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Ativismo de além-mar
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feminismo portugués, por Adriana Negreiros
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a DJ mais influente do funk carioca
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RESPEITEM MEUS CABELOS,
~ — BRANCOS!
Nova lei da California profbe discriminagao contra
penteados afro
CAROL BENSIMON
SALON DE TRESOE
CREDITO: HEMIS_ALAMY STOCK PHOTO
senadora estadual Holly Mitchell entrou no
Capitélio, em Sacramento, e logo se dirigiu a
sala 112, onde se acomodou. Construfdo no
século XIX, o palacete em estilo neoclassico
abriga tanto o Poder Legislativo da Califérnia quanto
o gabinete do governador. Com blazer azul e trangas
puxadas para tras, a parlamentar ajeitou o lencgobranco que lhe cobria 0 pescogo e, naquela tarde de
mareo;explicou calmamente a audiéncia: “Colegas,
tenkic bis objetivos ao apresentar esse projeto de lei.
O pr I ‘eit é fornecer informacées basicas, que talvez
mites de vocés desconhecam, sobre as
singularidades do cabelo de pessoas negras. O
segundo é questionar alguns mitos comuns a respeito
do profissionalismo nos ambientes de trabalho.”
Em seguida, a senadora democrata relembrou um
episédio ocorrido em dezembro de 2018, quando o
adolescente Andrew Johnson, que cursava 0 ensino
médio em Nova Jersey, teve seus dreadlocks cortados
durante um torneio estudantil de luta livre. Minutos
antes de dar inicio a um combate, 0 juiz alegou que
as mechas emaranhadas do rapaz feriam o
regulamento do campeonato e que era preciso se
livrar delas caso 0 atleta quisesse competir. Mesmo
contrariado, Johnson se curvou a determinagao e
permitiu que lhe aparassem os cabelos no préprio
gindsio onde iria lutar. O fato gerou um ruidoso
debate nacional. “Foi a coisa mais dificil que ja
enfrentamos. Meu filho esta bem agora, mas aquela
situagao toda me pareceu muito brutal”, desabafou a
mae do garoto no Facebook, logo apés o incidente.
Sao acontecimentos como esse que Holly Mitchell -
uma negra de 55 anos, eleita pelo distrito de Los
Angeles — pretendia evitar ao propor a lei SB 188,
conhecida como Crown Act. Aqui, além de significar
coroa, 0 termo crown faz as vezes de uma sigla em
inglés que quer dizer “criando um mundo aberto e
de respeito aos cabelos naturais”. A lei almeja
proteger negros e negras que adotam dreadlocks,
trancas, twists e outros penteados afro nao apenasnos ambientes profissionais, mas também nas
escolas.iy
GV) Canal UP
De acai sch com Mitchell, os Estados Unidos
coleeionam casos de estudantes que, mal chegam as
aulas, sao obrigados pela diregao dos colégios a
voltar para casa por ostentarem “cabelos rebeldes
demais” e passiveis de “distrair os outros alunos”.
Trabalhadores de diferentes setores costumam
enfrentar discriminagées semelhantes. “Minha mae
contava que ia para as entrevistas de emprego com
uma peruca lisa e que s6 se atrevia a assumir os
préprios cachos depois de conseguir uma vaga”,
recorda Malika Imhotep, doutoranda no
Departamento de Estudos Afro-Americanos e da
Diaspora na Universidade da Califérnia, em Berkeley.
“Desde crianga, aprendemos que ser negra numa
empresa ou escola representa um desafio extra.
Entaéo, queremos nos apresentar da maneira mais
aceitavel possivel.”
Realizado em 2016 pelo Perception Institute, um
consércio de pesquisadores e ativistas que se dedica a
questées raciais e de género, o chamado “estudo do
cabelo bom” corrobora 0 testemunho de Imhotep. A
partir de entrevistas com mais de 4 mil pessoas, o
levantamento concluiu que, nos Estados Unidos,
cabelos crespos so vistos como menos profissionais e
menos atraentes se comparados aos lisos. Tal
percep¢a4o vem principalmente de mulheres brancas.
A pesquisa também apontou que 20% das
entrevistadas negras sentiam-se pressionadas a alisar
o cabelo e que 25% relatavam alguma dificuldade em
encontrar produtos capilares que lhes satisfizessem.
Além disso, 33% das negras afirmaram nao praticarexercicios fisicos com regularidade porque, apés a
piesna ua academia, eram impelidas a se ocupar
excexsi i¥dinente de seus penteados. Entre as brancas,
Mite cafa para 10%
Os parlamentares californianos acabaram aprovando
a Crown Act por unanimidade no final de abril. Em
julho, o governador Gavin Newsom a promulgou. A
Califérnia se tornou, assim, o primeiro estado norte-
americano a proibir esse tipo de preconceito. Cinco
meses antes, a cidade de Nova York ja havia adotado
restricdo similar. “Isso tudo soa como avango, mas
para mim apenas confirma que mulheres negras nao
sao bem-vindas em locais de trabalho ou estudo”,
prossegue Malika Imhotep. “Eu adoraria nao precisar
de uma lei que considera injusto discriminar alguém
por algo tao trivial quanto o modo de usar o cabelo.”
A Crown Act entra em vigor a partir do préximo dia
1° de janeiro.
e o padrao caucasiano de beleza ainda se
impée, a ascensdo em varios paises dos
movimentos que valorizam os cabelos
naturais sugere que o quadro pode mudar
em breve. Cada vez mais mulheres —
independentemente da cor — optam por deixar de
lado a quimica agressiva dos cremes alisantes ou de
relaxamento, e essa mudanga de atitude j4 vem
alterando as estratégias da industria de cosméticos.
Segundo a agéncia Mintel, que faz pesquisas de
mercado, a venda de produtos a base de guanidina,
tioglicolato e outras substancias que alteram a textura
capilar despencou 36,6% nos Estados Unidos entre
2012 e 2017.Imhotep acredita que os fabricantes de cosméticos
acabaim..or exercer um papel fundamental na
mudanc¢a,de percepg¢ao sobre os penteados afro.
“\Miates’os negros tinham muita dificuldade para
encontrar informagoes a respeito de cabelos naturais.
Agora, ha milhdes de blogs em diversos paises que
falam do assunto e se disp6em a avaliar produtos de
beleza. Claro que, por um lado, a industria esta
somente reagindo a uma demanda. Mas, por outro,
estimula os consumidores a se relacionarem de um
jeito novo com seus préprios cabelos e os alheios.”
Um dos apoiadores da lei defendida pela senadora
Holly Mitchell é justamente a marca Dove, que
pertence a gigante Unilever. No site norte-americano
da popular grife de sabonetes, xampus e
condicionadores, pode-se assistir a um video sobre a
Crown Act e assinar uma peticao reivindicando que
parlamentares adotem legislagao parecida em outras
regides dos Estados Unidos.
o
CAROL BENSIMON
E escritora. Seu livro 0 Clube dos
Jardineiros de Fumaga recebeu 0
Prémio Jabuti de Melhor Romance em
2018esquina
~PATAS, ASAS E ANTENAS
Um museu so de insetos
a FABIO VICTOR
ANDRES SANDOVAL_2019
reze criancas, sentadas no chao em circulo,
tentavam conter a ansiedade diante da
monitora, que explicava a importancia da
joaninha para a natureza. Tinham acabado de
observar no microsc6pio um exemplar empalhado do
pequeno inseto salpicado de bolinhas. “Sabem 0 que
a joaninha come?”, perguntou a jovem que conduzia
o passeio educativo. “Folha”, responderam os
mitidos, estudantes de 7 ou 8 anos de uma escola
particular do bairro paulistano do Butanta. “Nao. A
joaninha é um predador, ela come o pulgéo e outras
pragas”, prosseguiu a monitora, entabulando uma
breve explicagao sobre o controle biolégico. “E porisso que quem tem planta tem de ter uma joaninha.”
Estavinm \todos numa das salas da mostra permanente
Planeta nseto, que se apresenta como “o Unico
jardim Zoolégico de insetos do Brasil”. Mantido pelo
Instituto Biolégico, subordinado a Secretaria de
Agricultura e Abastecimento de Sao Paulo e voltado
a pesquisas para o setor agropecudrio (como vacinas
para rebanhos, controle de pragas etc.), o museu que
abriga a exposicao funciona numa casa antiga,
cercada de Arvores, na Vila Mariana, Zona Sul de SAo
Paulo.
Depois da sala do controle biolégico, a turma seguiu
para a do bicho-da-seda. Valendo-se de recipientes
com os préprios insetos, alguns vivos, outros mortos,
a monitora narrou os quatro estdgios do ciclo de vida
do bicho — ovo, larva (ou lagarta), casulo (ou pupa) e
adulto (ou mariposa) — e exibiu um pedago de seda,
explicando se tratar de uma obra daquelas criaturas.
Uma garotinha indagou: “Entao eles sabem
costurar?” Quando as gargalhadas e a algazarra
cessaram, veio a explicagdo da magica: “A lagarta
solta um fiozinho que faz um casulo, e cada casulo
tem um unico fio, enorme. As indtstrias desenrolam
aquele fio e transformam em tecido.” Em meio ao
espanto geral, um pirralho disse, ao ver uma lagarta
morta: “Parece um pokémon.” Mais anarquia no
recinto, até que uma lagarta viva, retirada de uma
caixa forrada de folhas de amoreira (a iguaria
favorita dela) e passada pela monitora de maozinha
em m4ozinha, tornasse a acalmar a comitiva.Os museus mais famosos de Sao Paulo com apelo
infanto) juyyenil — o Catavento, o do Futebol e o da
ie ia Portuguesa (este em reconstrucdo depois de
un ineéndio e com reabertura prevista para 0
proximo ano) — tém em comum os acervos
multimidia e os recursos audiovisuais sintonizados
com a era digital. O Planeta Inseto nao dispée de
nada disso. Os dispositivos mais high-tech do lugar
sao dois aparelhos de tevé na sala dedicada as
abelhas, pois o principal atrativo do local é de fato a
colegao de patas, asas e antenas, com a qual podem
interagir os visitantes.
“Um museu contém animais mortos. Um zoolégico
retine animais vivos. Por isso dizemos que somos o
tinico zoolégico de insetos do Brasil. Em zoos vocé
até encontra borboletdrios e formigdrios, mas insetos
em geral, s6 com a gente”, gaba-se 0 bidlogo Mario
Kokubu, educador-chefe do espaco e coordenador
dos monitores e monitoras, todos eles universitdrios
do curso de biologia. Segundo Kokubu, 25 mil
pessoas visitam por ano 0 museu, cuja entrada é
gratuita. Diariamente, sao quatro turmas de escolas —
duas de manha, duas 4 tarde.
a Area externa do museu, caixas de abelhas
abrigam quatro espécies nativas sem ferrao:
jatai (“icone das abelhas nativas do estado
de Sao Paulo”, como esclarece um painel),
mandagaia, urugu-amarela e iraf. Um quadro avisa
que o mel que costuma ser vendido no comércio vem
de abelhas exéticas, que nao sao nativas do Brasil.
Em tom ufanista, reclama: “Tanto conhecemos umanimal trazido de outras terras e nado sabemos que 0
nosso pais possui diversas espécies nativas que
também produzem mel, um mel delicioso!”
Logo na entrada, ha duas caixas cheias de folhagens,
que a primeira vista parecem conter apenas folhas e
galhos. Com a atencao redobrada pode-se identificar
bichos-pau camuflados, que as vezes os monitores
tiram da caixa para serem tocados pelos visitantes.
Nas varias salas, ha vitrines com insetos empalhados:
gafanhotos, mariposas, cigarras, vespas, borboletas e
incontdveis espécies de besouros. Em uma das sees,
chamada Laboratério do Entomélogo, ilustra-se o
oficio desse especialista em insetos. Na sala das
formigas, hd um formigueiro de verdade e um
quadro que mostra a sua complexa construcgao. Na
das abelhas, a monitora explicava a criancada 0 que é
polinizagao: “E quando as abelhas ajudam as plantas
a namorarem. As plantas ficam gravidas.”
“Qooooo000000h”, suspiraram os estudantes.
A visita estava chegando ao fim, e a jovem foi buscar
uma das estrelas da exposicao para mostrar ao grupo:
a cascuda barata-de-madagascar — a maior da sua
espécie, com chances de atingir até 7,5 cm de
comprimento —, também conhecida como barata
assobiadora, por causa do chiado que produz quando
expele ar. Um leve clima de terror se instalou no
ambiente. Duas coleguinhas se abracaram, solidarias.
A monitora entao explicou que, diferentemente da
barata de esgoto, aquele era um inseto limpinho e
inofensivo. “Vou mostrar de pertinho, quem quiser
pode tocar.” Num atimo, quase todos se
aproximaram, e a baratona circulou de mao em mao.
Um sucesso.Nada causou mais frisson, porém, que a atragao
reservada para o grand finale: a corrida de baratas.
As competidoras eram da espécie mais ordindria, as
baratas de esgoto, mas criadas fora dos
encanamentos. Estavam em uma caixa de madeira
com tampo de vidro e dividida em cinco
raias, batizada de “baratédromo”, em torno da qual
as criangas se aglomeraram, eletrizadas, para assistir
a prova.
A monitora explicou: “Barata nao gosta de luz nem
de barulho. Entao vou acender todas as luzes e pedir
para vocés gritarem muito na hora em que elas
largarem.” E assim foi feito: uma gritaria estrondosa
ecoou pela sala e pelo museu, enquanto as cinco
competidoras disparavam pelas pistas do
baratédromo. Ansiosas, duas baratas viraram de
ponta-cabega e sé voltaram a posi¢géo normal depois
de muito esforco. Outras duas pareceram
desnorteadas. A atleta da raia 4 venceu com folga a
corrida.
o
FABIO VICTOR
(siga @fabiopvictor no Twitter)
Reporter da piaui. Na Folha de S.Paulo,
onde trabalhou por vinte anos, foi
reporter especial e correspondente em
Londres
Besquina
MARIA IZABEL NO
ALAMBIQUE
A cachaga mais famosa de Paraty
MARCELLA RAMOS
ANDRES SANDOVAL_2019
wT
sempre com os pés descalgos e os cabelos
longos e grisalhos presos numa tranga que
Maria Izabel Costa prepara, numa pequena
fabrica em Paraty, a cachaca que leva o seu
nome. Geralmente, ela inicia 0 expediente as cinco da
manha, juntando punhados de colmos (caules) de
cana-de-acticar e jogando na moenda. Depois, checa
se o caldo esta chegando direitinho ao reservatério,
onde ele ird fermentar durante 48 horas.
Maria Izabel repete o processo durante toda a manha.De vez em quando, vai até o alambique para conferir
se nao tem alcool vazando das mangueiras e
acrescenta mais lenha ao forno. No local, ela montou
uma rede de descanso e tem sempre a mao uma cuia
de chimarrao e um livro — em 31 de julho, quarta-
feira, estava lendo Bandeiras Pdlidas, do canadense
Michael Ondaatje. “Quando da para descansar, eu
deito na rede e dou uma lidinha”, contou.
As nove da manhi, as solas de seus pés esto pretas e
alguns fios se rebelam contra 0 penteado. Aos 69
anos, ela parece nao se incomodar nem um pouco
com todo o trabalho fisico que a produgao da bebida
exige. “E coisa boa, pois eu nao preciso de academia.
Quero ver até quando aguento.”
A cachaga Maria Izabel é a mais famosa de Paraty,
cidade histérica conhecida pela qualidade de suas
aguardentes, produzidas em varios alambiques. Nas
lojas de bebidas, com dezenas de garrafas dispostas
nas estantes, o turista que procura pela melhor
cachaga da regiao costuma receber esta dica: Maria
Izabel — a tipo ouro custa 140 reais; a tipo prata, 130.
Nos bares, é um diferencial se a caipirinha é feita com
Maria Izabel. A produtora se orgulha de produzir
uma cachaga “forte, mas suave”, com um dos
menores indices de acidez da regiao.
Para manter a acidez baixa, ela usa principalmente a
cana-de-agticar orgdnica de seu sitio, a5 km do
Centro de Paraty, e também mdi os colmos no mesmo
dia em que foram colhidos, antes que comecem a
degradar. A colheita deste ano iniciou-se em julho e
duraria até meados de agosto - um tempo curto, se
comparado as de outras épocas. “Ja teve safra que
durou trés meses”, disse.A produtora emprega quatro rapazes. No canavial,
Josimar dos Santos e Sergio do Espirito Santo,
protegidos por chapéus, cortam a cana, dispensam as
folhas e jogam os colmos para Ramiro Felix de
Oliveira e Vando Francisco dos Santos, que
organizam tudo dentro de uma tratorzinho de porte
médio. Quando o veiculo esta cheio, Oliveira faz o
transporte até a drea de processamento. As folhas
ficam por ali mesmo, no solo, para servir de adubo. O
bagaco também é deposto no local da plantacao,
depois de mofdo. Os rapazes trabalham das sete da
manhd as quatro da tarde e costumam encher em
média sete carretas por dia.
O Sitio Santo Anténio esta localizado em um morro
na Costa de Paraty. A plantagao fica bem no alto, de
onde se tem uma vista privilegiada do horizonte e
das ilhas da Costa Verde. Logo abaixo do canavial,
estao a “fabriqueta”, como define Maria Izabel, e a
adega. Na parte baixa, de frente para o mar, ela
construiu a casa de dois pavimentos e quatro suites —
duas delas sao alugadas para turistas, assim como
um chalé.
O alambique foi instalado no sitio rodeado pela
abundante vegetacao da Mata Atlantica em 1994,
assim que nasceu a filha cacgula. Dois anos depois,
comegou a producao de cachaca. Na regiao, o lugar é
conhecido como “a casa das sete mulheres”, por
causa das seis filhas da produtora: Izabel, de 51 anos,
Maria, 49, Mabel, 47, Mariza, 42, Maira, 38, e Maia,
25. Apenas a cagula mora com ela na casa principal.
Mabel vive no sitio, mas em outra habitacao.o meio-dia, antes de mandar a primeira leva
de cachaga recém-produzida para os tonéis,
Maria Izabel precisa verificar se as
mangueiras que transportam o liquido estéo
bem conectadas. Recentemente, um vazamento
desperdicou toda a producao de um dia. Yo no creo
en brujas, pero que las hay, las hay, disse. Para
garantir, colocou porcGes de sal grosso em varias
partes do local — desde entao, acabaram seus
inforttinios.
A bebida s6 vai para a garrafa depois de repousar no
tonel um ano, no minimo. A cachaga ouro envelhece
em barris de carvalho, madeira que influi no sabor da
aguardente. A prata é armazenada nos barris de
jequitibé, madeira mais neutra. As safras mais jovens
descansam de um a dois anos. As extra premium,
mais de trés. As bebidas sao engarrafadas conforme a
demanda. A producgao anual é de cerca de 7 mil litros,
segundo Maria Izabel.
A cachaga mais envelhecida da adega tem seis anos.
Guardada num barril de carvalho, sera
comercializada apenas nas comemoragGes dos 25
anos da marca, a partir de julho de 2021. O rétulo da
edicao especial seré desenhado pelo mesmo
ilustrador que criou o da Maria Izabel tradicional, o
australiano Jeffrey Fisher.
A produtora foi apresentada a Fisher pela editora
inglesa Liz Calder, sua ex-vizinha e idealizadora da
Festa Literdria Internacional de Paraty, a Flip. E foi
ele quem fez também o rétulo de outro produto do
sitio, a Laranjinha Celeste, uma “cachaga azul” —
produto tipico da regiao feito de uma mistura comfolhas de tangerina, 0 que confere a bebida um tom
azulado. O nome é idéntico ao da aguardente feita no
século XIX por um trisavé de Maria Izabel, Francisco
Pereira Madruga.
Pouco antes do almogo, depois de checar as
mangueiras, ela voltou ao alambique. Francisco dos
Santos — que é 0 tinico que a substitui — ja estava
pronto para assumir o lugar, pois a produtora
precisava levar Maia até o trabalho, na biblioteca
comunitdéria Casa Azul, no Centro de Paraty. As duas
planejam ir a Europa em setembro, para visitar 0 pai
da jovem, que é francés. Ao falar da viagem, Maria
Izabel soltou um suspiro. “Nao gosto de deixar o
sitio”, afirmou.
Quando comprou o terreno de pouco menos de 19
hectares, ela ia com as duas filhas mais novas, quase
todos os dias, até uma ilha proxima. Escalavam o alto
de uma pedra e pulavam no mar. Depois que a
producao de cachaga se intensificou, Maria Izabel
passou a visitar a ilha apenas no dia de seu
aniversdrio. “Ia para saber até com que idade eu
conseguiria pular da pedra.” Ela j4 nao lembra se foi
no aniversdrio de 63 ou 64 anos que sentiu uma dor
forte no peito ao chegar ao alto da pedra. Decidiu nao
pular nunca mais. “Agora s6 faco cachaga.”
o
MARCELLA RAMOS
(siga @marcellamrrr no Twitter)
Reporter e coordenadora de checagem
da piauiesquina
IMAGENS SEM PRESSA
Um jovem descobre a foto analdgica
EMILY ALMEIDA
ANDRES SANDOVAL_2019
oi em um banheiro nos fundos de sua casa
em Lavras, no Sul de Minas, que Victor
Antonio Carneiro da Cruz, de 17 anos,
instalou seu laboratério de revelagdo de fotos.
Dentro do boxe do chuveiro, colocou uma
escrivaninha de madeira, repleta de garrafas de vidro
marrons, identificadas com escritos sobre fita-crepe.
O ampliador, um aparelho quadrado de cores bege e
cinza, foi disposto a direita da escrivaninha, e logo a
esquerda os dois vasilhames para revelacao e fixacao.
Préximo 4 janela, estendeu o varal de secagem das
fotos.
Para impedir que qualquer feixe de luz entre no local,
ele aplicou trés camadas de papel Contact nas bordasda janela basculante, emendados com pedagos de
carpete. Como nao conseguiu vedar inteiramente a
porta, é sempre de madrugada que ele costuma
revelar as fotos. Quase toda noite, Cruz espera que a
mae va dormir, apaga as luzes da casa, fecha-se no
banheiro e inicia 0 trabalho. “Desde que segurei uma
camera pela primeira vez, me deu vontade de revelar
filmes”, contou. Ele tinha 15 anos quando resolveu
seguir na contracorrente da época, colocou em
segundo plano as imagens digitais e se embrenhou
no mundo da foto analdégica.
Cruz tem cabelos escuros e compridos, 1,70 metro de
altura, cursa o segundo ano do ensino médio e usa
éculos de grau. As lentes dos seus é6culos tém varios
arranhdes provocados pelo atrito com o visor (as
vezes de ferro) das cameras. Aos 8 anos, ele ganhou a
primeira camera da mae, Ana Lticia Medeiros
Carneiro, uma ginecologista que ele, com orgulho,
diz ter o titulo de “a médica mais pobre de Lavras”.
Foi, porém, com uma Zenit 12XP, que estava
encostada ha anos em um guarda-roupa, que Cruz
deslanchou sua atividade fotografica. Produzida na
Russia comunista, a camera pesa 95 g, usa filmes de
35 mm e foi vendida no Brasil entre os anos 1980 e
1990. De posse do aparelho, buscou pelos termos
“fotografia analégica” na internet e um dos
resultados o direcionou para um blog chamado
Queimando Filme. Ali aprendeu o basico sobre o
metié. “O site foi o pontapé inicial. Tinha muita
informagao.”
No dia seguinte, foi até uma loja de artigos
fotograficos na Rua Santana, no Centro de Lavras,
para comprar seu primeiro filme. Encontrou atrds dobalcéo Wildes Botelho Alvarenga, de 64 anos,
fotégrafo hd cerca de cinco décadas, que conferiu a
Zenit 12xp minuciosamente e indicou o ColorPlus
200. “Quer que eu coloque o filme para vocé?”,
perguntou a Cruz. O rapaz respondeu que nao. “Mas
eu devia ter aceitado, porque coloquei errado e perdi
o filme.”
blog Queimando Filme foi criado em 2011
por André Corréa e hoje sé existe como uma
conta no Facebook — saiu do ar em maio por
falta de recursos. E nessa pagina da rede
social que 16 mil membros, entre eles Cruz, tiram as
duvidas e divulgam suas fotografias analégicas. Boa
parte das publicagées é feita por jovens fotégrafos, e
as imagens séo acompanhadas por legendas que
descrevem o modelo de c4mera, o filme utilizado e o
local retratado. As vezes, os membros acrescentam
seus nomes de usuario no Instagram.
Os fotégrafos costumam deixar registrado 0 seu
entusiasmo quando conseguem atingir novas etapas
de aprendizado. “Esses dias terminei de fotografar
meu primeiro negativo em redscale e, como a mao da
experimentagado coga demais, apés finalizar, joguei o
bonito numa sopa de alcool de limpeza com flores
por uns vinte minutos, em uma temperatura em
torno de 38°C. A revelagao foi feita em casa”,
publicou a fotégrafa Juliana Murarolli Paixao, de 27
anos, em junho.
Corréa, de 45 anos, é formado em cinema e trabalha
como coordenador de uma ONG em Sao Paulo.
Descobriu a fotografia analégica também naadolescéncia. “Notei que havia uma lacuna sobre esse
tema na internet e resolvi fazer o blog. A intengdo era
criar um ambiente acolhedor para a aprendizagem,
onde ninguém tivesse vergonha de perguntar e ser
repreendido.”
Nos primeiros anos do blog, Corréa teve a ideia de
montar a campanha “Eu quero a camera que esta
pegando poeira no fundo do seu armario”, que
ganhou as redes sociais do Queimando Filme. Muita
gente resolveu contar como descobriu em casa,
esquecido num canto, um velho aparelho fotogrdfico.
“Eram pessoas jovens, na faixa dos 15 aos 25 anos, no
maximo”, disse Corréa.
Ele percebeu que havia, entre os membros mais
jovens, certo “espirito de artesdo”, como define.
“Descobri que, ao fotografarem com o digital, eles
sentiam falta de algo. O inc6modo era com a
constatagao de que a camera digital fazia a foto, nio a
pessoa. E a mesma sensagao de comprar uma lasanha
pré—pronta e acrescentar algo nela, fingindo que fui
eu quem fez o prato”, ele comparou. “A camera
digital toma muitas decisdes por vocé, 0 que nao é
ruim, mas essa facilidade torna o que se faz menos
valioso.”
a primeira tentativa de Cruz, a camera
soviética nao puxou o filme; na segunda, ele
errou a fotometria — a medida das condigdes
de luminosidade do ambiente para ajustar a
abertura correta do diafragma e 0 tempo adequado
de exposicao do filme a luz. S6 na terceira vez foi
bem-sucedido.Depois disso, ele carrega a camera aonde quer que va
e continua estudando e comprando equipamento. Na
loja de Alvarenga, tinica especializada em fotografia
analégica que conhece em Lavras, Cruz s6 encontra
um tipo de filme. Outros, ele adquire pela internet.
Em seu laboratério no banheiro, revela apenas fotos
em preto e branco, pois as coloridas precisam de um
equipamento mais avangado que ele ainda nao tem.
As primeiras fotos, reveladas na loja, eram coloridas
e mostravam um pouco da vida cotidiana de Cruz,
seus amigos e animais — quatro gatos, quatro
cachorros, uma tartaruga e um pombo. Numa delas,
em tons de azul, um gato magro encara a lente;
noutra, um amigo toca ukulele.
“Estava tudo muito répido na minha vida, eu queria
desacelerar e a fotografia analdgica fez isso para
mim. Ela me faz prestar mais atengao nas coisas 4
minha volta.” Nas fotos mais recentes, em preto e
branco, Cruz parece ter redescoberto a cidade em que
vive, fixando 0 olhar, sem pressa, numa casa em
construgdao, nos trilhos do trem, num homem que
observa a rua da janela de um prédio.
o
EMILY ALMEIDA
(siga @emilycfalmeida no Twitter)
E estagidria de jornalismo da piauf.
Antes, trabalhou no jornal 0 Globoesquina
FAUSTO NO CAMARIM
Um tenor em ascensao
GUSTAVO ZEITEL
ANDRES SANDOVAL_2019
m um dos camarins do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro, o tenor Giovanni Tristacci
aquece a voz para dar vida a Fausto, 0
protagonista da 6pera homénima do francés
Charles Gounod. Dedilhando um piano vertical, ele
entoa: Hum! Hum! Hum! Em seguida, emenda a
série Rrrd! Rrra! Rrrd!, que retumba nos corredores.
Sao quase seis da tarde, e a récita de 26 de julho,
sexta-feira, comega em uma hora.
Tristacci nao esconde a ansiedade. Anda de um lado
para o outro e periodicamente dispara dramaticos
Rien! Rien! (Nada! Nada!). Ea palavra que abre a sua
primeira aria: Rien! En vain j‘interroge, en mon
ardente veille, la nature et le Créateur (Nada! Em vaéoeu interrogo, em minha ardente vigilia, a natureza e o
Criador).
O camarim é equipado com duas poltronas de pano,
um sofa, um lustre de cristal e trés espelhos. Perto da
porta, ha um mével com frutas, uma garrafa térmica
com café e copos com Agua mineral morna. Numa
mesa, repousa 0 romance que o tenor esta lendo: Pai,
Pai, de Joao Silvério Trevisan. Tristacci tem 36 anos,
mas a maquiagem e a barba pintada de branco o
deixam com aparéncia de um homem idoso e muito
palido.
Rrr6! Rrré! Rrr6é!, canta o tenor, antes de trocar 0 look
casual — camisa verde-musgo e calca cdqui — pelo
figurino de Fausto: camisa branca, calga cinza, colete
xadrez e um sobretudo roxo. “Jamais venderia a
minha alma para o Diabo. Mesmo que eu fosse
politico!”, ele diz, gargalhando em seguida.
O artista faz mengao ao ponto central da dpera.
Fausto, um alquimista que sonha atingir o
conhecimento total, esté tomado pela melancolia,
pois todos os seus experimentos deram errado e a
velhice se aproxima a passos largos. Ele decide,
entao, entregar sua alma a Mefistéfeles em troca da
juventude. Em seguida, conhece Marguerite, cujo
amor ele espera conquistar com a ajuda do Diabo.
Fausto estreou ha 160 anos em Paris, com grande
sucesso. Foi baseada na pega Faust et Marguerite, de
Michel Carré, que, por sua vez, se inspirou no Fausto
de Goethe. O libreto, assinado por Carré e Jules
Barbier, parceiro de Gounod em varias 6peras, recria
esse mito ocidental com a suntuosidade tipica da
grand-opéra.Cerca de trezentas pessoas estiveram envolvidas na
superproducao, que uniu coro, atores, solistas e balé.
André Heller-Lopes foi 0 responsavel pela direcao
cénica, Ira Levin encarregou-se da regéncia e Luiz
Fernando Bongiovanni criou uma coreografia
especial para a montagem. O papel de Fausto foi
encarnado por Tristacci e, nas quatro récitas iniciais,
pelo também brasileiro Atalla Ayan. Com a 6pera de
Gounod, encerraram-se as comemoracées dos 110
anos do Theatro Municipal.
iovanni Tristacci teve o primeiro contato com
a musica erudita na cidade de Bento
Gongalves, onde nasceu, filho de pais
viticultores. Foram os Trés Tenores — grupo
formado por Luciano Pavarotti, Placido Domingo e
José Carreras — que o levaram a se apaixonar pelo
canto lfrico, ainda adolescente, nos anos 1990.
Arrebatado, 0 jovem passou a acompanhar as 6peras
transmitidas pela TV Cultura e frequentou
apresentagdes da Orquestra Sinfénica de Porto
Alegre. Ensaiou as primeiras arias, sem nunca se
preocupar em cantar baixinho. “Eu sempre quis
cantar com a voz impostada”, comenta.
Por fim, decidiu estudar mtisica e matriculou-se na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dali
seguiu para a Europa, com bolsas de estudo em
escolas consagradas. Em 2010, estudou no Centro de
Aperfeicoamento Placido Domingo, em Valéncia, e,
no ano seguinte, na Capela Musical Rainha Elizabeth,
em Bruxelas, onde cantou num concerto de gala com
o prestigiado baritono José van Dam, que foi seuprofessor.
De volta ao Brasil, passou a ser mais e mais
solicitado. Atuou em diversas montagens, como A
Flauta Magica, no Festival Amazonas de Opera de
2012, e Rigoletto, no Palacio das Artes, em Belo
Horizonte, dois anos depois. Fausto representou um
momento decisivo de sua carreira. “Eu tenho sorte,
canto regularmente. Muitos cantores, porém, nao
conseguem viver sé de cantar. O momento é de
cortes”, ele alerta.
nquanto espera para entrar em cena, Tristacci
adota um tom brincalhao com os colegas.
Todos parecem descontraidos, mas talvez
esse seja mais um recurso para driblar 0
nervosismo. Os contrarregras, apressados, carregam
para ld e para cd artefatos usados pelos personagens.
Sobe o pano do Theatro Municipal. Um lengol branco
cobre seis torres que simulam uma catedral gética,
com arcobotantes e vitrais. No primeiro ato, Fausto
esté numa cadeira de rodas, moribundo. Logo apés 0
pacto com o Diabo, lengol e cadeira sao tragados para
fora do palco. O alquimista rejuvenesce.
Na cena final do segundo ato, Tristacci alcanga um si
natural: Je t’aaaaaaime! (Eu te aaaaaaamo!) A plateia
ovaciona. “Essa nota exige de mim uma grande
pirotecnia vocal”, comentou o tenor mais tarde, no
camarim, bastante satisfeito com o resultado.
No terceiro ato, ele canta a dria de maior
responsabilidade, com versos de amor paraMarguerite: Salut, demeure chaste et pure (Salve,
morada casta e pura). Mais aplausos. Nas coxias,
continua a confusao formada por fios, holofotes e,
sobretudo, pelo grande numero de pessoas. Um
integrante do coro, portando fones de ouvido, escuta
uma musiquinha, enquanto, no palco, a soprano
Flavia Fernandes, intérprete de Marguerite, dribla
com sabedoria as dificuldades de uma gravidez ja
visivel.
Antes de voltar do ultimo intervalo, Tristacci recebe
um abrago apertado do chileno de origem cubana
Homero Pérez-Miranda, que faz Mefistéfeles,
portando volumosos chifres de bode: Vamos, vamos,
carajo! O pacto com o Diabo esta para 14 de
consumado.
No mundo paralelo da coxia, a diretora operacional
Adriana Rio Doce ensaia alguns passos de funk, ao
som do coro militar do quarto ato. Tristacci olha com
espanto para Doce, que cai na gargalhada. Aproxima-
se o final tragico da 6pera e o tenor retorna ao palco.
Na montagem, Marguerite enlouquece, rejeita o amor
do alquimista e morre sob a protegao divina.
Derrotado, Fausto se posta no palco como um cao e é
encoleirado pelo Diabo. Apés quatro horas e vinte
minutos de 6pera, cai o pano pela ultima vez.
Exausto e faminto, Tristacci volta ao camarim.
o
GUSTAVO ZEITELesquina
EM BUSCA DO MIOLO
Um prato cada vez mais caro
FABIO ZUKER
ANDRES SANDOVAL_2019
chef Talitha Barros, vestindo um turbante
colorido que lhe protege os cabelos, limpa
uma pequena pega de miolo de boi de suave
cor rosada, um pouco menor do que duas
batatas. Retira a fina membrana que a envolve e os
veios vermelhos na parte interior. “Mitido bom é
mitido fresco. E quem gosta de mitido, gosta
mesmo”, diz ela, enquanto acrescenta sal e pimenta-
do-reino ao miolo, antes de empané-lo e fritd-lo. Uma
vez pronto, ele adquire um tom acinzentado. E
levemente crocante quando se da a primeira
mordida. Depois, tem a textura de um paté. A chef 0
serve com limao e molho de pimentas defumadas,
curtidas em especiarias. O prato custa 26 reais.
O restaurante de Barros, Conceigaéo Discos, é um dosraros locais em Sao Paulo a oferecer, mediante
encomenda, partes do boi que estao praticamente
proscritas dos cardapios, como rins, testiculos —e
miolo. “Eu fui criada comendo essas coisas, entao
minha vontade é que isso seja comum, porque é
comum”, afirma a chef, que tem uma explicagao para
o sumico do cérebro: “E muito mais facil fritar um
bife do que fazer um miolo, que demanda um tempo
maior de preparo.” Ela gastou 25 minutos.
Também nfo é facil encontrar miolos em agougues.
Os que sao servidos no Conceicao Discos provém do
Mercado Municipal da Lapa, na Zona Oeste. Mais
precisamente, do Rei dos Mitidos, que, por sua
especialidade, é apreciado por chefs e gourmands.
Ali, figado, lingua, rins e pulmées bovinos sao pecas
de significativa importancia. Por um pacotinho de
400 gramas de miolo de boi, com trés a quatro
pedacos, o cliente paga 10 reais. “Os velhinhos
compram pra comer. Outros compram pra melhorar
da cabega, do Alzheimer”, conta a balconista
Rosinalva de Fatima Leopolda. “Mas tem gente, a
maioria, que compra miolo pra fazer macumba,
mulher que quer mexer com a cabeca do homem, ou
o homem que quer mexer com a cabega da mulher.”
A utilidade magica, porém, nao chega a ser um
estimulo para outros agougues da cidade, nem os de
feiras de rua oferecerem 0 miolo. Mesmo na banca de
Sérgio Pinto da Silva, um feirante que da especial
atencao ao bucho de boi (e por isso prefere ser
chamado de bucheiro, em vez de agougueiro), é
impossivel achar cérebro bovino para comprar. “Nao
tem consumidor, ninguém mais procura miti-dos de
boi” - 6 a explicagao principal de Silva para a falta do
produto.Ele continua especulando sobre a escassez: corre a
histéria que uma cadeia de fast-food o utiliza para
fazer hamburgueres. “Sao boatos que a gente escuta
na feira”, diz. Com avental vermelho e luvas negras,
limpa e corta em nacos precisos uma pega
quadrangular de bucho. “Antigamente, a gente
comia miolo porque era barato e os pais obrigavam.
Hoje comemos os embutidos. Vai ver a felicidade que
é um pao com salsicha e molho de tomate no final de
semana”, diz.
4 4 ualquer outro mitido eu consigo
aproveitar, menos o cérebro do meu
préprio boi”, explica Julia Sechis,
diretora da Beef Passion, produtora e
distribuidora de carne bovina sustentavel que
abastece alguns dos restaurantes mais cotados de Sao
Paulo, como o D.O.M. e o Arturito. Segundo Sechis,
as exigéncias do Servico de Inspegao Federal (SIF),
que certifica produtores de alimentos de origem
animal no pais, tornam “quase impossivel aproveitar
o mitido”.
Depois do abate do boi, 0 miolo é em geral
incinerado, “por determinagao do Ministério da
Agricultura, como norma sanitdria”, explicou a piaui a
Associacao Brasileira de Frigorificos (Abrafrigo), em
nota. A razao: “E por ele que se dava a contaminagéo
do mal da vaca louca, a encefalopatia espongiforme
bovina (EEB).”
O médico infectologista Jacyr Pasternak, do Hospital
Albert Einstein, pesquisador de doengas infecciosas eparasitdrias, explica que “qualquer pedaco do
sistema nervoso central de bovinos, incluindo o
cérebro — 0 miolo — mas também a sua, a medula
espinhal, se 0 bicho estiver afetado pela proteina
responsdvel pela doenga, pode transmitir a sindrome
da vaca louca”. Mas Pasternak ressalta que é baixa a
probabilidade de contrair a doenga no Brasil: “O risco
é pequeno, quase nenhum: nosso gado pasta, nao é
estabulado e nao recebe farinha de osso.”
O mal da vaca louca surgiu na Inglaterra nos anos
1980, em razao de se alimentar 0 gado confinado com
farinha feita de ossos e carnes nao aproveitadas dos
proprios animais. Para a Abrafrigo, a rigidez da
norma se justifica: “Embora o Brasil esteja livre dessa
doenga e seja considerado pais de baixo risco,
segundo a Organizagéo Mundial de Saide Animal
(OIE), a medida é uma forma de controle sanitario
preventivo.” Mas nem todas as empresas brasileiras
necessitam do SIF, que, diz a associagao, “s6 é exigido
para empresas que vendem para outros estados e
também exportam”.
“As visceras passaram a ser consideradas no Brasil
partes despreziveis dos animais, como se
pertencessem a uma condi¢ao sanitdria diferente”,
analisa o socidlogo Carlos Alberto Doria, especialista
na histéria da alimentagao e da gastronomia. “Tudo o
que o supermercado deixa de fora, sai de gosto, vira
sobra.” Para ele, na escala do paladar atual dos
brasileiros, os mitidos, entre eles 0 miolo de boi,
estariam em posic&o ainda mais inferior que a
chamada “carne de segunda”.
“Eu sempre tive pavor da expressao ‘carne desegunda’”, diz a chef Talitha Barros. “Existe boi de
segunda, preparo de segunda, mas n&o carne de
segunda.” Para ela, a identificagao do miolo com o
cérebro humano parece ser um dos grandes
proibitivos simbélicos para o consumo. Ao contrario
do bife, que é amorfo, 0 miolo pode ser facilmente
associado a parte equivalente do ser humano. “Eo
cheiro, o sangue, a escatologia intrinseca ao mitido
que gera pavor nas pessoas. Diante do miolo, vocé se
depara com a sua propria morte”, filosofa Barros.
o
FABIO ZUKEResquina
TUTU PARA BRUMADINHO
Um traje e a memoria da tragédia
MARCELA XAVIER
ANDRES SANDOVAL_2019
om uma bolsa de lona nos ombros, Tulio
Morais, um belo-horizontino de 29 anos,
chegava para mais um dia de trabalho na
Opéra Garnier. Seus ténis impecavelmente
brancos chamavam a atencao — andar de metr6 em
Paris e manter os sapatos limpos é uma arte que
poucos dominam. Rapidamente, ele subiu até o
quarto andar, onde fica o Atelier Flou, a oficina de
figurinos das €toiles — as estrelas femininas da
companhia — e das primeiras-bailarinas.
O ambiente é espacoso e largas mesas dispostas no
centro servem de estagao de trabalho para as
costureiras. Ao longo das paredes, alinham-se as
maquinas de costura. Era pouco depois de dez damanhi, e as costureiras discutiam a origem do termo
cocotte. “E quando alguém toma um banho de
perfume e 0 cheiro fica... forte”, disse uma delas,
risonha. Outra observou, compenetrada, enquanto
alinhava um pedaco de renda: “Cocotte ja foi
sin6énimo de prostituta de luxo.” Com uma
tesourinha de costura pendurada em volta do
pescogo, Morais tirou de um gavetao um rolo de tule
preto e entrou na conversa, conjugando o verbo que
designa “cheirar mal” em francés: “je cocotte, tu
cocottes...” Todos riram.
No Atelier Flou, 0 termo cocotte indica uma técnica
exclusiva para recortar em um padrao de
semicirculos os tecidos com os quais seraéo
confeccionadas as mtiltiplas camadas de saias (entre
onze e treze) que comp6éem o tutu, a famosa pega
utilizada pelas bailarinas. “Se hd outras pessoas que
fazem cocottes nas saias, elas aprenderam aqui.
Copiaram e levaram para os seus ateliés”, disse
Morais, enquanto mostrava o molde que improvisou
em plastico branco meio rigido.
A primeira aparicdo de um tutu ocorreu em 1832 nos
palcos do antigo teatro na Rua Le Peletier, a alguns
quarteirdes de onde fica atualmente a Opéra Garnier,
inaugurada em 1875. Marie Taglioni protagonizou o
balé La Sylphide usando uma saia com camadas de
musseline que deixava a mostra os tornozelos, um
feito escandaloso para a época. Ninguém sabe ao
certo de onde se originou 0 termo, mas supGe-se que
foi fixado na linguagem corrente a partir de 1881.
Talvez proceda da palavra “tule”, um dos tecidos
mais usados na confeccao das saias, ou talvez venha
da giria infantil tutu (bumbum).As saias precisam ser engomadas a cada trés ou
quatro apresentagGes. A alguns passos do atelié fica
uma maquina industrial de engomar que, gragas a
uma base lfquida de amido de milho, devolve as
pecas 0 aspecto original. “As bailarinas sao élevées”,
explicou Morais, imitando 0 gesto com que elas séo
erguidas pelos bailarinos. “Também sentam, deitam
e, claro, dancam. O figurino sofre com isso.”
Costureiro e designer de moda, Morais ingressou na
Opéra Garnier gracas a um programa que seleciona
jovens profissionais entre 18 e 29 anos — tais como
musicos, marceneiros, cantores, ferreiros,
coreégrafos, peruqueiros e maquiadores — para
aprofundarem seus conhecimentos e habilidades
durante oito meses. Eles também trabalham na
producao dos préximos espetaculos da casa de épera.
Morais foi o tinico brasileiro escolhido para o estaégio
da temporada 2018-19.
az quatro anos que Tulio Morais vive em
Paris, para onde veio a fim de fazer uma
especializagéo na renomada Escola da
Camara Sindical de Costura Parisiense, apés
ter cursado design de moda em Belo Horizonte.
Desde que chegou a capital francesa, nao parou de
trabalhar com a criacao de roupas — aspira tornar-se
designer de alta-costura. Como 0 estdgio na Opéra
Garnier permite que o profissional desenvolva um
projeto pessoal, ele optou por fazer um traje
completo de balé que inclui um tutu.
O tutu de Morais, além de onze camadas de tule
preto, tem trés camadas de tecido de cor de cobre(“para decoragao”, ele explica) e um disco firme,
plissado, em volta da cintura, da mesma cor — é 0
chamado “ tutu panqueca”.
O traje é parte de uma colecdo de vinte pecas que ele
realiza como projeto artistico para compor seu
portfdlio. O conjunto faz referéncia a tragédia de
Brumadinho. “O bustié serd bordado com galhos
secos pintados de cobre e cristais. Busquei falar do
rompimento da barragem, daquela onda de lama que
devastou tudo que tinha pela frente: casas, familias,
paisagens, histéria, humanos, animais.”
No caderno de trabalho onde ele coleciona imagens
para inspiragao e amostras de tecidos, ha fotos de
mineradores cobertos de lama e pedagos de pano de
diversos tons terrosos. “A tragédia de Brumadinho
me afetou como ser humano que sou: alguém que
tem esperanca nos seres humanos, que acredita na
capacidade deles de fazerem o bem, mas se
decepciona quando se depara com atitudes que
causam tanto mal para tanta gente”, afirmou.
No atelié, 0 jovem brasileiro trabalhava de frente
para Martine Chardey. Ela comecou como artesa na
Opéra Garnier aos 19 anos. “Eu era curiosa e estava
bastante motivada, assim como o Tulio. Queria saber
como funcionava essa peca. Nao hd escolas. Aqui é 0
tinico lugar para aprender”, disse ela, que, aos 48
anos, perdeu a conta de quantos futus ja
confeccionou. Sobre uma mesa, Chardey montava
um vestido de veludo roxo intenso para 0 balé O
Quebra-Nozes, de Tchaikovsky.
Seguindo a tradi¢4o do ensino oral no atelié, ela
aconselhava Morais, enquanto o observava afixar,com agulhas, o tule recortado a estrutura interna do
tutu, antes de costurd-lo na maquina. “Tulio esta indo
bem”, ela avaliou, com ares de professora que nao
quer entregar a nota antes da hora.
O tecido usado por Morais nao era tao nobre como o
do modelo branquissimo de O Lago dos Cisnes, que
pendia acima da sua mesa de trabalho e lhe servia de
inspiracao. “Comprei o meu tule no Marché Saint
Pierre’, ele contou, referindo-se a regiao de comércio
popular em Paris. Além disso, diferentemente das
costureiras do atelié, Morais podia levar o seu tutu
para casa. “Pensando bem, eu deveria ter feito o
molde do meu tamanho”, ele disse, rindo, enquanto
esticava mais 10 metros de tecido.
o
MARCELA XAVIERvultos da Republica
A AGROBOMBEIRA
A ministra Tereza Cristina se equilibra entre
Bolsonaro, os ruralistas e a pauta ambiental
CONSUELO DIEGUEZNAS CONVERSAS COM BOLSONARO, TEREZA CRISTINA 0 CHAMA DE
JAIR. ELA CONTA QUE 0 PRESIDENTE A ESCUTA COM ATENCAO E
REVE POSIGOES. “QUER SABER? ELE E ATE SUAVE NO TRATO”, DIZ —
E GARGALHA
ministra Tereza Cristina, da Agricultura,
Pecudria e Abastecimento, entrou no prédio
envidragado do Parlamento Europeu, em
Bruxelas, para a discussao do acordo entre
Unido Europeia e Mercosul, com a sensagao do
jogador que pisa em campo na final do campeonato
sem nunca ter atuado em partida alguma. Nos
ultimos vinte anos, dezenas de diplomatas, técnicos e
ministros se revezaram em duras rodadas de
negociacao na tentativa de abrir um mercado de mais
de 500 milhées de pessoas para os produtos
brasileiros (e também argentinos, uruguaios e
paraguaios).
Quando ela desembarcou na capital belga, no dia 24
de junho, as claéusulas econémicas jé estavam
amarradas. A pendéncia se concentrava justamente
no agronegocio. A pressao sobre a ministra — tanto
por parte dos técnicos da pasta da Economia, no
Brasil, quanto dos comissdrios da Uniao Europeia
(UE) e dos parceiros do Mercosul — era tremenda. Se
o grupo da Agricultura nao fosse capaz de desatar os
nés, o acordo, mais uma vez, ficaria emperrado,
“Eu me senti como aquele jogador que vai bater o
ultimo pénalti da disputa”, ela me disse, em meados
de julho, quase um més apés 0 fechamento do
acordo. “Se eu acertasse, a vit6ria seria atribuida,
com razao, a todo o time que ha anos se empenhava
na viabilizacao do projeto. Se eu falhasse, a culpaseria toda da Agricultura.”
As acusagoes de que parte da soja brasileira estaria
vindo de areas desmatadas ilegalmente se
transformaram no ponto de maior atrito. Tereza
Cristina foi informada de que o acordo sé seria
fechado se os negociadores brasileiros concordassem
com a inclusao do chamado “principio da
precaucéo”. Segundo essa clausula, a suspensao
imediata da importagao de soja pelos europeus
estaria autorizada caso houvesse dentincia de que o
produto provinha de area de desmatamento ilegal.
A ministra bateu 0 pé. Avisou que o Brasil estava fora
do acordo se os europeus insistissem na exigéncia. A
tensdo aumentou e as negociac6es travaram. Entrou
em campo, entao, a diplomacia. Uma reuniao foi
marcada fora da agenda oficial entre Tereza Cristina e
0 comissdrio para a Agricultura da Unido Europeia, 0
irlandés Phil Hogan. As sete e meia da manha de 28
de junho, data final para a assinatura, ela e Hogan,
um homenzarrao calvo, de quase 2 metros de altura,
se encontraram para o breakfast no restaurante do
hotel Steigenberger.
O hotel fora escolhido para a conversa porque nao
abrigava membros das delegacoes que discutiam o
acordo. Para surpresa da brasileira e do irlandés,
porém, apareceu no restaurante o embaixador
americano para a Unido Europeia, que resolveu
sentar-se justamente a mesa ao lado. “Tivemos que
falar num tom muito baixo, tapando nossas bocas
com as maos, para que ele nao nos ouvisse”, contou a
ministra.
A conversa nao foi amena. Hogan insistia que oacordo sé sairia se o Brasil aceitasse a exigéncia. “Eles
queriam colocar uma trava nas nossas exportag6es, ja
que qualquer informacao de que a soja vinha de area
desmatada seria motivo para suspenderem as
compras.” E esse processo sé seria revertido, afirmou
ela, se o Brasil provasse que a informagao era falsa, 0
que poderia levar meses.
A contraproposta brasileira era de que a clausula
somente poderia ser aplicada se os europeus fizessem
as acusag6es com base em provas cientificas, como
imagens de satélite. “Era o minimo”, me disse ela,
sem esconder certa irritacgdo. “Se nos acusam, cabe a
eles apresentar as provas de que estamos agindo
errado.”
Apoiada por dois diplomatas brasileiros, Tereza
Cristina comunicou a Hogan que nao estava blefando
e chegara ao limite da negociacao. “Eu estava muito
brava. Ou eles aceitavam que a clausula fosse
redigida conforme a proposta brasileira ou a
negociagao se encerrava ali.” O café da manha
terminou sem se obter um consenso.
Por volta das oito da noite, apds um dia de tensos
debates, no decorrer do qual a ministra ameagou
abandonar as negociag6es, os trés comissdrios da
Unido Europeia informaram aos presentes que
concordavam com os termos do acordo — inclusive
com o principio da precaugao, como proposto pelo
Brasil. A euforia tomou conta da sala e houve quem
chorasse de emogao. Tereza Cristina apenas sorriu.
“Eu quase néo comemorei. Estava simplesmente
exausta, acho que quase em estado de choque.”mbora 0 acordo tenha sido saudado como um
marco histérico pelos governos dos paises
envolvidos — 27 europeus e quatro sul-
americanos -, ainda falta muito para o Brasil
ganhar a confianga e a simpatia dos parceiros do
Norte. O Brasil obteve vitérias expressivas nos pleitos
de cotas de exportagao de carne, frango, soja, milho,
arroz, agticar e alcool para a Unido Europeia, além de
uma protecao temporaria para o vinho nacional, mas
o pais pode colocar tudo a perder caso nao se
comprometa, de maneira substancial, com o respeito
ao meio ambiente.
“Se esse acordo fosse colocado hoje em votagao nos
Legislativos francés e alemao duvido que 0
aprovassem’”, especulou o engenheiro florestal Tasso
Azevedo, coordenador do Observatério do Clima,
uma respeitada coalizdo de organizagdes nao
governamentais (ONGs) que calcula anualmente as
emiss6es de gases do efeito estufa, causadoras do
aquecimento global. Numa conversa por telefone, em
meados de julho, Azevedo expés suas razdes: “Nao
passaria, pois nenhuma das salvaguardas ambientais
que o governo brasileiro colocou no acordo se
sustenta. Nao é verdade que a agricultura do Brasil é
sustentavel. Uma parte dela ainda desmata. E nao é
verdade que estamos controlando o desmatamento.
O Brasil tem que admitir os seus erros e dizer que
esté se empenhando em mudar, em vez de querer
vender a imagem de que faz tudo certo.” Segundo
ele, os problemas ambientais servem para reforcar 0
lobby europeu, que usa a seu favor o fato de que
parte da producao brasileira provém de dreas
desmatadas.Azevedo disse que este seria o momento de o pais
mostrar com clareza que esta comprometido com a
preservacao. “Quando produtores queimaram um
caminhao do Ibama, em Rondé6nia, em protesto
contra o endurecimento da fiscalizagéo, o ministro
Ricardo Salles, do Meio Ambiente, tinha que ter
mandado prender os que atacaram os funciondrios
do Estado; quando o senador Flavio Bolsonaro, filho
do presidente, sugere a reducao das areas de reserva
legal, o governo tinha que dizer que aquilo esta fora
de cogitagdo; quando o garimpo invade terra de
indio, a policia e o Exército tinham que entrar em
campo e punir os responsaveis”, afirmou. “O
governo brasileiro pensa que nao existem satélites?
Que ninguém enxerga as invasGes em terra
indigena?”
A bidloga Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio
Ambiente nos governos Lula e Dilma, é uma voz
influente nos foros de clima internacionais. Ela
também antevé problemas no acordo entre os dois
blocos, caso a Europa perceba riscos ao meio
ambiente no Brasil. Em julho, ela me disse que, a
despeito do agronegécio dar sinais de que tem se
esforcado para aumentar a producao sem desmatar, a
verdade é que ainda ocorrem estragos,
principalmente na Amazonia e no Cerrado.
Como Azevedo, Teixeira vé na atuagdo do governo
federal a razao do insucesso do pais. Enumera, em
sua lista de criticas, as estocadas do presidente e do
ministro do Meio Ambiente contra ambientalistas e
6rgaos ptblicos, as insinuag6es de que serd permitido
garimpo em terras indigenas e o ataque de Jair
Bolsonaro aos dados do desmatamento divulgadospelo renomado Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais, o Inpe [Esta edi¢aéo traz reportagem
especifica sobre o Inpe, da pagina 20 a 24].
o final de agosto, Bolsonaro entrou em
confronto com a comunidade internacional,
alarmada com as queimadas na Amazénia. A
crise ganhou 0 noticidrio no dia 19 de
agosto, segunda-feira, apds o céu da cidade de Sao
Paulo enegrecer no meio da tarde — a principal causa
foi o transporte de fumagas de queimadas na regiao
amazénica.
Na manha daquele dia, Tereza Cristina havia estado
em Rondénia para a cerim6nia de um programa de
manejo sustentdvel da Floresta Nacional do Jamari.
Durante um sobrevoo pela floresta deparou-se com
dois grandes focos de queimada e pressentiu
problemas. Ao chegar a Porto Velho, a fumaca
encobria 0 aeroporto. Preocupada, fez um discurso ao
lado do governador, alertando para os incéndios.
Quando ela voltou a Brasilia, a escuridao em Sao
Paulo ja era assunto em todo o pais.
No dia seguinte, um satélite da Nasa revelou as
queimadas para o mundo, e o desmatamento na
Amaz6nia se transformou em crise internacional.
Governantes de varios paises, artistas, atletas e
celebridades passaram a atacar Bolsonaro, acusando-
o de incentivar a destruicao da floresta. Multiddes se
aglomeraram em frente as embaixadas brasileiras
mundo afora, engrossando os protestos.
O mais veemente deles veio do presidente da Franca,