perdendo o pouco da lembrança que possuíam a respeito do
judaísmo, uma vez que em certos momentos a fiscalização inquisitorial era extremamente
rigorosa no Brasil, e não poucos pagaram com a vida a temeridade de manter certos
costumes judaicos. As famílias se mesclavam com elementos cristãos-velhos. Aliás, desde
os inícios da colonização essa mescla se deu, e o sangue hebreu diluiu-se inteiramente na
composição populacional do planalto paulista ao ponto de podermos afirmar com segurança
que nos troncos paulistas tradicionais sempre podemos encontrar um vínculo com o
elemento cristão-novo. Nesse sentido, os trabalhos genealógicos de um Pedro Taques 6 ou
de M. E. de Azevedo Marques7 e outros historiadores permitem-nos acompanhar as
ramificações ocorridas com essas primeiras famílias e sua descendência posterior, ou seja,
até o tempo em que os autores mencionados escreveram suas obras. Mas seus rastros como
judeus ou judaizantes já se haviam apagado inteiramente por essa época.
A grande mudança quanto à política imigratória relativa a judeus no Brasil em
geral, e por conseqüência em São Paulo, dar-se-á com o estabelecimento da família
imperial portuguesa em nosso território, a partir de 1808. D. João VI proclamará, em 28 de
janeiro daquele ano, a Abertura dos Portos às Nações Amigas, e com isso abrir-se-ão as
portas para uma nova imigração, que após a assinatura do tratado comercial com a
Inglaterra, em 1810, favorecia e incentivava o ingresso do elemento estrangeiro ao Brasil.
Além do mais, o artigo 12 do tratado comercial assegurava aos súditos britânicos a
liberdade de religião em território nacional, e portanto ninguém poderia molestá-los sob
esse aspecto.
Na história paulista, São Vicente, que já aparecia em mapas desde 1502,
tornou-se um ponto de tráfico de escravos indígenas e lá, nessa época, se agrupavam “doze
ou quinze europeus, portugueses e espanhóis que constituíram um centro inicial de
povoamento, que se estendia das praias da ilha de Santo Amaro até Cananéia”. Eram o
célebre bacharel, ainda não-identificado, seus genros, Gonçalo da Costa, Antonio
Rodrigues, João Ramalho, Mestre Cosme, Duarte Peres ou Pires, e outros náufragos sem
nome.
54
Entre esses, a figura até hoje enigmática de João Ramalho sobressai como um
personagem relacionado com os índios tupiniquins e tapuias. Sobre ele escreveu Tomé de
Souza ao rei d. João III em junho de 1553: “Ordenei outra vila, no começo do campo de
São Vicente, de moradores que estavam espalhados por ali, e os fiz cercar e juntar para se
poderem aproveitar todas as povoações deste campo, que se chama vila de Santo André,
porque onde a sitiei estava uma ermida deste apóstolo e fiz dela a João Ramalho natural do
termo de Coimbra que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá veio. Tem tantos
filhos e netos, bisnetos e descendentes dele que não ouso de dizer a V.A., não tem cã na
cabeça nem no rosto e anda nove léguas a pé antes de jantar...
Tudo indica que este patriarca era um cristão-novo, cuja ascendência judaica
pode ser comprovada pelo “kaf” em sua assinatura e que mereceu a atenção de tantos
historiadores interessados em provar sua origem. A verdade é que não se sabe quando ele
chegou ao Brasil e nem de seus antecedentes ibéricos. Mesmo porque, quando chegou o
donatário Martim Afonso de Souza, em 1532, a São Vicente, nos diz Washington Luís em
sua obra, o lugar “já era um porto conhecido, com lugar marcado nos rudimentares mapas
da época, uma espécie de pequena feitoria portuguesa, de iniciativa particular, visitada por
esquadras para o tráfico de escravos, onde se forneciam vitualhas necessárias à navegação
de longo curso, se construíam bergatins e se contratavam línguas da terra”. O próprio
Martim Afonso de Souza, que viera do Sul e se deteve em São Vicente, elevando-a a vila e
dando os primeiros passos administrativos da pequena povoação, trouxera consigo judeus
ou cristãos-novos para se estabelecerem na região, ajuntando-se aos demais que já se
encontravam ali, tais como o bacharel mestre Cosme Gernandes Melchior, Henrique
Montes e Francisco Chaves, conforme nos informa o historiador José Gonçalves Salvador.
Portanto, o devassamento do “hinterland”, obra de pioneiros, de gente
indômita, valente e corajosa, sem receio de distâncias e sem temores, conforme a expressão
de José Gonçalves Salvador, contou com a participação ativa dos cristãos-novos sulinos. A
fama das riquezas minerais, o mito da Sabaraboçu, a serra dourada existentes nas capitanias
do sul atraíram e motivaram as expedições dos sertanistas e bandeirantes, que ao par da
busca de ouro e pedras preciosas, também se ocupavam com o preamento dos indígenas.
Mas na medida que os descobrimentos auríferos foram se estendendo, foi se dando em
número cada vez maior a introdução do elemento escravo africano. E como já havíamos
dito, as conseqüências desse surto mineralógico se fizeram logo sentir. Houve um aumento
populacional considerável, com a implícita modificação na vida social, econômica e
administrativa dos povoados sulinos. O crescimento populacional se mostrava pela criação
de novas vilas e povoados e o aperfeiçoamento dos métodos administrativos. Novos
caminhos foram abertos, e a ligação entre as capitanias sulinas, como destas com as do
Norte tornaram-se mais fáceis, como no caso de Minas Gerais e Bahia, que também se fazia
via rio São Francisco.
O próprio “rush” mineralógico atraiu o elemento cristão-novo, e não é de se
estranhar que na luta entre paulistas e “emboabas” se encontrasse a figura de líder do
cristão-novo Manuel Nunes Viana. Além do mais, há uma suspeita de que o
recrudescimento da atividade da Inquisição no Rio de Janeiro, a partir de 1705, e que
acabou por perseguir com tenacidade os cristãos-novos nessa região, tinha muito a ver com
essa prosperidade econômico-social. No fundo, eles eram um excelente prato à ganância
dos perseguidores, pois eram muitos e se destacavam como senhores de engenhos,
mercadores, funcionários públicos, além de se ocuparem com a exploração das minas
recém-descobertas.
55
140
V. Salvador, J.G., Os cristãos-novos, povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680), São Paulo,
ed. Pioneira-Universidade de São Paulo, 1976, p.226.
56
141
Pedro Taques de Almeida Paes leme, Nobiliarquia Paulistana Histórica e Geográfica, São Paulo, ed.
Itatiaia-Universidade de São Paulo, 1980, 3vol.
142
Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos Históricos, Geográficos, Biográficos, Estatísticos e
Noticiosos da Província de São Paulo, são Paulo, ed. Itatiaia-Universidade de são Paulo, 1980, 2vol.
57
Mesquita preencheu essa função, oficiando as rezas nas festividades judaicas. Ele, bem
como seus descendentes e parentes próximos falecidos, encontram-se enterrados no
Cemitério dos Protestantes, em São Paulo.
Por outro lado, a participação desses imigrantes no desenvolvimento industrial
de São Paulo ainda no século passado pode ser lembrada pela figura singular do Visconde
de Sapucaí, Luiz Matheus Maylasky, que chegou ao Brasil em 1860, dirigindo-se a
Sorocaba, onde passou a residir. Sua origem- judaica- ainda não está totalmente
esclarecida, mas seu papel no desenvolvimento e criação da Companhia de Sorocaba e a
estrada de ferro Sapucaí com o intuito de escoar a produção algodoeira até o porto de
Santos lhe valeram o título que passou a ostentar. Foi homem de grandes iniciativas
econômicas, e na volta do século mostraria uma São Paulo com novas ambições
empresariais. Ainda como exemplo de iniciativas econômicas significativas para a
economia paulista brasileira, que foram dadas no século passado, e o espírito pioneiro que
as animaram, devemos lembrar a pessoa de Maurício Klabin, que aqui chegara em 1887 e
fundaria um novo setor industrial, o de papel e celulose.
Para finalizar, devemos dizer que, a partir do século passado, a imigração
judaica ao Brasil aumentaria significativamente e o estudo de sua participação na economia
e sociedade brasileiras em geral, e na paulista em particular, permanece como um
verdadeiro desafio aos cientistas pela sua extensão e importância.
58
143
V. Margulies, M. – Iudaica Brasiliensis, Ed. Documentário, Rio de Janeiro, 1974. A Iudaica Brasiliensis
teve continuidade graças a dedicação de Hugo Schlesinger que durante muitos anos compilou os títulos
relativos à judeus e judaismo publicados em nosso país sendo a última edição datada de 1992. Antecedeu a
essa bibliografia a de Basseches, B., Bibliografia das Fontes de História dos Judeus no Brasil, Rio de Janeiro,
1961. Basseches começara o seu trabalho ainda em 1957, quando publicou em 19 de setembro daquele ano na
revista Aonde Vamos? o seu Achegas para uma bibliografia da História dos Judeus no Brasil.
144
Primeiro a se preocupar com a história mais recente ou moderna dos judeus no Brasil foi o historiador
Jacob Nachbin, que permaneceu até agora desconhecido devido ao fato de ter publicado seus trabalhos em
ídiche. Em seguida o trabalho de Loewenstamm, K., Vultos Judaicos no Brasil, Vol. II, Ed. Monte Scopus,
Rio de Janeiro, 1956, o de Lipiner, E., A Nova Imigração Judaica no Brasil, in Breve História dos Judeus no
Brasil, Ed. Biblos, Rio de Janeiro, 1962, e ultimamente o de Egon e Frieda Wolff, Judeus no Brasil Imperial,
Centro de Estudos Judaicos da USP, São Paulo, 1975, além de outros. Raizman, I., que havia publicado uma
História dos Israelitas no Brasil, São Paulo, 1937 , publicada antes em ídiche em 1935, dedicado ao período
colonial, extremamente pobre e pouco fundamentado, daria uma contribuição importante ao publicar o seu A
fertl yohrhundert ídische presse in Brazil (Um quarto de século de imprensa judaica no Brasil) ed. Muzeum
le-Omanut ha-Dfus, Safed, 1968. Também o seu livro Iidische sheferishkeit in portugalischen loschen
(Criatividade judaica em língua portuguesa), Safed, 1975, apresentaria um material interessante sobre a
imigração contemporânea referente a sua criatividade literária.
145
YWO (Idischer Wissenschaftlecher Institut) foi criado em Berlim em 1925, instalando-se em Vilna, na
Lituânia, onde desenvolveu uma atividade científica ímpar no ambito da cultura ídiche. Com a Segunda
Guerra Mundial, o instituto transferiu-se para os Estados Unidos, estando sediada em Nova York.
146
Trata-se do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, criado em dezembro de 1976.
59
O problema torna-se mais complexo quando constatamos que grande parte das
fontes necessárias ao historiador, além de raras e dispersas, encontram-se escritas em ídiche
e, às vezes, até mesmo em hebraico, quando não em outras línguas pouco estudadas entre
nós e que exigem um aprendizado especial por parte do historiador.
Desde já, devemos observar que a história recente ou moderna dos judeus no
Brasil nada tem em comum com o período colonial, pois os cristãos-novos, assim como os
judeus sob o domínio holandês com a restauração do poder português, a partir de 1654 147,
não deixaram comunidades organizadas que as novas ondas imigratórias, a partir de 1808,
pudessem receber e lhes dar continuidade. O fenômeno de criptojudaísmo continuou
existindo, sem dúvida, após o século XVII e se manifestou no século XVIII em nosso
território, como podemos constatar pelos processos inquisitoriais portugueses. Mas os
cristãos-novos, ou criptojudeus, não legaram absolutamente nada aos judeus que
começaram a vir a partir do século XIX, mesmo porque não teriam nenhuma possibilidade
histórica de fazê-lo. Daí encontrarmos um largo hiato histórico entre os dois períodos e
nenhuma ponte de contato entre eles, sob esse aspecto. Destarte, a hipótese de certos
historiadores, da reconversão de cristãos-novos por ocasião da Independência do domínio
português, ainda está por ser demonstrada e não encontra nenhum apoio em qualquer
documento da época ou posteriormente, limitando-se o fato à imaginação de seus
autores.148
Importante chamarmos a atenção que para o estudo da imigração
contemporânea e suas etapas de desenvolvimento, passa a ser muito útil ao pesquisador
brasileiro consultar o Arquivo do YWO em Nova York, o qual reúne fontes sobre o
judaísmo brasileiro, assim como o Arquivo Sionista (Archion-Ha-Tzioni) e o Arquivo para
a História do Povo Judeu (Archion le-Toldot Am Israel), ambos em Jerusalém.
Entretanto, se os arquivos mencionados acima tratam especificamente da
documentação judaica, nada impede ao pesquisador encontrar fontes muito úteis e
importantes em arquivos gerais, dependendo do problema que se quer pesquisar, e em
especial, quando se trata de questões que se referem à esfera das relações dos judeus com a
sociedade mais ampla ou com instituições não-judaicas. Assim, por exemplo, pode-se
encontrar muito mais fontes a respeito do anti-semitismo nos arquivos gerais do que
propriamente nos arquivos judaicos. É suficiente que lembremos o simples fato de que o
número de periódicos em Língua Portuguesa publicados desde o século passado e que
fazem referência aos judeus é incomparavelmente maior do que o de jornais judaicos
publicados no Brasil (em língua ídiche ou em português) a partir de 1915, ano em que foi
publicado o primeiro periódico judaico em Porto Alegre.149 A verdade é que esses jornais e
periódicos, até agora, não foram devidamente utilizados, ainda que constituam um
manancial inesgotável a ser explorado para o estudo da história dos judeus no Brasil. Os
jornais em ídiche da década de 20 e 30, assim como os de língua portuguesa, são raros ,
147
Sobre o período em questão vide Wiznitzer, A. – Os Judeus no Brasil Colonial, Liv. e Ed. Pioneira &
Universidade de São Paulo, 1966.
148
Entre eles, Cecil Roth, que na Standard Jewish Encyclopaedia, pp. 352-3, escreve que, “em 1822, com a
Proclamação da Independência do Brasil, alguns marranos se reconverteram para o judaísmo...”; não sabemos
em que se fundamenta para fazer tal afirmação.
149
Denominado “Di Menscheit” (A Humanidade).
60
pois ninguém se preocupou em colecioná-los. Vários fatores contribuíram para isso. Entre
eles, podemos mencionar a falta de preparo da comunidade judaico-brasileira,relativamente
nova e formada, em sua maioria, de imigrantes recém-chegados ao país, preocupados
essencialmente com seu sustento e sobrevivência centrada inicialmente na criação de
instituições de auxílio aos recém-chegados.150 Não havia ainda suficiente longitude
histórica para valorizar a documentação ligada à vida comunitária, o que explica a perda
irreparável de material histórico de incalculável importância.151
Um relato ilustrativo de causas que levaram à destruição de documentação foi
o que ouvimos de certo morador de Recife. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial,
quando se pensava que as forças alemãs, vitoriosas no Norte da África, poderiam chegar ao
Norte do Brasil com muita facilidade, fez com que tal ameaça levasse a comunidade
judaica local a destruir todos os seus arquivos institucionais. Algo semelhante ocorreu
durante o governo de Getúlio Vargas, cuja posição xenófoba nesse período acarretou a
proibição da publicação de jornais em ídiche e criou certos receios quanto à manutenção de
documentação em língua estrangeira, o que levou, em parte, à destruição da mesma.152
Mas, outros fatores juntam-se ao que lembramos tais como a incúria de
secretários e diretores de instituições que jogaram fora material por ser apenas “papel
velho” e “ocupar espaço nos arquivos”, ou ainda calamidades inesperadas, tais como um
incêndio ou a interdição de prédios antigos que ao desabarem- como ocorreu no rio de
Janeiro- acabam soterrando arquivos institucionais comunitários, sem mencionar as perdas
resultantes de mudanças de sedes ou escritórios de entidades de um prédio para outro,
ocasião em que “não se perde tempo em transferir coisas sem valor”.
Resta saber ainda que, hoje em dia, uma nova ameaça à documentação em
língua ídiche advém do fato de que a nova geração nascida no Brasil não fala e nem lê a
língua de seus pais e avós e, portanto, em conseqüência de falecimentos, a tendência natural
é de se desfazer de coleções e bibliotecas particulares, que nem sempre são doadas a
instituições comunitárias para sua preservação. O mesmo pode ocorrer com os acervos de
certas entidades que encerraram suas atividades153 e não sabem o que fazer com seus
arquivos, pois o desenvolvimento sócio-econômico da comunidade fez com que
determinadas instituições se tornassem anacrônicas, acabando por desaparecer.154
150
Tais instituições foram criadas em São Paulo e no Rio de Janeiro e, em pequenas proporções, existiram em
outros núcleos comunitários judaicos no Brasil. Em São Paulo, em 1915, surgiu a Sociedade das Damas
Israelitas (OFIDAS) e, em 1916, a Ezra. No Rio de Janeiro, encontramos equivalentes aos mesmos propósitos
nas sociedades Relieff ou Hilfs Farein, que tiveram um papel primordial na ajuda aos imigrantes.
Infelizmente, até agora não se escreveu a história dessas instituições.
151
No Rio de Janeiro ocorreu o desabamento de um prédio onde se encontravam as sedes de várias entidades
da comunidade judia local, soterrando seus arquivos, que se perderam para sempre.
152
Em 18 de junho de 1939, o Ministério da Justiça baixou a portaria de n.º 2.277, exigindo que os jornais e
publicações em língua estrangeira publicassem sua matéria com a respectiva tradução em português, sendo
que, em 1941, ficou proibida a publicação de jornais em qualquer língua estrangeira.
153
É o caso dos “Landsmanschaften”, que congregavam os judeus oriundos de uma mesma cidade ou país.
Assim, tínhamos organizações de judeus da Bessarábia, da Polônia e outros lugares.
154
Como exemplo ilustrativo, podemos tomar a Cooperativa do Bom Retiro, em São Paulo, que foi criada em
1928.
61
155
A identificação torna-se possível pelos símbolos adotados para denotar a profissão do falecido, os quais
vêm esculpidos na própria lápide.
156
Os sefaraditas usam comumente a lápide horizontal e os asquenazitas a lápide vertical. O símbolo do
“cohen” (judeu da antiga linhagem sacerdotal) é o das mãos explanadas postas lado a lado, e o do levita
(descendente da tribo de Levi) é o jarro d’água.
157
As lápides dos judeus da imigração alsaciana têm inscrições em Francês, além do Hebraico.
158
As lápides dos judeus emigrados dos países da Europa Central costumam ter inscrições em língua alemã.
159
. O ladino é usado nas inscrições dos judeus sefaraditas, tais como os oriundos da África do Norte, como se
pode verificar nas lápides dos cemitérios judeus de Belém do Pará ou de Manaus, no Amazonas, onde essa
corrente imigratória se concentrou a partir do século XIX.
160
A guisa de exemplo temos as cidades de Franca e Campinas, no Estado de São Paulo, que podiam
construir e manter um cemitério judeu devido ao número de membros da comunidade judia local, além de
serem comunidades antigas.
63
judaico, que de uma forma ou outra deixaram suas marcas na memória coletiva das
comunidades que visitaram, seja através de conferências ou outro modo de participação na
vida social e cultural local. A propósito, e em relação à história cultural, boa parte dos seus
rastros poderá ser seguida através das circulares, volantes e cartazes que divulgavam a
atividade de grupos teatrais e atores, conferencistas e músicos vindos de todas as partes do
mundo. Hoje, essa documentação é rara, pois poucos se preocuparam em colecioná-la;
contudo, ainda podemos encontrá-lo sob a forma de anúncios no jornais israelitas,
acompanhados freqüentemente de fotos dos atores, conferencistas ou músicos.
A partir da década de 20 surgiu uma literatura em língua ídiche que tinha como
tema central o encontro do imigrante com a terra brasileira e os conflitos individuais
decorrentes do processo de aculturação a uma nova sociedade. A bela natureza tropical, o
sol intenso e abrasador, a cidade grande, as cores e a multiplicidade de tipos humanos
foram motivo de deslumbramento do imigrante europeu, e ele expressou, em poesia e prosa
seus sentimentos e impressões na língua que lhe era familiar. Esse novo mundo que lhe
parecia encantado em comparação com seu lugar de origem o fazia esquecer as lembranças
amargas relativas à sua condição judaica daqueles países nos quais o anti-semitismo era
presente no seu cotidiano. Mas, a mesma literatura revela profunda solidão e o
desarraigamento do recém-chegado, assim como os esforços sobre-humanos para superar a
nostalgia motivada pela saudade do lar e dos familiares, pela quebra dos padrões
tradicionais e a incorporação de novos, a árdua luta pela sobrevivência em terra estranha, e
assim por diante.165 Assim sendo, apesar de se tratar de pura literatura ou ficção, ela não
deixa de ser uma fonte histórica que ajuda o pesquisador a desenhar contornos mais
precisos em relação a certos aspectos da vida do imigrante. Tal literatura não foi reunida e
nem sequer foi seriamente estudada pelo ângulo que apresentamos acima.166
A existência do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro fez com que indivíduos e
instituições começassem a fazer doações; amiúde, em decorrência da iniciativa da equipe
responsável, foram localizados acervos importantes para a história dos judeus no Brasil,
entre os quais encontramos apenas a título de ilustração, os seguintes:
a) coleção de documentos relativos a Jewish Colonization Association
(J.C.A.), que constituiu o arquivo dessa instituição no Brasil, tendo sido
doado ao Arquivo Histórico Judaico Brasileiro por resolução oficial da
central da organização em Londres. Os primeiros documentos datam de
1904.
b) coleção da Cooperativa Israelita do Bom Retiro, que reúne livros dos
sócios desde 1928 até sua extinção; livros de protocolos, fichas de
sócios, livros de contabilidade, etc.
165
O primeiro autor que publicou um livro sobre essa temática foi Aldolfo Kichinovski, cuja obra “Naie
Heimen” (Novos Lares) saiu a lume em 1932, no Rio de Janeiro.
166
A primeira coletânea, ainda que incompleta, foi reunida e publicada em 1956 com o título
de “Unzer Beitrag” (Nossa contribuição), no Rio de Janeiro. Em 1973, foi publicada na Argentina uma nova
coletânea sob o título “Brasilianisch” (Brasileiro), como parte da grande coleção de literatura ídiche no
mundo e na América Latina que vinha sendo editada pelo Ateneu Literário do Instituto Científico Judaico, em
Buenos Aires, sob a responsabilidade do falecido Samuel Rollansky. Mais recentemente Jacó Guinsburg, em
sua obra “Aventuras de uma língua errante”, ed. Perspectiva, São Paulo, 1996, publicou uma listagem da
produção literária em língua ídiche no Brasil cedida por mim ao seu autor. A minha intenção na coleta desse
material foi a de reunir tudo o que se produziu no âmbito da literatura do imigrante de língua ídiche em nosso
país.
65
167
Dr. Alfredo Hirschberg foi um destacado intelectual e ativista dos mais importantes da comunidade
israelita de São Paulo. Durante muitos anos foi editor da Crônica Israelita e participou na criação do Centro de
Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo.
168
Meyer Kucinski foi considerado um dos escritores mais representativos da língua ídiche no Brasil, e uma
de suas obras, “Zishe Breitbart” foi premiada nos Estados Unidos. Dirigiu, durante muitos anos, a seção
brasileira da YWO em São Paulo e reuniu ao redor de si um grupo de idichistas que contribuíram para a
difusão da cultura judaica européia em nosso solo.
66
169
Azevedo, J. Lúcio, “História dos Cristãos Novos Portugueses”, Lisboa, 1975, p. 346.
170
Veja-se sobre ele em Kayserling, M., Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, New York, 1971, pp. 98-
100.
171
No “Espírito das Leis”.
172
No “Cândido”.
67
POLÍTICA DEMOLIDORA
Contudo, não queremos crer que o duro e inflexível estadista tenha se guiado
por essas razões para dar início a sua política demolidora em relação ao Santo Ofício.
Razões outras o moveram a tal atitude, e, acima de tudo, as de ordem utilitária. É sabido
que sua posição perante a Inquisição era, em parte, de reconhecimento pelos serviços
prestados à religião, pois ele mesmo foi familiar do Santo Ofício, além de católico imbuído
de profunda religiosidade. Em edital da Mesa Sensória, de 12 de dezembro de 1769,
portanto, no período de sua administração, lêem-se palavras de elogio ao papel
desempenhado pela instituição inquisitorial: “Não havendo, entre todos os estabelecimentos
humanos, estabelecimento algum que tanto possa contribuir, e tenha efetivamente
contribuído, para defender e conservar ilibado, em toda a sua pureza, o sagrado depósito da
Fé e da Moral, que Cristo Nosso Redentor confiou a sua Igreja (...) É notório que os
apóstatas, e os demais réus de crimes capitais, em nenhum país são tratados com igual
benignidade depois de convencidos (...)”.173
O estudo da administração pombalina permite confirmar o quanto o marquês
soube usar a Inquisição em benefício de sua política e a do Estado. O caso mais ilustrativo é
o da luta que encetou contra a Companhia de Jesus, até que pôde levá-la à extinção em todo
o reino português, e que, na verdade, decorria do fato de os filhos de Ignácio de Loyola
constituírem um obstáculo a sua ação de estadista. Senão, vejamos o que ocorreu.
Em 1750, foi assinado o Tratado de Madrid entre Portugal e Espanha, no qual
se estabelecia a divisão política dos territórios descobertos e colonizados por ambos os
reinos. Pombal passou, de imediato, à execução de uma política para cumprir as cláusulas
do tratado e assegurar os interesses portugueses decorrentes do mesmo, e que, no julgar do
estadista, eram favorecidos pelo acordo. Nesse sentido, ele havia designado duas comissões
portuguesas para a demarcação das fronteiras, ficando a do Sul a cargo de Gomes Freire de
Andrade, futuro marquês de Bobadela, e a do Norte entregue a seu irmão, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, que tinha sido nomeado capitão-general do Grão-Pará. As instruções
recebidas por Mendonça Furtado incluíam dispositivos tendentes a assegurar a liberdade
absoluta dos índios e limitação do poder temporal dos missionários.
Essa orientação, de todo modo, deveria permanecer secreta, incluindo, também,
idêntica política em relação ao governo do Maranhão, que na época já se encontrava
subordinado ao governador-geral do Grão-Pará. Formou-se, com esse fim, a Companhia de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão, legalizada por decreto de 6 de junho de 1755, sendo
que a política pombalina em relação ao Norte do Brasil se concentrou em três aspectos
principais: 1.º) Atuação da Companhia; 2.º) Secularização da Administração dos Índios;
3.º) Liberdade dos Silvícolas.1746
Uma vez estabelecida a Companhia de Comércio, foi lhe atribuído o monopólio
da navegação, do comércio exterior e do tráfico de escravos no Pará e no Maranhão, e, em
seguida, tomaram-se as providências para se fazer um levantamento das atividades
173
apud Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 347.
174
Simonsen, Roberto C., “História Econômica do Brasil (1500-1820)”, São Paulo, 1967, pp. 333-341.
68
O CASO MALAGRIDA
175
Cheke, Marcus, “O Ditador de Portugal – Marquês de Pombal”, Lisboa, 1946, p. 166.
69
modificações profundas, a ponto de se poder dizer que, sob esse aspecto, ele iniciou nova
etapa da vida da nação portuguesa.176
O processo de Malagrida, que se deu após seu aprisionamento, juntamente com
os demais jesuítas, e que se fundamentou juridicamente numa correspondência apreendida e
bastante comprometedora incluindo-se um escrito de exaltação mística, elaborado pelo
“santo” durante o período em que ficou confinado e cujo título era “Vida de Santa Ana”, foi
levado adiante, nada mais nada menos do que pelo Santo Ofício, ou seja, por uma
instituição da própria Igreja, que deveria condená-lo não somente como criminoso, mas
como herege. Por outro lado, como em todos os cargos estatais importantes, também nos
cargos eclesiásticos o marquês tratara de impor seus parentes e achegados, para assegurar
seu domínio absoluto, e, portanto, à testa da Inquisição encontrava-se seu irmão, Paulo de
Carvalho, assegurando, desse modo, a condenação do jesuíta Malagrida. Essa política anti-
jesuítica não cessou e, em 29 de março de 1765, como nos refere Baião: “Houve um
momento em que, de parceria com o sábio d. Francisco Manuel do Cenáculo, fizeram (o
marquês de Pombal e o citado) uma denúncia ao Santo Ofício”. O caso parece ter sido
pouco importante, pois, segundo nosso autor, não teve seguimento, “bem ao contrário do
papel tristemente feroz que havia assumido, em 1760, quando, rancorosamente, denunciou
o célebre jesuíta Malagrida, onde, porém, foi figura primordial e nos aparece com aquela
energia indomável, tanto de seu feitio”.177
A ironia histórica está no fato de que a Inquisição era manipulada pelo ministro
do rei de Portugal para condenar um jesuíta considerado herético, quando, na verdade, era
filho fidelíssimo da Igreja. Por outro lado, é sabido que a política pombalina em relação aos
jesuítas culminaria numa desagregação das missões religiosas e de seu trabalho secular
exercido com os indígenas no Brasil, assim como em outros lugares, pois ficariam expostos
às ambições dos colonizadores e sem a devida proteção social que a organização dos
inacianos assegurava, em seu trabalho de catequese. E o próprio papa Clemente XIV, pelo
breve de 1773, aboliria temporariamente a Ordem.
REFORMAS LIBERAIS
176
A coletânea sob o título “Documentos da Reforma Pombalina”, publicada por M. Lopes d’Almeida, vol. I
(1772-1782), Coimbra, 1937, revela em detalhes a política de reforma educacional inspirada por Pombal.
177
Baião, A., “Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa”, vol. 3, Várias, Lisboa, 1938, pp. 7-39.
70
178
Cheke, op. cit., p. 229.
179
Latino Coelho, J. M. “O Marquês de Pombal”, Lisboa, 1905, p. 244.
180
Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 350.
71
decreto, sua miscigenação, no prazo de quatro meses, de modo que os filhos núbeis das
mesmas fossem obrigados a contrair casamento com aquelas que, até então, eram
excluídas.181
Na carta de lei de 25 de maio de 1773 ele historia a existente distinção entre
cristãos-velhos e cristãos-novos, dizendo que tal diferenciação foi introduzida em Portugal
pelos jesuítas – seu eterno “bode expiatório” – e com a finalidade de excluir do trono
português o pior do Crato, que diziam ser descendentes de judeus. Lembra bem o legislador
que os judeus foram protegidos e receberam favores dos reis de Portugal, desde os séculos
medievais, mencionando os nomes de judeus que privaram como conselheiros, tesoureiros
e médicos das Cortes de d. Fernando e d. João I. Lembra, também, que d. Manuel, que tanto
perseguiu os judeus e os forçou a se batizarem, em março de 1507 ordenou que os recém-
convertidos à fé católica fossem considerados, em tudo, cristãos-velhos, sem que sofressem
qualquer discriminação. Da mesma forma, o rei d. João III, que introduzira a Inquisição em
Portugal, também confirmou, pela lei de 16 de dezembro de 1524, as prescrições de seu
antecessor. E, após apologizar os judeus que continuam até hoje em sua fé, Pombal ordenou
que as leis de d. Manuel e d. João III continuassem vigorando, enquanto que as posteriores
fossem consideradas anuladas. Penas graves seriam impostas àqueles ousassem apodar as
pessoas de origem judaica com qualquer designação depreciativa ou renovar a ofensiva
distinção. Aos clérigos que não obedecessem à nova regulamentação, seria imposto o
castigo do extermínio ou exílio fora do reino; aos nobres, a perda dos ofícios e bens da
coroa e das ordens militares; e aos peões contraventores seriam impingidas as penas do
açoite e do degredo perpétuo para Angola.
RETOMADA DE DIREITOS
Já no ano seguinte, em 1774, Pombal cuidava de dar maior amplitude à lei que
abolia a diferenciação entre cristãos-velhos e os cristãos-novos, eliminando-se a infâmia
com que eram atingidos os que apostatavam, pois, pela nova lei, uma vez confessado o
delito, eles podiam se reconciliar no Santo Ofício e se tornavam capazes de exercer toda e
qualquer dignidade ou ofício, sem falar de seus descendentes. O novo Regimento da
Inquisição, aprovado pelo alvará de 1º de setembro de 1774, foi redigido e englobava as
novas disposições, sendo decretado em nome do Inquisidor Geral e Regedor das Justiças,
Cardeal da Cunha, arcebispo de Évora, sucessor do irmão do marquês de Pombal.
Novamente, na introdução do Regimento se acentua o papel maléfico e deturpador que os
jesuítas tiveram em relação ao Tribunal do Santo Ofício, “pois parece-nos impossível que
os Regimentos e disposições fundamentais, que tinham dado as normas para o Governo do
Santo Ofício, se conservassem na sua primitiva pureza, sem que deixassem de se
181
Pelo que nos informa o historiador Latino Coelho, op. cit., p. 247, “tinham os fidalgos, na igreja paroquial
de Santa Engracia, uma confraria do Santíssimo em que, segundo o compromisso e o costume, somente podia
ser admitido cristão-velho, sem nunca se entender o contrário... Assim era que poucas famílias da mais
soberba e poderosa fidalguia, a dos marqueses de Angeja, de Valença, dos condes de Vilar Maior do
Monteiro-mor do reino e outras mais, formavam entre si como uma cerrada congregação, fora da qual as
estirpes mais novas na aparência andavam apodadas com o nome injurioso de cristãos-novos”.
72
No mesmo Regimento, ainda se faz sentir que a Inquisição, que fora criada pela
autoridade real ou por instância de D. João III e com bula de Paulo III, em 1536 – e
portanto, diz o texto, como um Tribunal da Coroa –, acabou com o tempo devido “ao
esforço da malignidade jesuítica, que tudo transfigurou e confundiu, fazendo crer, pelo
progresso de suas intrigas e maquinações, que aquele mesmo Tribunal, ereto e regimentado
pelos dois senhores reis, dom João III e dom Sebastião, era puramente eclesiástico”. 183
Novamente, o marquês fazia questão de mostrar a subordinação do poder espiritual ao
poder temporal, e assim definia claramente a instituição inquisitorial como instrumento do
Estado e a seu serviço, como, de fato, acabaria sendo doravante, a fim de evitar o “abuso
que se sustentou até o felicíssimo Governo del rei meu senhor (José II), que, pela nomeação
que em nós fez para a dignidade de Inquisidor Geral, reuniu e reivindicou aquela regalia
usurpada a sua real Coroa, havia quase dois séculos, na conformidade da dita carta, a nós
dirigida pelo mesmo senhor, em 15 de novembro de 1771.”184 Terminava, assim, a
autonomia daquela instituição que fora todo-poderosa no reino de Portugal, que inspirava
verdadeiro terror somente ao se pronunciar seu nome.
O historiador Lúcio de Azevedo traz, como exemplo ilustrativo dos novos
tempos, o fato de que um Antônio Soares de Mendonça, negociante que abjurou em forma
no auto público de 16 de outubro de 1746, apesar disso, foi agraciado em 8 de maio de
1775, ou seja, após a publicação do novo Regimento da Inquisição, com o hábito de
Cristo.185 Tal acontecimento dificilmente teria ocorrido em tempos anteriores.
Por outro lado, ainda que reconheçamos, desde o início, que o Marquês de
Pombal, acima de tudo, guiava-se pela Raison d’État para nortear sua política em relação à
Inquisição, não deixa de ser válido o questionamento sobre a verdadeira atitude pessoal, e
aqui frisamos o termo “pessoal”, frente aos judeus e cristãos-novos. Sabemos que não é
uma pergunta fácil de ser respondida, pois, na Inglaterra, onde chegara em missão
diplomática, em 1738 escrevia, em despacho a Marco Antonio de Azevedo Coutinho, a
quem sucedia, os seguintes termos: “posso dizer V. Exa. que é raro entre nós (em Portugal)
o homem da nação (hebréia) que não esteja com os olhos no caminho para estas partes
(Inglaterra e países de livre culto), e que somente se dilatam nos nossos domínios até
fazerem os grossos cabedais que nelas acumulam, se antes de os juntarem os não faz sair
desse reino o medo da fogueira. Tudo quanto ganham, ou antes extorquem, com artifícios
que eles têm por justos sendo detestáveis, vem nos paquetes, para ficar na Inglaterra e
passar à Holanda, assegurar-se nas mãos de seus depositários, amigos e parentes. Como
consideram a pátria onde gozam a liberdade, e o desterro onde têm o castigo ou a sujeição,
para estas terras, em que esperam estabelecer-se, procuram todas as vantagens e todos os
interesses, maquinando contra os países, seus adversos, toda a ruína, e não perdoando a
182
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado com o real beneplácito e régio
auxílio pelo eminentíssimo e reverendíssimo senhor Cardeal de Cunha, dos Conselhos do Estado e Gabinete
de Sua Majestade e Inquisidor Geral nestes Reinos e em todos os seus Domínios, Lisboa, 1774, p. 1. Todas as
citações do texto são feitas na ortografia atual.
183
ibid, p.3.
184
ibid, p. 5.
185
Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 352.
73
meio algum de os dissipar e empobrecer, por injusto e ilícito que se considere. (...) Daqui
tem resultado a dificuldade de evitar o contrabando e os domínios de Espanha. São imensos
os cabedais, que, naquele negócio, têm ganhado os judeus destas partes. (...) Este foi um
dos meus grandes receios, desde que suspeitei o projeto de irem ao rio da Prata: saber eu o
muito que eles desejavam estabelecer-se nas vizinhanças do Brasil, onde asseguram que
hão de ter, em cada cristão-novo, um destro furão, desencovar a furto os interesses, que não
podem hoje prosseguir”.186
Verdade é que Pombal, nesse período, estava preocupado com a ameaça ao
comércio português nas possessões do império colonial lusitano, e, principalmente, pelo
contrabando que, a seu ver, era fator que poderia levá-lo à ruína e onde os judeus tinham
também certa participação.
186
2 de janeiro de 1741. Col. Pomb, Cód. 656, apud Lúcio de Azevedo, J., “O Marquês de Pombal e a Sua
Época”, Rio de Janeiro-Lisboa, 1922, pp. 22-23.
74
187
Klein, Alberto, Cinco siglos de historia: una crónica de la vida judía en la Argentina, C.J.A., Buenos Aires,
1976, p. 12.
75
Podolia, e após muitas aventuras e desventuras, conseguiram chegar àquele país para se
dedicar ao trabalho agrícola.188
O passo mais significativo para incrementar a colonização de judeus na
Argentina foi a criação da Jewish Colonization Association, em 24 de agosto de 1891, em
Londres, como uma sociedade anônima de caráter filantrópico e com um capital inicial de
dois milhões de libras esterlinas, doados em quase sua totalidade pelo Barão Hirsch. 189 Este
último, comovido pela situação em que se encontravam os judeus em vários países
europeus e asiáticos, assumiu boa parte da iniciativa da criação de uma entidade que
pudesse encaminhar os seus irmãos de fé ao trabalho da terra. De outro lado, em fins de
1889, o Dr. Guilherme Loewenthal, submeteu ao Barão Hirsch um projeto de colonização
judaica na Argentina, onde via a possibilidade de organizar anualmente uma imigração de
5.000 pessoas provenientes da Rússia, considerando ainda que essa colonização não deveria
possuir apenas caráter filantrópico, mas permitir que os colonos lutassem pela sua
independência econômica e chegassem a ela pelo árduo trabalho do campo.
Entre os artigos da J.C.A. consta que ela visa “facilitar a imigração dos
israelitas dos países da Europa e Ásia, onde são reprimidos por leis restritivas e estão
privados de direitos políticos, para outras regiões do mundo onde possam gozar desses e
demais direitos inerentes ao homem. Estabelecer para tanto colônias agrícolas em diversos
territórios da América do Norte e do Sul, bem como em outros lugares. Promover e
sustentar estabelecimentos de educação, adestramento e fomento que permitam melhorar as
condições materiais e morais dos judeus pobres e necessitados”.
O governo russo da época autorizou o funcionamento de um Comitê Central da
J.C.A. em São Petersburgo, bem como filiais nas províncias. De outro lado, o governo
argentino, em 1900, reconheceu a J.C.A. como uma “Associação civil com fins
filantrópicos”. A fim de se evitar uma saída desordenada de grandes massas e sem o devido
preparo para encaminhá-las a trabalhos produtivos, fez o Barão Hirsch publicar e difundir
uma circular pedindo que os interessados em emigrar se inscrevessem nos devidos comitês
estabelecidos para tanto, advertindo ao mesmo tempo que não poderia arcar com a
responsabilidade sobre aqueles que se aventurassem a imigrar por conta própria.
O projeto de colonização do dr. Guilherme Loewenthal foi bem aceito pelo
Barão Hirsch, que na ocasião resolvera enviar uma comissão de inquérito sob a chefia
daquele. A comissão, ao chegar em fins de 1890 a Moises Ville, lá encontrou 68 famílias,
que ocupavam 4.350 hectares de terra. O Dr. Loewenthal organizou no lugar uma
“Sociedade Cooperativa de Agricultores em Moises Ville”, a primeira entidade que usava o
nome “cooperativa”, o que caracterizaria a colonização agrária judaica na Argentina. Os
membros da sociedade constituída eram locais e ao mesmo tempo receberam o primeiro
apoio financeiro, de 15.000 francos, do Barão Hirsch. Em um relatório escrito pela
comissão sobre a situação da colônia consta que “os judeus russos são inteligentes e com
seu entendimento eles aprendem em pouco tempo e procuram ser auto-suficientes o mais
rápido possível”...190
188
Gabis, A. e Senderev, M. Moises Ville, Buenos Aires, 1964.
189
Baron Maurício de Hirsch, Museo Judío de Buenos Aires, B.A., 1974.
190
Sobre os inícios da colonização agrária judaica na Argentina, importante e indispensável é a leitura do
estudo de Pinchas Bizberg, Oif di schpuren fun iidicher vanderung in 1889-1902 (Nos rastros da imigração
judaica em 1889-1902) in “Argentiner Iwo Shriftn”, 2, B. Aires, 1942, pp. 7-46, e em particular o volume 9-
76
10, 1964, da mesma coleção, dedicado ao 75.º aniversário da colonização judaica na Argentina e que reúne o
melhor material histórico sobre o tema.
191
Sobre ele e sua atuação, bem como sobre os primeiros grupos imigratórios em que teve uma participação
ativa, importante é o volume publicado pelo IWO das memórias de Noé Kaciovich com o título “Mozesviler
bereshis” (Os começos de Moises Ville), B. Aires, 1947.
192
A difícil e por vezes trágica situação das primeiras colônias argentinas foi descrita por Peretz
Hirschbein em seu livro ,verdadeiro documento sobre esssa colonização, Fun vaite lender:
Argentine, Brazil, Yuni, November, 1914, N.Y.,1916, reed.N.Y., Book Renaissance, 2012.
77
além de outras mais. Em 1925 constituiu-se a Fraternidad Agraria, que reunia sob seu teto
23 cooperativas agrícolas existentes nas colônias judias argentinas, e não é de surpreender
que dez anos mais tarde, em mais de 20 colônias da J.C.A., se cultivassem 650.000 hectares
de terra, o que representava 2% do total das terras cultivadas na Argentina. 193
A colonização agrícola judaica na Argentina conseguiu, desse modo,
sobreviver, apesar da atração que a vida urbana exercia e naturalmente levava muitos a
abandonar o campo que sempre exigiu sacrifícios daqueles que se dispunham à
colonização, como podemos constatar pela leitura do clássico de Alberto Gerchunoff, “Los
gauchos judíos”.
A contribuição judaica à agricultura Argentina foi significativa, pois, além de
se manifestar na organização cooperativa, introduziu cultivos que até então eram
desconhecidos naquele país, tais como o girassol e a alfafa, que devido ao seu sucesso
passaram a ser cultivados em larga escala.194 Também as cooperativas introduziram a
industrialização dos produtos agropecuários, tais como a manteiga e outros derivados do
leite, com o devido respaldo financeiro de instituições bancárias que se foram criando com
o tempo, entre elas o Banco Comercial Israelita, cuja central se encontrava em Rosário.
A mesma J.C.A., e pelos mesmos motivos, encetou uma colonização agrícola
judaica no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, com uma distância de tempo de 10 anos,
aproximadamente, após o da Argentina. É preciso dizer que, para o imigrante europeu
daquela época, o Brasil era menos conhecido do que a Argentina e não despertava tanto
interesse e tanta atração quanto aquele país. Por outro lado, o governo brasileiro, ao
contrário do argentino, não se dispôs a uma atividade propagandística para atrair o
elemento judeu da Europa à colonização agrícola.195
Portanto, o projeto de colonização da J.C.A. no Rio Grande do Sul ficou em
boa parte sob sua própria responsabilidade. Mesmo a comunidade judia local ou a brasileira
não teve, a partir de 1904, quando chegaram as primeiras famílias, qualquer participação
significativa no projeto, a não ser os poucos privilégios concedidos pelo governo do Estado.
A J.C.A. adquiriu de início cerca de 5.767 hectares de terra em Pinhal, na
região de Santa Maria, distante 25 km daquela cidade. Da Argentina viria o representante
193
Sobre o papel do cooperativismo na colonização agrária judaica da Argentina vide os vols. 2 e 9-10 dos
“Agentiner Iwo Shriftn”, mencionados na nota de rodapé 4 e o artigo de S. I. Horwitz, Di cooperatives in di
yidiche colonies in Argentine (As cooperativas nas colônias judaicas da Argentina) in “Argentiner Iwo
Shriftn”, 1, B. Aires, 1941, pp. 59-116.
194
Sobre a contribuição judaica à agricultura argentina, merece destaque o estudo valioso de José Lieberman,
Aportes de la colonización agraria judía a la economía nacional, C.J.A., Buenos Aires, 1976. O mesmo autor,
cientista de renome em nosso continente e membro do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA)
da Argentina, também escreveu outras obras importantes sobre o tema acima, bem como sobre a colonização
judaica naquele país.
195
Nesse sentido, devemos observar que bem antes da atuação da J.C.A. houve tentativas e projetos de
colonização agrícola com imigrantes judeus no Brasil e houve, em 1891, o envio de um conhecido jornalista
europeu, Oswald Boxer, que em nome de uma entidade alemã trouxe um projeto ao governo brasileiro da
época, para que aceitassem imigrantes judeus dispostos ao trabalho da terra. Lamentavelmente, Boxer
contraiu febre amarela enquanto aguardava em S. Paulo qualquer manifestação oficial a respeito, vindo logo a
falecer sem poder realizar o seu intuito. Descobrimos após várias buscas que fora enterrado no Cemitério dos
Protestantes (ao lado da Consolação) e temos em nosso arquivo cópia de seu atestado de óbito.
78
da J.C.A., Dr. Eusébio Lapine, 196 engenheiro, que desde 1903 preparava as condições
materiais para o recebimento das 38 famílias vindas da Bessarábia, na época integrada à
Rússia, e que chegariam no ano seguinte à primeira colônia denominada Philippson. 197
Apesar da fertilidade da terra, as grandes e densas florestas constituíram um
sério obstáculo na formação e desenvolvimento da colônia, pois antes de tudo necessário se
fazia limpar o terreno para poder cultivá-lo.198
Como em outros lugares, a J.C.A. assumia as despesas de viagem e distribuía a
cada colono cerca de 25 a 30 hectares de terra,199 além de uma moradia, instrumentos de
trabalho agrícola, duas juntas de boi, duas vacas, um cavalo e um auxílio monetário
variável de acordo com o número de pessoas da família, durante o período em que não
pudessem ser autônomos. A importância investida em cada colono deveria ser devolvida
em um prazo variável de 10 a 20 anos, com juros, porém considerando-se que seu débito
deveria ser reduzido no caso de ser prejudicado por calamidades climáticas ou por
gafanhotos. De outro lado, a J.C.A. deveria arcar com todas as despesas referentes à
administração e serviços públicos, incluindo-se a educação das crianças da colônia.200
196
Eusébio Lapine foi considerado na Argentina um modelo de mau administrador pela sua conduta arbitrária
e pouco humana em relação aos colonos endividados, sendo, portanto, alvo de crítica acérrima por parte do
diretor do periódico “Di Folks Schtime” (A Voz do Povo) Abraham Vermont, que esteve à sua testa durante
os anos de 1898, quando foi fundado, até 1914, ano em que encerrou suas atividades. Sobre isso escreveu
Baruch Hochman, Materialen tzu der geschichte fun der idicher colonizatzie un agrar-cooperatzie in
Argentine (Documentos para a história da colonização e cooperativismo agrário israelita na Argentina) in
“Argentiner Iwo Shriftn”, 9-10, Buenos Aires, 1964, pp. 5-107. Sobre Vermont e seu jornal escreveu Pinhe
Katz no seu “Idische Jornalistik in Argentine”, (A imprensa judaica na Argentina) in Geklibene Shriftn,
volume V, pp. 39-58.
197
Em homenagem a Franz Philippson , na época vice-presidente da J.C.A., e banqueiro que presidia
companhias de estradas-de-ferro na Argentina e Rio Grande do Sul.
198
Pelo que apuramos no Livro Copiador n.º 1 (1903-1905), manuscrito que hoje se encontra no Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro, Eusebio Lapine ficaria até fins de 1903 preparando as instalações para o
recebimento dos novos colonos, o que não incluía o desmatamento. Em janeiro de 1904, ele já se encontrava
em Buenos Aires, talvez por razões de doença, sendo substituídos por J. Bezchinsky e David Hassan, que no
entanto continuavam a escrever-lhe pedindo conselhos e orientação.
199
Em carta-relatório de 11 de junho de 1904, David Hassan escrevia a Lapine dizendo que
“desgraciadamente el plane no dice cuales lotes son de 25 H o 30 H. Como no tengo aviso todavía de la salida
de los colonos, creo que Va. tendrá tiempo de contestar, sino, haré como en Argentina, por sorteo, así opina
Sr. Behzhinsky”. Livro Copiador n.º 1, arquivo da J.C.A., p. 86, no A.H.J.B.
200
O primeiro professor seria o dr. León Back, que atuou como professor e subdiretor da “École Horticole et
Professionelle du Plessis-Piquet”, nos arredores de Paris. Chegou a Philippson em 5 de junho de 1908,
instalando ali uma escola mista. V. o artigo de sua autoria sobre a imigração judaica no Rio Grande do Sul, na
Enciclopédia Rio-grandense, 5.º volume. Importante é a consulta do livro de Eva Nicolaievsky, Israelitas no
Rio Grande do Sul, ed. Garatuja, P.A., 1975, que foi um dos primeiros trabalhos sobre a colonização judaica
no Rio Grande do Sul, ainda que tenha um caráter de homenagem e conservação da memória dos primeiros
judeus chegados naquele estado, e portanto não fundamentado em uma pesquisa científica sobre a
documentação disponível no Brasil ou em arquivos do exterior. Anos após surgiriam outros estudos,
abordando outros aspectos dessa colonização, que ainda está a espera de seu historiador. Entre os trabalhos
mais recentes se encontra o de Jeff Lesser , Jewish colonization in Rio Grande do Sul (1904-1925), Estudos
CEDHAL, n. 6, São Paulo, 1991.
79
201
“Jewish Colonization Association” Rapport, Paris, 1926, pp. 56-87. O relatório trata dos anos de 1923 e
1924.
80
obrigados a fugir e nas condições mais difíceis, ocorrendo acidentes e encontrando-se sem
proteção alguma.
Apesar dos contratempos, a J.C.A. persistiu em seus projetos de colonização e
envidou esforços no sentido de renovar a imigração judaica à colônia “Quatro Irmãos”, que
na verdade era formada de quatro núcleos incluindo Quatro Irmãos, Baronesa Clara, Barão
Hirsh e Rio Padre. A vinda, em dezembro de 1923, de um representante da J.C.A., o
renomado rabino Isaías Raffalovich, que se instalou no Rio de Janeiro, propiciou a
continuidade do projeto de colonização, pois sua influência junto à comunidade, bem como
junto às instâncias governamentais e principalmente junto à direção da J.C.A. na Europa
permitiu a adoção de uma política de auxílio mais efetivo aos colonos. Sobre esse aspecto,
foi muito importante a iniciativa de fortificar a Sociedade de Beneficência para Amparo de
Imigrantes, Relief, existente no Rio de Janeiro, que passou a cuidar dos mesmos e
encaminhá-los às colônias do Sul. Raffalovich, com os fundos da J.C.A., preocupou-se
também em criar escolas, trazer professores para que os filhos dos colonos pudessem
receber uma educação adequada, ainda que vivessem no campo. Curiosamente, a J.C.A.
passou a ter um papel primordial no desenvolvimento de uma rede escolar judaica no
Brasil, pois as primeiras escolas, também dos centros urbanos, foram subsidiadas por ela.202
Em 1926, uma nova leva de imigrantes chegava aos núcleos de “Quatro
Irmãos”, dirigindo-se as primeiras 30 famílias ao núcleo Barão Hirsh, 203 após um período
de promoção e propaganda de colonização agrária do qual o jornal “Dos Idiche
Vochenblat” (O Semanário Israelita) era veículo único no Brasil, além dos esforços
fundamentais e decisivos que se faziam na Europa, em especial na Lituânia e Letônia 204. A
J.C.A. arcava novamente com todos os gastos e dessa vez reduzia a dívida dos colonos,
com um ônus de juros de 5% ao ano, dívida essa que deveria ser paga em 20 anos. Além do
mais, os colonos receberiam cinqüenta hectares de terra, dois hectares de meio de floresta já
cortada, dois cavalos, duas vacas, moradia de três quartos, estábulo e implementos
agrícolas. Durante um ano, o colono podaria um e meio hectare de floresta, podendo vender
a madeira no mercado de fora e ficar com o ingresso decorrente do negócio. Os núcleos
planejados em “Quatro Irmãos” deveriam conter uma escola, uma sinagoga, biblioteca, que
seriam mantidos pela J.C.A. durante os três primeiros anos, após os quais seriam de
responsabilidade dos colonos.
As sociedades filantrópicas judaicas, HIAS (Hebrew Immigration Aid Society),
com sede em Nova York, a J.C.A., com sede em Paris e Londres, e a EMIGDIREKT
(Emigrations-Direktion) de Berlim, coordenadas mais tarde com o nome de HICEM,
tiveram um papel importante no encaminhamento e no apoio aos novos imigrantes que se
dirigiam aos países da América do Sul, assim como a outros. Em Porto Alegre, sob a
202
V. a respeito nosso estudo “Subsídios à história da educação judaica no Brasil ”, in Herança Judaica, n.º
47, setembro de 1981, pp. 53-63.
203
. “Dos Idiche Vochenblat” de 23/05/1926 e 04/06/1926.
204
“Dos Idiche Vochenblat” de 06/11/1925. Já em 4 de setembro de 1925 o “Dos Idiche Vochenblat”
anunciava que chegaria ao Brasil o inspetor geral da J.C.A. na Argentina, dr. David Zvi, que havia
anteriormente passado um ano em Quatro Irmãos para preparar as condições para uma nova imigração. O
mesmo periódico de 9 de outubro do mesmo ano, em entrevista com Gregorio Yochpe, que esteve na Europa
durante cinco meses, acentuava “o início da segunda imigração em Quatro Irmãos”.
81
direção do dr. León Back, formou-se um “Comitê pró Imigrantes Israelitas”, em 1927,
vinculado ao HICEM e que se encarregava de receber os imigrantes a bordo dos navios,
hospedá-los e encaminhá-los para o trabalho produtivo, seja na cidade ou no campo. Em
toda a parte onde havia comunidades israelitas, nas grandes e pequenas cidades brasileiras,
organizaram-se comitês semelhantes para que pudessem enfrentar a grande onda
imigratória, que perdurou durante os anos 20 e parte nos anos 30.
A filosofia imigratória do HICEM referente ao Brasil foi definida em carta ao
dr. Raffalovich e publicada no “Brazilianer Idiche Presse” (Imprensa Israelita Brasileira),
periódico que surgira naquele mesmo ano em continuação ao Dos Idiche Vochenblat, e se
resumia em cinco pontos: a) os primeiros imigrantes a virem ao Brasil devem ser os que
possuem qualificação profissional e estão aptos à colonização agrícola; b) os que não
possuem profissões deverão ser preparados profissionalmente nas estações experimentais
que as associações criarão nos países de emigração e imigração; c) a fim de facilitar a
absorção do imigrante, serão criadas sociedades de empréstimo e também setores de
passagens de navios que possibilitem ao imigrante trazer sua família; d) criar-se-á os meios
para que o imigrante estude a língua do país, pela realização de cursos noturnos; e)
organizar-se-á em cada lugar um escritório ou agência de trabalho.205
Os resultados com a nova colonização mostravam-se promissores, e em fins de
1927 e inícios de 1928 informes otimistas diziam que a criação de uma cooperativa agrícola
no núcleo Baronesa Clara dera muito certo e que se levaria o empreendimento a outros
setores. Ao mesmo tempo, da estação de Erebango se informava que as 70 famílias do
Barão Hirsh e Baronesa Clara obtiveram uma compensadora safra agrícola, produzindo
1.500 sacos de trigo, exportando 8 vagões de milho no valor de 33 contos de réis e
possuindo todos os campos de alfafa, erva-mate, vinhedos e árvores frutíferas.206
Lamentavelmente, em relação à colônia “Quatro Irmãos” ocorreria uma nova
catástrofe, com a revolução de 1930 que provocou novas invasões de estranhos com graves
conseqüências, sendo os prejuízos materiais e morais dos seus moradores enormes. O
desânimo que desabou sobre os colonos provocou, mais uma vez, o abandono dos núcleos
agrícolas e a ida aos centros urbanos, que sempre constituíram, em potencial, um atrativo
que se revelava ainda mais forte em tempos difíceis e tempestuosos.
A política do Estado Novo em restringir a imigração de um modo geral, e a
judaica em particular, pois novos ventos de caráter anti-semita207 bafejavam em nosso país,
levou a que as colônias sofressem uma diminuição de sua população, e partes das glebas
foram passando a outros colonos não-judeus. A J.C.A. continuou zelando por seu programa
de colonização, mas os tempos não eram favoráveis a sua incrementação devido aos fatores
mencionados anteriormente. Uma última experiência faria a J.C.A. no Brasil ao tentar abrir
205
“Bazilianer Idiche Presse” de 10/06/1927. Durante todos os meses desse mesmo ano a propaganda da
J.C.A. dirigida aos interessados em se colonizar permaneceu ativa através desse órgão de imprensa.
206
“Idiche Folktzeitung” de 23/12/1927 e 28/02/1928.
207
O epígono do nazismo no Brasil, Gustavo Barroso, além de traduzir a “literatura” anti-semita européia ao
português, foi um autor prolífero de pasquins impregnados de sandices e ódio antijudaico, que envenenou
mentes e contribuiu para criar uma atmosfera até então desconhecida no país em relação aos imigrantes
judeus. Uma reação ao anti-semitismo se deu com a publicação do livro “Por que ser anti-semita?”, em 1933,
com a colaboração das melhores forças intelectuais de nosso país.
82
uma nova colonização, agora no Estado do Rio de Janeiro, em Rezende, quando em 1936
sugeriu ao governo brasileiro a formação de uma colônia agrícola de imigrantes judeus
oriundos da Alemanha. A razão do projeto obviamente se justificava pela perseguição que
os judeus estavam sofrendo na Alemanha nazista e que culminaria no Holocausto com o
extermínio de milhões de seres durante a Segunda Guerra Mundial. Procurava-se na época,
antes que a grande tempestade desabasse sobre o povo judeu, salvar aqueles que estavam
diretamente ameaçados pela besta nazista, que desde de sua ascensão ao poder mostrava
seus verdadeiros desígnios. O Brasil, assim como outros países sul-americanos, encontrava-
se na época indefinido quanto a sua política externa em relação ao Eixo, ou mais
propriamente em relação à Alemanha, que procurava exercer sua esfera de influência
também nessa parte do mundo. E não faltavam grupos que viam a Alemanha nazista com
certa simpatia. Por outro lado, tal situação se refletia na política imigratória brasileira, que
discriminava os judeus, como atestam vários documentos emanados diretamente de
gabinetes governamentais. Por um motivo ou outro, o governo acabou por aceitar o projeto
Rezende, mas sem qualquer participação no mesmo.
Porém, devemos, nesse ponto, nos deter com mais vagar para examinar de
perto a política imigratória brasileira dos anos 30 em relação aos judeus, e nesse sentido, as
mudanças havidas de uma década para outra foram radicais. Pela lei Epitácio Pessoa, de 6
de janeiro de 1921, que regulava a entrada de imigrantes, fazia-se referência aos
indesejáveis tais como doentes, velhos, criminosos, e a nova lei de 1925 passava a exigir
dos imigrantes uma documentação mais complexa. Além disso, ao entrarem no país ou na
cidade do Rio deveriam ser internados em quarentena na ilha das Flores. Mas apesar dessas
exigências e o critério de seleção adotado, podemos dizer que a imigração nesses anos era
livre e não continha elementos discriminatórios em relação à nacionalidade ou de outro tipo
qualquer. Mas nos fins de 1927 uma personalidade judaica da Argentina, M. Regalsky,
escritor e redator do “Dos Idiche Tzeitung” (O Jornal Israelita) de Buenos Aires, em visita
ao Ministro da Agricultura, em 28 de dezembro daquele ano para tratar de assuntos
relativos à imigração, ouviu de sua boca algo que prenunciava “novos tempos”. O Ministro
lhe declarou que o governo resolvera não organizar nenhum movimento de imigração e
tampouco contratar operários estrangeiros, “não devemos dar privilégio à imigração judaica
e nesse sentido não devemos tampouco considerar os pedidos da J.C.A., porém mantemos
uma atitude positiva em relação à livre imigração e não fazemos distinção entre
nacionalidades. Também não temos nenhuma instrução, em particular, para paralisar
qualquer ingresso de judeus ao Brasil”.208 A primeira parte da declaração do Ministro
orientaria, futuramente, a política imigratória do governo. Em 1934, novas resoluções
governamentais relativas à imigração instituíam o sistema das “cartas de chamada”, que se
aplicava em boa parte a trabalhadores rurais, profissionais contratados, proprietários de
terras capitalistas. Isso permitiu que boa parte dos judeus alemães, que procurava sair do
inferno nazista, entrasse em nosso país como turistas e conseguisse licença de permanência
no momento em que demonstrasse se enquadrar nas categorias previstas acima. Mas muitos
esgotavam os seus vistos de permanência e se viam obrigados a sair para outros países,
como Paraguai, Uruguai ou outro qualquer, a fim de regulamentar sua permanência
posteriormente, ou nunca mais. No mesmo ano de 1936, as “cartas de chamada” foram
substituídas pelas “cartas de autorização”. Mas a lei de 1934 incluía outros itens, entre eles
208
“Brazilianer Idiche Presse” (Imprensa Israelita Brasileira) de 16 de dezembro de 1927.
83
a proibição da entrada de analfabetos, mas o mais importante fixava a cota anual de entrada
de estrangeiros a 2 % do número total de cada nacionalidade ingressa no país durante os
últimos 50 anos. Getúlio Vargas, pelo visto, tinha a intenção de bloquear a imigração e
mesmo um projeto de Henrique Doria de Vasconcelos para abrir as portas e eliminar os
entraves existentes, em 1936, caiu por terra, pois no dia 10 de novembro de 1937 o
presidente fechava as portas do Congresso e começava a reinar abertamente um critério
anti-semita na seleção dos imigrantes ao nosso território. Tudo isso ficou claro quando, em
novembro de 1948, pouco mais de três anos após o término da Segunda Guerra Mundial,
começava-se a publicar no jornal “O Estado de São Paulo” uma longa série de artigos sobre
a questão imigratória com o título “A batalha contra a imigração”. No sexto artigo da série,
intitulado “A circular secreta contra os judeus”, punha-se à luz a circular secreta de n.º
1.249 que emanava do gabinete do Ministério de Relações Exteriores dirigida às missões
diplomáticas e consulados de carreira e às autoridades de imigração e policiais, cujo teor
transcrevemos na íntegra:
Sobre esse período tenebroso da história da imigração judaica no Brasil temos ainda que
nos reportar a um desabafo de consciência do ministro Hélio Lobo em artigo que publicou
de Genebra em dezembro de 1947 no “Jornal do Comércio”, do Rio de Janeiro: “Não tinha
o abaixo-assinado (Hélio Lobo) boa lembrança do tempo em que, sentado pelo nosso país
na Comissão Intergovernamental de Londres, instituída pela Conferência de Evian, em
1938, se viu em posição de esquerda perante os seus colegas e perante o sentimento de
cooperação internacional, de que antes nunca abdicara o Brasil. Estávamos no início de um
regime que, num país de mistura de raças de que se orgulharia, inspira-se em preocupações
oriundas do nacional-socialismo alemão. De modo que, enquanto as instruções eram
negativas em relação aos israelitas expulsos pelo Reich, entravam estes às centenas no
Brasil, mediante o pagamento de dez mil cruzeiros por cabeça a intermediários pouco
escrupulosos”.210 Os que eram inaptos do ponto de vista financeiro tiveram que ficar sem
visto. Em um jornal israelita, o “San Pauler Idiche Tzeitung”, de 10 de agosto de 1938,
temos uma confirmação de desabafo tardio do ministro Hélio Lobo, mas agora apenas
como uma notícia que informava sobre a posição do Brasil, através de seu representante
(Hélio Lobo) na Conferência Internacional de Refugiados, onde se transcreviam suas
palavras: “Como resultados das condições de desemprego que se assinalaram em 1938, o
governo de meu país viu-se forçado a limitar a imigração e a proteger o mercado interno...
Foi em resultado de condições insustentáveis que o governo brasileiro resolveu, no ano de
1934, fixar a cota anual...” O mesmo periódico lembrava, meses antes, em seu número de 8
de maio de 1938, que entre exigências do consulado brasileiro em Berlim havia a definição
da religião e raça aos que se dirigiam a ele para solicitação de vistos. Também é ilustrativo
da linha adotada pelo governo do Estado Novo a posição manifesta do seu ministro da
Justiça, Francisco Campos, sobre a imigração israelita, publicada no mesmo periódico em
seu número de 21 de janeiro de 1938. A opinião pública, ou melhor, os que a manipulavam,
usava da imprensa para mostrar o quanto a imigração israelita era indesejável, tal como
podemos verificar em artigo publicado no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 29 de
janeiro de 1938, no qual o articulista se mostrava antagônico à imigração de israelitas da
Romênia. Tudo isso ocorreria em um tempo em que na Alemanha as Leis de Nuremberg
tinham sido declaradas como parte da nova ordem do Reich, a Kristallnacht vitimava
milhares de judeus material e espiritualmente, e se projetava a “Solução Final” dos judeus
na Europa e onde se pudesse alcançá-los, para a glória da raça ariana, seus seguidores e o
Fuhrer, que tanta admiração havia causado em alguns países sul-americanos.
É preciso dizer, também, que em 18 de abril de 1938, pelo artigo 3 do decreto
383, dava-se o prazo de 30 dias para que todas as instituições estrangeiras se legalizassem,
proibindo-se também o uso de qualquer outra língua que não o português nas escolas ou nas
atividades culturais. Xenofobia e anti-semitismo confundiam os judeus alemães com
209
V. Dines, Alberto, Morte no Paraíso, ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, p. 228.
210
Cit. na série de artigos publicados em 1948 em “O Estado de São Paulo”, com o título “A batalha contra a
imigração”.
86
Mas voltemos a Rezende, que foi considerada a última experiência agrícola empreendida
pela J.C.A. em solo brasileiro. No álbum-mapa, feito em julho de 1936, do levantamento da
área adquirida pela J.C.A., lemos que ela possuía 400 alqueires geométricos e constituía um
conjunto de várias glebas de terra denominadas Fazenda Lambary, Castello, Santa Clara,
Barra e São Sebastião, de propriedade do coronel Abílio Marcondes de Godoy. A compra
custou à J.C.A. 1.100 contos de réis e o levantamento técnico-topográfico foi feito pelos
engenheiros Israel Max Roussine e D. Rosenblum, ambos sob as expensas da J.C.A. Temos
duas descrições da colônia, sendo a primeira decorrente da visita do interventor do estado
do Rio, o comandante Amaral Peixoto, em abril de 1938212, e a segunda feita, nada mais
nada menos, pelo Presidente da República, o sr. Getúlio Vargas, em junho do mesmo ano e
publicadas no “San Pauler Idiche Tzeitung”. Além do mais, em janeiro daquele mesmo ano,
publicava o jornal “A Tarde”, do Rio de Janeiro, um artigo acerca da colonização e do
projeto. Transcrevemos o relato das duas visitas mencionadas, uma vez que uma
complementa a outra: “A colônia é para 30 famílias, mas por enquanto tem apenas quinze.
Já estão prontas as restantes quinze casas com todos os apetrechos necessários e em
condições de receber habitantes. O governo não gastou ali um tostão, toda a instalação da
colônia foi feita por uma instituição judaica formada na Europa, com sede em Paris, que
comprou as terras, construiu pontes, saneou a zona, etc. Cada colono recebe, ao chegar,
além dos instrumentos necessários ao serviço da agricultura, sementes, galinhas e quinze
vacas leiteiras. Tudo está calculado matematicamente. No início a colônia dá déficit, no
segundo ano o déficit é menor, no terceiro a receita cobre as despesas e no quarto e quinto
anos o lucro deverá ser bastante para compensar o capital empregado. Trata-se de um plano
qüinqüenal cuja execução tem dado resultados em outros países. Passados os cinco anos, as
novas colônias serão instaladas, tudo de acordo com o plano traçado pela instituição acima
referida. Nessa colônia há uma escola onde o ensino é ministrado somente em Língua
Portuguesa. É chefiada por um engenheiro judeu alemão, tendo notado o interventor
Amaral Peixoto que o trabalho ali é admiravelmente disciplinado e que os colonos gozam
de todo o conforto. Aparecendo no local à hora do almoço, viu a alimentação do pessoal,
gabando o asseio que notou em nossa colônia. Ao retirar-se, prometeu interessar-se junto ao
211
“San Pauler Idiche Tzeitung” de 8 de abril de 1940.
212
“San Pauler Idiche Tzeitung” de 10 de abril de 1938.
87
213
Algemeine Enziclopedie, vol. Yidn, Paris, 1939, pp. 441-482.
88
Estes dados não são oficiais e foram tirados dos relatórios da J.C.A., HIAS ou
HICEM, entidades que cuidavam da imigração judaica em todo o mundo. Pinhe Katz, no
seu livro “Fuftzik yohr yidn in Argentine214 (50 anos de judaísmo argentino), repete a cifra
extraída da J.C.A., que mostra que, em 1904, entraram 4.000 imigrantes judeus, em 1905 –
7.516; 1906 – 13.500; em 1907 – 2.518, confirmando os dados da “Algemeine
Enziclopedie”. Segundo o relatório da J.C.A. publicado em 1908, calculava-se a população
judaica na Argentina entre 35.000 a 40.000 almas, das quais viviam em Buenos Aires cerca
de 15 a 16 mil, 13.000 nas colônias da J.C.A. e o restante em outras cidades daquele país.
Em um estudo de I. Dijour, Die Judische Auswanderung aus Polen215 (A
emigração judaica da Polônia), encontramos a seguinte estatística referente à imigração
judaica da Polônia à Argentina e ao Brasil:
214
Geklibene Schriftn, vol. IV, B. Aires, 1946, p. 52.
215
In “Die jüdische Emigration”, Feb. Marz, Berlin, 1928, pp. 1-5.
216
in “Di Yidiche Emigratzie”, n.º 2, Berlin, 1929, pp. 106-111.
89
E ainda no artigo “Di algemeine un idishe emigratzie fun Poilen far di yohren
1927-1928”217 (A emigração geral e judaica da Polônia no ano 1927-1928), temos a
seguinte tabela comparativa da emigração polonesa:
Todos esses estudos permitem deduzir certa estatística sobre a emigração vinda
à Argentina e ao Brasil, já que a Polônia constituía a grande fonte emigratória a ambos os
países.
Na segunda metade de 1928, nota-se na Argentina a criação de certas
dificuldades para a aceitação de imigrantes. De início elas são dirigidas contra pequenos
comerciantes e também artesãos, com a finalidade de desviar a imigração da cidade de
Buenos Aires, que contava com 2 milhões e meio de habitantes, enquanto que o geral da
população em todo o território era de 10 milhões. Em seguida, criaram-se novos obstáculos
a livre imigração restringindo-a a aceitação apenas de trabalhadores rurais, ou daqueles
considerados necessários, ou ainda os que possuíssem 150 dólares além das despesas de
viagem.
Isso prejudicou a imigração judaica, ainda que o novo governo eleito
posteriormente trouxesse novas esperanças. Em todo caso, as limitações do governo
argentino, nesse ano, levaram a desviar a imigração ao Brasil.
Os relatórios do Relief no Rio de Janeiro, que se encarregava de receber,
orientar e ajudar os imigrantes israelitas que chegavam ao Brasil e que tinham agências
com as mesmas incumbências em outras cidades do território nacional, confirmam em boa
parte as cifras relativas ao ingresso de pessoas sob o seu cuidado e registro, o que
representava apenas uma parte dos imigrantes judeus entrados em nosso país, ou seja,
aquela parte que vinha sob a coordenação e arranjo dos órgãos internacionais, tais como
HIAS, a J.C.A. e a Emigdirekt. A estatística sobre essa imigração começa a ser publicada
pelo Relief a partir de 1925 e é divulgada na imprensa judaica, em língua ídiche, até 1926
no jornal “Dos Idiche Vochenblat” e em 1927 no jornal “Brazilianer Idiche Tzeitung”. Se
considerarmos que muitos imigrantes israelitas não imigravam ao Brasil via essas
instituições e tampouco eram recebidos e registrados no Relief, porém vinham por conta
própria, podemos deduzir que os números acima estão próximos da verdade. Os números
do Relief confirmam também que a maioria dos imigrantes da década de 20 vinha da
Polônia e Rússia. Senão vejamos: no relatório do Relief, referente ao ano de 1925,
encontramos que ingressaram em nosso país 312 judeus, dos quais 141 vindos da Polônia,
112 da Rússia e o restante de demais países (Romênia, Áustria, Checoslováquia, Hungria,
Alemanha, etc). Em 1925, a imigração registrada no Relief atingia uma média mensal de 55
para o primeiro semestre e 150 para o segundo semestre. Em 1927, a média mensal de
217
in “Di Yidiche Emigratzie”, n.º 2, Berlin, 1929, pp. 205-211; n.º 6-8, 1929, pp. 337-341.
90
Argentina Brasil
1840-1880 2.000 500
1881-1900 25.000 1.000
1901-1914 87.614 8.750
1915-1920 3.503 2.000
1921-1925 39.713 7.139
1926-1930 33.721 22.296
1931-1935 12.700 13.075
1936-1939 14.789 10.600
1940-1942 4.500 6.000
218
“Yidiche vanderungen in di letzte hundert yohr” (Migrações judaicas nos últimos cem
anos), in Yivo Bletter (Journal of the Yiddish Scientific Institute), New York, vol. XXIII, january-february,
1944, n.º 1, pp. 41-54. Para a imigração judaica à Argentina no século XIX encontram-se estimativas no
importante artigo de A. L. Schusheim, L’Toldot ha-ishuv haiehudi b’Argentina” (Para a história dos judeus na
Argentina), in Sefer Argentina, B.A., 1954, pp. 27-65.
91
escoamento dos produtos agrícolas até os mercados de consumo; a mata ou a floresta densa,
que exigia um grande emprego de mão-de-obra para desmatamento e abertura de clareiras
para obtenção de terras agrícolas; os graves distúrbios dos anos de 1923 e 1924, que
levaram os agricultores ao abandono das colônias em troca de lugares mais seguros; a
atração dos jovens pelas cidades; a falta de continuidade na imigração do elemento humano
disposto à atividade agrícola; e, posteriormente, a própria política imigratória adotada pelo
governo brasileiro, a partir da década de 30, foram fatores decisivos para a desagregação
das colônias. Também não podemos omitir, como causa importante e muitas vezes até
decisiva em relação ao abandono de colonos e sua decepção, a inclemência do clima, que
em certos momentos destruía tudo o que havia sido feito pelas mãos dos agricultores, e as
catástrofes provocadas por nuvens de gafanhotos, perante os quais o colono se mostrava
impotente e sem meios para combatê-los.219
Há que considerar que, ao contrário do que ocorreu, em parte, na Argentina, as
colônias brasileiras não tiveram nenhum respaldo governamental, necessário à atividade
agrícola de um modo geral, principalmente em períodos de calamidade. Por outro lado, no
estudo da colonização judaica encetada pela J.C.A. na Argentina e Brasil, fica patente que
apesar do “know-how” da empresa colonizadora e a disponibilidade de recursos a serem
aplicados nos projetos da entidade, nem sempre sua administração foi suficientemente
qualificada para enfrentar os problemas que o empreendimento requeria. Muitos de seus
administradores se mostraram pouco humanos e inábeis em lidar com os colonos, que
necessitavam de orientação técnico-agrícola e compreensão, o que nem sempre
encontraram entre aqueles que eram encarregados de fornecê-la. Na história da colonização
judaica, principalmente na Argentina, os choques entre a administração e os colonos
também tem o seu capítulo, e não podemos desconsiderá-lo como fator negativo no
desenvolvimento da colonização agrícola.220
Também em nossas colônias sulinas não faltaram atritos, justificados ou não,
entre colonos e a administração local da J.C.A. Sobre uma manifestação organizada dos
colonos logo nos primeiros tempos de Philippson, temos um relato literariamente delicioso
de Melech Reicher, que testemunhou o acontecimento como colono que era em Philippson.
Ele descreveu os sofrimentos e as terríveis dificuldades de adaptação, no início daquela
colônia agrícola, provocados também pela inércia administrativa ao ordenarem aos colonos
que cercassem seus hectares de terra com cercas feitas de madeira a ser extraída da floresta,
que ficava a certa distância das propriedades agrícolas e exigia um esforço descomunal de
homens e bois para abrir caminho até lá. E assim narra o que aconteceu: “Os mais
destacados entre os colonos convocaram uma assembléia geral na Sinagoga e lá tomaram
uma resolução: todos os participantes deveriam ir diretamente protestar frente a
administração. Naquele mesmo dia, com gritos e alardes, marcharam mais de 60 colonos no
largo caminho que levava da colônia até a linha de trem. Cavaleiros montados sobre seus
219
Um dos poucos e comoventes depoimentos humanos que retrata a vida dos colonos de Philippson
encontramos no livro de Frida Alexander, “Filipson”, Fulgor, São Paulo, 1967. O relato, escrito em ídiche por
M. Reicher, um ex-colono, foi publicado no “Velt-Spiegel” (Espelho do Mundo), 6-7, nov/dez, 1939; 8,
janeiro, 1940; 11, maio, 1940; 12, agosto, 1940; 14, dezembro, 1940.
220
Bizberg, P., “Konfliktn zvischn di yidiche colonistn in Argentine um der localer YCA-administratzie”
(Conflitos entre os colonos judeus e a administração local da J.C.A.), in Argentiner IWO Shriftn, n.º 4, 1947,
pp. 85-107.
92
cavalos que passavam pelo local paravam e observavam admirados e boquiabertos com a
curiosa procissão de idosos judeus, que marchavam com suas longas barbas e casacões
negros, armados com varas nas mãos. O edifício da administração ficava no ponto mais alto
da colônia, em cima de uma colina, e quando o administrador observou de longe o
numeroso grupo de manifestantes, de imediato cerrou as portas e janelas e enviou seus dois
capangas com cães policiais em sua direção. Os colonos, aquecidos com um pouco de
bebida alcoólica e também com a mágoa provocada por uma longa semana de espera,
daquela vez não se assustaram com os caboclos. Com altas vozes, brados e xingamentos,
começaram a bater com as varas nas portas fechadas, esperando que o administrador se
apresentasse, pois eles não queriam lhe fazer mal algum, uma vez que os judeus não eram
bandidos. Pálido e assustado, o administrador foi obrigado a sair para se mostrar aos
colonos acompanhado de seus dois guarda-costas e seus cachorros. Com as mãos trêmulas,
ele tirou da gaveta de sua enorme escrivaninha um papel com a rubrica do escritório central
de Paris, e com um sorriso açucarado, fez conhecer aos colonos que “justamente hoje” ele
recebera de Paris uma ordem para que desse a eles arame farpado para cercar as
propriedades, zinco para cobrir os telhados das casas recém-construídas e galpões, e
também aumentar para cada família o subsídio mensal. Nesse dia, os colonos voltaram a
suas casas com o espírito elevado, alegres, e relataram às mulheres sobre o corajoso
confronto e a vitória obtida”.221
Devido a todos os fatos mencionados anteriormente, vários setores da opinião
pública judaica assumiram uma atitude hostil contra a J.C.A., atitude essa que encontrou
forte expressão na imprensa judaica, tanto na geral quanto na do Brasil, mas que nem
sempre foi isenta de razões ideológicas correntes na época, e que por vezes via com
pessimismo projetos de colonização na Diáspora, ou ainda, em oposição a ela, depositava
maior fé na produtivização dos judeus nos centros urbanos, visando a formação de um
proletariado industrial para a “normalização” de sua estrutura social.
Contudo, todas essas críticas e pontos de vista, na devida distância do tempo,
empalidecem e se tornam pouco significativos frente à gigantesca obra social e humana
realizada por um casal de barões, que no seu extremado idealismo, substituiu o amor por
um filho prematuramente falecido pelo amor a todos os filhos de Israel.
221
In “Velt-Spiegel”, n.º 8, janeiro, 1940, pp. 6-7.
93
222
A melhor coletânea sobre o tema, com ênfase no período medieval, foi organizada pelo saudoso professor
da Universidade Hebraica de Jerusalém, Haim Hilel Ben-Sasson, Há-Kehilá ha-Yehudit be-Yemei há-
Beinaim (A comunidade judaica na Idade Média), Soc. Histórica de Israel, Jerusalém, 1976.
99
Uma vez existindo a sinagoga, deveria haver uma autoridade religiosa, que às
vezes antecedia a construção do templo ou era providenciada posteriormente.
Na religião judaica não é obrigatório ser o ofício litúrgico conduzido por uma
autoridade religiosa qualificada formalmente, ou seja, um rabino, porém, qualquer membro
da comunidade que tenha o conhecimento suficiente da religião e da liturgia estará apto a
servir de chantre e condutor do serviço divino. E, de fato, sabemos que em boa parte, o
serviço religioso das comunidades judaicas recém-instaladas e espalhadas pelo território
nacional era conduzido por “leigos” inteirados das tradições e capazes de ler os textos
sagrados. O conhecimento das tradições e dos fundamentos da religião judaica deve ser
uma herança transmitida de pais a filhos e de geração a geração, pois é parte da formação
que a criança judia deve ter como futuro membro da comunidade. Porém, desde o início
os imigrantes das diversas levas imigratórias que aportaram ao Brasil, procuraram dar um
significado mais profundo e rico a sua vida espiritual, trazendo rabinos de outros países, da
Europa, do Oriente Médio, da África do Norte e mesmo da Argentina, que tinha uma
população judaica numericamente maior e mais desenvolvida sob o aspecto comunitário.
Esses rabinos, além de exercerem funções sinagogais, atendiam as necessidades do
cotidiano, no qual a sua presença se faz imprescindível, desde casamentos, circuncisões,
bar-mitzvot e em todos os atos que exigiam sua orientação religiosa.
Quem foram os primeiros rabinos no Brasil e quais foram as primeiras
sinagogas brasileiras? Não é uma pergunta fácil de se responder, pois se de um lado temos
alguns elementos, os poucos documentos que nos fornecem nomes e lugares ainda não são
suficientes para desvendar e desfazer as inúmeras dúvidas que pairam nesse segmento
particular da história da imigração judaica em nosso país.
No período colonial temos vários testemunhos de que os cristãos-novos
judaizantes faziam esnogas, e essa expressão denotava que eles se reuniam em algum lugar
para promover um culto judaico, que poderia ser motivado por qualquer uma das
festividades judaicas ou para rememorar tradições que os “marranos” e seus descendentes
costumavam observar, longe dos olhos daqueles que poderiam delatá-los aos esbirros da
Inquisição. Sabemos com certeza que havia lugares onde seguiam uma rotina estabelecida
ainda na Península Ibérica, em que certas casas de adeptos do judaísmo serviam de ponto
de encontro para a realização de cerimônias religiosas e para o estudo do judaísmo sob a
orientação de uma personalidade mais culta e esclarecida, que poderia ser denominada de
rabi. Essas esnogas clandestinas são lembradas nas denunciações durante a Primeira
Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, quando comparece à mesa da Visitação, na
Bahia, um cristão-velho de nome Manoel Braz, que testemunha ter conhecimento de que
“em casa de Diogo Lopes Ilhoa, cristão-novo, mercador nesta cidade, se fazia esnoga com
ajuntamento de judeus, e que quando uns estavam dentro fazendo a esnoga, outros andavam
de fora vigiando”223. Também em outro lugar se menciona que em casa de Antônio Tomas,
mercador, cristão-novo “se faziam muitos ajuntamentos de cristãos-novos como ele e
diziam que faziam esnogas”224. Nas denunciações da Primeira Visitação mencionam-se
também os lugares onde se faziam esnogas, e na Bahia a esnoga de Matoim é referida como
tendo existido “há vinte anos” na casa do cristão-novo Heitor Antunes “onde se ajuntavam
cristãos-novos e judaizavam e guardavam a lei judaica” 225. Em Camaragibe, em
223
Denunciações da Bahia, 1591-1593, Série Eduardo Prado, São Paulo, 1925, p.420.
224
Idem, Ibidem, p.489.
225
Idem, Ibidem, pp.277,382,392,475,537.
100
Pernambuco, é lembrado que teriam existido “há quarenta anos” e onde “havia esnoga onde
se juntavam os judeus desta terra e faziam sua cerimônia” 226. Além do mais, na Primeira
Visitação, temos menções de judaizantes, que devido ao seu preparo e conhecimento, se
destacam entre os cristãos-novos, tal como vemos em uma denúncia que se refere a João
Nunes, onde o denunciante “presumiu sempre mal do dito João Nunes e, geralmente, ouviu
dizer na dita capitania de Pernambuco que ele é o rabi da lei dos judeus que nela há” 227. Em
outro lugar das denunciações da Primeira Visitação encontramos que o padre Francisco
Pinto Doutel denuncia ao Visitador que “de vinte anos a esta parte é fama pública na dita
Vila de Olinda e Capitania de Pernambuco que Jorge Dias de Caja, cristão-novo calceteiro,
defunto que haverá dois anos é falecido, era o rabi e sacerdote dos judeus na dita
Capitania”228. O mesmo clérigo lembra ainda que certa vez os cristãos-novos do engenho
de São Martinho, por impedimento de Jorge Dias de Caja, se dirigiram a um João Dias
“para que lhes pregasse de sua lei judaica”229, fazendo o papel de rabi, mas este se recusou,
e por isso recebeu o devido castigo. Ainda em Pernambuco, Francisco Roiz Navarro
também é acusado de reunir às sextas-feiras membros de sua família e judaizantes para
fazerem esnoga230.
Nas denunciações da Bahia, também entre 1591 e 1593, lemos que em casa de
“Gomes Fernandes, o denarigado, se fazia esnoga depois que desta cidade se foi para
Lisboa Rui Teixeira, cristão-novo, em cuja casa se fazia a dita esnoga”231.
Em Salvador aparecem outras denúncias de se fazerem esnogas na casa de
Antônio Tomas e também na do boticário Dinis D’Andrade 232, conforme o texto da
Visitação de Heitor Furtado de Mendonça. Na Segunda Visitação, de Marcos Teixeira, em
1618, vemos o mesmo tipo de denúncia, agora contra o judaizante Gonçalo Nunes, que
reunia às sextas-feiras “alguns homens da nação em sua casa, que é na rua de trás da
cadeia”233.
Efetivamente, a existência de rabinos e edifícios construídos com a finalidade
de servir ao culto judaico e oficialmente reconhecidos pelas autoridades governamentais
deu-se no período do domínio holandês na região do nordeste brasileiro, onde se
constituíram, em Pernambuco, duas comunidades, a “Tzur Israel” no Recife e a “Maguen
Abraham” em Maurícia, e não é nenhum absurdo supor que espaços provisórios para o
culto judaico poderiam existir nas demais regiões ocupadas pelos batavos, como Paraíba
ou Itamaracá, na medida que tivessem pequenos núcleos israelitas.
Durante o domínio holandês vieram os notáveis rabinos Isaac Abuab da
Fonseca e Moisés Rafael de Aguilar234, que tinham uma formação religiosa adequada e
226
Denunciações de Pernambuco, 1593-1595, Série Eduardo Prado, São Paulo, 1929, p.75.
227
Denunciações da Bahia, p.449.
228
Idem, Ibidem, p.522.
229
Idem, Ibidem, p.522.
230
Denunciações de Pernambuco, p.481.
231
Denunciações da Bahia, p.292.
232
Idem, Ibidem, p.467.
233
Livro de Denunciações do Santo Ofício na Bahia no ano de 1618, Anais da Biblioteca Nacional, vol.
49,1927 (1936), p.97.
234
Sobre eles e sua atuação há uma vasta bibliografia de importantes autores, entre eles J. Mendes dos
Remédios , Os Judeus Portugueses em Amsterdam, Coimbra, 1911; A. Wiznitzer, Judeus no Brasil Colonial,
ed. Pioneira, São Paulo, 1966; J.Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Liv. Clássica
Editora, Lisboa, 1975; M. Kayserling, Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, Ktav Pub. House, N. York,
1971.
101
235
Wiznitzer, A., A Sinagoga do Recife Holandês (1630-1654), in revista Aonde Vamos?, 28 de maio de
1953, p.7; Lipiner, E., Reminiscências esculpidas em pedra, in Comentário, ano IX, v.9,n.3, 1968, pp.212-
220; Mello, J.A. Gonsalves de, A sinagoga do Recife holandês, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, n.149 (358):1-121, jan.-mar.,1988, pp. 52-56; Dantas, L., A primeira sinagoga das
Américas, in D. O. Leitura, São Paulo, 136, 12 de setembro de 1993.
236
Wolff, E. e F., A Odisséia dos Judeus de Recife, C. E. J., São paulo, 1979, p.143.
237
Sobre ele vide Roth, C., A History of the Marranos, Hermon Press, N.York, pp. 287 e 335.
238
Idem, Ibidem, p.289.
239
Até agora não encontramos fontes que confirmam as diversas datas aceitas para sua fundação.
102
240
Wolff, E. e F., Os Judeus no Brasil Imperial, C. E. J., São Paulo, 1975, pp. 52-55; Wiznitzer, A., Os
primeiros judeus no Brasil Império, in Aonde Vamos?, n. 730, 20 de junho de 1957, foi o primeiro a se referir
a essa carta.
103
241
Wolff...pp.236-40.
242
Idem, Ibidem, pp.286-88.
243
Idem, Ibidem, pp.257-8.
244
Falbel, N., Crônica do Judaismo Paulista, in Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil, F.I.E.S.P., São
Paulo, 1984, p. 107.
104
Romênia, Rússia, e da Europa Oriental como um todo, em particular nos pequenos centros
urbanos e nos pequenos lugarejos, mantiveram-se, durante séculos naquela região,
concentrados em núcleos populacionais com vida social própria e limitado contato com a
população cristã. O mundo espiritual-religioso judaico manteve-se intacto, principalmente
na região rural onde os judeus viviam em suas próprias aldeolas, o shtetl, disseminadas em
uma extensa área geográfica. De certa forma o movimento “hassídico” surgido nos meados
do século XVIII havia impregnado o judaísmo da Europa Oriental com uma religiosidade
popular e pouco formal, mas com uma intensidade emotiva ímpar, e nesse sentido o rabi
hassídico tinha um poder enorme sobre sua gente, fazendo com que a vida comunitária
estivesse, em boa parte, dependente de sua orientação. Portanto, os imigrantes que vieram
daquela região se preocuparam em estruturar sua existência no país para o qual imigraram,
mantendo sua identidade judaica através da religião, mesmo que houvesse grupos
influenciados por ideologias seculares, socialistas ou nacionalistas. Enquanto isso, a velha
imigração dos países da Europa Ocidental do século XIX se assimilara profundamente,
deixando poucos vestígios, e seus descendentes se converteram, com o passar do tempo, ao
cristianismo, ou permaneceram indiferentes à religião245.
O mesmo, ainda que em menor grau, e devido a outras causas, teria ocorrido
com a imigração judaica marroquina da região amazônica. Mas, esta última resistiu ao
poder dissolvente do tempo, apesar da grande miscigenação havida entre seus
descendentes, conseguindo subsistir como comunidade religiosa até os nossos dias.
Para um levantamento inicial das sinagogas e rabinos, a partir dos inícios do
século passado, mesmo tendo a certeza de que os dados apresentados não são exatos e estão
longe de serem completos, devemos considerar duas fontes, sendo a primeira fruto de
interesse jornalístico do talentoso João do Rio, cognome de Paulo Barreto, que publicou em
1904 um livro sob o título “As religiões no Rio”, onde inclui um capítulo interessante sobre
as sinagogas e a vida religiosa dos imigrantes judeus vivendo na capital da República. A
imprecisão e o desconhecimento da religião judaica levaram o autor a fazer um relato
duvidoso, mas parte do que ele nos conta pode ser aproveitado para uma primeira
referência sobre a questão na cidade do Rio de Janeiro. Ele lembra a composição da
comunidade segundo os lugares de origem dos imigrantes, tais como os judeus franceses,
quase todos vindos da Alsácia-Lorena, marroquinos, russos, ingleses, turcos, árabes e
também os “armênios”, que supomos serem “romenos”, além de outras.
João do Rio menciona duas sinagogas, uma na rua Luís de Camões, 59, e outra
na rua da Alfândega, 369. A primeira ele diz ser do “rito argânico” 246, “entra-se num
corredor sujo, onde crianças brincam. Aos fundos fica a residência da família. Na sala da
frente está o templo, que quase sempre tem camas e redes por todos os lados”. Esta
descrição revela de certa forma a pobreza do templo que não contrasta com o da rua da
245
Nas “Memórias” de Jacob Schneider, um dos veteranos ativistas comunitários que chegou no início do
século passado , se reporta ao fato significativo de que a primeira Torá recebida pela associação Centro
Israelita do Rio de Janeiro, fundada em 1 de outubro de 1910, com judeus de origem asquenazita, em sua
maiorria, foi ofertada por Herbert Moses e era oriunda de uma associação de judeus da Alsacia-Lorena.V.
Falbel, N., Jacob Schneider e a comunidade judaica no Brasil, in Herança Judaica, setembro, 1982, n. 50,
p.57.
246
Esse “rito” é desconhecido e ,sem dúvida, trata-se de uma provável “criação” do autor. Cremos que ele
deveria ter confundido com a palavra “ortodoxia”, ou “rabínico”, em contraposição à “karaíta”, seita judaica
que remonta ao século VIII e que rejeita a “tradição oral”. Utilizamos obra de João do Rio da edição da Ed.
Aguilar, Rio de janeiro, 1976.
105
Alfândega, que o autor diz ser “muito mais interessante” e “ocupa todo o sobrado do
prédio, que é vulgar e acanhado”.
Além do mais, o nosso autor lembra o nome dos respectivos rabinos ou
chazanim (chantres). O da primeira era David Hornstein, que “cursou a Universidade
Talmúdica, (certamente uma ieshivá, ou escola talmúdica) é poliglota, professor,
correspondente de vários jornais escritos em hebreu e rabino diplomado na religião
judaica”. O outro é lembrado apenas sob o nome de Moisés e dono de “uma face espanhola
e um ar bondoso”. A pobreza desse último leva o nosso jornalista a concluir o seu pequeno
relato com uma frase reveladora da situação e das condições em que vivia, no início do
século, a maioria da imigração judaica: “nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia
de sinagoga, no fim da rua da Alfândega (...) Mas, nem por isso o fervor religioso era
diminuto, pois enquanto o chasan lia, com os pés juntos, sem mover sequer os olhos, com
uma voz ácida tremendo no ar, todos tinham nas faces sorrisos de satisfação”.
A Segunda fonte, digna de maior crédito, apesar das ressalvas que fazemos
adiante, encontra-se no periódico “A Columna”, fundado pelo professor David José Perez,
em 1916, em um artigo publicado sob o título de “O Mosaismo no Brasil” de autoria de
Justiniano de Meyrelles, importante funcionário da Diretoria de Estatísticas que forneceu os
dados levantados em relatório daquele departamento, apresentado ao ministro da
Agricultura, Indústria e Comércio, no ano de 1915247. Os quadros estatísticos publicados no
247
“A Columna”, n. 14, fevereiro de 1917, pp. 20-2; n. 15, março de 1917, pp.37-9. A melhor coletânea sobre
o tema, com ênfase no período medieval, foi organizada pelo saudoso professor da Universidade Hebraica de
Jerusalém, Haim Hilel Ben-Sasson, Há-Kehilá ha-Yehudit be-Yemei há-Beinaim (A comunidade judaica na
Idade Média), Soc. Histórica de Israel, Jerusalém, 1976.
247
Denunciações da Bahia, 1591-1593, Série Eduardo Prado, São Paulo, 1925, p.420.
247
Idem, Ibidem, p.489.
247
Idem, Ibidem, pp.277,382,392,475,537.
247
Denunciações de Pernambuco, 1593-1595, Série Eduardo Prado, São Paulo, 1929, p.75.
247
Denunciações da Bahia, p.449.
247
Idem, Ibidem, p.522.
247
Idem, Ibidem, p.522.
247
Denunciações de Pernambuco, p.481.
247
Denunciações da Bahia, p.292.
247
Idem, Ibidem, p.467.
247
Livro de Denunciações do Santo Ofício na Bahia no ano de 1618, Anais da Biblioteca Nacional, vol.
49,1927 (1936), p.97.
247
Sobre eles e sua atuação há uma vasta bibliografia de importantes autores, entre eles J. Mendes dos
Remédios , Os Judeus Portugueses em Amsterdam, Coimbra, 1911; A. Wiznitzer, Judeus no Brasil Colonial,
ed. Pioneira, São Paulo, 1966; J.Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Liv. Clássica
Editora, Lisboa, 1975; M. Kayserling, Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, Ktav Pub. House, N. York,
1971.
247
Wiznitzer, A., A Sinagoga do Recife Holandês (1630-1654), in revista Aonde Vamos?, 28 de maio de
1953, p.7; Lipiner, E., Reminiscências esculpidas em pedra, in Comentário, ano IX, v.9,n.3, 1968, pp.212-
220; Mello, J.A. Gonsalves de, A sinagoga do Recife holandês, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, n.149 (358):1-121, jan.-mar.,1988, pp. 52-56; Dantas, L., A primeira sinagoga das
Américas, in D. O. Leitura, São Paulo, 136, 12 de setembro de 1993.
247
Wolff, E. e F., A Odisséia dos Judeus de Recife, C. E. J., São paulo, 1979, p.143.
247
Sobre ele vide Roth, C., A History of the Marranos, Hermon Press, N.York, pp. 287 e 335.
247
Idem, Ibidem, p.289.
247
Até agora não encontramos fontes que confirmam as diversas datas aceitas para sua fundação.
106
referido artigo dão uma idéia, senão exata, pelo menos aproximada da vida religiosa dos
judeus brasileiros na primeira década e meia do século.
Devemos, antes de tudo, chamar a atenção para o fato de os quadros estatísticos
também revelarem os números dos membros afiliados às várias comunidades espalhadas
pelo território nacional, batizados (na verdade, circuncisões), casamentos, cerimônias,
fúnebres, festividades e reuniões culturais, sem no entanto podermos daí inferir o
verdadeiro número da população judaica em cada lugar mencionado, uma vez que nem
todos estariam afiliados às sinagogas ou comunidades selecionadas. Também os dados
apresentados foram fornecidos através de informação oral, sem que seu autor pudesse fazer
uma verificação mais precisa em outras fontes.
Por outro lado, temos outras fontes com a mesma informação histórica que
apontam vários erros existentes nos dados que nos fornecem os quadros que publicamos
nestas páginas.
Antes e após a Primeira Guerra Mundial, a imigração judaica se intensificou,
fazendo com que as comunidades crescessem e se desenvolvessem significativamente. O
processo de ascensão econômica e o conseqüente aumento no nível de vida dos imigrantes,
que prosperaram devido a sua dedicação extraordinária ao trabalho, levou também à
construção de sinagogas mais adequadas e dignas ao culto religioso, ao mesmo tempo,
adequadas para centralizar os eventos da vida comunitária.
QUADRO A
SEDES Datas da
Estados e Cidades Sinagogas Fundação
Distrito Federal
Distrito Federal Rio de Janeiro Centro Israelita do Rio de Janeiro 1 Out. 1910
Centro Israelita Marroquino 24 Set. 1911
Pará Belém Sinagoga Dedicação de Abraham 1889
247
Wolff, E. e F., Os Judeus no Brasil Imperial, C. E. J., São Paulo, 1975, pp. 52-55; Wiznitzer, A., Os
primeiros judeus no Brasil Império, in Aonde Vamos?, n. 730, 20 de junho de 1957, foi o primeiro a se referir
a essa carta.
247
Wolff...pp.236-40.
247
Idem, Ibidem, pp.286-88.
247
Idem, Ibidem, pp.257-8.
247
Falbel, N., Crônica do Judaismo Paulista, in Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil, F.I.E.S.P., São
Paulo, 1984, p. 107.
247
Nas “Memórias” de Jacob Schneider, um dos veteranos ativistas comunitários que chegou no início do
século passado , se reporta ao fato significativo de que a primeira Torá recebida pela associação Centro
Israelita do Rio de Janeiro, fundada em 1 de outubro de 1910, com judeus de origem asquenazita, em sua
maiorria, foi ofertada por Herbert Moses e era oriunda de uma associação de judeus da Alsacia-Lorena.V.
Falbel, N., Jacob Schneider e a comunidade judaica no Brasil, in Herança Judaica, setembro, 1982, n. 50,
p.57.
247
Esse “rito” é desconhecido e ,sem dúvida, trata-se de uma provável “criação” do autor. Cremos que ele
deveria ter confundido com a palavra “ortodoxia”, ou “rabínico”, em contraposição à “karaíta”, seita judaica
que remonta ao século VIII e que rejeita a “tradição oral”. Utilizamos obra de João do Rio da edição da Ed.
Aguilar, Rio de janeiro, 1976.
247
“A Columna”, n. 14, fevereiro de 1917,
107
ANO DE 1912
SEDES Pessoas
Estados e Cidades Casamen Cerimôni Festi Reuniõe filiadas B
Distrito tos as - s à a
Federal Fúnebres vida- cultuais sinagog t
des a i
z
a
d
o
s
Distrito Rio de Janeiro - 1 - 11 104 80
Federal (1)
Rio de Janeiro 9 1 - 6 19 42
(2)
Pará Belém 17 8 15 18 (3) (4)
2.190 400
Rio Grande Porto Alegre 7 3 5 9 52 (5)
do Sul 50
São Paulo São Paulo (6) - - - 9 52 100
Total 34 16 22 69 2.456 705
109
Observações:
(1) Centro Israelita do Rio de Janeiro. O presidente declarou não lhe ser possível
informar sobre batizados e cerimônias fúnebres.
(2) Centro Israelita Marroquino.
(3) As sinagogas Dedicação de Abraham e Porta do Céu realizam diariamente três
reuniões culturais.
(4) Elevam-se a 650 as pessoas residentes em Belém que aceitam o monoteísmo judaico.
(5) Incluindo as pessoas que seguem o judaísmo, embora não filiadas à Sociedade União
Israelita, eleva-se o total de 244.
(6) Segundo declaração da Delegacia de Estatística em São Paulo, não foi possível obter-se
informações dos batizados, casamentos e cerimônias fúnebres, porque a comunidade
israelita ainda não estava inteiramente organizada.
248
No artigo intitulado “Uma Carta de um Rabino Francês ao Imperador d. Pedro II”, publicada na revista
“Herança Judaica”.
249
A carta, bem como os glossários dos Salmos e do Gênesis, me foram cedidas pelo casal de historiadores
Egon e Frieda Wolff, que os encontraram no Arquivo do Museu Imperial.
250
O poeta e filósofo Yehuda Halevi, que viveu na Espanha (1075-1141), escreveu o famoso tratado teológico
Ha-Kuzari, no qual narra a conversão do reino Cazaro ao judaísmo. Salvatore de Benedetti traduziu a obra
poética de Yehuda Halevi ao italiano, e esta foi remetida a d. Pedro II.
251
Sobre o prof. Michele Ferrucci, não conseguimos apurar algo que pudesse levar a sua identificação e
tampouco conseguimos saber qual fora sua missão no Brasil.
252
O alfabeto “Raschi” é assim chamado por ser o tipo de escrita adotado nas glosas tradicionais do Velho
Testamento, de autoria do notável exegeta R’ Schlomo Itzhaqi (cujo acróstico é Raschi), que viveu na França
no século XI.
253
V. os textos ilustrativos anexos a este estudo.
111
vista do fato de que d. Pedro era um leitor apaixonado da Bíblia,254 e tudo indica que o
manuscrito que contém o glossário dos capítulos do Gênesis e do Salmo I corresponde ao
estudo preparatório para as versões latinas que o Imperador faria de alguns livros do Velho
Testamento, entre os quais do próprio Livro dos Salmos.255
Na busca de elementos para identificar o autor da missiva ao Imperador, isto é,
prof. Salvatore de Benedetti, encontramos junto à Universidade Hebraica de Jerusalém um
periódico de caráter cultural, impresso na Itália no século passado, o qual nos proporcionou
dados importantes. Trata-se do “Il Vessillo Israelitico”, que começou a ser publicado em
Casale em meados do século XIX, mais precisamente em 1852, que a partir de 1877, pelo
menos, ou talvez antes, recebia a colaboração de nosso professor, conhecido na Itália de seu
tempo como um excelente orientalista.256
De fato, Salvatore de Benedetti aparece citado como um dos participantes de
um Congresso de Orientalistas, realizado em Florença na Itália em 1878, ao lado de nomes
de destaque nessa área. Pelos artigos por ele publicados no “Il Vessillo Israelitico”,
delineia-se como um estudioso profundo e um conhecedor erudito do judaísmo.257 Além do
mais, também é um homem voltado para as questões atuais, e sobretudo àquelas que
concernem à vida comunitária judaica na Itália.258
Em 1881, o professor de Hebraico e orientalista, recebeu do ministro da
Educação Pública o título de Cavaleiro da Coroa da Itália, conforme notícia divulgada no
“Il Vessillo Israelitico”, e que mereceu uma nota biográfica, a qual permite traçar o perfil
da surpreendente atividade intelectual de nosso missivista. 259
Conforme nos informa o autor da nota biográfica, De Benedetti foi reconhecido
como estudioso de Literatura Semítica e como notável literato italiano por escritores como
De Sanctis, Vanucci, e orientalistas como Renan, Steinschneider, Derenbourg, Dukes,
Neubauer e outros, todos eles nomes representativos em seu tempo, com os quais manteve
contato intelectual.
Já em 1852, De Benedetti publicou um Annuario Israelitico e encetou sua
tarefa como tradutor de obras hebraicas para o Italiano. Entre essas traduções encontram-se:
Cancioneiro Sacro de Yehuda Halevi, publicado em 1871, livro que remeteu a d. Pedro II;
História de Rabi José, filho de Levi, lenda talmúdica traduzida e publicada no Annuario
della Società Italiana per gli Studii Orientali, 1872; A Lenda Hebraica dos Dez Mártires,
publicada no mesmo Annuario em 1873; Vida e Morte de Moises, lenda hebraica, Pisa,
1879.
Além desses trabalhos, devemos lembrar que foi autor de inúmeros artigos e
comentários, bem como de resenhas bibliográficas que escreveu para o “Il Vessillo
254
V. a respeito a monografia de Loewenstamm, Kurt, O Hebraísta no Trono do Brasil: Imperador d. Pedro II,
Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1956.
255
Conforme Loewenstamm na obra acima citada, p. 11.
256
No “Il Vessillo Israelitico”, 1877, pp. 66-67, aparece uma relação de “Cattedre di Lingua Ebraica e affini
nelle Università e negl’Instituti Superiori del Regno d’Italia”, onde se encontra, entre outras cátedras (na
Univ. de Florença, na de Pádua, na de Roma), a cátedra de Língua Hebraica na Univ. de Pisa, sob a orientação
do prof. De Benedetti.
257
Os temas de seus artigos no “Il Vessillo” versam sobre o Talmud e assuntos históricos, como por exemplo,
o artigo sobre o reino dos Cázaros, concernente à obra de Yehuda Halevi.
258
Pode-se observar esse seu traço de caráter pelos comentários e necrológios escritos para o “Il Vessillo
Israelitico”, 1879, pp. 176-178; 1880, pp. 208-210; pp. 239-242; pp. 273-275.
259
“Il Cav. prof. Salvatore De Benedetti”, in “Il Vessillo Israelitico”, 1881, pp. 309-310.
112
A CARTA AO IMPERADOR
Ao
Imperador Rei Pedro de Alcântara
Paz e benção, prestígio e glória,
260
Assim se expressa o autor da nota biográfica sobre De Benedetti, mencionada acima.
113
igual ao Rei Salomão, pois seguis os caminhos dele e vos abençôo com todo o meu
coração. E ao meu Deus elevo a minha súplica dizendo: Abençoai – Vós, que dais ao
homem o saber e que ensinais ao homem o discernimento – o Rei d. Pedro de Alcântara,
que ama o Saber e busca a Inteligência, ajuda os sábios em seus feitos, e sob cujas asas
abrigam-se os doutos; Deus da Luz, abençoai-o Rei que ama a Luz, dai a ele e a sua esposa,
nascida em nossa terra, longa vida, e que vivam os seus anos em bem-aventurança.
Paz a Vós, d. Pedro, paz a vossa casa, paz ao vosso reino e a tudo o que é
vosso.
Com respeito do coração de vosso servo que se prostra diante de Vós.
/===/
Devemos lembrar que D.Pedro II realizou uma viagem a Itália em 1877 quando teve a
oportunidade de entrar em contato com o tradutor da Divina Comédia ao hebraico, o sábio
judeu-italiano S.Formiggini, em 1869, que era um dos diretores do “Corriere Israelitico”,
editado em Trieste. No Arquivo Nacional no Rio de Janeiro encontra-se uma carta do
redator-chefe daquele periódico, S. Curiel, enviada ao Imperador em 22 de setembro de
1877 juntamente com o número do “Corriere Israelítico” que fazia referência à sua viagem
e a sua pessoa. A carta permaneceu inédita até 18 de maio de 1944, ocasião em que foi
publicada por Ernesto Feder, na revista Aonde Vamos?. Por revelar o contato de D. Pedro
II com personalidades do mundo judaico e seu interesse pela cultura hebraica reproduzimos
in totum essa interessante carta.
“Senhor!
O augusto e venerado nome de Vossa Majestade ressoa cercado de simpatia não só nas
terras que tem a ventura de estar sob seu cetro paternal mas em toda a parte onde há um
coração que sinta e um espírito que pense.
Em verdade o nome de Vossa Majestade Imperial significa amor e caridade, igualdade e
justiça, instrução e trabalho e portanto universal bem estar.
O “Corriere Israelitico” que há dezesseis anos se fundou em Trieste não é o último entre os
fervorosos admiradores de Vossa Majestade.
Ele tem acompanhado com o máximo interesse a recente viagem de Vossa Majestade e é
constante leitor dos seus atos magnânimos.
O devotadíssimo autor destas linhas, diretor do mencionado periódico, refratário a
encômios srvís, prometeu dedicar a Vossa majestade no último número um artigo em que
lhe manifesta a sua alta consideração.
Vossa Majestade, que já se dignou exprimir a sua bnevolência e indulgência a um dos
diretores do “Corriere Israelítico”, o Cavaleiro dr. Formiggini, autor da tradução hebraica
114
de Dante, não deixará certamente, na sua insigne bondade, de felicitar também ao subscritor
desta, dignando-se receber benignamente o exemplar anexo do seu jornal.
Invocando ao Deus Sebaot, glória, prosperidde e alegria para Vossa Majestade, para a
augusta Família Imperial e para todo o seu feliz Império, comovido repito:
Senhor, na tua força se alegrará o rei; E na tua salvação quão grande será o júbilo? O desejo
do seu coração lhe concedeste; E a petição dos seus lábios não lhe negaste.
Pois o premunes de bençãos excelentes; Pões-lhe na cabeça coroa de ouro fino; Pediu-te a
vida e lhe deste para todo o sempre.
Grande é a sua glória na tua salvação; Honra e magestade pões sobre ele.
E com isto protra-se aos pés do seu trono, Senhor, rendendo a Vossa Majestade todas as
homenagens do seu respeito.
Trieste, 22 de setembro de 1877
o atento servidor de Vossa Majestade
A. di S. Curiel
Redator-chefe do “Corriere Israelítico”
O Imperador respondeu a essa carta num ofício ao Visconde de Porto Seguro, que
representava o Brasil na Corte austriaca, que nada mais e nada menos era o nosso
historiador Varnhagen.
115
surgiu o nome de Jacob Zlatopolsky, como imigrante vindo com o navio Ibéria ,via
Southampton, ao Rio de Janeiro, em 7 de junho de 1891 e chegou a São Paulo em 10 do
mesmo mês. De resto foi examinar o Livro de Matrícula dos Imigrantes entrados na
Hospedaria do Estado de São Paulo.261 Jacob, que na relação dos imigrantes é designado
como sendo alemão, chegou solteiro ,com 24 anos, e passado certo tempo ele aparece
como empresário bem sucedido juntamente com C. Manderbach como “fabricantes de
livros em branco, impressores e negociantes em papelaria e artigos de escritório... de ótima
reputação, não só no Estado de São Paulo, mas também nos Estados de Minas Gerais,
Paraná, Santa Catarina, Goiás e todo o norte do Brasil. Os seus estabelecimentos , onde
trabalham mais de 100 operários, encarregam-se de qualquer trabalho de impressão,
encadernação, fabricação de livros em branco, envelopes, blocos, etc. Importam papéis em
larga escala; são os únicos agentes no brasil das maquinas de escrever marca “Adler” e
únicos depositários no país dos tipos de impressão de fundição “Gentzsch & Heyse”, de
Hamburgo. O armazém e oficinas estão situados à rua de são bento, 31, num prédio cujos
fundos vão até à rua Libero Badaró, 54.A casa foi fundada em 1899.O Sr. Manderbach,
cidadão alemão, está no Brasil há 20 anos e há 16 se ocupa de impressão e papelaria. O Sr.
Zlatopolsky, nascido no sul da Rússia, há 22 anos se acha no Brasil; sempre se ocupou
deste ramo de negócio e desde o ano de 1908 faz parte da firma C. Manderbach & Cia.”262
Sabemos, porém, que em 25 de maio de 1909, ele escreveria a Central do Fundo Nacional
Judaico, sediado em Colônia, na Alemanha, uma carta com o timbre da empresa Klabin
Irmãos referente a atividade sionista em São Paulo, sobre a qual diz ser inexistente, exceto
as campanhas para o mencionado fundo.263 O nome de Jacob Zlatopolsky e sua família
aparece no periódico “A Columna” relatando um festival realizado em benefício dos
correligionários vítimas da Primeira Guerra Mundial.264 O navio Ibéria, pertencente a
Pacific Steam Navigation Company, viajou 24 dias, saindo de Liverpool, conforme os
dados que temos no registro do movimento na Repartição Central das Terras e
Colonisação.265 O número de passageiros judeus que desembarcou no Rio em 7 de junho,
para passar pela quarentena da Ilha das Flores é de 221, incluindo mulheres e crianças. Em
São Paulo, procedentes em sua maioria absoluta do Rio, viriam 218 pessoas, no dia 10 de
junho, contando com alguns poucos que vieram com o navio Argentina (família Levine
composta de 4 membros, chegada em 1/6/1891, procedente de Hamburgo) e com o navio
Strassburg (um casal e um passageiro). Comparando as relações de passageiros que
desceram no Rio de Janeiro e os que desceram em São Paulo, logo vemos que em sua
maioria eram os mesmos, havendo uma diferença de 52 nomes do Rio que não constavam
na lista de São Paulo e 61 nomes de São Paulo que não constavam na lista do Rio. Assim
sendo podemos calcular que chegaram, aproximadamente, cerca de 280 pessoas no total,
261
No Livro no. 23, correspondente ao período de 26 de maio a 29 de junho de 1891. Surpreendentemente
estão registrados 218 imigrantes que os identifiquei como judeus , sem designação religiosa específica, tal
qual encontramos nos Livros correspondentes à imigração de 1905.
262
Impressões do Brazil no Século XX, Lloyds Greater Britain Publishing Company Ltd., London, 1913, p.
700. Ele aparece na galeria de retratos dos empresários paulistas na p. 711.
263
Arquivo do Central Zionist Archives, Jerusalém, doc. KKL 1/18.
264
“A Columna” ,3 de novembro de 1916, p.186 e “A Columna”, 1 de dezembro de 1916, p.198, no qual a
redação assinala “os importantes serviços prestados pelo Sr. Jacob Zlatopolsky e sua Exma. Família,
ornamento da boa sociedade israelita de S.Paulo, por ocasião do festival pró-vítimas realizado a 15 de outubro
último. Podemos afirmar que em grande parte a ele e à sua Exma. Família se deve o bom êxito desse festival.”
265
RV 45, referente ao navio Ibéria, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
117
ainda que alguns nomes parecem ser alterados em sua grafia original. A lista do Rio inclui
as profissões dos passageiros que ,como já dissemos, saíram de Liverpool, constando que
eram em sua maioria trabalhadores sem profissão definida, com exceções de alguns aos
quais se indica ser alfaiate, vidraceiro, sapateiro, comerciante, etc. A designação da
nacionalidade na lista dos imigrantes de São Paulo aponta como sendo a maioria de
alemães e poucos austríacos e poloneses, enquanto que na do Rio de Janeiro divide-se entre
russos e alemães e alguns poucos austríacos e romenos. Porém na lista de São Paulo parte
dos que aparecem como alemães são denominados russos na lista do Rio, o que nos leva a
concluir que efetivamente em sua maioria eram russos de origem e que teriam emigrado da
Rússia para a Alemanha266, seguindo daí para a Inglaterra. Na mesma data chegaria o navio
Strassburg ao Rio de Janeiro , via Bremen, Alemanha, no qual viria uma grande leva de
russos cristãos267 com destino para o Estado do Paraná, constituindo uma imigração
organizada com fins de colonização agrícola promovida pelo governo.
Qual teria sido o destino desses imigrantes? É uma questão permanente, que se levanta,
naturalmente, ao estudioso da imigração judaica no Brasil em relação às levas mais
antigas. Como sempre , não temos uma resposta segura para a mesma, pois, para tanto
temos de saber o quanto de descendentes deixaram, se permaneceram no país, ou se
aventuraram a outros lugares.
Somente uma pesquisa minuciosa sobre cada família poderá nos dar uma resposta. No
entanto há fortes indícios de que o processo de assimilação e aculturação das imigrações do
século passado XIX, abrangendo a dos judeus marroquinos, a dos alsacianos e as primeiras
levas provenientes da Europa Oriental, se deu numa escala bem maior, deixando poucos
traços de sua identidade de origem.
Porém tudo indica que a narrativa que encontramos na obra do famoso dramaturgo e
escritor de língua ídiche Peretz Hirschbein pode nos dar uma resposta ao enigma sobre essa
imigração. Transcrevo literalmente o que nos relata Hirschbein em seu livro “FunVaite
lender:Argentine, Brazil, Yuni,November 1914” , pp.177-8: “ No ano de 1890 agentes do
governo brasileiro começaram a difundir notícias entre os imigrantes judeus na Inglaterrra,
que no Brasil se recebe gratuitamente terra e para a terra dinheiro, moradias, animais e tudo
o necessário; que no Brasil corre leite e mel e por isso quem quizer viajar será levado para
lá com dignidade às custas do governo. Também informaram que é importante que tenham
uma grande família; quanto mais pessoas que alguém possua em sua casa mais terra
receberá.
A propaganda teve grande influência. Ainda no mesmo verão partiu do porto de Liverpool
o navio “Himbéria”(sic) levando acima de 1.000 almas judias. A maior parte era de alfiates,
tintureiros (passadores sw roupas). O que tinha pequena família emprestava, antes de viajar,
algumas filhas ou filçhos de algum bom amigo. Viajaram com a certeza de encontrarem sua
felicidade. Em 5 de julho chegou a primeira parate ao Brasil nacidade portuária de Santos e
de lá foram levados à São Paulo. Os levaram a grande Casa dos Imigrantes pertencente ao
governo, e os dias amargos tiverram início:
Na Casa dos Imigrantes encontraram um grupo de polacos que fugiram dos lugares nos
quais os judeus deveriam seer enviados. Uma que o governo indicou o lugar disponível e
selvagem:- Isto vocês recebem, e a partir daí vocês devem ajudar a si mesmos.
266
Alguns nomes sugerem que são famílias judias alemãs, ou russas que ficaram certo tempo na Alemanha,
assim como ocorreu com outros que viveram certo tempo na Inglaterra e acabaram adotando nomes ingleses.
267
Aparecem sob a designação de “católicos”, mas provavelmente são ortodoxos.
118
Mais do que terra eles não deram. Isso eles souberam por mrio dos poloneses que naquelas
terras que querem mandá-los predomina a febre amarela e pessoas falecem como moscas.
Entrementes chegou um segundo navio com imigrantes e logo após um terceiro. O
n´[úmero de judeus atingiu a cifra de 4.000 pessoas. As pessoas não queriam se deslocar da
Casa dos Imigrantes. Doenças começaram a surgir.Crianças faleceram. E quando os
responsáveis vieram e viram como as mães judias se encontram sentadas sobre o chão e
choram por suas pequenas crianças recaiu sobre eles um medo dos judeus e os temendo
expulsaram a todos eles da Casa dos Imigrantes.
O resultadfo logo ficou claro:
Uma parte que possuía meios voltou apressadamente para a Europa, outra continuou
viagem para a Argentina; uma parte se dirigiu a Santos para trabalhar no porto e morreram
de febre amarela. E uma parte se aproximou de um grupo de judeus ricos e estáveis que se
ocupavam com o tráfico de escravas brancas.Alguns foram trabalhar em plantações de café
e ali desapareceram seus rastros. Somente algumas dezenas encontraram de alguma forma
um caminho e hoje em dia ocupam um lugar respeitável na sociedade.” 268
Apesar da discrepância de data da vinda dessa imigração que para Hirschbein deu-se no ano
de 1890 e nossa documentação comprova que foi 1891, bem como a enorme diferença entre
o número de imigrantes, 4.000 para Hirschbein e o número bem menor que apuramos nas
fontes citadas em nosso trabalho, além da distorção do nome do navio que trouxe a primeira
leva, seguramente podemos concluir que trata-se da mesma imigração. Pena é que
Hirschbein não nos declina sua fonte de informação mas certamente ele a recebeu
oralmente de pessoas que estiveram envolvidas com essa ou tomaram parte nessa
imigração.
268
Hirschbein,Fun vaite lender: Argentine,Brazil,Yuni,November,1914,N.York, 1916, red. Book
Renaissance,N.Y., s.d., pp.177-8.
119
p.99
Goldberg Morris 18
Morris 20
irmão Captam 21
cunhado Simon 23
cunhado, Isaac 32
120
Abrahamson
cunhado Meyer 19
Truhpand Filipe 42
Gidle 35
Alter 8
cunhado, Baher Jacob 24
Harrison David 18
Levy Morris 34
Misja 32
Julius 17
Serlang ou Isaac 24
Seshansky
Sarah 20
cunhado Pinchos 20
Charles 20 ou
24
Lavetzky Abraam 36
Milli 28
Louis 13
Barikohansky Isaac 23
irmão Filippe 17
Fidler Harris 26
Deine 24
Lena 1
irmão Abraam 20
irmão Morris 20
Liberman Abraham 24
Sarah 22
Bernstein Samuel 22
Malkes Harris 26
Anna 26
Jacob 5
irmão Samuel 32
primo Benjamin 23
Mann Abraham 38
Ester 33
Rebecca 10
Max 5
Hyman 1
Marck 19
p.101
Harris Salomon 38
Rachel 35
Max 36
Katz Mendel 27
121
Rebecca 24
Harris Salomon 21
Leon Gabrielen 20
Zlatopolsky Jacob 24
Kenefsky Stroime 21
Herman Louis 23
Pagoda Joseph 26
Fanny 22
Salomon 3
Rebecca 1
irmão Natan 19
Popitz Isac 30
Belle 28
Pearl 8
Maier 7
Fegge 3
Izkovitsch Jacob 25
Zatz 31
Popitz Aaaron 23
mãe Haia 54
Glück Salomon 36
Hanna 37
Gretschen 12
David 14
Goldberg Jacob 26
Fanny 20
Julia 2
Isaac 1
Hornstein Harris 32
Esther 32
Sarah 12
Nathan 5
Irmão Simon 20
Zobolsky Israel 37
Becker Harris 19
p.102
Parresky Hyman 19
Anna 18
Bensky Malkes 22
Pagora Newton 19
Leah 18
Meyer Margolin 25
Blume 20
irmã Jenny 18
122
Schaye Henrich 27
Clara 25
Herman 2
Block Isaac 21
Mary 20
Lirvein Arron 26
Etha 21
irmão Max 24
irmão Nathan 18
Morritz, austríaco Benjamin 24
Fanny 20
irmão David 18
irmã Anna 19
David 4
Sarah 1
agregado Jacob 22
primo Heine 21
Freiman, polaco Abraam 24
eio com o
Strassbug
p.103
Harris Salomon 36
Rachel 34
imã May 32
Charles 14
Galinsky, polaco Rock 35
veio com o
Strassburg
10/6/1891
Julia 33
Weisbrod Zelick 43
Berry Jacob 22
Cohen Nathaniel 21
irmão Wolf 22
Barman Abraham 20
Goldstein Louis 24
Jenny 21
Elias 2
Rubin Max 24
Sarah 23
Israel 11
Max 8
Milly 5
Baschavsky Nathan 26
Anna 26
Makovsky Louis 25
Harriet 18
Alfred ?
269
Sobre Maximilian Nothmann foram levantados alguns dados pelo casal Egon e Frieda Wolff, no seu livro
“Judeus nos primórdios do Brasil República”, Rio de Janeiro, 1979.
125
270
Encontramos no “Central Zionist Archives de Jerusalém” (pasta HN VIII/110) uma carta em alemão
datada de 24 de novembro de 1892 dirigida a Theodor Herzl a qual transcrevemos abaixo. Ela revela uma
correspondência havida entre ambos, quando Boxer se encontrava no Brasil. A carta foi expedida do Rio de
Janeiro através do “Bank für Deutschland”:
“Caro Theodor,
Recebi hoje sua carta datada de 3 deste mês. Todas as suas anteriores chegaram às minhas mãos,
porém duvido que V. tenha recebido as minhas duas anteriores.
Recebi com alegria e orgulho a notícia de sua nomeação para o cargo de correspondente em Paris do
“Neue Freie Presse”, tão honrosa que compensa em muito a ti pelas mágoas que seu amor próprio
possa ter sofrido em várias ocasiões. Eu tive conhecimento da vaga, e pensei comigo: seria a coisa
certa para Theodor. Porém, não pensei que você fosse candidatar-se para o cargo, nem tampouco que
a “Neue Freie Presse” fosse levar a oferta a sua casa. É justamente nisso que vejo o reconhecimento
de teus serviços, e isso não pode ser subestimado. Você encontrará nesse terreno enormes
dificuldades, mas você pertence àquela raça que tudo pode, quando necessário. Eu poderia compor
um pequeno catecismo das minhas ricas experiências como correspondente, mas toda teoria é, em
tais situações de vida, muito pobre, e embora seja muito antiga e respeitável, é sempre ridicularizada
pela prática da vida e do momento. Confio em que você vencerá, ainda que seja uma batalha difícil, e
deve preparar-se para tanto. Escrever-lhe-ei sobre mim em uma outra ocasião! Eu também cheguei a
um ponto que é necessário mostrar que se sabe o que se quer. Mas quem não é homem, nunca o será,
e quem o é, resolve as coisas com facilidade. Pois, veremos. Tudo de bom, e escreva-me logo. Eu
também escreverei tantas vezes quantas puder.
Seu
O.”
126
levando-se em conta sua experiência agrícola e sua capacidade física. Ao mesmo tempo,
pedia que viessem quatro judeus russos, conhecedores da língua alemã, que pudessem
auxiliá-lo no momento em que tivesse de receber o primeiro grupo de colonos, tendo fixado
sua chegada para abril de 1892.
Mas, toda a missão de colonização de Oswald Boxer não levou a nenhum
resultado prático, pois a fatalidade quis que o jovem jornalista contraísse febre amarela,
vindo a falecer em 25 de janeiro de 1892, sendo enterrado no Cemitério dos Protestantes de
São Paulo272.
Sua morte deixou consternado o pequeno círculo de seus amigos e frustrou
todas aquelas autoridades governamentais que levaram a sério seu plano de colonização.
Em 26 de janeiro daquele ano, o Diário Popular de São Paulo expressava o sentimento geral
daqueles que o conheceram: “Vítima de febre amarela, infecção com a qual veio do Rio há
dias, faleceu ontem, nesta capital, o distinto cidadão austríaco Oswald Boxer. Enviado pelo
Comitê Central de Berlim que cuida da colocação dos israelitas russos, e pelo Barão de
Hirsch, o ilustrado jornalista que acaba de falecer, nos poucos dias que esteve entre nós,
captou gerais e dedicadas simpatias; a sua morte, que lamentamos profundamente, causou
sincero pesar no círculo de amigos, e vai, talvez, prejudicar muito São Paulo, que está a
ponto de perder sua corrente imigratória que para aqui caminhava. À sua família, em
Vienna d’Áustria, enviamos os nossos sinceros pêsames”.
272
Não se sabia o lugar e o cemitério onde fora enterrado até localizarmos o livro de registro de óbitos, Livro
C-3, folha 127, do Registro Civil de Santa Efigênia.Fora sepultado no Cemitério Protestante, ao lado do
Consolação. O registro de óbito diz que “aos 27 de janeiro de 1892, compareceu Emília Blattman e declarou
que à rua da Conceição número seis, às seis horas da tarde, faleceu no dia vinte e cinco do corrente Osvald
Boxer, natural da Áustria, com trinta e dois anos, agente de Imigração, solteiro, filho legítimo de Maurício
Boxer, de tifo amarelo”.
128
Uma das pessoas que mais se destacaram no judaísmo paraense como homem
voltado às questões sociais e comunitárias relativas à imigração israelita no norte do país
foi o major Eliezer Levy.
Oswaldo Aranha
Todos os partidos políticos foram extintos em 1937, mas pouco tempo depois
foi fundado o Partido Social Democrático, chefiado no Pará por Magalhães Barata. Eliezer
Levy ingressou no novo partido e passou a ter uma posição de destaque, tornando-se grande
amigo daquele líder, conseguindo ao mesmo tempo trazer seu velho companheiro, o
273
A referência sobre Eliezer Dabela encontra-se na obra de Abraham I. Laredo, Les noms des juifs du
Marroc, C. S. I.C.-Instituto B. Arias Montano, Madrid, 1978, p.483.
129
advogado Álvaro Adolfo da Silveira, ao mesmo partido. Este último seria eleito mais tarde
senador da República pelo PSD. Álvaro Adolfo foi designado para fazer parte da comitiva
que acompanharia Oswaldo Aranha à ONU, como seu assessor político.
Sultana Rosenblatt relata que “na hora da votação para o reconhecimento do
Estado de Israel, Álvaro Adolfo sentiu que conhecia minuciosamente o assunto, sem se
lembrar bem como e por quê. Após uma retrospectiva, passou por sua lembrança o
escritório da rua 13 de Maio, onde Eliezer trabalhava e onde se discutiam assuntos sobre a
criação de Israel. Álvaro Adolfo era coordenador da votação e conseguiu descobrir três
países que votariam contra: pediu a Oswaldo Aranha que suspendesse a sessão, e após
vários dias de trabalho na conquista dos adversários, conseguiu dobrá-los. Continuada a
votação, o resultado foi: “mais dois votos favoráveis e um em branco (...)”, o que levaria a
criar a maioria necessária para a formação de um Estado Judeu.
A narrativa dele é confirmada em um aparte na Câmara dos Deputados do Rio
de Janeiro, em 15 de maio de 1973, feito pelo Dr. João Menezes, sobrinho e filho de
criação de Álvaro Adolfo da Silveira e seu sucessor no escritório de advocacia e no Partido
Social Democrático. João Menezes, em seu aparte no discurso do deputado Rubem Medina,
disse que “o Pará tem ligação com a criação do Estado de Israel. Revelo o fato neste
instante, ao plenário da Câmara, para que faça parte do esplêndido discurso de V. Exa. O
Sr. Álvaro Adolfo da Silveira, ex-senador pelo Estado do Pará, foi o homem que, em
companhia de Oswaldo Aranha, e designado por ele, coordenou a votação da criação do
Estado de Israel. Há um fato interessante em tudo isso. Quando voltava das Nações Unidas,
Oswaldo Aranha, em trânsito em Belém do Pará, recebeu homenagem das mais carinhosas
da colônia israelita, que lhe ofereceu uma corbeille de flores em reconhecimento do
trabalho que havia feito. No discurso de agradecimento declarou aos israelitas do Pará que
cometiam grave erro: “aquela homenagem deveria ser tributada ao senador Álvaro Adolfo
da Silveira, o homem que havia coordenado tudo na ONU para a criação do Estado de
Israel. Este é o aparte que desejava dar, com as minhas homenagens àquele grande povo”.
274
A carta a encontrei no Central Zionist Archives e faço referência ao seu conteúdo em outro lugar de meu
trabalho.
130
Ensino de Hebraico
131
Nova Geração
275
Álvaro de Castilho nasceu em Paraíba do Sul em 29 de janeiro de 1878 e faleceu em 30 de outubro de
1947. Cursou o anexo da escola Politécnica do Rio de Janeiro até os dezesseis anos, vindo a trabalhar mais
tarde na Prefeitura e na Câmara Municipal do Distrito Federal. Exerceu o cargo de diretor do Patrimônio
Nacional a pedido e foi adepto da religião Nova Jerusalém até o dia de sua morte. Álvaro de Castilho foi
colaborador íntimo de David Perez e juntamente com ele fundou o periódico “A Columna”, podendo ser
considerado, devido a sua atuação em favor do sionismo e da comunidade judio-brasileira, como um dos
“hassidei umot ha-olam” em nosso país.
133
“As últimas palavras do Sr. Álvaro de Castilho foram cobertas por uma salva
de palmas. Fizeram-se ouvir ainda outros oradores dando expansão aos seus sentimentos
nacionalistas.
“Em seguida, sob a mesma presidência do Sr. Álvaro de Castilho, procedeu-se
à eleição do Comitê Organizador que tem de superintender os trabalhos preparatórios do
Congresso.276
“Foram eleitos por unanimidade de votos: presidente, Isidoro Kohn; vice-
presidente, Samuel Galper; primeiro-secretário, Ambrósio M. Ezagui; segundo-secretário,
Benjamin Snitkovsky; tesoureiro, Lázaro Duek; vice-tesoureiro, Marcos Nigri; membros do
conselho fiscal, Moysés Mussafir, Marcos Fineberg, Jacob Schneider e Sinai Fiengold.”
IDÉIA PREPARATÓRIA
A verdade é que o Congresso não chegou a ter uma atuação efetiva, mais serviu
como idéia preparatória para a criação de uma Organização Sionista mais ampla que
expressaria os sentimentos nacionalistas do judaísmo brasileiro. O comitê organizador do
1.º Congresso recebeu cartas de solidariedade de vários lugares e Estados como Bahia, São
Paulo, Araraquara, Curitiba, Pará, Amazonas, Pernambuco, Ceará e outros. Em Curitiba
fundou-se um comitê regional que deveria tratar dos assuntos relativos aos programas do
Congresso naquele local, sob a responsabilidade de Max Rosenmann, Baruch Schulman e
Júlio Stolzenberg. A imprensa brasileira não deixou de anunciar por várias vezes a intenção
de reunir o congresso e divulgou amplamente a idéia na sociedade brasileira. Em 11 de
novembro de 1917, a Tiferet Sion, no Rio de Janeiro, recebeu um telegrama assinado por
Sokolov e Weizman, que informava sobre o conteúdo da conhecida Declaração Balfour
cujo teor era o seguinte:
“O governo inglês fez a seguinte declaração:
“O governo de Sua Majestade vê com bons olhos o estabelecimento na
Palestina de um governo nacional para o povo israelita e empregará os seus melhores
empenhos para facilitar o cumprimento desse objetivo, ficando claramente entendido que
nada se fará que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não
israelitas na Palestina, ou os direitos políticos adquiridos pelos israelitas em outro país.
“É conveniente fazer pública esta declaração, na presente ocasião, de modo a
ficar bem divulgada. (Assinados) Sokolov-Weizmann.”
Sinai Feingold, que substituiu a Júlio Stolzenberg na presidência da Associação
em 1916, convocou uma assembléia presidida por David Perez. Nessa assembléia ficou
resolvido que se mandaria uma mensagem de agradecimento a Sua Majestade britânica, por
intermédio de seu ministro, e que seria apresentada a solidariedade da colônia israelita do
Brasil por uma comissão formada por David J. Perez, Isidoro Kohn e Jacob Schneider. A
mensagem era a seguinte:
“Exmo. Sr. Ministro de Sua Majestade Britânica no Brasil – Ao impulso de
poderosa ação emocionante causada pela comunicação oficial que os Leaders do Sionismo
276
Duas circulares foram publicadas, uma em português e outra em ídiche, esta última manuscrita pois não
havia tipografia com caracteres hebraicos no Rio de Janeiro daquele tempo. Pela carta do Comitê
Organizador, em ídiche, assinada por Benjamin Snitkovsky e dirigida ao Comitê Paranaense pró-Congresso
Israelita do Brasil, vemos que se formaram comitês de apoio em vários lugares.
134
se dignaram de nos fazer, comunicação essa que encerra a mais esperançosa das
promessas que têm alimentado o longo peregrinar do Povo Hebreu, nós os israelitas desta
capital, interpretando igualmente o sentimento dos do Brasil, vimos até V. Exa. apresentar-
vos o mais sincero agradecimento, hipotecando nossa inteira solidariedade ao governo de
S.M., solidariedade com que de há muito conta o governo britânico por ter sido sempre o
paladino dos povos oprimidos. É sabido que, depois da volta dos judeus à Inglaterra, sob a
égide de Manassé Ben Israel, no governo de Cromwell, nunca mais esse país deixou de nos
proteger e concorrer com sua poderosa ação para minorar os males que sofríamos em
outros países, quando não podia de todo eliminá-los. Finalmente, coroa a sua política, que
neste momento é a da maioria dos aliados, assegurando-nos a restauração da antiga Sião.
“A colônia israelita no Brasil não é grande e forte como a sua co-irmã dos
Estados Unidos, mas sente como essa o mesmo entusiasmo, e desvanecida apresenta ao
Magnânimo Monarca que está à frente dos destinos da Grã-Bretanha a sua humilde
dedicacão afeiçoada, assim como todo seu fraco esforço.
“Esperando que V. Exa. se dignará de transmitir a Sua Majestade Britânica e
ao seu governo as expressões deste nosso agradecimento, subscrevendo-nos com a mais
alta estima e consideração.
“Assinaram esta mensagem: o Presidente da Assembléia Sionista que
deliberou sobre a atitude a tomar, e mais os Presidentes da Tiferet Sion, do Comitê
Organizador do Primeiro Congresso Israelita no Brasil, da União Guemiluth Hassadim
(do Rio), do Comitê Pró-vítimas do Centro Israelita, da Beth Jacob, da Machziqué Hadath,
da Biblioteca Schalom Aleichem, da Hadat Israel, da Ezra Israel, da Israelita Syria,
representante da Guemiluth Hassadim de Itacoatiara – Amazonas, e dos indicados para
esse fim pelos israelitas de vários Estados”.277
277
“A Columna”, n.ºs 21, 22, 23, 24, set, out, nov, dez. de 1917.
135
VISITA AO EMBAIXADOR
“Em 3 de novembro de 1917 (ele se enganou, pois foi no dia 11) recebemos
telegrama de Londres assinado – Weizmann-Sokolov, comunicando a declaração Balfour,
pedindo que enviássemos agradecimentos ao Rei e, também, que fôssemos agradecer o
Embaixador da Inglaterra no Brasil. Esse telegrama nos causou grande alegria. Vimos nele
o começo da realização do sonho judaico, a profecia de Herzl. Também os não-sionistas
participavam dessa alegria. Preparamos um memorandum com assinaturas de 15
instituições (queríamos dar a impressão de grande coletividade) pedindo uma audiência ao
embaixador da Inglaterra, o qual pediu o nome das quinze, mas confirmou somente dois
nomes: do Dr. Perez e o meu nome. Lá chegando, fomos recebidos pelo próprio. Na
demorada visita citou os nomes de eminentes judeus ingleses: Disraeli, Montefiore e outros,
comentando a Declaração Balfour, afirmando que o povo inglês era muito amigo dos
judeus. Externamos nossa imensa satisfação em contar com tão bons amigos como os
ingleses e lhe entregamos um memorandum dirigido ao Rei. Também entregamos uma
cópia do mesmo a uma agência americana de notícias, que o publicou nos mais importantes
jornais do país.
“Neste mesmo dia, o Deputado Maurício Lacerda, no seu longo discurso na
Assembléia, comentou a Declaração Balfour – sendo calorosa e demoradamente aplaudido
por todos os deputados.
“No transcorrer da guerra, o exército inglês, sob o comando do General
Allenby, entrou em Israel (naquele tempo Palestina) tendo à frente uma Legião Judaica.
Isso foi um grande acontecimento e bastante alegria para os judeus do mundo todo.
Lacerda, na ocasião, numa das reuniões do Senado e da Câmara, propôs saudar a Inglaterra
pela vitória de Allenby e pela Declaração Balfour, cuja proposta foi aceita com
unanimidade. Isso, para nós, judeus brasileiros, foi um grande triunfo político, sobre isso
muito se comentou na imprensa judaica Argentina, criticando os dirigentes das
coletividades judaicas locais, que não estavam no nível, apesar de muito menor, da
coletividade judaica brasileira.”
IDEALISMO
nome a uma escola judaica que havia fundado naquele lugar. 2784 A partir de 8 de dezembro
de 1918 criava um periódico em língua portuguesa de orientação netamente sionista com o
nome de “Kol Israel”. Esse período, que durou vários anos, não deixara de representar as
idéias de seu fundador, um idealista com profunda sensibilidade para captar o momento
histórico que o povo judeu estava vivendo, ainda que isolado e solitário na vastidão daquele
território.
278
A carta do major Eliezer Levy e a resposta de Weizmann encontramos no Archion Ha-Tzioni (Central
Zionist Achives) em Jerusalém, pastas Z 3/785. Falta um estudo sobre a importante atuação que teve na
história do sionismo no Brasil e o papel ímpar que desempenhou nas comunidades judias da região da
Amazônia.
137
279
Sobre os inícios do movimento sionista no Brasil que antecede os anos 20 tratamos em outros lugares, em
especial no artigo “Early Zionism in Brazil, the Founding Years, 1913-1922 in American Jewish Archives,
vol. XXXVIII, n. 2, nov. 1986, pp.123-136.
280
A Ahavat Sion compoz a sua primeira diretoria em 5 de outubro de 1918, figurando como presidente
A.Ribinik (que criará mais tarde com a visita do Dr. Wilensky ao norte do Brasil duas associações sionistas
em Maceió), Menassés Bensimon, vice-presidente, Eliezer Levy, secretário, José Bensimon, tesoureiro. O ato
de posse teve lugar na Associação Beneficente Israelita com a presença da colônia local e com uma
conferência de Isaac Wolfinson. Na ocasião usaram da palavra Menassés Bensimon, Eliezer Levy e A.
Ribinik. O noticiário do Kol Israel, número 8 de dezembro de 1918, acrescenta que tanto na abertura quanto
no encerramento “foi cantado por um coro de 30 gentis senhoritas e meninos o Hino Nacional Sionista
acompanhado por uma orquestra composta dos Snrs. J. Nahmias, A. Benoliel e senhorita Alita Levy.”
281
Ha-Archion há-Tzioni, doravante abreviado como A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche de 26/1/1920.Como
parte do plano de se apresentar como o centro natural para uma Federação Sionista no Brasil foi publicado no
jornal Dos Idishe Folk, de Nova York, um artigo sobre a comunidade judaica do Paraná no qual se destacava
o papel de Júlio Stolzenberg em sua formação e na criação da entidade sionista local. V. A.Z. Z 4/2350, artigo
em ídiche.
282
A.Z., Z 4/2350, carta em hebraico de 18/3/1920. Em 17 de março de 1920 a Central de Londres escrevia ao
Bureau do Fundo Nacional, em Haia, sobre as pretensões da Shalom Sion mas observando que era “prematuro
e inoportuno o reconhecimento da mesma como Federação.” A.Z., Z 4/2350, carta em francês de 16/3/1920.
138
283
A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche escrita por Maurício Klabin, em 22/10/1920 e resposta em ídiche do
Executivo Sionista em Londres de 25/10/1920.
284
A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche de 17/7/1920.
285
A.Z. Z 4/2350, relatório em inglês de 14/7/1920.
286
A.Z., Z4/2350, carta em hebraico de 23/10/1921; carta em hebraico de 26/10/1921; carta em inglês de
7/11/1921; carta em ídiche de 23/11/1921; carta em hebraico de 3/1/1922.
287
Sobre o major Eliezer Levy, vide nesta mesma coletânea o artigo “As muitas histórias do major Eliezer
Levy.”
288
Arquivo David J. Perez, microfilmes no acervo do autor.
139
grupo de ativistas do Rio de Janeiro. Eduardo Horowitz, dotado de espírito nobre, homem
culto, com uma boa experiência de tipógrafo, se atiraria de corpo e alma ao
empreendimento. Ele havia chegado ao Brasil em 1916, vindo dos Estados Unidos, com
uma excelente bagagem de conhecimentos da cultura tradicional judaica e universal e um
bom domínio do hebraico. Desde o início ele se ligou a Jacob Schneider movido pelos
ideais nacionalistas e passou a participar ativamente na vida comunitária judaica do Rio de
Janeiro, onde fixou residência. Eduardo Horowitz apareceria como mentor intelectual do
movimento ao lado de Jacob Schneider e serviria como secretário geral durante os anos de
estruturação da Federação Sionista do Brasil desde o seu surgimento, em 1922. Até quase o
fim de sua vida ele seria o modelo do ativista dedicado à causa que adotara durante sua
juventude, ainda que tivesse sofrido revezes pessoais e mesmo a injustiça de não ter sido
devidamente reconhecido como o mais qualificado para certos cargos de representação do
movimento no Brasil por ocasião do surgimento do Estado de Israel e da formação do seu
corpo diplomático.
Mas, em 1921, muitas transformações iriam ocorrer com o nacionalismo
judaico no Brasil, pois Jacob Schneider e os que estavam próximos a ele procuravam obter
o cumprimento nesse tempo de uma promessa da Central Sionista em Londres para o envio
de um scheliach a esse país. A ocasião para se conseguir tal intento chegou quando por aqui
passou o dr. Alexander Goldstein, que vinha de volta de uma viagem à Argentina e parou
no Rio de Janeiro por algumas horas para se encontrar com os líderes sionistas locais.
Alexander Goldstein se encontrava na América do Sul em missão do Keren Hayessod,
fundado recentemente, por resolução da Conferência de Londres, em 1920.
A importância da passagem do Dr. Alexander Goldstein pelo Brasil consistiu
no fato de ter provocado uma verdadeira euforia entre os ativistas sionistas e
fundamentalmente entre os membros da Associação Sionista do Rio de Janeiro, o que pode
ser constatado pela carta que Jacob Schneider e Eduardo Horowitz remeteram a Bernardo
Schulman em 10 de julho de 1921, isto é, pouco antes da chegada dessa personalidade ao
Brasil. Alexander Goldstein, que se encontrava naqueles dias na Argentina, deveria fazer,
de acordo com a carta, uma visita às grandes cidades do país, e desse modo sugeria a
formação de um comitê de recepção ao escritor e representante do movimento sionista
mundial.289 Porém, essa prometida visita a Curitiba e às grandes cidades não ocorreu,
conforme carta de Eduardo Horowitz de 19 de agosto, do mesmo ano, escrita a Schulman,
justificando essa falta pelo fato do visitante ter feito apenas uma pequena parada no Rio de
Janeiro, “pois sua presença no Congresso Sionista é muito importante”. Assim mesmo,
dizia Eduardo Horowitz, "temos considerado juntamente com ele a possibilidade de se fazer
uma viagem pelo Brasil em beneficio do Keren Hayessod, e temos esperança que, após o
Congresso, o próprio Dr. Goldstein ou uma outra personalidade faça uma visita especial ao
Brasil. Nós também o solicitaremos por telegrama ao Congresso". A carta lembrava que em
conversa com o Dr. Goldstein ficou acertado da necessidade do Brasil ser representado no
Congresso, sendo o nome do veterano ativista de Curitiba, Júlio Stolzenberg, cogitado para
esse encontro.
O fato é que a passagem do Dr. Goldstein pelo Brasil resultou na vinda do
primeiro scheliach (enviado) ao país, e tratava-se nada mais nada menos do que de uma
personalidade de destaque do judaísmo europeu e mundial, o Dr. Yehuda Wilensky. Em
289
Documentação de Bernardo Schulman, no acervo do autor.
140
290
A.Z., Z 4/2350, carta em hebraico de 26/10/1921.
291
A.Z., Z 4/2350, carta em hebraico de 10/8/1921. Em 16 de agosto a Associação Sionista mandava
telegrama confirmando a remessa dos shekalim para a indicação de Júlio Stolzenberg ao Congresso, cujo
nome aparece nos Stenographisches Protokoll des XIII Zionisten-Kongresses in Karlsbad. Londres
confirmava o recebimento dos shekalim em carta resposta de 23 de outubro, e expressava a satisfação de
encontrar o representante brasileiro no Congresso. V. A.Z., Z 4/2350, carta em hebraico de 23/10/1921;
telegrama em inglês de 16/8/1921. Em 1/9/1921 Júlio Stolzenberg remetia um cartão postal a David J. Perez,
desde Karlsbad e diretamente do XIII Congresso Sionista com os dizeres: “Respeitosas saudações do XIII
Congresso Sionista. Meu mandato desde ontem reconhecido, o entusiasmo aqui é indescritível. Sahlom, Júlio
Stolzenberg.” O cartão se encontra no Arquivo de David J. Perez. Sobre isso vide o artigo “Sionistas, o
primeiro encontro” nesta coletânea.
141
"Ficamos intrigados por escolherem Recife como a primeira estância, visto que
sabíamos não existir lá uma organização sionista. Assim, fizemos uma reunião urgente da
diretoria e resolvemos que eu próprio iria a Recife caso houvesse um navio aqui no Rio que
chegasse ali um dia antes da data de chegada do Dr. Wilensky, para poder preparar uma
recepção digna. Por sorte, havia um navio, que após seis dias me deixou no local de
destino. Ali encontrei uma coletividade de 70 judeus, os quais reuni e exigi
peremptoriamente que organizassem uma calorosa acolhida àquele enviado. No dia
seguinte, todos nós, homens, mulheres e crianças, dirigimo-nos em barcos enfeitados com
bandeirolas ao navio, e quando Dr. Wilensky nos viu, ficou emocionado e chorou.
Desembarcou do navio, abraçamo-nos e nos beijamos, e em seguida o
acompanhamos a um confortável hotel. Estava muito satisfeito em encontrar-me no Recife.
Ele nos contou sobre a fundação do Keren Hayessod e os altos fins desse fundo, e insistiu
em que cada judeu se cotizasse nesse dízimo, isto é, uma décima parte de suas posses. Os
judeus do Recife estavam felizes. Sentindo essa atmosfera, eu disse a eles que primeiro
fossem almoçar e depois conversaríamos. Na reunião, regateei com eles e exigi que o
primeiro se manifestasse com uma soma mínima de três contos de reis. Mas o mais rico
deles quis contribuir com a metade, aumentando em seguida para a importância estipulada,
e os outros o acompanharam. Em seguida fomos à casa de outras pessoas da coletividade
que não haviam comparecido ao encontro. Dois dias trabalhei no local com a comissão.
Conversei pacientemente com cada um daqueles judeus e assim conseguimos, na primeira
campanha da Magbit (Fundo comunitário) do Brasil, 70 contos.
Do Recife fomos a Maceió, onde residiam nove judeus, e ali arrecadamos 15
contos. Dali a Salvador, Bahia, de onde saímos com mais 30 contos, e em seguida voltamos
ao Rio.
No Rio, um grande navio repleto de judeus veio recepcioná-lo, e na primeira
conferência eles contribuíram à altura. Reunimos vários grupos e fomos de casa em casa,
mas poucos me ajudaram nessa campanha. Em particular se destacou Eduardo Horowitz.
Eu tive o privilégio da maior contribuição, isto é, 8 contos.
Do Rio fomos a São Paulo, onde houve muita dificuldade, pois não havia
nenhuma organização sionista.292 A presidência do Keren Hayessod foi assumida pelo Dr.
Horácio Lafer. Andei alguns dias em São Paulo junto com a comissão a fim de realizar a
Magbit. Maurício Klabin, em nome da firma, deu 40 contos.
De São Paulo, o Dr. Wilensky foi a Curitiba, de onde seguiu para a Argentina.
Três meses fiquei ausente de casa e de meus negócios, que ficaram aos cuidados de meu
irmão e dos empregados. Nessas viagens fundamos várias organizações sionistas, e assim,
com essa visita do dr. Wilensky teve impulso o movimento sionista no Brasil. Atraímos
novos adeptos e ficamos em contato com todas as organizações que haviam sido fundadas
no país.”
Em Curitiba e no sul do país acompanhou o dr. Wilensky o ativista Júlio
Stolzenberg, que já tinha atrás de si uma significativa folha de serviços em prol do sionismo
no Brasil.
O Dr. Wilensky compreendeu que sua missão no Brasil não deveria se restringir
à coleta de fundos para o Keren Hayessod ( Fundo de Colonização) , mas impulsionar o
movimento com a criação de novas associações. Desse modo, e sempre acompanhado de
292
Já havia uma associação sionista em São Paulo, denominada Ahavat Sion, fundada em 25 de julho de
1916, conforme carta de Rafael Chachamovitz no Arquivo de David J. Perez.
142
Jacob Schneider, o Dr. Wilensky aproveitou sua passagem pelos estados nordestinos para
criar uma associação sionista denominada "Hertzlia" no Recife, a associação "Gueulá" em
Maceió, a associação "Max Nordau" na Bahia, que passaram a se corresponder com a
Central Sionista em Londres e se tornaram ativas nas campanhas levadas a efeito naqueles
lugares."293 A missão do Dr. Wilensky alcançou pleno sucesso e deixou uma profunda
impressão no judaísmo brasileiro, sendo lembrado posteriormente como um capítulo
decisivo na história do sionismo no Brasil. 0 estímulo devido a sua presença se manifestou
também na capital do país, pois foi nesse mesmo ano de 1921 que se formaria a Sociedade
Sionista Benei Herzl, composta inteiramente do elemento sefaradita da comunidade do Rio
de Janeiro.294 Efetivamente, o esforço de aproximar os sefardim se manifestou em carta de
25 de novembro daquele ano escrita por Eduardo Horowitz a David Perez, na qual
informava ao ilustre professor que acabava "de receber um telegrama do sr. Jacob
Schneider informando que o vapor "Pari", trazendo os nossos ilustres hóspedes, entrará no
porto do Rio amanhã de manhã, às 8 horas. A recepção já está organizada, tomando parte
nela toda a colônia israelita, inclusive os sefardim. O comparecimento do sr. ao
desembarque é indispensável e irrecusável. A comissão de recepção se reunirá amanhã de
manhã às 7 horas no Cais Pharoux, Praça 15 de Novembro, e esperarei o sr. no mesmo
lugar e na mesma hora. Saudações e abraços, E. Horowitz."295
No sul, como já dissemos, o Dr. Wilensky seria acompanhado por Júlio
Stolzenberg, pois a longa ausência de Jacob Schneider de seus negócios particulares e do
Rio de Janeiro tornou-se altamente custosa e difícil, sob todos os aspectos. Daí sua
insistência junto a Júlio Stolzenberg para que este aceitasse a missão de acompanhar o
scheliach em Curitiba e em Porto Alegre. Em carta de 1º de dezembro de 1921,296 escrita
por Stolzenberg e endereçada a Eduardo Horowitz, secretário geral da Organização
Sionista, ele se refere ao assunto negativamente, considerando que não é o momento
propício para a visita do representante do Keren Hayessod naquele Estado, e isso por várias
razões, as quais enumera: 1º) os negócios no local andam muito mal, e pior se tornou a
situação dos judeus, de tal modo "que cada pessoa anda com a cabeça cheia de
preocupações"; 2º) faleceu na comunidade local uma criança, e pelo fato de ser uma
comunidade pequena, toda a Kehilá se encontra em luto, e assim, é impossível realizar
qualquer atividade; 3º) os membros da comunidade estão empenhados na construção de um
templo e um cemitério que tiram muitas energias, trabalho e dinheiro, e portanto, para a
campanha não se pode esperar muito sucesso, uma vez que os "doadores" são sempre as
mesmas 10 ou 12 pessoas. Do ponto de vista administrativo, continua o líder curitibano
com certo orgulho, "é sabido que nós somos um modelo de organização exemplar (...) e
293
A.Z., Z 4/2350, carta em hebraico de 25/11/1921, da Bahia anunciando a criação , em 24/11/1921 a
Associação Sionista “Max Nordau” com a assinatura de A. Chachamovitz, e endereço rua Genipapeiro, 1,
Salvador; carta em hebraico de 6/2/1922 congratulando-se com a nova associação da bahia; carta em ídiche de
22/11/1921 assinada por A. Ribinik relatando que o Dr. Wilwnsky saiu de Pernambuco e chegou a Maceió
onde fundou uma associação sionista com o nome de “Geulá". Dos 23 judeus residentes na cidade (entre os
quais 6 marroquinos) 22 inscreveram-se como sócios; carta em hebraico de 17/1/1922 confirmando a
formação da entidade; cartas em ídiche de 1/1/1922 e 26/2/1922 sobre o mesmo assunto; carta em hebraico de
22/12/1921 informando a formação de uma associação sionista denominada “Herzlia” em Pernambuco no dia
16/11/1921 sediada na rua da Imperatriz, 131, com assinatura ilegível, cartas em hebraico de 25/1/1922 e
2/2/1922 sobre o mesmo assunto.
294
Ilustração Israelita, n.1, agosto, 1928.
295
Arquivo de David J. Perez.
296
Arquivo de Jacob Schneider, documentação no acervo do autor.
143
possuímos, felizmente, uma liderança que se encontra sempre atenta para explorar todo
momento em campanhas em benefício do sionismo. Assim, por exemplo, pudemos aqui em
alguns momentos coletar cerca de um conto de réis para o Fundo Nacional, cuja soma lhe
enviaremos. Sentimos, eu, bem como os outros, que o Dr. Wilensky não consiga nos
visitar, mas devemos considerar que o momento é muito inconveniente (...) Espero que os
companheiros entendam a situação e não nos culpem (...) Lembranças respeitosas ao amigo
Schneider e ao Dr. Wilensky. Em todo o sul, afora Porto Alegre, não podemos contar com
qualquer outra cidade, mas Porto Alegre é muito desorganizada (...) porém, talvez se possa
fazer algo em favor do K. H. e de sua organização interna. Para mim, é impossível ocupar-
me com o assunto, pois os negócios que possuo ficaram durante muito tempo abandonados,
e assim não me permitem o tempo livre necessário para tanto. Eu me permiti, meu amigo, a
excessivas concessões, e agora tenho que pagar o devido tributo".
Apesar de tudo, Júlio Stolzenberg acabaria por aceitar a missão em acompanhar
o Dr. Wilensky, e em carta de 13 de dezembro do mesmo ano 297 dirigida a Jacob Schneider,
após dizer que “estive respondendo somente agora porque me encontrava em viagem no
interior por razões comerciais”, ele agradece a "lição" que Jacob Schneider havia lhe dado
em carta anterior, do dia 9 daquele mês. A resposta de Stolzenberg, um tanto sensibilizado,
mostra que a missiva enviada pelo líder do sionismo brasileiro foi para pressioná-lo a
aceitar o encargo da recepção e acompanhamento do Dr. Wilensky, dando a entender que
ele havia tocado em seus sentimentos sionistas. Stolzenberg relata que para demonstrar sua
fidelidade para com o ideal nacional judaico voltou a Curitiba e encetou uma campanha de
propaganda entre os seus correligionários, acrescentando que Wilensky poderia vir, e
expressando que ficaria sumamente contente se viesse juntamente com ele". Mais ainda,
dizia ele em sua carta: "Não posso assegurar de antemão um grande sucesso material,
porém asseguro, sim, um sucesso cordial, caloroso e moral". Por fim, recomendava que o
Dr. Wilensky fosse após o dia 22 ou 23 daquele mês, pois ele se encontrava impossibilitado
de estar em Curitiba antes daquela data. Também Max Rosenmann, decano da comunidade,
se encontrava em viagem, e acrescenta que já havia estabelecido um comitê para tal
finalidade, sugerindo assim que Wilensky viajasse de Santos a Paranaguá, de navio, para
poder esperá-lo nesse porto a fim de seguir para Curitiba. Portanto, Stolzenberg acabara
aceitando a incumbência de guiar o Dr. Wilensky no sul do país, graças à firme orientação e
autoridade de Jacob Schneider. Lamentavelmente, não temos muitos elementos para saber
com exatidão sobre a permanência do sheliach no sul do país e a atividade exercida nas
comunidades de Curitiba e Porto Alegre, com exceção de uma carta de 23 de abril de 1922,
assinada por Leão Bonder e Jacob Becker, respectivamente presidente e secretário do
Keren Hayessod em Porto Alegre, carta essa dirigida a Jacob Schneider .298
Entre outras coisas, temos a menção e a confirmação que nessa data o jornal
Correio Israelita era enviado àquela cidade, pois o missivista lembra que ele conseguiu 25
assinantes para o mesmo, “(...) remeterá os endereços posteriormente ao pagamento, pois
conhecemos a nossa comunidade, e o Dr. Wilensky também a conheceu sob esse aspecto,
no pouco tempo em que esteve entre nós. E nós concordamos com a opinião que externou
sobre o judaísmo do Brasil, bem melhor e antes do protesto que vocês publicaram em seu
jornal contra ele, ainda que seja um jornal que possa ser lido por não-judeus, o que não é,
talvez, nada agradável a todos nós. Desculpe-me!”.
297
Arquivo Jacob Schneider, carta em ídiche.
298
Arquivo Jacob Schneider, carta em ídiche.
144
Assim, tudo indica que o Dr.Wilensky saiu do Brasil sem ter satisfeito suas
expectativas, que deveriam ser extremamente elevadas para as limitadas condições do
judaísmo brasileiro. O Dr. Wilensky voltaria anos mais tarde para uma segunda viagem ao
Brasil e passaria a se corresponder assiduamente com Jacob Schneider e a liderança sionista
em nosso país. Como prova de que houvera um quiproquó no final de sua desejada e
esperada schlichut, temos uma carta de Wilensky, agora já consul honorário do Chile em
Jerusalém, carta essa escrita de Santiago, em 28 de abril de 1927 dirigida a Jacob Schneider
e Eduardo Horowitz, e que se inicia com as seguintes palavras: “O tempo cura todas as
feridas e eu suponho que ela já curou e apagou a raiva que vocês carregaram em relação a
minha pessoa. Espero que vocês, durante esse tempo, tenham compreendido que eu não
podia deixar de fazer o que fiz”.299
A “raiva” não era tanta quanto aparentava ser, pois ainda em julho de 1922
Wilensky seria nomeado pela Organização Sionista do Brasil como delegado para o
Congresso Sionista daquele ano, conforme o mandato assinado por Jacob Schneider e
Eduardo Horowitz.300 E ainda que tivesse ocorrido algum desentendimento com o
representante do Keren Hayessod, o resultado final de sua missão foi muito bom, pois
constituiu um verdadeiro ponto de partida para um novo impulso do nacionalismo judaico
no Brasil.
O entusiasmo que a schlichut do Dr. Wilensky despertara no judaísmo
brasileiro e seu movimento sionista traria frutos. Reflexos de tal despertar, além do que já
dissemos, podem ser também vistos pela formação do Centro Sionista no Rio, sob a
iniciativa da Associação Sionista do Rio de Janeiro, inaugurado em 1º de abril de 1922, à
rua Senador Euzebio, 132.301
O mesmo espírito se revela na criação de um novo jornal, Haemet (A Verdade),
sobre o qual pouco sabemos, em Belém do Pará, por iniciativa de Pepe I. Larrat e Abraham
Benoliel, periódico esse que se propunha também à propaganda sionista, tal como o Kol
Israel do major Eliezer Levy. 302
Toda essa movimentação decorria também de um novo fato político associado
ao clima gerado pela perspectiva de instalação do mandato britânico na Palestina, que
apontara como alto comissário um judeu, isto é, Sir Herbert Samuel. Em 25 de maio de
1922, Jacob Schneider escrevia um bilhete a David Perez dizendo que “por motivo de
assunto político de alta importância e de muita urgência, o qual recebi agora de Londres,
devemos nos encontrar hoje para conferenciar. Peço marcar por escrito ou por telefone a
hora e o lugar de nosso encontro. Espero que o Sr. atenda ao pedido de Londres."303
Contudo, restava um grave problema após a criação de tantas organizações
locais ou estaduais, e esse era o de superar o isolamento das mesmas isoladas umas das
outras pelo extenso território nacional. O contato direto com a Central Sionista em Londres
não era suficiente para permitir um desenvolvimento normal e eficiente daquelas entidades
locais, e tampouco estimulava a criação de um movimento forte que pudesse ter uma
representatividade aceita no Brasil e no exterior. Além do mais, a liderança local nem
sempre captava e traduzia os verdadeiros anseios da comunidade, e, portanto, cisões ou
299
Arquivo Jacob Schneider, carta em ídiche.
300
A.Z., Z 4/2350, mandato em hebraico de 19/7/1922.
301
Arquivo David J. Perez. O convite de inauguração é assinado por Simão Dain.
302
Arquivo David J. Perez, carta de 14 de maio anunciando o envio do primeiro número do jornal.
303
Arquivo David J. Perez.
145
divisões poderiam enfraquecer as sementes que foram plantadas pelo Dr. Wilensky. Tal
situação ocorreu em Maceió, onde em curto prazo de tempo e devido a desentendimentos
formaram-se duas organizações em uma comunidade de vinte e nove pessoas. 304
Por outro lado, o contato direto da Central de Londres não agradava a ela
mesma, assim como significava um dispêndio de esforços que poderiam ser poupados com
a existência de uma organização central. Nesse aspecto, a Central de Londres procurava
assumir uma atitude encorajadora para se chegar a tanto no Brasil, como podemos
comprovar pela correspondência mantida com o Rio de Janeiro sobre a questão dos
shekalim, que, se de início procurou contato com as novas organizações, logo a seguir
insistiu em afirmar a responsabilidade das campanhas à “Federação Sionista do Brasil”, em
vias de formação, mesmo que esta passasse efetivamente a existir apenas após o Primeiro
Congresso Sionista, que se realizou em novembro de 1922, na cidade do Rio de Janeiro.
Mas, apesar de todos os avanços, após o impulso dado por Wilensky, o
Executivo Sionista se queixava da falta de assiduidade na correspondência, bem como na
prestação de contas dos shekalim remetidos ao Brasil,305 mal que caracterizou a
organização durante todos os seus anos de existência, com altos e baixos dependendo da
composição humana de seus órgão diretivos.
Tudo indicava que na época, isto é, no ano de 1922, as diversas agremiações
sionistas locais se mostrariam dispostas a manter contato entre si, e tudo levava a crer que o
melhor seria criar uma organização central que pudesse aglutinar as associações dos
diversos estados brasileiros.
Portanto, Jacob Schneider e outros começaram a pensar e planejar a realização
de um Congresso Sionista de amplitude nacional, sendo que a data marcada para o conclave
era o dia 15 de novembro de 1922, data significativa para o Brasil, pois comemora a
proclamação da República. Em 8 de novembro, J. Schneider telegrafou à Central Sionista
comunicando o acontecimento.306 Graças ao fato de termos encontrado os protocolos do
congresso no arquivo de Jacob Schneider pudemos reconstituir as sessões havidas naquele
conclave e o temário das discussões das mesmas, que mencionaremos apenas de passagem.
A abertura do Congresso, que teve a participação de 39 representantes de 13
Estados, que falariam em nome de 14 associações sionistas, realizou-se de forma solene.
Jacob Schneider, presidente do Comitê Organizador, abriu com um discurso, discorrendo
sobre a formação do movimento no Brasil e colocando como objetivo de primordial
importância a criação de uma Federação Sionista, que deveria se ocupar da coleta de fundo
para os israelitas, vítimas dos pogroms; para a criação de uma verdadeira escola judaico-
brasileira; para a criação de uma biblioteca sionista e para a difusão das idéias do
movimento através do país.
Na ocasião falaram também Eduardo Horowitz e Jacques Behar, representante
da associação Benei Herzl do Rio de Janeiro. Entre outras resoluções, ficou decidido que
seriam feitas campanhas do Keren Hayessod, do Keren Kayemet, e que seriam estimulados
todos os aspectos da vida judaica local – social, educativo e cultural. O Congresso foi um
verdadeiro chamado para a atividade sionista. O resultado imediato do encontro foi a
criação de uma Federação Sionista, cujo Comitê Central seria localizado no Rio de Janeiro,
304
O Centro Sionista Agudat Achim dividiu-se e formou a Associação Sionista Gueulá sob a presidência de
A.Ribinik. V. A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche de 8/10/1922.
305
A.Z., Z 4/2350, cartas em hebraico de 20/4/1922; 10/7/1922; 8/8/1922.
306
A.Z., Z 4/2350, telegrama em inglês de 8/11/1922.
146
sendo eleitos: Presidente de Honra – Maurício Klabin; Presidente – Jacob Schneider; Vice-
Presidentes – Saadio Lozinski e David Levi; Primeiro-Secretário – Eduardo Horowitz;
Segundo-Secretário – Shalom Linetzki; Tesoureiro Geral – Efraim Schechter; Ajuda –
Boris Tendler; Keren Hayessod – Salomão Gorenstein; Conselheiros – Júlio Stolzenberg
(Curitiba) e Miguel Lafer (São Paulo), Conselho Fiscal – Simão Dain, M. Koslovski e A.
Harosh.307
Assim, com o surgimento da Federação Sionista como coordenadora das
atividades do movimento no país, inaugurava-se uma nova etapa da história do movimento
no Brasil.
Em abril de 1923 Jacob Schneider faria uma viagem à Palestina e ficaria encantado com o
país e o trabalho realizado pelos pioneiros judeus. 308 Em 13 de setembro daquele ano ele
escrevia uma carta a Baruch Schulman, na qual dizia: “voltei há dois meses de minha
viagem à Terra Santa, e sente-se de imediato que lá é o Lar Judeu, pois tão orgulhoso, tão
seguro, tão livre e tão bem se sente o judeu nesse belíssimo país, mesmo que não seja seu
cidadão. A viva língua hebraica, as aldeias judaicas, a bela cidade de Tel Aviv, a juventude
, os chalutzim (pioneiros) e as chalutzot (pioneiras) , com seu trabalho inigualável, são os
melhores de nossa intelligentsia e não evitam os trabalhos dos mais pesados (...)”.309 Era a
sua primeira visita à Palestina antes da formação do Estado de Israel, o qual ele,
futuramente, conheceria pelas viagens que realizaria durante os anos de atuação no
movimento sionista. Mas os sentimentos e as marcas profundas que a viagem de 1923
deixaram em sua pessoa podem ser detectados no “Diário” que escreveu sobre a mesma,
que passa a ser um documento pessoal interessante pela descrição que faz da colonização
judaica naqueles anos.
A carta acima citada, escrita a Baruch Schulman, mostra-o animado com a presença do
scheliach da Organização Sionista Mundial, o escritor Leib Jaffe, que se encontrava no Rio
e, conforme a expressão do missivista, alcançara um grande sucesso em sua missão. Jacob
Schneider comunicava a Schulman que ele acompanharia o scheliach a São Paulo e de lá
Jaffe seguiria a Curitiba, esperando que a comunidade local o apoiasse ao mesmo tempo
que contava com a ajuda pessoal do ativista curitibano.
Na verdade, a vinda de Leib Jaffe ao Brasil partiu de uma resolução do 1º
Congresso Sionista no Brasil de 1922, o qual, conforme nos informa carta de Jacob
Schneider e Eduardo Horowitz dirigida à Central da Organização Sionista em Londres
datada de 11 de dezembro daquele ano, havia resolvido solicitar um sheliach para o período
de gestão da diretoria eleita, isto é, para o ano de 1923.310 A carta informava à Central que a
atividade para o Keren Hayessod deveria se dar no começo de 1923, como de costume, e
portanto se fazia necessária a sua vinda o mais rápido possível, para dar o apoio ao que
estava programado pelo movimento local. Os signatários da carta especificavam as
qualidades que deveria ter o enviado do movimento sionista, isto é, “um nome famoso no
mundo judaico, excelente orador de massas e que saiba línguas européias, em especial
307
O Comitê Central designado é mencionado no artigo de E. Horowitz “Vegen der Zionism in Brazil”
(Acerca do sionismo no Brasil) ,Dos Idiche Vochenblat (O Semanário Israelita), novembro de 1924.
308
Pelo Diário de viagem de Jacob Schneider, sabemos que a data de saída do navio do Rio foi em 10 de
abril, e a sua volta pelo porto de Alexandria foi em 25 de maio daquele mesmo ano. O Diário está escrito num
caderno de 150 páginas, manuscrito em ídiche, e se encontra entre sua documentação ou Arquivo.
309
Arquivo de Bernardo Schulman, carta em ídiche, no acervo do autor.
310
A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche.
147
francês e espanhol, para que o scheliach possa aparecer perante assembléias de judeus
sefaraditas, cujo número é muito grande no Brasil, e sua maioria fala espanhol ou francês”.
Acrescentava-se ainda que o novo scheliach deveria seguir o roteiro do primeiro, ou seja, o
do dr. Wilensky, visistando em primeiro lugar o norte do Brasil, a começar de Pernambuco.
E já em 10 de março de 1923 Jacob Schneider escrevia a Baruch Schulman cobrando o
compromisso assumido durante a realização do 1º Congresso Sionista no Brasil por Júlio
Stolzenberg e Max Rosenmann de cumprirem com sua cota para a campanha do Keren
Hayessod, e na mesma carta informava que “em janeiro já esperávamos um novo sheliach
especial, mas precisamos esperar por L. Jaffe, que está visitando a Argentina. Também há
10 dias recebemos uma carta, onde se relata a terrível situação financeira do executivo e de
Eretz Israel e, portanto, resolvemos começar o trabalho para o ano de 1923. Nesse sentido,
organizamos uma noite de Purim e proclamamos a campanha para o Keren Hayessod para
o ano presente”.
Jacob Shneider apelava para a boa vontade de Shulman “juntamente com
Stolzenberg” para que empregassem a maior energia no trabalho e cumprissem sua
obrigação para com o povo judeu. Nessa mesma carta, ele notificava que em 10 de abril
partiria para a Romênia, onde deveria visitar seu pai, e seguiria para a Palestina, pedindo
que durante sua ausência se dirigisse a Eduardo Horowitz. 311
Efetivamente, Leib Jaffe deveria chegar em fins de junho, e nesse ínterim, o movimento
sionista no Brasil procurava cumprir suas obrigações de venda dos shekalim para terem um
representante no 13º Congresso Sionista, que deveria realizar-se em agosto do mesmo ano.
Nesse sentido, Saadio Lozinski, que substituía a Jacob Schneider na presidência da
Federação Sionista do Brasil, juntamente com E. Horowitz, escrevia em carta de 9 de maio
que esperavam a vinda de Leib Jaffe para que pudessem atingir a cota de shekalim imposta
pela Central Sionista em Londres.
O segundo sheliach do movimento sionista mundial ao Brasil, Leib Jaffe, era
um intelectual e conhecido homem de letras que atrairia, sob esse aspecto, também a
atenção do limitado número de intelectuais do judaísmo brasileiro e criaria laços de
amizade mais profundos com alguns deles, amizade que se revela na correspondência que
manteve após seu retorno ao velho continente e, mais tarde, à Palestina. Leib Jaffe, que
passara anteriormente pelo Chile, Argentina e Uruguai, seria recebido no Rio de Janeiro em
audiência especial pelo presidente Arthur Bernardes, obtendo um estrondoso sucesso na
capital carioca. O jornal do major Eliezer Levy, Kol Israel, 312 publicava uma nota sobre sua
presença no Brasil, informando que o sheliach visitara São Paulo, Bahia e Recife,
transcrevendo ao mesmo tempo dois artigos publicados na imprensa baiana sobre o
visitante, um no “Diário da Bahia” e outro no “A Tarde”.313
O sucesso de Leib Jaffe no Rio também é confirmado por uma carta pessoal de
15 de setembro de 1923 de Leon Schwartz, ativista comunitário, a Baruch Schulman, seu
amigo, que tece elogios entusiásticos à personalidade do scheliach, recomendando-o ao seu
amigo de Curitiba: “Parece-me que você conhece o meu ceticismo em relação à idéia
sionista, ainda que eu nunca tenha me recusado a dar qualquer apoio, uma vez que sou parte
do meu povo. Estive viajando na ocasião quando o senhor Jaffe chegou por aqui. Fui lhe
311
Arquivo de Bernardo Schulman, carta em ídiche.
312
Kol Israel, 17 de dezembro de 1923.
313
O artigo do A Tarde terminava comunicando que “Leib Jaffe faria uma conferência na Sociedade
Beneficente Israelita da Bahia sobre o tema “A nova Palestina”.
148
314
Arquivo Bernardo Schulman, carta em ídiche.León Schvartz, nessa carta, promete visitar Curitiba dentro
de 18 a 20 dias, porém não sabemos se o fez.
315
Arquivo Bernardo Schulman, carta em ídiche.
316
Arquivo Bernardo Schulman. Por essa carta ficamos informados que Leib Jaffe ficou em Curitiba até as
vésperas do dia 26 de setembro quando partiu acompanhado por Schulman a Paranaguá para embarcar no
“Flandria” que zarparia em direção ao norte do país.
317
Arquivo Bernardo Schulman, carta em ídiche.
318
Arquivo bernardo Schulman, carta em ídiche de 3/11/1923.
319
Arquivo Bernardo Schulman, carta em hebraico de 13/2/1924.
149
clareza: “Meses atrás, nos comunicamos com o escritório Central da Organização Sionista
em Londres solicitando para que se escrevesse a todas as sociedades sionistas do Brasil
que, em matéria de atividades sionistas, fundos, etc., se comunicassem com o Comitê
Central da Federação Sionista do Brasil, que é o único foro autorizado a ser contatado e
cuja orientação deve ser acatada. Fomos obrigados a exigir isso da parte do escritório
Central devido ao fato de nosso Comitê Central ter tido grandes dificuldades, impedindo
que realizássemos um trabalho sistemático. Devido ao lamentável capricho ou outra
qualquer causa, uma certa sociedade se arvora ao direito de se dirigir diretamente a
Londres, e nos deixa inteiramente ignorantes do que se passa. Devido a esse estado de
coisas, o trabalho do Keren Hayessod foi prejudicado mais do que tudo, pois cada
sociedade ou comitê comunicou-se com o K.H. em Londres e remeteram a ela todas as suas
obrigações, enquanto o Comitê ignorava tudo o que se passava, mesmo que tenha tido o
papel principal em toda a campanha. Até agora nos é impossível controlar o trabalho das
diversas sociedades (...)A conseqüência de tudo isso é a plena desordem que prevalece
nessas sociedades. Nenhuma contabilidade existe e em alguns lugares é impossível
compilar sequer as listas dos contribuintes ao K.H. (...). A Central em Londres, em vez de
fortificar a autoridade da Federação e ajudar a disciplinar e sistematizar o trabalho para
termos o controle da situação e podermos ganhar a inteira confiança da população judaica
no Brasil, deu, recentemente, certos passos, talvez involuntariamente, que dificulta nosso
trabalho e que nos leva de volta à situação existente anteriormente. O telegrama que vocês
nos mandaram, bem como a Pernambuco e Bahia, a respeito da imediata remessa dos
valores coletados para o K.H., sem considerar o valor de câmbio, também prejudicaram o
nosso trabalho, pois as mencionadas sociedades não se sentem ligadas a nós inteiramente e
à nossa orientação, uma vez que possuem uma relação direta com o escritório em
Londres.”320 No final, os responsáveis pela Federação pediam à Central de Londres que
escrevessem novamente a todas as sociedades sionistas do Brasil com as quais ela havia se
comunicado anteriormente para que doravante se comunicassem somente com o Comitê
Central no Rio, seguindo sua orientação, e que as somas coletadas fossem remetidas
somente através dela.
Corria assim o ano de 1924 e Jacob Schneider encetaria uma viagem à Europa
no final daquele mesmo ano, encontrando-se em novembro em Londres, onde seria
entrevistado por elementos da Organização Sionista Mundial. O resumo da entrevista revela
que ele prestara informações gerais sobre a comunidade judio-brasileira, incluindo dados
estatísticos sobre a sua população, modo de atuação da Federação Sionista e suas
atividades, e uma rápida caracterização dos grupos políticos.321 Já nesse ano se encontrava
no Brasil o rabino Isaías Raffallovich, que havia desembarcado no Rio de Janeiro em
dezembro de 1923 como representante da J.C.A. (Jewish Colonization Association) em
nosso país e que desempenharia um papel importante na vida comunitária judaica, seja sob
o aspecto da criação de uma rede escolar, beneficência e amparo ao imigrante, seja em
relação à atividade sionista. Raffalovich vivera na Palestina durante muitos anos e viera
com seus pais ainda no século XIX, quando se davam os inícios da colonização com
imigrantes vindos da Rússia Czarista, naquela região e, portanto, estava imbuído de ideais
sionistas desde a sua juventude.322 No Brasil a preocupação em desenvolver uma
320
A.Z., Z 4/2350, carta em ídiche, com tradução ao inglês, de 21/12/1923.
321
A.Z., Z 4/2350, relatório em inglês sobre a entrevista feita em 2/11/1924.
322
Veja-se sua autobiografia com o título Ziunim veTamrurim (Marcos e Etapas), Tel-Aviv, 1952.
150
comunidade assentada em bases estáveis, dar o apoio aos imigrantes que chegavam em
número cada vez maior, também passou a ser uma preocupação do movimento sionista
local, que colocava suas forças e meios para acolher aqueles que necessitavam de ajuda.
Daí ser difícil separar, na época, idéias nacionalistas e a própria vida comunitária em
formação. Já nesses anos havia uma preocupação de se aproximar a nova geração da
atividade comunitária, assim como atraí-la ao movimento nacionalista, e, na verdade, o
primeiro apelo feito nesse sentido foi o de Leib Jaffe durante sua passagem em território
brasileiro, e que levou à criação de uma organização juvenil de nome Cadima.323
Outro aspecto dessa renovação do movimento sionista é a criação do Grupo
Ativo do Centro Sionista do Rio de Janeiro, que visava dar maior ímpeto à atividade
nacionalista judaica naquela cidade.324
Em suma, podemos considerar os primeiros anos da década de vinte como uma
etapa decisiva na fixação e no desenvolvimento do movimento sionista no Brasil, tendo
como causa principal a atividade exercida por Yehuda Wilensky e Leib Jaffe como
enviados da Organização Sionista Mundial.
323
Ilustração Israelita, n. 1, agosto, 1928. A Enciclopédia Judaica, ed. Tradição, Rio de Janeiro. 1967, verbete
Cadima, se equivocou ao atribuir a iniciativa a I. Juris.
324
Sobre o Grupo Ativo vide o artigo de E. Horowitz “Di grindung fun a Aktive Grupe” (A fundação de um
Grupo Ativo), no Dos Ìdiche Vochenblat, n. 44, 12 de setembro de 1924 e n. 45, de 19 de setembro do mesmo
ano. No programa do Grupo Ativo constam sete itens:1) organizar o elemento positivo do Rio ao redor do
sionismo; 2) despertar seus membros para sua identidade nacional; 3) posicionar-se frente a todas questões
atinentes à vida judaica; 4) atuar para o renascimento do lar nacional judaico em Eretz Israel; 5) contribuir
para a organização do judaismo brasileiro; 6) atuar no âmbito da cultura nacional judaica; 7) preocupar-se
com a educação da juventude.
151
325
Há-Archion há-Tzioni (Central Zionist Archives), Z 4/2350, carta em hebraico de 17/7/1920 e carta
dirigida a Curitiba de 25/8/1920. Quanto aos fatos mencionados desta primeira parte de nosso estudo o leitor
poderá encontrar as fontes documentais citadas em nosso estudo sobre a missão de Yehuda Wilensky e Leib
Jaffe no Brasil, que faz parte da presente coletânea.
152
devido a um pedido feito ao dr. Alexander Goldstein, que vinha de volta de uma viagem à
Argentina e parou no Rio de Janeiro por algumas horas para se encontrar com os líderes
sionistas locais, e era uma missão em nome de Keren Yayessod, fundado por resolução da
Conferência de Londres, em 1920. Em carta de 26 de outubro de 1921, a Organização
Sionista comunicava ao Rio de Janeiro que dentro de poucos dias viajaria ao Brasil o Dr.
Wilensky. Ele era, também, um dos ativistas sionistas da Ucrânia e da Rússia e membro do
Comitê Central da Organização Sionista, com um passado rico em feitos em favor do
judaísmo russo. Antes de sua chegada, a Organização Sionista no Brasil tinha recebido um
telegrama sobre a sua vinda, que informava ser sua primeira escolha no país a cidade de
Recife, em Pernambuco. Ele percorreria o Brasil de norte a sul criando associações
sionistas nas comunidades menores nas quais ainda não havia nenhuma entidade
nacionalista. Conforme já descrevemos em outro lugar de nosso trabalho a estadia de
Wilensky no Brasil deu um grande estímulo aos adeptos do sionismo e permitiu dar um
novo passo em sua organização.
Tudo indicava que no ano de 1922 as diversas agremiações sionistas locais se
mostrariam dispostas a manter contato entre si, e tudo levava a crer que o melhor seria criar
uma organização central que pudesse aglutinar as associações dos diversos Estados
brasileiros.
Portanto, Jacob Schneider e outros da Tiferet Sion começaram a pensar e
planejar a realização de um Congresso Sionista de amplitude nacional, sendo que a data
marcada para o conclave era dia 15 de novembro de 1922, data significativa para o Brasil,
pois comemorava a Proclamação da República. Em 8 de novembro, J. Schneider telegrafou
à Central Sionista comunicando o acontecimento.
A abertura do Congresso, no qual participaram 39 representantes de 13 Estados
que falariam em nome de 14 associações sionistas realizou-se de forma solene. Jacob
Schneider, presidente do Comitê Organizador, abriu com um discurso, discorrendo sobre a
formação do movimento no Brasil e colocando como objetivo de primordial importância a
criação de uma Federação Sionista, que deveria se ocupar da coleta de fundos para os
israelitas, vítimas dos pogroms; para a criação de uma verdadeira escola judaico-brasileira;
para a criação de uma biblioteca sionista e para a difusão das idéias do movimento através
do país.
Na ocasião falaram também Eduardo Horowitz e Jacques Behar, representante
da associação Benei Herzl do Rio de Janeiro. Entre outras resoluções, ficou decidido que
seriam feitas campanhas do Keren Hayessod, do Keren Kayemet, e que seriam estimulados
todos os aspectos da vida judaica local – sociais, educativos e culturais. O Congresso foi
um verdadeiro chamado para a atividade sionista. O resultado imediato do encontro foi a
criação de uma Federação Sionista, cujo Comitê Central seria localizado no Rio de Janeiro,
sendo eleito como presidente de honra Maurício Klabin (São Paulo); presidente – Jacob
Schneider; vice-presidentes – Saadio Lozinski e David Levy; primeiro-secretário – Eduardo
Horowitz; segundo-secretário – Shalom Linetzki; tesoureiro-geral – Efraim Schechter;
ajuda – Boris Tendler; Keren Hayessod – Salomão Gorenstein; conselheiros – Júlio
Stolzenberg (Curitiba) e Miguel Lafer (São Paulo); conselho-fiscal – Simão Dain, M.
Koslovski e A. Harosh.
Assim, com o surgimento da Federação Sionista como coordenadora das
atividades do movimento no país inaugurava-se uma nova etapa da história do movimento
no Brasil. Vejamos agora o conteúdo dos protocolos do encontro que se realizou entre os
dias 15 e 21 de novembro de 1922.
153
326
Júlio Stolzenberg diferenciará entre esta fundada em 1912 e a Shalom Sion fundada oficialmente em 1917.
154
SHEKEL E SHEKEL-ZAHAV
325 Schmariahu Levin (1867-1935) foi um dos ativistas dos inícios do movimento sionista e a partir de 1920
passou a representar o Keren Hayessod percorrendo vários países em sua função.
156
EDUCAÇÃO JUDAICA
328
Saadio Lozinski foi um dos primeiros professores no Brasil, senão o primeiro a lecionar numa escola
judaica, a Maguen David, excluindo-se os professores que lecionaram em Philipson desde que a colônia foi
implantada pela JCA, em 1904, e Júlio Itkis, em São Paulo, que lecionava num Talmud Torá, em 1916.
157
UM ÚNICO JORNAL
329
Foi o fundador do primeiro jornal judaico no Brasil, publicado em ídiche em Porto Alegre em 1915
denominado “Di Menscheit” (A Humanidade). A mençaõ do seu nome nesse ano de 1922 antecede a de Jacob
Nachbin ,feita em 1929. V. de minha autoria o livro “Jacob Nachbin”, Nobel, São Paulo, 1985.
159
330
Um trabalho mais extenso, com o título de “A Nova Imigração Judaica no Brasil” foi publicado por Elias
Lipiner no livro “Breve História dos Judeus no Brasil”, de Salomão Serebrenick, ed. Biblos, Rio de Janeiro,
1962.
331
Além desta obra, Raizman publicou um livro importante no qual se destaca a parte relativa à criatividade
literária dos judeus no Brasil, sob o título “Ídiche Shereshkeit in Lender fun Portugalischen loschen”,
Muzeum LeOmanut , Sfat, 1975.
332
Kurt Loewenstamm, “Vultos Judaicos no Brasil”, Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1949-1956, 2 vol.
333
Egon e Frieda Wolff prepararam, em continuação a esse estudo, um trabalho sob o título “Judeus nos
Primórdios do Brasil- República”, compreendendo o período de 1889 a 1903, editado pela Biblioteca Israelita
H. N. Bialik, Rio de Janeiro, 1981 (a data não consta).
161
régia foi a Inglaterra, donde saíram os primeiros imigrantes, e entre eles também judeus. A
fim de favorecer esse processo, foi estabelecido um tratado de Aliança e Amizade, em
1810, no qual, entre outras coisas, garante-se aos estrangeiros e aos súditos ingleses a
liberdade de consciência e de culto. Tal artigo era necessário e ganhou importância, visto
que, durante séculos, a Inquisição havia incutido uma mentalidade própria e discriminatória
em relação àqueles que não exerciam a fé católica, e assim assegurava-se a anglicanos e
judeus a manifestação livre de suas crenças religiosas.
A partir dessa época podemos encontrar, entre os imigrantes ao Brasil, judeus,
que vinham isoladamente, e não somente da Inglaterra, mas também de outros lugares, tais
como a Alemanha, França, Prússia, Áustria, Hungria. E, por outro lado, encontramos a
significativa imigração marroquina e argelina.
Poderíamos estabelecer alguns marcos históricos importantes que causaram o
surgimento de certas ondas imigratórias judaicas no Brasil, ainda no século XIX, além da
imigração individual e esporádica do início daquele século. A turbulência na Europa de
1848, que vivia agitações revolucionárias, bem como a “Primavera dos Povos”, fez com
que muitos procurassem refúgio e depositassem esperanças no novo continente e nos países
que só então estavam começando a ingressar na história. Entre esses imigrantes
encontramos também muitos judeus da Alemanha, Áustria, Hungria, França, os quais,
cientes dos motivos políticos, também aspiravam encontrar meios de subsistência,
aparentemente mais fáceis do que os encontráveis em solo europeu. O mito da América já
se havia arraigado na época, e para os imigrantes judeus, assolados também pelo anti-
semitismo que tradicionalmente acompanhava os movimentos políticos e de emancipação
nacional na Europa, fez com que se encarasse o novo continente como a Terra Prometida.
Do mesmo modo, a Guerra Franco-Prussiana também deu motivos para que
muitos judeus partissem da França – principalmente da Alsácia-Lorena, cedidas à Prússia –
e viessem a se estabelecer no Brasil, no fundo não por motivos judaicos, mas antes pelo
fato de se sentirem patriotas franceses. Por outro lado, a formação de uma Alemanha
imperial e sua expansão econômico-comercial, associada a uma inversão de capitais no
exterior, fez com que essas firmas exportadoras instalassem filiais e enviassem agentes ou
representantes, entre eles muitos judeus, que vieram engrossar a população israelita
existente no Brasil.
O caso especial da imigração marroquina, que se iniciou realmente nas
primeiras décadas do século passado e que se instalou, em boa parte, no norte do Brasil, na
região do Pará e do Amazonas, está igualmente associado a acontecimentos locais
relacionados com o judaísmo da África do Norte, bem como à atração que o continente
desconhecido exercia para os estrangeiros.
A outra etapa importante da vinda dos judeus ao Brasil no período moderno está
associada ao grande processo imigratório gerado pelos acontecimentos na Europa Oriental,
mais especificamente na Rússia czarista de 1881, os quais motivaram a saída de dezenas de
milhares de judeus daquela região. Embora a maioria se dirigisse aos Estados Unidos,
muitos judeus também procuraram se estabelecer no Brasil. Também datam dessa época os
planos de colonização de judeus em território brasileiro, e entre esses devemos lembrar o da
sociedade alemã Deutches Central Komitee fuer die Russischen Juden, que em 1891,
enviou o jornalista Oswald Boxer, amigo de Theodor Herzl, para verificar in loco a
possibilidade de estabelecer uma imigração de judeus neste país. Ainda antes da missão de
Oswald Boxer, encontramos uma série de projetos de colonização de judeus no Brasil, a
162
partir das últimas décadas do século XIX, que antecipavam o projeto de colonização efetiva
da Jewish Colonization Association,.
Essa organização, fundada pelo Barão Hirsch, encetou um grande
empreendimento de colonização no sul do Brasil, a partir de 1904, e suas primeiras colônias
agrícolas foram Philippson,334 Quatro Irmãos, com seus núcleos Baronesa Clara, Barão
Hirsch no Rio Grande do Sul.
A partir da Primeira Guerra Mundial e logo após houve um aumento
significativo da imigração judaica ao Brasil, e podemos afirmar que os atuais centros de
vida comunitária judaica formaram-se tendo como origem essa última leva imigratória, seja
no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, ou outras cidades capitais dos mais
importantes estados brasileiros. Essa imigração provinha quase que inteiramente dos países
da Europa Oriental, porém, por outro lado, com a ascensão do nazismo, ela foi engrossada
pelos contingentes provenientes da Europa Ocidental, sobretudo dos países de fala alemã.
Essa imigração continuou ininterruptamente até a Segunda Guerra Mundial, não obstante a
política governamental brasileira na época da ditadura de Getúlio Vargas, que limitava e
restringia a entrada de judeus no Brasil por vários motivos, entre os quais a tendência a
nutrir simpatias políticas em relação ao Eixo.
A imigração mais recente, e que data dos anos que se seguiram à Segunda
Grande Guerra procedeu fundamentalmente da Europa e dos países do Oriente Médio, bem
como da África do Norte, esta última decorrente do conflito árabe-israelense e suas
conseqüências, desde que o Estado judeu foi proclamado, em 1948.
As origens da vida comunitária e seus elementos constitutivos – Costumava-
se pensar que os judeus vieram ao Brasil somente em nosso século e, ainda é muito comum
entre aqueles que lidam com o tema a falácia histórica de que a kehilá neste país teve
origem no mesmo período. A verdade é que, já na primeira metade do século passado,
encontramos entidades de caráter comunitário, tais como a União Shel Gemilut Hassadim,
fundada aproximadamente em 1846, e posteriormente a União Israelita do Brasil, fundada
em 1870, a qual reunia judeus das mais variadas origens, entre eles ingleses, alemães,
franceses, húngaros e outros da Europa Oriental. Porém, podemos considerar a formação
“atual” da comunidade judaica como datando da Primeira Guerra Mundial, quando a
maioria das suas instituições se definiram, seja aquelas de caráter cultural, filantrópico, de
ajuda mútua, assim como as religiosas e educativas. Boa parte dessas instituições
comunitárias originariamente procuravam imitar o caráter que aquelas possuíam na Europa,
pois seus fundadores, imigrantes do Velho Continente, somente podiam adotar moldes
organizacionais vivenciados e conhecidos por eles como eficientes em seu solo de origem,
os quais pouco a pouco iam sofrendo a influência da sociedade brasileira que os rodeava.
Em São Paulo conhecemos a fundação da Sociedade das Damas Israelitas, em
1916, e da Sociedade Ezra, fundada em 1915, como sociedades filantrópicas que tinham
por finalidade acolher os imigrantes europeus e fornecer-lhes os primeiros elementos de
subsistência e ajuda financeira, a fim de se adaptarem ao novo país. Tais sociedades, se
observarmos atentamente sua formação, foram criadas pelas famílias veteranas – algumas
no fim do século passado – que ascenderam economicamente dentro da sociedade brasileira
e procuravam ajudar seus irmãos que acabavam de se instalar no Novo Mundo. Ao lado
334
Sobre Philippson, temos o livro de memórias escrito de forma amena e no esstílo de uma narrativa pessoal
de Frida Alexander, “Filipson”, ed. Fulgor, São Paulo,1967. Outras memórias pessoais foram publicadas e
estudos acadêmicos estão sendo feitos sobre este mesmo tema.
163
saída do judeu do seu “bairro” para viver em lugar melhor localizado e mais privilegiado,
ou em uma residência melhor ou mais suntuosa, também levou-o a se afastar do “habitat
original” dos seus primeiros anos de imigrante, dos comentários e mexericos do bairro
judeu, da língua ídiche falada nas ruas, do contato com os acontecimentos cotidianos de seu
grupo, diminuindo, portanto, o “elan” que o vinculava a ele. Então, seu judaísmo deveria
ser mantido através de um esforço consciente e pessoal, que em muitos deles nem sempre
era encontrado. Um dos aspectos desse esforço era o fato de mandar os filhos para uma
escola judaica, o que nem sempre ocorria em proporção desejável para a preservação do
judaísmo local.
Um fenômeno sintomático e ilustrativo desse processo, ao qual poderíamos
chamar de assimilacionista, porém não deliberado – ainda que nem sempre a ascensão
econômica levasse o judeu a deixar de sê-lo ou assimilar-se – foi o gradual abandono da
cultura ídiche pela segunda geração de imigrantes, ao mesmo tempo que os órgãos de
expressão dessa cultura, tais como jornais, livros e teatro desapareciam paulatinamente da
vida judaica brasileira. O primeiro jornal em ídiche, “Die Menscheit”, fundado em 1915 em
Porto Alegre, teve no seu rastro uma seqüência de periódicos em ídiche publicados no Rio
de Janeiro e São Paulo, os quais reuniam uma inteligentsia judaica ativa e irrequieta. Ao
redor de um jornal concentravam-se e formavam-se grupos culturais que muitas vezes
chegavam a produzir literatos, cujas obras foram escritas em ídiche, hoje esquecidos,
juntamente com os periódicos, as editoras e as gráficas que as publicaram.
De modo melancólico, esses jornais foram perdendo seus leitores e, em São
Paulo, o último desses periódicos deixou de sair no último ano, após quase três décadas de
existência. Com exceção daquelas existentes na cidade do Rio de Janeiro, que outrora
reuniu as instituições culturais mais significativas por ser a capital do país até a construção
de Brasília, e que mantém até hoje dois jornais em ídiche, assim como duas bibliotecas 335
com importantes acervos nessa língua (que não encontram mais leitores), as demais
fecharam e desapareceram sem deixar rastro.
Por outro lado, com o correr do tempo, as instituições comunitárias locais
passaram a se organizar em federações estaduais e confederações nacionais, principalmente
em decorrência da necessidade freqüente da comunidade judaica de ter que assumir
posições globais perante questões internas, bem como externas, imprescindíveis num país
onde a instabilidade política caracterizou seus governos em sua existência histórica.
Um dos traços marcantes das instituições comunitárias no Brasil, assim como
em outros lugares, foi o agrupamento de judeus ao redor delas, segundo suas afinidades
ideológicas que traduziam fielmente as ideologias que imperavam no judaísmo europeu.
Em outras palavras, poderíamos dizer que todas elas estavam representadas de uma forma e
de outra, e concentradas ao redor de uma ou de outra instituição, seja ela de caráter cultural
ou de outra índole qualquer. Bundistas e assimilacionistas, de direita ou de esquerda,
sionistas de todo os matizes, encontravam-se nas instituições comunitárias assumindo
posições “políticas”, de acordo com suas doutrinas e orientações, em relação às questões da
comunidade e frente aos problemas da vida judaica. Boa parte dessas correntes já estava
organizadas nas primeiras décadas do século XX por ocasião da vinda da grande leva
imigratória.
O sionismo no Brasil – Não podemos dizer exatamente quando e quem
formou os primeiros núcleos sionistas no Brasil, mas dos poucos dados obtidos em uma
335
A Biblioteca H.N.Bialik e a Bilioteca Scholem Aleichem.
165
pesquisa que ainda está dando seus passos iniciais, sabemos que no início do século, em
Belém do Pará, no norte do Brasil, o centro da imigração marroquina, se encontravam
sionistas que se correspondiam com outros da Europa, inclusive com Max Nordau, que teve
uma influência muito grande, como pensador e humanista, também sobre a intelectualidade
brasileira não-judia daquele tempo. Historicamente, sabemos do encontro mantido em casa
de Jacob Schneider, conhecido como um dos veteranos do movimento sionista no Brasil,
encontro que se realizou em março de 1913, no Rio de Janeiro, que visava organizar um
dos primeiros grupos sionistas naquela localidade. Ao redor do jornal “A Columna”,
publicado em Português em 1916, e orientado por um intelectual de prestígio – David José
Perez – agruparam-se também sionistas, que se identificaram com essa orientação dada ao
periódico por seu fundador.
No Rio de Janeiro, que na época polarizava a vida judaica no Brasil, fundou-se
um grupo de caráter sionista, que atuou em campanhas do Keren Kayemet (Fundo Nacional
Judaico) bem como participou, em 1916, na fundação do comitê brasileiro do American
Jewish Joint Distribution Comitee (JDC). Esse grupo de nome Tiferet Sion também se
beneficiou das campanhas, mostrando-se ativo na defesa da política sionista, em oposição a
outras correntes da comunidade e participando até mesmo de acontecimentos ligados ao
movimento sionista mundial.336
Tomamos conhecimento da existência, no mesmo ano, de uma escola judaica
sob a orientação de Saadio Lozinski, que era um ativista na Associação Scholem Aleichem,
fundada em 1915, mas tinha suas raízes na religiosidade do movimento Mizrachi. A partir
de 1921, começaram as campanhas do Keren Hayessod, com a vinda de um enviado
especial, Y. Wilensky.
A Federação Sionista do Brasil foi fundada em 1922 após um encontro de
delegados que representavam as várias organizações, sob a presidência de Maurício Kablin.
O primeiro presidente foi Jacob Schneider. Seu secretário Eduardo Horowitz, que fora um
dos fundadores do Tiferet Sion, destacou-se também como jornalista e colaborador de um
dos primeiros jornais em ídiche o “Dos Idische Vochenblat” (O Semanário Israelita),
fundado em 15 de novembro de 1923. No número comemorativo do primeiro ano de
existência desse jornal temos um artigo de Horowitz sobre o sionismo no Brasil, sob o
título, “Vegen Zionism in Brazil” (Acerca do sionismo no Brasil). Do mesmo modo,
podemos encontrar outros artigos sobre esse tema nos quais se revelam a existência e a
atuação de grupos sionistas em várias cidades do país.
Nesse período encontramos a comunidade claramente dividida em duas
tendências ideológicas que se debatiam e degladiavam: o sionismo e o “progressismo”. A
disputa não se realizava apenas no plano ideológico; visava, acima de tudo, conquistar
posições políticas de influência institucional dentro da comunidade. Algumas das
instituições que inicialmente não tinham nenhuma conexão com ideologias esquerdizantes
acabaram sendo tomadas pelos adeptos dessa linha, como ocorreu com a Biblioteca
Scholem Aleichem do Rio de Janeiro, na época. A luta político-partidária transcorria
intensamente também dentro do próprio movimento sionista, sendo que os partidos
encontravam seus líderes naturais entre os mais ativos recém-imigrados, bem como entre os
veteranos da comunidade. Sabemos que certos intelectuais judeus vindos da Argentina
haviam sido os primeiros a introduzir o conhecimento das correntes políticas dentro do
sionismo. Entre estes estava a figura de Aron Chachamovitz, que pertenceu ao movimento
336
Em São Paulo sabe-se da existência, na mesma época, de um Centro Sionista Ahavat Sion.
166
337
A respeito desse acontecimento já escreveu Samuel Malamud no verbete “Zionism in Brazil”, na
Encyclopaedia of Zionism and Israel, vol. 1, Herzl Press and McGraw, N. York, 1971.
167
para atender às suas necessidades nos seus mais variados níveis e aspectos, sejam
econômicos, sociais, culturais e, em parte também políticos. Porém, a mudança política no
Brasil, ocorrida com a ditadura de Getúlio Vargas, provocou uma significativa interrupção
no seu processo de consolidação. Nos anos 1938-41, o governo de Vargas decretou o
encerramento de todas as atividades políticas de estrangeiros e proibiu a publicação de
jornais e revistas em línguas estrangeiras. 338 Esse foi um rude golpe para a vida cultural
judaica, bem como para as instituições comunitárias e em particular para o movimento
sionista. Tal situação perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando em 1945, a
proibição contra as atividades sionistas foi revogada.
A comunidade judia após a Segunda Guerra Mundial – A Segunda Guerra
Mundial deu um grande impulso ao desenvolvimento econômico do Brasil, pois os esforços
de guerra dos aliados necessitavam da colaboração e da matéria-prima do país que, por sua
extensão territorial, era privilegiado em riquezas naturais e estava geograficamente afastado
dos campos de batalha. O grande surto industrial e comercial brasileiro, mais
particularmente o de São Paulo, fez com que os judeus participassem dessa prosperidade
material e se empenhassem ambiciosamente no processo de ascensão econômica.
Paralelamente ao processo de crescimento econômico e material, a comunidade
sofreria uma mudança espiritual profunda ao tomar conhecimento gradativo da tragédia que
havia atingido o judaísmo europeu durante os anos da guerra. O impacto do Holocausto
atingiu profundamente a todos, como indivíduos e como corpo coletivo, provocando uma
nova postura em relação à nacionalidade. O choque foi maior na medida em que o judaísmo
brasileiro- assim como em todo o mundo e em particular na América Latina- não estava
preparado para a enormidade da destruição e da catástrofe, devido à distância geográfica e à
escassez de informações sobre o que acontecera na Europa. Quando despertamos do
pesadelo, a realidade pareceu-nos incomensuravelmente pior do que poderíamos imaginar.
O significado do Holocausto levou anos para ser inteiramente compreendido e a ferida
aberta no corpo da nacionalidade judaica sangrava cada vez mais, desde o momento em que
se tomava ciência do que sucedera. A dor marcou aquela geração que ela própria não havia
passado pelo inferno europeu, e da dor nasceu a disposição pessoal de se entregar à causa
judaica e conseguir, a todo custo, criar um Estado Judeu, para que nunca mais se repetisse
aquela tragédia, única em suas dimensões na história milenar de nosso povo.
A partir de 1945, o sionismo renasceu com ímpeto nunca visto nas ruas
judaicas das cidades brasileiras e foi a mola-mestra na vida comunitária. Ao mesmo tempo,
a luta na Palestina contra o Mandato Britânico, naqueles anos de grande tensão espiritual e
nacional, indicava que grandes coisas estavam para acontecer, sendo impossível ficar
indiferente ao que se passava; ao contrário, era preciso participar ativamente, pois estavam
em jogo grandes decisões históricas que definiriam o destino do povo judeu para sempre.
Grande porcentagem da juventude judia alinhou-se ao redor dos movimentos
juvenis que surgiram em território brasileiro. Possuíam as mesmas características
ideológicas daqueles que existiram na Europa antes da guerra e estavam vinculados aos
corpos partidários que os representavam politicamente nos órgãos e instituições do
movimento sionista, em nível local e nacional. E, a parte da juventude judaica que não
338
A 18 de abril de 1938 foi baixado um decreto-lei que proibia aos estrangeiros qualquer atividade política
sob pena de deportação. No ano seguinte, em 18 de junho de 1939, foi baixado o decreto n. 2277 exigindo que
os jornais e publicações em línguas estrangeiras publicassem ao lado de cada artigo a resepctiva tradução ao
português.
168
relação às suas minorias nacionais, mas apela para uma participação ativa nos problemas do
país. Nesse sentido, o sionismo poderá ser encarado como uma questão de dupla fidelidade
por parte dos judeus e, ultimamente, algumas manifestações próximas a essa interpretação
apareceram na imprensa, ainda que expressas como opiniões individuais, ao se tratar da
questão da posição do Brasil frente ao conflito no Oriente Médio.
Nos últimos tempos, tais opiniões têm recebido o estímulo de uma política
governamental voltada ao mundo árabe. Obviamente isso se deve a interesses econômicos
que o país em desenvolvimento sustenta em relação a certos produtos de exportação,
alimentando a esperança de conquistar o mercado árabe, africano e do Terceiro Mundo em
geral. Por outro lado, a política petrolífera árabe em relação a um país que depende desse
produto para sua sobrevivência leva à submissão moral, que, embora criticável, é, na
realidade inevitável. Ademais, a propaganda árabe, que por vezes penetra por vias indiretas,
causou a divulgação de idéias antijudaicas e anti-sionistas, segundo modelos conhecidos em
outros lugares, mais precisamente na Argentina, que serve de centro estratégico para tais
atividades na América do Sul.
O anti-semitismo, que, normalmente, foi repudiado pelo brasileiro médio e
esclarecido, não deixou de existir isoladamente em grupos de direita e de esquerda, 339 e,
nesses últimos tempos, a “nova esquerda” mescla, consciente ou inconscientemente,
argumentos anti-semitas quando assume uma postura crítica e de condenação do sionismo e
de Israel, aliado aos estereótipos de ser reacionário e joguete do “imperialismo”. Essa
posição da “nova esquerda” caracteriza hoje, em geral, a visão assumida pela classe
estudantil e certa intelectualidade, que tende igualmente a encarar – em nível nacional – os
judeus como identificados com o regime dominante, devido a sua posição classista e ao seu
nível econômico- novamente um estereótipo que a realidade contradiz.
Sob esse aspecto, o movimento sionista no Brasil e a comunidade judaica em
geral enfrentam hoje uma situação em que o estudante universitário judeu, influenciado
pelo clima ideológico reinante nas universidades do país, acaba assimilando a mesma
convicção da esquerda sobre Israel e o nacionalismo judaico. Ultimamente, o abismo
existente entre o que essa juventude universitária judaica chama de “establishment
comunitário”, ou seja, a liderança sionista que está à testa das entidades ou instituições
comunitárias durante muitos anos sem se renovar, tem se aprofundado cada vez mais,
passando a ser um sério motivo de preocupação por parte daqueles que acompanham de
perto a vida comunitária.
Na verdade – e ainda que seja doloroso dizê-lo – o movimento sionista não
encontrou até agora o caminho certo para enfrentar o grande desafio da juventude
universitária, cuja crítica radical leva a encarar com suspeita e desprezo toda atividade
comunitária, como se fosse uma ocupação de “burgueses” alienados da realidade social
brasileira. Tais conceitos têm sido expressos em debates públicos organizados e dirigidos à
juventude judaica.
Assim sendo, podemos falar em dois tipos de assimilacionismo. O primeiro, já
mencionado acima, é aquele caracterizado pela vontade do judeu de integrar-se à sociedade
que o rodeia, tendo em vista uma ascensão econômica e social, que é facilitada pela quebra
de barreiras culturais e religiosas. Mas nesse caso não é obrigatório que a sua identidade
339
O movimento integralista no Brasil, que teve certa influência em certos círculos intelectuais e políticos na
década de 30, propagou idéias anti-semitas inspiradas no nazi-facismo europeu, através de seu porta-voz
Gustavo Barroso.
172
judaica desapareça pois não há nenhuma relação direta entre o nível socio-econômico de
que desfruta o judeu e sua identificação nacional-religiosa. O segundo, que a nosso ver é
mais perigoso e destrutivo, é aquele cuja base é a negação do judaísmo e de seus valores em
nome de pretensos ideais de transformações sociais universais, como se ambos fossem
excludentes. A história do sionismo já conheceu na Europa, há muito tempo, esse tipo de
formulação dicotômica, e sabemos muito bem que os teóricos do sionismo socialista
preocuparam-se em eliminar as contradições aparentes que atormentavam as gerações
anteriores.
Berl Katzenelson lembra, com muita ênfase, na sua história do movimento
obreiro judeu (volume 11 de seus escritos, na edição hebraica ), como parte de sua geração
acabou atirando-se nos braços da “Grande Revolução”, ou seja, a Revolução Russa, que por
sua vez, acabou atraindo muitos da “pequena revolução”, ou seja, o nacionalismo judaico
que aspirava criar um Estado próprio na Palestina. Aparentemente, estamos assistindo no
meio da juventude judaica o retorno da velha discussão que se traduz em uma postura
assimilacionista apoiada em ideologias de esquerda, mas que não se diferencia de outro
assimilacionismo qualquer.340 O fato é que o movimento juvenil judaico tradicional já não
possui a força de outrora, e o seu total esvaziamento leva o estudante judeu a procurar
satisfazer suas inquietudes em associações ou grêmios de caráter geral. É claro que o
contato entre jovens judeus e não-judeus, em um país onde não encontramos uma manifesta
discriminação ou preconceitos em relação às minorias nacionais ou religiosas, constituindo-
se numa sociedade multicultural e aberta, apresenta uma outra face, que é a do melting-pot
onde as diferenças de identidade nacional se anulam e na qual abre-se uma via para o
casamento misto, que cresce numa proporção assustadora entre os membros da nova
geração, perplexa e insegura frente a um mundo em mudança.
Sem pretendermos entrar a fundo na questão341, antes de finalizarmos devemos
fazer ainda algumas considerações em torno do sionismo como ideologia, assim como é
visto pela diáspora brasileira e por boa parte daqueles que se sentem identificados com o
movimento. Aos olhos da maioria, na verdade, o sionismo passou a significar mais um
movimento de identificação política e prática com o Estado de Israel e seus problemas
diários e, não mais a velha aspiração maximalista de solucionar a “questão judaica” através
da “redenção” (gueulá) resolvendo desse modo o problema de seu destino histórico-
nacional, tal como foi formulado por pensadores em seus primórdios. A atuação sionista
após a criação do Estado Judeu, no turbilhão dos problemas que se apresentam com sua
própria existência política , deixaram no esquecimento e ofuscaram as grandes causas, o
leitmotiv e as raízes ideológicas do movimento. Hoje, mais do que nunca, se faz necessário
lembrar, revelar e divulgar suas raízes e fundamentos, o que exige do próprio movimento a
criatividade indispensável para formar novos marcos educativos apropriados visando esse
objetivo. Em outros termos, se hoje nos encontramos diante da necessidade de uma revisão
espiritual e de uma adaptação dos valores do pensamento sionista tradicional, por outro
lado, temos a obrigação de transmitir fielmente a herança deixada pelos fundadores do
340
Ultimamente, com a abertura democrática, ocorrida um pouco antes e após as eleições de 1978, tais
discussões passaram a ser mais públicas e frequentes.
341
Uma das tentativas mais significativas para o estudo crítico da diáspora foi feita com a realização dos
seminários no Beit Hanassi (Casa Presidencial) sob a epígrafe de The Continuing Seminar on World Jewry
and the State of Israel, em jerusalém, sob a orientação do Prof. Moshe Davis. Também o judaismo latino-
americano foi estudado por especialistas interessados nessa área.
173
movimento, uma vez que, nas circunstâncias em que vivemos, precisamos, no que diz
respeito à nova geração, começar freqüentemente do próprio começo.342
342
Um passo positivo dado pela Organização Sionista Mundial foi a criação, nos últimos anos, dos
Seminários de liderança em alguns países da América Latina, inclusive o Brasil.
174
efetiva da comunidade brasileira se deu com o incentivo à imigração a Eretz Israel que os
agrupamentos juvenis chalutzianos empreenderam dirigindo-se para kibutzim e outras
formas de colonização agrícola. Verdade é que já em 1932, membros do movimento juvenil
“Hatchia”, existente no Rio de Janeiro e precursor do Dror, partiram para a Palestina e se
integraram à sua colonização agrícola.
Além do mais, as campanhas de ajuda à imigração dos sobreviventes do
Holocausto, ao futuro Estado judeu e para a compra de armas para a guerra, que
inevitavelmente eclodiria logo após a proclamação do Estado judeu, em maio de 1948,
encontraram eco favorável dentro das comunidades brasileiras, assim como em todo o
judaísmo mundial.
Essas campanhas promovidas por instituições locais tinham, de fato,
orientação e o estímulo de representantes do movimento sionista mundial, da Agência
Judaica e de organizações filantrópicas e assistênciais como o Joint e a Hias, que
desempenharam um papel vital no resgate, salvação e reconstrução da vida judaica onde se
fazia necessário.
Enviados especiais do movimento sionista, com sua retórica inflamada,
atraíam multidões ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo. O mesmo ocorria nos salões das
principais cidades brasileiras. Escritores e intelectuais judeus da Argentina, entre eles
Alberto Gerchunoff, Leo Halpern, Moisés Senderey, bem como de outros países, visitavam
o Brasil numa campanha de esclarecimentos dos ideais nacionalistas entre os seus colegas
não-judeus.
As campanhas de defesa, em nome da Haganá, tiveram um efeito aglutinador
enorme ante a multiplicidade de partidos e associações com ideologias contrárias umas das
outras. Basta lembrar que o impacto causado na opinião pública pelo martirológio judaico
mundial ainda estava muito presente nas multidões que se reuniam nos grandes comícios
promovidos nas cidades brasileiras, em particular em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto
Alegre, que aglutinavam verdadeiras multidões. Foi quando o “Poalei Sion” (Operários de
Sião), os “Alguemeine Zionistn” (Sionistas Gerais), o “Heirut”, e mesmo os assim
denominados “Progressistas” e outros grupos nem sempre exatamente definidos como
sionistas, mas com um orgulho judaico que o momento histórico despertava, estavam
irmanados pelas mesmas esperanças e aspirações de soberania política do povo judeu.
A vida partidária e a disputa ideológica haviam criado órgãos de imprensa que
serviam de veículo às concepções dos múltiplos agrupamentos judaicos, que tinham sido
silenciados oficialmente pelo governo brasileiro, em 1941, o qual proibira a publicação de
periódicos em língua estrangeira. Restaram, naqueles anos, poucos jornais judaicos em
língua portuguesa, que assumiram um papel importante na divulgação dos acontecimentos
internacionais e pela informação do que se passava nas diversas comunidades espalhadas
por todo o país.
Em São Paulo, sob a orientação do Dr. Alfred Hirscheg, tivemos a “Crônica
Israelita”, além de alguns boletins partidários incluindo-se entre eles o da Organização
Sionista Unificada. Após 1945, no Rio de Janeiro, impôs-se a revista “Aonde Vamos?”,
fundada em 1943 pelo combativo e incansável Aron Neumann, que soube colocá-la à
disposição de todos aqueles que atuavam nas associações comunitárias. Também em Porto
Alegre e Curitiba boletins locais serviam como informativos e formadores de opinião.
A imprensa brasileira, que naqueles anos estava pouco preparada para
entender o que se passava no Oriente Médio e a questão da Palestina, afundava num mar de
desinformação, confundindo seus leitores com uma avalanche de notícias desencontradas.
176
Essas eram muitas vezes manipuladas por mãos invisíveis, ou bem visíveis, dos partidários
da visão pró-árabe sobre a questão, o que tornava a imprensa judaica um instrumento vital
de informação para as comunidades.
Já em 1947 estabeleceu-se um “Comitê Pró-Haganá”, sob a orientação da
Organização Sionista Unificada do Brasil, que ressurgira em 1946, após a queda da
ditadura de Getúlio Vargas, período em que tivera de encerrar oficialmente suas atividades.
O Comitê reunia representantes de todos os partidos que se identificavam com o
nacionalismo da época. Formou-se também, em 1947, um Comitê Brasileiro Pró-Palestina,
para informar a opinião pública brasileira e obter o apoio do Brasil na votação da
Assembléia da ONU, que deveria aprovar a partilha da Palestina e a criação de um Estado
judeu, em 29 de novembro de 1947. O movimento sionista atuava junto aos governos dos
países-membros das Nações Unidas para conseguir obter os votos da maioria, o que iria
coroar décadas de luta política e de realização colonizadora na Palestina. Nesse sentido,
formou-se um Comitê Mundial Pró-Palestina. O Comitê brasileiro, afiliado ao Comitê
Mundial e em contato com outros dos países da América Latina com o mesmo objetivo, foi
decisivo na histórica sessão da Assembléia da ONU presidida por Oswaldo Aranha.
O Comitê Brasileiro Pró-Palestina era composto por homens ilustres, como o
prof. Inácio Azevedo do Amaral, reitor da Universidade do Brasil, o senador Hamilton
Nogueira, homem de destaque nos meios católicos; intelectuais, jornalistas e políticos,
como José Lins do Rego, Celina Padilha, Maria Luiza Azevedo Cruz, Flora Possolo, Eloi
Pontes, Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Carlos Luiz de Andrade Neves,
Deputado Carlos Vergal, Tito Lívio de Santana e outros. O seleto grupo que o formava não
se limitou a discursos. Imbuído da importância de sua missão, passou a uma opção prática
de esclarecimento editando um boletim e ampliando o número de adesões para a causa
sionista em todo o país. Na ocasião, deveria realizar-se uma Conferência Interamericana
dos Ministros de Relações Exteriores, com a presença de representantes de todo o
continente, ocasião em que o Comitê Brasileiro poderia influir e prestar um serviço
relevante junto aos delegados presentes. Ao mesmo tempo, poucos meses antes de
novembro de 1947, procurava-se conquistar o apoio dos partidos políticos no governo e
compor uma delegação para dialogar com o Ministro do Exterior Raul Fernandes sobre a
posição brasileira em relação à questão palestina.
O resultado final da votação na ONU foi favorável à criação do Estado judeu.
A aprovação final lançou novos desafios ao povo judeu logo após o ato de proclamação de
sua independência e afirmação de sua soberania sobre o território que lhe coube na partilha,
em 14 de maio de 1948.
Porém iniciava-se uma nova fase devido a invasão e os atos bélicos encetados
pelos Estados árabes contra o seu novo vizinho, sendo que e as conseqüências dessa Guerra
de Independência mudariam significativamente o panorama político da região até os nossos
dias. Tratava-se de um duelo de vida e morte que decidiria a existência de Israel e que,
novamente, implicava a ajuda concreta de toda a diáspora e da comunidade judaico-
brasileira. Podemos afirmar, com segurança, que nesse capítulo pouco conhecido, e que, em
parte, permanece oculto para a história contemporânea, a comunidade não decepcionou. 343
343
O autor publicaria o livro “Manasche, sua vida e seu tempo, ed. Perspectiva, São Paulo, 1996, no qual
apontaria o papel da comunidade judio-brasileira na mobilização de fundos para defesa do Estado de Israel
durante a sua guerra de Independência.
177
Passados são muitos anos desde que a sessão histórica da Assembléia das
Nações Unidas, presidida pelo estadista Oswaldo Aranha, aprovou a resolução de criar de
um Estado Judeu na Palestina. A atuação do eminente brasileiro para que surgisse o atual
Estado de Israel gravou-se nos anais da história milenar do povo judeu e será lembrada
pelas gerações presentes e futuras com um eterno sentimento de gratidão. Sem dúvida,
Oswaldo Aranha já faz parte da história judaica e é personagem central de um de seus
capítulos decisivos, o que justifica plenamente a publicação de sua biografia pela Federação
Israelita do Estado de São Paulo, sob a iniciativa de seu presidente, Dr. José Knoplich.
A bem da verdade, ainda resta muito por fazer sob o aspecto da pesquisa
histórica relativa ao período de atuação de Oswaldo Aranha como Ministro do governo de
Getúlio Vargas, que adotou uma postura negativa em relação à imigração judaica no Brasil
no período do Estado Novo.
Sabemos que o todo-poderoso Presidente, naqueles anos sombrios, inclinava-
se claramente a um filogermanismo comum a muitos governos sul-americanos. O
militarismo alemão era muito apreciado e muitas vezes compartilhado com entusiasmo
pelos círculos militares em nosso continente e, portanto, não é de estranhar que também
assimilassem o vírus anti-semita apregoado pela ideologia nazista desde sua ascensão na
Alemanha, entre as duas guerras mundiais.
No Brasil, a introdução de idéias e preconceitos antijudaicos se intensificou
com a expansão do integralismo, que endossou conceitos do pensamento político
nazifascista europeu. A Alemanha chegou a dar o apoio direto e o estímulo, através de
agentes e organizações nazistas locais, à difusão do anti-semitismo em nosso país, assim
como em outras partes do continente. Nas colônias de fala alemã no sul do Brasil,
associações e partidos ostentavam abertamente sua identificação com a ideologia
nazifascista e sua aspiração de criar uma Nova Ordem. Por outro lado, enquanto o Brasil
não se definiu a favor dos Aliados durante a II Guerra Mundial, tais elementos recebiam o
apoio tático do governo getulista, que empregava em sua política a figura tétrica de Filinto
Müller, que perseguiu e entregou à Gestapo Olga Benário, cuja morte certa não seria difícil
de prever na sua condição de judia e comunista. Porém, quem se importaria naqueles
tempos por uma “judia comunista”, quando, logo após, o governo vedava o ingresso de
uma imigração judaica, ameaçada na Europa, através de circulares secretas assinadas e
emanadas do gabinete do Ministério de Relações Exteriores? O teor dessas circulares, que
publicamos em outro lugar344, não deixa margem a dúvidas sobre sua orientação
discriminatória quanto à imigração que ela deveria acolher. O nome Aranha assina esses
documentos, mas não podemos estabelecer com exatidão quem os inspirou, pois a
atmosfera xenófoba e pró-nazista vinha impregnando os círculos governamentais e aquele
Ministério, anos antes de o mesmo assumir sua direção, e na prática ela se fazia presente
desde a ascensão do ditador gaúcho ao poder.
344
Estudos sobre a Comunidade Judaica no Brasil, ed. Fed. Israelita do Est. de São Paulo,
São Paulo, 1984, pp. 50-54.
178
345
Morais, F., Olga, Ed. Alfa-Omega, São Paulo, 1985, p. 173.
179
346
Depoimento escrito fornecido ao autor pela escritora Sultana Levy Rosenblatt, residindo atualmente nos
Estados Unidos.
180
347
Mesmo estudiosos, como Meyer Kutchinsky, tinham noção errônea acerca da imigração moderna ao
Brasil, como se pode verificar em seu estudo “Dos literarische schafen fun yidin in Brazil”(A criação literária
dos judeus no Brasil) , Argentiner YWO Schriften, B.A., 1945, pp. 189-197.
348
Não sabemos exatamente de que membro da importante família Worms se trata.
349
A respeito dos cemitérios de São Paulo vide de Egon e Frieda Wolff, Sepulturas de Israelitas II, Cemitério
Comunal Israelita, Rio de Janeiro, 1983.
182
350
Jacob Schneider relata, em suas “Zichroines” que, em 1903, “chegaram a Sokoron três judeus, que
moraram quatro anos no Brasil... Sabia que, no Brasil, numa pequena cidade de nome Franca, morava um seu
parente, Tabacow, e isso reforçou mais ainda sua decisão de imigrar ao Brasil”.
183
“I PARTE
II PARTE
III PARTE
Sociedade Ezra, Isaac Ticker e Salomão Lerner; pelo Talmud-Torá, Isaac Weissmann e
Miguel Jaroslavsky; pela Biblioteca Israelita, Simão Gomievsky e Nakem Resnik; e pelo
Clube Philo Dramático Musical, Rodolfo Gutner e Maurício Levkovitch.
Pelo visto, eram essas as entidades comunitárias existentes na época em São
Paulo, faltando somente na relação acima a Sociedade Sionista Ahavat Sion, da qual temos
conhecimento através de várias notícias que o professor David J. Perez publicou em seu
periódico “A Columna”.
Em outubro de 1916, David Perez era convidado por Maurício Klabin,
“sustentáculo do sionismo no Brasil” – como é denominado no citado periódico – a
proferir conferência na capital paulista, sendo calorosamente recebido por todas as
sociedades e, entre elas, mencionava-se a Ahavat Sion, representada pelo ativista Rafael
Chachamovitz, seu secretário.
alinhando-se com adeptos das mais variadas tendências de esquerda e direita, mas sobre-
tudo o que vai caracterizar o seu partidarismo é a imitação do que existia nas comunidades
judaicas do Velho Continente. O imigrante, além da esperança, trazia também consigo o
“seu partido” ou a sua facção, seja ela do Bund, Poalei Zion, sionistas de todos os matizes
ou as ideologias de esquerda, não ligadas diretamente ao mundo judaico.
PARTIDOS POLÍTICOS
a partir de 1929, como anexo do jornal “Folha da Manhã”, que havia aberto o periódico à
publicação de seções em outras línguas faladas pelas diversas comunidades de imigrantes
residentes na metrópole paulista.
Marcos Frankenthal, em 1931, criaria um periódico, com a ajuda de Elias
Amstein e José Nadelman, que perduraria durante muitos anos, com o nome de “San Pauler
Idiche Tzeitung” (Jornal Israelita de São Paulo), com amplo noticiário sobre os
acontecimentos sociais da comunidade paulista e com bom corpo de colaboradores, que
viam naquele órgão uma oportunidade ímpar de se apresentarem como literatos e
jornalistas, e entre eles encontrava-se o historiador Isaac Raizman que atuou como redator
nos anos de 1933-1935. Raizman publicou em São Paulo, em 1935, sua “História dos
Israelitas no Brasil” (em ídiche sendo traduzida em 1937 ao português).
Pouco após a saída de Raizman da redação, viriam ocupar seu lugar Salomão
Steinberg e o conhecido historiador Elias Lipiner, além de contar com a colaboração de
Nelson Wainer, até encerrar suas atividades, devido à proibição de 1941, por parte do
Governo de Getúlio Vargas, de se editarem periódicos em língua estrangeira.
Claro está que o jornalismo judaico em São Paulo acabaria por se manifestar
também em português, e já em 1932 Fernando Levisky traria à luz o periódico “A
Civilização”, que contava com a participação do professor Silveira Bueno. Em seguida,
Nelson Wainer sairia com o “Páginas Israelitas”, e, em 1940, começaria a ser publicado o
periódico “Crônica Israelita”, que estava, de certo modo, ligado à Congregação Israelita
Paulista, fundada em 1936 pelos imigrantes da Europa Central, de fala alemã, cujo órgão
esteve sob a redação culta e inteligente do saudoso Dr. Alfred Hirschberg.
Em resumo, se olharmos para a comunidade, a partir do final dos anos 20,
veremos que, sob todos os aspectos, sejam eles religiosos, sociais, culturais ou econômicos,
a vida judaica local encontrava-se razoavelmente amparada por instituições. Mesmo o clube
esportivo Macabi e o já desaparecido Círculo Israelita, com seus tradicionais bailes (até de
Iom Kipur!), remontam àqueles anos, preenchendo os anseios e atendendo ao gosto e modo
de vida daquela geração. Muitas daquelas organizações ficaram obsoletas, e mesmo suas
funções anacrônicas, como foi o caso da “Laie SporCasse” (Caixa Econômica) , que, mais
tarde, seria a Cooperativa do Bom Retiro (fundada em 1928).
apenas pelos ecos do que se passava no Oriente Médio, pelos esforços de tornar realidade a
criação de um Estado Judeu.
Esses últimos grandes e significativos eventos contribuíram decisivamente para
uma mobilização comunitária jamais conhecida anteriormente, o que explica o surgimento
de novas instituições nas décadas próximas a eles e que se manifestaram em todos os níveis
e camadas sociais, do mesmo modo que em toda as idades. Mas, a partir desse momento, a
comunidade passaria por transformações internas que merecem ser estudadas em uma
crônica referente aos nossos dias.
189
23. A Escola Israelita Brasileira Talmud Thora Beith Jacob (60 anos de
existência: 1933-1993)
quando vinham beliscar. Quem poderá esquecer os dias ensolarados e o cair da tarde na rua
da Coroa?
Em 1939, uma comissão formada por Raphael Markman, Zvi Yatom, Max
Jagle, Rodolpho Schraiber, L. Zitman e outros, ficaria incumbida de reestruturar o Macabi,
conforme notícia veiculada no “Velt-Spiegel”(Espelho do Mundo) n.º 8, de janeiro de
1940.
Mais tarde o Macabi ficaria ligado aos destinos do Círculo Israelita, fundado
em 1928, e ao Centro da Organização Sionista, que realizaria parte de suas atividades no
clube.
O Clube Macabi destacou-se em várias modalidades esportivas e participou de
campeonatos nacionais e internacionais, revelando um bom número de atletas da
comunidade judaica. Os valorosos defensores do Macabi compareceram nas Macabíadas
Pan-americanas e Mundiais, e em torneios em países da América Latina e Israel.
Ao adquirir a área de 36.000 metros quadrados à avenida Nova Cantareira, o
Macabi já se encontrava entre os clubes tradicionais da cidade de São Paulo, e além de
esportes, também dava atenção às atividades culturais, como fizera, efetivamente, desde os
primeiros anos quando Max Jagle era o “regisseur” de um grupo dramático de língua
ídiche.
Nesse ínterim, outro clube judaico já se fazia presente na vida comunitária, mesmo assim os
“macabeus”, como sempre, mantiveram-se fiéis ao nome e patrioticamente agüentaram as
venturas e desventuras de seu clube, que acima de tudo, escreveu as páginas mais belas da
história da coletividade israelita de São Paulo.
192
A história dos judeus em São Paulo, assim como no Brasil, apesar dos avanços
obtidos nos últimos anos com o surgimento de excelentes pesquisadores, ainda oferece um
campo amplo e fértil de trabalho aos interessados na área. Pois há o que fazer, se
considerarmos os poucos trabalhos existentes sobre as sucessivas levas imigratórias desde
os inícios do Brasil Independente, que se radicaram na grande extensão do território
nacional.
Mas o trabalho científico realizado nas instituições universitárias, e fora delas,
por historiadores que receberam seu adestramento profissional nos bancos escolares, deve
muito aos “cronistas” que intuíram a importância de se registrar eventos, acontecimentos e
pessoas. Sem os memorialistas ou cronistas, muito do que hoje sabemos ter-se-ia perdido
para sempre, uma vez que o pouco zelo para preservar arquivos institucionais e pessoais
caracterizou, em boa parte, as primeiras décadas da imigração judaica contemporânea. Isso
se explica por dois motivos fundamentais, entre outros, que são:
a) A maioria absoluta dos imigrantes era pobre e precisava concentrar sua atenção na
sobrevivência diária.
b) Poucos tinham formação suficiente para dedicar-se a criar uma instituição ou
arquivo destinado tecnicamente a esse objetivo; isso viria a ocorrer bem mais tarde,
o que não significa que não tivessem interesses culturais mais amplos, que
efetivamente se manifestou com a fundação de bibliotecas, periódicos, grupos
teatrais, ou sociedades congêneres.
352
“A História da Ezra”, p. 19. Seu nome aparece também no periódico fundado por David José Perez em
1916, “A Columna”, por várias vezes, no dois anos de sua existência.
193
353
Id., p. 35.
354
. “Velt-Spiegel”, nº 12, agosto, 1940, p. 16.
355
Peretz Hirshbein escreveria uma narrativa em seu livro “Fun Vaite Lender” (De terras longínquas) sobre a
morte de Abraham Kaufman.
356
Em artigo publicado no “San Pauler Idische Tzeitung”, de 21 de outubro de 1937, ele se refere, em um
artigo sob o título de “Di Ezra farzamlung” (A assembléia da Ezra), à disputa para a presidência entre José
Teperman e Benjamin Kulikovsky.
357
. “A Fertl-Iorhundert Idische Presse in Brazil”, ed. Muzeum le-Omanut há-Dfus, Safed, p. 150.
194
oriundo da Bessarábia e que emigrara aos Estados Unidos e passou a viver em Nova York,
trabalhando como cortador em uma oficina de roupas.
Encontramos Nadelman atuando em outro momento importante da vida judaica
na capital paulista ao participar da fundação, e servir como redator, do jornal “San Pauler
Idishe Tzaitung” (Gazeta Israelita de São Paulo), juntamente com Marcos Frankenthal, que
era seu diretor, e Elias Amstein, que ocupou o cargo de administrador do jornal. Sua
dedicação ao novo periódico, desde que começou a sair, em 22 de outubro de 1931, como
semanário, foi exemplar. Já em 1933, saía duas vezes por semana, e no final do mesmo ano,
quando Raizman passou a ser seu redator, devido à saída de Nadelman, o jornal já era
publicado três vezes por semana358.
Apesar do seu afastamento, Nadelman chegou a publicar alguns artigos, dentre
eles um necrológio de valor histórico sobre a pessoa de Isaac Tabacow por ocasião de dez
anos de seu falecimento, que ocorreu em 6 de julho de 1930. Aqui, temos mais um texto,
curto, mas rico de informações, com o qual o notável memorialista nos agracia ao descrever
a trajetória de vida daquela figura ímpar que foi Isaac Tabacow359. Porém, a maior
contribuição que Nadelman deu aos historiadores da imigração judaica de São Paulo foi a
“Gueshichte fun Ezra, 1916-1941” (História da Ezra), editada pela tipografia Frankenthal
em 1941, e com ela conseguiu salvar do esquecimento os primórdios da imigração israelita
em nosso Estado360. Porém, considerando o que vimos mais acima perceberemos que
Nadelman estava imbuído da importância de registrar a memória da imigração e era, de
fato, o homem talhado para escrever essa história.
A “História da Ezra” contém bem mais do que a história da instituição que teve
um papel decisivo e vital na ajuda e amparo aos que aportavam em busca de um novo
destino e um novo lar. Em suas 174 páginas, além das ilustrações, o nosso cronista retrata a
formação das primeiras organizações comunitárias e os passos gradativos que a
comunidade foi dando para atender a suas necessidades religiosas, econômicas, sociais e
culturais. Desfilam nesse livro os nomes das primeiras famílias de imigrantes da Europa
Oriental que serviram de alicerce às instituições que surgiram naqueles anos.
358
O “San Pauler Idische Tzeitung” continuou existindo, apesar das suas freqüentes mudanças em sua
redação, na qual se sucederam Salomão Steinberg, Elias Lipiner, Nelson Weiner, além de vários outros, e o
próprio Frankenthal. O jornal encerrou suas atividades no ano de 1941, por ocasião da proibição de
publicação de periódicos em língua estrangeira pelo governo Vargas.
359
. “San Pauler Idische Tzeitung”, 26 de julho de 1940. Nadelman relata que Isaac Tabacow veio pela
primeira vez ao Brasil em 1890, e aqui permaneceu por cinco anos, voltando ao seu país de origem, onde se
casou com Olga Tabacow, para voltar pela segunda vez em 1897. Ele teve que vender em Hamburgo os
presentes de casamento que ganhara para comprar as passagens. Ao desembarcar em Santos, com fome,
entraram em um restaurante português e quiseram deixar um sobretudo, e o dono acabou por lhe emprestar 40
mil réis. Em São Paulo, viajaram com alguma mercadoria ao interior, chegando a Franca, onde alugaram um
enorme estabelecimento, com um aluguel de 30 mil réis ao mês. Eram os únicos judeus da zona da Mogiana.
Em 1909, ele, sua esposa e dois filhos vieram morar em São Paulo. Os anos de 1909-1914 foram os de maior
imigração, nesse período que antecede a Primeira Guerra Mundial. Esses imigrantes, em sua maioria, vinham
da Bessarábia e a casa de Isaac os acolhia. Na prática, o ponto de referência dos imigrantes era a rua dos
Imigrantes 147, onde ficava a loja de Isaac Tabacow.
360
A idéia de elaborar a “História da Ezra” foi de Elias Amstein, um dos ativistas que participaram de sua
fundação, como parte dos eventos relativos à intenção de comemorar os 25 anos de existência da instituição,
que deveria: a) publicar um livro sobre a atuação da Ezra durante esse quarto de século; b) organizar um
banquete para a comunidade judaica (que, de fato, se realizou em 6 de julho de 1941) e cujo encerramento
seria um grande baile, bem adequado à vida social da época.
195
Quais foram as fontes das quais seu trabalho se serviu? Ele mesmo nos reporta
em um “esclarecimento importante”, que consta no livro, revelando as dificuldades com as
quais se deparou para realizar o seu intento: “os nomes, os documentos, datas e cifras
relativos à evolução histórica da comunidade judaica no Brasil em geral, e em particular em
São Paulo, nós os colhemos no arquivo da Ezra. Sabemos que nosso trabalho não está
completo, e com certeza omitimos fatos e acontecimentos, e é bem possível que muitos
participantes no desenvolvimento da comunidade não tenham sido, lamentavelmente,
lembrados. Mas isso é possível entender pelo fato de não existir em São Paulo nenhum
outro arquivo, com exceção do da Ezra, o qual, lamentavelmente, não foi bem cuidado em
seus primeiros anos de existência. E outras fontes que nos dessem maiores detalhes não
conseguimos encontrar. Sendo assim, certamente a comunidade nos desculpará” 361.
A verdade é que Nadelman, além do arquivo da Ezra, que se encontra hoje em
dia no Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, pôde consultar e entrevistar boa parte dos
primeiros imigrantes judeus de São Paulo, ainda que alguns desses pioneiros já tivessem
falecido, tais como Isaac Tabacow e Maurício Klabin 36211. Mas o sucesso do seu trabalho se
deve à vivência pessoal e participação na vida comunitária, que lhe deu um conhecimento
íntimo da história que pretendeu narrar e o fez com honestidade e humildade, pois quase
nada falou de si mesmo e de sua atuação.
Poucos anos antes, em 1938, ele criticava, em artigo sob o título “Di Kultur
Konferenz”, publicado no San Pauler Idische Tzeitung, o representante do Brasil no
Congresso Mundial de Cultura Judaica, realizado em Paris de 17 a 21 de setembro de 1937,
que havia relatado inverdades sobre a comunidade brasileira, corrigindo-o e demonstrando
assim o quanto a conhecia36312. Em 1946, encontramos José Nadelman como secretário
administrativo do Lar dos Velhos de São Paulo, ocasião em que se lhe prestou uma
homenagem ao completar 65 anos de idade. Naquele evento o escritor Menashe Halpern
sugeriu que se plantassem árvores no Yaar Herzl, em Jerusalém, em seu nome36413. Tratava-
se de uma justa homenagem a uma pessoa que fizera muito pelo judaismo paulista ao
mesmo tempo que soube bem avaliar a importância da preservação de sua memória.
361
. “Gueshichte fun Ezra”, nota introdutória.
362
. Porém, veteranos das primeiras instituições puderam dar informações preciosas ao seu auxiliar Nelson
Weiner, um jovem jornalista que, por conhecer bem o português, tomou parte no projeto. Ele entrevistou
médicos e profissionais que não eram judeus, porém tinham atuado junto à Ezra e seu sanatório em São José
dos Campos, além de outras instituições comunitárias. Entre eles estavam os Drs. Jorge Zarur, Otávio Del
Nero, Oscar Tollens, Luís do Rego, Ribeiro da Luz, Caio Machado, Antonio Cândido Camargo, além do
professor Clemente Ferreira e do advogado Cristiano da Luz, do Departamento de Agricultura e Imigração.
Na época da publicação da “História da Ezra”, já havia falecido uma das personalidades benfeitoras da
comunidade judaica de São Paulo e que prestara serviços extraordinários como médico e diretor do hospital
Santa Catarina, o Dr. Walter Seng. Lembrado no livro em vários momentos da história da imigração, é a
quem José Nadelman homenageia com profundo sentimento de gratidão.
363
364
196
Há alguns anos, encontrei um necrológio na revista Aonde Vamos? , n.152, de 14de março
de 1946, noticiando o falecimento de uma senhora que teria vivido em uma colônia no
interior de São Paulo denominada Nova Odessa. Tratava-se de Cecilia Karacik, viuva de
Jorge Karacik, um dos primeiros colonos judeus contratados pelo governo brasileiro para
uma colonização no interior do Estado de São Paulo. A notícia de falecimento ainda
informava que deixara os filhos Anita, casada com Estanislau Cherques, Dr. Raul e Dr.
Manoel Karacik. A notícia despertou certa curiosidade, pois, através de uma comunicação
feita em um congresso de história, realizado em 1980 na cidade de Franca 365, sabia que este
núcleo era formado por imigrantes russos. Nesse ínterim, outras leituras, não diretamente
relacionadas ao tema, fortificaram minha convicção de que o assunto deveria merecer uma
atenção maior, a fim de se constatar quais seriam esses imigrantes e sua origem. Passados
muitos anos, a idéia de proceder a uma verificação no arquivo do Museu da Imigração, me
levou a encontrar, para minha surpresa, uma longa lista de imigrantes judeus, que em levas
sucessivas, desde o ano de 1905 à 1906, se dirigem, não somente à colônia Nova Odessa,
mas a outras duas denominadas respectivamente Corumbatahy-Colônia Jorge Tibiriçá, na
região de Rio Claro, fundada em 1905 e Funil- Colônia Campos Salles, na região de
Campinas, fundada em 1897366.
Sabemos pela história contemporânea dos judeus, do surgimento, na Rússia Czarista do
século passado, de uma sociedade denominada Am Olam (O povo eterno), que tinha como
finalidade a formação de colônias agrícolas judaicas nos Estados Unidos. A sociedade
tomou seu nome do título de um ensaio, escrito em hebraico, do destacado escritor do
Iluminismo judaico da Europa oriental, Peretz Smolenskin. A sociedade foi fundada em
1881, no mesmo ano do assassinato de Alexandre II que resultou em diversos ataques aos
judeus, e no início da grande emigração de judeus russos em direção ao ocidente. Seus
líderes Monye Bokal e Moisés Herder, ambos residentes em Odessa, eram idealistas e
aspiravam a colonização, sob a forma de comunas socialistas, dos judeus na América. Ao
mesmo tempo, que o movimento dos Biluim se voltava para um projeto de colonização
judaica na Palestina, com um programa nacionalista de voltar à terra de seus antepassados,
o Am Olam enviava, na primavera de 1881, um contingente de 70 profissionais, artesãos e
estudantes oriundos de Yelizavetgrad para a América, ao qual se sucederam novos grupos
entre 1881-1882, com centenas de pessoas das cidades de Kiev, Kremenchug, Vilna e
Odessa.367 Muitos dos imigrantes permaneceram em Nova York, mas assim mesmo
365
El Murr, V. Namestnikov, A escassez de fontes para o estudo da imigração russa em São Paulo, in
Memória da II Semana da História, 24-28 de outubro, 1980, UNESP, Franca, pp.387-397.
366
No livro Impressões do Brazil no Século Vinte, “impresso na Inglaterra para circular nos Estados Unidos
do Brazil e outros paízes estrangeiros”, Lloyd’s Greater Britain Publishing Company, Ltd., London, 1913,
p.199, encontramos um relato que faz referência às colônias “que ainda se acham sob a administração do
Estado: “Campos Salles “, a 54kms. Da cidade de Campinas, servido pela E.F. Funilense, fundado em 1897
com 20 famílias suissas e alemãs, hoje dividido em 234 lotes e povoado por mais de 1200 pessôas, que se
dedicam ao cultivo dos cereaes, canna de assucar, algodão batatas, mandioca, vinhas, legumes, etc.; “Jorge
Tibiriçá” , a 28 kms. Da cidade de Rio Claro, pela E.F. Paulista, fundado em 1905, dividido em 136 lotes
ruares, colonisados pelo sistema de meyação; “Nova Odessa”, assim chamado por só receber colonos russos,
a 31 kms. Da cidade de Campinas, servido pela E.F. Paulista, fundado em 1904 (sic) e dividido em 93 lotes,
em que se cultivam cereaes, batatas, mandioca, etc....”
367
V. Encyclopaedia Judaica, Keter Pub. House, Jerusalém, 1971, vol. 2, pp.861-2. Conforme Menes, A. ,
The Am Oylom Movement, in YIVO Annual of Jewish Social Science, Yiddish Scientific Institute, New
197
York, 1949, vol. IV, pp. 9-33, o primeiro grupo se organizou em Odessa logo após os pogroms de 3 a 5 de
maio de 1881 que ocorreram naquela cidade. Manes trás elementos que permite aventar a hipótese que o Am
Olam acreditava ser possível criar um estado Judeu nos Estados Unidos. V. também Frankel, J., The Roots of
“Jewish Socialism” (1881-1892): From “Populism” to “Cosmopolitanism” in Essencial Papers on Jews and
the Left, ed. Ezra Mendelsohn, New York University Press, New York-London, 1997, pp. 58-77.
368
V. Gorin ,B., Di geschichte fun idichen theater, Max N. Meisel, New York, 1918-1923, vol.II, pp. 10-11.
Gorin relata que os membros do Am Olam, ainda na Rússia , usavam os espetáculos teatrais para levantarem
fundos para o movimento, e que na medida em que passaram a viver na cidade de Nova York, como
trabalhadores das oficinas e dos sweatshops, revelavam seus talentos em momentos de descontração e
cantoria nos próprios locais de trabalho.
198
orquestrada pelo governo russo, devido ao seu fracasso na guerra contra o Japão, em 1904-
5, e à eclosão da revolução do ano de 1905, decorrente, assim como estimulada pelas
derrotas militares. Logo após abril de 1905, quando, entre outros lugares, se deu o pogrom
de Zhitomir, com trágico resultado para a comunidade judaica local, 369 chegariam ao Brasil
os primeiros judeus da Rússia para a nova colônia da Estação Vila Americana - Núcleo
Nova Odessa. 370 Oficialmente a colônia foi fundada pelo decreto 1286 de 24 de maio de
1905, baseado , no artigo 2 do decreto do Presidente do Estado de São Paulo, número 751,
de 15 de março de 1900. No artigo 1 deste decreto consta: “Fica creada na fazenda
“Pombal”, de propriedade do Estado, o Núcleo Colonial Nova Odessa, o qual poderá ser
exclusivamente destinado para localização de imigrantes russos, agricultores e constituídos
em famílias.” Na verdade o núcleo foi estabelecido em terras particulares compradas pelo
Governo, e alargado com a aquisição,ainda em março daquele ano, de uma fazenda anexa,
fazenda Pombal, situada à margem da Estrada de Ferro Paulista, e com terras adicionais
pertencentes a antiga fazenda Velha.371
Um levantamento dos nomes das famílias que chegaram, mostra que as primeiras levas de
colonos, em sua quase totalidade, eram formadas por judeus e que somente à partir do final
de 1905, isto é, dos últimos dias de dezembro daquele ano, começaram a chegar alemães,
austríacos, russos-letos, que professavam outras religiões. A colônia Funil-Campos Salles,
criada anteriormente, em 1897, teve como seus fundadores elemento humano não-judaico, e
segundo o Relatório da Secretaria da Agricultura, de 1903, encontravam-se no núcleo, entre
outras nacionalidades, 30 russos.372 Mas, em 1905, Corumbatahy-Colônia Jorge Tibiriçá e
Nova Odessa recebem os imigrantes judeus que chegam nos navios da Royal Mail Steam
Packet Company, especialmente contratada, em 3 de abril de 1905, pelo Governo do
Estado para trazer da Rússia, via Inglaterra, tais colonos. O fretamento dos navios, que
saem em sua absoluta maioria de Southampton e excepcionalmente de Cherbourg, com um
grande número de imigrantes que serão posteriormente levados às colônias, e também à
Capital, nos leva a crer que o governo do Estado, através de seus agentes, tinha ciência da
precária situação em que se encontravam os judeus da Rússia, situação esta que os impelia
à emigrar em direção ao ocidente na tentativa de se estabelecerem, sem que, em sua maioria
tivessem possibilidades de serem bem sucedidos, uma vez que não eram bem-vindos, seja
na Alemanha, Inglaterra ou outros lugares.373
O núcleo Dr. Jorge Tibiriçá foi criado pelo contrato datado de 25 de março de 1905,
estabelecido com a Companhia Pequena Propriedade, da qual o governo adquiriu a metade
369
Sobre esse pogrom, entre outras fontes, temos uma descrição fidedigna do líder do Bund Beinisch
Michalewich, no livro Beinisch Michalewich-Buch, ed.Kultur un Hilf u. n. Arthur Siguelbaum, Buenos
Aires, 1951, pp. 281-87.
370
Livro de Matricula de Imigrantes, no. 74, pp. 81-82, Arquivo do Museu do Imigrante, São Paulo. Os
imigrantes vieram com o navio “Magdalena” e deram entrada na Hospedaria dos Imigrantes em 8-9 de maio
de 1905.
371
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de 1905 - AE, pp. 142-3. Vide o Apêndice “Decreto
N. 1286 de 24 de maio de 1905” que especifica os artigos referentes ao Núcleo Nova Odessa, seu
planejamento econômico-agrícola e demais detalhes.
372
Relatório da Secretaria da Agricultura de são Paulo de 1903 - AE, pp.76-78. O núcleo estava composto de
brasileiros, alemães, franceses ,austríacos, italianos, suíços, suecos, portugueses e outros, num total de 892
colonos.
373
A sucessão dos navios com suas datas de chegada bem como a lista dos passageiros encontra-se no anexo a
este estudo intitulado “Lista dos Imigrantes Judeus nas Colônias do Interior de São Paulo e na cidade de São
Paulo”.
199
374
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de 1905 - AE, p.126.
375
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de 1907- AE, pp. XXIV-V. Neste relatório se informa
sobre o restabelecimento da administração do velho núcleo de Campos Salles núcleo, que, sob esse aspecto,
devia estar abandonado. O esforço do Governo do Estado se manifesta nas “Instruções para a localização de
imigrantes nos núcleos coloniais Nova Odessa e Jorge Tibiriçá” de 30 de setembro de 1905. Vide Apêndice
com este título.
376
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de 1904 – AE, p.131.
377
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de l907 - AE, pp. XXIV-V.
200
de Pagamento, de agosto e outubro de 1905 da colônia Nova Odessa, 378 aparecem nomes
que não constam nos Livros de Matricula de Imigrantes, pelo fato de serem registrados
somente os que se abrigavam na Hospedaria dos Imigrantes.
Porém, já no Relatório da Secretaria da Agricultura de 1905, publicado no ano seguinte, ao
se referir à Nova Odessa, encontramos expresso que “os primeiros imigrantes localizados
nesse núcleo não provaram bem. Eram das primeiras levas de imigrantes russos que não
dispunham de verdadeira aptidão para a lavoura (g.n...” 379 O mesmo ainda dirá que “
corrigidos os defeitos de angariamento dos primeiros imigrantes vindos com destino a esse
núcleo, as levas que foram chegando no corrente ano [de 1906] garantiram logo o rápido
povoamento do núcleo, que vai já bastante adiantado.” E no relatório da mesma secretaria
do ano de 1906 lemos que “com a vinda dos imigrantes russos-letos, que começaram a
chegar em junho, pode-se considerar iniciada a fase de definitivo povoamento do núcleo.
Estes imigrantes, todos camponeses, mostraram , desde o primeiro dia, a maior ansiedade
por voltarem à vida rural que haviam deixado em sua pátria. Mostram o maior interesse em
se instalarem bem e de modo definitivo.” 380 De fato, segundo os Livros de Matricula de
Imigrantes, correspondentes aos anos de 1906 e 1907, chegariam à Nova Odessa as famílias
de russos-letos, assim como alemães, austríacos e poloneses, além de russos-letos, em
Curumbatahy-Jorge Tibiriçá.381
Na documentação referente às colônias constatamos que a partir de junho de 1906 há uma
grande quantidade de solicitações de lotes de parte de russos-letos, lotes estes que
pertenceram antes aos primeiros colonos judeus. Assim, vemos uma solicitação de Carlos
Butkus, russo-leto, procedente de S. Catarina, recém-chegado, em cujo processo lemos que
“este lote já foi concedido a Abraham Aarons que o abandonou em 6 de junho do corrente
ano, e veio para São Paulo declarando ao Diretor do Núcleo não mais voltar por ser
negociante”382. Entre os russos-letos que vieram diretamente aos núcleos encontramos
aqueles que estiveram anteriormente em Santa Catarina, entre eles, Carlos Triemer,
originário de Novgorod, que solicita lote em Nova Odessa, e que era residente em
Massaranduba, Santa Catarina.383 Do mesmo modo, o intérprete da Agencia Oficial, Julio
Malves, pede para reservar três lotes para os seus parentes que se acham em Santa
Catarina.384
O abandono dos imigrantes judeus se deu em curto espaço de tempo, pois não estavam
habituados ao trabalho agrícola, e mesmo aqueles que eram agricultores na Rússia não
conseguiram se adaptar às condições que deveriam enfrentar nas colônias brasileiras.
Talvez, boa parte dos que declararam ao imigrarem que eram agricultores, de fato, não o
378
Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem 7197.
379
Relatório da secretaria da Agricultura de São Paulo de 1905 - AE, p.143.
380
Relatório da Secretaria da Agricultura de São Paulo de 1906 - AE, p.193.
15 Livros de Matricula de Imigrantes- IMI, 77, pp.38-42; 78, pp.101,125, 156, 208,247; 79, p.19.
382
Documentação do Núcleo Colonial Nova Odessa, 1906, caixa 46, ordem 7197, proc. No. 4, 8de setembro
de 1906 – AE.
383
Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem 7197, proc. no. 16, junho de 1906.
384
Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem 7197, proc. no. 29, 23 de setembro de 1906. É
curiosa a argumentação apresentada para esse pedido:”... quase todos me perguntam porque eu não tenho
chamado a minha gente para São Paulo e desconfiam o fato pensando que nós não temos intenção de comprar
terra em São Paulo e que nós se não voltamos para Rússia, vamos para a Argentina, onde eu tenho muito
conhecimento e alguns conhecidos. Se nós tiver aqui terra os imigrantes tinham muito mais confiança para
este país. E nós preferimos muito mais o Estado de São Paulo como a Republica Argentina...” Fiz a
transcrição do português exatamente como foi redigido no documento.
201
eram, o que pode ser verificado numa leitura das listas dos passageiros aos quais as
autoridades portuárias parecem atribuir aleatoriamente certas qualificações profissionais
sem que se as possa comprovar. Às dificuldades naturais do trabalho agrícola, associavam-
se os imprevistos climáticos como podemos verificar no relato do responsável pelo núcleo
Nova Odessa, Candido Albuquerque: “As chuvas tem concorrido também para impedir os
trabalhos assalariados por conta do núcleo, o que tem feito com que muito reduzida é a
quantia que cada colono recebe no fim do mês para a subsistência da família”. Outros
fatores também se associariam para provocar demandas e causar decepções, como as
ocorrências freqüentes de extravio de bagagem, como no caso de Shaia Hassik, sobre o
qual se relata ter feito “gravíssimas ameaças “ por estar sofrendo privações e grandes
prejuízos com a demora em receber suas bagagens, queixando-se contra o governo, que,
conforme ele próprio, propositalmente procura prejudicá-lo...”385 Pelo visto, ele não era o
único a reclamar, pois no despacho do mesmo processo, o funcionário responsável pelo
núcleo diz ter seguido para lá e tomado as providencias que o caso reclamava, “chamando a
ordem os turbulentos, explicando as causas da demora das bagagens reclamadas, fazendo o
pagamento dos dois meses passados e procurando satisfazer a alguns descontentes por
motivos privados, devido em parte a falta de conhecimento de nosso clima e sistema de
lavoura”. Contudo, é interessante observar que, ainda em inícios de 1906, alguns imigrantes
judeus, que de início se dirigiram à Capital, solicitaram lotes em Nova Odessa com a
intenção de lá se estabelecerem como colonos. Porém, são casos isolados.386 Outros
demonstraram sua intenção de trabalharem em suas profissões, como no caso de Marck
Schwarzman, concessionário do lote 31, que pede autorização para montar uma pequena
tenda de ferreiro junto a sua casa, ou no um lugar que mais convier à administração do
núcleo. Nas listas dos assalariados do núcleo encontramos vários imigrantes judeus
exercendo tarefas de toda ordem, vinculadas diretamente à administração de serviços de
atendimento aos colonos. 387
Certamente, a não adaptação dos colonos judeus naquelas colônias levou a um processo de
abandono dos lotes que haviam adquirido, e seu conseqüente exôdo para os centros urbanos
daquela região, bem como para São Paulo, cidade que havia recebido parte da mesma leva
imigratória do ano de 1905, e assim como para outros Estados do país. Os núcleos
populacionais judaicos de Rio Claro, de Limeira, Campinas, São Paulo, receberiam
imigrantes egressos daquelas colônias, como podemos verificar pela trajetória particular da
família de Benjamim Golovaty, que de Corumbatahy-Jorge Tibiriçá acabaria por se
385
Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem 7197, proc. No. 17, de 11 de março de 1906, em
nome do funcionário do Núcleo, Candido de Albuquerque - AE. Shaia Hassik havia solicitado novo lote
devido sua família ser composta por 6 pessoas, mas retiraria seu pedido por “não se sujeitar a pagar a casa
pelo seu preço, dizendo que se retirava do lote, digo do Núcleo, logo que termina a colheita dos cereais que
plantou, isto é, dentro de 30 dias mais ou menos”. Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem
7197, proc. No. 27, de 25 de maio de 1906.
386
Documentação do Núcleo Nova Odessa, caixa 46, ordem 7197, proc. No. 28, Simon Lerman de 9 de
janeiro de 1906; caixa 47, ordem 7198, proc. No. 15, Marck Shwarzman; proc. No. 16, Mendel Bendewsky;
proc. No. 17, Marck Pipman, todos de 8 de janeiro de 1906 e que tinham imigrado para a Capital. Mais tarde
encontramos que o lote 31 de Nova Odessa passará, a Johan Mastbracher, um russo-leto, que o solicitou em
22 de setembro de 1906, lote este “ocupado anteriormente por Marck Pipman que o abandonou há mais de
seis meses...” . Doc. do Núcleo Nova Odessa , caixa 47, ordem 7198, proc. No. 10, Johan Mastbracher de 22
de setembro de 1906.
387
Documentos do Núcleo Nova Odessa, caixa no. 46, ordem 7197, no. 1A.. ano 1906.
202
estabelecer em Rio Claro, vindo, mais tarde, seus descendentes à viver em São Paulo. 388 A
figura de Benjamim Golovaty é um exemplo comovente dessa imigração, que em sua
maioria absoluta aportou em Santos no decorrer do ano 1905, vindos da Rússia via
Inglaterra. Ele chegou com sua família no navio Danube, que saíra de Cherbourg, e entrou
em Santos em 30 de agosto de 1905, ficando hospedado na Hospedaria dos Imigrantes de
São Paulo, para ser encaminhado à colônia Jorge Tibiriçá.389 Pelo processo de 9 de agosto
de 1906, no qual ele pede permutar seu lote 68 por outro, de número 54, que pertencera a
Jacob Viener , sabemos que ele fora diretamente àquele Núcleo.390 Sua solicitação é
justificada pela dificuldade de ir ao local de trabalho naquele lote, por se encontrar muito
afastado, o que dificulta aos seus filhos, que são pequenos, chegarem até lá e ajudarem-no
no trabalho. Além do mais, ele pedia para morar ainda mais um ano na casa do Governo. O
pedido foi indeferido porque no parecer dos administradores Golovaty queria usufruir, com
a troca, o desconto que havia sido dado ao ex-proprietário do lote 54. No parecer do
secretário da agricultura, a razão para o indeferimento se prende ao fato “de nem um e nem
outro dos interessados ter sequer iniciado suas residências nos lotes, tendo ambos se
contentado em usufruir os favores do governo sem nada [...] no sentido da localização”. Ele
acrescentará em nota final, que dá margem a várias interpretações, que “a seção parece
ignorar a que se destina as casas da colônia, por quanto[ ...] sejam guardadas pela simples
habitação de vadios e especuladores (g.n.)”
Em 16 de outubro de 1906 Benjamim Golovaty escreveria uma carta ao Secretario da
Agricultura, Dr. Carlos Botelho, na qual relata sua odisséia pessoal como colono e que ao
meu ver é um documento notável pelo seu conteúdo, que além de revelar o que se passou
com os colonos judeus, aponta a imensa gratidão ao governo brasileiro por tê-los trazido ao
país:
“Núcleo Colonial “Jorge Tibiriçá” Seção Ferraz
Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Carlos Botelho
DD. Secretário da Agricultura
Eu, abaixo assinado colono russo residente na seção Ferraz a um ano e meio, venho por
meio desta a presença de V.Excia. esclarecer o seguinte: Fui eu um dos primeiros colonos
que cheguei a Ferraz com quarenta famílias mais ou menos, 391 as quais fugiram, restando
apenas duas, sendo eu e Luiz Tamb.
Por infelicidade no ano passado não pude fazer plantação, devido ter ficado a minha família
toda doente e em estado grave. Lutei com todas as dificuldades, e afinal triunfei, achando-
se atualmente toda a minha família restabelecida, e gozando perfeita saúde. Durante este
período de um e meio ano, tive ocasião de estudar de perto este lugar, e fiquei satisfeito
388
Devo agradecer à D. Anna e seu filho Maurício Golovaty por esta informação sobre seu antepassado
Benjamim Golovaty. Maurício também doou gentilmente documentos relativos à sua família ao Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro, enriquecendo desse modo o acervo existente em nossa instituição.
389
No registro do Livro de Matricula do Imigrante sua profissão consta como sendo alfaiate, e tendo 40 anos
de idade. Estava acompanhado de sua esposa Basse, 36 anos, o irmão Samuel, 22 anos, os filhos Joseph, 18
anos, Genne 11 anos, Chaike 1 ano, Simon, 7 anos, Feige 3 anos, Dweire 5 anos.
390
No respectivo processo, de no. 19, caixa 39, ordem 7190, de 9 de agosto de 1906, consta a frase “... do
qual desfruta a um ano sem nada ter pago ainda...”
391
Listei 244 judeus que se destinavam a colônia Jorge Tibiriçá de acordo com os Livros de Matricula de
Imigrantes. Possivelmente muitos desistiram antes e foram a outros lugares ou vieram para a capital de São
Paulo. Se considerarmos que o número médio de membros de uma família era composta de 4 filhos, além dos
pais, a cifra lembrada por Benjamin é perfeitamente correta.
203
porque conclui que estas terras da seção Ferraz são ubérrimas podendo afirmar que aqui
está o futuro do colono recém chegado, não exitando em escrever à minha terra natal a
Rússia fazendo ver o que é o Brasil. Desejando plantar este ano, e duplicar de ano para ano
a minha lavoura venho a presença de V.Excia. pedir de conceder-me o lote no, 54 da seção
Ferraz, o qual está vago, achando-me prevenido com a quantia de 150$ 000 para a primeira
plantação, digo prestação. Aguardo apenas a solução de V.Excia. para entregar já esta
quantia, e imediatamente iniciarei o serviço de preparar a terra para o plantio.
Toda e qualquer informação que V.Excia. deseje, estou pronto a prestar-lhe se quiser dar-
me a honra de interrogar-me.
A quantia de 150$000 é correspondente a decima parte do valor do terreno que é 1.500$000
e solicito de V.Excia. o despacho com urgência para evitar que passe o tempo do preparo da
terra.
Não devo terminar este requerimento sem primeiro prestar homenagem ao Governo
Brasileiro, representado na pessoa de V.Excia. por ter em tão boa hora nos retirado do
nosso país onde éramos oprimidos, colocando-nos neste pitoresco lugar, onde só vemos um
futuro risonho, e em um país de liberdade.
As famílias russas que abandonaram este lugar foram convencidos que aqui estava a ruína
do colono, e isto devido a não quererem plantar e esperar pelo resultado, o que não se deu
comigo que aqui estou a um ano e meio e tenho notado quanto é rico este solo.
Esperando ser atendido neste meu justo pedido, tenho a honra de me confessar de V.Excia.
um humilde admirador.
São Paulo, 16 de Outubro 1906
Benjamin Golovaty”392
Contudo, a carta enviada ao secretário da agricultura não surtiu o devido efeito, pois o
chefe responsável que recebeu o requerimento para o julgamento final o indeferiu nos
seguintes termos: “Já tendo sido indeferido a 10 de setembro último, idêntico pedido do
requerente, que segundo informação da Agência Oficial, em 23 de Agosto último, é judeu
russo da 1a. leva, nada fez como agricultor e viveu no núcleo como pensionista do Governo
do que como colono, parece não dever ser deferido o presente requerimento. Ferraz, Chefe
da 2a. 18. 10. 906.” Além do acôrdo dado a esse parecer pelo diretor geral da secretaria
da Agricultura, ainda encontramos um “informe” de que o pedido “poderá ser deferido se
não residir em casa do Governo, favor de que já usufruiu um ano.” Se lermos atentamente
este último parecer, perceberemos que o funcionário que o assina frisa que o requerente “é
judeu-russo da 1ª leva” , sendo que, na documentação compulsada por mim, é a primeira
vez que se faz referência à religião de um colono. Um outro aspecto digno de nota neste
parecer é a associação dessa designação à “1 ª leva”, que era de fato composta de judeus,
confirmando desse modo o que já sabíamos, porém com uma clara evidência depreciativa –
e sabemos porque- para não ser atendido o pedido do requerente. A primeira leva, isto é dos
judeus-russos, não se fixara no solo e causara gastos ao Estado. Daí a rude observação que
“nada fez como agricultor e viveu no núcleo como pensionista do Governo do que como
colono”, o que não corresponde inteiramente à verdade.
392
A carta se encontra no processo, acima mencionado, em nome de Benjamim Golovaty. O nome Benjamim
ora parece com n final ora com m, do mesmo modo o nome Golovaty, aparece como Golovate e no Livro de
Matricula de Imigrantes como Golovatkin. Em todos os textos e citações dos documentos da época optei
transcreve-los com a grafia de nossos dias.
204
Podemos concluir, pela letra da redação dos indeferimentos, assim como pelas expressões
que encontramos no Relatório da Secretaria da Agricultura referente ao ano de 1906 e
outros indícios apresentados em nosso trabalho, que os imigrantes judeus trazidos pelo
governo do Estado de São Paulo, com a intenção de criar novos núcleos agrícolas e renovar
seu projeto de colonização, decepcionaram os seus planejadores, que viram neles um
elemento não apto ao trabalho agrícola, pois abandonaram, em relativo curto espaço de
tempo, aqueles lugares sendo substituídos por russos-letos e outras nacionalidades.
O fato surpreendente é que desconhecíamos inteiramente a existência dessa imigração,
numericamente significativa, no ano de 1905, vinda da Rússia e programada pelo governo
do Estado para uma colonização agrícola, o que nos leva a alterar nossa avaliação sobre a
presença dos judeus ashkenazitas em São Paulo, e também no Brasil, pois acresce uma
nova leva imigratória às muitas que já compõem a cronologia e o quadro histórico da
presença judaica no país no ano em que comemoramos os seus 500 anos. Se esses colonos
fracassaram como agricultores, certo é que não fracassaram, porém, como cidadãos que nos
centros urbanos, espalhados pelo território nacional, deram sua contribuição em outras
atividades econômicas, sociais e culturais, e se mantiveram, e assim foram vistos, como
comunidades exemplares aos olhos da ampla sociedade brasileira. *
* Este artigo representa a primeira etapa de um trabalho que deverá ter continuidade sob a
forma de um levantamento que deverá investigar o destino dos imigrantes que vieram nos
anos de 1905 e 1906, pesquisa que exige o emprego da metodologia da história oral.
Algumas questões são relevantes e entre elas a da aculturação e assimilação dessa leva
imigratória bem como a sua dispersão pelo território brasileiro e fixação em outros lugares.
205
Zelik 16
Ephraim 11
Rifka 2
206
(cunhada)Pesse 23
Sapossnik, Jossel 24 pintor
Said, Baruk 41 alfaiate
Chaie 38
Basheva 15
Benjamin 13
Peisach 11
Leibe 9
Slatt 5
207
Beile 4
Zerkassky, Leiser 26 tipógrafo
Cohen, Barnet 48 cocheiro
Lea 46
Sarah 19
Katty 14
Harry 11
Izaac 10
Rachel 6
Zemo 4
Sruel 6m
Rustein, Maier 28 agricultor
(irmão) Beisen 20 agricultor
Shmulovitz, Meier 30 agricultor
Gerwitz, Abram 23 vidraceiro
David 25
Rissa 23
Morris 4
Dinerstern, Abbe 26 agricultor
Gutler, Josse 20 agricultor
Divenoff, Samuel 22 agricultor
Kashitsky, Shie 46 agricultor
208
Moske 22
Liser 12
Itto 19
Chone 17
Dhasse 14
Reichet, Hersher 28 negociante
Rinkof, Barnet 22 agricultor
Beile 22
Sore 1e 6m
Mirodznik, Mindel 28 agricultor
Codnash, Elie 28 tapeceiro
Meier 25 tapeceiro
Fayngold, Lazar 27 agricultor
Broner, Chaim 24 cocheiro
Fanny 22
Rigler, Jacob 24 (austríaco) agricultor
Hella 21 (russa)
Seiff, Joseph 19 agricultor
Migdan, Aaron 24 padeiro
Cohen, Feivel 19 agricultor
Cass, Simon 25 agricultor
Belinsky, Moshe 23 agricultor
Rincoff, Samuel 23 agricultor
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Leie 12
Anilewitz, Gersh 29 cigarreiro
Esther 23
Annie 3
Rosa 1
Anilewitz, Samuel 32 cigarreiro
Annie 18
Apperbaum, Samuel 33 curtidor
Golde 26
Ganker 4
Leie 3
Leib 1
Bersner, Paul 23 sapateiro
Bebak, Gersh 25 alfaiate
Masche 22
Bernstein, Davies 30 sapateiro
Zile 27
Sruel 10
Gerah 6
Feige 4
Elie 1
Bernstein, Mimel 27 sapateiro
Chave 25
Bernstein, Joseph 20 pintor
Milli 22
Charak, Leiser 35 quitandeiro
210
Rachel 34
Nuchem 11
Chave 9
Aaaron 5
Rosemblum, Abraham tecelão
Chaimovitz, Itzik 41 agricultor
(irmão) Noech 22 agricultor
Erenbaum, Gersh 36 sapateiro
Esther 40
Gena 17
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Jankel 16
Sore 10
Israel 7
Isaac 3
Bergstein, Sam 21 carpinteiro
Finkelstein, Gersh 28 agricultor
Feige 22
Ruben 1
Gottlieb, Joseph 36 funileiro
Marian 28
David 11
Nathan 1
Guttarz, Leiser 35 alfaiate
Mendel 3
( irmão) Welvel 21 alfaiate
Golovatkin, Benjamim 40 alfaiate
(Golovaty) Basse 36
(irmão) Samuel 22 alfaiate
Joseph 18
Genne 11
Chaike 1
Simon 7
Feige 3
Dweire 5
Cressman, Morris 38 negociante de fumo
Guide 34
Schlome 10 (ingleza)
Isaac 8 “
Fanny 5 “
Golde 3 “
Solomon, Louis 45 alfaiate
Jacobs, Abram 33 agricultor
Chave 34
Harry 13
211
Fanny 6
Aaron 5
Zallel 1
Heiman 10
Dora 8
Krassnapolsky, Harris 28 quitandeiro
Ette 25
Itte 5
Chane 1
Gaetzke, Abraham 34 cordoeiro
Zesskiss, Meier 35 cordoeiro
Kossanovffsky, Solomon 31 alfaiate
Kisseloff, Woolf 33 plantador de fumo
Sheindel 29
Esther 10
Genne 9
Rosa 7
Chana 2
(irmão)Simon 22
Gussenbuncunh(?), Manes 21 plantador de fumo
Lerman, Philip 44 agricultor
Lea 36
Malke 19
Sore 17
Chaim 16
Gersh 13
Perrel 5
Sisse 3
Kahanovitz, Chaim 30 refinador
Dweire 27
Ebli 3
Rahinovik, Lazar 20 mascate
Rubin, Joseph 18 mascate
Lublin, Luiz 28 alfaiate
Katte 22
Annie 1
Moropolsky, Morris 33 ferreiro
Nome Idade Profissão Navio
Data de Chegada
Pesse 30
Jankel 14
Gittel 13
212
Braim 10
Leizer 2
Feivel 1
Nelves, Meier 29 mascate
Becca 29
Rosa 13
Barnett 10
Chaie 6
Hersch 1
Paperman, Ginrik 46 agricultor
Dora
Chaver, Abraham 31 carpinteiro
Galka, Israel 18 carpinteiro
Rashkowitz, Philip 22 engomador
Rosa 23
Itte 1
Raicher, Zeller 28 (austriaco) engomador
Sure
Meier(?)
Starrashelsky, Morris 29 alfaiate
Gittel 28
Chaim 1
Sheibel, Max 40 agricultor
Mashe 38
Jane 13
Chaime 11
Feige 1
Speiler, Samuel 29 agricultor
Mashe 24
Nissem 5
Rivke 3
Perrel 2
Bolgwevitz, Mettel 26 fabricante de vinho
Nome Idade Profissão Navio
Data de chegada
Moshe 1
Rosenthal, Israel 27 sapateiro
Bekker, Simche 21 carpinteiro
Reize 20
Bekker, Joseph 20 carpinteiro
Bekker, Moshek 23 chapeleiro
Masche 22
Inersokin, Berri 25 pedreiro
Buserky, Berri 25 agricultor
Perel(?) 18
Wasilews, Gankel 29 agricultor
Kaminisky, Ellik 22 relojoeiro
Kairshinevitz, Abram 22 agricultor
Weinstein, Abram 23 agricultor
Levy, Wolf 20 alfaiate
Pinkus 18 alfaiate
Karasik, Moske 22 agricultor
Portnoi, Meier 28 agricultor
Gorki, Marco 24 agricultor
Newman, Isaac 19 (austríaco) sem profissão
Nimerofsky, Schmuel 25 ferreiro
Frichtenzmey, Israel 32 carregador
Zipenak, Isaac 23 agricultor
Zimmerman, Chaim 23 sem profissão
Rebeca 22
Zernim, Heshe(?) 28 agricultor
Ziesser, Elie 22 chapeleiro
Reische, Feiwush 18 agricultor
215
Max 13
Polle 10
Jacob 8
Morris 3
Austrin, Salman 24 agricultor
Lipkin, Leibe 22 agricultor
Nachamovitz, Abram 22 agricultor
Chatz, Mordecai 21 agricultor
Zewill, Abram 29 agricultor
Karasik, Israel 22 cocheiro
Albert, Leibe 38 agricultor
Rabinovitz, Leibe 17 carniceiro
Fogel, Abraham 28 machinista
Leibe(?) 26
Masche 7 (inglesa)
Sarah 7 (inglesa)
Millie 3 (inglesa)
Rachel 2 (inglesa)
Keibel, Moshe 21 padeiro
Masch 21
Kushnir, Barnett 23 agricultor
Lackmovitz, (?)Mottel 29 agricultor
Karolinsky, Scholme 21 agricultor
Belenge, Chlone 28 agricultor
Kesler, Shlone 21 agricultor
Kanter, Meier 23 agricultor
Grabstein, Benjamin 33 (austríaco) tanoeiro
Blendel, Chaikel 34 agricultor
Iselberg, Welvel 38 agricultor
Rappeport, Max 35 mascate
216
Itzchook 6m
Abrams, Louis 28 (inglesa) escriturário Posto Zootechnico
Rachel 28
Sarah 8
218
Max 7
Anny 4
Shlomovitz, Aisik 36 doméstico
Annie 34
Sore 15
Philip 13
Joe 10
Heyman 5
Fanie 2
Shapiro, Morris 23 cortador de lenha
Gellin (Yellin), Mendel 37 músico
Chais 40
Lea 11
Alter 8
Shimecke 8
Rozemberg, Israel 25 cocheiro Capital- Rodovalho Junior
Silverman, Jankel 24 tanoeiro
Freide 22
Pinkus 15
Golub, Abram 45 agricultor
Rachel 43
Simon 19 (inglesa)
Morris 17 (ingles)
Max 15 (inglesa)
Rubin 12 (inglesa)
Harry 4 (inglesa)
Guttmann, Mosche 19 encadernador Posto Zootechnico
Lapiz, Woolf 20 sem profissão Posto Zootechnico
Farb, Shie 23 marchante Posto Zootechnico
Elbaum, Manasche 23 comerciante
(irmão) Max 20
Dubov, Abraham 32 agricultor
Nome Idade Profissão Navio Data
de Chegada
Merle 23
Needlman, Barnett 28 lavador de roupas
Ziniee 26
Anny 8
Morris 4
Nathan 3
Simon 1 e meio
Hengel, Mendel 26 mascate
Flanklin, Ruben 23 funileiro
Ette 20
Lea 1 e meio
Migdes, Samuel 27 agricultor
Needlman. David 26 lavador de roupas
Chaie 25
(cunhada)Fanny 24
Shulman, Nathan 22 sapateiro
Lea 22
Smarian, Abraham 24 acrobata
Sore 28
Scheindel 2
220
Borl 7m
Stolerman, Chume 68 sem profissão
Idis 48
Frede 21
Nisen 20
Lisa 17
Moses 16
Samuel 28
Chaie 23
Wele 2 e meio
Brana 1 e meio
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Leiser 6m
Berlin, Benjamin 30 sem profissão
Ruse 26
(irmão)Abram 20
Kuzi, Mendel 36 carpinteiro
Minza 28
Isaac 17
Masche 15
Blume 5
Sendor 1 e 5m
Seufer, Moses 19 carniceiro
Rose 19
Weintraub, Selick 35 fabricante de vinho
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 75,
p.223 – AMI]
Israel 10
Anna 8
Lerman, Samson 33 agricultor
Debore 28
Josef 8
Rosa 6
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 76, p.117 –
AMI]
Obs. O mesmo navio leva 3 famílias que se destinam ao Rio Grande do Sul:
Hoffman, Eduard 38 (alemão) agricultor conta própria
Paulina 36
Anna 16
Augusta 14
Hulda 5
Adalina 2
Wanda 6m (apesar dos nomes figuram como judeus)
Krieg, Daniel 40 (russa) agricultor conta própria
Bertha 35
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Heinrich 12
Emilie 9
Hulda 7
Anna 2
Reinhold 1 (apesar dos nomes figuram como russos)
Winarsky, Jacob 51 agricultor conta
própria
Rachel 50
Chune 19
Rebecca 21
Breine 15
Esther
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 76 ,p.117 –
AMI]
Chassik, Shrage 40
obs. : o nome aparece como sendo acatólico
Schendol 40
Chassik, Solomon 5 Magdalena (Southampton-Santos) 8-
9/5/1905
224
Channe 8
Samuel 19
Henne irmão 19
Shrage
Laibe
Karasik, Hirsh
Zipe
Anne
Plotkin, Leibe
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 74, pp. 81-
82 – AMI]
Grinberg(?),Pinches 27 agricultor Aragon (South.- Santos)
2/8/1905
(Gomberg)? Sheindel 24
Welver (f.) 6
Golde 4
Lea 2
Luiz 6m
Krians, Abram 42 agricultor
Basse 40
Chaim 17
Blume 12
Harry 8
Rosa 6
Cohen, Zelik 27 agricultor
Sarah 22
Braine 5
Melman(?), Abram 27 agricultor
Spivack, Mechmie 39 cigarreiro
Esther 39
Itzick 18
Nome Idade Profissão Navio Data de Chegada
Zelik 16
Ephraim 11
Rifka 2
Gordon, Harris 32 sapateiro
Chane 28
Beckie 12 (ingleza)
Rive 11
Braime 9
Sarah 8
Abbe 5
Gankel 3
Meische 2
Kaminsky, Morris 48 agricultor
Schiffre 42
225
Berel 8
Chaike 6
Gudel 23 escoveiro
Gold, Abram 29 maquinista
More 29
David 11
Basa 9
Morris 7
Fanny 5
Lewis
Trachtman, Wolf 27 agricultor
(irmão) Mordche 30 agricultor
Baraum, David 23 agricultor
Cohen, Louis 52 agricultor
Stelmach, Pincos 24 carpinteiro
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 74, pp.
258-266 – AMI)
(cunhada)Pesse 23
Sapossnik, Jossel 24 pintor
Said, Baruk 41 alfaiate
Chaie 38
Basheva 15
Benjamin 13
Peisach 11
Leibe 9
Slatt 5
Beile 4
Zerkassky, Leiser 26 tipografo
Cohen, Barnet 48 cocheiro
Lea 46
Sarah 19
Katty 14
Harry 11
Izaac 10
Rachel 6
226
Zemo 4
Sruel 6m
Rustein, Maier 28 agricultor
(irmão) Beisen 20 agricultor
Shmulovitz, Meier 30 agricultor
Gerwitz, Abram 23 vidraceiro
David 25
Rissa 23
Morris 4
Dinerstern, Abbe 26 agricultor
Gutler, Josse 20 agricultor
Divenoff, Samuel 22 agricultor
Kashitsky, Shie 46 agricultor
Moske 22
Liser 12
Itto 19
Chone 17
Dhasse 14
Reichet, Hersher 28 negociante
Rinkof, Barnet 22 agricultor
Beile 22
Sore 1e 6m
Mirodznik, Mindel 28 agricultor
227
Leie 12
Anilewitz, Gersh 29 cigarreiro
Esther 23
Annie 3
Rosa 1
Anilewitz, Samuel 32 cigarreiro
Annie 18
Apperbaum, Samuel 33 curtidor
Golde 26
Ganker 4
Leie 3
Leib 1
Bersner, Paul 23 sapateiro
Bebak, Gersh 25 alfaiate
Masche 22
Bernstein, Davies 30 sapateiro
Zile 27
Sruel 10
Gerah 6
Feige 4
Elie 1
Bernstein, Mimel 27 sapateiro
Chave 25
Bernstein, Joseph 20 pintor
Milli 22
Charak, Leiser 35 quitandeiro
Rachel 34
Nuchem 11
Chave 9
Aaaron 5
Rosemblum, Abraham tecelão
Chaimovitz, Itzik 41 agricultor
(irmão) Noech 22 agricultor
Erenbaum, Gersh 36 sapateiro
Esther 40
229
Gena 17
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Jankel 16
Sore 10
Israel 7
Isaac 3
Bergstein, Sam 21 carpinteiro
Finkelstein, Gersh 28 agricultor
Feige 22
Ruben 1
Gottlieb, Joseph 36 funileiro
Marian 28
David 11
Nathan 1
Guttarz, Leiser 35 alfaiate
Mendel 3
( irmão) Welvel 21 alfaiate
Golovatkin, Benjamim 40 alfaiate
(Golovaty) Basse 36
(irmão) Samuel 22 alfaiate
Joseph 18
Genne 11
Chaike 1
Simon 7
Feige 3
Dweire 5
Cressman, Morris 38 negociante de fumo
Guide 34
Schlome 10 (ingleza)
Isaac 8 “
Fanny 5 “
Golde 3 “
Solomon, Louis 45 alfaiate
Jacobs, Abram 33 agricultor
Chave 34
Harry 13
Fanny 6
Aaron 5
Zallel 1
Heiman 10
Dora 8
230
Pesse 30
Jankel 14
Gittel 13
Braim 10
Leizer 2
Feivel 1
Nelves, Meier 29 mascate
Becca 29
Rosa 13
Barnett 10
Chaie 6
Hersch 1
231
Joe 1 (ingleza)
Brendan, Barnet 24 barbeiro
Sanitz, Meschke 26 agricultor
Feldman, Samuel 35 agricultor
Sarah 35
Meier 11
Pellie 15
Sophie 8
Isidore 7
Morris 5
David 3
Freedman, Hersch 18 sem profissão
Etuni, Chaine 21 agricultor
Nome Idade Profissão Navio
Data de Chegada
Masche 22
Inersokin, Berri 25 pedreiro
Buserky, Berri 25 agricultor
Perel(?) 18
Wasilews, Gankel 29 agricultor
Kaminisky, Ellik 22 relojoeiro
Kairshinevitz, Abram 22 agricultor
Weinstein, Abram 23 agricultor
Levy, Wolf 20 alfaiate
Pinkus 18 alfaiate
Karasik, Moske 22 agricultor
Portnoi, Meier 28 agricultor
Gorki, Marco 24 agricultor
Newman, Isaac 19 (austriaco) sem profissão
Nimerofsky, Schmuel 25 ferreiro
Frichtenzmey, Israel 32 carregador
Zipenak, Isaac 23 agricultor
Zimmerman, Chaim 23 sem profissão
Rebeca 22
Zernim, Heshe(?) 28 agricultor
Ziesser, Elie 22 chapeleiro
Reische, Feiwush 18 agricultor
Cass, Simon 25 agricultor
Kopss, Bernardo 17 (austriaco) caixeiro
(irmão) Abram 14 caixeiro
Brenner, Abram 36 vendedor
Chesse 28
Freide 16
Nancy 12
Samuel 9
Lea 7
234
Sonne 3
Joseph 6m
Berezovsky, Simon 40 jardineiro
Mary 37
Meier 15
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Max 13
Polle 10
Jacob 8
Morris 3
Austrin, Salman 24 agricultor
Lipkin, Leibe 22 agricultor
Nachamovitz, Abram 22 agricultor
Chatz, Mordecai 21 agricultor
Zewill, Abram 29 agricultor
Karasik, Israel 22 cocheiro
Albert, Leibe 38 agricultor
Rabinovitz, Leibe 17 carniceiro
Fogel, Abraham 28 machinista
Leibe(?) 26
Masche 7 (ingleza)
Sarah 7 (ingleza)
Millie 3 (ingleza)
Rachel 2 (ingleza)
Keibel, Moshe 21 padeiro
Masch 21
Kushnir, Barnett 23 agricultor
Lackmovitz, (?)Mottel 29 agricultor
Karolinsky, Scholme 21 agricultor
Belenge, Chlone 28 agricultor
Kesler, Shlone 21 agricultor
Kanter, Meier 23 agricultor
Grabstein, Benjamin 33 (austriaco) tanoeiro
Blendel, Chaikel 34 agricultor
Iselberg, Welvel 38 agricultor
Rappeport, Max 35 mascate
Plotkin, Morris 25 agricultor
Rippin, Chone 27 agricultor
Obladsteine, Mosch 21 agricultor
Feldman, Benjamin 20 agricultor
Raffkuss, Mijchel 32 carregador
Press, Chainiss 21 mascate
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
235
Itzchook 6m
Abrams, Louis 28 (ingleza) escriturario Posto Zootechnico
Rachel 28
Sarah 8
Max 7
Anny 4
Shlomovitz, Aisik 36 domestico
Annie 34
Sore 15
Philip 13
Joe 10
Heyman 5
Fanie 2
237
Merle 23
Needlman, Barnett 28 lavador de roupas
Ziniee 26
Anny 8
Morris 4
Nathan 3
Simon 1 e meio
Hengel, mendel 26 mascate
Flanklin, Ruben 23 funileiro
Ette 20
Lea 1 e meio
Migdes, Samuel 27 agricultor
Needlman. David 26 lavador de roupas
Chaie 25
(cunhada)Fanny 24
Shulman, Nathan 22 sapateiro
Lea 22
Smarian, Abraham 24 acrobata
Sore 28
Scheindel 2
Smitts, Jacob 25 cozinheiro
Grutman, Leibe 28 ferreiro
Stern, Morris 27 agricultor
Lak, David 25 agricultor
Drunjinsky, Leib 22 serralheiro
Braustein, Nuchen 25 agricultor
Siber, Harris 20 carregador
239
Chaie 23
Wele 2 e meio
Brana 1 e meio
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Leiser 6m
Berlin, Benjamin 30 sem profissão
Ruse 26
(irmão)Abram 20
Kuzi, Mendel 36 carpinteiro
Minza 28
Isaac 17
Masche 15
Blume 5
Sendor 1 e 5m
Seufer, Moses 19 carniceiro
Rose 19
Weintraub, Selick 35 fabricante de vinho
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 75,
p.223 – IMI]
Ewgenia 5
Baruch 7m
Lerman, Samuel 26 agricultor
Bendersky, Mendel 38 agricultor
Itte 30
Baruch 10
Pine 7
Freida 1
(irmão) Nisen 30 agricultor
(irmão) Mordche 26 agricultor
Hulda 5
Adalina 2
Wanda 6m (apesar dos nomes figuram como judeus)
Krieg, Daniel 40 (russa) agricultor conta própria
Bertha 35
Nome Idade Profissão Navio Data de
Chegada
Heinrich 12
Emilie 9
Hulda 7
Anna 2
Reinhold 1 (apesar dos nomes figuram como russos)
Winarsky, Jacob 51 agricultor conta
própria
Rachel 50
Chune 19
Rebecca 21
Breine 15
Esther
[Fonte: Livro de Matricula de Imigrantes, 76 ,p.117 –
IMI]
243
393
Essa avaliação estatística foi feita pelo redator de “A Columna”, Prof. David José Perez, no n. 6 de
2/6/1916.p.77.Outras fontes se aproximam a esses números, ainda que sejam pouco fundamentados.
Há indícios que levam a concluir que um número deveria ser maior.
394
“A Columna”, n.6 de 2/6/1916, p.78; n. 14 de 2/2/1917, p.27.
395
V. Falbel , N., Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil, F.I.S.E.S.P., São Paulo, 1984, pp. 131-133.
244
396
Esses dados foram extraídos dos Livros de Atas da Sociedade Beneficente das Damas Israelitas do acervo
do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.
397
Livro de Atas da Ezra, no A.H.J.B.; periódico “A Columna, n. 6 de 2/6/1916, p. 78; n. 8 de 4/8/1916, p.
117; n. 14 de 2/2/1917,p. 27.
245
398
“A Columna” n. 6 de 2/6/1916, no qual se menciona que foi levada à cena a opereta “Dos pintele yid” em
benefício da Ezra. Também em outros lugares do livro de Atas n. 1 da mesma entidade.
399
“História da Ezra e do Sanatório Ezra” (Geschichte fun Ezra un Sanatorie Ezra), São Paulo, 1941, pp.19-
20.
246
população judaica em nosso país foi crescendo, e a Ezra teve que se adaptar à nova
situação. Houve a necessidade de apressar o término de um salão da sinagoga Knesset
Israel para utilizá-lo como abrigo de imigrantes, que começavam a vir em maior número. O
término da guerra também permitiu que israelitas voltassem à Europa com o fim de trazer
suas famílias para a nova terra. A questão da imigração e da adaptação dos imigrantes
preocupava a todos, o que levou a comunidade a indicar condições para que procurassem
novos caminhos para a solução do problema. Desse modo, surge em 1924 uma Sociedade
Pró-imigrantes, sob a orientação do dr. Horácio Lafer e outros, que na verdade não poderia
arcar sozinha com os objetivos aos quais se propusera, e, portanto, teve que recorrer à Ezra.
Porém, com a chegada ao Brasil, no fim de 1923, do rabino Isaias Raffalovich, como
representante da J.C.A. entre nós, formulou-se, a partir daquele ano, uma política de
proteção e assistência ao imigrante que daria melhores frutos no futuro próximo e durante
os anos em que ela mais se intensificou. A própria Ezra mudaria seu nome para Sociedade
Israelita Beneficente e abarcaria uma gama múltipla de atividades comunitárias.
A atividade da Ezra estimulou a criação de uma Cooperativa de Crédito em
1928, ano em que também começou a atuar naquela organização o dinâmico empreendedor
Benjamin Kulikovski. A Cooperativa de Crédito visava fornecer os primeiros empréstimos
ao imigrante para permitir que se estabelecesse com algum negócio ou outro
empreendimento pessoal. Procurava-se, desse modo, criar para a imigração organismos
financeiros que pudessem ajudar aos que chegavam ao país a se enraizarem na sociedade
brasileira, impedir o seu fracasso e a conseqüente volta aos lugares de origem, como de fato
ocorria em anos e décadas anteriores. Nesse sentido, Raffalovich, em encontro em Paris,
no ano de 1928, procurou convencer a HICEM, recém-formada, a não abrir escritórios nas
grandes capitais ou centros de imigração, mas a aproveitar as entidades beneficentes e de
ajuda existentes para assumirem, com seu apoio, o papel orientador e executivo para a
absorção e encaminhamento do imigrante. A um dado momento, e graças ao contato com o
Ministério da Agricultura, a Ezra conseguiu, através do Dr. Cristiano da Luz, diretor do
Departamento de Fomento Agrícola e Colonização, que as passagens para o deslocamento
dos imigrantes fossem pagas pelo governo, o que representava uma soma respeitável para
os anos de grande imigração, durante a década de 20. Dr. Cristiano da Luz e seu filho e
médico Dr. Paulo Ribeiro da Luz colaboraram com a instituição israelita em sua atividade
imigratória, que havia aumentado, e a obrigou a mudar seu escritório (antes instalado em
uma sala da tradicional Escola Renascença) para um prédio que pudesse também abrigar
imigrantes, na rua Bandeirantes, 26, no Bom Retiro. Nesse tempo, em 1929, a Ezra também
alugou um armazém para guardar as bagagens dos imigrantes e providenciou a indicação de
um representante em Santos, que deveria acompanhar os que desembarcassem naquele
porto até São Paulo.
Um dos aspectos interessantes da ajuda prestada pela Ezra à absorção dos
imigrantes judeus foi o do ensino da língua portuguesa aos recem-chegados, cujos cursos
contavam com uma boa freqüência.400
A entidade procurou abrir novas oportunidades de trabalho, entrando em
contato com empresas e indústrias existentes na São Paulo daqueles tempos.
Desse modo, os imigrantes que chegavam podiam completar ou adquirir
conhecimentos profissionais e encontrar empregos mais rendosos. A própria Light and
Power Company, a Companhia Mecânica e outras empresas de vulto daqueles anos abriram
400
Livro de Registro dos Imigrantes da Ezra , no acervo do A.H.J.B.
247
1928 1929
imigrantes registrados 680 1.611
imigrantes que receberam ajuda 270 1.065
imigrantes encaminhados 270 867
despesas com pensões 5.573$000 56.373$000
despesas gerais c/ imigrantes 3.742$000 20.044$000
despesas diversas 87.953$000 218.536$000
subsídios 27.632$000 114.060$000
ingressos de sócios 16.791$000 21.959$000
passagens grátis 80 224
cartas recebidas (p/ imig.) 476 4.873
cartas expedidas 513 1.073
receitas p/ imig. 120 294
Associação dos Israelitas Poloneses, que na revolução daquele mesmo ano ajudou a mitigar
as necessidades dos mais pobres da população israelita de São Paulo, assim como o faria
em 1932.
A Ezra continuou sua atividade beneficente e de ajuda social em relação aos
imigrantes israelitas durante as décadas seguintes, antes e após a Segunda Guerra Mundial,
enfrentando os desafios de tempos difíceis e tormentosos para a humanidade em geral, e
para os judeus em particular, os quais, na sua longa trajetória histórica, se caracterizaram
como um povo migrante por excelência, encontrando, porém, no Brasil, uma instituição
humanitária impregnada de idealismo que não media esforços e sacrifícios para amparar
seus correligionários. Em 1976, formar-se-ia a UNIBES, União Brasileiro-Israelita do
Bem-estar Social, fruto da unificação das instituições Ofidas, Ezra e Linat Hatzedek, graças
à extraordinária visão comunitária de seus presidentes naquela época: Antonieta Bergamo,
Adolpho Berezin e Samuel Mitelman, alcançando-se, desse modo, a reunião total das
sociedades assistenciais da comunidade judaica de São Paulo. Desde a fusão, em 1976, a
UNIBES foi presidida por Antonieta Bergamo, Petronia Teperman e Anita Schwartz.
A UNIBES atende a todas as faixas etárias da população, desde crianças até idosos,
incluindo serviço social que visa reabilitação social e econômica, distribuição de alimentos
e roupas, o que também permite o funcionamento de um bazar permanente, cujo ingresso é
revertido em auxílio ao carente. A UNIBES possui um serviço de atendimento médico,
recebendo nesse aspecto a colaboração da FISESP, Federação Israelita do Estado de São
Paulo. Desse serviço médico faz parte a distribuição de remédios de sua farmácia e grupos
de apoio para terapia ocupacional de terceira idade e de atendimento psiquiátrico. A
preocupação e o zelo da instituição para com as crianças são expressos no trabalho
realizado pela creche Betty Lafer e os programas de complementação escolar que se
estendem até mesmo durante o período de férias escolares.
Ao fazermos um esboço histórico da beneficência social na comunidade judaica de
São Paulo, que completou seu 80o aniversário no ano de 1995, não podemos deixar de
expressar o sentimento que deve perpassar o coração e a mente de todos: de que as mãos
infatigáveis das mulheres e dos homens que a sustentaram e ampararam fizeram jus ao dito
talmúdico: “O mandamento de praticar a caridade pesa tanto quanto os outros todos
reunidos” (Baba Batra, 9b).
249
A história da educação judaica no Brasil ainda está por ser feita, uma vez que,
até agora, nenhuma pesquisa sistemática foi realizada, ainda que vários projetos nesse
sentido tenham sido propostos por instituições comunitárias e mesmo por indivíduos
interessados na questão, mas que, lamentavelmente, não chegaram a se concretizar.
Nossa intenção, além de voltar a chamar a atenção ao tema que permanece em
aberto aos pesquisadores, é dar pequena contribuição ao seu estudo, através de elementos
que colhemos fortuitamente na imprensa judaica e em outras fontes que mencionaremos em
nosso trabalho401.
Coube à J.C.A. (Jewish Colonization Association), ao dar início, em 1904, à
colonização de Philippson, no Rio Grande do Sul, a criação de uma primeira escola judaica
no Brasil.402 Mas, antes de tudo, devemos entender que a preocupação da J.C.A. era atender
à vontade e ao desejo dos colonos em transmitir aos seus filhos os conhecimentos judaicos
necessários para que a nova geração soubesse a língua de seus pais, bem como as tradições
de seus antepassados. Dessa forma, o termo “escola” deve ser entendido como
complementação de estudos judaicos, que deveriam estar associados a conhecimentos
gerais básicos. Porém a partir dos estudos complementares judaicos dos primeiros anos,
chegaram os colonos de Philippson a estabelecer, mais tarde, verdadeira escola local,
reconhecida e supervisionada pelos órgãos educacionais do Estado. No interessante livro de
memórias de Frida Alexander,403 encontramos elementos para seguir essa evolução da
escola em Philippson, assim como tomamos contato com seus primeiros professores,
permitindo-nos ter uma idéia de seu currículo. Por não ter tido a intenção de fazer um livro
histórico, Frida Alexander não se ateve às datas, tão importantes para o historiador, o que
dificulta, de certa maneira, precisar o desenvolvimento da escola local. No capítulo em que
relata a festa de inauguração da escola, construída de madeira, menciona a vinda de um
professor de português, León Back,404 mas, em outro lugar, indica que as aulas de ídiche e
hebraico eram ministradas num anexo do chill (sinagoga) pelo rebe Abrão Waissman.405
Porém, logo em seguida, na mesma página, a autora escreve que, “quando a nova escola foi
inaugurada, dispondo de amplas janelas, tendo como professor de português um eminente
pedagogo, León Back, a quem breve juntar-se-ia o professor Israel Becker, para lecionar o
ídiche e o hebraico”, leva-nos a concluir que, de início, a escola era anexa à sinagoga, no
estilo do beit-hamidrash europeu apenas para o ensino do ídiche e do hebraico, mas,
401
Impomos ao nosso trabalho uma limitação cronológica até a década de 20, uma vez que nossa intenção, no
momento, é o estudo do início da educação judaica no Brasil.
402
A razão pela qual começamos com a J.C.A. deve-se ao fato de não sabermos absolutamente nada sobre a
educação judaica no século XIX, apesar das correntes imigratórias judaicas terem aportado em nosso território
nas primeiras décadas daquele século e aumentado nas últimas, principalmente a partir da imigração
alsaciana, em 1871.
403
Alexandr, Frida, “Filipson”, ed. Fulgor, São Paulo, 1967.
404
Op. cit., p. 31.
405
Op. cit., p. 37.
250
posteriormente, foi concluído um edifício apropriado a esse fim com a intenção de ter um
currículo mais completo.
O livro de Frida Alexander ainda é muito importante para conhecermos os
professores que lecionaram em Philippson, e, além dos já mencionados, aparece a figura
trágica do “Rebale”, que acabou morrendo no anonimato na selva que rodeava a região 406 o
professor Idel Leib Averbuch, que exerceu também a função de bibliotecário da escola e
veio a morrer na flor da idade407; o professor Usher Steinbruch408, que lecionou ídiche e
hebraico como substituto do professor Becker; Marcos Frankenthal,409 que veio em um
momento em que a escola estava quase em abandono; e, por fim, o professor Abrão
Budin410, que permaneceu durante muitos anos como diretor da escola e parece ter sido seu
sustentáculo. Lamentavelmente, pouco sabemos desses professores, com exceção da figura
de Marcos Frankenthal, que veio mais tarde a São Paulo e estabeleceu-se com a Tipografia
Palestina e fundou, em 1931, o periódico “San Pauler Idische Tzeitung”, que exerceu papel
cultural e social importante na vida comunitária judaica. Quanto ao professor Abrão Budin,
encontramos duas cartas de seu punho, escritas em português, ao professor David J. Perez,
e seu nome é mencionado várias vezes no jornal “A Columna” (1916-1917). O conteúdo
das cartas relaciona-se ao próprio jornal, sendo que, na primeira, manifesta ele suas
congratulações com o aparecimento do periódico, escrita com verdadeiro entusiasmo411, e a
segunda trata de doação ao Comitê de Socorro aos Israelitas Vítimas da Guerra. 412
PROGRAMA COMPLETO
406
Op. cit., p. 102.
407
Op. Cit., d. 131-132. Uma foto do mesmo encontra-se no livro de Eva Nicolaiewsky, que mencionaremos
adiante em nosso trabalho. A atitude individual de um professor se revela nas palavras de Frida Alexander:
“O professor Idel Leib costumava reunir os alunos já prestes a terminar o curso, e com eles debater sobre os
livros e orientá-los na escolha de outros.”
408
Op. cit., p. 132-133.
409
Op. cit., p. 139 e 144.
410
Op. cit., p. 127 e seguintes. A autora descreve a personalidade do professor Abrão Budin nos seguintes
termos: “O professor Budin era impecável nas suas maneiras e no seu modo de trajar. Nunca se exaltava com
os alunos, ministrava as aulas com bondade e paciência. Quando algum aluno cometia alguma falta, as faces
do professor Budin se cobriam de rubor, um sorriso encabulado se esboçava no canto de sua boca, como se
fosse pedir desculpas à classe pela falta que não cometera”.
411
As cartas fazem parte da coleção de documentos microfilmados do arquivo do professor David José Perez,
cuja cópia nos foi cedida pelo Central Archives for the History of the Jewish People, em Jerusalém, graças à
atenção e gentileza do Prof. Haim Avni. As datas das cartas são 11/05/1916 e 03/07/1916.
412
Trata-se da instituição criada no Brasil em 1916, com a finalidade de atender às necessidades dos judeus
no continente europeu, que estavam sofrendo as agruras da Primeira Guerra Mundial.
413
Nicolaiewsky, E., “Israelitas no Rio Grande do Sul”, ed. Guaratuja, P.A., 1975.
251
Grande do Sul”, escrito pelo Dr. León Back414, para a Enciclopédia Rio-grandense que
testemunha sobre si mesmo como professor: “Foi enviado pela J.C.A., de Paris, onde era
professor e vice-diretor da École Horticole et Professionelle, para Lisboa, a fim de aprender
ali o português e, posteriormente, para Philippson, onde chegou a 5 de junho de 1908,
instalando uma escola. As aulas da manhã e da tarde eram freqüentadas por cerca de 60
alunos. Nas últimas horas da tarde, funcionava uma aula para uns 20 adultos”.
Conforme instruções da J.C.A., os alunos, quase todos nascidos na Europa,
deviam ser educados como brasileiros. Por isso, a escola seguia os programas e adotava os
livros dos estabelecimentos públicos. Nas escolas só era admitido o uso da língua
portuguesa, com exceção do hebraico, ensinado nas aulas de instrução religiosa. Sabemos
pelo livro de Frida Alexander que também o ídiche era ensinado na escola.
Eva Nicolaiewsky ainda traz duas importantes menções sobre a escola de
Philippson, a primeira extraída de Ernesto A. Lassance da Cunha, que em sua obra
publicada em 1908, portanto bem próxima dos primeiros anos da colônia, escreve, à página
153: “Os colonos de Philippson são todos de origem russa e, na maior parte, já falam nosso
idioma. Na própria colônia existe uma escola particular para adultos e crianças, onde são
ensinados os idiomas português e hebraico”. A segunda referência é extraída do livro de
Hemérito José Veloso da Silveira, com o título “As Missões Orientais e seus Antigos
Domínios”, publicado em 1910, onde, à página 606, se lê: “A população de Philippson,
embora espargida por seus diversos lotes coloniais, embora entregue aos trabalhos nas suas
terras e indústrias dos lacticínios e outras, os israelitas não têm descuidado da instrução de
seus filhos. Na sede da colônia há aulas de português e hebraico, sustentadas pelos próprios
colonos”.
Eva Nicolaiewsky lembra mais dos professores que lecionaram em Philippson.
São eles, Chaim Ber Verba e José Pontremoli e, com razão, a autora observa que,
“considerando que as colônias possuíam de 25 a 30 hectares cada uma e que as moradias
foram edificadas dentro dessa área, é fácil imaginar o longo percurso a que estavam sujeitos
os alunos, atravessando campos, córregos, matos e defendendo-se das cobras, até atingirem
a escola”.
Outro aspecto interessante da escola é a composição mista de seus alunos,
incluindo católicos entre os mesmos, o que pode ser confirmado pela fotografia de 1908 e a
relação dos nomes dos alunos, publicada no livro de Eva Nicolaiewsky, em página não
numerada.415
Ao que tudo indica, a orientação imprimida pela J.C.A. à escola deveria ser a
de uma instituição que pudesse facilitar a adaptação dos filhos dos colonos ao novo país e
com padrões do mundo ocidental, afastando-se da mentalidade do schtetl, típico da Europa
Oriental.416
O caráter oficial da escola, reconhecida pelas entidades públicas do Estado, é
novamente comprovado por uma passagem no livro de Frida Alexander, quando relata que
“um acontecimento importante deixou marcada em Philippson a passagem do professor
Budin. Foi no fim do ano, pleno de atividades, quando, a convite do administrador Pereira e
414
Trata-se do professor León Back, a quem mencionamos anteriormente.
415
A mesma fotografia encontra-se na “Enciclopédia Judaica”, ed. Tradição, Rio de Janeiro, 1967.
416
É Preciso lembrar que a J.C.A. foi orientada por uma administração saída do judaísmo da Europa Ocidental
e tinha uma visão do judaísmo diferente da do schtetl.
252
do próprio professor Budin, tivemos uma comissão de examinadores enviada pelo Governo
do Estado, entre os quais João da Silva Belém, um dos luminares da pedagogia do Rio
Grande do Sul, e Walter Jobim, quem veio a ser, mais tarde, presidente do Estado”.417
EM QUATRO IRMÃOS
417
Op. cit., p. 128.
418
Eva Nicolaiewsky, em seu livro, menciona também o núcleo de Rio Padre, mas não sabemos se havia
escola ou não nesse local.
419
Encontramos alguns traços semibiográficos no livro de Karakuschansky, S., “Aspektn funen idischen leben
in Brazil”(Aspectos da vida judaica no Brasil), ed. Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1957, vol. II, pp. 66-67.
Lamentavelmente, o excessivo “literalismo” do autor, que acompanhou de perto a vida judaica do Rio de
Janeiro, a partir da década de 20, e portanto poderia nos dar excelente testemunho do período, prejudica em
muito o aspecto histórico de seu trabalho, que se torna difuso no tempo e no espaço, carente de objetividade e
mesclado de apreciações pessoais, nem sempre corretas, sobre as personalidades que nos apresenta. Professor
Faingelernt lecionou em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e, por fim, no Rio de Janeiro. Devemos
lembrar, ainda, que o autor do livro acima citado dedica, no vol. I, um capítulo à educação judaica no Brasil.
253
OUTRAS ESCOLAS
420
O rabino Raffalovich vinha da Inglaterra, onde serviu durante muitos anos como guia espiritual de
Liverpool.
421
Editado em 1952.
422
Op. cit., p. 186.
423
“A Columna”, n.ºs de set., out., nov., dez., 1917, p. 155
254
uma escola israelita nesta cidade, que conta com elementos seguros de vida, em virtude da
prosperidade de sua colônia”.424 No número de maio do mesmo ano, noticiava-se que, “a 25
de fevereiro próximo passado, fundou-se, na capital de São Paulo, um Talmud Torá, o
primeiro no Sul do Brasil de que temos notícia. A freqüência em abril era de 23 alunos, 20
do sexo feminino e 3 do sexo masculino”.425
Ainda no mesmo número se noticia que “a Sinagoga da rua da Graça, em São
Paulo, esteve muito concorrida durante o tempo de Pessach, sendo grande o número de
nossos correligionários que ali foram fazer suas orações. Todos os que ali estiveram nesses
dias prontamente contribuíram no limite de suas posses para a manutenção do Talmud
Torá”.426 Já em junho do mesmo ano, ou seja, poucos meses após a fundação da escola,
noticiava-se que o Talmud Torá Bet-Sepher Yvri desta cidade (São Paulo) estava
melhorando. “Conta, atualmente, segundo informações de seu diretor, com 44 alunos
inscritos, sendo 20 do sexo masculino e 24 do sexo feminino”.427 Alguns viajantes do Rio
de Janeiro que vieram a São Paulo para visitar as instituições da comunidade também dão
testemunhos da escola recém fundada e, entre eles, temos o de Max Fineberg, presidente da
primeira sociedade sionista no Brasil, a Tiferet Sion, que assim escreve: “...o Talmud Torá,
recentemente fundado, que vai prestando o inestimável serviço de instruir os filhos de
nossos correligionários na língua dos profetas e educá-los propriamente para que sejam tão
bons israelitas como brasileiros”.428
O secretário de “A Columna”, Ambrosio M. Ezagui, em artigo sobre São
Paulo, refere-se a Talmud Torá “que tem uma freqüência regular de alunos, sendo a nossa
doce língua lecionada pelo sr. Júlio Itkis, com resultados satisfatórios, como notei quando
tive a felicidade de visitar esse estabelecimento de instrução, em outubro do ano
passado...”.429 Quanto ao caráter da escola, as notícias que temos não permitem chegar a
uma conclusão definitiva, mas, aparentemente, era uma escola complementar de estudos
judaicos, que não abrangia currículo completo em português. O entusiasmo com a nova
escola é visível numa deliciosa notícia de “A Columna”, que nos informa que, “a 12 de
agosto, realizou um festival infantil em benefício do Templo Israelita em construção.
Compareceram muitas famílias da melhor sociedade, que concorreram para abrilhantar a
festa. Tomaram parte as seguintes crianças, que, dirigidas pelo professor Elias Carseh,
desempenharam a contento seus papéis: N. Lerner, quem recitou “Hamitcan bamitbar”;
Faelle Zippin, Nita Batbah e ‘Al Aior Bemizraim”; N. Lerner (canto), “Ura Ben liyakir”.
Constituíram o coro M. Kauffman e L. Naslavsky. Depois, organizou-se uma passeata, da
qual tomaram parte muita crianças que ostentavam as bandeiras brasileira e israelita.
Escusado será dizer que deixou a mais agradável impressão a todos os que assistiram a esse
ato”.430
Curiosamente, no ano de 1917, em Belém do Pará, parece ter havido esforço
comunitário em suprir, de alguma forma, conhecimentos judaicos aos seus filhos, pois se
noticia que “o sr. Manoel A. de Castro, diretor do Colégio Pará e Amazonas, acaba de criar
424
“A Columna”, n.º de março, 1916, p. 41.
425
“A Columna”, n.º de maio, 1916, p. 72.
426
“A Columna”, n.º de maio, 1916, p. 74.
427
“A Columna”, n.º de junho, 1916, p. 90.
428
“A Columna”, n.º de agosto, 1916, p. 117.
429
“A Columna”, n.º de fevereiro, 1917, p. 27.
430
“A Columna”, n.ºs de set., out., nov., dez., 1917, p. 151.
255
a cadeira de Língua Hebraica no curso suplementar dessa casa de instrução, para o qual
nomeou o professor Isaac P. Melul. Contou-nos que o sr. Artur Pinto, diretor do Colégio
Progresso Paraense, pretende também criar essa cadeira no seu instituto de ensino”. 431
PROFESSOR EMINENTE
No Rio de Janeiro, ao que tudo indica, também existia uma escola do tipo
Talmud Torá de São Paulo, e talvez tenha mesmo sido criada anteriormente a daquela
cidade, ainda que não tenhamos nenhuma data que confirme tal suposição. Sabemos, sim,
que, em 1916, vivia no Rio de Janeiro um dos primeiros professores daquela comunidade;
este teria o papel decisivo na evolução do ensino judaico no Brasil: Saadio Lozinski. De
boa formação cultural, bem como de profunda erudição judaica e possuidor de élan
pedagógico, viera da Holanda para ser professor em nosso país. Não sabemos em que ano
chegou ao Rio de Janeiro, mas seu nome aparece no jornal “A Columna”, em relação à
primeira demonstração pública judaica, realizada no Rio de Janeiro em 1916, relatada por
Jacob Schneider em suas “Memórias”, nos seguintes termos: “Entre nós havia um
professor sionista – Saadio Lozinski, ao qual pedi que reunisse as crianças na Praça Onze
para que saíssem com bandeiras numa passeata. Convidei também os pais. Os
componentes do comitê do Joint tentaram impedir a realização da mesma e do pic-nic, mas
de nada adiantou. A juventude marchou da Praça Onze até a Quinta da Boa Vista e, com
eles, muita gente”.
Esse relato é confirmado pelo jornal “A Columna”, do qual citamos apenas um
trecho: “O dia 21 de maio (de 1916) foi, pois, um dia feliz à nossa gente. Mais de setenta
crianças israelitas, em formatura, partiram da Praça Onze de Junho, em debandada dos
automóveis, que as aguardavam um pouco abaixo, perto da Avenida do Mangue. As
bandeiras nacional e sionista, desfraldadas ao sopro da suave brisa, abriam o préstito. Às
duas horas da tarde, entraram na Quinta e, pouco a pouco, foram chegando carros e
automóveis conduzindo famílias e cavalheiros, até ser bem numerosa a concorrência, o que
tornou animadíssima a festa. Às quatro horas, pouco mais ou menos, principiou a execução
do programa. Os meninos cantaram o Hino à Bandeira, e, em seguida, o Hino Sionista, em
Hebraico”.432
Saadio Lozinski, de fato, era sionista convicto e tomou parte nos eventos
ligados ao início do sionismo no Brasil.433 Em sua correspondência com o professor David
J. Perez434 encontramos várias cartas em hebraico, mas sem qualquer relação com nosso
tema. Ele escreveu, em vários órgãos da imprensa judaica do Rio e São Paulo, inúmeros
artigos sobre educação, que, até agora, não foram reunidos, ainda que constituam material
excelente para o estudo da educação judaica no Brasil.
431
“A Columna”, n.º de março, 1917, p. 47.
432
“A Columna”, n.º de julho, 1916, p. 98.
433
Sua ligação com o primeiro grupo de sionistas do Rio de Janeiro é inegável, pois seu nome está vinculado
às primeiras associações, e em 1922, quando se formou a Federação Sionista do Brasil, ele foi seu primeiro
vice-presidente. Durante vários anos foi diretor da Escola Scholem Aleichem no Rio de Janeiro.
434
No microfilme do arquivo do professor David J. Perez, mencionado acima.
256
Experiência única relativa à educação judaica no país foi feita pelo major
Eliezer Levy, quem teve papel de destaque na criação do movimento sionista no Norte, 435
ao fundar, na cidade de Belém do Pará, em 15 de novembro de 1919, o “Externato Misto
Dr. Weizmann”. Em carta dirigida a Weizmann, datada de 20 de novembro de 1919, 436 ele
escreve “que não pode haver progresso sem instrução, e como nossa juventude é desprovida
dos mais rudimentares conhecimentos dos princípios de nossa religião, minha primeira
atitude (como presidente da Associação Beneficente Israelita) foi a de fundar uma escola
para crianças de ambos os sexos. O ensino da língua da terra e hebraico, e a orientação em
costura e bordado são inteiramente gratuitos, livros escolares e outros elementos
necessários ao ensino são também inteiramente gratuitos, assim como roupa e calçado para
os que necessitam realmente. A inauguração festiva da Escola teve lugar em 15 de
novembro. O governador do Estado presidiu a cerimônia e participaram em grande número
as famílias importantes e senhoras dos círculos sociais e comerciais mais proeminentes.
Essa escola profissional e geral tive a honra de denominá-la Externato Misto Dr. Weizmann
(Escola Dr. Weizmann para ambos os sexos), em homenagem ao senhor, pelos seus
esforços e imensa labuta em prol da causa do sionismo e da redenção de Israel. Estou certo
de que essa escola, sob os auspícios de um nome tão honrado e amado, terá futuro
brilhante, e nossos irmãos nela educados pronunciarão, diariamente, com alegria, seu nome,
e virão a reconhecer em sua pessoa o elemento mais forte na nova restauração de nossa
sagrada Eretz Israel. Ficarei imensamente recompensado pelos meus esforços se o senhor
aceitar essa homenagem e me enviar uma de suas fotografias mais recentes, de modo que
nossos alunos conheçam o patrono da Escola Dr. Weizmann, que honra a galeria dos
israelitas ilustres. Coloco à disposição meus modestos serviços nessa cidade, e aguardo a
honra de suas ordens. Com elevada estima e consideração, seu admirador e humilde servo,
Eliezer Levy”.437
Major Eliezer Levy, sionista convicto que era, havia fundado, em outubro de
1918, a organização sionista Ahavat Zion, em Belém do Pará, e, em 8 de dezembro do
mesmo ano, ele daria início à publicação de um periódico com o título de “Kol Israel”.
Nesse periódico encontramos mais elementos sobre o Externato Misto Dr. Weizmann, além
de algumas fotografias da escola reproduzidas naquele jornal. No número comemorativo do
segundo ano de existência do periódico, informava-se a inauguração da escola, “no dia 16
do mês passado (novembro)..., presidida pelo representante do exmo. Sr. Dr. Lauro Sodré,
governador do Estado, major Roberto Vasconcellos, ladeado pelo Dr. Heráclito Pinheiro,
inspetor escolar, representando o senador Paulo Maranhão, diretor do ensino primário; Dr.
Oscar de Carvalho, médico da Associação; Menasses Bensimon, presidente da Assembléia
Geral; Jacob A. Benchimol, presidente do Comitê Israelita; Raimundo Viana, delegado do
Grão-Mestre da Maçonaria; e major Eliezer Levy, presidente da Associação.
Recitaram belas poesias as meninas Preciada e Sultana Levy, o menino
Benjamin Sabá e as meninas Amália e Stella Levy”.
435
Fizemos em outro trabalho, ligado à história do sionismo no Brasil, uma avaliação do papel do major
Eliezer Levy na formação do nacionalismo judaico em nosso país.
436
Encontrada por nós no Central Zionist Archives (Ha-Archion Ha-Tzioni), em Jeruzalém, pasta Z 4/2350.
437
Weizmann estava ausente da Inglaterra, pois havia viajado à Palestina, tendo o editor do “Zionist Bulletin”,
M. Landa, respondido à carta, em 9 de março de 1920, conforme verificamos na pasta Z 4/2350 do Central
Zionist Archives.
257
Mais adiante, temos uma descrição do currículo escolar, onde se diz que “o
externato compõe-se de aulas e do curso primário, tendo anexo um curso de hebraico,
prendas manuais, bordados à mão e à máquina de costura, para cujos fins tem bem montada
sala, com cinco máquinas Singer, bastidores, mesa de corte e todos os demais objetos
necessários. O número de alunos matriculados é de 70, aos quais é ministrado o ensino de
todas as disciplinas gratuitamente, fornecendo-se, também gratuitamente, todo o material
escolar; aos reconhecidamente necessitados, o estabelecimento fornece roupa e calçado. O
corpo docente é composto de duas professoras normalistas e uma adjunta para a escola
primária, um professor de hebraico, uma professora de costura e bordados e uma de
bordados à máquina. A freqüência média do Externato é de 60 alunos, sendo já notável o
aproveitamento por todos revelado, quer nas disciplinas do curso, quer nos trabalhos
manuais e à máquina”.438 No mesmo periódico, em outra página, aparecem os nomes dos
docentes Moises Binlolo, do curso de hebraico; Mme. Luza Cerdeira, da aula de bordados à
máquina; major Eliezer Levy, diretor do estabelecimento; senhorita Sara Zagury, do curso
primário; senhorita Ana Ismael Nunes, da aula de rendas à mão; e senhorita Annita Levy,
auxiliar dessa aula”.
A escola do major Eliezer Levy era realmente uma fundação notável pela
composição de currículo oficial, em nível de escola primária; currículo judaico, com o
ensino do hebraico, e currículo profissionalizante ou técnico, para as meninas poderem ser
donas de casa eficientes e prendadas. A fundação dessa escola era, no fundo, obra pessoal,
fruto de personalidade idealista e criativa, mas que, em tempos difíceis, encontrou-se
isolada e sem apoio para dar continuidade à idéia.43939
438
“Kol Israel”, ano II, n.0 12, 16 de novembro de 1919.
439
O encerramento da escola e a indiferença da comunidade local quanto a sua continuidade nos
foram relatados, em carta comovente, pela filha do major Eliezer Levy, a talentosa escritora
Sultana Levy Rosenblatt, vivendo atualmente nos Estados Unidos.
440
V. verbete Colégio Hebreu-Brasileiro. O fato de as crianças terem participado na
abertura do Primeiro Congresso Sionista no Brasil, em 1922, e seus delegados terem sido
convidados para visitar a escola nos leva a pressupor que ela já deveria existir antes do ano
de 1922.
258
441
Aaron Goldenberg é mencionado no livro de Karakuchansky, já citado, no primeiro volume, p. 9, como um
dos ativistas de grande iniciativa na vida comunitária do Rio de Janeiro.
442
No temário do Primeiro Congresso Sionista no Brasil, encontrava-se na ordem do dia uma discussão sobre
educação judaica, e os Protocolos registraram as opiniões dos participantes, revelando, assim, as posições
existentes quanto ao controvertido tema. Vide o artigo Os Protocolos do Primeiro congresso sionista no Brasil
nesta coletânea.
443
Uma das poucas e raras fontes que possuímos sobre a Escola Maguen David e outras escolas judaicas
fundadas na década de 20 é o número comemorativo dos dez anos de existência do periódico “Idische
Presse”, publicado em 19 de junho de 1935.
259
mantêm suas posições em todas as frentes realizando de vez em vez contra-ataques sobre o
exército do governo provisório”. O jornal informava também que “em Itapira, a artilharia
anti-aérea, nesta semana, derrubou um avião que veio observar as posições
constitucionalistas”, e em São José do Rio Pardo os paulistanos, sob o comando do major
Romão Gomes, causaram grandes perdas ao inimigo, que em fuga, deixou uma grande
quantidade de munição.
O jornal fez referência ao movimento de contribuições em ouro mencionando
que “a população dá ao governo de São Paulo uma ajuda entusiasta, e os bancos que estão
autorizados a receber o ouro atenderam a muitas pessoas, que trouxeram jóias e outros
metais preciosos. Também foram entregues na Cúria Metropolitana mais de mil anéis de
ouro, trocados pelos de ferro. A Cruz Vermelha atua desde o primeiro dia em todos os
lugares das frentes militares, no interior e na capital, com a ajuda de várias comissões da
sociedade paulista dando todo o seu apoio. Uma rede de hospitais está espalhada em todas
as cidades do Estado para prestar ajuda aos soldados feridos, e em São Paulo foram criadas
muitas oficinas, onde trabalham mulheres e moças da sociedade, que preparam lençóis e
vestimentas para a Cruz Vermelha”.
Porém, o noticiário do San Pauler Idische Tzeitung nos é importante sob o
aspecto da ajuda prestada pela comunidade judaica de São Paulo à Revolução
Constitucionalista, pois, além das atas lembradas acima, não dispomos de outros
documentos senão o relato daquele periódico. Sob o título “Organização judaica de ajuda
Ezra”, relata o jornal que “os ingressos destinados à Revolução não foram suficientes, e
pelo fato de diminuírem mais ainda agora, fomos obrigados a nos dirigir à população
judaica para dar uma ajuda especial, que novamente mostrou sua boa vontade para com as
instituições de ajuda”. No mesmo lugar se noticia que foi criado um “Comitê de Ajuda”
(Fundo de Emergência), com a participação de todas as entidades, sob a supervisão da
“Representação Central”, e que “desde o início da situação atual começou a coletar
produtos alimentícios, que são distribuídos pela Sociedade das Damas Israelitas, no local da
Ezra, à rua Bandeirantes, 20. Para o Comitê de Ajuda, a soma coletada anteriormente não
foi o suficiente, uma vez que o estado (de guerra) está se prolongando e as necessidades da
população mais pobre estão crescendo de tal modo que a Comissão foi obrigada, mais uma
vez, a coletar um fundo para poder atender ao trabalho de repartir alimentos, como tem sido
feito até agora, e, nesse sentido, é importante que a comunidade judaica se prontifique
novamente a dar seu apoio a esse objetivo”.
Em um artigo de fundo do mesmo jornal, naquele mesmo número, intitulado
“A comunidade judaica e o trabalho de ajuda”, temos um balanço da atividade
desenvolvida pela mesma em prol da Revolução. O autor do artigo lembra que “todas as
nacionalidades estão prestando uma ajuda à Cruz Vermelha e outras entidades, e a
comunidade judia também o está fazendo, tanto em forma de grupos voluntários como
coletivamente, através do Comitê que se formou com a Ezra e a Sociedade das Damas
Israelitas (Froien-Hilfs-Ferein) e sob a orientação da “Representação Central”, constituindo
ao mesmo tempo o Comitê de Ajuda para criar os meios para a distribuição de alimentos
para a população judaica mais pobre”. Em seguida, o articulista destaca que a maior parte
do trabalho de ajuda deve-se inscrever em nome da Sociedade das Damas Israelitas, cuja
comissão passou a atuar desde o início e intensivamente, conseguindo juntar somas de
dinheiro e artigos diversos necessários e úteis à Cruz Vermelha em nome da colônia
judaica. Ele lembra também a doação dos 942 capuzes para os quais elas coletaram entre as
mulheres da colônia a 5 mil réis a peça. O artigo termina dizendo que importante seria que
261
as contribuições dos vários grupos individuais existentes fossem centralizadas, como ocorre
com outras colônias, mostrando assim “que toda a comunidade israelita está participando
desse grande movimento”. Podemos supor que o articulista fosse um dos três responsáveis
pelo periódico, ou seja, Marcos Frankenthal, José Nadelman ou Elias Amstein.
Como vemos, a comunidade, que em 1932 já se encontrava solidificada, com
instituições próprias e se apresentava com uma ou duas gerações de descendentes dos
primeiros imigrantes, não ficou indiferente aos sucessos revolucionários. Podemos verificar
que, além da Sociedade das Damas Israelitas, houve participação também de outras
instituições como a Ezra e a Loja Moses Mendelssohn.
262
Pouca atenção foi dada, por parte dos historiadores brasileiros,444 ao fato de que
Albert Einstein, ao visitar o Brasil em 1925, tenha sido hóspede da comunidade judaica do
Rio de Janeiro, e que sua presença foi assinalada pela imprensa ídiche local, ou seja, pelo
único órgão existente naquele tempo, o “Dos Idische Vochenblat” (“O Semanário
Israelita”), fundado por Aron Kauffman.
Einstein fora convidado para vir ao nosso país pela Escola Politécnica e pelo
Clube dos Engenheiros do Rio de Janeiro. Mas, sua vinda deve-se, em boa parte, à
intervenção do rabino-mor Isaías Raffalovich, que, em nome da comunidade judaica
brasileira, envidou todos os esforços para que o famoso cientista fosse seu hóspede. E foi
com a intenção de recepcionar Einstein que se organizou uma comissão de representantes
das instituições judaicas no Rio de Janeiro, que deveria programar suas conferências e
visitas durante o tempo de permanência entre nós. Curiosamente, é preciso assinalar,
mesmo em se tratando de visita tão importante, que não reinou total harmonia entre os
representantes das instituições, pois sabemos que a Biblioteca Scholem Aleichem retirou-se
devido a um pequeno desentendimento com seus delegados no primeiro encontro da
comissão organizadora, provocando uma celeuma que mereceu a atenção de um articulista
do “Dos Idische Vochenblat”.445
Einstein viria ao Brasil de volta de sua viagem da Argentina e do Uruguai,
onde estivera a convite de instituições científicas daqueles países, devendo chegar ao Rio
de Janeiro com o navio “Valdivia”, dia 5 de maio. Isaías Raffalovich, em seu livro
“Tziunim ve-Tamrurim”,446 relata que, bem antes, soubera que a Sociedade Cultural
Hebraica de Buenos Aires convidara o cientista a proferir uma série de palestras para o mês
de março de 1925, e que, portanto, se apresentava excelente oportunidade à comunidade
judaica do Rio de Janeiro para conhecer o “pai da teoria da Relatividade”. Assim sendo,
Raffalovich, de posse da preciosa informação, comunicou-se com o professor Inácio de
Azevedo Amaral, do Politecnicum do Rio de Janeiro, para notificá-lo da futura presença de
Einstein na Argentina, sugerindo que seria grande honra ao Brasil também recebê-lo.
Professor Amaral, de imediato, percebeu a importância do assunto e sugeriu convocar um
encontro com as autoridades universitárias e o rabino. Nesse encontro, o rabino-mór relatou
que Einstein estaria na Argentina e que seria altamente honroso também a nós convidá-lo, o
que, de imediato, levou uma resolução unânime dos presentes para que não se deixasse
escapar essa oportunidade. Raffalovich lembra que enviou um telegrama em nome da
Escola Politécnica e da Universidade, bem como em nome da comunidade judaica, a
Berlim, e, poucos dias após, Einstein respondia positivamente ao convite.
PRIMEIRA VISITA
444
1. Um artigo importante sobre a estadia de Einstein no Rio de Janeiro é de Caffarelli, R. V., Einstein e o
Brasil, in “Ciência e Cultura”, vol. 31, n.º 12, 1979.
445
“Dos Idische Vochenblat”, 77, 01/05/1925.
446
Editado em Tel Aviv, 1951.
263
Já de volta da Argentina, Einstein, que era esperado dia 1.º de maio, chegou ao
Rio de Janeiro com o navio “Valdivia”, 450 que atracou com certo atraso. No porto,
esperavam-no, além da comissão oficial de cientistas brasileiros, os representantes das
instituições judaicas, entre elas, Federação Sionista, Sociedade de Ajuda (Hilfs-Ferein-
Relieff), Centro Sionista do Rio de Janeiro, Sociedade de Ajuda das Damas Israelitas
(Froien -Hilfs-Ferein), além do rabino-mor, Isaías Raffalovich, e Isidoro Kohn. Nessa
recepção, Ofélia Kastro, em nome da Sociedade de Ajuda das Damas Israelitas, ofereceu-
lhe um buquê de flores.451
No programa oficial, estabelecido pela comissão de cientistas e professores,
incluiu-se, além das conferências e palestras nas instituições científicas locais, uma
447
“Dos Idische Vochenblat”, 72, 27/03/1925.
448
V. a respeito o artigo de Caffarelli, mencionado acima.
449
“Dos Idiche Vochenblat”, 72, 27/03/1925.
450
“Dos Idiche Vochenblat”, 77, 01/05/1925.
451
“Dos Idiche Vochenblat”, 78, 08/05/1925.
264
conferência especial à comunidade judaica do Rio de Janeiro, marcada para dia 9 de maio
no Automóvel Club do Brasil. “Dos Idische Vochenblat” anunciou, em página inteira, a
conferência e, nesse anúncio constavam os nomes de quase todas as entidades da
comunidade daquela época, a saber: Federação Sionista do Brasil, Sociedade de Ajuda
(Idischer Hilfs-Ferein), Sociedade de Ajuda das Damas Israelitas (Idischer Froien -Hilfs-
Ferein), Comunidade Israelita ( Idischer-Brazilianer Gemeinde), Agudat Benei Herzl,
Centro Sionista do Rio de Janeiro e Escola Israelita Brasileira.452
Na noite de sábado daquela data, mais de duas mil pessoas se acotovelavam
para ver e ouvir o famoso cientista, representantes da sociedade brasileira e israelita das
mais diversas origens, ocupações e profissões. O Rabino Isaías Raffalovich abriu a noite
com emocionantes palavras: “Estamos reunidos para prestar homenagem ao maior sábio de
nosso tempo, e estamos extraordinariamente orgulhosos pelo fato de esse gênio ser nosso,
um filho fiel de nosso povo e, como tal é que o saudamos. A presença do professor Einstein
entre nós é um acontecimento extraordinário, que será escrito com letras de ouro na história
da jovem comunidade judaica do Rio de Janeiro”.
Em seguida, usou da palavra o professor David José Perez, intelectual
respeitado, que falou em português. Fez uma apreciação sobre a Ciência no judaísmo, do
passado e do presente, e terminou seu discurso em francês, com palavras calorosas,
dirigidas ao homenageado. Em nome da Federação Sionista, falou Eduardo Horowitz, em
ídiche, mostrando uma outra faceta da personalidade de Einstein, não a do cientista, mas a
do humanista preocupado com a verdade e a vida da humanidade em geral, e a de seu povo,
em particular.
PARTIDÁRIO DO SIONISMO
Por fim, tomou a palavra o homenageado, que abriu sua conferência dizendo:
“Irmãos e irmãs”, e escusando-se por não concordar com todos os elogios à sua humilde
pessoa. Em continuação, Einstein deteve-se sobre a necessidade de haver solidariedade
entre os judeus na ajuda aos irmãos necessitados em vários lugares e, principalmente, ao
movimento sionista, na reconstrução de Eretz Israel. Felizmente, afirmou Einstein, o
mundo judaico adquiriu consciência de seu objetivos, no sentido do movimento sionista, e é
de se esperar que, cada vez mais, tal consciência se transforme numa força real. 453 Suas
palavras calaram fundo no público presente, que, ao término do encontro, foi saindo
vagarosamente do salão do Automóvel Club do Brasil, comovido com a presença do grande
cientista que simbolizava, naquela noite memorável, não somente o genial criador da
452
“Dos Idiche Vochenblat”, 78, 08/05/1925.
453
“Dos Idische Vochenblat”, 79, 15/05/1925; 80, 22/05/1925; 81, 29/05/1925. A posição de Einstein em
relação ao movimento sionista era de total apoio, e sua identificação com o ideal de reconstrução nacional
judaica em Eretz Israel foi por ele expressa em muitas ocasiões, verbalmente e por escrito, como podemos
verificar no capítulo IV do livro recém-editado pela Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, com o
título “Como Vejo o Mundo” (Mein Veltbild”, original alemão). É de se notar a má-fé do autor da orelha do
livro, muito comum em certos “intelectuais” sujeitos às más influências do modismo anti-sionista, ao
escrever: “...Einstein, de exemplar senso de humanidade: partidário do entendimento entre os povos, convicto
defensor do judaísmo, mas nunca sionista, (g.n.), observador sagaz da sociedade que o rodeava”. Só podemos
deduzir que o autor redigiu o texto da orelha do livro sem lê-lo; do contrário, não se exporia a tamanho
vexame, deturpando inteiramente as idéias e contradizendo o próprio conteúdo dos escritos de Einstein.
265
“teoria da Relatividade”, mas o herói de seu próprio povo, tão legendário quanto os do
passado.
No dia seguinte, Einstein visitaria a Federação Sionista, que, na época, se
encontrava sob a presidência de Jacob Schneider. Na noite do domingo, foi organizada uma
recepção no Centro Sionista, na qual fizeram uso da palavra Jacob Schneider, Moisés
Koslovski, presidente do Centro, e o rabino Raffalovich. Einstein agradeceu a todos e
expressou sua satisfação de encontrar na comunidade tão intensa atividade em prol desses
ideais. A noite encerrou-se formalmente com a leitura, feita por Eduardo Horowitz, da ata
que relatou o encontro havido e as respectivas assinaturas dos membros que compunham a
mesa.
Apesar da discordância da Biblioteca Scholem Aleichem com o comitê
organizador, na mesma noite Einstein resolveu visitar aquela entidade, acompanhado pelos
presentes do Centro Sionista. Em nome da Biblioteca, saudou o visitante S. Feingold, que,
na ocasião, fez entrega ao cientista de uma coleção de livros especialmente encadernados e
o convidou a ser sócio-honorário da instituição.454
O famoso cientista partiria no dia seguinte com o navio “Cape Nort”, rumo à
Europa, despedindo-se das comissões de recepção e dos acompanhantes que estiveram com
ele durante todo o tempo em que permaneceu no Rio de Janeiro.
454
“Dos Idische Vochenblat”, 81, 29/05/1925.
266
assim ele figura no número comemorativo, de agosto de 1940, juntamente com os demais
escritores, jornalistas e intelectuais que colaboravam com o periódico.
O fato de esses depoimentos ou artigos fornecerem elementos que podem
ajudar aos estudiosos da obra do pintor não somente a reconstituir o roteiro de sua
formação artística, mas também a elucidar certos conceitos de seu mundo estético é que nos
levou a traduzi-los, e também a publicar este artigo.
No número 2 do “Velt-Spiegel”, de julho de 1939, Segall publicou um artigo
com o título “Lazar Segall vegen zich” (Lazar Segall sobre si mesmo”), cujo texto
traduzido ao português foi publicado pela Revista Anual do Salão de Maio, n.º 1, 1939,
com o título “1912 –Depoimento”. Trata-se do mesmo texto e, portanto, não temos
necessidade de reproduzi-lo aqui,458 apesar de sua importância para a biografia artística de
Segall.
Outro artigo que Segall escreveu no “Velt-Spiegel”, de 4 de setembro 1939,
versava sobre o tema da arte judaica e foi publicado com o título “Existirt a Idische Kunst?”
(Existe uma arte judaica?). Nesse artigo, podemos encontrar parte da visão de mundo
artística de Segall, na medida em que ele procura meditar sobre a questão. Vejamos como
ele a desenvolve, no texto que traduzimos a seguir:
458
O texto se encontra também publicado no vol. II, Apêndice, da tese de Vera d’Horta Beccari, “Lasar
Segall. Esboço de um Retrato”, defendida na Universidade de São Paulo, em 1979, pp. 296-99.
268
RECORDAÇÕES DO ARTISTA
459
No periódico “Di Tzeit”, nov.-dez., 1939, n. 4-5, p. 27, menciona-se a data de 31 de março de 1890.
460
V. Malamud, S.,Recordando a Praça Onze, Liv. Kosmos Editora, Rio , 1988, p.78, onde se encontra uma
fotografia , do arquivo de Adolfo Aizen, na qual figura Kischinevsky participando no lançamento da pedra
fundamental da escola local, em 25 de novembro de 1928.
461
Falbel, N., Jacob Nachbin, Nobel, São Paulo, 1985, pp.29-56, se encontra o relato sobre a criação do Dos
Idische Vochenblat e a participação dos poucos intelectuais judeus-brasileiros no periódico.
271
462
Sobre esses periódicos vide a obra de Raizman ,Isaac Z., A Fertl Yohrhundert Ydische Presse in Brazil
(Um quarto de século de imprensa judaica no Brasil), The Museum of Printing Art, Safed, 1969, pp.88-91.
463
Neie Heimen, p.157.
464
Ed. Museum le-Omanut há-Dfus, Sfat, 1975, pp.267-70. Um verbete sobre A.K. foi publicado no Lexikon
fun der Nayer Yidischer Literatur, New York,1963. Também no Léxico dos Ativistas Sociais e Culturais do
Rio de Janeiro, organizado por Henrique Iussim, que não chegou a ser editado, se encntra uma pequena
biografia que nada acrescenta ao verbete anterior.
465
N. 3, 1945, pp.189-196.
466
Ed. Monte Scopus, Rio de Janeiro, pp.153-62.
272
chuva, e enquanto passavam centenas de carros ao seu lado, questionava-se: ‘Onde foram
parar os melhores vinte anos de minha vida, dos quarenta que já vivi? Que almeja agora
minha alma?’”.
No seu passeio uma moça coquete passará por ele, chamando-lhe a atenção
“coquete no seu andar contado e gracioso, balançando seu corpo para cá e para lá, jogando-
lhe um olhar discreto acompanhado de um sorriso através do qual se revelaram uma fileira
de dentes branqueados incrustados em lábios, como se fossem morangos”.
O nosso herói, assim, é despertado para a vida, que até então estivera presa ao
dinheiro e para o qual havia canalizado todos os seus esforços. O próprio personagem
resumia a fórmula adotada que norteava sua atividade de mascate, mas que sintetizava
também o que fizera até o momento: “(...) Quanto mais clientes, mais cartões, mais contos
de fadas”.
A crise que o acomete leva-o a olhar para trás. Como ele pôde permanecer
cerca de quinze anos no Brasil, enterrado em seus cartões, esquecido de si mesmo, de seus
amigos, pais, que ainda viviam do outro lado do oceano e sobre os quais há muito tempo
não tinha sequer qualquer notícia? Isidoro acordaria no dia seguinte “e descobriria um belo
e iluminado mundo”. Pela primeira vez sentar-se-ia em um automóvel para pedir que o
levassem à avenida Atlântica, descortinando no caminho também os anos perdidos de sua
juventude, o que levava a um sentimento de profunda perda (...) A praia repleta de gente, as
ondas espumosas do mar, e a visão passageira de uma menina brincando com seu pai muito
significavam para o ambulante solitário de quarenta anos. Fizeram-no sentir o vazio e a
falta de sentido de sua vida. Tarde da noite voltou para casa, tocou em seus cartões, fez um
balanço geral e disse para si mesmo: “Sim, com algumas centenas de contos pode-se, ainda,
fazer a vida mais doce (...)”
Em outro conto intitulado “Em uma pequena cidade perdida (no mundo)” K.
retrata um personagem, Henrique (Hersh), que vive durante vários anos em uma pequena
cidade do interior, à qual chegara em suas andanças de clientelchik. A falta de outros judeus
no lugar, a vida monótona do lugarejo, cuja população se distrai “dando voltas nos fins de
semana ao redor do coreto da pracinha central, não demonstrando qualquer sinal de vida ou
alegria” o levam, em um dado momento, à inquietação, apesar da estabilidade econômica
adquirida com seu trabalho, trabalho esse que resultou numa loja de móveis. Seu
isolamento e o germe da solidão afloram constantemente, e nessas ocasiões encontra
refúgio na convivência com a mulatinha Virgínia. Assim mesmo algo permanente o
incomoda nesse lugarejo sem vida, onde não é possível tomar café com correligionários e
ter contato com instituições comunitárias, como o conhecido Relief (do Rio de Janeiro), que
semanalmente recebe novos imigrantes, e além do mais “trazem lembranças dos velhos
lares” europeus. Por fim, o único consolo que lhe resta, como ser afastado de tudo e de
todos, é o amor que sente por Virgínia, em cujo regaço afoga sua tristeza e desolação.
Nesse conto K. revela um aspecto da realidade vivida pelo ambulante judeu que chegava a
penetrar, na procura de seu sustento, os rincões mais longínquos, estabelecendo-se naqueles
para nunca mais sair, esquecido de tudo e de todos.
Em “Casa Paris”, o autor do Neie Heimen nos apresenta um jovem ambulante,
talentoso, plenamente identificado com seu meio de ganhar a vida e feliz com a profissão
que escolhera. Elik chega mesmo a elaborar uma idéia original a respeito de sua atividade,
a crença que Deus fez muito bem em criar o comércio ambulante e tê-lo escolhido como
seu enviado para oferecer às pessoas coisas que dele necessitam. Ele gaba-se, perante seus
colegas, da técnica e métodos de que se utiliza para “fazer” clientes e convencê-los a
274
comprar sua mercadoria. Cada cartão de cliente é sagrado e seu pensamento está
inteiramente voltado à ampliação de seu número, graças aos métodos originais que emprega
para atingir esse objetivo. Um deles consiste em bater em uma porta e se apresentar com
um cartão na mão no qual está escrito “Casa Paris”, a qual ele representa, o que é uma
honra para a pessoa por ter sido escolhido pela firma para ser procurado, pois isso denota
que é um bom cliente. Outro método “original” consiste em gritar em voz alta, ao passar
por algum lugar, para ser bem ouvido, o preço, absurdo, de um artigo, para logo ser
convidado a entrar à casa da primeira ouvinte e logo a seguir desfazer o “nó” do engano,
alegando que “a minha senhora” não ouviu corretamente o preço da mercadoria e
possivelmente confundiu o valor da prestação com o valor total.
Vivacidade e esperteza eram parte das qualidades necessárias ao ambulante
para vencer resistências e superar obstáculos a fim de atingir o objetivo final, isto é, realizar
a venda. E aqueles que fracassavam deveriam considerar-se não destinados à sagrada
missão. Mas certo dia ocorreu algo terrível a Elik. Ele simplesmente não fizera nenhum
cliente. Porém, já se encontrando no lugar onde residia, ouvira lá ruídos de um automóvel e
a voz de alguém procurando pela “Casa Paris”. Era uma dama ricamente vestida, um pouco
desorientada por não encontrar o estabelecimento procurado no endereço que tinha nas
mãos. “Dona Josefina”, exclamou o jovem ambulante, já com um tom apropriado para
eliminar qualquer dúvida em sua cliente, pedindo de imediato que ela entrasse no pequeno
cubículo atulhado de camas uma ao lado da outra e onde não faltavam cascas de bananas e
laranjas espalhadas pelo chão. Sem se perder, Elik foi logo dizendo: “aqui é a Casa Paris,
muito diferente das casas luxuosas da Avenida. Basta a senhora encomendar e logo
encontraremos a mercadoria desejada, sendo que, isso é o mais importante, sempre ela será
a mais barata”. Dona Josefina, ainda que um tanto decepcionada, encarou tudo com bom
humor e acabou por encomendar mais algumas peças ao seu fornecedor, que chegou a
acrescentar, quando sua cliente se afastava do local: “Não se esqueça, minha senhora, que a
Casa Paris encontra-se na quinta cama, do lado direito”. E para si mesmo, orgulhosamente,
proferia: “Graças a Deus, a Casa Paris é, de fato, uma firma”. O lado grotesco da situação
não impediu um final feliz, e não podemos deixar de observar que o autor, na sua
experiência pessoal de ambulante, deveria ter vivido o pequeno quadro que escreveu em
seu conto.
O entusiasmo pela profissão e os resultados que poderão advir da labuta do
ambulante encontram expressão em outro conto que tem como título “Isto ele não lhe
disse”. Aqui se trata de um pequeno mascate, que mal completara treze anos, e fora
chamado por seus tios a vir ao Brasil. Nada mais tentador do que esse chamado para um
menino que comia o pão da pobreza em seu lar perdido em algum canto da Europa
Oriental. Tio e tia já esperavam pelo sobrinho no cais do porto, bem vestidos e confiantes
em sua posição social. Não se passaram muitos dias para que eles revelassem ao jovem
recém-chegado que o segredo do sucesso se encontrava no comércio ambulante, ao qual
logo fizeram questão de introduzi-lo. Assim, Itzikl, acordou em um belo dia para
acompanhar o seu tio ao lugar onde deveria passar pelo ritual de iniciação para a
“peddlerai”, e que exigia um certo conhecimento e trato com comerciantes estabelecidos,
com gente, com clientes, etc. O tio tomara a iniciativa de bater às portas de futuros e
passados compradores mostrando as particularidades da nova profissão ao garoto. Já na
primeira casa saiu-lhe ao encontro uma senhora de cor, que o cumprimentou dizendo que
não tinha ainda recebido o pagamento em troca da roupa que lavara e, portanto, não poderia
no momento pagar-lhe sua prestação, uma vez que também o seu marido não ganhava além
275
do necessário para comer, e que voltasse outra vez. O tio se deu ao trabalho de explicar ao
sobrinho que a expressão “outra vez” significava um tempo indefinido e, portanto, poderia
ser o dia seguinte. O importante era deixar a preguiça de lado e voltar novamente a bater na
porta do cliente. Naquele dia bateu em uma segunda porta, com resultado positivo, pois
recebeu uma nota de vinte mil réis de uma cliente, uma jovem mulata que causou espanto e
admiração ao sobrinho. Na terceira vez a surpresa foi ainda maior, pois realizou-se uma
venda em que o tio recebeu no ato cinqüenta mil réis. Itzikl entrou em êxtase. “Veja você”,
disse o tio a Itzikl, ao saírem para a rua, “o Brasil é um país de ouro. Se trabalharmos,
temos. Precisamos apenas ter vontade, e desse modo podemos juntar dinheiro em
quantidade. Os brasileiros são excelentes pessoas, um povo querido, e pode-se negociar
com eles”. Itzikl já sonhava que em pouco tempo poderia trazer seus pais e toda a família
ao Brasil. As aulas do tio não pararam aí, pois ele ensinou as frases-chave em português, e
seu significado. Uma “leitura de expressões que deveriam ser interpretadas corretamente
para que não se perdesse nenhuma oportunidade de fazer negócio. Expressões tais como
“hoje não preciso nada” ou “não me amola”, deveriam ser interpretadas como acenos
positivos, e de nenhum modo com uma negação para um ambulante experimentado. O
sobrinho, atento, anotara as expressões e frases para não esquecê-las, e diariamente o jovem
ambulante voltava com bons resultados ao feliz tio, que mais feliz se sentia com o trabalho
do sobrinho. Mas uma expressão, muito ouvida, por sinal, o tio não lhe ensinara. Era “vai
embora, cachorro”, e ainda que ele não se atrevesse a perguntar seu significado, ela o
molestava ao ouvi-la. Até que um belo dia ele encontrara um jovem um pouco mais velho,
ao qual perguntou se poderia explicar-lhe o significado daquelas palavras. O jovem,
surpreso com o fato, disse-lhe: “a mim nunca disseram tais palavras, e talvez você seja tão
impertinente na maneira de vender que os clientes chegam a se enervar ao ponto de dizerem
“vai embora cachorro”. O jovem sobrinho, naquele mesmo momento, pegou seu caderno de
anotações para escrever a expressão que o tio não lhe ensinara.
O ambulante, no dia-a-dia de sua sobrevivência, nem sempre encontrará a
cordialidade esperada de seus clientes mas, assim nos mostra o autor, também será
machucado e humilhado pelos habitantes das “portas”, nas quais vai encontrar o seu
sustento.
“A solução” é um conto que narra a história de um ambulante com certa
educação, preocupado com questões sociais e identificado com as doutrinas socialistas, que
não o impedem de exercer a profissão de mascate e, portanto, participar da ordem
capitalista. Do mesmo modo, apesar de suas convicções, nada o impediu de se casar com
uma linda moça de casa burguesa, e de tão burguesa chegou a estudar piano, indo morar,
logo após o casamento, em uma casa confortavelmente mobiliada.
É um caso de dupla personalidade, pois Fischer, esse era seu nome, se
apresentava como um pregador radical em defesa do proletariado. Assim era até que num
determinado dia foi acometido por uma estranha sensação e seu cérebro tumultuou-se pelas
muitas dúvidas que o assaltaram. Perdeu a autoconfiança e mesmo o bom relacionamento
que mantinha com sua família. Incomodava-o a sensação de pregar o socialismo e ao
mesmo tempo explorar o próximo através de sua ocupação de ambulante, que o mostrava
muitas vezes insensível em relação ao seu devedor. Passaram-se dias e a má consciência de
ter sido pouco humano com os clientes o atormentava ao ponto de não poder mais suportar
tal situação e ficar sob o inteiro domínio dos sentimentos, que afloravam com tal
intensidade que lhe causavam verdadeiras alucinações. Até encontrar uma saída para essa
terrível situação, que foi a de rasgar os cartões das dívidas de seus clientes.
276
Serke, a mulher que fora tirada de seu lar no Velho Continente por um homem que a levara
para a Argentina para viver em um bordel, até conseguir se desvencilhar dele e fugir para o
Brasil, e aqui exercer sua “profissão” mais livremente, “numa rua onde pessoas iam para
cima e para baixo, e onde centenas de mulheres se mostravam nas janelas, conversando
umas com outras, inquirindo-se mutuamente sobre que seus pais e irmãos escreviam.” Até
que conhecera o seu “velinho”, que lhe dissera naquela ocasião: “Eu sei, Serke, que você é
israelita, mas isso pouco me importa. Não sou nenhum crente”. Mas quando o seu
“velinho” adoeceu, Serke teve que lhe comprar uma Nossa Senhora da Conceição, o que ela
fez de bom grado, pois ele havia feito uma promessa. E do mesmo modo que o velho se
satisfaz em servir ao seu Deus, que o retornou à vida quando se encontrava doente, assim
Serke se compraz em servir seu Deus judeu, que lhe dá saúde e que lhe permite levar uma
vida harmoniosa com o seu “velinho”. E as velas sabáticas, com o ‘ner-tamid’, sob o
quadro da Nossa Senhora da Conceição, mesmo que nada tenham em comum, vivem em
perfeita e cândida paz.
Passemos ao último conto do livro de K., intitulado “Moral”, que também foi
publicado na coletânea “Brazilianisch”, editada na Argentina, 467 o qual traduzí
integralmente ao português para termos um texto literário mais completo de nosso autor,
pioneiro da literatura ídiche no Brasil.
“Encontrei-o em Juiz de Fora, na estação Leopoldina. Isso aconteceu em uma
manhã de inverno tipicamente brasileiro. A cidade se encontrava envolvida em uma pesada
neblina e um frio cortante penetrava até os ossos. Meu acompanhante, um jovem pálido e
semi-intelectualizado, fazia força para me convencer que o fato de me acompanhar até o
trem, em uma manhã tão fria, era devido à sua amizade sincera, uma vez que ficar deitado
até tarde debaixo dos cobertores é algo muito mais agradável.
Mas, de sua cabeça enterrada na gola de seu sobretudo e de suas frases
entrecortadas, compreendi que ele não revelava nenhuma disposição especial para tanto...
Ainda era cedo e nos dirigimos até o restaurante para tomarmos um café. Mal
tive tempo de levantar minha xícara até a boca quando o meu acompanhante deu-me um
puxão ao ponto de derramar meu café.
– O senhor está vendo? – disse-me quase num tom de segredo – Estás vendo
aquele tipo e pensarás que ele é um dos nossos, filhos de Israel? Tal figura certamente
ainda não terás visto aqui no Brasil. Contudo, isso é um judeu!
Fixei bem meu olhar naquela pessoa: ele usava um terno de três cores, surrado
e em alguns lugares rasgado. As calças eram de um amarelo típico de tecido local, o paletó
marrom-acinzentado, e seu colete de uma casimira impossível de saber a sua cor original.
Calçava um par de sapatos amarelos retorcidos e em um deles se via claramente um grande
buraco aberto – talvez uma simpatia contra calos.
– Sim, é um tipo original – disse eu ao meu acompanhante.
O sino tocou às três. Entrei no vagão juntamente com a figura estranha.
Além de minha curiosidade, o destino encarregou-se de nos fazer sentar um em
frente ao outro.
Eu tive tempo de observá-lo:
Seus olhos eram aquosos e úmidos e neles podiam-se ver pequenas manchas,
como se fossem pequenas gotículas de óleo; seu rosto, queimado do sol e vergastado por
467
Coleção de literatura ídiche sob a direção de Samule Rollansky. Ateneo Literario en el IWO, Buenos
Aires, 1973, pp.251-256.
279
profundas rugas, assemelhava-se a uma caricatura. Seu grosso lábio inferior pendia de
modo estranho. De tempo em tempo, seus lábios se retorciam como os de um ébrio.
O trem já andara uma boa distância e agora serpenteava ao redor de um morro.
Meu companheiro de viagem, sem qualquer motivo, soltou repentinamente:
– Um judeu? Certamente! Eu o vi conversando com aquele amarelo, eu o
conheço, seguramente deve ter falado sobre minha pessoa.
– Longe disso! Ele somente disse que viajaria comigo mais um judeu. Mas
assim como o indivíduo se comporta, do mesmo modo o coletivo também o faz – começou
ele a filosofar. Toda a coletividade judaica, e cada indivíduo, se habituaram à idéia de
contradizer! O que um diz o outro deve repelir.
– Não entendo exatamente o que queres dizer, mas se você se refere à moral
entre nós, sim...
Os olhos de meu viajante incendiaram-se de um modo terrível, interrompendo-
me as palavras e quase gritando:
– Moral! O que é para nós, judeus, moral? Quem é entre nós o juiz da
moralidade? Ach! – acompanhando a expressão com um forte gesto de mão.
Entendi que meu companheiro já havia se desiludido com a sociedade e por
isso mesmo se mostrava tão amargo.
Meu acompanhante, que já começara a me intrigar, movimentava os lábios
como se estivesse sedento:
– Moral, moral... poderias me dizer, meu amigo, o que significa isso na
verdade? Não será apenas uma cortina para cobrir a hipocrisia?
Repentinamente aproximou-se, sentou-se ao meu lado, e já em um tom
diferente, quase épico, começou a falar:
– Ouça o que vou lhe contar. É uma pequena experiência pessoal, e o senhor
tirará por si só as devidas conclusões.
“Em 1922, recebi de meu irmão que aqui se encontrava havia doze anos uma
passagem para que viesse ao Brasil. Não pensei duas vezes e logo me pus a caminho.
Quando desembarquei no porto do Rio de Janeiro, meu irmão já me esperava, e fomos
diretamente a Juiz de Fora. Não era a cidade de onde costumeiramente recebia suas cartas.
“Meu irmão apresentou-me um ambicioso projeto de trabalho que mal consegui
entender. Porém, percebi que deveria, o mais rapidamente possível, amadurecer no novo
país.
“E logo que isso ocorreu, meu irmão começou a insistir que ele gostaria de
viajar ao Rio. Transferiu-me a clientela e partiu apressadamente em direção ao Rio.
“Pelo que parece, o destino quis aprontar comigo uma brincadeira e conseguiu
atirar-me em seus braços (...) De um lado, ódio e amargura, e de outro – amor e sofrimento.
“Certa vez, andando com o meu pacote de mercadorias na rua, bati em uma
porta. Saiu uma mulher que aparentava vinte e três, vinte e quatro anos de idade, muito
linda. Assim que me viu ficou trêmula, me agarrou pelo braço e me introduziu em seu
quarto, derramando ao mesmo tempo copiosas lágrimas de seus olhos.
– Onde estivestes todo esse tempo, meu querido? Tantos anos, infinitos, esperei
por ti e sonhei contigo.
“Ela ria e chorava ao mesmo tempo. E em ambos, no riso e no choro, irradiava
a alegria de encontrar uma verdadeira felicidade.
“De início pensei que me encontrava perante uma mulher não normal, mas de
imediato me apercebi de meu erro.
280
“De suas meias-frases, que devido a sua imensa alegria não me pareciam
inteiramente claras, entendi que ela havia me tomado por meu irmão, com quem sou muito
parecido. Mais ainda, os três anos de afastamento deviam tê-la enganado. Também entendi
naquele momento que, ao levar-me a Juiz de Fora, e não ao lugar onde ele trabalhara
anteriormente, e sua pressa em partir para o Rio tinha uma relação com essa mulher.
“Subitamente ela me abraçou, beijando-me e envolvendo-me com carinhos.
Disse-me com um tom ingênuo e maternal:
– Vá, você é mau, nada dizes e nem perguntas... Ah, como ele é lindo... eu o
deixei com minha mãe. Eu lhe disse que traria o seu papaizinho...
“Em suas palavras não notei nenhuma mágoa, apenas amor e satisfação.
“Então, o que poderia eu lhe responder? Destruir sua felicidade? Não tive, em
primeiro lugar, coragem, e depois senti que teria, naquele momento, cometido um grande
crime. Além do mais, ela provocou dentro de mim um verdadeiro tumulto. Era dotada de
uma natureza brasileira. No rir e no chorar despertou em mim o desejo. Senti que em mim
se processava uma mudança, que algo despertava em minha alma. Em cada nervo, em cada
membro, se manifestava uma pequena chama que antes se encontrava sufocada, apagada, e
era preciso apenas tocá-la para que reavivasse. E ela, a chama, se agitava... despertava e
exigia.
“Precisei apenas estender os braços para que ela se entregasse inteiramente a
mim.
“No momento em que os nossos desejos se encontraram, caiu do bolso de sua
roupa uma fotografia. De início pensei que fosse algo diferente, mas logo, ao levantar a
fotografia, ela olhou para mim como se fosse culpada e com temor acrescentou: Ah: como
estás mudado!...
“Olhei a fotografia – era meu irmão. Comecei a compreender o que era, por um
lado, um elevado e sagrado amor em oposição a outro sentimento e leviandade.
“Começamos a viver juntos aberta e francamente, para nós mesmos, assim
como para a sociedade.
“Como poderia eu me conduzir de outro modo? Poderia eu manchar um amor
do qual emanava o divino?
Meu companheiro de viagem silenciou. Mas, com facilidade era possível
perceber que algo se passava em seu interior. Ele levara suas mãos ao rosto e com um
pesado suspiro continuou:
– Da sociedade judaica fiquei logo isolado, ainda que me acompanhem em
cada passo. Tanto faz, sempre lhes atirei ao rosto o que pensava e acabei me afastando de
todos. Não importa, porém o que me causou maior dor foi a carta que meu irmão me
escreveu ultimamente. Eu o envergonho. Ele não pode suportar a vergonha que lhe causo e
ao seu bom nome.
“Elaborei, de início, planos para desmascarar a hipocrisia de centenas de judeus
que tiveram ligações secretas com mulheres brasileiras. Mas nada disso fiz... e é de se
duvidar que a minha atitude teria qualquer resultado. Pois os hipócritas sabem dissimular
sua hipocrisia sob o manto da moral. Assim resolvi calar, e de fato silenciei...
“O que aquele amarelo lhe disse na estação? Ele lhe advertiu contra a minha
moral? – disse ele com um riso ruidoso.
“Diga-me, peço-lhe, o que é exatamente essa moral? Sabes, de algum modo,
onde a moral começa e onde ela termina”.
281
33. Uma carta do Rabino Avraham Itzhaq Ha-Cohen Kook no epistolário do Rabino
Jacob Braverman de São Paulo (1880-1939)
exercer o rabinato, adquirindo um bom nome como guia espiritual de sua gente, graças ao
talento que desde logo demonstrou no exercício de sua função rabínica.
Ao chegar a São Paulo foi convidado a assumir o rabinato junto à comunidade
dos judeus oriundos da Hungria e também passou a atuar junto à Grande Sinagoga na Rua
Newton Prado, no Bairro do Bom Retiro, em São Paulo, onde, naquele tempo, se
concentrava a maioria da comunidade judia.
Descendente de uma família tradicional de schochtim (magarefes),471 o Rabino
Jacob Braverman aprofundou-se no estudo da halachá (jurisprudência rabínica), adquirindo
uma erudição excepcional no Talmude e na literatura rabínica, granjeando fama
internacional como sábio e estudioso da Lei. Basta folhear o seu “Sefer Chelek Yaakov”
para comprovar, através das repostas às questões que lhe foram apresentadas sobre assuntos
dos mais diversos, o seu domínio da halachá.
Infelizmente, o Rabino Braverman veio a falecer em 1939, com menos de
sessenta anos, após ter participado da fundação da Escola Talmud Torá e enriquecido
espiritualmente a vida da comunidade judia de São Paulo com seus conselhos, orientação e
sabedoria.
Ao examinarmos a correspondência acima mencionada, encontramos uma
carta, em hebraico, assinada por Itzhaq Matisis, cunhado do Rabino Braverman, datando de
6 de janeiro de 1933 e procedente de Tel-Aviv, missiva que chamou nossa atenção por seu
conteúdo, o qual passamos a transcrever em português:
471
O pai era conhecido pelo nome de Zisze Shoichet, em referência à sua profissão, exercida tradicionalmente
naquela família.
283
Nesta carta, I. Matisis escreve a sua irmã em ídiche sobre o mesmo assunto e
nos mesmos termos, mais resumidamente. Pela carta deduzimos que Matisis era um
soldado desmobilizado, e por outras fontes soubemos que havia sido um dos voluntários
judeus que partiram dos Estados Unidos para se alistar na famosa Legião Judaica que
combateu ao lado dos Aliados, durante a Primeira Guerra Mundial. Não é aqui o lugar para
esboçarmos um histórico da Legião Judaica e seu papel ao lado dos exércitos britânicos,
desde a sua formação em 1914.472 Porém, é importante assinalar que essa Legião era
constituída de três batalhões formados de voluntários da Inglaterra (38.º Batalhão), dos
Estados Unidos e do Canadá (39.º Batalhão) e da Palestina (40.º Batalhão), além de
voluntários de vários outros países que se engajaram em um ou outro desses batalhões. Eles
tiveram um papel significativo na libertação da Palestina do domínio turco, fazendo parte
do exército britânico que se encontrava na região, lutando bravamente até a conquista final
do território otomano. Com o início do Mandato Britânico na Palestina, os batalhões da
472
Sobre a Legião Judaica muitas obras foram escritas, entre as quais devemos lembrar a de Jabotinsky. V.,
The History of Jewish Legion; a do comandante Patterson, J.H., With the Zionists in Gallipoli; a de Gilmor,
E., War and Hope – a History of the Jewish Legion, e outras.
284
Legião Judaica permaneceram em nome das forças britânicas situadas naquela região, até
que os interesses políticos ingleses levaram a sua gradativa desmobilização, o que foi feito
em 1921, quando, por ocasião dos distúrbios árabes que eclodiram em Jaffa, o coronel
Margolin, comandante da Legião, interveio, sem para tanto obter permissão oficial, a fim
de impedir a matança de judeus que ali se viam ameaçados. Os ingleses aproveitaram-se do
fato e dissolveram a Legião Judaica, obedecendo a uma orientação já estabelecida
anteriormente pelo governo militar de Sua Majestade na Palestina. Com a desmobilização
dos soldados, o governo mandatário prometeu ajudar e facilitar o estabelecimento dos
mesmos em terras pertencentes a eles, mas nunca chegou a cumprir a promessa. Foi
somente quando os Congressos Sionistas estabeleceram uma linha de ação no sentido de
que a colonização dos desmobilizados foi possível, sobretudo quando o Fundo Nacional
Judaico (Keren Kayemet L’Israel) empenhou-se na compra de terras para realizar tal
objetivo.
Assim, em 1928 e 1929 o Keren Kayemet L’Israel comprou cerca de 8.000
acres de terra em Wadi Hawarit, situado na planície do Sharon, entre Hedera, ao norte, e
Natânia, ao sul, no Emek Hefer. Em 1932, foi fundada naquela região a colônia de
Avichail, por soldados desmobilizados da Legião Judaica, que receberam parcelas de terra
para cultivar.
Destarte, podemos compreender melhor o teor da carta de I. Matisis, que se
encontrava entre aqueles que haviam recebido uma pequena área de 14 dunames naquela
região do Wadi Hawarit. Contudo, ele se defrontava com dificuldades materiais para
adquirir os implementos agrícolas, bem como para dar início à construção das primeiras
instalações a fim de poder se instalar como agricultor naquele local. O pedido de ajuda ao
seu cunhado, o Rabino Jacob Braverman, decorria do fato de que Matisis se via na
iminência de perder sua pequena propriedade caso não a cultivasse e se dedicasse ao labor
agrícola, pois era essa a condição para a distribuição das terras, ou seja, para a colonização
da região. Conforme se depreende claramente da carta, Matisis dirigira-se anteriormente ao
cunhado expondo sua situação pessoal, porém, nesse ínterim, enquanto aguardava a
resposta ao seu pedido de ajuda, surgiu-lhe uma oportunidade para reforçar sua solicitação,
através da já mencionada carta do Rabino Kook, que ele tampouco esperava e que tanto o
surpreendeu e alegrou, pois não supunha haver qualquer conhecimento mútuo entre o
rabino da Palestina e o de São Paulo.
Ao lermos a carta de Matisis, chamou nossa atenção o uso de termos elogiosos
que o Rabino Kook emprega quando se refere ao Rabino Braverman, tais como “gadol ba-
Torá”, isto é, sábio no conhecimento da Torá, e isto, afirma Kook, ele depreendera da
Responsa (sheeilot u’Teshuvot) que ele manteve com o guia espiritual da comunidade de
São Paulo na década de 30.
Sabemos também que Matisis nasceu na cidade de Bar, na Podólia ucraniana,
em 1898. Em fins de 1913, emigrou aos Estados Unidos, país em que trabalhou em fábricas
e fazendas agrícolas. No final de 1917, apresentou-se como voluntário na Legião Judaica, e
ao se desmobilizar do Batalhão americano da Legião, dirigiu-se, já em 1920, a Gan
Schmuel para viver como chalutz (pioneiro) naquela colônia agrícola. Porém, não
permaneceu naquele lugar visto que os acontecimentos do país levaram-no a participar
como guarda em várias colônias e como trabalhador da estrada Tiberíades-Tzemach.
Contudo, devido a problemas de saúde, passou a trabalhar como funcionário do Serviço de
Assistência Médica (Kupat Cholim) da Histadrut, a Confederação de Sindicatos Obreiros.
Entretanto, não conseguiu permanecer por muito tempo nessa ocupação, apesar de ser
285
estimado por todos que entraram em contato com ele e o conheceram, pois seu sonho maior
era trabalhar a terra, viver no campo e tirar o seu sustento da agricultura. Daí a razão
porque ele se dirigiu a Avichail, colônia fundada pelos ex-soldados da Legião Judaica, onde
passou a viver com sua esposa, não obstante o seu delicado estado de saúde, que, com o
tempo, levou-o a se confinar em casa, ficando todo o encargo de levar avante a faina
agrícola sob a responsabilidade de sua esposa, Chaia. Para superar sua condição e sua
doença, Matisis começou a escrever crônicas, memórias, artigos e peças teatrais, publicados
pelos seus companheiros de Avichail.473
Além da mencionada carta, o Rabino Kook escreveu outras ao Rabino
Braverman, uma das quais encontra-se estampada no “Sefer Chelek Yaakov”.4747 Porém,
antes de finalizar, passaremos ao conteúdo da carta escrita pelo Rabino Kook ao Rabino
Braverman, escrita em um papel timbrado com dizeres em hebraico e “inglês”, na qual
consta o nome do Rabino-Mor de Eretz Israel, na cidade de Jerusalém, e cujo teor
traduzimos ao português:
Após desejar sua boa paz, eis que me vejo na obrigação sagrada de despertar
o coração de sua pessoa para requerer a sua bondade e ajudar, com sua influência, o
senhor Batri em favor de seu caro cunhado, o senhor Itzhaq Matisis, que atualmente reside
em Tel-Aviv. E ele está pronto a se estabelecer na organização (colônia) dos soldados
desmobilizados em Wadi Hawarit, aqui na Terra Santa. Conforme me foi informado por
pessoa digna de crédito, seu caro cunhado merece ser ajudado por Sua Eminência, e, com
sua influência junto a seus familiares que se encontram em sua comunidade. E isso também
é importante para a colonização de Eretz Israel e uma contribuição para o judaísmo por
parte da comunidade acima mencionada, que se renovará no futuro próximo com a ajuda
de Deus. E com isto, termino com bênçãos da Terra Santa, conforme os vossos e nossos
desejos.
desejando-lhe paz
Abraham Itzhaq Ha-Cohen Kook”
473
Escreveu alguns livros, entre os quais “Dramot” (Dramas) Avichail, 1950, e “Kasher” (Pureza ritual), Tel-
Aviv, s/ d.
474
Na p. 136, no Sefer Chelek Yaakov também encontramos um hesped (discurso fúnebre) por ocasião da
perda daquela luz que iluminou Israel durante muitos anos.
286
Quando nos detemos e meditamos sobre as palavras e o conteúdo da carta escrita pelo
Rabino Kook, notamos que ela é mais um claro testemunho documental da concepção
conhecida do famoso rabino quanto ao renascimento nacional judaico e à colonização na
Palestina; o texto é perfeitamente coerente com seu pensamento exposto ao longo de suas
obras. Sem pretendermos, nos limites deste artigo, estudar sua doutrina, basta que
examinemos sua atuação e um pouco de sua biografia para entendermos que a questão
abordada na carta tangia uma das cordas mais sensíveis de sua profissão de fé pessoal.
Nascido em 1865, na Letônia, de uma família de rabinos hassidim (da corrente
Pietista do século XVIII), e após ter recebido uma educação judaica tradicional, Kook
complementou seus estudos com literatura bíblica e hebraica, filosofia judaica e mística
(Cabala). Após exercer o rabinato em alguns lugares na região onde viveu, em 1904,
emigrou para a Palestina, onde passou a ser rabino em Jaffa. Sionista convicto, em que pese
a posição anti-religiosa sustentada por uma parcela desse movimento, esforçou-se em atrair
círculos de judeus religiosos e apoiar a causa do movimento nacionalista judeu. A partir de
1914, encontrava-se na Europa impossibilitado de voltar a Eretz Israel por causa da eclosão
da Primeira Guerra Mundial, estabelecendo-se em Londres, onde atuou em prol do
sionismo naquele país. Ao voltar à Palestina, com o término da guerra, foi designado
Rabino-Mor de Jerusalém, e, em 1921, e foi eleito o primeiro asquenazita a usar esse título
no país.
Para entendermos suas concepções, é necessário lembrar que ele foi aluno de
uma ieshivá (academia talmúdica) famosa pelas personalidades religiosas que atuaram
dentro dela e pelos discípulos que saíram da mesma, entre eles, os escritores M.J.
Berdyczewski e H. N. Bialik. Na ieshivá de Volozhin, na Lituânia, teve como mentores
espirituais sábios rabinos do porte do Rabino Naftali Zvi Yehuda Berlin (Ha-Natziv) e
Rabino Haiim Halevi Soloveitchik. É provável que tenha sido influenciado também pelo
rabino de Bausk, Mordechai Elisberg, conhecido pelo papel que desempenhou no
movimento Chovevei Tzion (Amantes de Sião) e que despertou o interesse pelo
renascimento nacional judaico.475 Já nesse tempo, o Rav Kook passou a escrever e publicar
sobre o nacionalismo judaico e sobre o papel de Eretz Israel como lugar onde o povo judeu
poderá desenvolver suas qualidades para cumprir sua missão espiritual. Durante o período
em que viveu em Jaffa, produziu boa parte de sua extensa obra espiritual, na qual expôs o
seu pensamento religioso-espiritual sobre o renascimento judaico. Além de sua obra
espiritual, desenvolveu uma atividade protetora e de aproximação da população de
agricultores e obreiros das colônias judias existentes então no território palestinense.
Ademais, nesse período ele assume posições haláchicas cujo teor interpretativo chocar-se-á
com o judaísmo ortodoxo, em vista das inovações decorrentes de sua filosofia religioso-
nacional e da realidade da colonização judaica. No tratado “Etz Hadar”, escrito em 1907,
ele procura promover a venda de “etroguim” (citro que se usa na festa de Sucot) às
comunidades da Diáspora; e em 1909 permite aos chalutzim, sob certas circunstâncias,
trabalhar a terra durante o ano sabático, defendendo seu ponto de vista contra os ataques
das autoridades rabínicas ortodoxas, num tratado sob o título de Shabat Ha-Aretz, onde
procura demonstrar que seus argumentos vêm de encontro aos interesses da reconstrução da
475
O movimento “Chovevei Tzion” foi, na verdade, uma das manifestações mais importantes do sionismo
pré-Herzeliano.
287
476
Na época, o Agudat Israel não era sionista.
477
O caso mais patente foi sua atitude de inocentar os acusados pelo assassinato do líder trabalhista H.
Arlozorov, colocando-se em franca oposição a uma parte da comunidade judaica na Palestina.
478
V. a respeito da política mandatária na Palestina: Yosef, B., HaShilton HaBriti BeEretz Israel, (O Mandado
Britânico na Palestina) Mossad Bialik, 1948.
288
nesse sentido, esses “heréticos” estão destinados a cumprir uma missão sagrada, pois,
devido à situação na qual se encontra a humanidade, a heresia é imanente à fé. 479
Portanto, compreendemos que o Kook, convicto e fiel à idéia de renovação do
judaísmo e à restauração de seu povo na Terra Santa, não poderia ficar insensível ao pedido
isolado de ajuda de um soldado desmobilizado, que queria ser colono na região de Wadi
Hawarit.
479
No magnífico artigo de Rivka Schatz-Oppenheimer, Utopia U’Meshichiut beTorat HaRav Kook, (Utopia e
messiânismo no pensamento do Rabino Kook) in Kivunim, n.º 1, nov., 1978, pp. 15-27, esse aspecto da
doutrina do Rav é estudado pela autora num contexto mais amplo de suas idéias.
289
34. A Imprensa Ídiche como fonte para o estudo da história dos judeus no Brasil
480
Editada em Safed, 1968, constitui a primeira obra do gênero sobre a imprensa judaica no Brasil. Mas o
pioneiro da história da imprensa judaica no Brasil foi o poeta, jornalista e historiador Jacob Nachbin, em uma
série de artigos sobre o Brasil publicados no Di Tzukunft (O Futuro) em julho de 1930.
481
Sobre Josef Halevi, além do que encontramos na obra citada de Isaac Raizman, existem os relatos de Katz,
Pinie, Idische literatur in Argentine (Literatura judaica na Argentina), Buenos Aires, 1947, pp. 33-37 e do
mesmo autor Idische jurnalistik in Argentine (Jornalismo judaico na Argentina), Buenos Aires, 1946, p.188;
208. Raizman cita ainda a Baruch Schulman, que escreve em suas memórias sobre o encontro que teve com
Josef Halevi, em artigo publicado no Der Naie Moment (O Novo Momento), São Paulo, 17 de novembro de
1950. Outra fonte sobre Josef Halevi também mencionada por Raizman é Michael HaCohen Sinai, pioneiro
do jornalismo argentino, mas infelizmente não cita em que obra desse autor se encontra a referência.
Curiosamente encontramos dois anúncios no periódico “A Columna”, números de agosto e setembro de 1916
sobre um tal de Josef Halevi, professor de hebraico, além de uma nota da redação dizendo que o próximo
número publicaria um artigo que o mesmo enviara. Tudo indica que se trata do mesmo personagem, o nosso
fundador dos dois primeiros periódicos em ídiche no Brasil. O primeiro historiador a fazer alguma menção
sobre Josef Halevi foi Jacob Nachbin em artigo publicado no jornal Idische Volktzeitung (Gazeta Israelita),
em 21 de maio de 1929,e já o denominava fundador da imprensa judaica no Brasil, exatamente como foi
designado no Primeiro Congresso Sionista no Brasil, em 1922, quando se lhe fez uma homenagem.
290
482
Aron Kaufman não era jornalista de profissão, mas relojoeiro, o que não o impediu de desenvolver com
talento a função de diretor, e mais tarde a de redator, de um periódico que marcou época na história da
comunidade israelita do Brasil.
483
Um relato detalhado, e até agora inédito, sobre o jornal se encontra na autobiografia de Aron Kaufman
“Zichroines un Derzeilungen” (Memórias e Narrativas).
291
484
. O primeiro jornal israelita em português foi fundado pelo professor David José Perez e Álvaro de Castilho
com o nome de “A Columna”, e durou dois anos (1916-1917).
485
Biblioteca Nacional junto à Universidade Hebraica de Jerusalém.
486
Arquivo do YIWO (Idischer Wissenschaftlacher Institut)- Instituto Científico Judaico, em Nova York.
487
Arquivo do YIWO, em Buenos Aires. O arquivo existiu até o atentado perpetrado contra a AMIA, quando
foi soterrado seu acervo ao ruir o prédio onde se encontrava. Devemos observar ao leitor que deverá não
esquecer que o artigo foi escrito há muitos anos atrás.
293
e regem sua redação, que grupo ou grupos sociais ele representa, e mesmo qual é seu
sustento econômico-financeiro.
As chamadas seções, que nos periódicos mais representativos são permanentes,
servem de roteiro técnico para fins de pesquisa, pois lá encontramos “sistematizados” os
temas ou as questões que visamos elucidar ou estudar em nosso trabalho científico. Em
certos periódicos cada entidade ou instituição comunitária tinha o seu canto fixo para
publicar relatórios, informes sobre suas programações, etc.
Os jornais eram sensíveis às questões que preocupavam a comunidade e a
opinião pública, apresentando em suas páginas os debates e as polêmicas que eclodiam em
cada lugar e em cada época.
Certos jornais davam espaço à informação não apenas local, mas de todas as
comunidades judias do Brasil, de norte a sul, e assim podemos acompanhar a história
particular das mesmas e o desenvolvimento de suas instituições, em informes que
indicavam seus começos até o presente.
Um aspecto pouco focalizado, mas não menos importante para o historiador, é
o anúncio comercial de um periódico, que nos fornece os elementos para uma história
econômica da comunidade retratando as etapas e profissões desse desenvolvimento. Mesmo
para as biografias de certas personalidades podemos encontrar dados interessantes, pois
suas páginas anunciam desde formaturas de profissionais até o estabelecimento de um
escritório ou consultório em seu nome, bem como sua participação em diretorias de
associações ou em eventos comunitários. E quando se trata de uma personalidade
conhecida, até os membros de sua família, seus aniversários, casamentos ou falecimentos
são noticiados.
Para finalizar, devemos, mais uma vez, lembrar que os periódicos em ídiche
refletiram com fidelidade a vida comunitária dos israelitas no Brasil, e através de seu
estudo adquirimos uma massa preciosa de informações para todo tipo de pesquisa.
294
As “Memórias de Jacob Schneider”, além de dados colhidos junto aos filhos, permitiram
traçar o esboço da biografia do grande ativista nascido na Bessarábia e que imigrou ao
Brasil em 1903, aos 16 anos. Seu relato dos primeiros tempos no novo país, bem como da
então incipiente comunidade judaica, que começava a se organizar, constitui material de
interesse geral.
Jacob Schneider, chamado certa vez de “pai da comunidade”, e cuja biografia ainda está
por ser escrita, teve papel importante na formação da atual comunidade judio-brasileira. As
fontes para o estudo e o conhecimento de sua imensa atuação na formação do movimento
sionista no Brasil, bem como na criação das primeiras instituições comunitárias,
encontram-se dispersas pelos quatro cantos do imenso território nacional, se bem que, nos
últimos anos, tentamos reunir em nosso arquivo pessoal os testemunhos documentais que
permitissem traçar um perfil histórico de sua participação nos eventos mais significativos
da imigração judaica, a partir do início de século XX. No entanto, devemos assinalar que
alguns textos ajudaram decisivamente em nosso trabalho, a começar pelas próprias
“Memórias” de Jacob Schneider, já lembrado em outros artigos sobre a história dos judeus
no Brasil488(1). Além das “Memórias” merece ser lembrada a tentativa feita por Henrique
Iussim (Zvi Yatom) de organizar no seu “Léxico” 489(2) uma biografia do dedicado ativista,
que nunca chegou a ser publicada, mas cujo texto tivemos a possibilidade de adquirir,
juntamente com o arquivo pessoal de Jacob Schneider, que nos foi cedido por seus filhos,
Tziona Fucks e Eliezer Schneider. Graças ao material contido nesse arquivo é que pudemos
alinhavar certos fatos e juntar os elos que permitem esboçar sua biografia.
Jacob Schneider nasceu em abril de 1887, na aldeia de Barlidan, Bessarábia.
Seus pais, Moshe e Tzipora, eram muito pobres, mas abençoados com cinco filhos, dois
meninos e três meninas. Em suas “Memórias”, ele relata que o lar era verdadeiramente
judaico, seguindo os costumes e as tradições típicas do judaísmo da Europa Oriental.
Freqüentou o heder (escola de iniciação ao estudo da Bíblia hebraica) e, após o bar-
mitzva, passou a trabalhar, procurando ajudar no sustento da família. Impressionado pelas
dificuldades de subsistência ao seu redor, diria ele que “não somente meus pais eram
pobres, mas ao nosso redor toda a aldeia vivia na pobreza (...). Isto me levou a pensar
seriamente, ainda na minha juventude, em emigrar para a América”.
Sua atividade comercial começou ainda no lugar onde nascera, e assim ele o
narra: “Quando ainda estudava no heder, comecei a economizar dinheiro, e, de, copeque
em copeque que caía em minhas mãos, consegui juntar, ao terminar o heder, quinze rublos,
sendo esse o meu primeiro capital, com o qual comecei a fazer negócios, correndo tudo
bem. Sendo ainda jovem, plantava tâmaras, girassóis e melancias. Fazia plantações por
conta própria, bem como trabalhava para outros. Assim foi que, aos quinze anos, eu já era o
“rico da aldeia”, possuindo cerca de 200 rublos”.
Conforme seu relato pessoal, os pogroms do ano de 1903 influíram em muito o
seu ânimo. Naquele mesmo ano chegaram à cidade de Sokoron três judeus que haviam
residido no Brasil cerca de quatro anos, trazendo consigo consideráveis economias, o que o
488
489
295
levou a decidir-se pela imigração àquele país. Pitoresca e ao mesmo tempo elucidativa é a
narrativa, inédita até agora, de Jacob Schneider sobre sua vinda ao Brasil, a qual
reproduzimos na íntegra, por se tratar de um dos poucos depoimentos que temos de um
imigrante sobre a comunidade judaica nos primeiros anos de nosso século:
“Ao ouvir o que narravam, resolvi vir para o Brasil tentar a sorte. Sabia que no
Brasil, numa pequena cidade de nome Franca, morava um parente, Isaac Tabacow 490(3), e
isso reforçou mais ainda a resolução de emigrar ao Brasil. Mas não foi fácil conseguir
realizar tal intento. Mamãe não concordou que seu querido caçula Yankale abandonasse o
lar tão cedo. Ela gostava muito de mim e não consentiu em me deixar viajar, ainda que
argumentasse que iria somente por quatro anos, com o objetivo de livrar a família da
pobreza. Apesar de seus rogos e constante choro, continuei obstinado e dei minha palavra
de que não me casaria no Brasil; porém, não consegui convencê-la. Cheguei a ficar doente,
mas, por fim, decidi viajar sem que minha mãe se despedisse de mim.
Um dos três judeus que tinham vindo do Brasil me esclareceu como chegar ao
meu destino e também à cidade de Franca. Meu irmão acompanhou-me até a fronteira, onde
iniciei a viagem, até chegar a Viena. Isso ocorreu em 1903, quando eu tinha 16 anos. Era
religioso, e como tal me comportei durante minha longa viagem, o que me causou grandes
dificuldades devido à comida, que não era casher. Ao mesmo tempo, eu era um rapaz de
aldeia maravilhado com os progressos do mundo ocidental. O gramofone pareceu-me o
maior dos milagres do mundo, além das outras coisas que observara e que, para mim, se
apresentavam como um milagre dos milagres. Em Viena, encontrei um grupo de imigrantes
que se dirigiam para a América, e com eles fui até Hamburgo, onde fiquei hospedado na
Casa dos Imigrantes, até o embarque do navio com destino a Santos, o que não foi nada
fácil. Em Hamburgo, venderam-me uma passagem para o navio Mendoza, que ia
diretamente à Argentina, sem fazer escala em Santos”.
490
296
“O mal-estar marinho agiu tão fortemente sobre mim que cheguei a pensar que
nunca veria o Brasil, imaginando que morreria e jogariam meu corpo ao mar. Assim fiquei
deitado, dia após dia, até que o navio atracou na cidade do Porto, em Portugal. Quando o
navio parou, já estava curado, e assim compreendi que minha doença era devido à viagem
do mar, o que me deixou mais aliviado. Tanto nessa cidade quanto em Lisboa embarcaram
muitos emigrantes portugueses, tornando-se a viagem mais animada, apesar de ainda sentir
saudades de casa. O italiano que embarcou comigo em Hamburgo e eu tornamo-nos
amigos, e ele até me deu a devida orientação quanto à maneira de viajar de Santos a Franca.
De Santos fui de trem e cheguei ao meu destino: Franca.
Em Campinas, encontrei a primeira comunidade judaica com a qual tive contato
no Brasil, pois meu amigo havia me falado sobre um estabelecimento comercial naquela
cidade, pertencente a um ‘russo’, de nome José Koifman. Entendi que o tal ‘russo’ bem
poderia ser judeu, e o procurei, conforme a orientação dada. A loja estava fechada, mas sua
moradia ficava junto ao estabelecimento e na janela se encontrava um casal. Com minhas
poucas palavras em português, perguntei: ‘Sr. e sra. Koifman?’. Recebendo a resposta em
ídiche, revivi. Sim, eram judeus, os primeiros que encontrei no Brasil. Indagaram de onde
vinha e para onde ia, e quando respondi que ia a Franca, à casa de Isaac Tabacow, ficaram
muito animados. Ficou evidente, durante a conversação, que tinham parentes em Sokoron, e
eram muito amigos de nossa família, e quando iam a Barlidan hospedavam-se em nossa
casa, sendo eles mesmos também amigos de nossa família. Pela manhã, Sholem Zisse, esse
era seu nome em ídiche, levou-me à estação ferroviária, explicando-me que Franca era o
ponto final da estrada de ferro, e assim prossegui, então convicto de que não era o único
judeu no Brasil.
No trem, pensei muito no que estava me aguardando e como a família Tabacow
me receberia. Eu não os conhecia e tampouco eles a mim. Na carta que lhes enviei de
Barlidan não pedi nenhuma resposta, pois temia que me mandassem ficar em casa. Mas, ao
mesmo tempo, supunha que Isaac e sua esposa Golda deviam ser pessoas boas e generosas,
pois costumavam enviar somas razoáveis de dinheiro para seus pais, irmãos e irmãs, ainda
vivendo na Rússia. De Hamburgo, havia escrito mais uma vez aos Tabacow, mas, com a
confusão da troca de navios, não tinha certeza se minha carta chegara a tempo, e tanto era
verdade que ninguém me aguardava na estação. Cheguei à noite e comecei a descer pela rua
principal da cidade, indagando às pessoas que passavam, com meu português vacilante,
‘aonde mora Isaac Tabacow?’ A resposta não a entendia, mas pelo gesto das mãos, podia
seguir adiante, até que, por fim, avistei a loja com o letreiro ‘Isaac Tabacow’. Ela ainda se
encontrava aberta e, ao chegar mais perto, ouvi que conversavam em ídiche. Logo entrei,
cumprimentando com guit uvent, ou seja ‘boa noite’. Na loja, pelo que me pareceu, estavam
sentados a esposa de Isaac, Golda, e seus dois irmãos, Leib, o mais velho, e Francisco, o
mais novo. Todos me receberam amigavelmente, o que muito me animou. Isaac não se
encontrava, pois tinha ido a São Paulo, a negócios.
Após essa calorosa recepção, me senti feliz. Ficamos até tarde da noite
transmitindo e recebendo lembranças da família, dos pais de Golda, dos irmãos e irmãs de
Isaac, ao mesmo tempo que conversávamos sobre outros assuntos da velha pátria e do novo
país. Indo dormir, no mesmo quarto do jovem Chico, tive uma surpresa: ele já se
encontrava há vários anos no país, mas os negócios não iam bem. Havia tentado a sorte na
América do Norte, mas voltara, e se encontrava trabalhando como empregado na loja de
Isaac. Contou-me que havia sabido através de um vizinho, também comerciante, que Isaac
aguardava a vinda de um jovem parente, e, dependendo de sua habilidade, lhe abriria uma
297
loja em sociedade com o Chico. Ouvindo tal coisa, adormeci feliz. Assim foi a primeira
noite em Franca. Acordei no dia seguinte, numa manhã ensolarada, sentindo-me
esperançoso e feliz. Entrei na loja e comecei a trabalhar, queria ser útil e aprender o
máximo. Por isso mesmo, alguns dias depois, quando Isaac voltou de São Paulo, sua esposa
contara que eu era um rapaz esforçado, inteligente e dedicado. Ele também testou minha
capacidade em aritmética e fui aprovado. Assim, em curto espaço de tempo, já trabalhava
em sociedade com Chico Tabacow, em nossa própria loja para a qual Isaac Tabacow
fornecia as mercadorias. A loja, que no começo enfrentava dificuldades, passou a melhorar
mais tarde. Depois de seis meses de vida no Brasil, enviei meus primeiros 50 rublos a meus
pais, o que constituiu para mim uma imensa alegria.”
NEGÓCIOS PROSPERAM
Em 1909, vivia no Rio um judeu da Galitzia, Pressel era seu nome, com seus
três genros, e um judeu polonês chamado Hano Lent. Outros judeus asquenazitas não havia
e, para formar um minian para rezar, precisávamos completar com judeus marroquinos.
Alguns meses depois, vieram quatro jovens do Estado de São Paulo, Schloime e Moische
Bordman, Scholem Hoineff e Jerônimo Koifman. Assim foi que a comunidade asquenazita
aumentou. Naquele tempo, já havia no Rio um minian de judeus marroquinos, na rua São
Pedro, onde rezavam todos os sábados. E, durante alguns anos, existiu um minian de judeus
franceses, sendo que o pai de Herbert Moses era seu presidente. Mas, em 1909, dessa
comunidade restou somente o Sefer Torá, que ficou em poder do filho caçula de Moses.
Também viviam naquele tempo no Rio de Janeiro outros judeus 491(4).
Os negócios continuavam indo bem, mas a promessa de voltar à terra natal ia sendo
adiada. Abri outra loja na rua Senador Euzébio, 117, planejando ficar no Rio até 1910.
Minha mãe insistia nas cartas para que voltasse logo, pois sentia a velhice chegar e ainda
queria tornar a ver-me. Respondi que até o final daquele ano eu regressaria e lhe
proporcionaria alegrias pelos grandes sofrimentos que meu afastamento lhe provocara.
Mas, para minha imensa tristeza e profunda dor, ela não chegou a ler essa carta, pois meu
irmão, pouco tempo após, acabou me informado sobre sua morte. Um resfriado forte a
levaria rapidamente, no espaço de três dias. No Rio, podia rezar o Kadish somente aos
sábados, juntamente com os judeus marroquinos, e desse modo resolvi liquidar meus
negócios, ainda que corressem muito bem, e voltar para casa, o que levou um mês. Em 15
de agosto de 1910 deixei o Brasil.
491
299
que havia se dissolvido, fato já lembrado anteriormente no relato de Jacob Schneider. Hano
Lent era seu presidente, e seu nome, bem como o de membros de sua família, aparece
várias vezes mencionado no periódico “A Columna”. Tudo indica que foi um dos primeiros
judeus a chegar ao Rio de Janeiro, no início do século XX ou talvez ainda no final do
século anterior.
AJUDA RECÍPROCA
brigassem, e era necessário cuidar com zelo para que o trabalho seguisse seu ritmo normal e
em harmonia. Mais tarde, passamos a comemorar as festividades judaicas, a organizar
bailes, noites literárias e outros eventos, tudo isso numa excelente atmosfera judaica”.
Jacob Schneider passou a exercer verdadeira liderança na pequena
comunidade judaica, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, e além de sua participação
na formação da sociedade Achiezer, ele daria o primeiro passo na fundação da Tiferet
Sion, que constituiu a primeira entidade sionista no Brasil. Foi em sua loja, Casa Sion,
que, em março de 1913, reuniram-se cerca de 15 jovens, sob iniciativa de pessoas cujos
nomes são lembrados nas “Memórias”, em uma narrativa curta sobre o acontecimento,
que já lembramos em outro artigo sobre a história do sionismo no Brasil e que passamos
a transcrever:
“(...) Apareceram em minha loja três jovens indagando se eu era judeu e
também sionista, pois viram a placa de fora da loja com o nome da firma, ‘Casa Sion’.
Um dos três jovens era Rabinovich, jovem sionista de Viena, o outro Margalith,
recentemente chegado ao Brasil e mais tarde residente em Belo Horizonte, e o terceiro
era o representante comercial de Rabinovich no Rio. Diante de minha afirmativa – e
como prova estava ali o nome de minha loja – , Rabinovich propôs reunir os jovens, que
por ventura julgássemos ser sionistas e simpatizantes, a fim de fundar uma organização
no Rio. Naquela mesma noite, convidei à minha casa 15 jovens, e após a explanação de
Rabinovich, resolvemos fundar a primeira organização sionista no Brasil, a qual
denominamos ‘Tiferet Sion’. Propuseram-me que eu fosse seu primeiro presidente;
porém, não aceitei, devido ao meu trabalho intensivo na Achiezer. Desse modo, o
presidente designado foi Sinai Feingold; Nachum Roitberg, secretário; Jacob Schneider,
tesoureiro; Benzion Snitkovski, Boris Tendler, Samuel Galper, Boris Tcharni, e outros,
vogais. De imediato, entramos em contato com a Organização Sionista Mundial, em
Londres, e começamos a coletar fundos para o Fundo Nacional Judaico”.
A Tiferet Sion desempenharia um papel importante no desenvolvimento do
sionismo no Brasil, e por ela passaram boa parte dos primeiros ativistas do movimento,
conforme já demonstramos em outro lugar.493
493
O primeiro presidente foi Sinai Feingold, seguindo-se a ele Max Fineberg, que, por sua vez, foi sucedido
por Júlio Stolzenberg. Este último ao mudar-se para Curitiba , ainda em 1916, foi novamente sucedido por
Sinai Feingold.
302
494
A sinagoga Beit Yaacov foi fundada em 1916 e seus estatutos foram regularizados a 15 de junho de 1916.
As finalidades da associação visavam: a) fundar e manter uma sinagoga; b) prestar auxílio moral e religioso a
todos os associados. A primeira diretoria e sócios fundadores foram: Salomão Izaksohn, presidente; Boris
Kuschnir, vice-presidente; Boris goldenberg, tesoureiro; Fischel Schsschnik, 1. Secretário; Joseph Spector, 2.
Secretário; Lipa Schechter, Joseph Fichman, Samuel Gerschensohn, Joseph Schoichet, David Handelmann e
Miguel Duchowni. Vide “A Columna”, 1 de setembro de 1916.
495
Filha de Hano Lent, contrairia matrimônio com Maurício Fineberg. V. “A Columna”, 28 de setembro de
1916.
303
a celebração do El maleh rachamin, em memória dos que morreram durante aqueles anos
na Primeira Guerra Mundial. Na mesma ocasião, foi feita uma contribuição ao Fundo
Nacional Judaico.496 Após a coleta, ainda foi feito um leilão de objetos e jóias oferecidos
por várias pessoas, onde também aparece o nome de Jacob Schneider. O Comitê de Socorro
aos Israelitas Vítimas da Guerra, que tinha sua central em São Paulo no Rio de Janeiro,
estimulou a formação de Comitês em São Paulo, Bahia, Pernambuco, Curitiba 497 e outros
lugares, onde as doações muitas vezes se faziam em nome pessoal, assim como em nome
de comunidades locais, incluindo-se as mais distantes, do Sul ao Norte extremos do país. O
evento a que nos referimos mais acima ocorreu em 21 de maio de 1916 e faz parte do início
do movimento sionista no Brasil, sendo descrito no “A Columna” nos seguintes termos:
“Mais de 70 crianças israelitas em formatura partiram da praça Onze de junho, em demanda
dos automóveis que as guardavam um pouco abaixo, perto da avenida do Mangue. As
bandeiras nacional e sionista, desfraldadas ao sopro de suave brisa, abriam o préstito. Às
duas horas da tarde, entravam na Quinta (da Boa Vista) e, pouco a pouco, foram chegando
carros e automóveis, conduzindo famílias e cavalheiros, até ser bem numerosa a
concorrência, que tornou animadíssima a festa. Às quatro horas, pouco mais ou menos,
principiou a execução do programa. Os meninos cantaram o hino à bandeira, e em seguida,
o hino sionista, em hebraico. Tiveram a palavra David J. Perez, que falou em português,
senhor Rotberg, secretário da Tiferet Sion, em hebraico, e senhor Schneider, em ídiche.
Seguiu-se o leilão, cujo resultado vem abaixo descrito. Seu produto é destinado a socorrer
os judeus que, na Palestina, ficaram sem recursos, em vista da situação anormal criada pela
guerra”.498
A atividade de Jacob Schneider no sentido de criar uma comunidade
organizada e em moldes mais avançados, além das tarefas imediatas no setor de
beneficência, levou-o a participar de uma idéia que surgiu na segunda metade de 1915, a da
criação de uma Comunidade Israelita. Em reunião de 13 de fevereiro de 1916 realizada no
Centro Israelita do Rio de Janeiro foi resolvido que a comunidade deveria “levantar um
templo com três partes para os devidos ritos (supomos o sefaradita, o centro-europeu e o
asquenazita da Europa Oriental), um cemitério para cujo fim já existe a devida licença, um
registro geral de todos os israelitas do Rio de Janeiro e tudo o mais que possa servir aos
interesses da religião”. Constituiu-se para esse fim um Comitê provisório com Alfredo E.
Kohn, Joseph Kompinski, David J. Perez, Teodor Badmann, Barros Tendler, Álvaro de
Castilho, Maurício Tangir e Jacob Schneider. Após esse encontro marcou-se uma nova
reunião do Comitê para 27 de fevereiro, “convocando-se todos os correligionários para
assisti-la e ser votada a diretoria definitiva”. Além de Jacob Schneider e os nomes
apontados acima estiveram presentes naquele encontro Isidoro E. Kohn, Salomão
496
“A Columna”, 2 de junho de 1916.
497
Nos números de 4 de maio e 1 de junho de 1917 do periódico “A Columna” lemos que “o Comitê Pró-
Israelitas Vítimas da Guerra de Curitiba não poupa esforços para angariar meios, a fim de socorrer nossos
irmãos de além-mar, assolados pela guerra. Há poucos dias, alguns amigos ofereceram ao Comitê os seguintes
objetos: um relógio de ouro, um alfinete de ouro com brilhantes, uma medalha de ouro, um anel de ouro e
uma cigarreira de prata. Para que se tornasse o mais rendoso possível, o Comitê resolveu fazer uma rifa de mil
bilhetes a 1$000, em cinco prêmios, sorteados pela Loteria de 28 de abril. Ao que soubemos todos esses
bilhetes foram vendidos. O Comitê paranaense é composto dos distintos correligionários: Max Rosenmann,
Bernardo Schulman, Samuel Friedman, Max goldstein, Moisés Goldenberg, Moisés Retchulsky e Bernardo
Rosenmann.
498
“A Columna”, 7 de julho de 1916.
304
PROPULSOR DA BENEFICÊNCIA
499
A documentação no Arquivo de David J. Perez aborda a questão em mais detalhes.
500
V. Falbel, N., Jacob Nachbin, Nobel, São Paulo, 1985, pp.78-82.
501
“A Columna”, 7 de julho de 1916.
502
“A Columna”, 6 de julho de 1917.
305
os seus irmãos de raça, que ora se agitam em todo o mundo em prol da reconstituição
definitiva e firme de sua histórica pátria judaica, no território da Palestina”. Na ocasião,
David Perez, diretor de “A Columna”, encontrava-se enfermo e foi substituído por Álvaro
de Castilho, que fez um discurso programático, sugerindo a formação do 1º Congresso
Israelita no Brasil. Foi eleito, na ocasião, um Comitê Organizador, sob a presidência de
Isidoro Kohn, composto de um vice-presidente, Samuel Galper; 1º secretário, Ambrósio M.
Ezagui; 2º secretário, Benjamin Snitkovsky; tesoureiro, Lázaro Duek; vice-tesoureiro,
Marcos Nigri; membros do Conselho Fiscal, Moisés Mussafir, Marcos Fineberg, Jacob
Schneider, e Sinai Feingold.
De todos os lugares houve manifestações de apoio à iniciativa, e em Curitiba
chegou-se a organizar um Comitê local, composto de nomes representativos daquela
comunidade, tais como Max Rosenmann, Bernardo (Baruch) Schulman e Júlio
Stolzenberg.503 Também a Imprensa brasileira comentou amplamente o fato, e o “Jornal do
Comércio do Rio de Janeiro”, em seu número de 20 de outubro, anunciava que “os
israelitas aqui domiciliados pretendem realizar brevemente, nesta cidade, um congresso
nacionalista, a que deverão concorrer todos os delegados dos diversos núcleos judaicos
disseminados pelo nosso país (...). Esse Congresso, que se deve realizar no próximo mês,
tem por fim tomar conhecimento das diversas resoluções que presentemente foram
discutidas pelo Comitê Central do Sionismo (o correto seria da Organização Sionista).
Como a guerra atual tem determinado grande movimento de concessões liberais para o
judaísmo em diversos países da Europa, os comitês regionais estão se reunindo para traçar,
em definitivo, a conduta dos israelitas no mundo inteiro”.504
O jornal “A Epocha”, da cidade de Serpa (Itacoatiara), no Amazonas,
reproduziria essa notícia com um intróito entusiasta: “Como é sabido, desde há muito se
aventa a grandiosa idéia do Sionismo (...)”. 505 Portanto, o eco na Imprensa brasileira sobre
o evento se fazia ouvir de Norte a Sul. Devemos entender que o Congresso Israelita no
Brasil, além de congregar os judeus, visava fins políticos claros e estava intimamente
ligado à situação do nacionalismo judaico às vésperas da Declaração Balfour. E, de fato,
em nota sobre o Comitê Organizador do 1o Congresso Judaico no Brasil, publicada na “A
Columna”, onde se mencionam “as declarações de solidariedade de muitas localidades dos
Estados do Pará e Amazonas, assim como Pernambuco e Ceará”, se informa que “deixamos
de publicar as resoluções tomadas em relação ao Congresso, assim como a orientação a ser-
lhe dada e indicações para sua constituição porque seu principal objetivo, que era pedir o
apoio do Governo da República para nossas aspirações nacionalistas, votando pela
restauração da Palestina no Congresso da Paz, já foi conseguido desde que os Srs. Drs.
Gonçalves Maia e Maurício Lacerda, deputados, vão propor à Câmara uma moção de
solidariedade ao Programa de Wilson, relativo à Palestina. Também pelo mesmo motivo,
não tornamos pública a correspondência vinda do interior da República, e que não foi
pequena, onde há a mais expansiva manifestação de solidariedade aos nossos objetivos”.506
Em suas “Memórias”, Jacob Schneider confirma que idéia do Congresso
passava a ser secundária no momento em que, na tribuna da Câmara, se ouviram vozes a
favor da criação de um Estado Judeu na Palestina e levantando a questão do anti-semitismo
503
“A Columna”, set., out., nov. e dez. de 1917.
504
“A Columna” ,3 de agosto de 1917.
505
“A Columna”, set.; out.; nov. e dez. de 1917.
506
Idem, ibidem.
306
que grassava na Rússia e na Romênia. Para tanto, foi designada uma comissão, constituída
de Jacob Schneider, Eduardo Horowitz e David J. Perez, que se encontraram efetivamente
com Maurício Lacerda e lhe entregaram o material concernente às questões a serem levadas
ao público brasileiro. Lacerda o fez com brilho, assim como faria pouco tempo após, por
ocasião da Declaração Balfour, que também solicitou a atenção e participação dos judeus
no Brasil.
Em 11 de novembro de 1917, a Tiferet Sion, no Rio de Janeiro, receberia um
telegrama assinado por Weizman e Sokolow, comunicando aos sionistas do Brasil o teor da
Declaração Balfour e solicitando que se enviassem os agradecimentos ao rei inglês, ao
mesmo tempo que se promovesse uma visita ao embaixador da Inglaterra no Brasil,
transmitindo-lhe os sentimentos de gratidão do povo judeu pelo acontecimento histórico.
Uma comissão formada por Jacob Schneider, Isidoro Kohn e David Perez incumbiu-se da
visita programada, levando o memorando com assinaturas de 15 instituições, onde se lia,
em suas palavras finais, que “V.Ex. se dignará de transmitir à Sua Majestade Britânica e ao
seu Governo as expressões deste nosso agradecimento (...).507
507
Idem, ibidem.
508
“A Columna”, ser., out., nov. e dez. de 1917.
307
the His Majesty desires me to convey an expression of His thanks for their message. I am,
Sir, your obedient Servant, Arthur Peel”.509
VOLUNTÁRIOS JUDEUS
509
No arquivo de David J. Perez encontram-se os textos da Mensagem , datada de 11 de dezembro de 1917,
bem como a resposta de Sir Arthur Peel. Na “ A Columna” encontra-se o texto em português.
308
amigável para conosco, e as pessoas se viam honradas em nos homenagear com bebidas,
levando-nos a visitar os belos lugares daquela cidade maravilhosa. A população judaica
rejubilava de alegria e sentia-se orgulhosa. Tratava-nos como algo precioso, e no tempo em
que intelectuais do mundo discutiam se nos éramos um povo ou não, passeávamos pelas
ruas brasileiras como uma parte do exército judeu. Nossa partida da Argentina e do Brasil
foi triunfal, trouxe orgulho à população judaica e prestou ao sionismo, com certeza, um
serviço valioso”.
Portanto, a passagem dos voluntários argentinos adicionaria muito ao
entusiasmo nacionalista entre os judeus brasileiros, que sentiam a transcendência dos
acontecimentos naquele fim da Primeira Grande Guerra Mundial. Esse entusiasmo foi
crescendo desde que Sokolow e Weizmann remeteram o mencionado telegrama de
novembro de 1917, relativo à Declaração Balfour. A expressão desse nacionalismo que
despertava entre os membros da comunidade se revela através de dois documentos, que se
encontram no arquivo de David J. Perez, sendo o primeiro uma carta da Associação Tiferet
Sion, dirigida ao respeitado professor, e onde se relatava a realização, em 27 de novembro,
“devido aos telegramas ultimamente recebidos dos chefes sionistas de Londres”, que foi
eleito um comitê “Pró-Palestina” de nove pessoas, “para atenderem ao trabalho nacional
que é necessário neste momento. Esse comitê foi encarregado de convidar a representação
das sociedades israelitas, assim como outras de sua confiança”, e convocava David Perez
para assistir a um próximo encontro, que deveria se realizar em 2 de janeiro de 1918, na
Biblioteca Scholem Aleichem. Na ata manuscrita da reunião do dia 27 de novembro, na
qual se resolvia enviar a mensagem de solidariedade a sua Majestade Britânica,
mencionada acima, agradecia-se ao Governo inglês e “declara solicitar que determinem a
realização de seus ideais – o Estado Judeu na Palestina”. De outro lado, mais uma vez, a
voz de Maurício Lacerda se levantaria para marcar o evento, propondo na Câmara e no
Senado que se saudasse a Inglaterra pela vitória de Allenby e pela Declaração Balfour.
Jacob Schneider diria, em suas “Memórias”, que “isso, para os judeus brasileiros, foi um
grande triunfo político”, acrescentando que muito se comentou na imprensa judaica
argentina, criticando-se os dirigentes locais, “que não estavam à altura, ainda que fosse bem
maior, do que a comunidade judaica brasileira.”
Tiferet Sion, que era o núcleo mais ativo do movimento sionista no Brasil,
aproveitou para mandar mensagens aos ministros e representantes da Itália, Inglaterra,
França e Estados Unidos, bem como ao ministro das Relações Exteriores do Brasil, pela
vitória dos Aliados, cujo texto dizia: “A Sociedade Sionista ‘Tiferet Sion’, interpretando os
sentimentos dos Israelitas do Brasil, envia a Vossa Excelência a expressão sincera do seu
júbilo pela vitória dos Aliados, à qual a política de V. Ex. associou os destinos desta grande
República, pátria benfazeja de inúmeros Israelitas, os quais confiam ainda que a
continuação dessa política lhes ampare a sua secular aspiração nesta aurora da liberdade
dos povos”.510 O término da Primeira Guerra Mundial anunciava novas esperanças à
concretização dos ideais nacionalistas judaicos, em muito estimulada pela negra miséria e
as terríveis vivências das populações judaicas espalhadas nas aldeias da Europa Oriental e
no extenso território do Império Czarista, que ruía fragorosamente durante aqueles anos de
batalhas sem fim.
O comportamento do Exército russo, se assim podemos denominar as hordas
indisciplinadas e brutais de cossacos que o compunham, que atacava impiedosamente a
510
Arquivo David J. Perez.
309
população judaica das aldeias e cidades por onde passavam, foi descrito em um texto
clássico pelo escritor Anski, que, naquela ocasião, testemunhou o anti-semitismo virulento
e cruel de oficiais e soldados, como médico de campanha que recebera licença para auxiliar
a diminuir o sofrimento e a dor daquela gente. 511 O grande número de refugiados exigira
um esforço, por parte das organizações judaicas de todo o mundo, em dar assistência
àqueles que tinham perdido tudo e não sabiam como reconstruir suas vidas. Ao mesmo
tempo, o movimento sionista concentrava sua atividade na obtenção de seu objetivo
máximo, que era a formação de Estado Judeu, ou como a Declaração Balfour havia
formulado: um Lar Nacional Judaico para os milhões de judeus que tinham perdido seu lar
durante os anos de guerra.
511
“Der yidischer churben fun Poilen ,Galitzie un Bukovine, fun tog-buch 1914-17” (A destruição do
judaismo da Polônia, Galitzia e Bukovina), Varsóvia, 1921. O volume faz parte dos “Geklibene Schriftn” de
Anski, e constitui um dos documentos mais significativos sobre a tragédia judaica , durante os anos da guerra
na Europa Oriental.
512
Sobre a Conferência de San Remo e as resoluções relativas à Palestina , veja-se o livro de autoria de
Bernard (Dov) Yosef, “Há-Shilton há-Briti be-Eretz Israel” (O domínio britânico na Palestina), Jerusalém,
1948.
513
O texto desse Memorando encontra-se no Arquivo David J. Perez.
310
fizemos o possível para ativar a representação política brasileira nas negociações da arena
política internacional, em favor de nosso povo e da causa sionista”.
Mas, apesar do otimismo de Jacob Schneider quanto à participação do Brasil na
Conferência de San Remo, sabemos, por carta enviada a Maurício Klabin pelo secretário
político do Executivo da Organização Sionista, que ela foi quase nula.514
Os ecos do resultado da Conferência de San Remo repercutiram em todo o mundo, e
também na comunidade judio-brasileira, chegando a atingir outras comunidades, além da
do Rio de Janeiro, conforme podemos verificar pelo convite impresso em Curitiba, em 1º
de julho de 1920, e assinado por Júlio Stolzenberg, Bernardo Schulman a Salomon Scop,
em que convidavam “a assistir à festa em regozijo pela vitória obtida pelo povo judeu na
conferência do Supremo Conselho em San Remo, ocasião em que a Palestina foi
reconhecida como Pátria Nacional Judaica. A festa realizar-se-á em 10 de julho, às 7 horas
da tarde em ponto, na Rua Barão do Rio Branco.”515
O jornal Comércio do Paraná, naquela ocasião, publicava um artigo sobre a
conferência de San Remo e a designação de Sir Herbert Samuel como o primeiro alto
comissário britânico na Palestina, elogiando a comunidade israelita de Curitiba “como em
todo o mundo se mantiveram em coesão, trabalhando em comum pelo grande ideal que os
animava num labor continuado e perene. Servia de núcleo para esta magnífica
conseqüência de esforços o Comitê Central Israelita composto dos senhores Max
Rosenmann, Júlio Stolzenberg, Bernardo Schulman, Julio Schaja, Samuel Friedman,
Miguel Flaks, Frederico Flaks, Slomon Guelman, Salomão Scop, Nathan G. Paciornik,
Bernardo Gertel, Moisés Rachulsky e Luiz Feinowitz, membros de destaque da colônia
(...)” É aos membros deste Comitê que apresentamos os nossos parabéns efusivos e efusivas
felicitações pelo ato do Conselho de S. Remo reconhecendo a Palestina como Pátria
Nacional Judaica.” O número de agosto de 1920 do jornal Kol Israel do major Eliezer
Levy, em Belém do Pará, dedicava suas linhas à conferência de San Remo, e um artigo
definia Herbert Samuel como o primeiro governador da Palestina Hebraica.
No Rio de Janeiro, a Tiferet Sion, ainda ligada ao acontecimento em San Remo,
imprimiu um convite, no qual pedia o comparecimento a uma “reunião especial não-
partidária de todos os membros da nossa colônia, que são conhecidos pelo seu interesse
pela sorte do nosso povo”, na Biblioteca Scholem Aleichem, no dia 1º de maio. O convite
começava com palavras enfáticas e impregnadas de orgulho e esperança: “Bateu a grande
hora! O Conselho Supremo das Nações, reunido em San Remo, resolveu criar na terra de
Israel um Lar Nacional para o povo judeu. Reunimo-nos, então, para deliberar os deveres
da nossa colônia e definir a nossa participação na reconstrução de nosso povo.” E o convite
terminava com a frase: “Que sejamos dignos do grande momento!” 516
A vida judaica no Brasil do pós-guerra começou a sofrer modificação significativa
devido à imigração massiva que se dirigia ao Rio de Janeiro e outras cidades de nosso
território, engrossando, assim, a população judaica e exigindo a formação de instituições e
514
Central Zionist Archives, Z4/ 2350. O texto integral da carta é o que se segue: “3rd November, 20. Senhor
Maurício Klabin, c/o The Consul-General for Brazil, 20, South Place, Finsbury, E.C.2. Sir, The Executive of
the Zionist Organization understand that you are desirous os ascertaining whether any part was palyed by the
Brazilian Delegation at the Pence conference in securing the recognition of the Jewish interest in Palestine. I
am directed to inform you that the Executive are not aware of any intervention in the matter on the part of
Senhor Pessoa and his colleagues. I, am, Sir Your obedient Servant, Acting Political Secretary. “
515
Arquivo David J. Perez.
516
Arquivo David J.Perez.
311
517
Em outro lugar de suas “Memórias”, Jacob Schneider relata que o advogado que tratava do assunto servia
também ao “elemento indesejado” e, em vez de passar a escritura ao grupo que estava adquirindo o terreno , o
fez em nome dos “tmeim”. Ele nos informa que a autorização obtida em 1918 era de um terreno próximo ao
cemitério católico , o que levou a procurar outro.
518
Jacob Schneider retifica, mais adiante, que o terreno custou 23 contos e que, dessa quantia ele coletou
40%.
519
Veja-se o Relatório e Balanço geral do ano 1928, ed. Gazeta Israelita, Rio, 1929.
312
LÍDER NATURAL
520
A primeira diretoria, de 1923 a 1924, era composta de: presidente Sabina Schwartz; vice presidente Ofelia
Kastro; secretária Tuba Fridman; tesoureiras Enta Lerner e Tcharni Holtzman; colaboradoras Sara Tchornei,
Cyla Schneider, Sara Fineberg, Liza Tiomni, Zina diamante, Sima Hoineff, Mina Duval. V. Parnes, Ida e
Nelson Vainer, História da Sociedade Beneficente das Damas Israelitas do Rio de Janeiro, Liv. Freitas Bastos,
Rio e São paulo, 1961. Na assembléia de fundação , em 23 de dezembro de 1923, estiveram presentes cerca
de 150 senhoras e foi criado o primeiros fundo, no valor de 5.165$00, uma soma significativa para a época.
Foi constituido o quadro social , com a contribuição mensal de cinco mil reis. A Sociedade desenvolveria uma
atividade social ampla, dando assistência às mulheres recém-chegadas, proteção às gestantes, assistência
médica domiciliar a mulheres enfermas e sua internação, criação de um Lar da Criança e, mais tarde, a criação
de um Asilo de Velhos.
521
No arquivo de David Perez encontram-se vários bilhetes de Aron Goldemberg, dirigidos a ele, solicitando
sua participação em reuniões do grupo de iniciativa para a criação da escola.
522
Ilustração Israelita, n.1, agosto de 1928.
313
CRIADO UM PERIÓDICO
Como parte dessa entidade e visando um objetivo mais amplo, Jacob Schneider,
David Perez e Eduardo Horowitz tomaram a iniciativa de criar um periódico português, que
denominariam de “Correio Israelita”, e que deveria difundir as idéias sionistas, além de
servir de informativo à comunidade, que naquela ocasião não possuía um órgão de
523
A Ahavat Sion compôs sua primeira diretoria em 5 de outubro de 1918, figurando como presidente A.
Ribinik, Menassés Bensimon, vice-presidente; Eliezer Levy, secretário; José Bensimon, tesoureiro.
524
Central Zionist Archives, Z4/2350, carta em ídiche, escrita por Maurício Klabin, de 22/10/1920, e resposta
em ídiche do Executivo sionista em Londres, de 25/10/1920.
525
Central Zionist Archives, Z4/2350, carta em ídiche de 17/7/1920.
526
Central Zionist Archives, Z4/2350, relatório em inglês de 14/7/1920.
527
Central Zionist Archives, Z4/2350, carta em hebraico de 23/10/1921; carta em hebraico de 26/10/1921;
carta em inglês de 17/11/1921; carta em ídiche de 23/11/1921; carta em hebraico de 3/1/1922.
314
528
Arquivo David J. Perez.
529
Sobre Yehuda Wilensky bem como sobre o Primeiro Congresso Sionista no Brasil vide os estudos
especifícos nessa mesma coletânea.
315
uma viagem a Romênia e a Palestina sobre a qual escreveu um “Diário” que retrata a
colonização na Terra Santa e os núcleos pioneiros que visitou encantado que estava com o
desenvolvimento que via em todos os lugares pelos quais passava. Ao voltar dessa viagem
entregou-se de corpo e alma e com redobrado entusiasmo a atividade sionista e trabalho
comunitário revelando uma energia impar no trato das questões que causava admiração
profunda aos que o cercavam. Ele continuaria ser um exemplo a todos que o conheceram e
conviveram com ele até o último dia de sua existência terrena deixando na memória do
judaismo brasileiro a lembrança de seu idealismo, fidelidade e amor a Israel, disposto a
todo sacrifício e pureza em suas convicções.
316
530
Shocken Books, New York, 1983
317
531
Bristow, op. cit. p. 18. A verdade é que o "ostracismo religioso”, isto é, o herem, acompanhado do
ostracismo social, foi decisivo no combate aos traficantes e sua organização.
318
escravas brancas era acentuada pela propaganda anti-semita, do mesmo modo como
ocorreria um pouco mais tarde na Argentina e no Brasil.
O anti-semitismo moderno aproveitava-se dos fatos isolados e dispersos,
dando-lhes uma dimensão universal, e sob esse aspecto o judaísmo de nossos tempos
deveria enfrentar uma dupla frente de combate; a interna, para depurar as comunidades de
imigrantes desse elemento pernicioso para possibilitar uma identidade própria legal e aberta
onde quer que se encontrasse, e a externa, para evitar os estereótipos anti-semitas que
dificultavam a integração dos judeus na sociedade mais ampla.
Ativistas como Bertha Pappenheim e Sidonie Werner fundariam em 1904 uma
organização de mulheres, a Juedischer Frauenbund, com o objetivo de combater o tráfico
de escravas brancas, em especial de jovens da Europa Oriental. Sob a liderança de
Pappenheim, a organização expandiu-se rapidamente, e após 30 anos de existência,
agrupava cerca de 30.000 membros com 450 filiadas. Além do mais, visava a emancipação
da mulher através do sufrágio feminino nas eleições comunitárias, e acabou tendo uma
representação em foros nacionais e internacionais. Bertha Pappenheim fundou em 1914 um
instituto em Neu-Isenburg para mães solteiras, prostitutas e mulheres delinqüentes, e mais
tarde para crianças, dedicando-se a difundir a ética do trabalho social através de grupos de
estudo no Frankfort Lehrhaus. Ela viria a falecer em 1936, sendo substituída por Hannah
Kaminski (1887-1943), deportada e morta pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial.532
É sabido que as primeiras organizações operárias judaicas européias
ideologicamente definidas para o socialismo e ativas no combate ao capitalismo e seus
males também se engajaram na luta contra os traficantes de escravas brancas. Seus líderes
tinham consciência de que grande parte das causas para o surgimento do tráfico se
encontrava não somente no confinamento dos judeus devido ao anti-semitismo, mas a uma
política discriminatória adotada pelo Império Czarista e parte do Império Austro-Húngaro
que atingia a Rússia, Polônia, Bukovina, Galítzia, Romênia e outras regiões, gerando uma
multidão avassaladora de luftmenschen que procuravam desesperadamente sobreviver de
todas as maneiras e modos.
O processo de transformação dessas regiões da Europa Oriental, no século
XIX, confinados na Zona de Residência (Pale) onde viviam milhões de judeus que sofriam
as conseqüências da urbanização, a migração de massas do campo para a cidade, a
pauperização em grande escala, também nas cidades e no campo, acompanhado da
secularização e afrouxamento dos laços familiares contribuíram para o surgimento e
disseminação do fenômeno. Marginalidade, criminalidade, tráfico e prostituição parecem
ter um fundo sócio-econômico comum. Políticas econômicas governamentais que
deslocaram judeus de suas ocupações durante o século XIX em certas regiões, tais como a
Galítzia, que se emancipou da servidão em 1848, criaram uma situação extrema de
pauperização acentuada pela formação de monopólios de certos produtos, que antes se
encontravam nas mãos dos judeus e passaram ao Estado, tal como o comércio de bebidas
alcoólicas. Por outro lado, a industrialização em certas cidades do leste europeu abriria as
portas para a organização de um proletariado judeu que acorrera a essas novas
oportunidades de sobrevivência e trabalho. Foram também essas organizações operárias,
como já dissemos antes, desde que o Bund foi fundado, em 1897, que tentaram erradicar a
532
V. Encyclopeedia Judaica, Keter Pub. House, Jerusalém, 1971,vol.10,p-.462; v.13, p.68.
319
533
Bristow, op. cit. p. 58.
534
Bristow, op. cit. p. 59.
535
Bristow, op. cit. 60, cita em nota de rodapé a obra de Stanislava Paleolog The Woman Police of Poland,
Ass. of Moral and Social Hygiene, London, p. 7.
320
536
Brá, Gerardo, La Organización Negra. La Increíble Historia de la Zwi Migdal, B. A. Corregedor, 1983;
também La Mutual de los Rufianes in Todo es Historia, nº 121, junho, 1977. Victor A. Mirelman, La
Comunidad Judía Contra el Delito”, in Megamont nº 2, B. A., ed. Milá, 1987, pp. 5-32; Ricardo Feierstein,
História de los Judíos Argentinos, ed. Espejo de la Argentina, Planeta, B. A., 1993, cap. 8, pp. 269-303.
537
Ferreira da Rosa, O Lupanar, Rio, 1896.
538
Rago, Margareth, Nos Bastidores da Imigração: o Tráfico de Escravas Brancas in A Mulher e o espaço
público. Revista Brasileira de História vol. 9, 18, ANPUH, ed. Marco Zero, S.P., 1989, p. 177; V. Rago,
Margareth, Os Prazeres da Noite e Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-
1930), Ed. Paz e Terra, SP, 1991, p. 250; Evaristo de Moraes, Ensaios de Pathologia Social, Liv. Editora
Leite Ribeiro, Rio, 1921, p. 264.
539
Pelos nomes mencionados em sua obra inferimos que entre eles encontravam-se judeus.
540
Ferreira da Rosa, op. cit. p. 45.
541
Guido Fonseca, História da Prostituição em São Paulo, Ed. Resenha Universitária, SP, 1982, pp. 133-35.
321
inteira liberdade “no caminho para Buenos Aires”, que segundo as conveniências e a
perseguição policial, passava pelo Brasil, que era um dos centros da prostituição do pólo
sul-americano.
Guido Ferreira traz em seu livro542 o nome do traficante Izidoro (Israel)
Klopper, austríaco de nascimento, brasileiro naturalizado, que chegara a ser alferes da
Guarda Nacional, e em 1896 foi indicado por crime de lenocínio, fugindo para Buenos
Aires. Pelo visto, o número de traficantes pode ser avaliado como desprezível se
considerarmos a pequena população judaica daquela época. Na medida em que a emigração
judaica aumentou, as estatísticas das prostitutas então registradas sob as nacionalidades
russa, austríaca e polaca deveriam ser judias.543 Anos antes da Primeira Guerra Mundial,
em 1910, apesar do combate ao tráfico, cáftens e prostitutas judias estavam presentes na
vida do Rio, onde uma tal Bertha Schild tinha um bordel e seu marido, Jacob, um traficante
aliciador nascido em Lemberg, em 1867, com uma longa carreira criminal com
envolvimento em roubo e receptação, tinha uma parceria em Vilna com outro traficante,
Nathan Messinger de Brody, para abastecer e recrutar mulheres para o Brasil. 544 E, de fato,
o levantamento dos túmulos judeus nos cemitérios antigos do Rio de Janeiro, São João da
Boa Vista e Francisco Xavier vem comprovar que uma organização de cáftens e prostitutas
é mais antiga e remonta ao século XIX, independentemente das conhecidas associações que
surgiriam no nosso XX, em boa parte fruto do isolamento decretado pela comunidade de
imigrantes, que passou a lutar por sua identidade própria e diferenciar-se dos “impuros” ou
tmeim. Bristow menciona que nos anos de 1890 um tal Marcus Rosen, que foi empregado
para cuidar de prostitutas, conseguiu para uma sinagoga improvisada nos dias de feriados
judaicos e que um vidraceiro local oficiasse as rezas, mas o mesmo veio a morrer de febre
amarela. Porém, quando Samuel Cohen, o secretário da Jewish Association for the
Protection of Girl and Womem visitou a América do Sul, em 1913, as coisas haviam
mudado, pois ele descobriu uma sinagoga para prostitutas e seus cáftens. Ele ficou chocado
pelo fato que o local era divulgado na imprensa como sendo a “congregação das mulheres”,
pouco antes dele chegar. Os judeus brasileiros sentiam-se ultrajados com essa situação,
assim como Cohen. O autor ainda nos relata que em uma ocasião, cerca de 1910, quando os
traficantes de escravas brancas caminhavam pelas ruas do Rio numa cerimônia de
dedicação de uma nova Torá para a sinagoga, eles foram atacados por uma multidão de
jovens da comunidade respeitável, que lhes arrebataram o rolo e puseram os indesejáveis a
correr.15 As perseguições encetadas no ano de 1913 na Argentina provocaram um
deslocamento maior desse elemento em direção ao Brasil, ainda que, aparentemente, as
autoridades daqui, atentas ao fato , procuravam impedir seu ingresso em território nacional.
Se considerarmos que na história da imigração judaica os judeus na Europa
Oriental começaram a se estabelecer, mais acentuadamente, a partir das duas últimas
décadas do século XIX, podemos, desse modo, entender que os primeiros esforços de
organização comunitária propriamente dita verificar-se-á nos inícios do século XX, e esse
esforço está associado à criação de barreiras e à total separação do nome “polacos ou
542
p. 138. Esse personagem é mencionado por Ferreira da Rosa. V. também Bristow, op. cit. p. 114, que se
refere a “associação dos cáftens”, e alguns de seus integrantes, entre os quais, dos 39 que foram expulsos do
Brasil em 1879, alguns eram judeus.
543
Guido Ferreira, pp. 140-43.
544
Bristow, p. 78.
322
545
Britow, op. cit., pp. 140-41.
546
Wald, P., In gang fun tzeiten (No passar do tempo), Buenos Aires, 1955, p. 360 (em Ídiche).
323
movimento operário e mesmo de operários. E, assim como a luta do ano 23 está vinculada
moralmente à de 1908, devemos acentuar que então a influência dos tmeim estava reduzida
a sua participação no teatro profissional judaico e indiretamente no repertório teatral. A luta
durou até que se decidiu que eles não teriam acesso ao teatro judaico, e não tiveram mais
influência, mesmo que fosse em qualquer lugar da rua judaica, e desapareceram da vida
social judaica sem deixar qualquer rastro. A lei, com sua coerção, obviamente ajudou para
que os traficantes fossem expulsos do país”.
Quando León Chazanovitch, o famoso líder poalei-sionista que chegou à
Argentina em 1909, em dezembro daquele ano fundou o Algemeiner Idisher Arbeiter
Ferband (União Geral dos Trabalhadores Judeus), unificando poalei-sionistas com outros
grupos, que além de criticar a administração da J.C.A., procurou, com a fundação do
periódico Broit um Ehrê (Pão e Dignidade) combater os traficantes. O jornal, que saiu em
1910, não teve continuidade, e em julho cessou de existir.
Em nota de rodapé, o autor, P. Wald completará seu relato dizendo que na
sociedade mais ampla já se havia encetado uma ação contra os traficantes de mulheres
através do “Comité contra trata de blancas”, no qual o então líder sionista S. I. Liachovitzki
era ativo, sendo que na Câmara de Deputados o único deputado socialista, Dr. Alfredo L.
Palácios, propôs um projeto para eliminar os traficantes.
Como já escrevi em outro lugar, o teatro foi de fato um dos espaços
importantes de disputa para a afirmação da identidade da comunidade dos imigrantes contra
os “indesejáveis”, e na Argentina ela teve seu momento crucial em 1926, com a
representação da peça Ibergus, de Leib Malach, que tratava diretamente do tema da
prostituição. O confronto com os “indesejáveis” no teatro ídiche resultou numa luta aberta
contra os mesmos para eliminar sua influência e sua presença física nos espetáculos, com o
apoio do tradicional periódico de Buenos Aires Di Presse e seu redator Jacob
Botochansky.547
A situação no teatro judaico da Argentina era sumamente grave, o que
podemos constatar pelo relato do grande dramaturgo e diretor de teatro, que atuou também
no Brasil, Zygmunt Turkow, que ao falar do ator e homem de teatro Kalman-Moshe Ebel,
nos relata que este foi um dos primeiros que levou a Buenos Aires uma trupe de atores, “no
tempo em que o teatro encontrava-se sob a tutela dos tmeim (...) Também seu teatro
precisou manter uma ligação com aquele tristemente famoso grupo, sem o qual nenhum
teatro judaico poderia contar com sucesso. Mesmo que sua viagem à Argentina lhe tenha
dado uma bela soma, ele sofria devido às acusações que lhe faziam de vários lados. Ele
abandonou o teatro juntamente com sua esposa, a prima dona Ella...”
Como no Brasil a comunidade defrontava-se com o mesmo problema, a
imprensa da época deu um farto noticiário a respeito do que se passava na Argentina.
Em 18/12/1925, no número 110 o Dos Idische Vochenblat do Rio de Janeiro,
fundado por Aron Kaufman em novembro de 1923, anunciava “que o judaísmo argentino
combate os tmeim: organizou-se um comitê para afastá-los do judaísmo argentino. A luta
começou no teatro, e se estende a todas as instituições do judaísmo argentino”. Alguns
547
Falbel, N., Jacob Nachbin, Nobel, SP, 1985, pp. 227-30, Leib Malach, que esteve no Brasil, coloca os
personagens do seu drama no Rio de Janeiro, e talvez durante sua estadia no Brasil tenha ouvido a “história”
que o motivou a escrever o Ibergus; idem, Estudos sobre a Comunidade Judaica no Brasil, SP, 1984, p. 167.
324
meses após, em 09/04/1926, no número 126, sob o título Di rufianische ideologie in idichen
teater in Buenos Aires (A ideologia rufianica do teatro judaico de Buenos Aires),
transcrevia do Di Presse o que se segue: “nosso colaborador L. Malach escreveu um drama,
Ibergus. Ele foi lido pelo regisseur do Idischer Teater, L. Sokolov, que apesar de lhe ter
agradado, considerou que tinha um defeito. Ela expressa a vida dos mercadores de escravas
brancas e desnuda inteiramente o nosso triste e conhecido ator-rufião na pessoa do herói –
Stare. Alguns atores, próximos ao mencionado Stare, começaram a intrigar, e após várias
mentiras e manobras, o Sr. Adolf Mide leu ele mesmo a peça e declarou que a peça é
bonita, mas não pode ser levada à cena, pois não se pode irritar os rufiões. Se Malach
concedesse modificar a peça ele a aceitaria. Ele, Mide, declarou isso na presença de Malach
e Botochansky, que deixaram o teatro. Depois o Sr. Mide nos visitou e começou a justificar
sua posição. Botochansky lhe disse que ele não vê como evitar que os rufiões deixem de
freqüentar o teatro, mas dar a eles privilégios, isso não! Mexer com outros é possível, sejam
eles rabinos, sapateiros, alfaiates, polícias, ministros, operários, mas os rufiões se os fazem
de personalidades intocáveis (...) de modo que o teatro está impregnado de uma ideologia
rufianica (...) B. afirmou que isso que acabara de dizer ele o escreverá no Di Presse, e
conclamará os leitores a uma luta contra essa ideologia. O Sr. Mide declarou, então: se
escreveres isto eu virei amanhã e atirarei para matar. Nós pedimos para que se retirasse e
comunicamos a ameaça à 7ª Delegacia. O subcomissário, Sr. Benites, convidou o Sr. Mide
à delegacia, onde ele novamente declarou: quem escrever contra mim eu matarei. O
comissário lhe disse, metade em ídiche: Usted a mechugener (...) e o prendeu. Os rufiões
são medrosos e se escondem em seus buracos (...) Seus defensores estão quietos e o Sr.
Mide foi libertado mais tarde. O teatro judeu da Pasteur 641 deverá demonstrar que não tem
apoio dos rufiões e defender sua honra, e o mesmo os seus artistas, cuja maioria não quer
ser incluído nos círculos dos tmeim. O Aktioren Ferein (Associação dos Atores) também
deverá dizer algo e possivelmente examinar a lista de seus sócios, entre os quais não faltam
schatnez (isto é, a mistura proibida de lã com linho). Toda a imprensa judaica deverá
manifestar-se contra a ideologia rufianica que domina com mão forte o Idischer Teater”.
Ainda no mesmo periódico publicava-se em 26/04/1926, no número 128, sob o
título “Arum der Kamf kegen der rufianer ideologie in idischer teater” (Ao redor da luta
contra a ideologia rufianica no teatro ídiche”), o Dos Idische Vochenblat manifestava seu
apoio à luta do Di Presse de Buenos Aires, lembrando o caso Tomachevski, ocorrido no
Brasil, que fora impedido de representar no Rio de Janeiro pela suspeita de ter apoio dos
tmeim.548
Anos mais tarde o próprio Botochansky escreveria um artigo publicado em
19/04/1940 no San Pauler Idiche Tzeitung, fundado em 1931 por Marcos Frankenthal, onde
narrava como os judeus da Argentina lutaram contra o tráfico de escravas brancas.
O autor relata que “os imigrantes, ao chegarem, eram recebidos pelos tmeim,
que os abrigavam e os ajudavam, talvez como uma espécie de remissão de seus pecados.
Mas os imigrantes, ao perceberem quem eram, começaram a se afastar deles ao mesmo
tempo em que os expulsavam dos bares ou casas de café que faziam parte da vida urbana na
548
Boris Tomachevsky veio com sua trupe ao Brasil em 1924 e se colocou na posição de não adotar qualquer
restrição ao público que freqüentava o teatro, pelo qual foi impedido de continuar com sua turnê no país. Ao
voltar, deu uma entrevista ao Forwerts americano, acusando todo o judaísmo brasileiro de traficantes de
escravas brancas.
325
Argentina. Também se os afastavam dos cemitérios, apesar deles serem os primeiros a ter
cemitério. Conseguiram afastá-los das sinagogas, dos clubes e cemitérios, menos do teatro.
Eles vinham vestidos com luxo, ouro e brilhantes, e sentavam-se nos lugares mais
importantes. A polícia os perseguia fazendo batidas no teatro, o que os obrigava a se
esconder nas cabinas dos artistas, que tinham muitas vezes um bom relacionamento com
eles. Também outros artistas os combatiam. A luta para tirá-los do teatro era difícil e
provocava um tumulto quando alguém se levantava e gritava: ‘rufiões, saiam do teatro’.
Eles sustentavam em boa parte os artistas e ditavam até as peças, pois as peças que os
criticavam não eram apresentadas. Entre elas, o melodrama Tzu schpeit (Tarde demais), de
Moshe Richter, e o melodrama Di veise shklafen (As escravas brancas)”.
“Em 1925, durante a encenação da peça de Rudolf Zaslavski, estourou uma
briga entre os judeus honrados e os tmeim”.
“A última batalha foi em 1926, quando Leib Malach escreveu uma peça,
Ibergus, contra os tmeim, que se passava no Brasil, mas que se sabia ser dirigida à
Argentina. Argumentaram que ela não deveria ser encenada, pois provocaria os tmeim. O
autor, B., que estava à frente das negociações, argumentou que os chevre-leit não deviam
ser os únicos a opinar sobre o assunto, pois se todos os outros podiam ser criticados, então
por que não eles, e isso ele escreveria na imprensa. B. foi ameaçado de morte se escrevesse,
mas ele não se intimidou e assim o fez. A batalha estava em franco progresso, e em 1926 o
2º Comissário de Buenos Aires (onde moravam os judeus) resolveu acabar com os
‘rufiões’, e o chefe daquela delegacia, Alsogarai, levou a sério a tarefa e os expulsou de lá.
Mais tarde, o governo argentino proibiu a prostituição, e com isso reduziu o problema. De
tudo isso sobrou um cemitério onde não se enterram mais homem (cáftens), e de vez em
quando aparece para ser enterrada uma prostituta”.
O teatro era um elemento central na vida cultural dos imigrantes e de suas
instituições, e a presença, e às vezes mais do que isso, a influência dos tmeim sobre
companhias e atores feria a sensibilidade daqueles que não queriam sentar-se lado a lado
com cáftens e prostitutas nas salas de espetáculos. Muitos são os relatos dos velhos
imigrantes das comunidades do Rio, São Paulo e Porto Alegre que retratam o esforço
organizado de pessoas que ficavam postadas nas casas de espetáculos para impedir a
entrada dos “indesejáveis”, provocando verdadeiros tumultos, e levando a intervenções da
policia a fim de esfriar os ânimos exaltados em alguma delegacia local.
A imprensa ídiche dos anos 20, em particular o Dos Idische Vochenblat, não
deu tréguas aos tmeim e convocava a comunidade para combatê-los, chamando a atenção
para os danos morais que causavam à mesma, que era confundida com esse grupo de
marginais, conspurgando o nome “judeu” na sociedade brasileira mais ampla como
sinônimo de traficante de escravos brancos.
Essa luta se fazia no mesmo teatro que apresentava ao público judaico, através
da literatura ídiche, a temática da prostituição e do tráfico de escravas brancas existente
entre os filhos de Israel, e serviu de veículo para despertar a consciência popular contra esse
mal. A começar da peça de Peretz Hirshbein, que esteve visitando o Brasil em 1914 e 1925,
escrita em 1906, intitulada Miriam ou Barg Arop (Descenso), e as do dramaturgo Moshe
Richter, Schklaven Hendler (Traficantes de escravas), de 1910, e o melodrama Tzu Schpeit
(Tarde demais), de 1913, a novela de Mendele Mocher Seforim, Vinchfingeril (O dedinho
mágico), escrita em 1865 e reelaborada em 1888, o Got fun nekome (Deus da vingança), de
Sholem Asch, escrito em 1907, além do famoso conto de Sholem Aleichem A mensch fun
Buenos Aires (O homem de Buenos Aires), escrito em 1904, e Di vaisse schklafen (As
326
escravas brancas), de Isidor Zolotarevsky, escrita em 1909, que dedicou ao tema várias
peças e despertou amplamente a consciência das multidões de fala ídiche para o problema.
Criava-se uma verdadeira suspeita em relação a pessoas que vinham da Argentina ou da
América do Sul para visitar seus lugares de origem na Europa Oriental devido aos rumores
sobre a vida indecorosa dos judeus daquele país.549
Na verdade, constatamos que nos inícios do teatro ídiche no Brasil,
companhias, ou trupes, que se apresentavam no Rio de Janeiro não distinguiam entre o
elemento decente e o indesejável, que provavelmente as apoiavam, e podemos encontrar em
certos cartazes dos anos de 1915 a 1917 o anúncio de espetáculos “em benefício das obras
do novo Cemitério Israelita de Inhaúma”.
A Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, isto é, a sociedade
dos cáftens e prostitutas do Rio de Janeiro da época, é que patrocinava em partes tais
espetáculos do repertório clássico do teatro ídiche.550 Posteriormente, as companhias
teatrais tomaram o devido cuidado e colocaram em seus cartazes os dizeres: “É proibida a
entrada ao espetáculo de elemento indesejável”. Mas até lá, a comunidade teve que travar
uma difícil luta para que a sociedade brasileira não identificasse a comunidade dos
imigrantes judeus com os cáftens e prostitutas que insistiam em se apresentar como parte da
mesma.
Nos anos 20, quando a imigração judaica cresceu e as companhias teatrais
começavam a vir ao país com maior freqüência, em sua passagem pela Argentina,
fortificou-se a decisão de expulsar o elemento indesejável do teatro ídiche. Quando o Dos
Idische Vochenblat, em 1924, anunciava que a companhia de artistas Gutovitch e Zipkus
encenariam a peça Dos Pintele Id no Club Ginástico Português, a redação se encarregou de
acrescentar que “esta trupe representa apenas para famílias, e considerando que o Rio
necessita de um teatro que atue somente para um público selecionado, portanto faz jus que
a colônia judaica se interesse por ela”. 551 Os artistas visitantes também já estavam
conscientes e alertas para essa realidade, e podemos acompanhar passo a passo, pela
imprensa ídiche do Rio de Janeiro, o que se passou quando Boris Auerbuch, empresário e
ator do Idische Amerikaner Aktioren Companie, chegou ao Rio, em maio de 1925.
Representantes da comunidade que foram recebê-lo observaram que aqui se encontravam
artistas judeus que poderiam participar em suas apresentações “e que seu teatro deve ser
fechado àqueles que conspurgam o nome judaico, sendo que o capítulo Tomachevsky, que
desperta no público do Rio desprezo e raiva, foi de vez apagado”.552 Porém, ainda em 1927
o elemento indesejável tinha sua presença no teatro, e em uma entrevista o ator Abraham
Bren, que comemorava 25 anos de vida artística, acusava a indiferença do público judaico
do Rio por não dar o devido apoio e sequer lutar para que os indesejáveis deixassem de
549
V. a relação de suas obras em B. Gorin, Di Geschichte fun idischen theater (A história do teatro ídiche), 2a
ed., N.Y., 1923, pp. 264-5
550
Cartazes da grande Companhia Israelita de 12 de novembro de 1915, da peça Shulamis (Sulamita), de A.
Goldfaden, no Palace Teatro, e da grande Companhia Israelita H. Starr, de 27 de novembro de 1916, da
“opereta” de M. Meisel Mein veib’s man (O marido da minha mulher), no Teatro República, col. Nachman
Falbel.
551
DIV de 21/11/24, número 54.
552
DIV de 08/05/27, número 78.
327
freqüentar o teatro. Ele arrematava dizendo: “mas nós estamos dispostos a tirá-los, mesmo
se for a pauladas, para que vocês venham e freqüentem o nosso límpido teatro”.553
A visita de Viera Kanievska e Paul Breitman, ambos artistas famosos, ao Rio,
nesse mesmo ano, indicava claramente que sua companhia fora alvo de críticas por parte
do público judaico carioca, pois em entrevista ao Idische Folkstzeitung ambos queixavam-
se que “está se criando uma atmosfera ao seu redor devido à presença de certo público
indesejável nas últimas representações, culpando-se a empresa por isso. Nós, isto é, a
redação, lhes fez ver que com desculpas vazias nada se conseguiria, a não ser com atos,
para fazer com que limpem o teatro em que atuam, e que isso é de seu interesse”. 55424
Poucos dias após os atores Kanievska e Breitman fariam uma declaração pública para a
comunidade, na qual afirmavam o seguinte: “Dois meses se passaram desde que
começamos o nosso teatro, e é um fato que o Rio precisa de um teatro limpo. E para isso,
ela, a comunidade, precisa lutar. Já nos dirigimos às sociedades para que elas controlem a
entrada do teatro, a fim de evitar a mescla do público. O Yugend Club foi o único a
responder e se prontificou para isso, e nossa vontade é que o teatro sirva apenas à parte
positiva da coletividade judaica.
Não temos medo daqueles ‘homenzinhos’ que fazem intrigas e desejam perturbar a
representação de aniversário de nosso diretor A. Bren, dizendo que o teatro está repleto de
linke (indesejáveis). Deixamos assim a colônia do Rio dizer sobre a questão e daremos no
dia 1º de janeiro de 1928 a última representação”.555 Nesse tempo, a comunidade dos
imigrantes já tinha estabelecido uma postura radical contra os rufiões e prostitutas, que
começou a se manifestar ainda em 1910 por ocasião em que eles desfilaram nas ruas do Rio
numa cerimônia de dedicação de um Sefer Torá à sua sinagoga, conhecida como “a
congregação das mulheres” pela imprensa local. Eles foram atacados por um grupo de
jovens da comunidade que lhes arrebatou a Torá e os puseram a correr. 556 Nessa década,
quando David José Perez criava em 1916 a primeira publicação judaica em Português, no
Rio de Janeiro, A Columna, que tinha por objetivo, entre outros, incentivar a formação de
uma comunidade organizada, abordava-se a questão dos traficantes e prostitutas como um
desafio a ser enfrentado pela comunidade de imigrantes.
Álvaro de Castilho, redator do periódico e amigo de David José Perez, em um artigo
sob o título Judeus imigrantes escrevia:
“Somos, porém, chegados a um período de tal intensidade no deslocamento
dessas grandes massas daquele para este continente, e mesmo de um para outros países
americanos, que cada uma destas novas nações cuidou de estabelecer princípios especiais
de polícia para o fim precisamente de se garantir, como uma espécie de profilaxia social,
contra a penetração de certos elementos menos convenientes ao desenvolvimento do povo,
segundo as linhas previamente traçadas pela administração pública nos seus programas”.
Mais adiante ele diria:
553
Idische Folkstzeitung, 30/12/1927, número 4.
554
Idische Folkstzeitung, 27/12/1927, número 3.
555
Brasilianer Idische Presse, 30/12/1927, número 259. Assinavam a declaração todos os atores da trupe:
Viera Kanievska, Pesach (Paul) Breitman, Zina Rappel, Max Bren, Tzila Teks, B. Nathan, D. Beiguelman,
Hava Polanska, Jacob Parnes, Nathan Huliak, Miron Serov.
556
Bristow, op. cit. p. 141, citando como fonte O Lupanar, de Ferreira da Rosa, p. 9, e outros.
328
557
A Columna, 04/02/1916. O periódico começou a sair em janeiro daquele ano.
558
A Columna, 05/05/1916.
559
A Columna, 02/06/1916.
329
560
A Columna, 03/11/1916.
330
561
Kol Israel, nº 7, 1º de junho de 1919.
562
Evaristo de Moraes, in Os judeus na História do Brasil, Zwerling, Rio de Janeiro, 1936, pp. 101-113.
331
ilícitos, por assim dizer, a única profissão que lhes permitia o império dos tsares, por sinal
uma das causas da queda do antigo regime moscovita, porquanto as suas comprensões
atiraram os judeus no rol de seus adversários... Alardeavam por esse motivo grande
desprezo pelos israelitas de cheiro caprino do norte da Europa – os ashkenazim mestiçados
com as populações da Rússia oriental, Polônia e Bessarábia. Ainda há pouco, os seus netos
escandalizavam-se quando vinha à baila alguma proeza de “polacos” (e bessarábios),
incriminados no Brasil no tráfico de brancas judias. A tradição dessa superioridade era,
consoante costume israelita, zelosamente conservada por numerosos especialistas em
questões religiosas e anciãs dedicadas à genealogia”.563
Um relatório interessante sobre a situação do tráfico no Rio de Janeiro, escrito
em 14/07/1920 por N. J. Thisch, do Departamento de Comércio e Indústria da Organização
Sionista Mundial em Londres, em base a um depoimento de um judeu residente no Rio,
Salomão Castro, que estava de passagem por aquela cidade, vem confirmar a luta na qual
David José Perez estava envolvido. Castro se reporta ao fato de que “um grupo de
traficantes enviou convites para a abertura do cemitério da Sociedade Beneficente
Israelita, que deveria se dar em 30 de maio de 1916. David Perez, ao se inteirar do fato,
achou necessário comunicar à imprensa que não se tratava da comunidade judaica do Rio,
escrevendo uma longa carta ao A Noite de 2 de novembro daquele ano, na qual procurava
denunciar ao grande público quem eram os seus patrocinadores. Castro, em seu relato, diz
que os traficantes não hesitaram em responder à carta de David Perez, e em 6 de
novembro eles publicavam no Correio da Manhã uma carta sob o título O Cemitério dos
Israelitas, assinada por A. Kauffman, na qual procuravam demonstrar que eram os reais
representantes da comunidade judaica do Rio. O depoente observa que logo após a
abertura desse cemitério os seus patrocinadores fizeram de tudo para ganhar a confiança
de certos círculos judaicos, e devido à oposição existente, colocaram à disposição dos
opositores uma certa parte do terreno àqueles que não quisessem ser enterrados
juntamente com as prostitutas”564.
Não sabemos se alguém da comunidade utilizou-se desse ato de generosidade
dos cáftens. Nos Zichroines (Memórias) de Jacob Schneider encontramos uma versão sobre
a aquisição de terreno para cemitério de parte dos cáftens: “Em 1914 faleceu um jovem
judeu. Não tivemos outro jeito a não ser enterrá-lo em um cemitério católico. Começamos a
procurar um meio de como formar um cemitério judaico. O problema prolongou-se por
vários anos. Quando finalmente encontramos um lugar, o nosso advogado, que também
representava os traficantes de escravas brancas, em vez de passar a escritura em nosso
nome, o fez em nome deles”565. Esta versão é complementada, no mesmo manuscrito de J.
Schneider: “o local era anexo ao cemitério cristão; entretanto, após muito procurar,
encontramos outro lugar”, o que confirma que se tratava do terreno em Inhaúma. Samuel
Malamud parece esclarecer o que teria ocorrido ao dizer que os tmeim também
563
Almeida Prado, J.F., Primeiros povoadores do Brasil, 1500-1530, Bib. Pedagógica
Brasileira, São Paulo, pp. 31-32.
564
O documento se encontra no Central Zionist Archives, Jerusalém, Z4/2350.
565
P. 21 da versão portuguesa do manuscrito em ídiche. Cópia no A.H.J.B.
332
conseguiram das autoridades que seus mortos fossem enterrados naquele mesmo local, o
que levou a comunidade a abandonar o mencionado cemitério566.
Podemos depreender que na atitude deliberada de se apresentarem como
membros da comunidade judaica e seus representantes os cáftens conseguiram que o
terreno em questão caísse em suas mãos. Os cartazes de teatro mencionados anteriormente
confirmam a sua intenção de adquirir o terreno de Inhaúma, já que o problema sob o
aspecto religioso judaico era tanto deles como dos demais imigrantes; seus mortos eram
enterrados nos cemitérios cristãos567.
David José Perez, que teve um papel decisivo na formação de várias
instituições comunitárias, bem como no movimento sionista do Brasil, era a pessoa
indicada para a missão à qual se propôs. 568 Sua cultura e seu domínio da língua portuguesa
o apontava como um líder natural para a difícil empreitada de combater a marginália que
infestava a vida judaica. Na época, o estigma judeu - traficante de escravas brancas estava
profundamente arraigado na opinião pública e a separação do maldito binômio exigia uma
atitude radical. É ilustrativa uma carta que Maurício Mossé publicou no Jornal Moderno,
na Bahia, em 14 de outubro de 1916, e transcrita no A Columna. O autor responde a uma
pessoa que se diz “polaco” e que em 11 de outubro escrevera “que são os perversos judeus
que constituem a maior praga da Polônia”. Mossé dirá:
“Eu não garanto, sr. redator, que entre os judeus nascidos na Polônia algum
ou alguns não haja que se dediquem ao abominável comércio da escravatura branca. Mas,
quando em nosso grêmio aparece algum desses miseráveis, nós somos os primeiros a
enxotá-lo. Ao que se torna cáften nós proibimos a entrada em nossos templos, não lhe
damos sepultura em nossos cemitérios; são publicamente excomungados pelos nossos
rabinos; não são mais reconhecidos como judeus. Desejava que o senhor polaco me”
contasse o que entre eles, filhos da Polônia, se faz quando um seu patrício comete tão
repelente crime 569. O veneno destilado pelo “polaco” mesclava o estigma judeu-traficante.
566
Malamud, S., Recordando a Praça Onze. Kosmos, Rio, 1988, p. 83-4. É inteiramente equivocado e sem
fundamento o que escreve a autora do livro Baile de Máscaras, página 113, que “a idéia da compra de um
cemitério para os ‘puros’ só surge por volta dos anos 20, quando o Cemitério Israelita de Inhaúma, fruto da
compra e não da doação de terreno, estava em pleno funcionamento”. A idéia surge bem antes e a criação da
Sociedade Funerária (Chevra Kadisha) se dá em 1º de março de 1920. O Centro Israelita do Rio de Janeiro,
fundado em 1º de outubro de 1910, tem em seus Estatutos Título I, Org. e fins parágrafo 3º, adquirir um
terreno para servir de cemitério à comunidade israelita, Col. Nachman Falbel. Tudo indica que a versão de
Jacob Schneider dando o ano de 1918 para a aquisição de novo terreno seja verdadeira, uma vez que em 1920
já se realizaram enterros em São João do Meriti. Também aqui, como em outros lugares de seu livro, como
veremos, a autora revela total desconhecimento da história da imigração judaica no Rio de Janeiro e no Brasil.
Na verdade houve outras tentativas bem anteriores de se obter um terreno para criar um cemitério judeu, a
começar da petição que os judeus do Rio fizeram a D.Pedro II, em 1872, conforme nos informa a Folhinha
Laemmert, de 1874, p.227, apud David Gueiros Vieira, Protestantism and the Religious Question in Brazil:
1850-1875, The American University, Washington, 1972, p.118.
567
Nos anos 70, visitando juntamente com os historiadores Egon e Frieda Wolff esses cemitérios,
encontramos sepulturas identificáveis como sendo de tmeim. Wolff, Egon e Frieda, Sepulturas de Israelitas
(São Francisco Xavier), ed. C.E.J., nº 3 SP, 1976; Sepulturas de Israelitas II, ed. C.C.I., Rio de Janeiro, 1983.
568
Sobre David José Pérez e sua atuação na questão dos “tmeim” bem como na formação da
comunidade judaica no Brasil vide Falbel,N., David José Pérez:uma biografia, Garamond, Rio de
Janeiro, 2005.
569
A Columna, 3 de novembro de 1916.
333
O mencionado Salomão Castro, em seu depoimento lembrado acima, relata que nos inícios
da guerra (Primeira Guerra Mundial) uma certa mulher polonesa escreveu uma carta à
imprensa na qual acusava todos os judeus de se ocuparem com o tráfico de escravas
brancas. Perez respondeu a essa acusação, mas logo a seguir mais acusações iguais contra
os judeus foram levantadas pela colônia polonesa. Castro observava que um iletrado de
nome Jacob Kasinsky, presidente da Sociedade Nacional Polonesa, estava à testa do
movimento antijudaico no Brasil, e todos os artigos que apareciam na imprensa, ainda que
assinados sob seu nome, na verdade eram escritos por um polaco que era secretário do
consulado russo no Rio. Ele ainda nos informa que nessa sociedade havia também sócios
judeus até o momento em que os artigos anti-semitas os afastaram da mesma. Desse modo,
podemos entender o esforço de David Perez, justamente na intenção de lançar as bases para
uma organização comunitária em nível nacional num encontro com todos os representantes
das comunidades brasileiras, a fim de criar uma representatividade diferenciada da
associação dos cáftens e prostitutas que confundia a sociedade brasileira a respeito de sua
identidade570.
Uma nova etapa na vida comunitária judaica do Rio e do Brasil inaugurar-se-ia
com a vinda do Dr. Yehuda Vilensky, representante da Organização Sionista Mundial, que
incentivou e criou os primeiros núcleos sionistas no Brasil e permitiu, em 1922, a formação
da Federação Sionista do Brasil, sediada no Rio de Janeiro571.
No mesmo ano, em 15 de novembro de 1922, realizar-se-ia o 1º Congresso
Sionista do Brasil, e uma das resoluções fazia referência ao combate aos “indesejáveis”,
demonstrando que a questão preocupava diretamente o movimento nacionalista como um
todo e que via no saneamento da vida judaica também um objetivo adicional às suas
finalidades políticas572. Dois anos após, o Froien Farein (Associação das Mulheres Judias)
do Rio, fundado em 1916 (de acordo com Jacob Schneider, mas oficialmente em 23 de
dezembro de 1923), publicava no número 54 do Dos Idische Vochenblat um apelo geral
alertando e convocando a comunidade para combatê-los, e nesse momento essa organização
de mulheres, que atuava no campo da ajuda e beneficência aos imigrantes, também se
incumbira de controlar a atividade dos rufiões a fim de evitar que estivessem presentes nos
portos de desembarque de imigrantes para aliciar moças à prostituição, ao mesmo tempo
em que se empenhavam em tirá-las de suas garras se porventura viessem a ser enganadas
por cáftens com promessas de casamento ou de sucesso material na dourada América, como
era usual na época. A atividade das mulheres judias através do Froien Farein foi importante
para a salvação de muitas jovens, que de outra maneira teriam caído na prostituição. Na
verdade, elas estavam ligadas ao Ezrat Nashim ou à Sociedade de Proteção de Mulheres de
570
Falbel, N., O Primeiro Congresso Israelita no Brasil, in Shalom, set. 1981, pp. 20-23 e nessa coletânea. No
Arquivo David José Perez encontramos várias cartas, em tempos diferentes, nas quais ele afirma
enfaticamente que a criação do A Columna foi motivada pela necessidade de limpar o nome da comunidade
dos imigrantes da acusação de tráfico de escravas brancas.
571
Sobre ele v. Falbel N., Yehuda Wilensky e Leib Jaffe e o movimento sionista no Brasil (1921-1923). In
Anais do V Congresso Internacional de Investigadores sobre Judaísmo Latino-Americano, B. A., 1988 e nessa
coletânea.
572
O texto da resolução reza o seguinte: “(...) Ao futuro Comitê Central de socorro aos israelitas da Europa se
ocupar da questão do tráfico de brancas e de cooperar com as autoridades competentes para combater este mal
e também regular a questão do divórcio israelita. V. Falbel, N. Documento inédito: os protocolos do Primeiro
Congresso Sionista no Brasil, em novembro de 1922, in Shalom, nº 195, dezembro 1981, janeiro 1982, pp.
14-24.
334
573
A enunciação da autora do Baile de Máscaras, p. 114, de que “por mais que membros da comunidade
israelita afirmem ter se preocupado em ‘salvar’ as moças, indo aos portos alertá-las, sabe-se que, se esse
trabalho foi feito, seu resultado foi quase nulo” é destituída de qualquer fundamentação documental ou
estatística para ser tão categórica. Também o significado das aspas na palavra “salvar”, colocadas pela autora,
deixa margem a várias interpretações (...) sobre a própria concepção da autora em relação ao problema.
574
Parnes, Ida, Geschichte fun idischen Froien Farein (História da Sociedade Beneficente das Damas
Israelitas do Rio de Janeiro), red. Nelson Vainer, Rio de Janeiro, 1961, pp. 26-7.
575
Sobre ele e sua frutífera atuação no Brasil, vide seu livro autobiográfico, Tziunim ve-Tamrurim, (Marcos e
sinais) Tel-Aviv, 1952.
576
O Brasilianer Idische Presse de 08/07/27, número 211, traz relatório de Raffalovich sobre o encontro
internacional da Ezrat Nashim (Sociedade de Auxílio à Mulher), em Londres, em que estiveram presentes 70
delegados, incluindo o Dr. Halfen, da Argentina.
577
DIV, 16/01/25, número 62.
578
DIV, 05/06/25, número 82.
579
DIV, 12/06/25, número 83.
335
Os fatos nos lembram o que iria acontecer em São Paulo muitos anos mais
tarde, quando a Prefeitura estabeleceu no bairro judeu do Bom Retiro a zona do meretrício,
após tê-la proibido de funcionar no centro, ocorrendo o mesmo, naquele tempo, no Rio.
Podemos aventar a hipótese de que o estigma judeu - traficante de escravas brancas, judeu -
prostituição estaria subjacente na mente das autoridades que decidiram por tais
transferências e localizações.
De toda forma, a preocupação relativa à transferência das prostitutas para o
bairro judeu na cidade do Rio levou a que se convocasse uma reunião do executivo do
Centro Sionista, na qual constava, entre outros assuntos, a “migração da prostituição”, que
deveria ser levada a um encontro especial de representantes das instituições comunitárias
para estabelecer tratativas com o governo sobre a questão.580 Podemos imaginar o quanto
esse assunto angustiava a comunidade, que ao procurar por todos os meios a separação e o
isolamento dos tmeim, era levada por uma resolução administrativa a tolerar sua presença
ao seu lado. Ainda nesses anos se encontrava viva a memória dos acontecimentos aos quais
fizemos referência ao redor do cemitério, que somente a partir de 1920 encontraria uma
solução satisfatória pela aquisição de um terreno sito em São João do Meriti. Após vários
anos seria terminada a sua construção, isto é, em 31 de outubro de 1926, ainda que desde
aquela data – 1920 – já era utilizado para os enterros da comunidade. Para a inauguração,
que contou com a presença de Isaias Raffalovich, o público judaico seria convidado,
fazendo-se a ressalva: “Temos em vista só o elemento que moralmente não se encontra fora
de nossa comunidade”581.
O Centro Sionista expressava, além do mais, uma postura ideológica que o
movimento sionista em geral, e o brasileiro em particular, desde que se criou a Federação
Sionista do Brasil, em 1922, assumiu, no sentido de afirmar-se como uma nova nação
digna, respeitada e reconhecida pelas demais nações do mundo, visando a criação de um
Lar Nacional Judaico na Palestina. Em outras palavras, a questão dos tmeim não se limitava
à vida comunitária, mais do que isso, ela implicava na necessidade da criação de uma auto-
imagem nacional sem manchas morais.
No judaísmo europeu encontrava-se difundida a imagem de que o judaísmo
sul-americano, na Argentina e no Brasil, se ocupava e vivia da prostituição, e na medida
que os visitantes de fora se deparavam com a presença dos tmeim, em grande quantidade
nesses países, criava-se a falsa impressão de que os rumores difundidos na Europa desde o
final do século XIX eram verdadeiros, ou seja, que esse judaísmo era composto de
traficantes e prostitutas.
Entrevistas de visitantes ilustres como o do já lembrado Peretz Hirschbein, que
esteve em São Paulo e no Rio em 1914, e ao voltar ao Brasil pela segunda vez, em agosto
de 1925,582 para proferir conferências em várias comunidades brasileiras, tocara nos
sentimentos desse judaísmo, deixando grande mágoa devido a uma declaração infeliz feita
ao Di Idische Emigratzie, órgão do HIAS-Emigdirekt de Berlim.583 O Idische Folkstzeitung
publicou um artigo com o título Peretz Hirschbein’s gut vort (A “boa palavra” de P.
580
DIV, 27/07/25, número 89.
581
DIV, 29/10/26, número 155.
582
DIV, 29/05/25, número 81; 19/06/25 número 84; 26/06/25 número 85; 02/07/25 número 86; 10/07/25
número 87; 17/07/25 número 88; 24/07/25 número 89.
583
Idische Folkstzeitung, 27/01/1928 nº 12.
336
Hirschbein), que reproduzia a entrevista do dramaturgo na qual afirmava que “no Rio, às
vésperas da Primeira Guerra Mundial, havia 1.700 almas, a maioria era de solteiros, poucas
famílias, em sua maioria de clientelchikes (mascates). Alguns poucos eram ricos, com lojas
de móveis. Mas o grande mal, como em toda a América do Sul, é a prostituição. Naquela
época havia cerca de 5.000 prostitutas judias no Rio, mas elas ficaram isoladas da nova
imigração e têm um cemitério próprio, onde sobre as lápides estão inscritos os maiores
elogios. Na época, a população judaica do Rio não tinha um cemitério próprio. Em São
Paulo, na época, não havia mais de 300 almas, mas eram gente de família. Na minha
segunda visita ao Brasil, em junho de 1925, a situação já era outra, e no Rio já havia cerca
de 5.000 almas, e hoje existem duas bibliotecas (I.L. Peretz e Scholem Aleichem) e
trabalhadores judeus. No que se refere ao tráfico de escravas brancas, ele continua e se
encontra espalhado nas ruas onde habitam os judeus, e com isso a comunidade sofre muito,
e por isso ela procura ser a maioria em relação aos tmeim, e luta para serem vistos como
‘judeus’, e não como ‘russos’, como eram identificados os tmeim. E somente com uma
imigração, que o Brasil pode absorver, se possibilitará que os tmeim se tornem uma
minoria, até que desapareçam”. O redator do periódico não poupou críticas à entrevista de
P. Hirschbein por denegrir a imagem da comunidade judio-brasileira e exagerar, como de
fato parece ter exagerado, sobre o peso numérico dos tmeim na cidade do Rio. De resto, a
entrevista revela em boa parte o estereótipo sobre o judaísmo brasileiro e argentino, aos
olhos desses visitantes.
Em seu livro “Fun vaite lender :Argentine, B razil, Yuni, November, 1914”
Hirschbein ao falar de uma imigração do ano 1890-na verdade ocorreu em 1891- retrata o
destino de várias famílias que caíram nas mãos dos traficantes de escravas brancas. No
mesmo livro ele se refere ao cemitério geral onde se encontram enterradas jovens prostituas
vítimas dos traficantes que morreram prematuramente. Em um capitulo narra sua presença
em Belém do Pará após seu navio ser capturado pelos alemães e nos surpreende ao narrar
seu encontro com os sefaraditas marroquinos que compõem a comunidade local e estão
imbuídos da convicção generalizada na sociedade brasileira de que os “russos”, isto é,
judeus asquenazitas da Europa oriental, se ocupam maiormente com o trafico de escravas
brancas e por isso deve-se estar deles afastados.584
Peretz Hirschbein, autor da peça Miriam, que tratava do tema, tinha certamente
uma sensibilidade maior em relação ao problema, e ao visitar em 1925 o Brasil, ele
publicaria no Dos Idische Vochenblat, sob o título Brasil, um retrato sobre o que vira na
zona de prostituição do Rio: “(...) Tarde, após a meia-noite, nas ruas judaicas. Casa ao lado
de casa. Porta perto da porta. Corredor junto a corredor. Corredores iluminados. Cinco,
seis, sete judias em cada corredor. Com a enlameada nudez elas estão sentadas sob a luz
berrante. Como moscas ao redor de monturos de lixo, homens as rodeiam com a luxúria
estampada em seus rostos. Ouve-se em espanhol, ídiche, alemão: venha comigo, venha
comigo (...) Como chegou ao nosso povo esta peste? Que ventos trouxeram esta sujeira?
(...)”585. Hirschbein escrevia, como outros, dolorido e confuso com a existência chocante do
fenômeno pela sua notada dimensão no Rio e em Buenos Aires, onde também estivera.
Algo semelhante, muito próximo ao tempo da entrevista que P. Hirschbein dera no
584
Hirschbein,P., Fun vaite lender:Argentine ,Brazil, Yuni,November,1914, N.Y., 1916, reed. Book
Renaissance, N.Y., 2012, pp.177-8; 252-255.
585
DIV, 24/02/1926, número 120. Peretz Hirschbein já não se encontrava mais no país
337
mencionado periódico, ocorreria com Jacob Zerubavel, o famoso líder do Linke Poalei Zion
(Partido Obreiro Judaico, de esquerda), que também tivera a oportunidade de visitar o
Brasil, em nome do Zicho (organização central da rede escolar judaica de língua ídiche na
Polônia). O periódico Idische Folkstzeitung, do Rio,586 referiu-se a uma entrevista de
Zerubavel na qual acusava os judeus da América do Sul de traficar com escravas brancas, e
o redator do periódico não poupou o líder socialista pela generalização, acusando-o em dois
artigos, Zerubavels nekome (A vingança de Zerubavel) e Zerubavel un froien-hendler
(Zerubavel e os traficantes de escravas brancas), dizendo que suas afirmações decorriam do
mau desempenho em sua missão no Brasil. O autor dos artigos, Aron Bergman, por outro
lado, era um antigo desafeto – ainda na Polônia – do líder poalei-sionista e aproveitou-se da
oportunidade para atacá-lo pessoalmente.
A questão dos tmeim encontrava-se agora nas páginas do jornal judaico mais
influente da comunidade do Rio de Janeiro, o Idische Folkstzeitung, fundado em 20 de
dezembro de 1927, que reunia uma plêiade de ativistas sociais no nível de Eduardo
Horowitz, Jacob Schneider, Salomão Gorenstein, e tinha como redatores Shabetai
Karakuchansky, o escritor Menashe Halperin e o combativo e culto Aron Bergaman. Em
seus primeiros meses de existência o periódico colocava novamente a questão como um
problema que desafiava a comunidade. O artigo Der kampf mitn rufianizm (A luta contra o
rufianismo),587 escrito pela redação, dizia que “no Rio existem rufiões em quantidade, que
pertencem a outros países e são importados588, e em parte são daqui mesmo, o que não é
novidade. Assim como não é novidade que para a justiça eles não existem (...) e a suspeita
de que a polícia é excessivamente tolerante para com eles (...) quem sabe com a imprensa
não perdendo a oportunidade para atacá-los poderão ser desmascarados (...) é de se crer que
a atual atenção da metrópole em melhorar sua aparência possa varrer daqui esse elemento
degenerado (...)”.
O número de abril589 do mesmo ano trazia a informação de que dois traficantes
de escravas brancas foram presos na Polônia: “Noach Miteloch, com a ajuda de sua esposa,
trazia da província para Varsóvia moças, que após serem entregues para a polícia, eram
prostituídas. As mais bonitas eram vendidas aos traficantes, que as levavam ao Brasil e à
Argentina, assim como aos portos franceses e alemães e à América do Norte”. Cerca de um
mês após590, sob o título Segredos do tráfico de mulheres perante o tribunal de Varsóvia, o
jornal tratava de um traficante que esteve no Rio, Haim Silberstein, que se casou com uma
moça em Paris, de nome Perl Krochmal, após sair de Varsóvia em 1919, e logo após o
casamento forçou-a a se entregar à prostituição, levando-a a Buenos Aires e vendendo-a a
um prostíbulo. Voltou a Varsóvia para buscar mais “mercadoria”. Seu comparsa era Isac
Napoleon, de Buenos Aires, e em carta ele descreveu a mercadoria que desejava. Procurou-
se saber onde estava Perl Krochmal e soube-se que era prostituta no Café Internacional de
Buenos Aires. Ele foi condenado a três anos de prisão. O Idische Folkstzeitung engajava-se
586
Idische Folkstzeitung, 06/01/1928, número 6.
587
Idische Folkstzeitung, 07/02/1928, número 15.
588
Provavelmente refere-se à Argentina, que nesse ano estava em especial perseguindo com rigor traficantes
e cáftens. Logo mais desencadear-se-ia, em 1930, o grande combate ao rufianismo pelo comissário Júlio
Alsogaray, provocado pelo “conhecido affaire” Raquel Liberman.
589
Idische Folkstzeitung, 10/04/1928, número 33.
590
Idiche Folkstzeitung, 08/05/1928, número 41.
338
591
Unzer Leben, 27/12/1927.
592
V.Raizman, I., A fertl yohrhundert idische presse in Brazil, Safed, 1969, pp. 90-91; sobre Kichinevsky vide
Falbel, N., O mascate Adolfo, in Shalom, 275, setembro de 1989, e também nessa coletânea.
593
A descrição é próxima dos memorialistas que escreveram a respeito e do que se encontra na obra de Leib
Malach, “Don Domingos Kreitzveg”, Vilna, 1930, havendo edição mais recente.
594
DIV 26/09/1924, número 46.
339
judaica essa horrenda ocupação sua vida no país seria amarga e se sentiriam moralmente e
espiritualmente rebaixados, e seriam vistos por todos como uma mancha, uma peste para o
povo argentino (...) !"
Os testemunhos desses visitantes são unanimes em mostrar que a luta encetada
contra os traficantes e a prostituição judaica deixou uma lembrança viva na memória da
imigração, ao mesmo tempo em que são uníssonos em afirmar que saíram vitoriosos pela
decisão de afastá-los de seu convívio comunitário: "eles (os judeus da Argentina) contam
sobre os anátemas (herem) que foram proclamados sobre os traficantes; sobre as lutas
corporais que travaram contra eles nos teatros, nas reuniões e em geral na vida comunitária
(...)”.
"(...) Traficantes que em parte vivem ainda hoje deixaram há muito sua
ocupação, mas eles não podem encontrar lugar na vida judaica, pois são considerados
impuros e indesejáveis. Hoje esta mancha da vida judaica é uma coisa do passado."
Passado o período crucial dessa luta, que durou mais de três décadas,
compreendendo os anos 10, 20 e 30, a comunidade judaico-brasileira podia identificar-se
abertamente, sem esconder sua personalidade religioso- nacional perante a sociedade mais
ampla e sem ser confundida com seu elemento criminoso e marginal.
Assim mesmo, as feridas não estavam de todo cicatrizadas, pois quando no
Primeiro Congresso Mundial de Cultura Judaica realizado em Paris, em 17/21 de setembro
de 1937, o delegado brasileiro M. Kopelman relatou sobre o Brasil, disse o seguinte: “Não
é para ninguém um segredo quem foi a maioria dos primeiros imigrantes. Eram traficantes
de mulheres, prostitutas, arrombadores, falsificadores de dinheiro. Eles foram pioneiros da
multidão de imigrantes, que, como veremos adiante, adquiriu mais tarde uma tendência
bem diversa. Porém, além desse elemento, se encontravam entre os primeiros imigrantes
também gente honesta. Eram judeus do sul da Rússia e Bessarábia, foragidos dos pogroms
do regime czarista”.596 Kopelman seria duramente criticado na imprensa judaica brasileira
por transmitir uma imagem deturpada da comunidade judaica no Brasil, o que não deixava
de ser verdade.597
O pesadelo que pairou sobre a comunidade dos imigrantes, após várias
décadas, passara a ser uma lembrança de memorialistas daquela época. Outros expressaram
o que se passara em suas almas e seus sentimentos pessoais em obras literárias, como o fez
Isaac Raizman, que escreveu Lebens in Shturm (Vidas tempestuosas)598, ou Jacob Gevertz
no seu pequeno conto Unzer onhoib (Nosso começo),599 que despejava sua dor e seus
sentimentos provocados pelas vidas trágicas das vítimas dos traficantes e cáftens.
Já o primeiro escritor da língua ídiche no Brasil, Adolfo Kischinevsky, autor do
Neie Heimen60068 (Novos lares), abordava a questão sob um ângulo diferente no seu conto
Zei leben besholem (Eles vivem em paz). Ele retrata uma ex-prostituta judia, Serke, que
596
Erschter Alveltlecher Idischer Kultur-Kongres, ed. Paris-London-Warsovia, 1937, p. 52.
597
Vide o artigo de José Nadelman, no San Pauler Idiche Tzeitung, de 5 de janeiro de 1938, sob o título “Di
Kultur Konferenz”.
598
Meassef Israel, Tel-Aviv, 1965. Uma crítica ao livro e seu autor, acusando-o de enlamear o “ishuv"
brasileiro, foi publicada no Idische Tzeitung, Rio, 29/10/1965, e reproduzido no livro do mesmo I. Raizman,
Idische sheferishkeit in lender fun portugalischen loshen (A criatividade judaica nos países de língua
portuguesa), Safed, 1975, pp.35.
599
Publicado no periódico de São Paulo Velt-Spiegel (Espelho do Mundo), nº 5, outubro, 1939, p. 10.
600
Casa Editora Yung Brazil, Nilópolis, Rio de Janeiro, 1932.
342
após esposar um jovem na Europa foi levada à Argentina, para um bordel. Com muita
dificuldade e sofrimento, ela conseguira escapar de suas mãos para chegar ao Brasil e viver
em uma “janela". Aqui ela se sentiu mais livre, gente, e não precisava prestar contas a
ninguém. Nem sequer vivia confinada em uma casa fechada como em Buenos Aires. Aqui
ela encontrou um "amplo campo para trabalhar – uma rua na qual iam e vinham muitas
pessoas e centenas de mulheres se encontravam sentadas defronte à janela falando umas
com as outras e perguntando o que os pais, irmãs e irmãos estavam escrevendo. E se
quisesse ir passear, poder-se-ia encontrar no caminho um cliente decente. Ela conheceu,
nesses tempos melhores, o seu “velhinho", um brasileiro culto que abandonou sua família
para viver com ela. Ele não era um crente, mas em um momento em que ficou adoentado
pediu a Serke para comprar um quadro de Nossa Senhora da Conceição, à qual havia feito
uma promessa, para pendurá-la sobre sua cama com uma "luz eterna". Ele acabaria por
ficar curado, e desse momento em diante Serke lembrou-se de seu Deus, esquecido há
muito tempo no redemoinho de sua vida passada. E ela se aproximou de seu Deus desde
que o "velhinho" aproximou-se do dele, servindo-o como "uma verdadeira filha judia". E ao
chegar a sexta-feira, véspera de sábado, ela se sentia bem em limpar seus candelabros, que
adquirira para abençoar as velas, do mesmo modo que limpava a "luz eterna" que pendia
sob o quadro de Nossa Senhora da Conceição. E as velas de sábado com a "luz eterna" sob
a Nossa Senhora conviviam em paz (...)”
O autor termina lembrando o que Serke sempre diz ao seu "velhinho": "Você
tem o seu Deus e eu o meu".
Um notável professor, dos primeiros educadores da rede escolar judaica de São
Paulo, Josef Schoichet, deixou em manuscrito uma obra, parcialmente publicada em
capítulos sob o título “Menachem Mendel in Brazil” (Menachem Mendel no Brasil), que
passa a ser um retrato da vida do imigrante judeu, mascate, com seus sonhos de sucesso,
sua ambição em trazer a esposa ao paraíso tropical e viverem felizes para sempre. O autor
adota a forma epistolar e intimista que nos encanta por ser uma redação feita com o ídiche
popular, habilmente composto com as expressões do cotidiano e os hebraísmos
impregnados de graça e humor que nos transportam ao mundo do schtetl da Europa
Oriental. O pouco talento comercial do mascate improvisado, que vende gravatas e caminha
de fracasso a fracasso em sua trajetória de imigrante, encontrará sua redenção num
momento fortuito com uma prostituta judia, que o descobre e o emprega como escrevente,
sua e de suas amigas, das cartas às famílias que ficaram para trás, até que a duras penas
venha se descobrir em outra ocupação.601 Schoichet imitava a deliciosa obra do clássico
escritor da literatura ídiche, Sholem Aleichem, conhecido por sua fino humor e ironia
“Menachem Mendel em Yehupetz ,escreve para a sua esposa Sheine-Sheindel, em
Kasrilevke”.
Ele descreverá com ironia à sua mulher como vivem essas “santas mulheres”
(nashim tzadkaniot), que não possuem marido, não são divorciadas e vivem solitárias, e
ninguém quer ter com elas qualquer relacionamento, não as deixando entrar nem na
sinagoga, nem no teatro, e até mesmo, após a morte, não encontram nenhum vizinho. Mas
elas não se importam, pois têm o seu próprio modo de viver, possuem seus “lugares
601
Menachem Mendel in Brazil, brif-oistoisch zwischen Menachem Mendel fun Brazil mit zain froi Sheine
Sheindel fun Kasrilevke (correspondência entre Menachem Mendel no Brasil e sua esposa Sheine de
Kasrilevke), escrito por “Idele” ( pseudônimo usado por Josef Schoichet), em 1936-1940, São Paulo, Brasil
(manuscrito em ídiche), caderno 2, capítulo “Seder Nashim.”
343
sagrados”, seu cemitério com seus belos túmulos. “(...) nós as chamamos ‘pássaros
impuros’ e elas nos chamam de ioldn( simplórios, “caras” decentes ), . Piedosas são com
as almas (...) assim quando chega o Iom Kipur (Dia do Perdão), elas permanecem na
sinagoga o dia todo, jejuam e batem no peito ‘pelo pecado, que pecamos perante Ti (...)”
Em determinado dia, ele será chamado para ler e responder uma carta ao pai de sua
conhecida, na qual se, ingenuamente, sugere que a filha mais jovem, que deverá logo
completar 18 anos, receba uma passagem de sua irmã generosa para vir ao Brasil, pois sabe
que ali ela poderá ganhar bem com o seu trabalho de “costureira”, tal qual ela o faz. O autor
descreverá seu dilema de responder a carta e ser conivente com o inferno, e para que isso
não aconteça, ele usará de um expediente que lhe ocorrera naquele momento de angústia.
Então, ele decidiu-se por escrever ao pai da prostituta a verdade, e não o que ela lhe
ditava...
Mais recentemente o escritor Meier Kucinski, em sua coletânea de contos
Nusach Brazil (Ao modo do Brasil), ed. I. L. Peretz, Tel-Aviv, 1963, no conto Schvester
(Irmãs), descreveria o drama de duas jovens prostituídas na Europa seguindo seu malfadado
destino, uma até a África e outra até o Brasil, até se recuperarem pela sorte e encontrarem
uma vida normal e honrada. Porém, num encontro tardio, às vésperas da morte daquela que
vive no Brasil, pleno de confidências em relação ao passado e trajetórias de suas vidas,
desenrola-se a tragédia de uma ex-prostituta judia que quer ser enterrada no "cemitério
israelita", mas sua condição de banida pela comunidade permite que ela encontre seu
descanso final somente no cemitério "deles", dos tmeim. Meier Kutchinski recorreu a um
topos literário que a realidade do judaísmo brasileiro ofereceu ao seu inegável talento de
escritor impregnado de compaixão.
Compaixão inevitável por aqueles seres arrancados de seus sonhos e atirados
na brutal realidade em que viveram, a ponto de "desejarem que suas almas não sejam mais
encarnadas", como nos revelam certas inscrições nas lápides de algumas dessas criaturas 602.
Foram vidas ceifadas antes do tempo, como a da solitária Leonora, cuja sepultura encontra-
602
Wolff, E. e Frieda, Sepulturas de Israelitas II, ed. C.C.I., Rio, 1983, pp. 120, 124, 126.
344
se no cemitério São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro, identificada por uma pequena e
desgastada lápide cinzenta, tão cinzenta o quanto foi sua vida, e na qual lemos:
"Aqui jaz Leonora
nasceu na Rússia
no anno de 1860
faleceu em 3 de abril de 1885” 603
Atrás das máscaras usadas nos bailes das "moças alegres" escondia-se a
tristeza, o espanto e o horror que seus rostos coloridos aparentemente cobriam.
Sob o aspecto histórico, somente nos últimos anos pesquisas sérias e
conscienciosas começaram a lançar luz sobre a questão, a começar de Os Prazeres da Noite
– prostituição e códigos da sexualidade feminina, publicado em São Paulo (1890-1930), de
Margareth Rago0604, autora também de um artigo importante sobre o assunto, mencionado
anteriormente, e a obra mais abrangente do historiador americano Jeffrey Lesser, O Brasil e
a Questão Judaica605, que também faz referência ao tema.
A última pesquisa publicada sobre a temática, e que foi promovida amplamente
na mídia pela própria autora, Beatriz Kushnir, bem antes de terminá-la e defendê-la como
tese universitária de mestrado, foi publicada com o título Baile de Máscaras. Mulheres
judias e prostitutas. As polacas e suas associações de Ajuda Mútua.606
Ao contrário dos estudos antes mencionados, este foi apresentado com
sensacionalismo endossado pela imprensa, na qual certos jornalistas procuraram
"descobrir", juntamente com a autora, um "novo" tema para revelá-lo ao grande público. Na
verdade, a tese desfigurava e mascarava a questão devido à ignorância da autora sobre a
história dos judeus e da imigração judaica no Brasil e suas fontes, adicionado ao erro
metodológico de julgar o passado com o olhar e os valores do presente. A ausência da
língua ídiche, importante para uma leitura das fontes da época, e a adoção de uma postura
"militante" desbragada, que enfatizava sua parcialidade barulhenta, pouco se adequava para
tratar do tema, que se baseou fundamentalmente nas atas e documentos das sociedades dos
tmeim.
Desse modo, o resultado, sob o aspecto da compreensão da relação dos tmeim e
a comunidade judaica no seu próprio contexto histórico, somente poderia redundar num
desastre científico, ainda que nada o impeça de frutificar como novela, peça teatral, vídeo
ou coisa parecida.
A leitura de seu livro aponta para uma ética às avessas, na qual a comunidade
judaica aparece como o vilão da história e os traficantes, "cáftens" e prostitutas como suas
vítimas, sem distinguir os criminosos das prostitutas. Por outro lado, o seu livro leva a
concluir que os cáftens e as prostitutas organizaram-se associativamente a partir de 1906,
como um ato pioneiro dentro do processo imigratório de judeus para o Brasil, e isso devido
ao fato dos mesmos serem vistos como pessoas abjetas e condenadas à dor e à exclusão
social.607
603
Wolff, E. e Frieda, Sepulturas de Israelitas, USP-CFJ, SP, 1976, p. 151.
604 Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991.
605 Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1995.
606
Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
607
Baile de Máscaras, p. 112.
345
608
Wolff, Egon e Frieda, Judeus no Brasil Imperial, USP-CEJ 1975 e coletânea de artigos e conferências de
Egon, Wolff, org. Nachman Falbel, I. H. G. B., Rio de Janeiro, 1991.
346
611
Os Prazeres da Noite, p. 300.
348
Baile de Máscaras, que lembra insistentemente a “religiosidade judia” das prostitutas, como
se fosse um passaporte para a integração da marginália ao seu redor na comunidade,
desconhecendo os princípios éticos da religião judaica e a halachá ( o conjunto da
legislação religiosa judaica) em relação à prostituição, como vimos antes, não se deu conta
da gravidade da questão nas décadas em que se estruturava a própria vida institucional dos
imigrantes. O ser humano, em geral, incluindo cáftens e prostitutas, assim como qualquer
transgressor ou criminoso, pode ser religioso ou não, independentemente de sua maneira de
viver e da coerência ética exigida teoricamente pela religião, seja ela judaica ou outra
qualquer. Bristow, em seu estudo, lembra a religiosidade dos cáftens e prostitutas judias em
Buenos Aires, assim como em outros lugares, na qual o lendário Luís Migdal, que teria
dado o nome à organização Zvi Migdal, que tinha naquela cidade um clube luxuoso e uma
sinagoga, possuía “a convicção de que a religião mantinha as mulheres felizes” 612. Do
mesmo modo que a sociedade organizada e juridicamente orientada por um código de leis
deve ampará-la e preservá-la dos que atentam contra sua existência e não aceita a
criminalidade, assim a comunidade dos imigrantes que procuraram integrar-se numa vida
normal na sociedade brasileira lutava para preservar a si mesma dos danos morais que os
tmeim lhe causavam.
A ótica da autora do Baile de Máscaras surpreende mais ainda quando formula
a questão como se resumindo “numa relação sempre de conflito entre ‘puros e impuros’, e
dado o constrangimento que ‘esses elementos’ poderiam causar, as alternativas de uma
possível solução da questão do tráfico e da existência de mulheres judias prostitutas são
abandonadas frente à noção de que o melhor a fazer era impor uma cruzada que separasse
os lados”613. É o caso de se perguntar se havia outras alternativas, além das legais, como
ocorreu na Argentina, e em outros lugares, senão a do isolamento, a fim de evitar que
submergissem no meio da comunidade para aparentar honradez ou descendência de
cidadãos normais e esconder a sua criminalidade, como de fato tentaram fazê-lo. A cruzada
anti-tráfico de escravas brancas era internacional, e o combate a esse tráfico deu-se na
Europa e estendeu-se a todos os continentes ainda quando a imigração judaica asquenazita
na América do Sul estava em seus inícios.
Poder-se ia depreender da postura da autora que a outra alternativa seria o
acolhimento e a integração dos rufiões e prostitutas na comunidade?
Mesmo que a autora se identifique e crie uma empatia com as vítimas614, isto é,
as prostitutas, é difícil de crer que alguém, de sã consciência, tenha os mesmos sentimentos
em relação à traficantes e cáftens.
O seu entusiasmo pelo “grupo marginal” dos cáftens e prostitutas judias levou-
a a focalizar a sua auto-imagem, como ela mesma o diz, através da documentação de suas
sociedades e de entrevistas orais, o que levou-a a construir com o exame “interior”, isto é,
dos livros de atas e estatutos – como lembramos antes –, o mundo da prostituição judaica,
que se diferencia de outras por ser “judaica”, o que não dá, como já dissemos, nenhum
612
Bristow, op. cit., p. 140.
613
op. cit., p. 89.
614
Em suas entrevistas, de teor sensacionalista que beira a vulgaridade, e em sua tese, ela parte de um
questionamento que é a “essência” de sua pesquisa: como um grupo marginalizado tanto pelos legisladores da
cidade (sic) como pela comunidade judaica criou redes de solidariedade e sociabilidade que lhe definiu uma
identidade social e uma auto-imagem positivas? (Resenha Cultural, Kesher, 2 de maio de 1997). A resposta
que a autora procurou dar absteve-se inteiramente do contexto histórico mais amplo no qual o fenômeno deve
ser estudado e compreendido
349
crédito moral à criminalidade, seja ela de quem for. Cáftens e traficantes ou outros
criminosos, assim como suas vítimas, as prostitutas, continuaram sendo judeus, pois não
poderiam deixar de ser. Uma identidade nacional religiosa não é uma escolha, é uma
herança, ainda que se possa não cultivá-la. Por outro lado, na mesma entrevista à Resenha
Judaica, a autora, com seu enfoque “interno”, escamoteou a verdadeira problemática, isto é,
a da afirmação da identidade judaica da imigração, que não aceitava o mundo dos rufiões,
cáftens e prostitutas, que, como já lembramos, procuravam mostrar-se deliberadamente
para a sociedade mais ampla como seus membros e mesmo, e em dado momento, mesmo
seus representantes. Soa tola e infantil sua afirmação, em sua citada entrevista, procurando
justificar a publicação de nomes e sobrenomes: “Diferentemente do que o senso comum
dita, essas pessoas parecem estar em paz com suas histórias e me deram declarações
lindíssimas (g.n.). Então, por que esconder as polacas? Talvez porque, para uma parcela da
comunidade judaica, nossa identidade é um dado (?), e nesse somos os escolhidos de
Deus(sic) (g.n.). Portanto, acham que não pode haver entre nós pessoas que tenham vivido
de ocupações moralmente condenáveis” (sic) .
Não precisamos fazer comentários adicionais, pois o nebuloso argumento
revela que a autora pouco sabe sobre judaísmo e o significado de sua identidade religiosa-
nacional. Por outro lado, revela a falta de percepção do problema na sua dimensão
histórica, assim como procuramos elucidar durante este trabalho.
Atrás dessa concepção – se podemos falar aqui de alguma concepção –, em que
a questão dos tmeim é travestida sob a fórmula primária da luta entre “puros e impuros",
encontra-se um outro problema metodológico, isto é, de olhar o passado com os olhos do
presente, incluindo juízos de valor que mudaram com o passar do tempo e que um
historiador deve evitar ao tratar qualquer tema histórico. O distanciamento, a entfremdung,
serve para evitar o passionalismo e a tendência para tomada de posições sine ira et studio.
E esse equilíbrio falta à autora, tanto na tese quanto nas múltiplas entrevistas
dadas na mídia.
Ainda devemos reparar que a questão das "polacas" acabou sendo apresentada
nessas entrevistas como uma "descoberta" da própria autora, que inventou um “complô do
silêncio” de parte da comunidade para não se falar sobre o assunto, e para o qual ela se
apresentou como o cavaleiro intrépido e corajoso disposto a expor ao grande público o
profundo "segredo" mantido durante todo esse tempo. Na verdade, nunca houve qualquer
segredo de parte da comunidade judaica do Brasil ou da Argentina, ou de outro país
qualquer, sobre o tráfico, a prostituição e a presença de indesejáveis na comunidade dos
imigrantes judeus. Como vimos, a postura da comunidade judio-brasileira- assim como o
das entidades internacionais desde o início do século passado- ao dar seus primeiros passos
de sua estruturação institucional foi de luta aberta e pública, na imprensa da época, geral e
judaica, e também no teatro ídiche, que servia de veículo para despertar as consciências
sobre a gravidade do problema. Daí o grande número de peças e obras literárias sobre o
assunto, em especial em ídiche, língua do cotidiano de milhões de judeus antes da
inimáginavel tragédia do Holocausto que destruiu as raízes que a alimentava e sua cultura.
A autora investiu e irrompeu através de uma porta já há muito tempo aberta, alimentando
ilusória pretensão de ineditismo. Pelo fato de não ter o preparo necessário para seu
“trabalho histórico”, desconhecer as fontes literarias em ídiche referente ao tema não soube
captar a questão no contexto da época na qual se apresentou, partindo levianamente de um
pressuposto estapafurdio sem qualquer fundamento na realidade histórica. Mesmo assim,
muitos anos após, ainda em 24 de março de 1960, a revista Aonde Vamos?, um dos orgãos
350
de imprensa judaica mais lidos e difundidos entre os anos de 1943 e 1978, com uma edição
de milhares de exemplares que chegavam aos lares das comunidades em todo território
nacional, publicava um artigo intitulado “Cecilia Adler” referente ao falecimento, e em
memória de uma notável ativista feminina do Rio de Janeiro, que presidiu durante muitos
anos a Organização Feminina “Froien Farein” daquela cidade. Assim podemos ler nesse
artigo, difundido em bom e claro vernáculo, para o grande público brasileiro, sobre o
pseudo “segredo” de nossa autora o que se segue: “Cecilia Adler desembarcou aqui, há
cerca de quarenta anos, porcedente de Varsóvia, descendente de uma família de distinção,
prestígio e tradição na capital polonesa e, na flor dos seus vinte e poucos anos, vislumbrou
um terrível e asqueroso drama que se desenvolvia nas fronteiras do nóvel yishuv
(comunidade) que se estava formando neste país. Enquanto os pioneiros aqui lutavam com
afinco para construir uma nova e digna existência e uma comunidade respeitavel , um
punhado de renegados judeus se envolvia num sinistro tráfico de brancas entre os portos da
América do Sul e os da Europa. A comunidade israelita os havia isolado , excomungado e
afastado de todo e qualquer contato. De modo que esses elementos ,escorraçados pelos
judeus que os conheciam e sabiam de sua criminosa atividade, buscavam companhia
principalmente entre os imigrantes recém-chegados, inexperientes e toalmente ignorantes
da identidade desses dejetos da humanidade. E assim , os imigrantes recém-chegados ao
Brasil, à Argentina e a outros países do continente americano tinham que enfrentar uma
faceta de tragédia toalmente desconhecida da maioria dos yishuvim (comunidades) judeus
do resto do mundo que não podiam sequer imaginar que houvesse judeus participando
desse ominoso comércio. O yishuv local- especialmente as senhoras que para isso
formaram o Froien Farein- resolveu que não era suficiente isolar-se desses asquerosos
elementos. Era necessário evitar que eles ampliassem o raio de sua sinistra ação e
aumentasse o número de suas vítimas. Entre os ativistas do Froien Farein-Amparo e
Proteção às Senhoras e Moças Judias- se encontrava a jovem senhora Cecilia Adler. Graças
a senhoras como ela e à tempera do que havia então de melhor entre nós no yishuv , a
vibora foi esmagada. Todas as pessoas , por mais ricas que fossem , desde que mantivessem
, relação com qualquer indivíduo ligado ao tráfico execrável, foram condenadas ao
isolamento e durante anos esse imperativo de higiene social foi rigorosamente observado.”
Mesmo antes dessa data, em 24 de dezembro de 1959, a mesma revista se referia ao tema,
ao tratar da biografia de outro veterano do judaismo da cidade do Rio de Janeiro, Sholem
Hoineff, falecido naqueles dias: “No início do século, outros judeus aqui viviam , mas
poucos poderiam ser classificados como bons judeus...É que coube ao chamado grupo
yiddish composto de pessoas procedentes de vilarejos da Bessarabia e outros lugares aqui
desempenhar um trabalho de pioneiros na comunidade israelita e atuar como porta-
estandartes da honra judaica. É que, ao lado desses elementos sãos, adolescentes sem
experiência comunal, e dos raros judeus bons de outros grupos, aqui havia-em grande
número- judeus e judias que foram arrastados pelas circunstâncias para a sarjeta. Os
pioneiros do yishuv é que timbraram em marcar uma nítida separação entre eles , e ,depois
de árdua luta, o Brasil compreendeu que os outros, da sarjeta, não representavam a pobre,
incipiente mas honrada comunidade judia.” O “Léxico dos ativistas sociais e culturais da
coletividade israelita do Brasil”, cujo projeto, sob a responsabilidade de Henrique Iussim,
nos anos 50, procurou preservar a memória da velha geração de imigrantes, ainda que,
infelizmente, não tenha sido publicada integralmente, trás as biografias de Esther
Goldenberg e Edi Kaufman, ambas ativistas do Froein Farein do Rio de Janeiro, as quais
testemunham a atuação daquela associação em sua luta contra o tráfico de escravas brancas,
351
assim como já vimos em outro lugar de nosso estudo, ao falarmos dessa associação. Sobre
Edi Kaufman, escreve-se que “contribuiu particularmente para os serviços de proteção da
mulher.Juntamente com Dr. Raffalovich ,salvou muitos emigrantes do sexo feminino de
serem seduzidas e vendidas ao meretrício, fatos que naquela época se produziram com
freqüência.” A leitura das Crônicas introdutórias do “Léxico” das comunidades da Bahia,
São Paulo, Rio de Janeiro, bem como de outras, publicadas como Apêndice neste livro, são
unanimes em lembrar a presença dos “tmeim” no processo da imigração judaica no Brasil,
sem qualquer tentativa de escamotear a realidade que os imigrantes tiveram que enfrentar
para desaloja-los da vida comunitária em suas etapas de estruturação. Em uma publicação
de 1935, sob o título “Di yidn in Brazil” (Os judeus no Brazil), no capítulo que se refere ao
“Comitê das Mulheres Judias no Rio de Janeiro”, constituído em janeiro de 1929, e entre
outras formado com ativistas ligadas à Sociedade Beneficente das Mulheres Israelitas,
oficialmente criada em 1923, cujo embrião já havia se formado em 1916, lemos: “Não é
para ninguém segredo de que daqueles que se ocupam com o tráfico de mulheres, assim
como dentre aqueles que vivem da marginalidade encontra-se uma certa porc entagem de
judeus. A verdade é que para nós isto é uma vergonha, mas isto não é somente uma
vergonha judaica. Seja na Europa ou na América o fato é que somos obrigados a organizar
uma luta aberta contra o tráfico de mulheres assim como o fazem a França, Alemanha,
Polônia, Inglaterra, Turquia, Bélgica e outras nações que tem a obrigatoriedade social de
combater em seus respectivos países o repugnante fenômeno. Em cada país a luta aberta
abrangeu os representantes de todas as nacionalidades. A população judaica na Europa ,e
em especial a da América do Sul, tem consciência de seu grande objetivo: conduzir uma
luta enérgica contra o tráfico de mulheres para eliminar essa sujeira da rua judaica. E nós
podemos dizer que, sob esse aspectotemos muito a fazer. Em 1912 visitou o Brasil ,assim
como outros países sul-americanos, Salomon Kohen, o secretário –geral da Organização
Internacional de Proteção da Mulher (Association for the Protection of Girls and Women),
da qual o nosso Comitê faz parte. A finalidade da visita era tomar contato com todos os
problemas necessários à proteção da mulher. A comunidade judaica do Brasil era, naquele
tempo, muito pequena e pobre. Criar um Comitê de Proteção era tarefa impossível. A
organização de fato começou com a vinda do Dr. Raffalovich, que é o representante da
organização internacional, que tem sua central em Londres. O Comitê foi constituído por
duas instituições: a Sociedade Beneficente das Damas Israelitas e da Sociedade de Ajuda e
Proteção aos Imigrantes. Os objetivos da Organização de Proteção à Mulher são: proteger
moças, mulheres e crianças contra más influências; tirá-los de uma vida de sofrimentos,
degradações, escravização e promover uma luta enérgica contra o tráfico de mulheres.
Esses objetivos são atingidos através de: 1) estar presente nos navios e, se possível, nas
estações ferroviárias para verificar viajantes solitárias e mulheres e moças desprotegidas
resguardando-as de caírem nas mãos dos traficantes;2) através de uma cooperação
internacional para a proteção de jovens e mulheres;3) através da cooperação com
instituições e organizações brasileiras que tem os mesmos objetivos; 4) através da
manutenção de um contato humano amistoso permanente com moças e mulheres
imigrantes;5) ajudando a jovens e mulheres que querem mudar de vida orientando-as para
um modo de viver útil e honroso;6) prover mulheres e moças os meios para poderem
recorrer às leis elaboradas para sua proteção. Até agora nos referimos aos nossos propósitos
e objetivos porém ainda devemos lembar o que conseguimos realizar. Visitamos todos os
navios que entraram nos portos e mantivemos contato com todas as passageiras do sexo
femenino. Desde a criação do Comitê em janeiro de 1929, a nossa secretária visitou 803
352
navios, e entramos em contato com 1025 mulheres, 864 moças e 1409 crianças. Tods esses
imigrantes que desembarcam no Rio e necessitam viajar a outros lugares do país, são
recebidos por nosso Comitê e são abrigados em salas do Hilfs-Ferein (Sociedade de Auxílio
ao Imigrante) encontrando-se sob a nossa proteção até serem enviados aos seus familiares.
Podemos relatar casos de mulheres ou moças que não foram recebidas por seus familiares.
Nesse caso essas imigrantes são recebidas pelo nosso Comitê e se encontram sob a proteção
e cuidado até que se notifique seus familiares e conhecidos. Um grande número de
imigrantes são visitados em suas residências de acordo com os endereços fornecidos por
eles mesmos, ou pela companhia de navegação. Essas visitas tem um grande valor . Já foi
constatado que pessoas inocentes foram tiradas de difícl sitações e puderam voltar a uma
vida normal. Também encontramos imigrantes numa situação penosa. Os familiares ,
conhecidos, que os trouxeram ou chamaram não os aceitam ou não os podem sustentar .tal
situação os impele a abandonar o lugar sem qualquer meio de sustento, trabalho e sem
amigos. Nesse caso são por nós encaminhados para uma ocupação adequada, ou para
aprenderem uma profissão e são protegidos até se tornarem independentes e terem uma
vida decente e produtiva. Também podemos relatar certos casos de passageiras que não
possuíam documentos legais e foram detidas pela polícia que tinha em mente reenviá-las a
Europa. Graças aos nossos esforços elas puderam desembarcar do navio. Cuidadosa
atenção é dada ao acompanhante de uma mulher. Por meio de conversas com os imigrantes
procuramos saber para onde eles viajam , com quem viajam e para onde se dirigem, ficando
claro o que se passa com o mesmo e se devemos tomar certas providências. Muito devemos
ao Comitê Central de Londres que tem o conhecimento e o modus operandi para esse
trabalho, assim como os comitês da Europa continental que controla o embarque dos
passageiros e se necessário nos passam toda informação. Graças ao nosso dedicado trabalho
conseguimos conquistar o reconhecimento do Departamento de Imigração local e das
organizações e autoridades brasileiras. Nossos relatórios apontam a importância e o zelo na
realização desse trabalho. S.R.” 615
A criação e a atuação do Comitê de Proteção à Mulher é também enfatizado em
uma brochura da Sociedade Beneficente Israelita e Amparo aos Imigrantes (afiliada à
organizaçaõ internacional HIAS-ICA-Emigdirect) em seu relatório e balanço geral do ano
1928. 616 A brochura descreve o programa da HIAS-ICA-Emigdirect para a América do Sul
apresentado pelo seu representante no Brasil, o rabino Isaias Raffalovich, em reunião de
diretoria de 31 de dezembro de 1927 e aprovado em reunião de diretoria de 2 de janeiro de
1928. Ali encontramos no item 4 o que se segue: “A proteção das mulheres e moças deve
ser fortificada através de um Comitê local, que passa a ser uma filial da Associação
Internacional de Proteção às Mulheres e Moças de Londres, sendo parte do Comitê Central
de Londres. Necessário se faz um duplo esforço nessa área para atingir resultados maiores
em seus objetivos. O item 2 do relatório se refere expressamente à proteção da mulher:
‘Não nos alongaremos sobre os objetivos e o compromisso de nossa comunidade em
relação ao combate contra o tráfico de mulheres. Ainda não podemos assegurar que
estamos numa desejada situação semelhante a da Sociedade Beneficente (Hilfs-Ferein).
Porém nosso trabalho de supervisão está trazendo reconhecidos resultados. O Hilfs-Ferein
está em permanente contato com o Consulado da Polônia no Rio de Janeiro e estamos
615
“Di yidn in Brazil”, pp. 61-62.
616
Relatório e Baçanço Geral, editado pela “Gazeta Israelita”, Rio de Janeiro, 1929 (em iídiche).
353
617
Relatório e Balanço Geral, p.5.
354
comunidade ordeira e pacifica. Razão pela qual o tema tem chamado tanta atenção,
associado ao modismo historiográfico da história do cotidiano, da sexualidade, de gênero e
temáticas afins, que se traduz em teses universitárias que abordam tais temas sob múltiplos
angulos, e níveis, incluindo-se nessa linha pesquisas sobre minorias perseguidas e grupos
marginais, teses que por vezes se apresentam com uma forte tendência ética e missionária,
impregnadas de empatia, visando a justa reabilitação de perseguidos e excluídos. Porém, tal
postura, passa a ser de todo incompreensível tratando-se de grupos ou associações
criminosos, ainda assim, de uma forma ou outra, entre a dicotomia da rejeição e aceitação,
é preciso lembrar que a função do historiador não seja exatamente a de intervir no objeto de
sua pesquisa, mesmo que nada o impeça de querer fazê-lo como cidadão de uma sociedade
democrática aberta a toda e qualquer causa. A propósito, sob outro aspecto, perguntamo-
nos até onde o historiador tem o direito de intervir na privacidade dos descendentes e
publicar nomes de famílias dos tmeim, sabendo-se que deixaram descendentes, como a
autora do Baile de Máscaras o fez em seu livro, procurando justificar seu ato em nome de
um resgate “histórico” das “polacas”. Uma questão ética que merece uma reflexão
importante e central, tanto quanto a missão de reabilitar grupos ou minorias excluídas e
perseguidas.
Autores que trataram do tema na Argentina, entre eles Victor Mirelman, En
Búsqueda de una Identidad (Ed. Milá, B.A., 1988), cujo título revela a essência da questão
que tratamos, e o notável estudioso da Universidade Hebraica de Jerusalém, Prof. Haim
Avni, Argentina y la Historia de la Imigración Judía, 1810-1950” – (Ed. Univ. Magnes-
AMIA, B.A., 1983), tiveram o devido cuidado e delicadeza, bem como a responsabilidade
moral, de contornar o problema sem prejuízo da verdade e seriedade de suas pesquisas
históricas.
No Brasil, o excelente trabalho de Margareth Rago, Os Prazeres da Noite, já
mencionado antes, também demonstrou a devida maestria e habilidade pessoal ao fazer sua
pesquisa sem afetar sua profundidade no tratamento analítico da questão. Porém, isso não
ocorreu com a autora do Baile de Máscaras, que fez questão de dar, como diz a expressão
popular, "nome aos bois", dando prova cabal de sua pouca sensibilidade humana. Nesse
sentido, devo aproveitar o ensejo para referir-me à agressividade da autora ao receber a
minha negativa pessoal em fornecer-lhe certo documento que envolvia a publicação de
nomes de famílias dos tmeim.
Raivosa e descontrolada, "ameaçou-me" telefonicamente com a divulgação do
“fato” caso não cedesse a ela o tal documento. Na verdade, a autora referiu-se a minha
negativa, sem mencionar meu nome, na nota de rodapé 25, da página 209 de seu livro, na
qual escreve o que se segue:
“Não se pode afirmar com absoluta certeza quantos enterros ocorreram entre
1928/1971 em Chora Menino. O único documento oficial, o Livro de Registro dos enterros
dos sócios da SFRBI, encontra-se em um arquivo privado de uma pessoa que nada teve
com a Sociedade e que, mesmo tendo o título de historiador, parece não estar preocupado
e comprometido com a questão da memória coletiva. Insistindo que o passado é um lugar
de justificativas e perdões, parece crer que esconder e censurar são as melhores formas de
vivenciar uma identidade comum. Assim, aquelas pessoas que em vida se preocuparam
com sua dignidade e com sua morte – ao adquirirem seu cemitério próprio – se encontram
hoje, por causa de tal intransigência e arbitrariedade, em um lugar de indigência. (g.n.)
Também em entrevista à Resenha judaica de 02/05/97 ela repetiu seus ataques
grosseiros e estapafúrdios com argumentação raivosa, a qual transcrevo:
355
618
Em reportagem no O Estado de S. Paulo de 25 de maio de 1997 a autora, que aparece fotografada no
cemitério de Inhaúma, afirma: “Apaixonei-me perdidamente por elas”.
356
619
As Religiões do Rio, ed. Nova Aguilar, Rio, 1976, pp. 169-70.
620
Safed, 1968, pp. 15-17.
357
pessoas que se espalharam pela América do Sul e mancharam o nome dos judeus da Europa
Oriental”.621
Se considerarmos que o seu livro foi publicado em 1952, chegamos à
conclusão de que era uma opinião generalizada que a imigração asquenazita remontava
apenas ao início do século e pouco se sabia da imigração do século XIX. Na verdade,
graças ao trabalho metódico dos pesquisadores de nossos dias, destacando-se entre eles o
casal Egon e Frieda Wolff, é que começamos a desvendar a história da imigração no Brasil
Independente. Além dos tmeim, que dominavam a cena como imigrantes russos-judeus ou
polacos-judeus, e eram como tal identificados, os demais, de cuja existência em boa parte
sabemos pelo estudo das antigas comunidades brasileiras, relutavam em revelar sua
identidade judaica.
Somente a decisão de enfrentá-los e isolá-los da vida comunitária e no seu
desejo de auto-afirmação de uma identidade judaica, sem carregar o estigma do rufianismo
e da prostituição, é o que os possibilitou aparecerem como judeus perante a sociedade
brasileira. Raffalovich, ao chegar ao Brasil, ficou sensibilizado com a situação e empenhou-
se também em limpar o nome da comunidade, trabalhando ao mesmo tempo para criar
meios para evitar que mulheres imigrantes caíssem nas malhas dos criminosos.
Raffalovich relatará em seu livro um encontro com uma das vítimas do
caftismo, que devido estar enferma encontrava-se num estado mental gravemente afetado.
Esta o procurara dizendo ter visto a Madona. Ele perguntou sobre sua pessoa, obtendo
como resposta sua triste história pessoal. Natural da Polônia e estando havia 20 anos no Rio
de Janeiro, contou que seus pais eram extremamente pobres e não podiam sustentar suas
duas filhas. Um dia, sua irmã desapareceu, e após alguns meses, ela escreveu do Rio
dizendo que ganhava bem e poderia ajudar no sustento dos pais, o que fez remetendo
regularmente à sua casa somas de dinheiro. Um dia sugeriu que viesse juntar-se a ela, e
logo mais enviou-lhe uma passagem, e aqui ela soube como a irmã se sustentava.
Passaram-se alguns dias, quando durante um passeio conheceu um homem, do qual se
tornou amante. Durante todo esse tempo, porém, viveu com sua irmã, que acabou morrendo
da mesma doença que ela possuía e afetava sua razão. Raffalovich, condoído, enviou-a a
um médico, que recomendou sua internação. Raffalovich dirá que na história dessa mulher
“ele viu as múltiplas impurezas que a diáspora derramou sobre essas coitadas que a pobreza
degenerou”622.
Se ainda na primeira década do século XX a incipiente organizada comunidade
asquenazita não estabeleceu uma estratégia para evitar que jovens mulheres enganadas na
Europa pudessem escapar dos traficantes de escravas brancas, no entanto com a formação
das sociedades beneficentes, ajuda e apoio aos imigrantes começou-se a atuar
metodicamente tendo em mira essa orientação. No Rio de Janeiro, sociedades como a
Achiezer, Froien Farein (Sociedade Beneficente das Damas Israelitas), o Relief (Sociedade
Beneficente Israelita de Amparo aos Imigrantes), e em São Paulo a Sociedade das Damas
Israelitas (1915) e o Ezra (1916) procuraram auxiliar os imigrantes em seus primeiros
passos no país, dando ajuda material e orientação profissional aos que chegavam, e em
relação às mulheres, acompanhando seu desembarque dos navios com a presença efetiva de
seus membros nos portos de Santos e do Rio.
621
Tel-Aviv, 1952, p. 167.
622
op. cit., p. 167.
358
623
Record, Rio, 1986, p.54.
624
SP, 1941.
359
encontrava e transparecia que a suspeita era correta. Tiraram a moça do navio e fizeram-na
entender com que se ocupava sua irmã e com que finalidade ela a trouxera para São Paulo.
A irmã da jovem ameaçou o senhor Emilio Berezovsky dizendo que faria diariamente
escândalos defronte sua própria casa. A moça entendeu a situação e se afastou inteiramente
de sua irmã. Passou então a viver na casa de uma família judia em Santos, até que foi
enviada novamente à Europa. Essa é uma das dezenas de casos que ilustram a ação da Ezra
também nessa área”.62590
Lamentavelmente, os registros das entidades assistenciais do Rio de Janeiro
perderam-se, juntamente com outros arquivos, e se em São Paulo a documentação foi
preservada, o foi devido à atuação do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. José Nadelman,
um dos veteranos ativistas da comunidade paulista, preocupou-se com a memória da
imigração e escreveu a História da Ezra com excelente conhecimento de causa, pois atuara
na época naquela instituição. Memorialista meticuloso, deixou-nos um cabedal de
informações que de outro modo ter-se-iam perdido no tempo. Porém, o judaísmo brasileiro
atrasou-se demais na formação de um arquivo comunitário, surgido somente nos anos 70,
ainda que tenha havido esporádicas tentativas anteriores que assim como surgiram em curto
espaço de tempo desapareceram.
A verdade é que desde sua fundação o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro,
com o objetivo central de preservar a documentação relativa à história e presença judaica
no Brasil, incluiu também a história dos tmeim. Um capítulo doloroso na saga da imigração
judaica ao país, mas que com o passar do tempo as feridas que sangraram cicatrizaram e o
próprio tempo encarregou-se de eliminá-lo como “problema” que afligiu as comunidades
brasileiras. O importante era preservar os documentos e rastros de sua existência, os
cemitérios e seus registros.
Mesmo se as lápides viessem a desaparecer, pelo menos teríamos os registros e
os dizeres das matzeivot, e essa preocupação levou a que se fizessem os levantamentos dos
cemitérios ainda nos anos 70. Naqueles anos, recebemos o registro de óbitos de certo
cemitério com a condição clara e bem específica de não revelá-lo publicamente, sem fixar
qualquer tempo para fazê-lo, como sói acontecer com material arquivístico quando pessoas,
instituições ou famílias exigem certo tempo de carência para ser utilizado por estudiosos,
pesquisadores ou interessados, o que não impede de alguém fazer qualquer trabalho sobre o
tema, já que a falta de um documento não é o suficiente para apagar a memória de um
grupo, indivíduo ou instituto, na medida em que se pode encontrar outros.
No demais, faço minhas as palavras de Ricardo Feierstein, em seu estudo, ao
dizer: “Nos fatos concretos a comunidade judia daquele tempo empreendeu uma luta que
orgulha a seus descendentes para extirpar a um setor economicamente poderoso e influente
de correligionários que se dedicavam a um comércio imoral.
Não existiu uma luta similar em nenhuma outra coletividade vivendo uma
semelhante situação. Mais uma vez os judeus deviam “fazer mais” para serem admitidos
como iguais, assim como já observara Jean-Paul Sartre (Reflexiones sobre la Cuestión
Judía, B.A., Ed. Sur, 1964). E por vezes nem sequer isso é suficiente.
A adolescente Anne Frank escreveu em seu Diário, em 22 de maio de 1944,
pouco antes de ser assassinada pelos nazistas:
625
Op. cit., p. 58.
360
626
Historia de los Judíos Argentinos, p. 301.
627
Alain de Botton, A busca traiçoeira do que(m) sou eu, in Folha de São Paulo, 16 de
novembro, 1997, Caderno Mais!, p. 11.
628
Sobre o conceito de “identidade coletiva”, complexo por sua natureza, foi publicado
recentemente um ensaio instigante de Lutz Niethamer, professor da Universidade de Jena,
sob o título Conjunturas de identidade coletiva, in Ética e História Oral, Projeto História,
nº 15, Educ, SP, abril 1997, pp. 119-134.
361
Bebi Dedos
629
Ainda que reconheçamos a premência de se fazer um trabalho mais completo sobre sua vida e obra, não
temos a intenção de esboçar, neste trabalho, sua biografia. Portanto, nos restringimos a fornecer apenas alguns
dados pessoais do escritor.
Bernardo Shulman nasceu em 16/05/1887, em Demidowka, província da Volinia, Rússia. Foi educado em
escola tradicional até os dez anos, quando faleceu seu pai, Leibusch, pouco tempo depois de sua mãe,
Menucha. A partir dessa idade, ele passou a viver com o tio, que conseguiu introduzi-lo na ieshivá de Lutzk,
onde, além de Tanach (Velho Testamento) e Talmud estudou, como autodidata, estudos seculares. Mais tarde
conheceu seu sogro, Scholem Paciornik, e trabalhou com ele no comércio de madeira de florestas. Ele chegou
ao Brasil em 1909 e teve uma parte ativa na formação das instituições comunitárias do Paraná. Faleceu em 29
de dezembro de 1971, conforme me informou gentilmente Sarah Schulman. V. Léxico de ativistas sociais e
culturais da coletividade israelita do Brasil (1953-1955), ed. Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1954; Eizengort,
A., Baruch Schulman – Tzu zein 75tn yubilei, in Idische Presse, 22-6-1962; Scholem Mordechai Paciornik,
publicação familiar comemorativa do centenário do seu nascimento, Rio de Janeiro, 1959; Lipiner, E. Baruch
Schulman in der ieshive-shel maala, in Idische Presse, 4-2-1972.
630
Na coletânea com o título “Unzer beitrog”, ed. Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1956, foram publicados
quatro contos de sua autoria. Na coletânea “Brazilianisch”, publicada na Argentina sob a direção de Samuel
Rollanky, ed. Ateneo Literario e Instituto Cientifico Judio, Buenos Aires, 1973, encontra-se um conto já
publicado no “Unzer beitrog”. Para um levantamento completo de sua obra literária, além dos contos e dos
escritos mencionados, temos que considerar a grande massa de correspondentzen que ele remeteu aos jornais
em ídiche, desde 1915 e que constituem verdadeiras crônicas sobre assuntos da vida comunitária de Curitiba,
no Paraná, bem como da vida judaico-braileira, sempre acompanhadas com uma apreciação crítica pessoal
que o caracterizava. Temos em boa parte, em nosso arquivo pessoal, fichada essa matéria, que deve ser
ordenada e compilada, juntamente com suas traduções da literatura ídiche publicadas em vários periódicos e
fundamentalmente na revista “Aonde Vamos?”.
631
Conforme o Léxico acima mencionado, foram feitas 4 edições do opúsculo; a primeira apareceu em
Curitiba, financiada pelo autor; a segunda no Rio, editada pelo Comitê de Defesa Contra o Anti-Semitismo; a
terceira em São Paulo, financiada pelo autor e Maurício Blaunstein; e a quarta, no Rio Grande do Sul, editada
e divulgada por um cristão que viu na brochura uma matéria excelente para combater a propaganda fascista.
363
632
“Dos Idische Vochenblat”, de 3/12/1926, n.º 160.
633
A notícia da publicação da brochura “Alma hebraica” encontramos no “Brazilianer Idische Presse” de
14/6/1927, n.º 204. A cópia do exemplar que possuímos nos foi cedido por Bernardino Schulman.
634
Sobre Dario Vellozo e sua marcante personalidade de intelectual de criatividade profunda, bem como
portador de grande humanismo pessoal, temos um trabalho de Erasmo Pilotto sob o título “Dario Vellozo –
Cronologia”, Curitiba, 1969, que nos foi cedido por Bernardino Schulman. Sem dúvida, sua figura poderia ser
inscrita entre os hassidei umot haolam brasileiros. Sua atuação em favor da comunidade judaica de Curitiba,
sob o aspecto cultural, foi importante, chegando mesmo a dar cursos sobre literatura universal no Centro
Israelita do Paraná, conforme notícia no Idische Volkzeitung de 6/1/1928, n.º 6, onde, no término de um
círculo de conferências (a última sobre “Dante e A Divina Comédia”), foi agraciado com uma medalha de
ouro pelo Centro Israelita do Paraná, entregue a ele por seu presidente, Júlio Stolzenberg. Por outro lado,
juntamente com o dr. Pamphilo da Assunção, fez muito para difundir o já mencionado opúsculo “Em legítima
defesa” nos círculos intelectuais sulinos.
364
635
No Dos Idische Vochenblat, durante o ano de 1924, ele escreveu uma série de artigos sobre a vida judaica
Argentina. No número de 28/11/1924, n.º 55, temos a notícia que ele vendeu as “Memórias” de A. R.
Kaminska ao periódico, queixando-se que não lhe foi feito o devido pagamento. Por outro lado, em
contrapartida, a redação se queixava de que o manuscrito das “Memórias” não fora remetido na íntegra.
636
Seu nome verdadeiro era Leibel Salzman, mas usou vários pseudônimos até fixar o nome de Malach.
Sobre ele encontra-se um verbete no Leksikon (Léxico da literatura judaica) de Z. Reizen, e um mais
completo no Neie Lexikon fun Idicher Literatur (Novo Léxico da Literatura Judaica). Também V. o Leib
Malach Buch (Livro em memória de Leib Malach), 1949; Bletter tzum ondenk fun L. Malach (Páginas em
memória de Leib Malach), 1936; Ravitch, M., Mein leksikon (Meu léxico), Montreal, 1945.
637
No “Dos Idische Vochenblat” de 11/9/1925, n.º 96, se noticia que ele chegou com o navio Almanzara, de
Buenos Aires, e que foi a última viagem que faria antes de deixar o continente sul-americano e viajar à
América, onde Morris Schwartz preparava a encenação de seu último trabalho “Dos goren schtibel”(Uma casa
assobradada). A notícia detalha que ele viajaria a São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Santos, Bahia e
Pernambuco.
638
Carta de Porto Alegre de 21/10/1925.
365
ficar por lá cinco dias. Para os colonos sou um verdadeiro anjo. Eles desabafam comigo e
serei o primeiro escritor a abrir suas feridas ao mundo”).
Suas reportagens sobre o Brasil publicadas no “Di Presse” de Buenos Aires,
nem sempre agradaram ativistas brasileiros, pois seu olhar crítico feriu o “patriotismo” das
instituições judaicas e de alguns lugares por onde passou. Em uma carta do ativista Nathan
Becker a Baruch Schulman ele escreve: “vejo que você se alegrou com Malach e espero
que lhe dê satisfação (com sua presença). Aqui nós o recebemos com total frieza, assim
como ele o merecia. Ele, em Buenos Aires, derramou asneiras sobre a nossa comunidade e
nossos ativistas, e isso num período em que necessita vir anualmente aos túmulos dos
antepassados...”.639
Leib Malach ressentiu-se pelo fato de sua atividade no Brasil, mesmo quando
se tratava da fundação de bibliotecas em algumas comunidades do Sul, terem sido tão mal
interpretadas através da veiculação de notícias que nem sempre eram a exata reprodução
dos fatos e da realidade. Basta-nos ler a carta dirigida a Schulman de Buenos Aires, datada
de 28/3/1926, onde ele mesmo recrimina o fato da imprensa publicar coisas a seu respeito e
ele não poder controlá-la nesse sentido: “(...) Warchavski 640 contou-me que estão zangados
comigo no Rio porque no “Literarische Bletter” publicaram a notícia de que estive no
Brasil e lá fundei bibliotecas. Em primeiro lugar, não sou culpado de realmente ter fundado
uma biblioteca em Cachoeira e em Santa Maria,641 e a notícia do “Literarische Bletter” tem
origem na correspondência do “Dos Idische Vochenblat”, do Rio. Mas o ignorante-culto se
encontra em todo lugar. Pouco importa, do mesmo modo falam de Peretz Hirschbein como
uma pessoa que viaja apenas por interesses financeiros”.
Apesar de tudo, Leib Malach amava o Brasil e, em particular, ficou enfeitiçado
pelo Rio de Janeiro, que o atraiu de um modo especial, fato que ele confessava em sua
correspondência e em seus artigos sobre a encantadora metrópole que visitou muitas vezes.
E, na verdade, boa parte de sua obra literária foi diretamente inspirada no Brasil, ainda que
a temática de suas primeiras obras ele a tenha encontrado, de início, no submundo de
Varsóvia, a qual expressará num drama naturalista com o nome de “Opfal” (Decaída).
Porém, o romance “Don Domingos Kreitzveg” (A cruzada de Dom Domingos) e o drama
“Ibergus” (Regeneração), inspiram-se na paisagem social e humana do Rio de Janeiro da
época. Surpreendentemente, esse drama faria brilhar a estrela do escritor, pois levaria o
nome de Leib Malach ao mundo literário americano e europeu numa dimensão antes não
conhecida.
Ele mesmo confessará na correspondência com Schulman que essa peça foi o
point-de-tour de sua carreira literária, como podemos constatar nas cartas que ora
639
Carta do Rio de 28/11/1925. Nathan Becker era um ativista do Rio de janeiro que fazia parte do grupo da
intelligentsia local, tendo atuado na imprensa judaica desde os seus primórdios. Parece não ter deixado
nenhum escrito, mas sua atuação em certas instituições, tais como a Biblioteca Scholem Aleichem, o Yugend
Klub do Rio de Janeiro e o partido Poalei Zion o apontam como um intelectual que impunha respeito por sua
cultura e seu elevado senso crítico. Como muitos outros intelectuais e ativistas, sua atuação permanece
desconhecida, e até agora pouco se sabe de sua biografia.
640
Um conhecido ator de teatro que atuou durante muitos anos no Brasil e em especial no Rio de Janeiro.
641
Os “Dos Idische Vochenblat” de 4/12/1925, n.º 108 e o de 18/12/1925, n.º 110 confirmam a criação das
bibliotecas em ambos lugares. Em Santa Maria, o professor da escola israelita local, Jacob Politchuk, na noite
de recepção ao escritor, falou sobre a obra de Leib Malach, e este proferiu uma conferência sobre literatura e
leu várias de suas peças. Foi uma noite festiva para Leib Malach e para a pequena comunidade judaica local.
Malach ficou em Santa Maria de 30/10/1925 a 5/11, sendo que em 2/11 foi organizada uma conferência do
escritor para a juventude local
366
publicamos. Sabemos que o “Ibergus” seria um ponto de partida para a luta encetada contra
a reconhecida influência do elemento “indesejável” ou dos traficantes de escravas brancas e
seu elemento no teatro ídiche de Buenos Aires.
Na introdução ao “Ibergus” escrita por Jacob Botochanski, em junho de
642
1926, ele retratou que, em abril daquele ano, fora lida a peça por um diretor de teatro de
Buenos Aires, ao qual muito agradara, estando quase prestes a ser encenada. Mas, no
último minuto, o diretor do teatro declarou que não poderia encená-la, pois ela provocaria
os traficantes de escravas brancas. Escreve Botochanski, que “como homem de teatro e
amigo do autor da peça era o encarregado de fazer as tentativas em relação a ela, e fiquei
abismado com a cínica declaração de um homem que se encontra à testa de um teatro
judaico. Assim sendo, sabia que se processava uma luta, já de alguns anos, para impedir o
ingresso do elemento ‘indesejável’ no teatro (a única instituição da qual ‘eles’ ainda não
tinham sido expulsos). E entre os que lutaram contra a sua influência encontravam-se
Peretz Hirschbein e David Nomberg, e nós não tínhamos idéia do domínio que ‘eles’
possuíam no teatro judaico. Todo o assunto eu publiquei na imprensa e estourou um
escândalo, começando uma luta quase sanguinária. A comunidade tomou parte ao lado da
imprensa judaica e a luta hoje pode ser considerada ganha, não faltando muito tempo para
que o teatro na Argentina se liberte de toda influência dos ‘indesejáveis’, e graças à peça
“Ibergus”, que trouxe uma vitória cultural ao judaísmo argentino em geral e à purificação
do teatro judaico em particular”.643
Na correspondência com Baruch Schulman verificamos que o Rio inspirou a
temática da peça. Ele mesmo o diz: “gosto muitíssimo do Rio e quase a maioria das minhas
criações, ultimamente, as tirei de lá”.644 No caso do “Ibergus”, o cenário do drama é a
cidade “maravilhosa” – não tão “maravilhosa”, e as dramatis personae são situadas tendo
como pano de fundo a sociedade carioca da época, ou melhor, a sociedade dos marginais
que aportou ao Rio com a grande corrente imigratória vinda da Europa desde os fins do
século XIX. As figuras centrais da peça são uma prostituta, Reizel, e seu amante e marido,
mulato e deputado do Congresso Nacional, que usa o nome de Dr. Silva. Além desses,
desfilam nos quatro atos do drama de Malach outros elementos que compõem e completam
a comunidade isolada dos “indesejáveis”. Em uma carta curta escrita por Leib Malach em
29 de junho de 1926, ou seja, pouco antes da primeira apresentação do “Ibergus” na
Argentina, com sentimento de gratidão manifesto, dizia a Baruch Schulman: “Certamente
você lê o ‘Di Presse’ e poderá então notar a decisão que tomei. No dia 18 de julho será
representada no maior teatro daqui ‘Ibergus’, a peça na qual você tem parte, pois sobre o
seu papel a escrevi.” O autor comunicava em primeira mão e apressadamente ao seu amigo
642
Trata-se da 1.ª edição do “Ibergus”, ed. G. F. Salita, Buenos Aires, 1926, que nos foi cedida gentilmente
por Manasche Krzepicki Z’L.
643
No “Dos Idische Vochenblat” de 9/4/1926, n.º 126, foi republicado o artigo do “Di Presse” de Buenos
Aires onde se narra o acontecido com a peça “Ibergus”, e no mesmo periódico, de 24/4/1926, n.º 128, um
apoio ao “Di Presse” pela sua posição, lembrando um caso semelhante ocorrido no teatro judaico do Rio de
Janeiro com o ator Tomachevski. Botochanski, num artigo publicado no “San Pauler Idiche Tzeitung”, de
19/4/1939, narra como os judeus da Argentina lutaram contra os “indesejáveis”, incluindo também os
acontecimentos ligados ao “Ibergus”. Um histórico do domínio do elemento “indesejável” no teatro argentino
se encontra na obra de B. Gorin, Di geschichte fun idicher theater, ed. Max N. Meizel, N. York, 1923, t. II,
pp. 198-202.
644
Carta de 23/8/1926.
367
645
“Dos Idische Vochenblat”, 29/10/1926, n.º 155. O autor do verbete Leib Malach, no Neie Lexikon fun
Idicher Literatur afirma erroneamente que ele esteve nos EUA somente em 1932. Como ficou demonstrado,
ele lá esteve em fins de 1926.
646
“Dos Idische Vochenblat”, 5/11/1926, n.º 156. Shabatai Karakuchansky publicou um comentário sobre o
conteúdo da obra.
647
Como podemos verificar pela carta de Leib Malach escrita a Baruch Schulman, em 28/3/1926, “Ibergus”
não foi a única obra produzida com o papel doado ao escritor, pois ele relata que “do pacote de papel que
você me deu posso dar o seguinte relatório: escrevi quatro artigos sobre ‘Buenos Aires’, dois poemas,
‘Rossina’, 18 artigos e impressões de viagens, e um drama em quatro atos, o ‘Ibergus’ (Regeneração), e este
drama estava destinado a se transformar num sucesso em dias ou semanas.”
368
Assim como vês, com grandes esforços cheguei a Passo Fundo. Viajei por
Erebango, que é o corredor para Quatro Irmãos. Mas para avaliar corretamente a vida da
colônia e dos colonos, e como ouvi dizer que há muito para observar, resolvi ficar por lá
cinco dias. Para os colonos sou um verdadeiro anjo648. Eles desabafam comigo e serei o
primeiro escritor a abrir suas feridas para o mundo.
Aqui em Passo Fundo fui recebido calorosamente por toda a população.
Cerimônias com as crianças da escola na estação de trem (de passagem, a escola tem um
alto nível e conta somente com cinco meses de existência).649 Estuda-se ídiche e português.
Fizeram duas programações e hoje há um banquete, sendo que de manhã viajo à colônia.
Em Cruz Alta já estão me esperando.
Permaneça com força e saúde. Mande lembranças a todos os teus, tua esposa,
teus filhos, tua filha e a todas as flores do teu jardim.650
Teu
L. Malach
L. Malach
Posta Restante
Porto Alegre
(timbre) L. Malach
Castelli 360
(“Di Presse”)
Buenos Aires 28/III/26
648
O nome Malach significa “anjo” em hebraico
649
Essa informação do escritor é uma das poucas que temos sobre a escola de Passo Fundo e portanto, é
preciosa para a história da educação judaica no Brasil.
650
Como veremos em outras cartas, trata-se do “famoso” jardim da esposa de B. Schulman, senhora Zelde,
que pela riqueza botânica causava verdadeira admiração a todos que o viam.
369
Teu
L. Malach
651
Era ator de teatro ídiche no Rio de Janeiro que viajou a B. Aires para representar naquela cidade.
652
Trata-se do poeta, jornalista e historiador Jacob Nachbin, amigo comum de Leib Malach e de Baruch
Schulman. V. nosso artigo “Jacob Nachbin, precursor da historiografia judaica no Brasil”.
653
O “Literarische Bletter” era publicado em Varsóvia.
654
É o jornal fundado em 1923 por Aron Kaufman
370
B. Aires, 29/VI/26
Eu te escrevi uma carta ao Rio mas não sei se me respondeste, pois nada
recebi; ou você escreveu e eu não a recebi. Li a tua correspondência sobre A. Rashani, e
assim entendo que você se encontra em Curitiba. Aproveito para mandar lembranças a
você e a todos os teus. Certamente você lê o “Di Presse” e poderás então observar a
revolução que preparei. No dia 18 de julho será representada no maior teatro daqui o
“Ibergus”, a peça na qual você tem parte, pois sobre o teu papel a escrevi.
Escreva-me algumas palavras sobre o que se passa com vocês.
Teu
L. Malach
Curitiba. Os passeios, as conversas, as fofocas na chácara com Max (ou Salomão), 65811
“Areia Branca”, a viagem até vocês, os churrascos, e tudo isso.
Que esta o encontre com saúde, a vocês e todos os que lembrei e todos os que
habitam o teu coração
Lembranças de teu
L. Malach
Rio, 28/XI/26659
Teu
L. Malach
L. Malach
Posta Restante
Recife
Ontem recebi de você uma lembrança viva. Eu me encontrei com tua irmã.
Foi-me sumamente agradável sentar-me com ela e reviver em mim imagens e lembranças
do passado.
Acabei de voltar de uma longa viagem pela América, e estive em Chicago,
Detroit, assim como no Canadá, travando conhecimento com novas pessoas, estranhas,
658
Trata-se dos dois membros proeminentes da comunidade judaica de Curitiba, Max e Salomão Paciornik,
que costumavam freqüentar a chácara da família.
659
A data correta da carta deve ser 28/X/1926.
660
Trata-se do conhecido jornalista argentino que visitava o Brasil naquela época.
372
mas que se tornaram próximas, ainda que não tão próximas e familiares como você e toda
sua família.
Ficaria abençoado se desta vez você colocasse algumas palavras sobre você e
pudesse ouvir sobre tudo e todos – é uma pena que tal amizade se apague por
emudecimento.
O que se passa comigo? Não sei como começar. Penso que o meu viver na
América me deu muitíssimo e muito me levou. Devo assinalar os seguintes resultados: a
minha peça “Ibergus”, que escrevi sobre o teu papel, tem muita sorte. Já perfazem dois
anos que ela não sai dos palcos de todo o mundo. No ano passado foi encenada em dois
teatros nova-iorquinos, além de várias cidades da América. Hoje ela está sendo encenada
em Chicago, na Filadélfia e em Montreal. Está se preparando uma nova encenação em
Nova York. Em Varsóvia, a peça está sendo levada á cena pela centésima vez por
Zaslavsky, no Teatro Skala e em Lodz, no Philarmonie. Enfim, o papel era muito bom...
A minha segunda peça “Di moid fun Ludmir”(A moça de Ludmir) foi
comprada por Morris Schwartz e não sei quando ele irá encená-la, possivelmente no
próximo ano. A mesma peça foi comprada também pelo “Habima”, em hebraico, e está
sendo impressa em tradução inglesa no jornal literário “Time News”.
A verdadeira novidade é que escrevi um grande romance sobre a vida
brasileira com o nome “Unter der palme”(Sob a palmeira), e o romance está sendo
impresso no “Di Presse” de Buenos Aires sob o título “Donia Aijes – Don Domingo”661.
Logo mais iniciar-se-á sua impressão em um jornal de Nova York e sairá em seguida em
forma de livro. É isso, e mais algumas pequenas e maiores novidades, porém sobre elas,
numa próxima vez.
Agora escreva-me como está a tua saúde e o que faz tua esposa e que fazem
suas flores. O que fazem os Paciornik? Ouvi dizer que ocorreu entre eles uma desgraça.
Fiquei verdadeiramente abalado. Transmita minhas saudações a todos os Paciornik, aos
homens, às mulheres e às crianças. Saudações a tua irmã e em particular a Fayge e a
Chaikale. Vi as fotografias delas cavalgando com roupas masculinas. Nada mau para
esses jovens “gentios”...
Calculo que ao redor de maio, junho, julho, viajarei de volta a B. Aires para
permanecer lá durante alguns meses e depois voltar. Se se der a viagem, não sei se
resistirei à prova de não dar uma escapadela até vocês.
Acrescento meu endereço nesta. Com bênção,
Seu
L. Malach
L. Malach
c/o “Forward”
175 E. Brodway
New York City
U.S.A.
661
É o mesmo romance inspirado na vida brasileira conhecido pelo título “Don Domingo’s kreitzveg” (A
encruzilhada de Dom Domingo).
373
662
ed. Museum LeOmanut HaDfus, Sfat, 1968.
374
escritor hebreu, verdadeiro mestre de prosa ídiche, “A id on a bord”, e assim por diante, era
simplesmente um anarquista. Em uma cartinha dirigida a mim, ele escrevia que estava
terminando uma grande obra, que previa a segunda e terceira guerras mundiais.
“No mesmo ano de 1920 ele faleceu. E sua morte foi exatamente como sua
vida – a morte de um eremita que cai durante seu estudo no beit-hamidrasch, e os que se
ocupam com isso fazem o que é de direito. E aconteceu nas condições e modos selvagens
de nossos novos países. Em um determinado dia, foi recebida uma informação, no ‘Di
Presse’, de que se encontrava em um manicômio de Buenos Aires um homem que não
revelava seu nome, mas que era conhecido no jornal, e que ele mostrava, sem dúvida, sinais
de loucura, pois perdera um manuscrito de uma grande obra, no caminho, a pé, vindo do
Brasil. Nessa situação, a polícia o recolheu no meio do caminho, na cidadezinha de
Mercedes, a algumas horas de caminhada de Buenos Aires.”
“Quando os colegas do ‘Di Presse’ e outros, entre eles o conhecido sionista e
entusiasta do hebraico, Yosef Reich, chegaram ao manicômio, já o encontraram em um
caixão para ser enterrado no cemitério geral da cidade, denominado Chacarita. Com uma
intervenção especial, na qual teve papel importante o mencionado Yosef Reich, conseguiu-
se, após alguns dias, transferir o corpo ainda ensangüentado ao cemitério israelita em
Liniers, no subúrbios de Buenos Aires.”
“Em seu túmulo encontra-se uma simples lápide, com poucas palavras: “Aqui
jaz Josef Halevi”.
Em alguns detalhes, a transcrição de Raizman difere do texto que consultamos
nas obras completas de Pinhe Katz, e em particular, no volume 7, editado em 1947. Talvez
Raizman tenha consultado outra edição, que desconhecemos, ou recebeu o mesmo texto em
forma de depoimento reescrito pelo próprio autor.663 Segundo o autor da história da
imprensa ídiche no Brasil, o “Di Menscheit” saiu à luz em 1.º de dezembro de 1915 e foi
planejado para ser um semanário. Como endereço para assinaturas, se dá o nome de B.
Lewgoy, Campo do Bonfim, 88, e para correspondência, S. Kaufman, rua 12 de Outubro,
19. Como colaboradores, além de Josef Halevi, que, no primeiro número usou vários
pseudônimos, encontravam-se o ativista e intelectual Nathan Becker, do Rio de Janeiro, o
futuro redator de outro periódico em São Paulo, o conhecido ativista Marcos Frankenthal de
Quatro Irmãos, Melech Reicher, de Santa Maria, Baruch Schulman, de Curitiba, e outros.
O jornal teve pouca duração e conseguiu sobreviver com dificuldade os seis
números que foram publicados pelo seu redator. O mesmo Josef Halevi faria uma segunda
tentativa jornalística e fundaria, em 1920, o segundo periódico judaico em nosso país, o “Di
Idische Tzukunft” (“O Futuro Israelita”), cujo primeiro número começou a circular em 15
de janeiro daquele ano. Nesse sentido, nos parece que Pinhe Katz, em seu relato, confunde
os dois periódicos, pois, se ele recebeu um jornal em 1920, esse foi o “Di Idische
Tzukunft”, e não o “Di Menscheit”.
663
No verbete do “Neie Lexikon fun Idicher Literatur”, N.Y., 1960, encontramos que nasceu em Chvodan, na
Lituânia, em 1868, e estudou na ieshivá de Volozhin, passando depois a viver em Londres, Madrid e na Itália.
Até 1910 esteve em Paris, onde estudou, certo tempo, literatura na Sorbonne. Foi enviado em 1910, pelo
“Hatzefira”, à Argentina, com a finalidade de pesquisar a vida dos judeus nas comunidades, e acabou ficando
por lá. Erroneamente, o autor do verbete dá como data de sua morte 5 de maio de 1921, em lugar de 1920,
conforme o depoimento de Pinhe Katz. Mas não são, infelizmente, as únicas imprecisões que encontramos no
Leksikon sobre Y. Halevi.
376
664
Sobre ele vide nosso artigo “Jacob Nachbin: precursor da historiografia judaica no Brasil”.
665
No artigo “Der moderner idischer ishuv in Brazil”, in “Tzukunft”, julho, 1930.
377
Esta notícia eu não somente a recebi com alegria, mas também com certo orgulho. Não era
algo comum, pois teria a regalia de hospedar um escritor judeu, o redator de um jornal.
“Em minha imaginação, eu via um intelectual com riqueza espiritual, cheio de
humor e acuidade mental, com quem seria um prazer passar o tempo! Dialogar com um
intelectual judeu!
“Qual não foi a minha decepção ao encontrar um homem neurastênico, de 50
anos de idade, com uma barbicha ao estilo ‘iluminista’, amargurado e ácido, de quem era
difícil extrair uma palavra da boca. Mas a maior decepção sofreu minha esposa, que Deus a
tenha em paz, pois, conforme o hábito de uma verdadeira dona de casa, ela se preparou para
receber nosso hóspede com os melhores quitutes de seu repertório culinário. Talvez algo
não o agradasse e outra coisa não pudesse comer. Ele nos disse que necessitava somente de
leite. Leite e leite. Com o tempo, nos acostumamos com isso. (Ele permaneceu entre nós
um tempo mais prolongado). Mas, de qualquer forma, era um intelectual judeu! Eu tive a
impressão de que o calor de um lar judeu teve influência positiva sobre ele. Começou a ser
mais falante, de vem em vez mostrava certo sorriso sobre seu rosto e contava alguma
anedota em nada má.
“Viajou de Porto Alegre ao Rio por etapas, parando em cada lugar onde havia
uma comunidade suficientemente grande para dar uma conferência e ganhar para suas
despesas. No Rio, ele tinha em mente iniciar um novo periódico. Em um belo dia, Josef
Halevi expôs a mim seus planos e me propôs ser seu editor. Muito capital – assim ele me
disse – a investir não era necessário. Os tipos hebraicos pode-se comprá-los em Porto
Alegre por bem pouco. O empreendimento ali não deu certo devido ao fato de haver muitos
donos.
“Mas, com uma iniciativa particular, ele como redator e eu como administrador
em uma cidade como o Rio, o sucesso poderia ser previsto de antemão. A mim esse plano
atraía. Morar na linda metrópole brasileira e estar à testa de um periódico era uma idéia
para não se desprezar. Fui, então, me aconselhar com meu velho amigo, Max Rosenmann.
“Max Rosenmann, o presidente da comunidade judaica de Curitiba, foi um dos
primeiros judeus que chegaram ao Paraná e que se impôs na sociedade cristã pela sua
seriedade e sua dignidade como judeu. O importante é que ele era estimado pela colônia
alemã, onde possuía muitos amigos, entre os quais se encontrava o redator e proprietário do
periódico ‘Der Beobachter’ (O Observador), ao qual Max Rosenmann me levou para obter
uma opinião profissional sobre todo o assunto.
“‘Der Beobachter’, assim costumávamos chamar o redator, não pelo seu nome,
mas pela publicação, era um tipo cheio de importância, barrigudo, e a gente tinha a
impressão de ser esmagado pelo seu corpo pesado. Mas, ao se observar seu rosto aberto e
simpático, com amplas barbas em suas faces, à la Francisco José (Franz Joseph), com os
olhos sorridentes, acabava-se tendo com ele um relacionamento familiar. E quando se
começava a falar com ele, revelava-se uma personalidade colorida, que esperávamos então
encontrar em Josef Halevi. Era uma boa pessoa por natureza, socialista militante, idealista e
muito amigo dos israelitas (houve, por vezes, tais tipos entre o povo que provocou o
Holocausto). Dirigia uma luta intensa contra o segundo jornal, ‘Der Kampus’ (‘O
Campus’), publicação clerical dirigida por um padre, e a toda investida anti-semita, o ‘Der
Beobachter’ reagia com vigor e lucidez. Ele nos recebeu com calor e nos levou a ver a
redação, com a presença de mais alguns de seus membros, esclarecendo certas questões
técnicas e nos animando a aceitar a proposta (de fundar um jornal).
378
Rio, 19 de outubro
Senhor Bernardo Schulman
Prezado Senhor,
Ouvi dizer que o senhor, nos últimos tempos, escreveu novamente para cá
sobre o vosso plano de editar aqui um jornal judaico. Caso seja verdade, e se de fato o
666
Raizman é, incompreensivelmente, crítico em relação ao testemunho de Schulman, e os defeitos que vê em
seu artigo ele mesmo os comete em toda a extensão de sua obra como historiador. Na verdade, é um absurdo
exigir que um depoimento pessoal seja um modelo impecável de obra histórica. O texto de Schulman constitui
um testemunho único, feito por um brasileiro que teve contato com o fundador dos dois primeiros periódicos
judaicos em ídiche em nosso país.
667
V. nosso artigo “Sionistas, o primeiro encontro”. Documento inédito: os Protocolos do 1.º Congresso
Sionista no Brasil.
379
senhor se empenhar em dar os passos práticos para a realização desse plano, informo-lhe
que, não faz tempo, chegou aqui, fugindo da América, devido à guerra, um bom tipógrafo
judeu, que, não querendo investir seu pequeno patrimônio em uma tipografia própria e não
tendo talento para a costumeira atividade judaica no Rio, iria, certamente, trabalhar
consigo, caso fizeres tal negócio.668 Isso permitirá ao senhor, assim que chegarem aqui os
tipos, publicar o jornal, não precisando assim esperar por um tipógrafo de Buenos Aires (o
antigo tipógrafo do “Menscheit”, que também se encontra aqui, faz agora negócios
melhores). E isso em caso de o senhor encontrar definitivamente em si mesmo a força
necessária para esse empreendimento. E o que o senhor possui, terá que reconhecer, como
se nada tivesse tido antes, devido a esses pequenos detalhes. Devo-lhe ainda escrever que
não é de todo impossível que eu, em pouco tempo, não tendo aqui um jornal para redigir,
viajarei a São Paulo, onde poderei também ter o mesmo trabalho que tenho agora. 669
Viajando para cá, o senhor necessita, de todo modo, parar em São Paulo, onde, entre
outras coisas, é preciso estar para contratar ali um bom agente para o jornal. Pergunte
por mim ao Rabino Hertzenstein,670 que possui um açougue na rua José Paulino, Bom
Retiro, e ele saberá meu endereço.
Atenciosamente
Y. Halevi
Saudações a todos os velhos conhecidos, entre eles, o senhor Rosenmann671 e
família.”
668
Temos a convicção de que se trata de Eduardo Horowitz, que chegou ao Brasil em outubro de 1916, era
tipógrafo e veio fugido da guerra, saindo dos Estados Unidos ao Brasil. Tornou-se, mais tarde, secretário da
Federação Sionista no Brasil quando esta foi fundada, em 1922, destacando-se por sua cultura e qualidades
espirituais. Com a fundação do “Ídische Volkzeitung”, em 1927, foi designado seu redator, após ter
acumulado uma experiência jornalística valiosa como colaborador do “Dos Idische Vochenblat” e do
“Brazilianer Idische Presse”, ambos fundados por Aron Kauffman. Os dados referentes à vinda de Eduardo
Horowitz ao Brasil e sua profissão nos foram fornecidos por membros de sua família, em entrevista pessoal
feita no Rio de Janeiro. Lamentavelmente, a biografia de Eduardo Horowitz ainda está por ser escrita, e,
enquanto isso ocorrer, desconheceremos uma das personalidades mais marcantes da vida judaica no Brasil.
669
A de professor particular
670
Trata-se do Rabino Mordechai Guertzenstein, de tradicional família rabínica na Europa, e um dos
primeiros rabinos asquenazitas a chegar ao Brasil, no início do século XX, trazido pela J.C.A., da Argentina.
Homem de idéias avançadas, fugindo um pouco do estereótipo do rabino ortodoxo, estava muito próximo dos
maskilim por sua ampla cultura e modo de conduzir os assuntos religiosos. Radicou-se em São Paulo,
passando mais tarde a viver no Rio de Janeiro. Josef Halevi usa a forma original do nome da família do
rabino, isto é, Hertzenstein.
671
Trata-se de Max Rosenmann, um dos primeiros judeus a chegar a Curitiba, ainda no final do século XIX,
tendo uma atuação importante na vida comunitária local, fato já lembrado no relato de Schulman.
380
Assim, é compreensível que Baruch Schulman (ao qual Josef Halevi chama de
Bernardo, na forma aportuguesada de seu nome) tenha tomado a iniciativa de criar um novo
periódico, ídiche, sob a influência de Josef Halevi, mas que pelas razões acima referidas
pelo próprio escritor, não chegou a se concretizar.672
672
Sobre Baruch Schulman e sua atuação como escritor e intelectual de prestígio no meio judaico brasileiro e
no exterior, vide nosso trabalho “A correspondência entre Leib Malach e Baruch Schulman” nesta coletânea.
381
A historiografia judaica no Brasil é relativamente nova, uma vez que tem início
na segunda década do século passado, apesar da imigração mais recente, em contraposição
à do período colonial, dar-se com a Abertura dos Portos.
Com o término da Primeira Guerra Mundial, dirigiu-se ao nosso país uma
grande corrente imigratória de israelitas provenientes fundamentalmente da Europa
Oriental, dando forte impulso à criação de instituições comunitárias que pudessem atender
aos recém-chegados.
Muitos dentre os imigrantes estabeleceram-se nos grandes centros urbanos e,
principalmente, no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e outras cidades. Porém, outros
se interiorizaram, procurando melhores oportunidades em lugares mais longínquos,
espalhando-se em nosso território de Norte a Sul em busca de trabalho e meios de
sobrevivência. Entre esses imigrantes também encontravam-se intelectuais, ainda que
constituíssem um número reduzido, e por isso mesmo, procurassem manter hábitos
culturais adquiridos no Velho Continente. Agruparam-se com o fim de formar entidades de
caráter cultural, passando a promover o teatro e a literatura ídiche por através da formação
de grupos amadores que encenavam peças teatrais, além de organizarem eventos literários e
conferências. Certas iniciativas, desses grupos, tiveram um alcance maior ao convidarem
personalidades importantes do mundo artístico judaico a virem ao Brasil com a intenção de
se apresentarem perante as comunidades. De fato no decorrer do tempo escritores famosos
e renomadas companhias teatrais judaicas atuaram no Brasil assim como nos demais países
do continente sul-americano.
Jacob Nachbin chegou ao Brasil com a onda imigratória após a Primeira Guerra
Mundial, indo estabelecer-se, em 1921, no Recife, onde já havia uma comunidade israelita
organizada. Vinha ele do Velho Continente após ter vivido em vários países, a começar da
Polônia, onde nascera, Hungria, Suíça, Alemanha, até fixar residência entre nós. A
instabilidade e a constante procura que caracterizaram sua vida teve início em sua infância,
pois ficara órfão aos dois anos de idade, tendo sido criado por vários parentes, que também
se encarregaram de lhe dar uma educação tradicional judaica ao lado de uma formação
geral que adquiriu por si só. Durante a Primeira Guerra Mundial, fugiu da Polônia e acabou
por servir no Exército austríaco para, logo após alguns meses, chegar a Budapeste, na
Hungria. Foi em Budapeste que encontrou a companheira de sua vida e foi ali que começou
sua carreira literária, publicando poesias em vários periódicos locais, sob os mais diversos
pseudônimos.
Durante a revolução de Bela Kun, teve uma participação como comissário
político junto ao Segundo Exército Internacional húngaro, mas com a queda do governo
revolucionário, foi obrigado a fugir para a Suíça, onde continuou com sua produção
poética, ao mesmo tempo que se voltava para um ativismo ligado ao destino de seu povo.
Desde os primeiros momentos de sua chegada ao Brasil, Jacob Nachbin reuniu
ao seu redor um grupo de admiradores, atraídos por sua personalidade inquieta e seu talento
literário. No Recife, preocupou-se em dar uma contribuição cultural, organizando um grupo
teatral ídiche, ao mesmo tempo que colaborava nos jornais judaicos da Argentina com
poemas inspirados na vida e na terra brasileira.
Em 1923, com a fundação do jornal israelita “Dos Idische Vochenblat” (“O
Semanário Israelita”), Nachbin foi convidado a participar da redação daquele periódico,
382
devendo, portanto, trasladar-se ao Rio de Janeiro. Apesar do pouco tempo que permaneceu
em sua redação – menos de um ano – teve a oportunidade de publicar, além de poesias,
pequenas crônicas que se referiam ao cotidiano da vida comunitária. Seus primeiros ensaios
históricos, incluindo notícias sobre imprensa judaica no Brasil e suas origens ele publicaria
mais tarde no jornal “Idische Folkstzeitung” (Gazeta Israelita). Além do mais, sob vários
pseudônimos, usou de sua pena para escrever crítica teatral, e muitas vezes com uma
linguagem cáustica, que não poupava a diretores e atores, a ponto de provocar polêmicas
com aqueles que fossem alvo de seus artigos. Como jornalista, ele estava atento aos eventos
da comunidade, escrevendo vários artigos, onde enfocava questões relativas à imigração e à
organização da vida dos israelitas chegados ao Brasil. Mas foi a partir de 1924 que ele
começou a pesquisar com maior profundidade a história dos judeus no Brasil e a reunir
material para o livro que publicaria mais tarde, em Paris. Seu interesse pela história dos
judeus no Brasil o levaria a viajar a Portugal e Espanha, em fins de 1928, com a finalidade
de consultar as bibliotecas e os arquivos ibéricos. E o único meio que encontrou para fazer
tal viagem, pois Nachbin não tinha condições financeiras para fazê-la por conta própria, foi
como representante de um periódico judaico do Rio de Janeiro, o “Idische Folkstzeitung”,
fundado um ano antes. Suas crônicas e entrevistas com personalidades européias foram
publicadas naquele periódico, onde, em meados de 1928, já havia publicado uma
“Monografia sobre o Nome Brasil”, e que constitui seu primeiro trabalho ligado
diretamente à história brasileira. Nachbin, em suas entrevistas feitas com os representantes
políticos do movimento sionista na Liga das Nações, que tinha em sua ordem do dia o
problema do destino das minorias nacionais européias, entre elas a judaica, retratou um
momento delicado na vida daquela instituição, bem como traçou com maestria jornalística
os jogos de interesses das potências européias no tocante à questão nacional. Ele
entrevistou, durante os vários meses em que permaneceu em Paris, homens como Leo
Motzkin, que representou as minorias nacionais em Comissão especial designada pela Liga
das Nações; o escritor e jornalista Marc Jarblum, o ativista e nacionalista judeu Victor
Jacobson, e entre outros o erudito Zalman Rubashov, que, mais tarde, viria a ser presidente
do Estado de Israel, com o sobrenome Shazar.
Jacob Nachbin, como já dissemos antes, procurou em Portugal, além de fontes
históricas para seu trabalho de pesquisa, um contato com os estudiosos portugueses
interessados no estudo dos judeus da Península. Em relato publicado na “Gazeta Israelita”,
ele fez referência aos encontros mantidos com o engenheiro Samuel Schwartz, que, na
década de vinte, “descobriu” a existência de cristãos-novos portugueses na região de
Belmonte, descrevendo-os em seu livro “Os Cristãos-Novos do Século XX”. Também
encontrou-se com o eminente professor Moisés Bensabat Amzalak, com o historiador
Joaquim Bensaude, e intelectuais como o Dr. A. Benarus, Felix Bermudes e outros, além do
lider dos marranos portugueses, o Capitão Arthur de Barros Basto. Tudo indica que esses
encontros deram, ao nosso historiador, elementos importantes para o ambicioso projeto de
publicar uma “Coleção de Estudos sobre a História dos Judeus em Portugal e no Brasil”,
dos quais o primeiro e único volume a sair à luz foi o seu livro “Der letzter fun di groisse
Zacutos” (O Último dos Grandes Zacutos), obra que deu a Nachbin um lugar entre os
historiadores judeus que se ocuparam com a temática, de modo geral, e o tornou um
precursor da historiografia judaica no Brasil.
Na última página de seu opus maius, “O Último dos Grandes Zacutos”, ele
anunciou a publicação de um segundo volume na coleção citada, que deveria tratar do tema
“A Frota Marítima das Descobertas Portuguesas e seus Mestres Judeus”, mas que nunca
383
chegou a ser publicado. Do mesmo modo, certos títulos constantes na mesma relação de
suas obras foram publicados em forma de artigos e constituem esboços ou sínteses de
trabalhos que, conforme ele mesmo disse em artigo publicado na “Gazeta Israelita” sobre
Antonio José da Silva, o Judeu, deveriam, futuramente, vir a luz em forma de livros.
Após vários meses de estadia na Europa, Nachbin voltou ao Brasil em meados
de 1929, para seguir, no início do ano seguinte, aos Estados Unidos, como noticiou a
“Gazeta Israelita” de 27 de dezembro de 1929, com “finalidades científicas, além de outras,
na área de história dos judeus no Brasil e Portugal, na qual o senhor Nachbin trabalha há
muito tempo e na qual conseguiu jorrar luz sobre capítulos de importância nacional-
judaica...”. Começava, assim, uma nova etapa na vida de nosso irrequieto historiador, que
fixou residência no solo norte-americano e onde exerceu a função de arquivista na North-
western University, em Evanston, chegando a publicar, como resultado de quase dois anos
de trabalho, um “Descriptive Calendar of South American Manuscripts”, na revista “The
Hispanic American Historical Review”, além de outros trabalhos em outros orgãos de
imprensa e revistas especializadas. Por outro lado, as dificuldades financeiras e o trabalho
de arquivista, em condições materiais pouco favoráveis, levaram-no a ser internado para um
tratamento de doença pulmonar, adquirida durante sua permanência nos Estados Unidos.
Ainda durante esse período, ele produziu, entre abril e setembro de 1930, uma
série de estudos, publicados no conhecido periódico americano “Di Zukunft” (“O Futuro”),
sob os títulos “Os Judeus no Brasil” e “A Moderna Comunidade Judaica no Brasil”,
tratando o primeiro da presença israelita desde os primórdios da colonização portuguesa em
nosso solo, até os tempos recentes, e detendo-se o segundo na descrição da comunidade no
século XX. Nesses artigos, Nachbin revelou uma excelente intuição de historiador, ao
apontar a necessidade de se escrever uma história recente, ou seja, da nova imigração
israelita, a partir do século passado, pois nada fora feito até o seu tempo. Não somente isso;
ele, nesses trabalhos, já esboçava uma pequena história da imprensa judaica que iria servir,
mais tarde, a Isaac Raizman em sua obra sobre “Um Quarto de Século de Imprensa Judaica
no Brasil (1915-1940)”, publicada em 1968, em Israel.
Mas, dentre todos os trabalhos de Nachbin, ainda “O Último dos Grandes
Zacutos” permaneceu como a obra mais significativa que saiu de sua pena. Publicada em
Paris, em 1929 (na mesma editora que publicava um outro livro que marcaria época, o
“Baruch Spinoza e seu Tempo”, de Nahum Sokolov), permaneceu o seu livro praticamente
desconhecido do público interessado, principalmente devido ao fato de ter sido escrito em
ídiche. O livro trata da vida e obra de Zacuto Lusitano (1576-1642), médico famoso em seu
tempo e descendente do astrônomo da corte de João II e Manuel I, Abraham ben Samuel
Zacuto, mentor das descobertas portuguesas no período da expansão marítima. O livro é
dividido em doze capítulos, nos quais o autor procurou retratar a genealogia da família
Zacuto Lusitano, cujo nome cristão era Manuel Álvares de Távora. Abandonou, em 1925,
sua terra natal e dirigiu-se a Amsterdam, onde retornou ao judaísmo e passou a usar o nome
Abraham Zacuth, mesmo em seu escritos médicos.
Na introdução ao seu livro, Nachbin escreveu que seu objetivo inicial era tratar
da história dos judeus no Brasil, “mas de imediato ficou evidenciado que a história dos
judeus no Brasil tem suas raízes na Península Ibérica em geral, e em particular em Portugal,
de modo que não podemos separar o judaísmo ibérico de seu período medieval, o qual
terminou por se ligar, ao mesmo tempo, a dois continentes”. Mais adiante, ele diz que o
“material sobre a história dos judeus no Brasil, que reuni durante anos, já pode compor uma
obra volumosa acerca de um capítulo desconhecido da história judaica”.
384
673
Sobre ele vide meus livros “Jacob Nachbin”, ed. Nobel, São Paulo, 1985, e “Manasche, sua vida e seu
tempo”, ed. Perspectiva, São Paulo, 1996.
385
679
Raizman, I. Z, Geschichte fun idn in Brazil (História dos judeus no Brasil) São Paulo, 1935. Em 1937 seria
publicada a tradução portuguesa sob o título “História dos Israelitas no Brasil”.
680
Raizman, I. Z., A fértil yohr-hundert idische presse in Brazil. (Um quarto de século de imprensa judaica no
Brasil), Safed, 1968.
681
Raizman, I. Z., Idische scheferrischkeit in portugalischen loschen (A criatividade judaica em língua
portuguesa), Safed, 1975.
682
Raizman, I. Z., Lebens in schturm (Vidas tempestuosas), Tel-Aviv, 1965.
683
Mello, J. A . Gonsalves de,Tempo dos Flamengos, J. Olympio Editores, Rio de Janeiro, 1947.
684
Mello, J. A. Gonsalves de, Gente da Nação, Ed. Massangana, Recife, 1989.
685
Wiznitzer, A., O Livro de Atas das Congregações judaicas Zur Israel em Recife e Magen Abraham em
Mauricia, Brasil,1648-1653, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1952.
387
período colonial” que seria uma primeira síntese sobre aquele período, fundamentada, em
parte, sobre uma ampla bibliografia e fontes primárias 686.
Isaac S. Emmanuel concentraria seu trabalho científico no estudo dos israelitas
sob o domínio holandês apoiado numa pesquisa profunda na documentação dos arquivos
holandeses, assim como o fizera José Antonio G. de Mello, porém com a qualidade
adicional de poder estudar as fontes hebraicas devido ao conhecimento que possuia dessa
língua 687. Seu trabalho estendeu-se ao estudo dos judeus na região do Caribe, Salônica e
outros lugares, ultrapassando assim os limites geográficos do Brasil 688.
Devemos lembrar que ainda nos fins de 40 e inícios de 50 Kurt Loewenstamm,
um rabino oriundo da Europa Central que havia imigrado ao Brasil após a Segunda Guerra
Mundial, publicaria dois volumes sob o título de “Vultos judaicos no Brasil” 689 que repetia,
em boa parte, e com certa ingenuidade de amador curioso e pouco preparado, os erros e as
afirmações apologéticas sobre certas personalidades judio-brasileiras cuja pertinência ao
judaísmo nem sempre poderia ser provado, mesmo porque não havia elementos que o
comprovasse. O interessante na obra de Loewenstamm é a percepção da existência de
judeus que se destacaram na sociedade brasileira no século XIX e seu intento em biografá-
los, num período que a nova imigração, isto é, a contemporânea, ainda não fora alvo de
uma preocupação historiográfica por parte de nossos pesquisadores. Talvez seja este um
dos méritos do trabalho desse historiador. Porém, seríamos injustos com esse autor se não
lembrássemos uma republicação sobre D. Pedro II como hebraísta e tradutor de poesia
judaica contadino-provençal, que foi sem dúvida uma contribuição pioneira para a
divulgação do conhecimento lingüístico, do hebraico e do provençal, do sábio Imperador
690
.
Foi durante os anos 50 que se deram várias iniciativas de se formar um Arquivo para
estudos históricos judaicos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e posteriormente em São
Paulo, que teria como objetivo precípuo o incentivo às pesquisas sobre os judeus no Brasil
e a publicação dos seus resultados. O periódico comunitário “Aonde Vamos?” serviu de
veículo para a divulgação da idéia de formação do assim denominado Instituto Judaico
Brasileiro de Pesquisa em dezembro de 1952, passando a publicar os artigos de seus
membros. Pelo que sabemos os únicos pesquisadores, na época, que chegaram a apresentar
ao grande público do “Aonde Vamos?” alguns artigos de valor foram Isaac S. Emmanuel e
Arnold Wiznitzer. Além desse foi colaborador do “Aonde Vamos?” nesse mesmo período,
Ernest Feder, um intelectual de alto nível cultural que imigrou ao Brasil durante a Segunda
Guerra Mundial, com excelente formação humanista, ainda que não fosse historiador,
chegou a publicar alguns artigos de interesse relativos à temática judaico-brasileira. Ernest
Feder voltaria mais tarde a Europa sem dar continuidade ao trabalho que havia iniciado no
Brasil. Uma outra tentativa de se criar um instituto histórico judaico naqueles anos, se deu
686
Wiznitzer, A., Os Judeus no Brasil Colonial, Pioneira-Edusp, São Paulo, 1966.
687
I. S. Emmanuel publicou uma série de artigos na revista “Aonde Vamos?” sob o título “Fortuna e
Infortúnios dos judeus no Brasil (1630-1654)” números 632-644, 1955. V. também “New Lights on Early
American Jewry”, in American Jewish Archives,January, 1955.
688
Emmanuel, I. S., Histoire des Israelites de Salonique, Thonon-Paris, 1936.
689
Loewenstamm, K., Vultos judaicos no Brasil, 1500-1822, Rio de Janeiro, 1949; Vultos
Judaicos no Brasil, 1822-1889, Monte Scopus, Rio de Janeiro, 1956.
690
Loewenstamm, K., O Hebraista no Trono do Brasil: Imperador D. Pedro II, Biblos, Rio
de Janeiro, s.d.
388
em Belo Horizonte sob a iniciativa do historiador Isaias Golgher, conhecido pelos seus
trabalhos sobre a história do Brasil colonial, mas que não chegou a concretizar seu
ambicionado projeto. A bem da verdade a preocupação pela preservação das fontes
documentais sobre os judeus no Brasil remonta ainda ao ano de 1928 segundo uma notícia
que encontramos no jornal Idische Folkszeitung 691na qual o escritor, recém chegado ao
país, Menasche Halpern, solicitava, como representante do Instituto Científico Judaico
YIWO, fundado em 1925, em Vilna, documentos de toda natureza relativos à presença
israelita em território nacional. Nada sabemos dos resultados dessa solicitação, mas temos
conhecimento de que o YIWO efetivamente criou nos anos 40 uma seção brasileira em São
Paulo e Rio de Janeiro, sob a direção do premiado escritor de língua ídiche, Meier
Kutchinsky, e outros, que visava recolher material documental sobre a mesma temática. O
fracasso de todas essas tentativas foi extremamente prejudicial à pesquisa e a preservação
da memória da imigração judaica em nosso território uma vez que a não preservação das
fontes documentais e a falta de um arquivo comunitário central organizado em bases
científicas levou a perda de material precioso aos estudiosos. A destruição causada pelo
tempo de coleções particulares e institucionais se deveu, em boa parte a inexistência de
uma consciência histórica na própria comunidade judaico-brasileira que não soube valorizar
e avaliar corretamente o papel que os judeus tiveram na formação, desde a Descoberta, da
nacionalidade brasileira. Por outro lado devemos assinalar que as mesmas situações que
explicam a pouca atenção dada à história judaica se manifestam de certo modo na
sociedade mais ampla que ainda luta para desenvolver a consciência coletiva no sentido de
apontar a importância da preservação de documentos, à nível desejado, em relação à
própria história do Brasil, processo esse que se deu acentuadamente em tempos mais
recentes e na medida que as universidades brasileiras começaram a introduzir em seus
programas também cursos de arquivística. Durante muito tempo a documentação
acumulada nos arquivos nacionais, em vários estados do país, não mereceram o cuidado
necessário que deveriam ter com raras exceções, pois as houveram, não tiveram meios e
recursos adequando para se colocar à disposição dos estudiosos de nossa história. Nessa
sucessão de tentativas de se formar um Arquivo judaico no Brasil, viria a surgir, em 1976,
em São Paulo, o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro fundado por um grupo de professores
e alunos da Universidade de São Paulo e que contava ainda com a participação de Egon e
Frieda Wolff. Apesar das dificuldades iniciais e do pequeno apoio que recebeu a novel
instituição esta conseguiu reunir um acervo documental importante relativo à imigração e a
presença judaica no Brasil, que atraiu e estimulou jovens pesquisadores a se interessarem
pela temática judaico-brasileira resultando em trabalhos universitários com os quais
obtiveram títulos de mestrado e doutorado. Durante esses anos, desde sua fundação, o
Arquivo paulista realizou eventos culturais e exposições bem como publicou catálogos de
alguns de seus fundos ou coleções, ainda que os seus recursos fossem limitados e
contassem apenas com a boa vontade de um pequeno grupo de abnegados colaboradores.
Nos últimos anos, vem despertando um interesse maior pela história dos judeus no Brasil o
que pode ser comprovado pelo elevado número de trabalhos publicados, ou trabalhos
científicos em elaboração, de jovens pesquisadores que estudam os vários segmentos dessa
fascinante história.
691
O jornal foi fundado em 1927 e servia como veículo de informação, em língua ídiche, a todas as
comunidades judaicas do país.
389
692
Salvador, J. G., Os Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição, Pioneira-EDUSP, São
Paulo, 1969.
693
Salvador, J. G., Os Cristãos-novos, povoamento e conquista do solo brasileiro
(1530-1680), Pioneira-EDUSP, São Paulo, 1979.
694
Salvador, J. G., Os Cristãos-novos e o comércio no Atlântico Meridional, Pioneira-
EDUSP, São Paulo, 1978.
695
Salvador, J. G., Os Magnatas do tráfico negreiro, Pioneira-EDUSP, São Paulo,
1981.
696
Lipiner, E., Os judaizantes nas capitanias de cima, Brasiliense, São Paulo, 1969.
697
Lipiner, E., Santa Inquisição: Terror e linguagem, Documentário, Rio de Janeiro, 1977.
390
dos alunos da Universidade de São Paulo, que abordaram aspectos particulares do novo
cristianismo no Brasil em uma tentativa de elucidar momentos de sua história no contexto
da própria expansão territorial e de formação da nacionalidade brasileira.
Um passo importante e que teria uma repercussão favorável para a abertura de
uma nova área de estudos, que permanecia como tabula rasa, isto é, a imigração no período
contemporâneo, a partir do século passado, quando se permitiu, através do Tratado de
Amizade entre o governo Imperial e a Inglaterra, a vinda e o estabelecimento de imigrantes
de religiões católicas no Brasil, foi a criação, em 1976, em São Paulo , do referido
anteriormente, Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, com a participação do autor destas
linhas e um pequeno grupo de alunos e professores da Universidade de São Paulo 698.
Porém além desses veio ajuntar-se ao grupo Egon e Frieda Wolff, pesquisadores que
dariam a contribuição mais significativa a essa área esquecida pelos historiadores do
judaísmo brasileiro, até então. Poucos anos antes despertou também no autor destas linhas a
consciência da importância de se chamar a atenção para o estudo da imigração mais
recente, a contemporânea, que se ressentia pela falta de uma definição cronológica mais
rigorosa e em parte pelo ceticismo quanto as possibilidades de uma investigação mais
profunda uma vez que não havia nenhum arquivo comunitário-judaico que pudesse dispor
de fontes documentais para qualquer investigação. As fontes deveriam ser localizadas ou
“descobertas” pelos próprios interessados no trabalho de pesquisa. Importante, nessa etapa,
era a criação de modelos de pesquisa e apontar caminhos para um trabalho científico que
ainda estava para ser realizado e onde pouco havia sido feito, anteriormente. Foi assim que
resolvemos investigar alguns aspectos relativos à imigração da Europa Oriental, de língua e
cultura ídiche, que constitui a maioria dos israelitas vindos ao Brasil, a começar do fim do
século passado e mais acentuadamente em nosso século, após a Primeira Guerra Mundial.
O papel formador da vida comunitária dos imigrantes da Polônia, Rússia,
Romênia, Lituânia, e outros países daquela região que se revelou no grande número de
instituições, sinagogas, escolas, entidades de beneficência e associações culturais era
inegável e os resgate particular de sua história, assim pensávamos, deveria ser o primeiro
passo para a compreensão de um grande processo imigratório que não somente se dirigiu ao
Brasil, mas às Américas como um todo. A fascinante saga de nossos pais, avós e
antepassados nos despertara o desejo de entender o seu mundo espiritual e suas raízes que
foram transpostos ao novo continente, assim como tentei demonstrar em artigos, mais tarde
compilados, parcialmente, no meu “Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil”699. A
maior dificuldade para se dar continuidade a esse começo ainda permanece pois a nova
geração de pesquisadores para tanto, deverá superar um obstáculo lingüístico, ou seja, o
conhecimento da língua ídiche e sua criatividade cultural secular.
Mas como já dissemos a grande contribuição para a história recente dos judeus
no Brasil seria dada por Egon Wolff e sua companheira de pesquisa Frieda Wolff, cuja
produção científica, sob aspecto quantitativo e qualitativo, pode ser considerado único na
atual historiografia relativa à imigração judaica no país, e sobre a qual queremos fixar nossa
atenção uma vez que este é o foco central dessa nossa modesta avaliação da historiografia
judaica no Brasil.
698
Falbel, N., The Brazilian Jewish Historical Archives: Its Creation and Its Research Projects, in American
Jewish Archives, november, 1980.
699
Falbel, N., Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil, ed. F.I.E.S.P, São Paulo, 1984.
391
Porém, antes de fazermos uma análise abrangente da obra de Egon Wolff como parte desta
introdução ao levantamento bibliográfico do conjunto de sua obra, devemos alertar os
nossos estudiosos que passou ser extremamente difícil separar com absoluto rigor o que
representa a obra de Egon Wolff e o que representa o trabalho de sua companheira, uma
vez que tudo foi pesquisado o foi por ambos, como um verdadeiro trabalho à quatro mãos.
Por outro lado, e com justa homenagem ao historiador falecido, queremos traçar
em poucas linhas um pequeno esboço biográfico de Egon Wolff para nosso melhor
conhecimento do homem e do historiador.
Egon Wolff nasceu em 28 de julho de 1910 em Budsin, na Alemanha, de uma
família judaica de classe média e durante os anos 30 estudou Direito, na Universidade
Friedrick Wilhelm de Barlim, onde encontraria sua futura esposa Frieda, com a qual casaria
em 1934. Naquele período crítico para a população judaica da Alemanha, devido à
ascensão do nazismo ao poder, não restava outra via senão a saída daquele país a lugares
mais seguros, e após superarem muitas dificuldades e obstáculos, viajando por alguns
países da Europa, o jovem casal conseguiu chegar, em fevereiro de 1936, ao Brasil. Em São
Paulo, a cidade na qual se estabeleceram de início, ao chegarem ao seu novo lar, dedicou-se
Egon a atividade comercial, na qual teve pleno sucesso devido a sua reconhecível
inteligência, dedicação ao trabalho e cará ter íntegro.
O interesse inicial pela história dos judeus no Brasil deu-se ainda nos anos 60
quando Egon e Frieda já haviam se transferido à cidade do Rio de Janeiro e atuavam em
instituições comunitárias, em particular no setor de beneficência vinculado à Policlínica
Israelita, mais tarde Hospital Israelita Sabin. A curiosidade pelo judaísmo brasileiro e a
constatação de inexistência de uma literatura histórica que pudesse satisfazê-los e dirimir
suas dúvidas e inquietudes os levou a procurar as fontes primárias, a começar da imprensa
nacional do século passado, a qual forneceu aos pesquisadores os primeiros elementos
sobre a imigração do século XIX, Pacientemente, Egon e Frieda, foram colhendo e
sistematizando dados extraídos dos periódicos que passaram a ser complementados por
outro tipo de fontes tais como as epigráficas que resultaram de levantamentos dos
cemitérios mais antigos do Rio de Janeiro e de outros lugares, desde o Norte ao Sul do país.
A procura de rastros dos imigrantes e sua famílias não se restringiu às fontes nacionais mas
se ampliou, através de constantes viagens ao exterior, com a consulta de jornais em vários
países.
A intensa atividade filantrópica exercida por Egon Wolff na Sociedade
Beneficente Israelita (Policlínica Israelita) mais tarde Hospital Israelita, entre os anos de
1961 e 1967, não impediu que seu interesse pela história da imigração judaica ficasse
esquecido pois a publicação do Boletim Informativo daquela instituição inseria, sob
pseudônimos diversos, sempre alguma matéria histórica que refletia seu incansável
interesse pelo passado. Os resultados mais maduros de suas pesquisas naqueles anos
podemos constatar nos artigos que foram publicados em 1972 na revista “Aonde Vamos?”
e que, vão se ampliando a partir de seu primeiro livro, “Os Judeus no Brasil Imperial”,
passando a aparecer em outros periódicos, onde tinham uma seção permanente tais como a
Resenha Judaica, o Jornal Israelita, Menorah, Shalom, Herança Judaica, bem como em
revistas do exterior tais como a Studia Rosenthaliana e Archives Juives. Nesse ínterim
Egon Wolff e Frieda ingressam como membros do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro participando em suas sessões com contribuições originais e interessantes
392
Por outro lado não podemos desconhecer que no conjunto de seus trabalhos
Egon Wolff mostraria uma preocupação por certos aspectos da história dos cristãos novos e
a atuação da inquisição no Brasil assim como pela imigração mais recente, o que podemos
comprovar pela diversidade de artigos publicados sobre esses temas, que devido a sua
dispersão justificam a coletânea que ora publicamos. Os “Dicionários biográficos I e II”
reúnem, nesse sentido uma profusão de dados que são de enorme valia aos pesquisadores e
estudiosos uma vez que estão concentrados e sistematizados, poderíamos dizer,
didaticamente, facilitando a sua localização através de uma clara identificação de fontes e
bibliografias. A publicação de artigos e livros sobre a imigração judaica contemporânea
permitiu redimensionar o papel e a contribuição dos judeus na sociedade brasileira
evidenciando a sua participação na vida econômica, política, militar, cultural e social do
país.
Como decorrência de uma informação mais exata que a sua obra fornece,
sociólogos, antropólogos e cientistas sociais tem hoje a possibilidade de efetuar estudos em
suas áreas específicas e poderão se defrontar, com uma informação mais apurada, com
questionamentos sobre assimilação e aculturação dos judeus no país em que vivem, o ritmo
e as etapas de integração social das várias levas imigratórias, sua distribuição profissional e
demais aspectos. Os levantamentos genealógicos das famílias israelitas do século passado
feitos por Egon Wolff podem ser considerados únicos em nossa historiografia e jorram luz
sobre certos processos sociais de assimilação e aculturação, lembrados acima, além de
fornecerem dados importantes sobre os seus personagens e descendentes. Para finalizarmos
esse pequeno estudo introdutório da obra de Egon Wolff queremos lembrar as eloqüentes
palavras do eminente historiador que foi o professor Dr. Eurípides Simões de Paula, da
Universidade de São Paulo, que na introdução ao primeiro livro publicado pelo casal Wolff,
“Os judeus no Brasil Imperial”, pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, em 1975, assim escreveu:
“Ao receber o presente trabalho das mãos do Prof. Dr. Nachman Falbel para
publicação soube que os autores, Egon e Frieda Wolff, pesquisaram durante muitos anos
arquivos do Rio de Janeiro a fim de realizarem o seu objetivo: o levantamento das fontes
para o estudo dos judeus no Brasil Imperial.
O caráter inédito dos trabalhos consiste justamente no fato de que o período do
nosso Império ainda não foi até agora devidamente estudado sob o ângulo da presença dos
judeus e sua participação social e econômica naquele período. É importante e necessário
que se fizesse antes de tudo uma avaliação básica das fontes disponíveis para os futuros
estudiosos.
Assim temos com esta pesquisa uma idéia das famílias importantes das
comunidades judias dos grandes centros urbanos e sua atividade econômica, e da quais
saíram brasileiros ilustres como Luiz Matheus Maylasky, David Moretzsohn Campista e
outros. Por outro, e com certa surpresa, encontramos organizações comunitárias já
estruturadas como a União Israelita do Brasil, que antecedem a outras instituições que
surgiram posteriormente. Outros aspectos importantes que encontramos nesse estudo estão
ligados a questão da origem dos judeus que imigraram a nossa terra e a formação dos
primeiros núcleos populacionais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande
do Sul e o de Recife, Maceió e Belém.
394
700
Sua esposa Ruth Iussim publicou no Boletim Informativo do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, n. 10,
dez.-jan. 1997-8, um pequeno artigo sobre seu esposo.
396
projeto entre as datas de 1953 e 1955, o que, talvez, significasse que pretendia termina-lo
nesse espaço de tempo. O impresso em questão respondia cerca de 20 questões relativas ao
projeto, a começar do objetivo do Léxico ao qual Iussim respondia de que “constituirá o
Memorial da coletividade judaica de todo o Brasil.” Ele explicará que os judeus , outrora,
costumavam anotar as importantes datas num ‘Pinkas’ e cada comunidade possuia seu
memorial, “e portanto era nosso dever registrar a vida coletiva atual , de maniera que fique
gravada para sempre, na memória das gerações futuras. Eis a finalidade do Léxico.” Quanto
aos idiomas da publicação ele via a necessidade de adotar o ídiche e no vernáculo, por ser
a primeira “a linguagem de sua alma e cérebro e o vernáculo para a nova geração, a fim de
que ela tome conhecimento da obra social erigida por seus pais, nesta terra.” O Léxico
deveria conter os dados biográficos de centenas de ativistas sociais e culturais, sua
atividade e contribuição para o desenvolvimento da coletividade judaica e do país em geral
, a começar pelos fundadores e pioneiros, “de meio século atrás ,até os dias de hoje.” Ao
editores previam que o projeto seria editado cm 1.500 páginas, em grande formato de
album, incluindo cerca de 500 biografias, além de históricos das sociedades. Nesse
impresso informava-se que no primeiro ano havia-se coletado 280 biografias e dados sobre
cerca de 40 sociedades. A coleta das informações fazia-se mediante um questionário de 15
quesitos que o biografado deveria preencher e remeter à editora, que não se comprometia
em publicar tudo e em especial o que considerava como “momentos puramente decorativos,
tais como chás, banquetes, rifas, desfiles de moda e outros tantos “ornamentos”, ficando tão
sómente os fatos concretos e substanciais de interesse coletivo.” O redator obsrva, ainda,
que poderá enviar o questionário a quem o solicitar, o que não significa que qualquer
pessoa que o preencher entrará no Léxico...” Para exemplificar sobre o modo de
preenchimento do questionário ele publicava um bilhete encantador de M.K. (seria o
escritor Majer Kucinsky?) , “veterano de nossa vida social”: ‘ Prezado amigo Henrique
Iussim. Devolvo-lhe, incluso, o questionário preenchido, e antes de dizer a oração “Em tuas
mãos deposito a minha alma” desejo lembrar-lhe a conhecida história do Bal Shem: Um
judeu viu-se, certa vez, embrenhado numa cerrada floresta. Estava-se em Iom Kipur, ou Dia
da Expiação e ele não tinha consigo um Mahzor (o conjunto de orações dedicadas a certa
festividade) nem Sidur (conjunto das orações do culto sinagogal rotineiro), nenhum livro
de orações. Que fazer? Teve uma idéia: passou o dia pronunciando as letras do alfabeto de
Alef a Taw e vice-versa, e a Deus dirigiu a seguinte prece: “Senhor do Universo! Aqui
tendes as sagradas letras da Torá. Componde delas, as orações que mais Vos agradarem...”
Em outras palavras informava-se que a redação final estaria a cargo dos responáveis pelo
Léxico. O Léxico também pretendia incluir entre os seus biografados intelectuais e
profissionais liberais, estes últimos valorizados na época em que o ideal dos imigrantes era
verem seus filhos formados e ornados com o título de “Doutor”, especialmente como
médicos, engenheiros e advogados. Além de observar sobre o tamanho da biografia e
outros detalhes técnicos, Iussim informava que o Léxico não tratava apenas de individuos
mas visava retratar o panorama completo das atividades sociais dos judeus deste país,
dispensando atenção especial às instituições, como sejam: escolas, a imprensa, instituições
filaântropicas, agremiações culturais, iniciativas científicas, atividades editoriais e trabalhos
de pesquisa, que se relacionam com a vida coletiva dos judeus no Brasil. Finalmente ele
terminava suas explicações sobre o projeto comentando que “a história dos judeus no
Brasil é um vasto campo de estudos ainda não concluidos. Em certo sentido ainda continua
“terra virgem”, à espera do seu redentor. Faremos, porém, o possível para que o Léxico
contenha- um relato substancial a respeito da história dos judeus no Brasil, escrito por
397
42. Apêndices:
Crônica
“Achiezer”
A primeira instituição filantrópica israelita, da qual mais tarde originou-se
o “Relief”, foi fundada em 1912. Naquela época habitavam no Rio cerca de 200
judeus, na sua maioria vendedores ambulantes, e alguns poucos comerciantes
estabelecidos. Os fundadores da sociedade foram os Snrs. Sinai Faingold, Wofsi, o
“Americano”, Benzion Snitcovsky, Tuli Lerner, José Lerner, Fischel Grinberg e
Jacob Schnaider. O objetivo inicial exclusivo era prestar assistência aos novos
imigrantes. Surgiu posteriormente, em concorrência, a sociedade “Agudát Ahim”,
cujos membros ativistas foram os Snrs. Mordechai Kritz, Baruch Bregman e Baruch
Brafman. Por iniciativa dos Snrs. Henrique Knop e Salomão Castro, foi fundada
junto ao “Achiezer” uma biblioteca, que inicialmente contou com livros doados pelos
associados. Dessa maneira, criou-se o fundamento para a existência posterior da
Biblioteca Popular “Scholem Aleichem”.
“Tiferet Zion”
Foi essa a primeira organização sionista do Rio que, sob a denominação
acima, foi fundada em 1913. Coube a iniciativa da sua fundação, a um sionista
vienense de passagem pela cidade, o Sr. Rabinovitch, o qual, juntamente com o Sr.
José Margolis, residente no Rio, a criou, na residência do Sr. Jacob Schnaider, à rua
Senador Euzébio, 117. A primeira diretoria compunha-se dos Snrs. Sinai Faingold,
Presidente, Benzion Snitcovsky, Secretário e Jacob Schnaider, Tesoureiro.
Divulgou essa sociedade o pensamento sionista, promoveu coletas para o
“Keren Kaiemet”, festejou as datas nacionais e esteve em contato com o escritório do
“Keren Kaiemet” em Colônia, na Alemanha.
Em 1916 houve uma reorganização da sociedade “Tiferet Zion”, tendo sido
eleitos para a Diretoria os Snrs. Júlio Stolzenberg, Presidente, Leon Schwartz, Isaac
Roitberg e outros.
Um episódio interessante, demonstrativo das atividades e ligações da
“Tiferet Zion” com organismos sionistas no exterior, é o que descreveremos em
seguida.. Quando foi emitida, em 1917, a Declaração Balfour, e Snrs. Jacob Schnaider
recebeu um telegrama de Chaim Weizman e de Sokolov, os quais solicitaram que se
expressasse agradecimentos ao governo britânico, por intermédio da sua Embaixada
no Rio. Posteriormente, o Snrs. Schnaider e o Dr. I. Perez, receberam um telegrama
do Rei Jorge V em resposta.
Em decorrência da Declaração Balfour, manifesta-se um recrudescimento
das atitividades sionistas no Brasil. Tanto no Rio como em outras cidades, a emissão
401
Poalei Zion
Em 15 de agosto de 1927 foi fundado o Comitê Central do Partido
Operário Socialista Judaico “Poalei Zion”, tendo os iniciadores no Rio sido os Snrs.
Natan Becker, Muni Berechman, Abram Braverman, Aron e Jeremias Heler, Artur
Wainer, Pinchas Stoliar, Isaac Skaler, José Eksman, Moisés Costa, Max Costa. Após a
chegada e integração no Brasil de Aron Bergman, o movimento, sob sua direção,
consolidou-se, tende se filiado à União Mundial Socialista Operária Judaica “Poalei
Zion”.
Bibliotecas:
Biblioteca Bialik
Junto à organização juvenil “Hathchia” existia, desde a época da cisão do
quadro social da Biblioteca Sholem Aleichem, uma outra biblioteca, sob a invocação
do nome de I. Ch. Brenner, e que perdurou até 1937. Nesse ano foi fundada a
Biblioteca Ch. N. Bialik, que se localizou no centro da cidade. Recebeu essa biblioteca
exemplares de todos os livros que eram editados, já tende alcançado um total de 5.000,
sob a dedicada e eficiente atuação do bibliotecário Samuel Greiber, conhecido
popularmente como “Schmilik”. Ocorreu, porém, em 1957, uma catástrofe: em pleno
dia ruiu o edifício de 10 pavimentos da rua do Rosário, 178, no qual estava sita a
Biblioteca e, sepultando sob os escombros todo o patrimônio e o dedicado
companheiro Schmilikl. Sucumbiu a Biblioteca e, com ela, foi-se o dedicado, e por
todos querido, Schmilik, que sua memória seja honrada. Os companheiros do “Poalei
Zion” não desanimaram e iniciaram logo uma campanha para reedificar uma nova
Biblioteca. O resultado concreto dessa campanha foi a aquisição da casa da rua
Fernando Osório, 16, no Flamengo, onde encontraram um lar, uma série de
instituições aparentadas, tais como as Pioneiras, a “Moatzáh”, etc. Possui atualmente
a Biblioteca cerca de 3.000 livros e sua sede tornou-se uma casa do saber judaico.
Convém mencionar os nomes dos que se destacaram na reconstrução da instituição e
continuam até hoje em dia na sua direção, como os Snrs. Leon Schmelzinger, Israel
Dines, Leizer Levinson, Henrique Diamante, Finkelstein, e outros.
Abram Aizengart e Dr. Carlos Gitelman. O objetivo visado foi criar uma biblioteca
própria, para terem um local destinado a atividades culturais em língua ídiche. A
Biblioteca foi inaugurada em 1944, tendo sido denominada em homenagem ao heróico
combatente do “Bund” na Polônia, o mártir Eng. Michal Klepfisz, que se destacou
como um dos mais ativos dirigentes do Levante do Gueto de Varsóvia. Após a chegada
ao Rio do companheiro Sr. Maxim Sztern, a Biblioteca ampliou e aprofundou suas
atividades sócio-culturais, as quais encontram boa receptividade por parte da
coletividade. O patrimônio de livros foi progressivamente sendo aumentado. Após o
término da 2ª Guerra Mundial emigraram para o Rio diversos dirigentes do “Bund”
da Polônia, tais como os Snrs. Herman e Abram Rzezinski, que juntaram-se ao
quadro dirigente da biblioteca. Toda a sua atividade concentra-se, até hoje, em torno
dos problemas culturais judaicos e do interesse pela continuidade nacional. Todo o
visitante cultural dos Estados Unidos, da Argentina ou de outra parte, é
carinhosamente recebido no recinto da pequena Biblioteca, que até recentemente
esteve, localizada à Praça Floriano, 55, na Ceilândia, tendo porém, há alguns meses,
sido transferida para Av. N. S. de Copacabana, 690, 10 o andar, para sede que pode
adquirir por esforço conjunto com uma organização cultural, o Centro Brasileiro de
Cultura Idish. Já se encontra a Biblioteca instalada na nova sede, onde prossegue com
as suas atividades culturais normais. Possui a Biblioteca atualmente cera de 2.000
livros, recebendo exemplares de todos os novos que são editados. Constitui projeto da
sua direção ampliar as suas atividades, participando em iniciativas a favor da
divulgação da língua ídiche, tais como a criação de um curso para jovens para o
ensino da língua.
Imprensa
O conhecido escritor e historiador A. Lipiner menciona, num artigo de sua
autoria, sobre a “História dos Judeus no Brasil”, publicado na Enciclopédia Geral
Judaica, que em 9 de janeiro de l916 foi pela primeira vez editado no Rio de Janeiro
uma revista denominada “Haamud” – A Columna -, em língua portuguesa dirigida
pelo Dr. David Perez, sefaradi, apoiado por judeus asquenazitas. O objetivo da revista
era, conforme declaração da mesma constante, manter a moral tradicional da
comunidade judaica e distanciar-se dos elementos suspeitos. A revista foi editada
durante dois anos, tendo procurado promover a união entre os sefarditas e os
asquenazitas. De acordo com o balanço publicado pelo Comitê de Auxílio (“Relief”) às
vitimas da 1a Guerra Mundial, balanço esse assinado por Tuli Lerner, B. Snitcovsky e
S. Faingold, contribuíram para o mesmo as então já existentes sociedades: Sinagoga
Bet Iacov, Sinagoga do Centro Israelita, Sinagoga Agudat Achim, Sociedade de
Conterrâneos de Varsóvia, de Iedenitz, de Azaritz, de Sokoron, de Lipkon e de
Mohilev.
No mês de novembro de 1923 foi pela primeira vez editado no Rio de
Janeiro um seminário em língua idish, sob a denominação de “Idishe Vochenblat”
(Semanário Israelita), cuja redação era formada por um colegiado composto dos Snrs.
Jacob Nachbin, S. Karakuschansky, I. Katz, A. Kishinovsky e S. Schansky.
No número inaugural, os fundadores do semanário delineiam os objetivos e
propósitos que têm em mente, de criar e despertar nas massas populares judaicas o
interesse pelas atividades sociais; promover a organização e a união da sociedade
israelita no Brasil, cooperar para o desenvolvimento da coletividade como um fator
sadio dentro do quadro econômico e cultural do país. O Idishe Vochenblat espelhou
todas as atividades da sociedade, todas as realizações culturais, por meio de notícias,
relatórios e documentários fotográficos. Assim, por exemplo, assinala a visita do
escritor judeu Anochi, o qual obteve grande sucesso recitando as novelas da sua
autoria, especialmente “Reb Abe”. Consta também em número desse ano a fotografia
de um grupo de sionistas , em companhia do primeiro emissário do movimento, o Dr.
I. Wilensky.
São considerados como pioneiros e colaboradores permanentes do “Idishe
Vochenblat” os seguintes: editor e posteriormente redator responsável, Aron
Koifman; co-redator, José Katz; colaboradores: Bernardo Schulman, Menache Fuks,
Jacob Nachbin, Isaac Reicher, Naftali Iafe, Sabatai Teitelbroit, Isaac Teitelbroit,
Mordechai Koifman, Abram Braum, Simon Waisman, Salomão Bulman e Jacob
Scheinkman.
Num exemplar do semanário do ano de 1925 encontramos um relatório
sobre a visita do escritor e dramaturgo Peretz Hirschbein, o qual tinha proferido uma
serie de conferências sobre temas literários. É também relatada a homenagem
prestada, por um comitê conjunto formado por representantes de todas as instituições
por ocasião do seu 60 o aniversário; a celebração foi presidida por Pinie Guerstein,
com a participação dos Snrs. Nathan Becker, S. Lozinsky, A Koifman e S.
Karakuschansky, representando diversas instituições, tendo logrado grande sucesso.
O semanário “Dos Idishe Vochenblat”, foi editado com regularidade até o
ano de 1927, quando passou a adotar o nome de “Brazilianer Idiche Presse”
(Imprensa Israelita Brasileira), denominação com a qual saiu até 1929, sob a redação
de Aron Koifman.
406
Rede Escolar
Foi fundada junto à organização sionista Unificada, em 1948, um
departamento de educação, o “Machleket Hachinuch”, o qual concentra e controla a
quase totalidade dos estabelecimentos de ensino israelitas do Rio. Todas as escolas
existentes são integrais e de horário diurno, sendo ministradas as disciplinas gerais em
português e para as matérias em ídiche e hebraico é destinado o tempo médio diário
de duas horas. Existem atualmente no Rio de Janeiro os seguintes estabelecimentos de
ensino israelitas:
407
atualmente na direção das entidades da rede escolar, entre outras, as Snras. Ester
Schechtman, no “Vaad Pioneiras-Hachinuch”, Eva Levinson, da “Organização das
Pioneiras” e Ahuva Kestelman, da “Wizo”, nos Círculos de Mães.
Leitura e Cultura
Vivem e trabalham no Rio de Janeiro diversos escritores judeus, os quais
são relativamente produtivos literariamente. O escritor Herch Schwartz, que publicou
dois livros, sobre a vida dos judeus na Bessarábia e no Brasil, duas coletâneas de
contos intituladas “Der Onheib” (O Começo) e “Heim Guingoldene” (Lar Dourado);
D. Rosa Palatnik, autora de três livros de contos sobre a vida nas pequenas cidades da
Polônia, e tentativas de narração da vida judaica no Brasil, intitulados “Kruschnik”,
“Bai dem Roisch fun Atlantik” (Junto ao Rumor do Atlântico) e “Draitzn
Dertzeilunguen” (Treze Histórias). Recebeu a escritora um prêmio, no México, por
um dos seus melhores contos. A crítica mundial judaica manifestou-se favoravelmente
sobre as obras dos dois escritores mencionados.
Também publicaram obras: o escritor S. Karakuschansky, um livro
intitulado “Aspecten” (Aspectos); I. Lande, um volume de contos e poesias; Clara
Steinberg, um livro de contos sobre a vida das camadas pobres brasileiras,
denominado “Oifn Brazilianer Bodn” (Sobre o Solo Brasileiro). Na imprensa são
esporadicamente publicados poesias e contos curtos dos poetas e escritores Pinie
Palatnik, Moisés Lokiecz e Bernardo Schulman.
O grupo de escritores e dirigentes culturais estão organizados, já há mais
de dez anos, num Círculo Literário, que se tem limitado a freqüentes encontros
familiares. A expressão criadora coletiva do Círculo foi a publicação, em 1956, de uma
coletânea denominada “Unzer Baitrag” (Nossa Contribuição), contendo uma série de
contos, ensaios e poesias dos seguintes escritores: Rosa Palatnik, Pinie Palatnik,
Bernardo Schulman, Meier Kutchinsky (de São Paulo), Herch Schwartz, Menache
Halperin (já falecido), Moisés Lokiecz, A. Chassin (já falecido), S. Karakuschansky,
E. Lipiner (de São Paulo), A Gros, Nelson Wainer, Eduardo Horowitz, L.
Schmelzinguer e Betzalel Jucht (já falecido).
Já existe há alguns anos no Rio de Janeiro uim Círculo de Amigos do IWO
(Idischer Wissenschaftlicher Institut” – Instituto Científico Judaico), que está em
contato permanente com a Central do IWO em Nova York, à qual presta serviço
assistência financeira ocasionalmente. O objetivo principal do Círculo de Amigos do
IWO é a coleta e arquivamento de todas as publicações que aparecem sobre a vida
judaica local, em todas as línguas. Os primeiros dirigentes ativos do Círculo, que
organizaram seus trabalhos durante longo período são os Snrs. Israel Sobel, Natan
Bronstein, Leon Schmelzinguer, Ester Schechtman, Isaac Sterental, Gedalie
Gruzman, Pola Barenholc-Aisengart, Bernardo Schulman, Berl Fuks, Herman e
Jorge Rzezinski e Abran Aisengart.
Foi editado pelo Círculo de Amigos do IWO o livro do pedagogo A.
Golomb “A Halber Iorhundert fun Idischer Dertziung” (Meio Século de Educação
Judaica).
Conclusão
Deve-se ainda adicionar ao patrimônio coletivo de caráter cultural,
educacional e social, uma série de instituições mais jovens, tais como: na Zona Norte,
o “Clube Monte Sinai”, já existente há alguns anos e contando com um quadro de
409
42.1.3.Crônica de Curitiba
É fato notório que nas veias de muitas famílias tradicionais brasileiras,
pelo país todo, corre sangue judaico, e o estado do Paraná não constitui exceção neste
particular; indícios de antigos judeus se encontram em considerável número.
Mas, esta crônica não se refere aqueles israelitas que só deixaram vestígios.
Aqui estão sendo anotados os primeiros judeus imigrados, cuja, chegada marca o
inicio da atual coletividade judaica do Paraná.
OS PIONEIROS
O primeiro judeu que apareceu em Curitiba foi José Flaks, que veio em
1889, em companhia da esposa, Roni, e dois meninos, Miguel e Frederico.
Não demorou muito chegaram Max Rosenman e um irmão seu, que logo
morreu de febre amarela (contraída em Santos, pois o clima de Curitiba não é
propício para o mal amarelo).
Vieram esses israelitas da Galícia austríaca, com a leva emigratória, que
então demandava o Paraná, onde o governo se pôs a colonizar as terras incultas, nas
adjacência da metrópole.
Instalaram-se na colônia agrícola Tomás Coelho (hoje Barigui), onde
abriram, em sociedade, um negócio de secos e molhados e compra de gêneros do país.
Elemento útil no intercâmbio entre a cidade e a roça e, além disso, pessoas íntegras e
corretas em suas transações comerciais, criaram bom nome, tanto na cidade como no
campo. Que eram judeus, todo mundo sabia. Flaks, homem piedoso e ortodoxo, era
conhecido pelo traje tradicional, pelo capote, longas barbas e cachos laterais;
Rosenmam, mais mundano e modernamente trajado, costumava ele próprio acentuar
a sua origem. O fato é que todos os chamavam de “judeus”, mas em tom amistoso e
com respeito.
Em 1901, quando os filhos cresceram e surgiu o problema de casamento,
liquidou Flaks os negócios, tomou a sua família (já então enriquecida com uma filha,
Bluma), e regressou à sua cidade natal.
(Seus filhos depois de casados, voltaram todos para Curitiba. São as atuais
famílias Flaks e Weniger).
Max Rosenman ficou. Naquela altura, já tinha casado com sua prometida,
Frida, que veio com os pais dele, já estava instalado na cidade com moinho a vapor e
começou a desempenhar relevante papel na vida pública.
Aos poucos surgiam outros israelitas. A princípio sozinhos, mais tarde
foram trazendo os parentes. Chegaram os Wagner, os Friedman, Flaks, Stolzenberg,
Goldstein, Paciornik, Schulman, Mandelman, Ainseman, Charatz e outros.
Para os recém-imigrados, a casa de Max Rosenman tornara-se ponto de
reunião. Casa acolhedora, hospitaleira, onde todos eram convidados à mesa, ali se
reuniam com freqüência, para entreter-se e trocar idéias sobre assuntos de interesse
coletivo. Na véspera da Páscoa, fabricavam-se em casa de Rosenman os “mazot”, ou
pães ázimos, e nos Dias Solenes, celebravam-se ali os ofícios religiosos.
413
A PRIMEIRA ORGANIZAÇÃO
Por volta de 1913, já se encontravam, na capital paranaense, umas doze
famílias e umas duas dúzias de solteiros, ou senhores cujas esposas ainda
permaneciam no ultramar. Amadureceu o projeto duma organização.O começo, aliás,
neste sentido, já tinha sido feito: por iniciativa de Salomão Goldstein-Paciornik e
Salomão Kaufman, fôra fundada uma Sociedade Cultural. Mas, dessa tentativa só
ficou um carimbo e uma folha de regulamentos. O insucesso da empresa deve ser
atribuído ao fato de aqueles iniciadores não terem tomado em conta o elemento
ortodoxo do “ishuv”, e o radical, de refugiados russos, em que se baseavam, fôra em
sua maioria embora, tomando outros rumos.
Desta vez, porém, houve entendimento entre as partes religiosa e mundana
e no dia 27 de julho de 1913 por iniciativa de Júlio Stolzenberg, Bernardo Schulman,
Leão Charatz e Jacob Mandelman, convocou-se uma reunião, na residência deste, na
qual foi adotada a resolução de fundar uma organização de nome “União Israelita do
Paraná”, com a finalidade de cuidar das necessidades religiosas e culturais da
coletividade.
A 3 de agosto de 1913, realizou-se a assembléia constituinte, na qual foi
eleita a seguinte diretoria: Max Rosenman – presidente; Bernardo Schulman – vice-
presidente; Júlio Stolzenberg – 1o. secretário; Miguel Flaks – 2o secretário; Salomão
Goldstein-Paciornik –tesoureiro; Samuel Bakaleinik, Moisés Schechtman e Salomão
Charatz – conselho fiscal.
Com a fundação da União Israelita, inicia-se uma vida judaica organizada.
Estando-se nas vésperas dos Dias Solenes, tratou-se antes de mais nada, da instalação
de uma sinagoga. Alugaram uma casa, mandaram vir de São Paulo um Sefer-Torá, ou
Rôlo da Lei, e outros utensílios do ritual e, pela primeira vez, quiçá, no solo
paranaense, algumas dezenas de filhos de Israel, celebraram, à Rua Graciosa, a
cerimônia de Kol Nidrei, condigna e solenemente.
A novel entidade entra a crescer. Em cada sessão de diretoria estão sendo
admitidos novos membros.
Na assembléia de 5 de outubro do mesmo ano, foi nomeada uma comissão
constante, de Bernardo Schulman, Júlio Stolzenberg e Leão Charatz, a cujo cargo
ficou a criação e instalação duma biblioteca.
Com a organização da biblioteca, começou-se uma intensa atividade
culturo-social. A União Israelita mudou-se para duas amplas e confortáveis salas, à
rua Cruz Machado, em pleno centro da cidade. Nas horas vagas, reúnem-se os sócios
no recinto da biblioteca – tomam emprestados livros, lêem jornais, jogam xadrez e
discutem os seus problemas.
Por iniciativa de Moisés Shapiro, visitante de Buenos Aires e com a ativa
participação de Júlio Stolzenberg, Bernardo Schulman e Salomão Skop, foi
promovida a primeira tarde lítero-musical, com variado programa de canções (solo e
coro), declamações infantis, leitura de Scholem Aleichem e quadros vivos. A
impressão foi estupenda, já pelo empreendimento inédito em si, já pela realização bem
414
sucedida. A União Israelita vive então o seu período de brilho. Lamentavelmente, este
franco progresso não durou mais que dois anos.
Por motivo de grande guerra, foi interrompida a imigração, e em virtude
de uma crise econômica local, muitos associados foram buscar os meios de vida em
outras partes. Em 1915 a jovem entidade se acha a braços com uma crise financeira,
sendo obrigada a desistir de sua confortável e bem instalada sede social e mudar-se
para uma pequena sala, em casa de Nathan Paciornik, numa rua afastada. A vida
social está paralisada, a biblioteca é raramente freqüentada e as realizações culturais,
cada vez mais escassas.
Em 1916, instituiu-se, por iniciativa de Salomão Guelman, um Comitê de
Socorro, integrado por Max Rosenman, Bernardo Schulman, Frederico Flaks e
Salomão Guelman, em prol das vítimas da guerra. Esse serviço beneficente renovou a
vida social. Promoviam-se vários empreendimentos culturo-sociais e o resultado
material enviava-se por intermédio do “Forward”, ao “Relief” de Nova York.
Por sugestão de Luís Fainovits, criou-se em 1917, um comitê beneficente
feminino, junto à União, com a finalidade de tratar dos casos locais de assistência aos
necessitados. Esse comitê, que mais tarde foi convertido em Sociedade Beneficente
Feminina independente, constou inicialmente de Frida Rosenman, Lúcia Friedman e
Azalea Schulman.
No mesmo ano, ano da Declaração Balfour, Júlio Stolzenberg, Samuel
Fridman e Júlio Schaia fundaram uma organização sionista, denominada “Shelom
Sion”, que entrou em contato com a organização sionista central do Rio, e iniciou, pela
primeira vez em Curitiba, atividades sionistas.
FASE DE RENOVAÇÃO
O ano de 1920 representa um marco na evolução da coletividade judaica
paranaense. Terminara a primeira grande guerra. Da Europa começam a entrar
novos elementos. população judaica cresce em número em qualidade. Ao ecoar na
capital do Paraná o entusiástico regozijo do mundo nacional judaico, em virtude da
decisão de S. Remo, promove a comunidade imponente festival, em que toma parte
toda a população israelita.
Organizado por Júlio Stolzenberg, Bernardo Schulman, Salomão
Guelman,Max G. Paciornik, Salomão Scop e Júlio Schaia, essa solenidade para a qual
foram convidados o cônsul inglês, pessoas gradas do mundo oficial e representantes da
imprensa, realizou-se com brilhantismo fora do comum e o resultado moral e material
ultrapassou as expectativas. Os jornais dedicaram muito espaço ao acontecimento, o
que contribuiu para reerguer o prestígio da comunidade judaica aos olhos da
população cristã.
O sucesso do festival concorreu para que fosse elaborado um plano de
reorganização da vida social sobre alicerces mais sólidos.
Na assembléia geral de 1 de agosto de 1920, realizou-se a fusão das três
instituições então existentes, notadamente: União Israelita do Paraná, Shelom-Sion e
Sociedade-Beneficente Feminina, em uma única entidade geral, denominada
415
A escola chegou, com efeito, a realizar muita coisa, dentro das condições
reinantes. A maior parte da juventude entende perfeitamente o ídiche e uma parte
considerável fala o idioma fluentemente, e de vez em quando até se apresenta em
público nesta língua. Mas tudo isto está bem longe de suficiente para preservar a
continuidade.
O certo é que a população judaica em Curitiba, que conta atualmente
umas 300 famílias, ou seja, umas 1200 almas, acha-se diante dos mesmos graves
problemas, com os quais se debate a coletividade judaica de todo o Brasil.
Curitiba, Março,1953
418
judaica de Porto Alegre, denominada União Israelita, sob a presidência de Salomão Levi.
Em outubro de 1910, a sociedade foi reorganizada, sob a denominação "União
Israelita Portoalegrense", tendo por objetivo a fundação duma sinagoga e um cemitério
israelita.
No mesmo ano, foi adquirido um terreno adequado e assim instituído o
primeiro cemitério israelita do Brasil. Decorrido algum tempo, formou-se junto à União um
grêmio «Ezra», com a finalidade de amparar moral e materialmente os novos imigrantes,
que continuavam a chegar tanto das mencionadas procedências, como da Europa. Fundou-
se igualmente uma agremiação «Achva», que tomou a si o encargo de fornecer carne
«kosher» aos israelitas piedosos.
A primeira diretoria da União Israelita Portoalegrense foi assim constituída:
Salomão Levi – presidente; Bernardo Levgoi – vice-presidente; Leão Back – secretário;
Júlio Lubianco – tesoureiro.
Inicialmente, a União funcionava em local alugado. Passado algum tempo,
mudou-se para sede própria, À rua Barros Cassal, onde se acha instalada até a data
presente.
O PRIMEIRO PERIÓDICO JUDAICO
Em primeiro de dezembro de 1915, apareceu em Porto Alegre o primeiro
periódico judaico do Brasil, denominado “A Humanidade”. Foi um semanário, que se
publicava em 4 páginas, pequeno formato de jornal, escrito num ídiche puro e, para aquele
tempo, moderno, sob a redação de Iosef Halevi, colaborador do jornal «Hazefira» de
Varsóvia, que então se achava na capital riograndense (procedente provavelmente da
Argentina).701
A publicação foi editada pela “Sociedade Jornalística Israelita”, constituída por
obrigações no valor de 25 mil réis cada uma. Os nomes dos acionistas, que figuraram no
primeiro volume desta, são os seguintes: Salomão Kaufman, Bernardo Levgoi, Efraim
Lifschitz, Lipe Waldman, V. Meltzer, Abraão Soibelman, Iechiel Kvitko, Ch. Fischman, S.
Raicher, Germano Zeltzer, I. Goldmanberg, Baruch Goldenberg, José Lerner, Samuel
Kleinman, Mosés Pessis, Bernardo Topolar, Moisés Topolar, Moisés Kapeliuschnik e
Zalmen Weksler.
Vale citar alguns títulos do primeiro número que refletem o caráter do
semanário, bem como alguns aspectos da vida judaica local, daquela época:
«A Guerra Européia» - comentário sobre o curso geral da primeira guerra
mundial, que então estava no auge; «Últimas Notícias» - informes a respeito de
acontecimentos mundiais; «Os judeus na Rússia» - descrição das condições dos judeus
daquele país, os quais, sofrem, além das conseqüências da guerra, discriminações raciais de
toda sorte; «A Guerra e os Judeus» - notícias judaicas relacionadas com a guerra;
“Educação Israelita e Auto-educação” – conferência de Iosef Halevi, lida no salão da
“Ezra”; “Em vez dum programa” – comentário humorístico, em que “judeu sem barba”
explica as razões por que “A Humanidade” não seguirá a orientação Sionista, nem
socialista e será, sim, uma publicação imparcial. “Teatro” – crítica teatral sobre a peça
701
Sobre ele vide artigo em outro lugar desta coletânea.
420
702
Trata-se da rede educacioal denominada “Tarbut”, de tendência sionista e adepta da cultura
predominantemente hebraica que se formou na Europa Oriental entre as duas guerras mundiais.
422
A PRIMEIRA ORGANIZAÇÃO
Pelos fins de 1913, já viviam em Recife umas 15 famílias israelitas, além de
certo número de solteiros. Nos primeiros meses de 1914, foi fundada a primeira sociedade
israelita, denominada “Agudat Achim”.Os fundadores dessa agremiação eram os irmãos
Rabin, Israel Kelmenson, Meier Bancovski, M. Meshiach, Velvel Schapaval e Simão
Rubinski. Como presidente foi eleito Salomão Scheinberg.
A sociedade “Agudat Achim”, com finalidades religiosas e beneficentes,
congregou logo em torno de si todos os moradores israelitas da cidade. Funcionava a
primeira organização israelita numa sede alugada, à rua Imperatriz, onde haviam instalado
sinagoga provisória e uma pequena caixa de empréstimos.
O DESENVOLVIMENTO
A coletividade começava a crescer a desenvolver-se, mas a guerra mundial
interrompeu repentinamente a corrente imigratória. As atividades sociais, durante os anos
da guerra, limitavam-se quase que exclusivamente à coleta de fundos para socorrer as
vítimas da guerra. Um ano após o término da guerra, em 1919, fundou-se o Centro Israelita,
que inicialmente tinha por objetivo a organização dum cemitério judaico e duma sinagoga.
(Os nomes dos fundadores e detalhes sobre as atividades dessa instituição encontram-se
adiante, numa nota especial).
Simultaneamente, foi também fundada por iniciativa de Luis Adler, A
“Associação Israelita de Pernambuco”, cuja primeira diretoria constava dos seguintes
membros: Isaac Weisberg, presidente; Samuel Messel, secretário das atas; Moisés Rabin,
secretário de finanças; Nathan Messel, tesoureiro; Naum Aizen, Simão Waisman e Luis
Alder, vogais. Essa entidade desenvolvia, durante os cinco anos de sua existência, intensa
atividade sócio-cultural. Criou uma biblioteca, um Circulo dramático, organizava saraus
literários, espetáculos teatrais, bailes e outras realizações. Contribuíram muito para as
realizações culturais da associação, os intelectuais Jacob Nachbin e Nathan Jaffe.
ATIVIDADES SIONISTAS
Certa atividade sionista, esporádica, teve começo, em Recife, logo que
chegaram os primeiros sionistas: os Sheinbergs, os Rabins, Kelmansons, etc. Mas, forma
organizacional tomou somente em 1921, quando, por influência do primeiro delegado
sionista no Brasil, Dr. Vilenski, foi fundado o “Comitê do Keren Haiesod”,que entrou a
desenvolver sistemática atividade sionista.
Em 1924 foi fundada a Escola Israelita Brasileira, precursora do atual Ginásio.
BENEFICÊNCIA
Já a primeira agremiação “Agudat Achim” havia criado uma caixa de socorros,
a fim de prestar auxílio monetário aos que disso necessitavam. Posteriormente foi essa
assistência ampliada. Em 1916, foi fundado, em ligação com o “Joint” americano, o “Relief
Comitê”, com a finalidade de instalar os novos imigrantes israelitas. Esse comitê,
inicialmente dirigido por Luis e Bássie Adler e Luis Scheinberg, foi posteriormente
convertido em “Sociedade Beneficente Feminina”, que existe até hoje. A primeira
presidente daquela instituição foi a saudosa senhora Rosa Waisman, cujo nome é
atualmente conhecido em todo país, como servidora fiel dos interesses da coletividade. Em
428
1925, foi fundada, por iniciativa de Luis Adler a “Lai Un Spar-Kasse”, instituição
financeira legalizada, que contribuiu para o desenvolvimento do comércio israelita de
Pernambuco. Em 1930, foi fundado o Banco Israelita Popular, que tem a seu crédito longa
folha de serviços prestados ao comércio e a indústria.
O CRESCIMENTO DO “ISHUV”
A comunidade israelita de Recife, foi entrando na fase de franco
desenvolvimento, a vida social foi tomando vulto e o “ishuv” pernambucano começou a
tomar lugar de destaque na vida judaica do Brasil. Mas, com o advento do novo regime do
país e com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, o crescimento da coletividade e sua
evolução ficaram paralisados. Em Recife, como em outras partes, o ímpeto da vida social
judaica havia esmorecido.
Foi só com o restabelecimento do regime constitucional no Brasil, que as
figuras ativas da coletividade pernambucana, entraram a renovar a obra social, e com o
surgimento do Estado de Israel, a vida social judaica entrou numa nova fase de intensa
atividade. Foi fundada a seção local da Organização Sionista Unificada, foram ampliadas e
reorganizadas as atividades da Wizo, e instituiu-se o Clube Hebraico (1950).
Lugar de especial destaque na vida coletiva dos israelitas pernambucanos ocupa
a escola, que se desenvolveu grandemente e se converteu num ginásio, o terceiro ginásio
israelita do país.
A coletividade judaica de Recife conta atualmente cerca de 400 famílias.
429
A SEDE PRÓPRIA
O novo período da vida social judaica de São Salvador atingiu seu apogeu em
1949, quando a Comissão Construtora da “Sociedade Beneficente” entregou à coletividade
o edifício próprio, construção magnífica de amplas proporções, que faz honra à pequena
comunidade e de que centros maiores poderiam orgulhar-se.
No decurso de três anos, o “ishuv” de S. Salvador, construiu uma casa, que
constitui não somente a sede onde se concentra toda sua vida social, mas representa um
belo e íntimo lar, no sentido mais amplo do termo. Homens de todas as cores e matizes
ideológicas, da direita e da esquerda, ali se reúnem, sentam-se às mesmas mesas de
trabalho, celebram juntamente as diversas datas festivas; e descobriram o meio de
contemporizar com os interesses antagônicos e possibilitar a permanente cooperação num
clima de salutar e humana tolerância.
A Bahia é, sem sombra de dúvida, a única exceção do conjunto da vida social
judaica do Brasil, a única comunidade que possui endereço próprio, uma casa coletiva,
admirável e modelar.
432
PRIMEIRA ORGANIZAÇAO
A fundação da primeira organização israelita de S. Paulo data de 21 de janeiro
de 1912. Chamava-se “Kehilath Israel”, ou “Comunidade Israelita de S. Paulo”.
Conforme rezam os estatutos, a associação tinha por finalidade a fundação
duma sinagoga, cemitério-israelita, escola e o socorro aos necessitados.
(Atualmente, a “Kehilath Israel” constitui apenas uma sinagoga).
A primeira diretoria constava dos seguintes membros: Bernardo Nebel -
presidente; Isaac Tabakow – vice-presidente; Jaime Horovitz – primeiro secretário; Gabriel
Katz – segundo secretário; Saul Raichberg – tesoureiro; Luiz Constantino – fiscal geral.
De acordo com a publicação “História da Ezra”, a fundação da “Comunidade
Israelita” data de 1913, e a diretoria é bem outra. Nós nos baseamos em documento oficial,
registrado em 15 de julho de 1912.
Entretanto, julgamos oportuno mencionar os nomes da referida publicação, os
quais, provavelmente, constituíram a segunda diretoria, que adquiriu em 1913 a casa, na rua
da Graça, 26, onde instalou a sinagoga: Idal Tabacow – presidente; Abraham Kaufman –
vice-presidente; Jacob Nebel – 1o secretário; Isaac Tabacow – 2o secretário; Hugo
Lichtenstein, Miguel J. Lafer e José Nadelman – vogais.
Releva notar que Idal Tabacow era filho de Note Tabacow; Hugo Lichtenstein e
Bernardo Nebel, seus genros. Importa notar, de modo especial, o nome de Isaac Tabacow.
Era este sobrinho de Note e (como o caracteriza o conhecido ativista do Rio, Jacob
Schneider) pessoa de iniciativa e de índole boníssima. Em 1898, Isaac Tabacow já se
achava no Brasil pela segunda vez, fixando-se, em companhia de sua esposa, Golde, em
Franca, pequena cidade do interior paulista, que então se achava no apogeu, em virtude dos
ricos cafezais da redondeza. Naquela cidade desenvolveu amplo movimento comercial e,
progredindo, ajudou a outros conterrâneos a se estabelecerem; entre esses o mencionado
Jacob Schneider, Simão Bergstein, A. Steinberg. Naum Obodowski e outros.
Com exceção de Mauricio Klabin em S.Paulo, os judeus de Franca foram os
primeiros israelitas oriento-europeus a instituírem no Brasil certa forma de vida comunal:
434
rezas coletivas, fabricação de pães ázimos (matzot) e auxílio aos imigrantes. (Antes ainda
da fundação pela “ICA” da colônia agrícola Philipsohn, no Rio Grande do Sul).
BIBLIOTECA E GRUPOS DRAMÁTICOS
Pelos fins de 1913 ou começo de 1914, constituiu-se a seguinte “Comissão
Iniciadora”, para fundar uma biblioteca judaica: Abraham Kaufman – presidente; Simão
Nadler – vice-presidente; Israel Schwartz – tesoureiro; Bernardo Zaduschliver – secretário;
Moisés Levkovich (posteriormente Costa) – 2o secretário. Esta comissão criou um fundo e
mandou vir livros de B. Aires. Com a chegada dos livros, em 1916, foi a Biblioteca Israelita
oficialmente inaugurada, na sinagoga “Comunidade Israelita”, como instituição cultural
independente, que, além do empréstimo de livros aos associados, realizava conferências e
leituras em voz alta. Moisés Levkovich Costa lia ou dissertava sobre Peretz; Abraham
Levin, sobre Scholem Aleichem e Henrique Milion, sobre Edelstadt.
A primeira diretoria da biblioteca organizada constava dos seguintes membros:
Idal Tabacow – presidente; Moisés Costa – vice-presidente; Samuel Waisman – tesoureiro
e Abraham Levin – secretário. Abraham Kaufman, o idealizador dessa iniciativa cultural, já
não se achava entre os vivos, quando da chegada dos livros de B. Aires. Cabe lembrar que
A. Kaufman foi igualmente quem teve a iniciativa de convidar o renomado escritor Peretz
Hirschbein, então em visita na Argentina, para fazer conferências em S. Paulo (em 1914,
pela primeira vez no Brasil) e cujo capítulo “Um Israelita está Doente” do livro “Em Terras
Longínquas”, em que o autor relata a angústia de toda uma comunidade, por se achar um de
seus membros seriamente enfermo, Hirschbein se referia a Abraham Kaufman, que de fato
não mais se levantou da cama. Entre os que se dedicaram ativamente à biblioteca devem
figurar ainda os nomes de Iasche Monasterski, Moisés Mechutan, Moisés Chechtman,
Iechiel Itkis e Iankel Kapoier.
A primeira biblioteca israelita de S. Paulo passou por várias transmigrações. Da
“Comunidade Israelita” passou para a sinagoga Knesset Israel, na rua Capitão Matarazzo
(hoje Newton Prado). Instalou-se depois numa sede alugada, na rua da Graça. Anos mais
tarde, foi dominada por elementos comunistas e, dessa forma, caiu nas malhas da polícia.
Foi libertada quando alguns de seus fundadores convenceram a mantenedora da ordem que
se tratava de uma instituição exclusivamente cultural, sem qualquer tendência política. Hoje
em dia, os livros do estabelecimento cultural de outrora mofam nos armários do “Círculo
Israelita de S. Paulo”.
Simultaneamente com o nascimento da biblioteca, instituiu-se um Círculo
dramático, que promovia representações teatrais, levando à cena as peças do teatro ídiche
então em voga, como as operetas históricas de Goldfaden “Sulamita”, “Bar-Kochba”; “Der
Vilder Mentch”, “Got, Mentch um Taivel” de Jacob Gordon e outras que tais.
Os artistas-amadores eram os seguintes: Bernardo e Fanny Zaduschliver, Isaac
Meier e Schifre Bronstein, Chassie Naiman, Eva Ticker, Moisés Costa, Abraham Levin,
Jonas Krasiltchik, Iontel Schneider, David Becker, Samuel Fischman, I. Kleinman e outros.
Tomavam igualmente parte no círculo dramático o casal Isaac e Golde Tabacow, não como
atores, senão como estimuladores que prestavam seu auxílio financeiro e técnico.
Na maioria das vezes, os espetáculos eram promovidos em benefício da
Biblioteca, do “Relief Comitê”, que colhia fundos para socorrer as vítimas da primeira
guerra mundial e, mais tarde, para a sociedade “Ezra”.
435
“Aos vinte dias de maio de 1916, foi organizada a sociedade israelita amiga dos
pobres Ezra, com o objetivo especial de evitar a mendicância no seio do Ishuv. A Ezra
inclui no seu programa o auxílio aos pobres e aos doentes, arranjar serviço para os sem-
trabalho, e oferecer ajuda material, tanto quanto necessário, a todos que a ela se dirigirem”.
Essa ata foi assinada pela seguinte diretoria: José Kaufman – presidente, José
Nadelman – vice-presidente, Salomão Lerner – tesoureiro, Devid Berezowski – 2o
tesoureiro, Bernardo Zaduschliver – secretário, Boris Vainberg – 2o secretário, Isaac
Tabacow, Iontel Schneider, Israel Ticker, David Friedman e Jonas Krasiltchik – conselho
fiscal.
(Da Ezra ainda se tratará adiante e, de modo especial, num capítulo inserto na
seção das instituições).
Um episódio interessante de assistência social viveram os israelitas paulistanos
em 1918, durante a “Gripe Espanhola”. Como é sabido, essa doença epidêmica grassava
então no Brasil com intensidade alarmante, causando milhares de vítimas. A população de
S. Paulo fora tomada pelo pânico. As fábricas e grande parte do comércio cerraram as
portas. O tráfego ficou praticamente paralisado. O número de casos fatais, principalmente
entre elementos do povo, era tão elevado que os mortos permaneciam vários dias
insepultos. Neste ambiente de pavor, o ishuv judaico não perdeu a cabeça e organizou a
assistência dum modo exemplar.
A sinagoga Knesset Israel foi transformada num hospital e pessoas caridosas
equiparam o nosocômio improvisado com camas e outros apetrechos. Mobilizou-se uma
turma de médicos e enfermeiros, dando-se aos enfermos tratamento rápido e adequado.
Instalou-se uma cozinha para os doentes hospitalizados e foram distribuídas ainda,
refeições aos gripados de poucos recursos, que ficaram acamados em casa. Acumulou-se
um estoque de gêneros alimentícios e distribuiu-se aos judeus e não-judeus, arroz, batatas,
café, açúcar e outros produtos (em virtude do tráfego deficiente, havia míngua de víveres).
Em conseqüência dessa perfeita organização, a comunidade israelita teve de
lamentar apenas um caso fatal. A imprensa paulista (jornal israelita ainda não havia) não
poupou encômios a coletividade israelita por ter, em momentos de calamidade,
transformado a sua sinagoga em hospital e dado aos doentes uma assistência modelar, da
qual também gozavam vizinhos não judeus.
Também o então presidente do estado, dr. Altino Arantes, manifestou seu
reconhecimento aos cidadãos israelitas de S. Paulo, pelo seu combate heróico à terrível
epidemia.
Distinguiram-se neste notável serviço de assistência social as seguintes pessoas
ou firmas:
Pelas vultuosas contribuições:
Isaac Tabacow e Cia, Klabin, Irmãos e Cia, Salomão Lerner, Friedman e Cia,
os irmãos Teperman, a firma Grumbach e Bloch.
Pelas atividades práticas:
437
palavra sequer sobre atividades sionistas. Sabíamos por meio duma nota na mencionada “A
Columna”, que em 1917, havia em S. Paulo uma agremiação denominada “Amantes de
Sion”. Mas, quando foi fundada, quem foram os idealizadores? A essas perguntas não
tínhamos respostas. Finalmente, logramos resolver, em parte, o problema, no Rio. O amigo
Moisés Costa, antigo habitante de S. Paulo, um dos fundadores da primeira Biblioteca e do
Clube Filodramático daquela cidade, foi igualmente um dos participantes ativos da primeira
agremiação sionista. De muitos pormenores nem ele se lembra. Recorda-se, entretanto, que
a fundação se dera em 1915, aproximadamente; que o primeiro presidente era Aron
Mendes, que ele, Moisés, ocupava o cargo de vice-presidente e que as reuniões se
realizavam na residência de Mauricio Klabin, em Vila Mariana. Ligando essa informação
com o fato de que já em 1914 Mauricio Klabin mantinha correspondência com o bureau
central do Keren Kaiemet, é de se crer fosse ele o iniciador da “Amantes de Sion”.
Pelo ano de 1920, (a “Amantes de Sion”, pelo que parece, já não existia) nova
agremiação sionista foi fundada, por iniciativa de Júlio Becker, denominada Sociedade
Sionista de S. Paulo. Entre os fundadores figuravam ainda: Moisés Gandelman, Emílio
Berezovski, Carlos Gorenstein e Abraham Schechtman. O local das reuniões era a sinagoga
“Comunidade Israelita”. A primeira realização pública da “Sociedade Sionista de S. Paulo”
foi uma conferência subordinada ao tema – Que é Sionismo?, proferida por Júlio Becker,
no clube alemão Turn-Band, à rua Couto Magalhães.
Atividades sionistas organizadas de maior envergadura tiveram início em S.
Paulo, como no país em geral, com a chegada dos primeiros delegados sionistas, os
doutores I. Vilenski, B. Mossensohn, Etinger, A. S. Iuris e outros.
Entre os mais dedicados ativistas, em prol dos fundos e do “shekel”, daquela
época, figuravam os nomes de Francisco Teperman, Júlio Becker, Abraham Ribnik e Ben-
Sion Snitkowski.
Em 1934, os “chaverim” [companheiros] Moisés Blaustein, Henrique
Bidlowski, Samuel Vaingart e Francisco Teperman, criaram a “Organização Sionista de S.
Paulo”, organização essa que teve atuação viva, por longo período, até a sua dissolução,
quando proibidas as atividades, no tempo do Estado Novo, passando parte de seus trabalhos
para a entidade legalizada “Centro Hebreu Brasileiro”.
(A respeito da “Wizo, Pioneiras e Unificada” veja a seção “Instituições).
A Unificação da “EZRA” com a “HICEM”
Importante fase de atividade dinâmica, no setor de assistência social e proteção
ao imigrante, começou em S. Paulo quando se deu a unificação da sociedade local “EZRA”
com a organização mundial “HICEM”.
O “HICEM” como se sabe, constava de uma fusão de três organizações
imigratórias judaicas mundiais “HIAS”, “ICA” e “EMIGDIRECT” com o objetivo de
unidas poderem resolver os complicados problemas que surgiram ao terminar a primeira
guerra mundial. O Dr. Isaías Rafallovich, representante da “ICA”, e ipso fato, da “HICEM”
no Brasil, entrou em contato com as organizações locais de beneficência, e em 1927,
concertou um acordo com a Ezra de S. Paulo. Daquela data em diante, ao título “EZRA”
acrescentou-se o sub-título “Sociedade Israelita de Beneficência e Proteção ao Imigrante”.
439
duma tradução, o que dificulta o curso das deliberações; em tais casos, alguns deixam de
falar em ídiche, embora a contragosto. Entretanto, cabe reconhecer que antagonismo contra
o ídiche, por príncipio, não existe em parte alguma.
Na vida cotidiana, o ídiche constitui a língua viva do comércio, do lar, sendo a
língua exclusiva entre os elementos da velha geração. Os filhos já são influenciados por
outras línguas, entretanto, mesmo esses jovens ainda entendem a fala dos pais. Entre os
israelitas das ruas judaicas só se ouve falar o ídiche. A grande imigração do pós-guerra
reforçou esse fenômeno. Também se ouve muito o hebraico, pelas ruas judaicas de São
Paulo, devido à reemigração de Israel.
Como todos sabem, os "iordim" [emigrantes de Israel] deram preferência à São
Paulo, e estes falam entre si em hebraico, mas também em ídiche. O jornal israelita local
tem uma tiragem de 5 mil números, e algumas centenas de israelitas são assinantes de
jornais ídiche da Argentina e da América do Norte, além disso, distribuem-se aqui os dois
jornais do Rio, em muitas centenas de exemplares.
A coletividade israelita de São Paulo, constante de cerca de 50 mil habitantes,
está organizada em várias associações, muitas vezes paralelas, como: Ezra-Linat Hatzedek;
Círculo-Hebraica; Wizo-Pioneiras; Comitê de Educação- Machon – Congresso de Cultura;
em certa forma também unificada – Federação; e as congregações? Todas essas
organizações se contam as dezenas. Uma exceção constitui o setor dos judeus alemães, que
se acham solidamente organizados numa única congregação, que satisfaz todas as
necessidades de seus associados: religiosas, culturais – em alemão e em português –
filantrópicas e recreativas. Os demais setores são divididos por vários e vários motivos.
Todos os estabelecimentos, grêmios, organizações e associações conterrâneas
("landsmanschaftn") formam a Federação das Entidades Israelitas do Estado de São Paulo,
a qual representa a coletividade perante o exterior, regula e distribui os subsídios da
Magbit, para as instituições filantrópicas e estabelecimentos de ensino; estes através do
Comitê de Educação; que também é filiado à Federação. A Federação não se constitui por
eleições gerais diretas como em Buenos Aires e Montevidéu, senão por delegados enviados
pelas entidades federadas. Este sistema dá margem a influências pessoais. Aqui domina a
Congregação dos israelitas alemães, a qual, embora sendo numericamente muito menor em
confronto com os israelitas de fala ídiche, é, entretanto, devido a sua organização
monoliticamente fechada, fator decisivo, freqüentemente ditatorial; nenhuma resolução será
aprovada, se a Congregação for contra ela...
Presentemente, começo de 1958, processa-se um movimento de organizar uma
Kehila Ashkenazit, a exemplo da Congregação. Com isso talvez se implante melhor ordem
nas inúmeras instituições de atividades filantrópicas, culturais e religiosas dos israelitas de
língua ídiche. A “Congregação” conta com quatro mil associados, a Kehila Ashkenazit
pode reunir quatro, cinco vezes tanto.
Reflexo da fragmentação dos judeus falantes em ídiche é a falta duma
biblioteca central, como a que a Congregação possui, em alemão, naturalmente. Quase toda
agremiação, associação de conterrâneos, ou partido possui coleções de livros; entretanto,
um conferencista ou professor acham-se freqüentemente em situação embaraçosa, por falta
dum manual em ídiche, ou hebraico. Das variadas coleções de livros bem se podia
organizar uma rica biblioteca, digna duma cidade como esta. A Congregação Ashkenasi
446
Cerca de duas mil crianças freqüentam as escolas israelitas de São Paulo. Isto
importa em apenas vinte por cento de todas as crianças israelitas de idade escolar. Se,
porém, desdobrarmos esse número segundo os bairros, teremos um quadro bem diferente.
Nas zonas densamente povoadas de israelitas – Bom Retiro e Braz – pelo menos sessenta
por cento de crianças freqüentam a escola israelita. Lá, onde o número de habitantes judeus
é pequeno e a escola é longe, a criança, naturalmente, não pode tão facilmente chegar à
escola, e poucos são os pais que estejam em condições de pagar um táxi, e além do mais
não querem ariscar a criança ao tráfego duma grande cidade.
As primeiras escolas foram fundadas por professores pioneiros, ao lado de
poucos pais, que se empenhavam em dar aos filhos educação israelita. Salientamos o fato,
porque, em alguns países sulamericanos, foram os partidos que o fizeram, segundo a
tradição européia. Até hoje, o ensino local acha-se à margem da vida partidária, exceto os
esquerdistas que possuem o seu estabelecimento de ensino e talvez ainda os círculos
extremamente ortodoxos, que não são adeptos dum partido, mas sim dum sistema.
Entretanto, trava-se em tôrno do ensino uma constante luta de programas e objetivos
pedagógicos, estruturais e financeiros.
As dificuldades específicas da escola israelita consistem em que a criança
estuda três horas por dia a mais que seu colega cristão, fato que desperta nela uma antipatia
contra a escola, bem o contrário daquilo que o ensino pretende atingir... Nas condições
locais de clima e ambiente, de tráfego desorganizado e perigoso, é uma manifesta injustiça
para com a criança, que se sente vítima dos caprichos do pai e da mãe. Por outro lado,
causa isso muitas dificuldades pedagógicas: como, quanto e o que ensinar.
Toda a rede escolar é filiada no Comitê de Educação, que constitui secção da
mencionada Federação. O Comitê de Educação subsidia cada estabelecimento com somas
consideráveis, tomando por chave o número de alunos. Os recursos para isso o comitê
recebe da Magbit, que deve conceder no mínimo 6% de sua receita bruta em prol do ensino.
Além das escolas, há diversos cursos de hebraico e história. Até há pouco esses
cursos não eram sistemáticos, ora funcionavam na Unificada, ora nas organizações juvenis.
Dum ano pra cá, funciona o Instituto de Cultura Hebraica, estabelecimento organizado em
bases sólidas, com amplo auxílio da Agência, que enviou seu delegado, lente
experimentado e bom organizador. O Instituto logrou atrair para os estudos vastos círculos,
principalmente da juventude, que freqüentam sistematicamente as aulas. Além do hebraico
e história, ensina-se também filosofia judaica, conhecimentos de Israel, Talmud e literatura,
figurando ainda no programa o ensino do ídiche.
O aspecto espiritual do ishuv paulistano não pode ser narrado, sem mencionar a
imprensa, o teatro israelita, as criações literárias. Estes, porém, são vastos campos que
requerem estudo especial. Sobre a imprensa, há um extenso trabalho de Isaac Raizman.
Algo sobre a literatura há na coletânea “Nossa Contribuição”, editada no Rio em 1956, e
nas “Iwo-Shriften” da Argentina, terceiro volume, de 1945. A respeito de elementos
portugueses no ídiche, existe um trabalho nos “Iwo-Bleter” de Nova York, novembro 1941.
Em resumo:
Várias forças organizadoras e tendências invisíveis lutam entre si para formar o
aspecto espiritual de toda a coletividade israelita do Brasil; para apor o próprio selo, tanto à
vida social como ao estilo da vida cotidiana. Do outro lado, vem aparecendo a geração
448
nova, com seus passos ainda discretos e titubeantes, com sua firmeza de caráter, altiva e
convencida. Por enquanto, este futuro herdeiro representa uma esfinge, um enigma, não se
sabendo onde se situará no meio dessas variadas correntes, como se formará no meio dessa
luta de línguas e modos de vida, que se processa no seio da geração velha, e qual será a sua
contribuição própria.
Até certo ponto, o Brasil representa um “Kibutz Galuiot” (junção das
dispersões), com todos os característicos problemas de formação e modelação. De qualquer
modo, é cedo ainda para se falar em um uniforme estilo brasileiro de vida israelita.
449
Imigração nova, propriamente dita, não vinha para o Brasil, em 1915, quando
se iniciou a publicação do primeiro jornal judaico, em Porto Alegre. Aconteceu, porém, que
da coletividade israelita mais antiga da vizinha Argentina bem como do reduzido “ishuv”
do Uruguai, deslocara-se certo número de imigrantes, que, por vários motivos locais se
afastavam e rumavam para o norte. Seu trajeto emigratório ia através do Brasil e, em
primeiro lugar, pela cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, o
Estado brasileiro mais próximo das fronteiras da Argentina e Uruguai.
de inteligência dos seus donos, fechou a semanário, na esperança de fundar um novo jornal,
que não dependesse de tantos proprietários. Não lhe foi, porém, tão fácil realizar seu
intento.
Não foi por mero capricho dos editores-proprietários que o semanário israelita
do Rio de Janeiro começou a atrair novos colaboradores e passou, mais tarde, a sair duas
vezes por semana, sob o nome de Imprensa Israelita Brasileira (Brazilianer Idische Presse);
foi antes uma conseqüência cada vez mais crescente de diferenciação na vida judaica. Os
novos imigrantes trouxeram consigo ideologias claras e nítidas, de sorte que os antigos
líderes da sociedade, os quais com muito sacrifício haviam lançado a pedra fundamental
duma honrada sociedade israelita, não podiam perceber a razão por que os novos os
olhavam com tanta azedume, não dando importância a seus conceitos. - Todos os antigos
líderes sociais e culturais, cujo grau de cultura e esclarecimento eram limitados, tanto medo
nutriam pelas idéias novas que chegaram a julgar o “Poalei Sion” (da direita), que então se
fundou em Porto Alegre e, em seguida, em outros centros judaicos, quase como
comunistas.
hebraístas renovam a luta contra a escola, contra a diretoria e o professor, protestando que
estes estão dando ao ensino uma diretriz esquerdista. Há também nessa refrega muita coisa
de ídiche que não podem os hebraístas eliminar; fundam-se em caráter pessoal, mas, com o
firme propósito de ensinar, duas escolas: uma idichista “Escola Borochov” e outra
hebraísta. A escola idichista é dirigida pelos “chaverim” do “`Poalei Sion”.
O número que temos a nossa frente, não tem data. Diz apenas: número 40, ano
II. Mas, pela informação que obtivemos do senhor Jaime Zitman, então professor da escola
local, era ele quem praticamente fazia aquele jornal, até a data, em que se mudara para São
Paulo. O número 40 foi o último da Imprensa Israelita Porto Alegrense, e, conforme
podemos observar pelo relatório do Jubileu da União dos Israelitas Poloneses, estampado
nesse número, ele saiu à luz, nos primeiros dias de julho de 1935. Daí se poder inferir que o
jornal começou a sair em setembro de 1934.
RIO DE JANEIRO
Os artífices - muitos entre eles vieram juntar-se às suas famílias - foram para
São Paulo, cidade industrial, onde já então havia procura de mãos obreiras. Os imigrantes
sem ofício - a maior parte intelectuais - ficaram no Rio, onde a maioria dos judeus locais
dedicavam-se ao comércio ambulante (clientela), e onde havia facilidade em arranjar
trabalho como “clapers” (vendedores ambulantes).
Os fundadores encaravam sua iniciativa com certa missão. Tanto assim que
arranjavam os recursos para fundar e manter uma publicação israelita, sem ambição de ver
seu nome impresso para redigir o jornal convidando profissionais da pena.. Mesmo Adolfo
Kischinowski, que já então era portador de alguns manuscritos próprios foi o primeiro
escritor israelita do Brasil; publicou posteriormente um volume de contos da vida judaica
no país: “Naie Heimen”, ou Novos Lares, (Nilópolis, Rio de Janeiro, 1932), não nutria
naquela época ambições de tornar-se redator da primeira publicação do “ishuv” judaico.
Katz logo deixou a redação, e, pouco mais tarde, Nachbin também. Dizia-se que
Nachbin discordava da orientação ideológica do jornal, mas, segundo conseguimos apurar,
Nachbin abandonou o semanário, porque os donos da publicação não podiam harmonizar
com ele.
Aron Kaufman provinha de Odessa, onde exercia o ofício de ourives e era tido como
artífice culto. Tornou-se diretor oficial do Dos Idische Vochenblat, e como redator
empregou o jovem S. Karakuschanski, que tinha vindo da Argentina, onde ocupava o cargo
de professor, para juntar-se a seu irmão no Rio de Janeiro.
Nathan Becker, que escrevia bons comentários humorísticos sobre temas locais; fábulas,
Haim Rosen e poesias S. Karakuschanski.
DOS IDISCHE VOCHENBLAT durou 4 anos como semanário. Durante esse período a
comunidade ia crescendo com novos imigrantes, educados na rica imprensa judaica da
Polônia, Lituânia e Bassarábia; florescia então o comércio de jornais israelitas estrangeiros,
que se exibiam à venda, até no local onde se encontrava o engraxate não judeu, juntamente
com opúsculos de sambas brasileiros. Por esse espaço de tempo, também se desenvolvera
consideravelmente o movimento social. Dum lado, crescia o movimento esquerdista, cujos
líderes planejavam apoderar-se das instituições culturais existentes,; por outro lado, tinha-se
grandemente expandido o movimento sionista. A organização sionista convidara então o
professor Albert Einstein a uma visita à América do Sul, ato que proporcionou muita honra
às coletividades judaicas da Argentina, Uruguai e Brasil.
Tal como o Semanário, a Imprensa também continha artigos, contos, poesias e folhetins de
Menasche Halpern, (pseudônimo; Naschani), S. Karukuschanski, Eduardo Horowitz, Aron
Kaufman, Aron Bergman (pseudônimos: Ben-Nochum, Glin-Glon), M. Jacobovitz
(pseudônimo: Motele) e Nathan Becker. Além disso, enviavam suas correspondências do
interior, os antigos correspondentes do Semanário.
O primeiro número do Idische Folkszeitung, que se publicava duas vezes por semana, às
quartas e aos sábados, apareceu em 20 de dezembro de 1927. Os editores eram: Eduardo
455
Os editores empreenderam uma obra de vulto. Instalaram uma tipografia com máquinas
modernas, escritórios para os redatores e para a expedição, e uma seção especial para
depósito de livros. A empresa tinha em mira torna-se a distribuidora de literatura em
hebraico e em ídiche, bem como editar obras de escritores judaicos. Mandaram à Polônia
um funcionário seu, M. Ben Isroel, a fim de entabular relações com as casas locais e
conseguir deles a representação para o Brasil.
Embora houvessem, de início, fundado a empresa sobre base comercial, não pouparam
esforços para criar um grande jornal informativo (8-10 e às vezes, também 12 páginas de
formato comum), com noticiário da ITA e com vários colaboradores estrangeiros. As
figuras centrais da empresa eram: Jacob Schneider (cunhado de Eduardo Horowitz) e
Salomão Gorenstein, que investiram grandes capitais, mas quem dirigia praticamente a
sociedade era Eduardo Horowitz, a quem todos obedeciam.
Após terem, por espaço de alguns anos, investidos consideráveis somar para cobrir o
déficit da empresa, os editores afastaram-se do jornal, deixando tudo ns mãos de Eduardo
Horowitz. Este ainda ficou por algum tempo ligado ao jornal onde, de tempos a tempos,
escrevia artigos, assinados e não como membro da redação. Em seguida, porém, retirou-se
de todas as atividades sociais e também deixou de escrever.
O jornal ficou então na mão de S. Karakuschanski, que pagava aos donos certa prestação
mensal pelas máquinas. K. escrevia editoriais, notícias e artigos sobre temas locais,
publicava também contos, folhetins e poesias. Traduziu e publicou em continuações o
romance de Stefan Zweig “Maria Antonieta”.
Durante alguns anos, Karakuschanski editava “Di Idische Folkszeitung” duas vezes por
semana, sem interrupção e, desde 1935, diariamente. Nos fins de 1940, o jornal celebrou o
décimo terceiro ano de sua existência, e alguns meses depois, foi fechado pelos poderes
públicos, quando proibiram jornais em idiomas estrangeiros.
Bergman passou então para a tipografia de Iancks, e com os próprios recursos começou a
editar o mesmo jornal, como semanário. O semanário “Di Idische Presse” aparecia, desde 3
de junho, de 1931, quase toda semana, até que foi fechado pelo governo, quando se proibiu
a publicação de jornais em línguas estrangeiras.
Levantada a interdição contra os jornais estrangeiros, em 1947, surge “Di Idische Presse”
novamente. Agruparam-se, ultimamente, em torno desse jornal todos os jornalistas e
ativistas sociais do país. Alguns dos colaboradores locais são refugiados, jornalistas judeus
que se salvaram do inferno europeu, para o Brasil. “Di Idische Presse” também constitui,
hoje em dia, o lar espiritual dos verdadeiros jornalistas e intelectuais israelitas do Brasil.
Cada ativista, cujo nome havia uma vez aparecido sobre o título dum artigo, começou a
julgar-se jornalista, com pretensões de ver publicados seguidamente seus trabalhos. Foi, sob
o pretexto de “jornalistas” impedidos de expressar suas idéias, que alguns elementos da
esquerda tiveram a iniciativa de fundar um jornal próprio.
DER ONHEIB (O Começo) - Por mais alto que considerassem a sua qualidade de
jornalistas, sempre entendiam que não podiam passar sem redator para “rever” seus artigos.
Tal candidato apareceu na pessoa do engenheiro Ruben Zinguer.
457
Zinguer trabalhava em uma das colônias agrícolas da ICA, e num belo dia, abandonou suas
experiências de avicultura e veio para o Rio.
Inicialmente, Zinguer trabalhou na Imprensa Israelita Brasileira, que lhe deu boa acolhida,
dedicando-lhe especialmente uma nota bio-bibliográfica, como jornalista; mais tarde,
porém, passou-se para a esquerda, e nos fins de 1929, tornou-se redator do semanário
esquerdista DER ONHEIB. Já nos primeiros meses de 1930, houve desentendimento entre
os membros do colégio redacional, tendo alguns dos litigiantes registrado o nome do jornal
como sua propriedade, entregando a redação a um jornalista bassarabiano da esquerda,
Motel Gleiser (pseudônimo: Motel Idish). Depois de algumas semanas, o Onheib expirou,
não obstante a sua nova direção.
DI KRAFT, ou A Força.
Depois que o Onheib se fechou, um dos seus administradores Iankel Fucks comprou uma
tipografia e começou sozinho a editar um jornal, denominado DI KRAFT. Embora se
houvesse arregimentado em torno da publicação todos os elementos antigos dentre os
mencionados ativistas sociais, o jornal passou a ser propriedade particular de Iankel Fucks.
Para redigir o jornal, Fucks empregou um jovem alfaiate por ofício, de nome Abraham
Valdman, o qual era anteriormente muito ativo nas fileiras do Poalei Sion, da esquerda.
Valdman redigia o Di Kraft nada mal, e o jornal saiu por um tempo prolongado, como
semanário, de formato comum, em 4 e, às vezes, em 6 páginas.
O Dr. Moisés Rabinovitch era um tipo especial. Judeu russo, advogado de profissão, era
casado com uma senhora da família do rabino Isaias Rafalovitch, representante da ICA no
Brasil. O Dr. Rafalovitch propôs-se então a organizar no país a comunidade israelita
Kehila, enquanto isso, se intitulava Grã-Rabino. Os elementos progressistas do “ischuv”
combatiam a idéia de uma Kehila, sob a direção dum representante da ICA. Moisés
Rabinovitch, que tinha suas contas particulares com o Dr. Raffalovich, resolveu fundar um
“partido judaico popular radical”, e para esse fim, começou a editar um mensário, em
ídiche e em português, intitulado MIR UN ZEI.
MIR UN ZEI apareceu apenas uma vez e, consequentemente , desfez-se o plano de fundar
um “partido judaico radical popular”.
Ao contrário do Rio de Janeiro, os israelitas de São Paulo eram na maior parte vinculados à
indústria, fato que influenciou indubitavelmente a sua atividade social, bem como as suas
possibilidades de prosperidade. Tanto assim, que naquela cidade, cada judeu tentara logo
abandonar o comércio de “clientela”, para instalar uma fabricazinha qualquer. Explica-se
assim o fato por que o recém-vindo imigrante, de ofício na mão, não ficava no Rio, senão
que ia para São Paulo. Alguns vieram diretamente àquela cidade para juntarem-se a seus
amigos, que já se haviam ali estabelecido com pequenas fábricas, próprias ou alugadas, de
roupas feitas, camisas, sapatos e móveis. Nessas fábricas, os novos imigrantes, que tinham
alguma profissão, logo adquiriram trabalho.
A primeira publicação judaica de São Paulo constava dum boletim de notícias sociais e de
anúncios. O boletim era redigido por um senhor M. Iarkoni, que figurava no cabeçalho
apenas como administrador. Apareceu por volta de agosto de 1928, e fechou-se em
fevereiro de 1929. Durante os 7 meses, aproximadamente, de sua existência, apareceram 27
números dessa publicação semanal.
Com este título bombástico, surgiu em São Paulo, o primeiro semanário judaico, de caráter
literário e social. No cabeçalho do primeiro número, que temos diante de nós, lemos: “O
Mundo Judaico no Brasil, diretor M. Frankental”. E’ datado: 28 de setembro, sem o ano, (!)
, porém saiu em 1928.
Como diretor oficial, figura no cabeçalho Marcos Frankental, mas quem redigia
praticamente o jornal era certo Josef Rinski, que estivera uma vez nos Estados Unidos,
onde teria sido funcionário dum sindicato e colaborador do jornal FORVERTS. Seu
auxiliar, ou único colaborador, era um senhor Iekutiel, que não era habitante de São Paulo,
provavelmente um dos boêmios errantes, que de tempos em tempos, apareciam no seio da
coletividade israelita. Escrevia versos e julgava-se grande poeta. Como editores, Frankental
conseguiu atrair os Srs. Moisés Costa e Jacob Nebel. Nebel tinha fama de intelectual judeu-
brasileiro e Costa era homem de posses e pessoa ativa no campo cultural.
O primeiro número do semanário saiu em 20 páginas, formato revista, com capa de papel
de qualidade, desenhada e com índice no centro. O redator de fato, Rinski, preenchia
sozinha o número inteiro.
“DI IDISCHE VELT” foi a primeira tentativa de editar em São Paulo um jornal israelita
sério, embora cheirasse bastante a provincialismo e o ídiche do redator não fosse lá grande
coisa.
Amstein era homem simples, mas muito estimado nos meios sociais daquele tempo, por sua
honradez e por sua atividade em várias instituições do “ishuv” - no jornal exercia a função
de administrador; Nadelman estiver muitos anos nos Estados Unidos, de onde partira para o
Brasil, no início da primeira guerra mundial, e casou-se com a filha duma das mais ricas
famílias israelitas de São Paulo. Era de fato o único entre os lideres sociais daquela época
que sabia bem o ídiche - tornou-se o redator. Quem tinha voz ativa na sociedade judaica
eram os bessarabianos, e entre estes Nadelman era tido como suprema autoridade em
assuntos israelitas. Foi o que impressionou a Frankental, pois com isso conquistou o apoio
de todos os elementos bessarabianos, ativos em várias organizações da coletividade para o
jornal que começou a aparecer, como semanário, a 22 de outubro, de 1931, e desde 1933,
saia duas vezes por semana. Em 1934 foi o autor destas linhas convidado por F. para redigir
o jornal e ele o transformou em publicação trisemanal (às terças, quintas e sábados). Os
antigos sócios, Amstein e Nadelman, já se haviam afastado do jornal.
Em 1936, o jornal passou a ser redigido por um jovem de nome Haneft, técnico dentário,
que não conseguiu arranjar a vida no Brasil, e que regressou em 1937 à Polônia. A redação
ficou então ao cargo do jovem acadêmico de direito, Salomão Steinberg. Colaborou
também periodicamente Nelson Vainer, jornalista judeu-brasileiro, procedente da
Bessarábia, o qual tinha outras ocupações e além disso escrevia artigos no vespertino
brasileiro Folha da Noite.
HASHAHAR surgiu em São Paulo, como mensário, sob a redação de Michel Zaltzman,
editado pela juventude revisionista “Berit Trumpeldor”. O primeiro número saiu a luz em
novembro de 1931. HASHAHAR publicava-se em ídiche, mas cada número continha
também um artigo ou um folhetim em hebraico, escritos pelo redator. Saíram vários
números, sendo o último datado de fevereiro, de 1932.
UNZER VORT, ou Nossa Palavra, apareceu em março, de 1934, editado pela Organização
Revisionista. No cabeçalho lemos: “publicação bisemanal , sai nos dias 10 e 25 de cada
mês”. Como administrador, figurava: Moisés Rapaport. O jornal era redigido pelos líderes
460
UNZER VORT deixou de aparecer, no início de 1935, por falta de recursos monetários.
No Brasil, tal como em todos os países da América Central e do Sul, existem muitos
israelitas sefarditas, que desconhecem o ídiche e se utilizam em sua vida cotidiana do
vernáculo. Além disso, a maior parte dos intelectuais e da juventude israelitas são
consumidores de jornais na língua do país. Esse fato deu origem a algumas tentativas de
editar uma publicação judaica em português, mas por muito tempo todas essas tentativas
têm fracassado. E não é para menos, pois nossa juventude bem como a classe intelectual,
estão sendo devorados pela assimilação e se acham alienados do judaísmo e dos problemas
judaicos.
condições, o primeiro jornal israelita em língua portuguesa não durou muito, e desapareceu.
Na verdade o jornal durou dois anos, com o total de 24 números publicados.
ILUSTRAÇÃO ISRAELITA
Em agosto de 1928, começou a publicar-se, no Rio de Janeiro, esta revista mensal ilustrada;
a publicação era muito bem apresentada, trazendo sempre material bom e sério, sobre
assuntos judaicos. A capa era impressa em cores, contendo no centro a estrela de David,
ladeadas pelas bandeiras israelita e brasileira. Os redatores eram Adolfo Aisen e Elias
Davidovitch, então estudante de medicina. Colaborava também nessa revista efetivamente o
mencionado Dr. David Perez.
Da “Ilustração Israelita” saíram apenas 11 números, sendo o último um número duplo (11-
12) que apareceu em julho, de 1929. Em regra, o jornal saía em 28 páginas, mas o último, o
número duplo, tinha 36.
A CIVILIZAÇÃO
A NOTÍCIA
PÁGINAS ISRAELITAS
“AONDE VAMOS?”
462
JORNAL ISRAELITA
Posteriormente, quando já se podia obter licença para publicar jornais, o mencionado editor
do “Velt Spiguel”, Sr. Kutner, começou a editar uma publicação semanal, em formato de
jornal comum, sob o nome de Jornal Israelita, no qual colaboram: S. Karakuschanski, Leão
Mintziz e outros. Este jornal e a mencionada revista ilustrada “Aonde Vamos?” constituem
presentemente as únicas publicações israelito-portuguesas no Brasil.
463
Nesta abertura de nosso III Encontro Nacional do AHJB sob o patrocínio do IHIM, que
não poupou esforços para a realização desse importante evento, cumpre-me falar sobre o
historiador e intelectual Isaias Golgher a quem prestamos a nossa póstuma e merecida
homenagem. Peço a compreensão dos que me ouvem se me reportar à recordação de uma
amizade e estima pessoal que a distância geográfica dificultou em se transformar em uma
convivência maior. Há muitos anos atrás quiz o acaso que visse o nome de Isaias Golgher
em uma carta de inícios dos anos 50 que encontrei numa gaveta de uma escrivaninha na
sinagoga da Lapa, em São Paulo, na qual ele pedia material informativo sobre a instituição,
em nome de um Arquivo Histórico Judaico em formação que tinha como objetivo recolher
elementos para a memória da imigração judaica no Brasil. Isso foi nos anos 70 quando
estavamos dando os primeiros passos para a estruturação do Arquivo Histórico Judaico
Brasileiro em São Paulo. Reconheci que alguém tentou cerca de 20 anos antes o que nos
estavamos pretendendo naquele momento. A partir dai fiquei curioso em saber quem era a
pessoa que tivera a mesma preocupação de preservar a memória judaica no Brasil até
efetivamente poder conhece-lo , ter contato com seus trabalhos, sua reflexão intelectual
através dos livros e artigos que escrevera. Na época encontrava-me pesqisando sobre o
primeiro historiador judeu no Brasil , de que resultou o livro” Jacob Nachbin”, e lembro-me
bem que esse nome também lhe era famíliar, o que motivou entre nós um intercambio de
informações e comentários sobre a vida judaica no Brasil nas décadas anteriores à Segunda
Guerra Mundial.
Isaias Golgher era dono de uma personalidade sedutora no trato com as pessoas e mais
ainda pela originalidade de seu pensamento inquieto que transitava por várias áreas e não se
submetia a uma única verdade e tão pouco à uma única esfera de conhecimento. E isso
podemos comprovar pela multiplicidade e polivalência de seu trabalho que vai da história
mesopotâmica, à história do Brasil ,da história das idéias sociais no mundo contemporâneo
à história do povo judeu, e isso sem excluir as artes plásticas, literatura e mesmo as
ciências.
Porém antes de fazer qualquer referência sobre sua obra historiográfica- uma vez que não
pretendo abarcar nesta palestra outros aspectos de sua produção intelectual- impõe-se traçar
um breve e esquemático roteiro de sua vida, sem que tenhamos qualquer pretensão de
estabelecer uma biografia, tarefa essa que deverá demandar uma pesquisa mais longa e
cuidadosa. É ao nosso querido amigo Marx a quem devo as informações que se seguem
bem como os elementos biográficos pessoais, os quais reproduzo quase literalmente, uma
vez que Isaías nos encontros havidos entre nós, raramente falou de sua pessoa, senão
apenas de suas preocupações culturais.
Marx, ele se referia a ela com muito carinho, o que não fazia com o pai ,que dele se afastou
para formar nova família). Fez seus estudos na escola comunitária judaica, aprendendo a ler
ídiche e romeno. Marx lembra que ele gostava de contar que quando criança era chamado
frequentemente pelos carroceiros para ler jornais romenos. Era o orgulho deles...lembra-se
do assombro que causou quando lia as edições do naufrágio do Titanic, inventando coisas
fantásticas à respeito. Exagerava tanto que ele mesmo ficava impressionado com o espanto
dos atentos ouvintes que lhe pediam detalhes de suas fantasias. O que fazia para deleite
geral da platéia... Bom aluno, ingressou logo depois no ensino fundamental, no curso médio
na “grande cidade” russa Mogilev-Podolski, atravessando o Dnieter diariamente. Ai
estudou a língua russa, e se iniciou nos estudos filosóficos que o levariam posteriormente a
Marx, e movimentos de esquerda, engajando-se na militância de um movimento socialista,
fortemente reprimido na Romênia. Sua admiração por Romain Rolland, a quem
homenageou ao batizar o seu segundo filho com o nome do grande escritor, é desta época.
Foi preso diversas vezes , sendo libertado depois de muito apanhar, sendo libertado por
uma grande amiga judia, amiga de sua tia-mãe, pessoa de posses, que subornava a polícia...
Por ocasião da Revolução Russa, a repressão romena recrudesceu a tal ponto , que a tia-
mãe o aconselhou fugir do país, dando –lhe as únicas jóias que possuia como recurso da
fuga. Pegou o trem numa cidade próxima ,para despistar a polícia que o vigiava, junto com
um amigo. No meio do caminho ocorreu uma batida policial. Quando os guardas chegaram
até o banco onde ele se encontrava sentado, Isaias fechou os olhos, roncando
ruidosamente...Os guardas o sacudiram pedindo papéis ,mas nada. Ai o amigo lhes disse
com muita convicção : ah, ele é francês, não entende nada o que falamos. Não adianta
insistir...Convencidos, a patrulha militar se afastou,o que possibilitou a atravessar a Hungria
onde foi muito maltratado, por ser judeu, originando-se dai uma ojeriza deste país para o
resto da vida. Marx conta que ao visitar recentemente a Hungria, ele o recriminou
fortemente de ter feito isso. Em seu roteiro de fuga Isaías chegou a França e de lá embarcou
para o Brasil, onde fora chamado por um “parente”. Desembarcando no Rio de Janeiro
começou a trabalhar como mascate, assim como fizeram boa parte dos imigrantes da quele
tempo. Em uma entrevista que dera ao Suplemento Cultural do jornal “Minas Gerais” no
número de 6 de outubro de 1990, por ocasião do término de seu livro “O Universo Físico e
Humano de Albert Einstein”, ele resume esse momento de sua vida: “Minha geração foi
envolvida pela Revolução Russa, quando na sua fase heróica, e o idealismo ainda era sua
força motriz. Eu também me envolvi, como os demais jovens da minha idade. O
movimento revolucionário em que me envolvi tinha por meta promover a expulsão dos
romenos da Bessarábia, ocupada por eles depois de 1917, e restabelecer o domínio russo.
Em 1924 houve um levante de Tartarbunare, que foi impiedosamente esmagado pelo
governo rumeno.Preso pela tristemente famosa Securatate, polícia política rumena,
consegui sair da prisão ,pelo suborno, e tratei de deixar o país o mais depressa possível. Na
época podia-se ir ,sem dificuldades burocráticas, para os países da América do Sul,
inclusive para o Brasil. Em dezembro de 1924 desci do navio “Andes” no porto do Rio de
Janeiro, e aqui estou desde aquela data.” Na mesma entrevista ao ser perguntado se tinha
algum conhecimento sobre o país ele diria: “Na época a imprensa mundial falava muito da
revolução brasileira encabeçada pelo general Isidoro Lopes. Nós os jovens, atribuímos
dimensões ideológicas radicais ao movimento , tendo por modelo a Revolução bolchevique,
então em plena ascenção. O levante de Isidoro Lopes seria um elo da revolução mundial,
que para nós era inevitável. Chegando, verifiquei que a nossa análise científica não passava
de “wishful thinking”. A revolução de Isidoro Lopes , como era chamada pelos
465
Index Expurgatorum stalinista e ele certamente seria obrigado a fazer uma auto-
crítica...Mas como o Comitê Central do Partidão não perdia tempo com leituras e estava
ocupado com outras questões bem mais importantes, vinculadas à conquista do poder
provavel é que não se deram ao trabalho de folhear o escrito , o que explica o fato de nosso
Isaias ter saído incólume do Paraíso tal qual acontecera com Rabi Aquiba na conhecida
lenda talmúdica... Em suma Isaías Golgher [já revelava –se fizermos uma leitura atenta de
seu texto- que se encontrava] demonstrava estar dividido e debatia-se entre sua identidade
nacional judaica e os ideais universais socialistas. A eliminação sistemática da cultura
ídiche, de suas instituições, intelectuais e rede escolar promovida por Stalin, em
prosseguimento ao que se fizera com o movimento sionista na Russia após a Revolução, o
tocara profundamente, assim como a muitos adeptos e simpatizantes do comunismo. Na
verdade a ideologia oficial stalinista via como contraditório e tachava como uma forma de
nacionalismo burguês qualquer identificação com o nacionalismo judaico. O término desse
processo de definição pessoal, sob o aspecto ideológico, ocorreria com a elaboração da
obra “A tragedia do comunismo judeu- a história da Yevsektzia”.
Isaias Golgher, em oposição ao movimento do qual fez parte durante certo tempo, teve a
coragem de enfrentar a dolorosa verdade e torná-la publica ,mesmo tendo que suportar
momentos dificeis de difamação, marginalização e hostilidade pessoal por não querer
compartilhar com o silêncio deliberado, e a cega obediência partidária, em relação ao que
estava ocorrendo no mundo comunista. Pessoalmente considero o livro “A tragédia do
comunismo judeu”, Ed. Mineira Ltda., Belo Horizonte, 1970,[data não explícita na capa,
porém no interior do texto na pag. 152.] como uma das descrições mais importantes sobre
a brutal política de destruição da cultura judaica na Rússia, constituindo-se numa
contribuição valiosa sobre a postura da esquerda judaica no Brasil em relação à essa
dolorosa questão. Ainda que as referências ao “progressismo” no Brasil serem discretas,
por razões obvias, no entanto, associadas ao que se passava na Argentina, Uruguai , Estados
Unidos e outros paises nos quais se encontravam associações judaicas adeptas da mesma
ideológia, teremos, no seu conjunto, uma visão do que ocorria por aqui. O livro aponta
com realismo, por vezes chocante, a postura acritica que caracterizava a subserviência à
Moscou nas fileiras da esquerda em geral e da judaica em particular que somente caiu em si
com o XX Congresso após a morte de Stalin. E assim mesmo, durante vários anos, muitos
ainda mantiveram uma atitude incrédula frente ao que já era do conhecimento universal. O
fato é que o culto à personalidade do Pai da Pátria não desapareceria tão rapidamente como
era de se esperar.
A importância do livro em questão está no uso de fontes em ídiche, incluindo-se orgãos de
imprensa e livros de memórias de militantes, textos que nem sempre eram acessíveis aos
estudiosos que desconheciam a língua. No entanto são fontes preciosas para o
entendimento dos fatos históricos que estão associados à trajetória da “Yevsektzia”, ou seja
a seção judaica do Partido Comunista, criada ainda por Lenin em 1918.
Não podemos desconhecer parte importante de seu trabalho historiográfico que constitui o
conjunto de ensaios, o qual não pudemos ter acesso, mas que encontramos elencados em
alguns de seus livros.São eles: “Implicações sociológicas da capitação”, 1962; “A
problematica da Periodização histórica”,1963; “Sartre, Marx e História”, publicado no
periódico “Estado de Minas”, 5-4-1964; “O Negro e a mineração em Minas Gerais”, 1965;
“Sedimentos históricos do Comunismo”, 1965, títulos que constam na obra “A tragédia do
comunismo judeu”. Entre 1965 e 1967 temos algumas séries de artigos a começar da
intitulada “Sedimentos históricos do comunismo” publicados no Suplemento Literário do
“Estado de Minas”, conforme relaçaõ elencada no livro “Marx ,mito do século XX” e são
eles: “A estratificação da falsa consciência”,17-10-1965; “”Os teóricos na hora do lusco-
fusco”,24-10-1965; “Leninismo, marxismo às avessas,31-10-1965; “O nascimento da nova
classe”,7-11-1965. A segunda série intitulada “Um memorialista desmemoriado”
compreende os artigos “Retrato falado de Ehrenburg”,3-4-1966; “Os falsos alibis de
Ehrenburg”, 10-4-1966; “Ehrenburg, o falso leninista”, 17-4-1966. A terceira série
intitulada “Os expurgos russos,trinta anos depois” compreende os artigos “Arma-se a
encenação”, 23-8-1967; “A mentira como norma ideológica”, 24-8-1967; “O papel de
Anastácio Mikoyan”, 26-8-1967 e “O império da grande mentira”, 27-8-1967. A partir de
1972 ele publicará, no mesmo periódico, artigos sobre outros temas tais como “Cabala-um
estudo histórico”(6,7,9,1974), e particularmente voltados ao mundo das artes.São eles:
“Pseudovanguardismo e a realidade histórica” (6-5-1972), “O Impressionismo, um século
depois”(5-4-1975) e “Contradições estéticas de Karl Marx”(18-10-1975)
Russa, apontando as contradições que a mesma encerrava e que mais tarde iriam se revelar.
Um dos aspectos importantes desse trabalho é o fato de que Isaias Golgher já havia se
desvinculado de suas convicções marxistas e podia com isenção fazer uma crítica objetiva
do marxismo-leninista. A seguir o autor passa a descrever, com abundância de citações e
fontes, o fenômeno conhecido como o “culto da personalidade de Stalin”, ou o processo de
“mitificação” até sua morte quando com o XX Congresso do Partido Comunista, de 1956,
inicia-se a “desmitificação” e a revelação da verdade nua e crua do regime e os desmandos
que o caracterizou. A reprodução de parte do “Relatório Secreto” lido na ocasião por Nikita
Khruchev, e que abalou o mundo comunista, descrevia os crimes do regime atribuidos
somente à pessoa do ditador, sem que se alterasse ou concedesse que havia algo de errado
no próprio sistema de governo. Ninguém garantiria que o regime iria se purificar com as
confissões dos crimes e estes continuariam até o desmoronamento final em tempos mais
recentes. O capítulo seguinte sob a épigrafe “Leninismo-simbiose do feudalismo russo e do
marxismo ocidental” é uma apreentação didática do marxismo-leninista gerado em
condições peculiares no Império Czarista. Os capítulos seguintes apresentam
cronologicamente o desenvolvimento histórico da sociedade russa á começar da
“Revolução de 1905, da Reação ou “Recuo Revolucionário”, a “Primeira Guerra Mundial”
finalizando com a longa, e principal parte do livro, dedicada à “Revolução Russa” suas
etapas e eventos mais importantes até a morte de Lenin. É uma obra sistemática que parte
do melancólico presente revelando os desmandos do todo-poderoso governo soviético para
retroagir no tempo como se o autor quizesse agora fazer uma revisão histórica para sí
mesmo perguntando-se :Como isso poude acontecer? Pergunta que traduzia a estupefação
de milhares de militantes de esquerda, idealistas a toda prova, nos quatro cantos do mundo,
desde que os múltiplos processos de Moscou foram armados para eliminar os opositores do
poder absoluto do ditador e da massa crítica que o atemorizava.
O último de seus livros, que de certa forma expressa o processo final ,sob o aspecto
intelectual, de sua crítica à ideologia comunista, iniciado com as obras mencionadas
anteriormente, é dedicado a um estudo sobre o próprio Marx e sua obra intitulado “Marx,
mito do século XX- um estudo histórico” (Editora Mineira Ltda., Belo Horizonte, 1980).
Aqui vemos Isaías Golgher corajosamente, e já com o distanciamento necessário para
julgar “sine ira et studio”, encetar uma verdadeira anatomia da complexa personalidade do
fundador da doutrina mais influente de nosso tempo, com suas contradições, equívocos,
preconceitos e erros, baseado numa leitura dos próprios escritos de Marx, Engels e de
autores como L. Feuerbach, Lassalle, e outros do círculo próximo de seus amigos e com os
quais manteve intercâmbio epistolar. É também um retrato psicológico dos membros da
família de Marx, de sua formação e do mundo cultural do qual emergiu o conjunto
doutrinal do marxismo. Um livro que revela notável leitura da obra de Marx e seus
colaboradores , conhecimento ideológico das doutrinas socialistas daquele tempo apoiado
,como sempre, numa excelente bibliografia de autores de nossos dias, reconhecidos
estudiosos que contribuiram para uma revisão crítica do marxismo. Golgher análisa com
sutileza a interrelação da sociedade alemã e o judaismo peculiar que o caracteriza
percorrendo a trajetória histórica do anti-semitismo alemão do século XIX ,que também se
manifestava abertamente entre os intelectuais do movimento socialista em formação,
seguidores e opositores de Marx que se empenhava para manter sua liderança na Primeira
Internacional. Tanto os grupos de direita quanto os de esquerda estavam impregnados de
virulento anti-judaismo chegando a usar argumentos do mesmo teor contra sua pessoa.
Quando Marx ,após a revolução liberal de 1848, retornou a Alemanha e passou a ser o
470
editor do “Neue Reinishe Zeitung” o material anti-semita publicado nesse orgão de autoria
de certos colaboradores, e o foi com a sua anuência, não o diferenciava de outros periódicos
de direita. Desse modo, podemos dizer que esta obra de Golgher, além de nos fornecer uma
informação preciosa sobre o tema, em boa parte, mantém sua atualidade no contexto
mundial em que vivemos hoje em dia também América Latina. Assim, como em suas obras
anteriores ele mostrará seu caráter independente de “enfant terrible” ao mostrar o quanto a
defesa oficial do marxismo de parte dos autores soviéticos do Instituto de Filosofia da
Academia de Ciência consagram a doutrina marxista fazendo uma leitura erronea e
equivocada da obra de Marx. Nesse sentido ao falar da famosa tese de doutorado de Marx
“A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro” ele ironizará : “ Seria
difícil aceitar a hipótese do ilustre professor Sverdlov...não ter lido a dissertação de Marx, e
não ter tomado conhecimento de seu conteúdo anti-Demócrito. Estamos mais propensos a
aceitar que Sverdlov deliberadamente ignorou o fato , seguindo o príncipio comunista: ‘O
que não se anuncia, não existe’, e a omissão está explicada. Porém , quando não é possível
a omissão, então passam simplesmente a falsear,o que não é raro entre os tratadistas
marxistas-leninistas (p.36) .” Ele não poupa sequer seus conhecidos do antigo movimento
local, o que passa a ser um registro para a memória de uma corrente da imigração judaica
no Brasil. Assim, na mesma página 36, em nota de rodapé de número 59, referindo-se à
mesma questão da tese de doutorado de Marx, anota o que se segue: “Não podemos nos
abster de registrar um fato que reflete concretamente de como o método comunista
funciona eficientemente entre os crentes. Até parece que quanto mais a falsificação é obvia,
mais ela é defendida como verdade científica. A estrutura ideológica dominante bloqueia
inteiramente a mente dos intelectuais comunistas militantes. Um teórico comunista , nosso
conhecido, ficou surpreso quando lhe dissemos que Marx, em sua tese de doutorado se
coloca a favor de Epicuro e contra Demócrito, declarando “haver uma diferença essencial
entre ambos”. Ele retrucou vivamente, dizendo que Lenin considerou Demócrito um dos
mais brilhantes materialistas da Grécia, e o Novo Dicionário Filosófico da URSS afirma
que Epicuro foi o continuador de Demócrito. Foi inútil a nossa recomendação de ele
consultar o texto de Marx, e se certificar da nossa afirmativa. Ele respondeu num tom
zangado: Já estou acostumado com as falsificações imperialistas...” Lamentavelmente a
repercussão de seus livros nem sempre foi a altura de sua importância e por motivos que
podemos deduzir ao considerarmos que eram voltados a uma crítica demolidora do
marxismo-leninista. Por outro lado, não era exatamente o tipo de literatura que seria
apreciada em tempos que se seguiram aos anos da ditadura militar.
Como disse antes, a atividade intelectual de Isaías Golgher não se limitou ao estudo da
história mas seu interesse pessoal voltou-se para o campo das artes e de certa forma para
um humanismo sem fronteiras perfeitamente definidas. Algo próximo ao que hoje se
identificaria com o que nos denominamos interdisciplinariedade exemplificada em sua obra
“O Universo Físico e Humano de Albert Einstein”(Oficina de Livros, Belo Horizonte,
1991). Creio que somente através desse angulo de visão poderemos captar sua
personalidade, entender sua obra e avaliar sua atuação, o que ainda constitui um desafio
para um futuro biógrafo desse notável imigrante judeu que deixou um lastro precioso para a
sua comunidade e para a sociedade brasileira. Nesse sentido, e para terminar, permito-me
citar um testemunho valioso que é o de seu amigo escritor e jornalista José Bento Teixeira
de Salles que dedicou um tocante “in memoriam” sobre Isaias Golgher publicado no jornal
“Estado de Minas”, em 28 de fevereiro de 2003 .Assim ele escreve: “De suas preocupações
com a nossa cultura dou testemunho, quando liderou um movimento de intelectuais belo-
471
Dedico também este trabalho aos meus doces netos Ariel e Débora, fiéis
colaboradores de meus trabalhos. A eles devo a realização de meus recentes livros e
artigos.
703
Ed. Chemed, 1899 e reeditado pela ed.Ariel, Jerusalém,1979.
473
No ano de 1899 ele decidiu viajar novamente a Inglaterra para complementar seus estudos
entrando no Jewish College de Londres. Foi nesse período que resolveu fundar uma
associação para jovens que favorecesse uma aproximação e uma atividade social entre os
componentes da nova geração de Jerusalém sob o nome de “Achvá”. Mas a associação
ampliou seus objetivos promovendo o preparo de jovens para o trabalho agrícola e
colonização .Para tanto ele saiu para conhecer as “moshavot” existentes no país e
encaminhar jovens para aprenderem a trabalhar a terra e nela se fixarem. Após o Primeiro
Congresso Sionista de Basiléia um de seus amigos lhe sugeriu que fotografasse as
“moshavot” com a finalidade de mostrar o resultado do movimento de colonização
Chovevei Sion, antes da formação do sionismo político herzeliano. Desse modo, ele viajou
por todo o país fotografando as colonias fotos essas que permitiram compor o álbum acima
lembrado. Naquele tempo ele foi convidado pelo jornal “Express” para estar presente no
Terceiro Congresso Sionista na Basiléia, realizado em 1899, e ali conheceu o jornalista
Reuven Breinin. Dali ele foi a Inglaterra para estudar e acabou , de início indo a
Manchester para exercer a função de secretário de uma sinagoga. Ali, chegou a colaborar
com artigos no Manchester Guardian e no Jewish Chronicle. Dessa vez poude continuar
estudando até conseguir receber a “semichá” de rabino e enquanto se encontrava ainda
naquela cidade foi indicado para atuar em uma pequena cidade da região de Gales.
Naquele local tomou a iniciativa de criar uma escola para as crianças e inovou o método do
ensino da língua hebraica através de seu livro didático “Melamed Lehoil”.
Após certo tempo exercendo várias funções na comunidade de Manchester e Gales
conseguiu obter um posto na Hope- Place Synagogue em Liverpool (1904-1923). Em
Liverpool, uma cidade portuária que fazia parte da rota da migração européia de passagem
para a América ele não poupou esforços para criar as condições para ajudá-los, sob todos os
aspectos, sendo reconhecido por seu talento, trabalho, e dedicação aos imigrantes que
aportavam àquela cidade, em especial a partir de 1905, quando o número de emigrantes
judeus da Rússia aumentou consideravelmente. Apesar da interrupção sofrida durante os
anos da Primeira Guerra Mundial, ele retomou sua atividade em prol do imigrante logo
após com grande intensidade. Em função de sua missão ele viajou, em 1921, a Amsterdam ,
Antuérpia, Roterdam e Haag para travar entendimentos com as comissões locais com as
quais estava em contato durante vários anos ,para que juntos convencessem a ICA reunir
uma assembléia especial de todas as comissões de emigração para discutir os difíceis
problemas atinentes à essa questão. A Assembléia reuniu-se em Bruxelas com
representantes de vários países que tratavam de assuntos relativos à emigração. Apesar dos
escassos resultados desse encontro o fato chamou a atenção dos responsáveis pela ICA e
cujo diretor geral visitou Liverpool para ali constatar o notável trabalho que o rabino
realizava nesse setor. A experiência de R. com as questões concernentes à imigração e seu
trabalho com imigrantes que passavam por Liverpool foi marcante e tornou-se conhecida
em toda a Inglaterra. Nessa ocasião a ICA estava interessada em implementar a imigração
judaica ao Brasil. Desse modo Raffalovich foi convidado para representá-la nesse país e
criar as condições para dar o devido suporte à imigração judaica e implementar o projeto de
colonização agrícola já existente no Rio Grande do Sul desde 1904. Sua chegada ao Brasil é
narrada por Nathan Goren na coletânea de seus sermões intitulada “Maagalei Yosher” 704 e
704
Ed.Shoham, Tel-Aviv, 1950. Boa parte dos sermões que constam nesse livro são traduções ao
hebraico do “Our Inheritance”, publicado em 1932.
474
705
Ed. Shoshani, Tel-Aviv,1952.
706
Vide sobre isso Falbel,N,Jacob Nachbin, Nobel, São Paulo,1985, pp.73-82. A discussão iniciada
em 1924 não terminaria e continuaria durante certo tempo com reações, a favor e contra, assim
como podem ser acompanhadas no jornal “Dos Idische Vochenblat”( O Semanário Israelita)
durante o ano seguinte como podemos verificar no número de 23/1/25 no qual os representantes
da comunidade de Natal no Rio Grande do Norte ainda se manifestaram a respeito. O debate não
cessaria e voltaria periodicamente à ordem do dia da vida comunitária. Quando em 1927
Raffalovich voltou mais uma vez ao assunto e o grupo de iniciativa que o apoiava convocou uma
assembléia geral para debater sobre o mesmo eclodiu em meados daquele ano novo debate no
Brasilianische Idische Presse, (números de 31/5/1927;3/6/1927;10/6/1927). Nathan Becker,
militante do Partido Poalei Sion se manifestaria dizendo que é a favor de uma organização
475
comunitária em bases democráticas mas que não apoiava o “grupo de iniciativa” (B.I.P. 31/5/1927).
Na sinagoga Beit Israel realizou-se um meeting para discutir o assunto e a tona dos que se
manifestaram entre eles Schlomo Izeckson, (no B.I.P. de 10/6/1927 ele explicará que nunca apoiou
essa idéia do rabino Raffalovich) Aron Shenker,A. Berman, N.Huliak, foi negativa. Entre os
argumentos alegou-se que a motivação da iniciativa era o “kavod” (vaidade pessoal) além de que a
tal “kehilá” poderia despertar o ódio da população cristã...
707
Dos Ídische Vochenblat (doravante DIV) 16/1/1925.
708
Os diretores do HICEM passariam a visitar os países sul-americanos e R. teria contato pessoal
com os mesmos. V. IF 20/4/1928. O Hilfs-Ferein, com a ampliação de suas atividades alugaria um
novo prédio na rua São Cristovão, 189. V.Idische Folksteitung (doravante IF) 8/6/1928.
709
IF 3/1/1928.
710
IF 20/1/1928.
476
problemas e sua administração passava a ser indispensável. 711 Por outro lado, em suas
viagens pelas comunidades, proferia conferências e palestras sobre temas judaicos e
procurava despertar a consciência dos seus membros para a necessidade de se criar uma
escola local.712 Sua atividade itinerante pelo vasto território brasileiro acabaria por ter um
resultado surpreendente na criação de novas escolas. Raffalovich, desde que chegou ao
Brasil, percebeu a importância da imprensa judaica e logo passou a colaborar com artigos
para a mesma no intuito de esclarecer aspectos da história judaica, festividades religiosas e
questões relativas à vida comunitária, bem como divulgar sua atuação através do país.713
Sem pretendermos fazer uma história da educação judaica no Brasil devemos lembrar que o
projeto de colonização da ICA com a criação de Philippson em 1904 e Quatro Irmãos 1911-
2 previa a criação de escolas locais. Efetivamente encontramos a primeira escola judaica
em Philippson, estabelecida por Léon Back, em 1908 destinada a atender a educação dos
filhos de seus colonos. Podemos verificar que os egressos das colônias que se
estabeleceram nas cidades do Rio Grande do Sul procuraram criar escolas para darem
continuidade à educação judaica de seus filhos. Nos anos 10 temos em cidades como Porto
Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro “escolas”, na verdade “hedarim” provisórios para o
711
São freqüentes as notícias das viagens de R. à Argentina na imprensa judaico-brasileira. Em
20/1/1928 o IF anuncia a viagem do rabino a Buenos Aires, no mesmo navio, que viaja o
engenheiro Akiva J. Ettinger (1871-1945), especialista em colonização agrária, representante da
ICA e conselheiro para a América do Sul desde 1911, além de importante ativista do Fundo
Nacional Judaico )Keren Kayemet LeIsrael) que desempenhou um importante papel na
colonização agrária na Palestina. Ettinger esteve ,na época, visitando o Brasil, porém, ele já havia
estado no Brasil entre 1911 e 1913. Em suas memórias “Haklaim yehudim batefutzot”(Agricultores
judeus na diáspora), publicada em 1942, ele menciona ter visitado a colônia da ICA Philippson em
1913. Sobre ele vide o verbete na Encyclopaedia Judaica, Keter Pub. House, Jerusalém, 1971-2,
vol. 6, p.953; também Encyclopaedia of Zionism and Israel, Herzl Press –McGrow-Hill ,New York,
1971, vol.1, p.307.
712
O DIV de 12/2/1926 relata que chegou em 8/2 a Bahia e falou sobre seus dois anos de trabalho
comunitário no Brasil. O mesmo periódico de 19/3 confirma em entrevista que esteve na Bahia e
Pernambuco. O número de 26/3 informa que deu uma conferência sobre “Di meglichkeiten far a
gresseren ídischen ishuv in Brazil” (Os meios para uma comunidade judaica maior no Brasil) e o
DIV de 11/6 relata sobre sua viagem ao Sul e a Montevideo, referindo-se a ICA e a fundação de
escolas. Nessa viagem ele chegará a B.Aires pois o DIV de 23/7/1926 anuncia que está a
caminho de volta dessa cidade , assim informa seu secretário Zvi Peippert. No DIV de 23/7/1926
se refere a visita de R. em Santana do Livramento que em sua conferência expressa o receio da
assimilação vendo a educação como uma forma de se contrapor a esse processo. Isso nos dá uma
idéia da estonteante atividade do rabino e seu desejo de realizar ao que se impôs em sua missão
para o Brasil e América do Sul.
713
Podemos acompanhar sua atuação, viagens, homenagens, no DIV, no BIP , IF, e outros
periódicos desde os primeiros passos ao chegar ao país até sua saída em 1935.
477
ensino religioso das crianças dos imigrantes visando acima de tudo o seu preparo para o
bar-mitzva.714 Sem dúvida serviram como núcleos iniciais para um desenvolvimento
posterior de um currículo mais completo. Por outro lado sabemos de iniciativas pessoais
antes dos anos 20715 e já nos inícios dos anos 20 que por razões locais fracassaram.716
Nessa década é que efetivamente se criam escolas com um programa judaico secular
inspirados nos modelos europeus do Cysho e do Tarbut sendo predominante esta última
714
Sobre as escolas da ICA em Philippson, Quatro Irmãos e as demais colônias bem como outras
do tipo “hedarim” que também eram denominadas de Talmud Tora, vide meu artigo “Subsídios à
História da Educação Judaica no Brasil” in Falbel,N. Estudos sobre a comunidade judaica no
Brasil, Fisesp, São Paulo, 1984, pp. 119-130. Há no periódico “A Columna” (de set.-out.-
nov.dez.,1917) uma notícia sobre a escola de Pinhal “sob a direção de Max Rosenberg e cujos
alunos representaram a peça “ O Rei Lear” do conhecido israelita Jacob Gordin, em 4 atos com
música.” No Arquivo de David J.Pérez, Coleção Microfilmada de Nachman Falbel, Pasta 3,
encontra-se uma carta de Alexandre Algranti datada de 26/4/1916, dirigida a Pérez que se refere
ao Talmud Tora de São Paulo, fundado em 25 de fevereiro daquele ano: “Há um schochet
ambicioso em todos os aspectos vendedor ambulante que se diz grande sábio...e vai nas famílias
israelitas dar lições em Hebreu aos filhos destas. Naturalmente isto é diferente de nossa instituição
escolar...os pais podendo bem em mandar agora os filhos na escola, não mandem mais este que o
sr. Schochet (ambulante) em fazer concorrência e que bem pode ocupar-se de seus negócios”. O
tal “schochet” é certamente um “professor” que atua pessoalmente no preparo das crianças para o
“bar-mitzva” e que a escola recém fundada vê como seu “concorrente”. Na mesma carta informa-
se que na sinagoga da Rua da Graça, 39 recolheu-se contribuições dos que foram chamados à
leitura da Tora para o Talmud Tora. No periódico “A Columna” de março de 1916 noticia-se o
desejo de fundar uma escola e no número de maio do mesmo ano informa-se sobre fundação da
escola em 25 de fevereiro sendo que nos demais números encontramos notícias sobre a ajuda
institucional prestada ao Talmud Tora Beit Sefer Ivri de São Paulo alvo de elogios de parte de
visitantes à cidade de São Paulo, tais como Max Fineberg e Ambrósio Ezagui. Fineberg (“A
Columna”, agosto 1917) nos informa que “o Talmud Tora recentemente fundado que vai prestando
o inestimável serviço de instruir os filhos de nossos correligionários na língua dos Profetas e
educá-los propriamente para que sejam tão bons israelitas como brasileiros.”
715
Em Belém do Pará o major Eliezer Levy fundou uma escola “Externato Misto Dr. Chaim
Weizmann em 15 de novembro de 1919. Sobre isso vide Falbel, N., “Subsídios...” p.126.
716
É ocaso de uma iniciativa de A.Ribinik, ativista sionista, de fundar uma escola em Maceió, em
1922, mas como certas famílias não quiseram mais enviar seus filhos pelo fato de terem se
demitido da Sociedade local a escola teve que fechar, assim como a própria Sociedade
mantenedora. V. DIV 15/11/1924. No mesmo número se relata que em Cachoeira , pelo fato não
haver uma escola judaica as crianças que freqüentam a escola pública brasileira tem sucesso
devido os seus talentos...
478
717
Uma carta assinada por Jaime Horowitz e Itshaq Roitberg ,respectivamente presidente e
secretário da primeira organização sionista no Rio de janeiro conhecida como Tiferet Zion, nos
informa que “podemos relatar que em reunião no dia 12 de Adar pensamos em criar uma escola
hebraica e aproveitamos o Purim para criarmos um fundo para o empreendimento
escolar...também nomeamos um diretor para o fundo da escola hebraica na pessoa do senhor Max
Fineberg...” Carta do Archion Hatzioni (Central Zionist Archives), de 16 de Adar 5674 (1914), pasta
Z 3/785.
718
A data oficial de fundação da Maguen David é 22 de abril de 1922, conforme consta na
Ilustração Israelita, 1, agosto de 1928. Além de Aron Goldemberg, Raphael Cohen, AlterKlein,
David Bilmis tomaram parte na fundação David José Pérez e Wolf Kadischevitch. Aron Goldenberg,
em 29/11/1921, havia enviado uma carta a David J.Pérez solicitando um encontro para conversar
“sobre a formação de um Colégio Israelita [sobre o qual] eu já tinha uma vez conversado com V.
Exa. Na praça 15 (?) de junho na chegada do Dr. Wilensky...” Em 14/2/1922 ele escreverá
novamente a Pérez em nome da Comisssão Executiva pedindo que compareça a uma reunião
“para dar a solução de assuntos sobre o “Colégio” Magen David , na sede do “Club Juventude
Israelita” sito Rua Santa Anna n. 49, sob...” Em 4 de abril de 1922 a “Comissão” convidaria a
Pérez para comparecer ao Colégio Maguen David, para no dia 6 do corrente tomar posse como
Diretor do Colégio...” Um cartão pessoal de Madame S.Worms datado de 6/4/1922, dirigido a Pérez
e desejando visitá-lo a fim de lhe falar sobre o Colégio Israelita se encontra juntamente com todos
esses documentos na Pasta 7 do Arquivo David José Pérez, Coleção Microfilmada Nachman
Falbel. Em 14/2/1924 Harry Marcos Fineberg, tezoureiro da escola, escreve a Pérez, “em nome da
Comissão Administrativa, concedendo-lhe autorização e poderes sobre as despesas internas que
venha necessitar o referido Colégio”. Vide também Falbel, N., David José Pérez: uma biografia,
Garamond, Rio de Janeiro, 2005. Contudo a escola teve sérias dificuldades nos seus primeiros
anos de existência e ainda em 23/1/1925 o DIV publicava um artigo “Di flicht fun di eltern” (O papel
dos país) no qual se apontava os obstáculos que a instituição deveria enfrentar.
719
Vide de Tuvia Palatnik, Benetivei hanedudim (Nos caminhos errantes), Tel-Aviv, 1970, pp.193-4.
O autor descreve com admiração a atuação de R. no Brasil e entre tudo o seu papel na criação da
rede escolar judaica no país. R. em seu “Tziunim veTamrurim”, p.189, faz referência a pequena
comunidade de Natal e seu jardim-de –infância sob a direção de Sara Barnitzki que foi trazida
especialmente de Eretz Israel para ser a responsável pela instituição.
479
720
DIV 31/7/1925 e 28/8/1925. O Beit Sefer Ivri-Brazilai “Maguen David” de orientação hebraísta
mobilizava boa parte da comunidade recebendo apoio das organizações sionistas e nos primeiros
anos tinha como diretor o Prof. David José Pérez, notícias sobre ela encontra-se no DIV que
comunica o encerramento do ano letivo além das comemorações e campanhas em seu favor.DIV
28/11/1924;9/1/1925;23/1/1925;6/3/1925;20/3/1925; 11/9/1925. Já em 1927 o diretor da escola era
o professor M. Burlá e frente ao novo ano letivo de 1928 a instituição daria um salto no tocante ao
número de alunos enquanto anunciava a abertura do primeiro ano ginasial, o que levou a mudança
para um novo prédio. Também ponderou-se, em assembléia geral, que elegeu nova diretoria, a
fortificação do ensino da língua ídiche. Vide IF 3/2/1928;7/2/1928; 2/3/1928;6/3/1928;
9/3/1928/10/4/1928. O IF de 4/5/1928;11/5/1928;1/6/1928;8/6/1928 trás o noticiário sobre os
preparativos para a inauguração do ginásio e do novo prédio marcado para o dia 10/6/1928.
721
BIP 6/12/1926; 9/12/1927, nesse último número se publica um artigo sobre “A natzional-veltliche
idische folks-schule un kinderheim”(A escola secular-nacional judaica e o lar da criança) no qual se
expressa que a idéia da criação de tal escola ,entre outras coisas relativas ao seu programa, é
devido ao fato de que “centenas de crianças são educadas na escola oficial na qual prevalece o
espírito católico...”
480
722
DIV 20/3/1925. Wolf Kadischevich era presidente da escola e Raffalovich fazia parte da diretoria
ampla. O DIV de 8/1/1926 informava que em 2/12/1925 a escola Maguen David comemorava o
encerramento do ano letivo no salão do Clube Ginástico Português, com a presença de centenas
de famílias da cidade e que além do presidente, Leon Schwartz, falou o Dr. Raffalovich, seguindo-
se a representação em hebraico da peça “Bat Iftach”(A filha de Iftach), cantos e danças. Já no
número de 2/2/1926 informa-se que na assembléia anual da escola na qual se destaca, mais uma
vez, o ingresso das 11 crianças no Pedro II, apresentando-se o orçamento da instituição (50
contos de reis anuais, mensalidades e contribuições voluntárias) se revela que parte das crianças
“fun di arabischen idn” ( isto é, dos judeus sefaraditas) estudam gratuitamente. Interessante
observar que a diretoria, composta por judeus sefaraditas e asquenazitas da velha imigração,
apontou como Presidente de Honra o rabino Raffalovich. Em agosto de 1928 a Ilustração Israelita,
n.1, publicava um relato sobre o Maguen David no qual se elogiava “o trabalho incansável dos
excelentes educadores Wolf Kadischevitch, David Pérez e outros... após um período de
decadência ,debelado pela organização de uma nova comissão que entregou a diretoria ao sr.
Eidelman . Este elevou o Colégio a categoria de Ginásio, fazendo a mudança para um novo
edifício. Atualmente freqüentam 172 crianças...O programa de estudos de língua portuguesa é o
mesmo das escolas públicas. O quinto ano já prepara os alunos para fazer o exame de admissão
aos cursos secundários. Os estudos do hebraico seguem o mesmo programa do Ginásio de Jafa.
Todos os cursos funcionam no novo prédio da rua barão de Ubá,89. Para o lanche do meio-dia, o
ginásio oferece aos alunos leite e café.” Sobre a inauguração do novo edifício da escola encontra-
se uma carta de 25/5/1928 endereçada a Pérez, no Arquivo David J.Pérez, Pasta 12, Coleção
Microfilmes Nachman Falbel.
723
Raizman viera da Argentina recomendado pelo partido Poalei Sion que apoiava e estava ligado
e apoiava a corrente do Cysho. Também A.Bergman viria ao Brasil para ser professor em Porto
Alegre mas acabou ficando no Rio. Boa parte do que se segue é extraído do excelente artigo, sem
indicação do autor, sob o título “Di bavegung far ídisch in Brazil” (O movimento pró- ídiche no
Brasil) no número comemorativo do Idische Presse, p.18-23. É preciso lembrar que em 1927
Zerubavel, o famoso líder do Linke Poalei Sion e vice-presidente da rede escolar na Polônia veio
para o Brasil em nome do Cyscho para colher fundos na América do Sul visitando também a
Argentina e outros lugares.. V. IF 6/1/1928. O jornal de Varsovia “ Heint” (Hoje) de 28/7/1927
publicou um artigo sobre sua pouco bem sucedida missão no continente.
481
para os estudos mais profundos, além do português, assim como era ensinado na escola
oficial do país. A escola Ber Borochov, que em 1927 se encontrava sob a direção de
I.Raizman,724 não durou muito tempo e a um dado momento ela teve que se unir a escola
hebraizante devido a má situação financeira de ambas. A segunda escola do mesmo gênero
foi a Jacob Dinezon725 de Salvador que continuou existindo durante muito tempo e no ano
de 1927 havia adotado o programa da “idisch –veltliche shul” da Polônia sob a direção de
Menasche Fuks e a orientação pedagógica de I. Shusterovich. 726 Porém ,em 1934, por
724
I. Raizman, professor, foi um dos primeiros historiadores judeus no Brasil e do grupo fundador
do Poalei Sion em Porto Alegre. O IF 27/12/1927 trás a notícia sobre comemorações em
homenagem à Ber Borochov, o notável teórico do Poalei Sion. Raizman relata sobre os motivos da
criação da escola Ber Borochov em seu livro A fertl yorhundert idische presse in Brazil, (Um quarto
de século de imprensa judaica no Brasil) ed.Muzeum le-Omanut ha-Dfus, Safed, 1968, pp.55-57.
Em suma a luta entre as duas correntes , a idichista e a hebraísta é o que levou, na época, à
divisão de algumas escolas, entre elas também a de Santos, assim como o relata Raizman em sua
obra , pp.184-5. Raizman coloca claramente que a divisão da escola de Porto Alegre foi de caráter
ideológico e ele , idichista por convicção, naquele tempo, culpa injustamente os sionistas e a
obstinação do professor Jacob Faingelernt, bem como a Raffalovich pelo ocorrido. Em sua história
da imprensa judaica no Brasil, e antes dele o historiador Jacob Nachbin, assinala um dos seus
segmentos importantes foi representado pelos boletins ou jornais das escolas , como a de Santos,
o da escola J.Dinezon da Bahia, o da Scholem Aleichem em São Paulo e muitos outros. Raizman
publicará um histórico da escola no boletim comemorativo, lembrado mais abaixo (vide nota 27) da
escola de Santos, sob o título “Di schvere atchile...” ( O difícil começo...) no qual enfatiza o papel
de Jacob Faingelernt como hebraista que não dava importância ao ensino do ídiche, o que de fato
não corresponde inteiramente à verdade. A escola “Ber Borochov” encerraria suas atividades em
1929 e Raizman, com certa ironia e mágoa, lembra que a ICA não a subsidiou uma vez que R. se
atinha ao príncipio de não apoiar duas escolas em um mesmo local.
725
A escola foi fundada em 1925 e a notícia que temos no DIV 26/3/1926 sobre o primeiro
aniversário comemorado no dia 24/2 confirma o apoio de Raffalovich bem como a orientação que
havia adotado desde o início sendo “a única escola judaica no Brasil na qual se ensina as matérias
judaicas em ídiche e na qual o hebraico não é limitado, e que todas as crianças da comunidade a
freqüentam e é apoiada por toda a coletividade que se responsabiliza por ela.As despesas do ano
foram de 17 contos sendo de 6 o ingresso das anuidades ;1 conto provindo do Dr.Raffalovich e os
demais 10 contos cobertos pela comunidade, contando 40 crianças de ambos os sexos. Assina o
secretário da escola Jacob Berenstein.” No boletim “Undzer Yovel” , da escola J. Dinezon,
publicado em 1934, dá-se o ano de 1924 como a data de fundação da escola. Fundo 228 Gussy
Schkolnick AHJB.
726
Menasche Fuks demonstrou sua preocupação com a educação judaica através de uma série de
artigos na imprensa da época. Já nos números de 31/7 e 7/8/1925 do periódico DIV ele escreve
482
dissenções internas, seria criada uma nova escola. 727 No mesmo ano de 1934 veriamos a
criação da escola Scholem Aleichem em São Paulo. 728 Mas devemos lembrar que na cidade
de Santos, em agosto de 1930, foi fundada a escola “I.L.Peretz” seguindo a mesma
sobre a religião na escola judaica (Religie in a idischer schule) adotando uma postura laica sobre o
assunto.
727
Na ata número 1 da reunião de diretoria do Centro Israelita de 10/1/1934 consta a fundação da
escola para a qual J. Politschuk seria convidado para ser professor. Na ata 25 de 18/10/1934
consta na ordem do dia o item “sobre o acordo para a reconciliação com a escola J.Dinezon” ,o
que demonstra o quanto era frágil sua existência. Livro de Atas (10/1/1934-2/4/1936, ídiche) Fundo
426 - Bahia, AHJB.
728
Sobre ela vide o artigo de Abrahão Gitelman ,”Uma escola ídiche na São Paulo de trinta” in
Boletim Informativo do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro,ano III, número 17, outubro,1999, pp.7-
9.
483
729
Dois anos após a escola publicaria um boletim especial comemorativo de seus dois anos de
existência ,com a data de dezembro de 1932, tendo a figura do notável patrono-escritor estampada
na capa e o título “Di Idische Veltliche Schul”. O histórico dessa escola encontra-se no artigo
escrito por Godel Feingezicht com o título “Tzvei yohr idisch veltleche schul” (Dois anos de escola
secular judaica). O primeiro professor dessa escola foi Aisengart que em 1932 foi substituído por I.
Raizman. De início foi apoiada por R. mas esse apoio cessou quando os atritos internos na
comunidade local, aparentemente de natureza ideológica, se agravaram. Um artigo dirigido contra
R. escrito por Simon Ratholz “Der ICA forshteier un dos idische schul vezen in Brazil” (O
representante da ICA e a educação judaica no Brasil) permite compreender as razões que levaram
o rabino a não continuar dar o apoio financeiro àquela escola uma vez que a ICA negava-se a
subsidiar duas escolas em pequenas comunidades. O número comemorativo é constituído em boa
parte de artigos que contém incontidos ataques pessoais à Raffalovich que procuram denegrir sua
imagem perante a comunidade brasileira. Na publicação encontra-se uma carta aberta dirigida à
diretoria central do Instituto Científico Judaico (Yiwo) na Europa na qual se acusa o rabino-mor,
representante do Yiwo no Brasil, como um “declarado inimigo de tudo que é judaico e secular em
nossa comunidade”. Os ataques pessoais a Raffalovich se repetiriam nos boletins de outras
escolas afiliadas a mesma corrente assim como podemos constar na redação extremamente
agressiva do professor A.Aizengart, que já havia passado por várias escolas, desde que
desembarcara no Brasil, em artigo no boletim “Undzer Schul” da Escola Scholem Aleichem de São
Paulo, junho de 1934,p.5, intitulado “In tzeichen fun kamf” (Sob o signo da luta) dirá que a escola
deve estar orientada para as crianças em base moderna-progressista e não sob a nacionalista
estreita , clerical-chouvinista concepção dos ativistas dos “presidentes” e “diretores” com o seu
espírito reacionário, em todos os aspectos da educação escolar, e a tendência do profundo
reacionarismo e obscuro clericalismo da ICA e seu representante Raffalovich...” Fundo 140
Abraham Gitelman, AHJB. Era o tempo do “ódio ideológico” verbrrágico, irresponsável, sem limites
e sem escrúpulos! Era comum, na época - estamos falando dos anos 30 - entre os círculos de
esquerda, a visão de que o hebraico era uma língua sem futuro, clerical e de grupos
assimilacionistas; o ídiche seria a língua que preservaria o jovem educando da assimilação e
possibilitaria transmitir a herança da cultura judaica acumulada através dos tempos...Sob o aspecto
histórico ainda resta inquirir até onde essa ruptura, que se aprofunda fundamentalmente nos anos
30, não estaria relacionada a um contexto internacional mais amplo.
484
denominada Escola Complementar do Rio de Janeiro,730 que antes de tudo visava dar um
ensino judaico as crianças que estudavam em escolas brasileiras. 731 Porém, sabemos que no
final dos anos 20 e inícios dos 30 as divergências entre os adeptos das duas correntes
730
BIP 26/9/1927 que anuncia uma reunião de fundação da Escola Complementar no Rio, no
Yugend Club, no qual Nathan Becker e A. Bergman, lideres do Poalei Sion explicam os objetivos
da nova instituição. No mesmo número noticia-se a inauguração para o dia 9/10 do mesmo ano e
no número de 30/9/1927 o jornal informa que em 1/10 foi eleita uma diretoria da Escola
Complementar com a presença de representantes de várias associações comunitárias, sendo
designados A. Bergman presidente, N.Bronstein, vice, secretário S. Karakuschanski, tezoureiro A.
Weiner, representante da comissão pedagógica A. Scherman, colaboradores da diretoria N. Becker
e M. Fridman. Sobre a Escola Complementar escreve Karakuschanski em seu livro
“Aspecten..,vol.1,p.14: “Foi em 1928 [na verdade 1927] quando nasceu a idéia de uma escola
complementar e para a qual se colocou a seu serviço o autor dessas linhas e Aron Bergman, Z”L, o
primeiro para o hebraico e o segundo para o ídiche. A escola complementar teve lugar no Yugend
Klub que na época era presidido por Nathan Becker. Se entende que Becker apoiava a escola de
todo coração e alma cedendo a sala gratuitamente. Também os professores não recebiam
qualquer remuneração...e devido a isso a escola fechou após 3 meses de existência.”
731
IF 8/6/1928 ao falar da abertura da escola Scholem Aleichem “a quarta do Rio. Ela se integra à
rede das Escola Hebraica que já passou a ser Ginásio Hebraico; a escola popular do Meyer; a
escola Complementar...que funciona no Yugend Klub.” Sobre a escola Scholem Aleichem do Rio
vide a brochura “Colégio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, Relatório Social e Financeiro para o
Decênio 1935-1945”.
485
732
Em artigo de autoria de Aharon Matz, um dos dirigentes da escola Scholem Aleichem do Rio,
sob o título “Farvos idisch-veltliche shulen?” (Por que escolas seculares judaicas?) publicado no
mencionado boletim comemorativo da escola de Santos, colocando a corrente secular nacional-
judaica como a melhor alternativa temos ,em contraposição, uma definição das correntes escolares
a começar do Talmud Tora ou escola religiosa que “tira a criança do mundo que o envolve”; a
hebraica que apesar de moderna “constroi uma muralha da China entre a criança e seus país”
educando para uma Eretz-Israel ,um sonho do futuro, para o qual ele não irá, e que não realizará,
assim como o Talmud Tora vive do passado da história judaica; a escola oficial brasileira, que ao
contrário das duas anteriores que afastam a criança do meio no qual vive, favorece a assimilação
como um desejo deliberado de integração em uma única nação e luta para eliminar qualquer
vestígio de outra identidade, aumentando, desse modo, o abismo entre a criança judia e seu lar,
afastando-a de seus pais para poder melhor assimilá-la. Para o autor somente a idisch-veltliche
schul é capaz de se opor a assimilação e evitar o afastamento da criança do seu meio judaico. É
no mínimo surpreendente, que em alguns artigos dos defensores da “veltliche shule” a corrente
hebraica (do Tarbut), por ser promovida pela ICA era vista como assimilacionista...É o que vemos
no artigo de Ch.I. Weisman “Lomir boien idisch-veltliche schulen” (Construamos escolas judaicas
seculares).
733
Conforme se encontra manifesto em artigo publicado no boletim da Escola Scholem Aliechem
de São Paulo “Undzer Schul”, São Paulo, junho de 1934, p.2. O articulista anônimo propõe um
contato permanente com o Cysho na Polônia, com o Arbeter Ring dos Estados Unidos e outras
organizações. Na mesma publicação anunciava-se a formação de uma escola secular em Curitiba,
mas tudo indica nunca chegou a ser criada. Fundo 140 Abrahão Gitelman, AHJB. O mesmo
encontramos no boletim “Undzer Yovel” da escola J.Dinezon. Fundo 228 Gussy Schkolnick, AHJB.
734
“Undzer Yovel, boletim da escola J. Dinezon, 1934. Fundo 228 Gussy Schkolnick, AHJB. O
boletim noticiava a vinda ao Brasil do professor P. Tabak, que dirigia uma escola secular em Lublin
na Polônia, além de um artigo de sua autoria.
486
aponta para um amadurecimento no sentido do debate sobre a concepção que deve reger a
escola judaica no Brasil e nele tomam parte professores respeitáveis como Moshe Fridman
que se destacava por sua cultura e teve um papel de destaque entre os educadores da
comunidade brasileira.735 Uma entrevista do presidente da Escola Hebraico-Brasileira,
Leon Schwartz, ao BIP reflete o que se passava ao enfatizar que “nesse ano será dada maior
atenção ao ídiche”.736 Um olhar atento sobre o que se passava na rede escolar revelaria que
na medida em que o “esquerdismo” se identificava com o ídiche e assumia uma postura
ideológica radical,737 em oposição ao hebraico, a harmonia e a união comunitária se
mostrava ameaçada por divisões internas. Nesse sentido, a fim de evitar cisões e perigos
que espreitavam a vida escolar em uma fase de ampliação do número das escolas em
diversos Estados levou a que se pensasse na realização de um “congresso nacional sobre a
educação judaica no Brasil”.738-739 Tudo indica que Raffalovich vinha já vinha há algum
735
Vide BIP 8/11/1927;26/11/1927;29/11/1927. Moshe Fridman, culto e excelente hebraísta era
egresso do Seminário de Professores de Odessa e foi diretor do Ginásio Hebreu-Brasileiro.
Encontramos no DIV de 5/12/1924 um artigo de sua autoria justificando o porque de uma escola
“hebraica” (“Farvos a hebreische schule”) no qual argumenta que houve uma criatividade em
hebraico durante toda a história do povo judeu e a fonte dessa criatividade é o Tanach, a Bíblia
Hebraica. Artigos de sua autoria relativos à educação encontram-se disseminados em boa parte da
imprensa judaica dos anos 20 e 30, tais como os do Idische Folkstseitung de 11/5/1928 sob o título
“Di printzipen fun aktiver dertziung”(Os princípios da educação ativa) e de 25/5/1928 “Di
biologische tzilen fun ertziung” (Os propósitos biológicos da educação) ou ainda no número
comemorativo do Idishe Presse de 19/6/1935 “Idische schul-vezen in Brazil”(Educação judaica no
Brasil). Vide sobre ele S. Karakushanski, Aspectn funem idischen leben in Brazil (Aspectos da vida
judaica no Brasil),Rio de Janeiro,1956-7, 2vol., vol.II, pp.117-119. Nesse tempo, que antecede ao
Congresso dos professores muitos artigos sobre educação serão publicados na imprensa. Outros
professores, J. Politchuk, publicará no IF 24/2/1928 seu artigo “Tzu der schul um lerer-frage”
(Sobre a escola e a questão dos professores),Moshe Weiner ,no IF 27/1/1928 publicará o artigo
“Tzu di schul-fraguen” (Sobre as questões escolares) abordando a questão da passagem do grupo
escolar e a admissão ao curso ginasial. O professor Jacob Faingelernt publicará no IF 7/2/1928 o
artigo “Der baginem fun untzer schul-vezen” (Os inícios de nossa educação escolar) e B.Zinger, de
Santa Maria , no IF 23/3/1928 o artigo “Tzu der schul-frage”(Sobre a questão escolar).
736
BIP 11/3/1927.
737
Essa postura ideológica encontra-se no artigo de Aron Schenker, “Di notvendikeit fun a
idischer schul”(A necessidade de uma escola judaica), publicado originalmente no “Dos Idische
Vochenblat” e reproduzido em seu livro “Vort un Tat”(Palavra e ação), ed.Ykuf, Rio de Janeiro,
1959,pp.133-135.
738
BIP 16/12/1927.
739
A idéia provocaria uma reação positiva entre educadores, professores e interessados que se
manifestariam sobre a mesma na imprensa a começar de L.Marchevski de Campinas com o artigo
487
tempo pensando em fundar um “ tipo de escola para professores no período das férias de
verão , para dar aos professores necessitados a oportunidade de complementar seus estudos
”.740Já em 5 de março de 1928 programou-se um encontro de educadores e interessados
para discutirem algumas questões sobre educação judaica no Rio na Escola Hebraico-
Brasileira, reunião essa presidida pelo rabino Raffalovich. Seria um encontro prévio que
prepararia a pauta dos professores da cidade para o Congresso. No final de junho de 1928
R. enviava uma circular na qual dizia que “ após a questão da educação neste país ainda não
ter encontrado uma solução de parte daqueles que diretamente estão nela implicados, ou
seja os professores judeus deste e devido a grande necessidade de se criar um programa
geral para todas as escolas existentes fortificar os professores menos preparados a fim de
lhes dar os meios de elevar a necessária educação da nova geração judaica no pais, foi
resolvido de acordo com os professores, convocar um Congresso de Professores nos dias
das férias de verão com a duração mínima de um mês. Durante esse tempo realizar-se-ão
aulas exemplares e palestras sobre temas pedagógicos e técnicas de ensino. Desse modo
dar-se-á a oportunidade aos professores voltar a estudar e a outros complementar seus
conhecimentos sobre o ensino moderno, criando laços entre os professores e favorecer a
ampliação de um campo de trabalho comum no futuro. Em relação às despesas do encontro
nos esforçaremos em encontrar os múltiplos meios a fim de facilitar aos professores o
máximo possível. Após recebermos uma resposta positiva de todos os professores dispostos
a participarem no encontro fixaremos o lugar para a sua realização ao mesmo tempo que
elaboraremos um programa detalhado do mesmo.”741 Efetivamente esse Congresso
realizar-se-ia no Rio de Janeiro entre 20-25 de dezembro de 1928 e seria com ele
programado um seminário pedagógico durante um mês de atividades tendo como finalidade
reforçar o preparo professores.742 Nesse encontro estavam representadas 15 escolas do norte
ao sul do país, a saber São Paulo, Rio, Campinas,743 Curitiba,744 Recife, Bahia, Niteroy,745
Natal, B.Horizonte,746 Passo Fundo,747 Cruz Alta,748 Campos749, P.Alegre e Quatro Irmãos,
Amaral, Dra. Celina Padilha e Dr. Bauzer. O centro da reunião foi o Colégio Hebreu-Brasileiro, e as
despesas pagas pela JCA, representada por I.Raffalovich.” Raffalovich em sua auto-biografia
(Tziunim veTamrurim, p.187), confirma a realização do seminário pedagógico de um mês realizado
naquela ocasião sem especificar data. O encontro também é lembrado por Jacob Nachbin em seu
artigo “Der moderner idischer ishuv in Brazil” publicado em setembro de 1930 no periódico “Di
Tzukunft”, nos Estados Unidos.
743
Referência sobre a escola, na qual atuou o professor Eizengart, no IF 1/5/1928.
744
No DIV 12/3/1926 em um artigo de Bernardo (Baruch) Schulman sobre a situação sócio-
econômica da comunidade local, ele escreve: “Tínhamos por exemplo uma escola, um campo de
atuação que é o mais urgente, o mais sagrado e que aqui no Brasil deve-se sacrificar as melhores
forças, porém, a escola não durou mais que alguns meses. Sabemos bem que o fracasso da
escola está associado a vários fatores, tais como a incapacidade do professor com o qual as
crianças e os pais estavam insatisfeitos, o desnível nos estudos, a falta de tempo devido os
estudos gerais na escola oficial além de outras, de modo que a responsabilidade não recai
inteiramente sobre a comissão da escola...”
745
O DIV 5/12/1924 anuncia que inaugurou-se uma escola em Niteroy “já alguns dias, cujo
pedagogo é Moshe Weiner.” O DIV de 6/2/1925;21/2/1925; 9/10/1925;10/12/1926 dão notícias
interessantes sobre essa instituição de ensino o que nos permite acompanhar seu
desenvolvimento inicial. No DIV 6/11/1925 informa que em 24/10, em uma noite litero-musical em
benefício da escola o Dr.Raffalovich “falou sobre o papel que ela deve cumprir e o perigo das
crianças judias não poderem freqüentar uma escola judaica”. Já o BIP 8/3/27 nos informa sobre
“uma reunião com a presença do Dr. Raffalovich , devido o perigo de se fechar a escola e na qual
se decidiu designar uma comissão que resolveu a)que a escola seja independente,b) incentivar os
pais a mandarem seus filhos à escola,c)que se pague antecipadamente as anuidades e que se
comprometam a sustentar a instituição. O Dr. Raffalovich concordou com um subsidio às crianças
que não tem condições de pagar.”
746
Apesar do Lexikon fun idische gezelschaftliche askonim un kultur-tuer in Brazil (Léxico dos
ativistas sócias e culturais no Brasil) brochura B.Horizonte, ed.Rio de Janeiro, 1957, apenas afirmar
que a Escola Israelita foi criada em 1928 temos provas documentais que anos antes já existia uma
escola judaica. O BIP 26/4/1927 se refere a existência de duas escolas e a correspondência do
professor Jacob Faingelernt com Raffalovich evidencia já existência de uma escola antes de 1928.
Fundo 29 Jacob Faingelernt, AHJB (doado por seu filho David Faingelernt Z’L).
747
A escola foi fundada em 1926 sob a orientação do professor I.D. Schnitman. IF 24/1/1928;
28/2/1928;4/5/1928;29/5/1928. Nela atuou durante bom tempo o professor Jacob Politchuk.
Politchuk originário de Sekuron era professor de hebraico e ativista sionista. Começou como
490
boa parte devendo sua fundação aos esforços, incentivo e apoio do rabino Raffalovich, que
viajava incessantemente com o fim de contatar as comunidades e se comprometer com a
liderança local em relação a ajuda da ICA na manutenção das escolas. Algumas escolas
não estavam representadas no Congresso de 1928 mas sabemos de sua existência e criação
antes daquele ano entre elas a de Ponta Grossa 750 e a de Santa Maria.751 Por outro lado a
ausência de um professor de Franca, uma das comunidades antigas do Estado de São Paulo,
se explica pela falta de uma escola naquela cidade.752 O professor Moshe Weiner, da
escola Renascença de São Paulo753 foi eleito presidente desse encontro que tinha um grupo
professor em Santa Maria e lecionou em muitos outros lugares. Sobre ele vide Karakuchanski, Sh.,
Aspecten...,vol.II,pp.128-30.
748
O DIV 29/10/1926 anuncia a presença do escritor Menashe Halperin e do Dr. Raffalovich que
incentivaram o reinicio das atividades culturais. Raffalovich tratou da escola que estava
abandonada pelos pais e passou a receber o apoio material e espiritual do mesmo. Raffalovich
enviaria um novo professor que ganhou a simpatia do “ishuv. O BIP 31/5/1927 recebe o
seu,representante em Cruz Alta e relata que a escola local se apresenta um bom nível de ensino.
749
O IF 20/4/1928 anuncia que Dr.Raffalovich visitou em 1/4 a escola Jacob Dinezon local e ficou
satisfeito com os resultados. Assina a matéria Moshe Segal.
750
A escola de Ponta Grossa, Paraná, sob a direção de A. Aisengart, inaugurada em 26/6/1927
com a ajuda de Raffalovich ao qual se agradeceu naquela ocasião. BIP 5/7/1927;23/8/1927;
26/8/1927. No IF 27/12/1927 em relato sobre a comunidade local Samuel Fridman menciona
que “as crianças eram educadas em uma atmosfera brasileira até que em 21/2/1927 chegou o
Dr. Raffalovich , em sua viagem ao sul, em companhia de Julio Stolzenberg, e, pela primeira
vez criou-se um fundo para uma sociedade com fins culturais e religiosos. Em 15 de junho o
Dr. Raffalovich enviou um professor e se registraram 20 e poucas crianças...”
751
Segundo notícia no DIV 27/11/1925 a escola teria sido criada em 1925. Também BIP
21/10/1927.
752
O DIV 8/10/1926 relata uma visita que Aron Koifman ,redator do jornal em questão fez a Franca
durante a qual sugeriu a criação de uma sociedade para fundar e cuidar de uma escola ou
estabelecer cursos noturnos para as crianças, além de uma biblioteca. Em 21/10/1927 o BIP
publicava uma matéria sobre a comunidade afirmando a necessidade de se criar uma escola uma
vez que as crianças estão afastadas do judaísmo. Ainda no ano seguinte o IF 28/2/1928 relatava
sobre a divisão existente naquela comunidade o que levou a enfraquecer uma tentativa de se
organizá-la, “razão pela qual não foi resolvido o problema da falta de um professor que educasse
as crianças no judaísmo.”
753
Moshe Weiner, altamente capacitado como pedagogo, deu um notável impulso ao Renascença,
criado em 1922, recebendo o apoio da ICA, e transformando-a em uma instituição de ensino
modelar. A escola contou inicialmente com um grupo de professores experimentados como
I.Mishkis, A.Shochat, e outros. Sobre a escola vide a publicação “Renascença-75 anos (1922-
491
1997)”. Pela notícia do DIV 12/12/1924 Moshe Weiner ao chegar ao Brasil viveu certo tempo no
Rio encarregando-se de organizar no Centro Sionista cursos noturnos de hebraico, ídiche,
Tanach, história judaica e estudos gerais. Em 1925 Moshe Weiner já se encontrava em São Paulo
e lecionando no Renascença, que nesse ano se localizava na rua Florêncio de Abreu,151. O DIV
26/6/1925 anuncia que a escola está fazendo reformas nos estudos em português demodo que
podem aceitar novos alunos. Uma das iniciativas originais de M. Weiner, assim informa o DIV de
7/8/1925 foi a criação da “sociedade” “Dos Idische Kind” com estatutos e afiliação de crianças
acima dos 10 anos, pagando uma taxa e tendo como compromisso de falar ídiche e hebraico entre
si e em suas residências, além de respeito mútuo e fraternidade. Visam, também, criar uma
biblioteca infantil e programar encontros periódicos para conferências, palestras, declamações e
cantos etc. Já em inícios de 1926 a escola recebe total apoio da comunidade e o DIV 15/1/1926
em reunião anual se anuncia a melhora financeira da escola graças o apoio obtido. Nessa ocasião
Moshe Weiner abordou a questão da religião e seu ensino na escola, com a sabedoria de
pedagogo que o caracterizava, formulando-a sob três aspectos a) como crença, e nesse caso ela
necessita de um rabino e não um professor, b) negativamente, nesse caso ela não tem lugar em
uma escola, c) historicamente, e nesse caso ela se presta ao ensino moderno e a escola popular.
Conforme o DIV 3/2/1926, a um determinado momento ,como diretor da Escola Renascença
(Hatchia) de São Paulo ele ampliou um setor profissional que abrangia encadernação, orquestra,
seção de costura feminina, feitura de chapéus ,essa última dirigida por uma comissão presidida por
Berta Klabin e senhoras das famílias veteranas da comunidade paulista Rebeca Bessil, Ana
Novinski, Luba Klabin, Geni Zlatopolski, Ida Segall, Geni Weinstein, Fany Mindlin e Geni Segall. O
DIV 8/10/1926 29/10/1926 confirma a continuidade do setor profissional. Antes, no ano anterior, em
artigo publicado no DIV 20/11/1925 ao se referir a escola Renascença, um articulista com o
pseudônimo “A Eigener”, dedicado à São Paulo, ao expressar uma das dificuldades para o ensino
lembrando que os professores no Brasil são poucos e que se podem dedicar-se ao comércio
largam escolas e alunos. Porém tece elogios a Moshe Weiner “que criou uma atmosfera favorável
e um nível pedagógico satisfatório” para a instituição, apesar das dificuldades e crise pelas quais
passa a escola, crise essa que é retratada por um ex-presidente Azriel Raw em carta enviada ao
DIV 27/11/1925 na qual revela as causas de sua demissão do cargo. Já no ano seguinte a escola
superaria a crise e o DIV 24/5/1926;4/6/1926;27/8/1926 mostraria a sua recuperação e vitalidade.
A partir daí a escola parece polarizar a atenção de todos os setores da comunidade ,asquenazitas
e sefaraditas, e, conforme IF 6/1/1928 a avaliação do seu ensino é inteiramente positiva: “Os
exames da escola israelita de São Paulo “Hatchia” revelam sucesso; o prgrama dos estudos em
português melhorou e se compara com o programa oficial dos quatro anos do grupo escolar.
Também o programa judaico este ano se ampliou e as crianças mostraram bons conhecimentos.
Recebem uma educação nacional, conhecem história judaica e o significado das festas, lêem bem
, escrevem e falam hebraico e ídiche e conhecem Tora e Neviim.Em especial as crianças do 1 e 2
492
ano mostram um aproveitamento notável e é de se admirar como Moshe Weiner conseguiu com
crianças que vivem um ambiente brasileiro tais resultados.” Em São Paulo, somente em 1930,
surgiria uma nova escola no bairro do Braz. Vide IF 29/8/1930. Também em 1933 seria fundada no
Bom Retiro a escola Centro Israel Talmud Tora modificado mais tarde para Escola Religiosa
Brasileira Israelita Talmud Torah de orientação religiosa conforme o nome indica.
754
Ilustração Israelita, 6-7,jan.-fev. 1929. Foi inaugurada em 25/12/1928.
755
Circular de 16/5/1931, assinada por I. Eidelman e M.Fridman. Fundo Jacob Faingelernt, AHJB.
756
Sobre ela escreve o IF 10/4/1928 e 17/4/1928 que chegou ao Rio a convite da escola do Meyer
no dia 9/4, vinda da Polônia. Nasceu em Kolomei e fez o ginásio na Galitzia e estudou em Viena.
Lecionou na Galitzia Oriental como pedagoga e também era pianista.
757
Nesse período A.Bergman era diretor da escola. Quando P. Tabak assumiu a diretoria a escola
reiniciou sua atividade escolar e o esforço em organizar comissões de matrícula, conseguir
associados e obter fundos é coroada de êxito e em 26 de fevereiro de 1935 ,para o novo ano
letivo, a instituição se apresentaria estável. A escola ,nesse tempo, fucionaria com uma jardim de
infância sob a orientação de Ida Springer e três primeiras classes primárias com o auxílio de duas
professoras brasileiras para o ensino geral. V. o artigo citado no número comemorativo do IF.
493
Como já vimos mais acima outra escola afiliada a mesma corrente foi a I.L.Peretz de
Santos, criada em 1929 que tiveram como professores Aisengart, Raizman e Berenstein,
que desenvolveram um trabalho com bons resultados pedagógicos. 758
Ao desembarcar no Rio de Janeiro R. encontrara algumas poucas escolas judaicas e calcula-
se que ao sair do país em 1935 para voltar a Eretz Israel, a rede escolar contava com mais
de 30 estabelecimentos de ensino fundadas por ele e com o apoio financeiro da ICA. 759 Ele
também percebera que não havia literatura judaica em língua portuguesa indispensável para
se levar um programa escolar para a nova geração. Daí o seu empenho em traduzir os seus
próprios escritos ao vernáculo uma vez que na Inglaterra ele já havia se preocupado em
escrever livros didáticos sobre a temática judaica, a começar do Rudiments of Judaism
(1906) traduzido posteriormente ao português no Brasil (1925), com duas ou três edições,
760
além de um Anglo-Hebrew Modern Dictionary (1926), de um volume de sermões e
discursos sob o título Our Inheritance (1932). Um dos livros importantes que traduziu ao
português foi a História dos Judeus, de autoria de Paul Goodman (1874-1949), ativista
sionista inglês e escritor, publicado em 1926. Além desses títulos ele publicou vários de
seus sermões761 e, ocasionalmente, brochuras sobre as festividades judaicas.
A visão de Raffalovich sobre o judaísmo brasileiro e sua correta compreensão sobre as
especificidades da imigração predominantemente proveniente da Europa Oriental e que
tomava parte na formação das primeiras escolas e instituições comunitárias permitiu que
obtivesse sucesso em sua vinda ao Brasil. Essa visão estava intimamente ligada à sua
personalidade tolerante e disposto ao diálogo aberto com todos que podiam contribuir para
elevar o seu projeto escolar e as instituições comunitárias. 762 Sabia que para realizar o seu
758
A noticia do IF 17/2/1928 informa que o Centro Jitlovski de Santos resolveu fundar uma escola
e para tanto designou uma comissão. Como vimos anteriormente a escola seria fundada somente
em 1930.
759
O número de escolas, acima de 30, fundadas por ele é confirmado em sua auto-biografia e no
Maagalei Yosher bem como no verbete- pouco exato- da Encyclopaedia Judaica, Keter Pub.
House, Jerusalem, 1971-2, vol. 13, pp.1511-2.
760
No DIV 9/10/1925 anuncia-se a primeira edição “como um manual dos fundamentos da crença
judaica e das observações religiosas dos israelitas”. No número de 19/11/1926 informa sobre uma
segunda edição.
761
Um dos sermões publicados tem como título “A Efficacia da Expiação: Sermão para o Dia da
Expiação 5689-1928 por Isaias Raffalovich, Grão Rabino, Rio de Janeiro, Jewish Colonization
Society, Rio de Janeiro, Brazil, Gazeta Israelita,1928.
762
Em um artigo o professor Jacob Faingelernt publicado no IF 18/4/1930 sob o título “Der
brazilianer mushel”(O exemplo brasileiro) visando defender a Raffalovich de uma crítica à sua
pessoa, ele escreverá: “Há vários anos passados chegou uma pessoa , um “talmid chacham”
(sábio) com o objetivo mais amplo e profundo da palavra e de modo silencioso e modesto sem
alarde e fraseologia , carregou tijolo por tijolo para construir os fundamentos do nosso edifício
escolar. Difícil foi o caminho e cheio de obstáculos., mas o experimentado veterano para o qual a
educação judaica é parte integral de seu conteúdo , de sua alma, em que a educação judaica é a
494
prece para deter o abismo da assimilação que ameaça , cedo ou mais tarde, engolir a maior parte
das crianças judias, não se deteve frente a todas dificuldades e com apego à sua missão e
extraordinária dedicação deu continuidade ao seu trabalho educacional em contato estreito com
professores e ativistas escolares. E como ele era hábil e tolerante com seus colaboradores! Que os
fatos falem por si. Não quero me referir a Porto Alegre ou Curitiba onde as escolas são
subvencionadas pela ICA e a comunidade tem clara idéia sobre o orçamento , programa e espírito
da escola. O que quero destacar é Quatro Irmãos, na qual o orçamento é totalmente coberto pela
ICA e lá o “Rabinato” (o articulista que criticou a R. usou essa expressão em relação à pessoa de
R.) poderia usar todos os meios para impor-se, no entanto o que aconteceu , quando eu trabalhava
como professor e inspetor escolar naquele lugar e era necessário reorganizar toda a rede escolar e
unificar o programa de ensino fui encarregado de fazê-lo sem qualquer intervenção do Dr. R. e de
acordo com a pedagogia moderna. Isso ilustra ...” Fundo 29 Jacob Faingelernt, AHJB. Trata-se de
um testemunho importante porque Jacob Faingelernt era um professor veterano que acompanhou
a formação da rede escolar judaica no país desde que chegara em ,1923, ao Brasil. Já em 9 de
agosto de 1923 encontramos uma carta de Buenos Aires dirigida a ele sobre literatura pedagógica
que havia solicitado de pessoas de seu conhecimento. Fundo 29 Jacob Faingelernt, AHJB).
Altamente qualificado e com uma sólida cultura judaica estudou na yeshiva (escola talmúdica) de
Vilna e no Seminário de Professores de Odessa (sendo seus professores homens do porte
intelectual de H.N.Bialik, I. H. Ravnitzki e J. Klausner). Ao imigrar passou a lecionar em Quatro
Irmãos, Porto Alegre, Curitiba ,Belo Horizonte e Rio de Janeiro nas quais participou na criação
dessas escolas de orientação hebraísta. Idealista, sensível, suportou ao longo de sua vida
profissional instituições com permanentes problemas financeiros, intervenções de conselhos de
pais e leigos ignorantes. Já em 1929, quando se encontrava em Curitiba, se mostrava decidido a
abandonar o ensino. É quando R. lhe escreve que estava procurando um professor para substituí-
lo, mas que ainda não o encontrara. Em uma carta em que Raffalovich se mostra preocupado com
o seu futuro o vemos em profunda crise pessoal e decepcionado ao ponto de querer deixar o
ensino para tentar algo diferente. O rabino comovido recomendará a ele não dar esse passo e
repensar em sua decisão. Cartão de 28/10/ 1929 e carta de 12/5/1933, Fundo 29 Jacob
Faingelernt, AHJB. Professor exemplar, diferentemente de outros, vivenciava de corpo e alma a
docência, o que nem sempre era comum na época em que ser professor não era o caminho para
assegurar uma estabilidade pessoal ou ascensão financeira. Em carta de 14/8/1930, o veterano
ativista e escritor da comunidade paranaense Bernardo Schulman escreve a Faingelernt uma carta
que revela a existência de incompatibilidades pessoais.Freqüentemente as intervenções e os
atritos com os professores chegavam a extremos de se exigir a formação de uma nova escola a fim
de atender uma parte da comunidade discordante da orientação e programa de alguma instituição
de ensino. Em carta de Raffalovich a J. Faingelernt, de 5/8/1929, quando este se encontrava
lecionando em Curitiba, o rabino o informa que há um grupo exigindo apoio para formar uma nova
495
objetivo deveria contar com as melhores forças educacionais, raras na época, e isso exigiria
sacrifícios imensos dos professores que ajudara a imigrar ao Brasil.763 A instabilidade do
corpo educativo caracterizava a instituição escolar e era muito comum o intercâmbio de
professores e a transferência de um lugar a outro.764 Mas o maior desafio estava no preparo
dos professores que passou a ser uma de suas preocupações centrais em sua missão
educacional, como vimos anteriormente. Ainda em 1931 ele enviaria uma circular aos
professores na qual afirmava que “a questão da educação hebraica no Brasil não será
resolvida se não se criar um programa geral para todas as escolas existentes no país e
fortificarmos aqueles professores menos preparados para podermos elevar o nível da
escola “religiosa” “pois que você supostamente ensina “heresias” em tua escola...” . Os motivos
ideológicos transparecem em outra carta , sem data, que Faingelernt escreve a R. , de Belo
Horizonte, em que relata sobre os ataques dos “esquerdistas” ao seu trabalho de professor
acusando-o de “falsificar” a língua ídiche...Assim não é de se estranhar que as mudanças de
professores por vezes eram motivadas por razões que nada tinham a haver com a capacidade
pessoal do docente. O estar trabalhando durante vários anos em um mesmo lugar poderia chegar
a um ponto de saturação que provocaria o necessário desejo do professor querer mudar de lugar.
Em 2/10/1937 o professor A. Chasin, em visita a Porto Alegre, escreve a Faingelernt que estão
para demitir o professor da escola local, e que ele seria bem vindo para lecionar na mesma.
Certamente J.F. pretendia mudar de ares e deixar a escola de Belo Horizonte. De fato , em carta
de 13/12/1936 , o Dr. Moshe Fridman aborda a possibilidade de J.F. vir lecionar no Ginásio
Hebreu-Brasileiro do Rio de Janeiro. Toda esta correspondência encontra-se no Fundo 29 Jacob
Faingelernt,AHJB.
763
Já em carta a Jacob Faingelernt ele expressará com certa dramaticidade: “ Nós ainda estamos
no começo da construção cultural neste país e muitas vítimas ainda cairão e sobre seus
cadáveres se erguerão os fundamentos do edifício educacional. Reconheço , com o coração
dolorido e opressivo que a situação não é satisfatória e não tenho força para atrair pessoas com
nobreza de espírito , mas esta é a verdade e não há porque escondê-la. Também no Rio de
Janeiro não há lugar para intelectuais e não há nenhuma diferença entre ela e outra cidade no
Brasil. Ficarei muito feliz se mantiveres tua força para continuar o trabalho até que eu chegue a
Porto Alegre e assim poderei esclarecer toda a situação, [o que se passa] no Rio e outros lugares
e, possivelmente, poderemos chegar a alguma decisão.” Carta de 10/11/1925. Fundo 29 Jacob
Faingelernt, AHJB.
764
Podemos acompanhar essa instabilidade através da correspondência de Jacob Faingelernt com
seus colegas insatisfeitos com as instituições e seus lugares de trabalho.
496
educação judaica...” 765 Para organizar um novo evento e convidava os professores Jacob
Faingelernt e Moshe Weiner para virem ao Rio de Janeiro e prepararem o programa do
mesmo. Ele, no entanto, já nos anos 30, mostrava-se cansado, após tantos anos de luta e
trabalho continuo no país que escolhera para exercer como guia espiritual da comunidade
765
Circular de 25/9/1931 na qual o Rabino-Mór convocava um segundo Congresso de professores
no período das férias de verão com a duração mínima de um mês. No encontro foram
programadas aulas e palestras sobre temas pedagógicos e as matérias de ensino. Desse modo,
diz a circular, os professores poderão voltar ao estudo e se atualizar com o ensino moderno, além
de fortificar os laços entre os professores e criar um campo amplo de trabalho comum no futuro...
“Após recebermos uma resposta dos professores fixaremos um lugar para realizar uma assembléia
a fim de elaborar um programa mais detalhado.”
497
766
Em carta de 28/7/1931 R. respondia a J.Faingelernt, que se encontrava em Curitiba: “Concordo
com você que se utilizam da crise geral como justificativa para não cumprirem com suas
obrigações espirituais. Mas o que fazer se minhas forças são limitadas, e no final das contas eu
estou cansado e esgotado, não devido o meu pesado trabalho mas devido os obstáculos e as
dificuldades que colocam e se encontram no caminho. Confesso que estou sem rumo , e temo que
talvez o desespero me possa atacar e num belo dia me livrarei dessa carga de meus ombros e
mandarei toda essa santa comunidade ao diabo...” Após esse desabafo ele ainda acrescentará :”
em relação ao teu assunto , talvez possa propor a você uma outra ocupação, ou seja em outra
cidade, e quem sabe , ali poderás encontrar paz e descanso espiritual mais do que em Curitiba?
Em todo caso informe-me sobre tua opinião a respeito desse assunto e formularei uma proposta.”
Pouco após , em carta de 3/9/1931 R. escrevia novamente a Faingelernt dizendo se sentir
“contente com as tuas palavras que animaram meu espírito”, e pedia um relatório detalhado do
que se passava na escola, evidenciando desse modo que os problemas pessoais foram
superados. No final daquele mesmo ano, em carta de 14/12/1931, R. fazia referência às tratativas
que J.Faingelernt manteve com Belo Horizonte e aceitava a sua transferência para a escola de
Belo Horizonte uma vez que , assim escrevia “após tua carta e a situação em Curitiba cheguei a
plena resolução que é bom para você mudar de lugar”. Ele terminava dizendo que tinha muito a
falar com você sobre o assunto, do novo lugar, mas o faria ao chegar ao Rio...” Pouco antes em
29/10/1931 enviava um cartão postal a Faingelernt informando-o que um professor formado no
Tarbut de Vilna e Varsóvia ,A.Lifchitz, estava disposto a aceitar a vaga existente em sua escola e
gostaria que ele mesmo julgasse os documentos que o candidato lhe enviaria. Pela carta no verso
da mencionada circular convocando o segundo Congresso de Professores dirigida à Faingelernt
sabemos que R. aceitaria prontamente o professor Baruch Bariach para o substituir na escola de
Curitiba. J.Faingelernt seguiria logo após à Belo Horizonte para orientar a escola judaica local na
qual trabalharia durante vários anos. J. Faingelernt com seu talento e dedicação habitual
desenvolveria um trabalho educacional profícuo e em 6 de maio de 1932 R. lhe escreveria, dessa
vez em ídiche e não em hebraico como de hábito, expressando seu contentamento e
congratulando-o por seu trabalho, e que devesse ficar indiferente aos contratempos ... “ Não paga
a pena que te desgastes, nem por mim e nem por ti. Pois é a fatalidade, uma vez que vivemos em
um ambiente muito desagradável e nenhuma surpresa nos deve afetar. Cada um de nós deve
permanecer no caminho firme e não se importar com uma alfinetada aqui e acolá. Tentemos ,cada
um de nós, influenciar o pequeno círculo que nos apóia, e o resto que seja como quiserem...” Os
problemas financeiros, no entanto, não deixavam de preocupar o novo diretor da escola, como
podemos constatar pela carta de 18/10/1932 que R. escrevera a Faingelernt explicando sua
impossibilidade de atender a novas exigências de verbas. Fundo 29 Jacob Faingelernt, AHJB.
498
767
Por várias vezes, na disputa entre as duas tendências, como já vimos acima, Raffalovich
sempre optou pelo ensino das duas línguas. Um exemplo adicional encontramos em uma carta de
Zvi Weiniger à redação do DIV publicada em 31/1/1928 na qual se refere à escola local, Curitiba,
de forte tendência hebraísta, em que o Dr. Raffalovich fez um acordo para que se ensinasse as
duas línguas.
768
Quando em 1950 realizou-se o Congresso Nacional para a Educação Hebraica, no Rio de
Janeiro, Raffalovich foi lembrado como seu pioneiro e o papel proeminente que teve na educação
judaica no Brasil em resolução formal sob o aplauso dos participantes no conclave. Vide a carta
que recebeu da Machleket Hachinuch (Departamento de Educação) assinada por Moshe Fridman
e S. Karakuchansky publicada no Maagalei Iashar, pp.30-31.