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LIMIAR, AURA
E REMEMORAÇÃO
Ensaios sobre Walter Benjamin
editora-34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455—000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811—6777 www.editora34.com.br
Imagem da capa:
Julius Bissier, 23.Juli 62 Caº Rondine, 1962 (detalhe),
têmpera s/ tela, 45,2 x 59 cm, Kunstsammlung NRW, Diísseldorf
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracber (9ª Malta Produção Gráfca
Revisão:
julia de Souza, Alberto Martins, Beatriz de Freitas Moreira
1ª Edição - 2014
ISBN 978—85-7326-572-9
CDD - 102
LIMIAR, AURA E REMEMORAÇÃO
Ensaios sobre Walter Benjamin
LIMIAR
1. Limiar: entre a vida e a morte .................................... 33
2. Mito e culpa nos escritos de juventude
de Walter Benjamin .................................................... 51
3. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin
(ou Verdade e beleza) ................................................. 63
4. Comentário filológico e crítica materialista ................ 75
AURA
5 . Atenção e dispersão: elementos para
uma discussão sobre arte contemporânea
a partir de Adorno e Benjamin ................................... 99
6. O olhar contido e o passo em falso ............................ 121
7. Eros da distância ........................................................ 131
8. Identificação e Kátharsis
no teatro épico de Brecht............................................ 141
9. De uma estética da visibilidade
a uma estética da tatibilidade ..................................... 155
REMEMORAÇÃO
10. Teologia e messianismo
no pensamento de Walter Benjamin ............................ 179
11. Estética e experiência histórica em Walter Benjamin... 197
12. O trabalho de rememoração de Pené10pe ................... 217
13. Esquecer o passado? ................................................... 251
252 Rememoração
estatuto de vítima; de que nenhum texto oficial, de lei ou de histó—
ria, usa essa palavra, a qual, por sua vez, acarreta uma pergunta
complementar: quem foram os carrascos? Como ressalta Glenda
Mezzaroba, a palavra “vítima” não faz parte do vocabulário da
legislação brasileira sobre os desaparecidos e os direitos de seus
descendentes. Os “desaparecidos”, isto é, em sua maioria, vítimas
da tortura e do assassinato durante a ditadura, são sempre desig—
nados como aqueles que foram “atingidos”, aqueles que são con-
siderados oHcialmente falecidos ou, quando se trata de pessoas
ainda vivas, mas cuja carreira foi prejudicada pela ditadura, como
“anistiados”.3
Essas sutilezas linguísticas remetem ao eixo principal da po—
lítica de “reconciliação nacional” promovida pelos militares e de—
fendida com obstinação até hoje pelas instâncias políticas e jurídi-
cas dos diversos governos civis — como () demonstrou recentemen—
te a votação a esse respeito do Supremo Tribunal Federal, em abril
de 2010. Trata-se da promulgação, em agosto de 1979 (isto 6,
cinco anos antes da passagem do poder aos civis) da “Lei de anis-
tia”,4 que “excluía os “condenados por crimes de terrorismo, as—
salto, sequestro e atentado pessoal”, porém incluía os acusados de
tortura, assassinato e desaparecimento durante o regime militar”;5
uma lei que mantinha o encarceramento de vários militantes de
esquerda, como aqueles que assaltaram um banco à mão armada,
mas incluía, portanto anistiava, os militares ou policiais que tor—
turaram, mataram e fizeram desaparecer os presos do regime, por-
que essas execuções são classiHcadas como “crimes conexos” a
crimes políticos. Essa lei de anistia, eixo do desígnio de reconcilia—
ção da “família brasileira”, como gostam de dizer seus partidários
254 Rememoraçâo
em sua imensa maioria, contra homens jovens, pobres, negros ou
“pardos”, desempregados ou sem emprego Exo, rapidamente
acusados de serem traficantes ou bandidos potenciais. Os abusos
policiais não provocam nenhuma indignação séria, e até causam
certo alívio por parte dos privilegiados que se sentem, et pour
cause, ameaçados.
Conclusão: a ditadura brasileira, tantas vezes celebrada como
ditadura suave (tal qual no infame jogo de palavras entre “ditadu-
ra” e “ditabranda”), porque não assassinou um número tão gran-
de de vítimas como as de seus ilustres vizinhos, não é somente
objeto de uma violenta coerção ao esquecimento, mas também é
uma regime que se perpetua, que dura e contamina o presente.
Trata-se não apenas de um caso de recalque social e político vio-
lento, mas também da “naturalização da violência como grave
sintoma social no Brasil”, como afirma a psicanalista Maria Rita
Kehl.10 A luta pela revisão da lei de anistia, pela abertura dos
arquivos secretos e pela restituição dos restos mortais dos desapa—
recidos, vai além de uma luta pelo esclarecimento do passado, pois
visa também à transformação do presente.
Não é inútil repetir que o reconhecimento oíicial e social da
tortura durante um regime ditatorial, estabelecido por instituições
governamentais, jurídicas e objeto de discussão e de debate no seio
da sociedade civil, permite ao corpo social na sua integridade rea—
lizar um processo de elaboração do trauma histórico comparável
a um luto coletivo. Deve-se lembrar que este processo é essencial
para que a vida em comum no presente seja possível. A situação
de muitos filhos de desaparecidos brasileiros pode ser comparada
à situação dos descendentes das vítimas do genocídio armênio,
negado durante tanto tempo pela maioria das nações: não tinham
direito nem mesmo ao estatuto oficial de órfãos porque ninguém
ousava reconhecer o assassinato ou a morte de seus pais. Os filhos
dos desaparecidos são certamente reconhecidos como órfãos, mas
não sabem nem onde estão os restos mortais de seus pais nem
quem os matou; os desaparecidos são reconhecidos oficialmente
lº Idem, p. 124.
25 6 Rememoração
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critall. Úl'l. l qua-niacina martin-tulo dentina tinham:
25 8 Rememoração
die Toten werden vor dem Feind, wenn er siegt, nicht Sieber sein”
(literalmente, “os mortos, eles também, não estarão a salvo diante
do inimigo, se ele vencer”), Benjamin realça, na versão francesa, a
atividade de profanação do inimigo, “ que não se deterá nem dian-
te dos mortos”. Essa tendência à profanação (que Benjamin já
notava na ação das personagens de As afinidades eletivas de Goe-
the, que não hesitam em deslocar túmulos para transformar um
cemitério num jardim) marca de maneira precisa o limite em que
o poder político se converte em violência (ver a palavra “viole'e”
na tradução francesa) — violência mítica, diria Benjamin, fora do
espaço de uma sociabilidade comum. Esse espaço de violência pa-
rece surgir como o nomos implícito do Estado moderno enquan-
to Estado de exceção instituído — o sabemos a partir dos relatos
dos sobreviventes, pelo menos tal como os analisa Giorgio Agam—
ben.15 A insistência de Benjamin no perigo que os mortos correm
de ser, por assim dizer, mortos mais uma vez, lança uma luz para—
doxal sobre a resistência do poder ditatorial e, posteriormente,
democrático, em procurar e identificar os desaparecidos. Tratar-
—se-ia não apenas de não confessar os crimes cometidos, mas so—
bretudo de afirmar que cabe ao poder político decidir o destino
dos mortos e que as “leis não escritas” dos sobreviventes, que
desejam ainda respeitar a prática humana (e sagrada) do funeral e
da inumação,16 não têm força de lei.
Um outro conceito de Walter Benjamin pode ser precioso
nesse contexto de elaboração coletiva do passado. Ainda que o
vocabulário referente à memória e à atividade do lembrar não
seja sempre muito rigoroso em seus escritos, o conceito de Binge—
denken (ªªrememoraçãoª', ªºrecordação”) tem um peso específico.
Tomo a liberdade de discordar da interpretação de Ursula Link-
260 Rememoração
res, da concepção de decisão revolucionária nas teses. Benjamin
parece tentar pensar uma atenção ao kairós da ação política que
não se resume nem à confiança na espontaneidade das massas (es-
pontaneidade às vezes desastrosa), nem aos cálculos conjunturais
de uma pseudo avant-garcia Não acho que se possa resolver de
maneira definitiva essas ambiguidades da definição de “sujeito
histórico” no texto das teses e não tenho certeza de que isso seja
desejável. No entanto, algumas limitações teóricas, que o próprio
Benjamin indica, podem ajudar a traçar essa noção de atenção ao
presente histórico e ao “momento do perigo” (tese VI): a teoria
da memória involuntária em Proust, aquela da atenção flutuante
(schwebende Aufmerksamkeit) em Freud e, enfim, a noção de re-
memoração num contexto teológico. Trata-se de três modelos de
disponibilidade ao acontecimento, e não da soberania da consciên-
cia coletiva.
Respondendo a uma carta de Horkheimer —— que argumen-
tava que o passado não pode verdadeiramente ser dito “aberto”
(unabgeschlossen), suscetível de transformações posteriores, e que,
nesse sentido, as injustiças e os sofrimentos do passado são irre-
mediáveis —— Benjamin anota:
262 Rememoração
Nietzsche também é o pensador de uma noção positiva de
esquecimento, na linhagem do pensamento grego, do êxtase dio—
nisíaco e erótico, das figuras do “desligar”, o luein, que se traduz
em alemão por lõsen, verbo associado ao campo semântico da
dis-solução e da solução (Lôsung) e, igualmente, da redenção (Er-
lõsung) — que deve ser distinguido daquele da salvação (Rettung),
na reflexão de Benjamin. Essas figuras de um esquecimento feliz
surgem, em particular, na evocação de uma experiência paradig-
mática da infância: a criança doente se acalma pouco a pouco
graças às mãos que acariciam e à voz que conta uma história,
traçando assim ao rio da dor um leito que a levará até o “mar do
esquecimento feliz”.?"1 Essas imagens evocam uma narração sem-
pre recomeçada, sempre retomada e enriquecida. Esse esquecimen-
to feliz é, portanto, exatamente o contrário de um esquecimento
imposto, ou de uma “memória impedida”, como Paul Ricoeur
definiu muito acertadamente o conceito de anistia.22 Isso também
significa que todas as políticas de esquecimento imposto, porque
são o contrário de um processo de elaboração do passado, não Vão
ajudar a esquecer um passado doloroso, mesmo que, num primei-
ro momento, o façam calar. Essas políticas preparam muito mais
o retorno do passado recalcado, a repetição e a permanência da
violência, uma forma de memória pervertida que, na verdade, nos
impede de nos livrar, de nos desligar, do passado para poder enfim
Viver melhor no presente.