Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
VITÓRIA / ES
2017
VICTOR AUGUSTO MENDONÇA GUASTI
VITÓRIA / ES
2017
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus e a minha família que me proporcionou, desde dos
primeiros anos acadêmicos, uma formação humana, cultural e espiritual que me permitiram
chegar até aqui.
Por fim, agradeço aos amigos, demais professores, colegas, conhecidos e todos os que de
formas diretas ou indiretas somaram no caminho que busquei trilhar e me possibilitaram essa
conquista.
Ser-me-á suficiente responder que jamais poupei os hereges
e que empreguei todo meu zelo em fazer dos inimigos da
Igreja meus inimigos pessoais. - São Jerônimo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 4
CONCLUSÃO.......................................................................................................................... 23
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 26
4
INTRODUÇÃO
Quando Paiva e Marcocci (2013, p.14) apresentam a Inquisição como "filha do seu tempo"
pode, à primeira vista, parecer uma fórmula fácil, mas a real profundez desta afirmação
revela-se na medida em que aprofundamos as reflexões sobre "O medo de uma sociedade
impura". Isso deixa claro que uma lógica de intolerâncias ao diferente e ideais de pureza de
sangue estavam difusos na sociedade. Esses elementos explicam muito da origem, do
desenvolvimento e da atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal e no império
ultramarino português.
Percebe-se, assim, que a instituição não foi imposta, mas desejada por amplos setores da
sociedade tomados por uma obsessão de manter a pureza da sociedade. Esses mesmos setores,
com o passar do tempo, pressionaram a coroa a adotar políticas cada vez mais
discriminatórias em relação aos cristãos-novos e a qualquer desviante do caminho
previamente pensado para todos os que estavam sob o julgo do ideário português.
Assim, quando nos deparamos com a história da Inquisição não podemos fixar somente nosso
olhar nos estudos de caso, nos pensamentos eclesiásticos, mas precisamos procurar observar
sua inserção no - e sua interação com o - contexto social, cultural, político e econômico de seu
tempo, provando que há uma circularidade cultural entre o Santo Oficio oficial e o imaginário
das pessoas diante dele.
Assim, usando a obra O Queijo e os Vermes como base para esse trabalho, a fim de buscar
olhar a inquisição com um olhar mais abrangente, encontramos o elo que liga a prática do
Santo Ofício e a circularidade cultural:
Por isso, entender como a religião e a religiosidade se estabeleceram no Espírito Santo passa
6
A inquisição foi uma instituição eclesiástica que tinha como objetivo investigar e punir os
crimes contra a fé católica. Sabemos que é difícil dizer com exatidão quando a inquisição de
fato começou. Ela é um processo que se inicia junto com a própria Igreja, e tem como
objetivo principal proteger as ameaças que a Igreja ou o Papa viessem a sofre diante do seu
poder e domínio. (NOVINSKY 1994 p.15)
O imperador Teodósio, buscando dar mais rigor as leis e controlar os movimentos apostatas,
estabelece em 382 um novo conjunto de leis, no qual se regulamenta o confisco de bens ou a
pena capital para qualquer que fosse condenado por heresia. (PIRES, 2007 p.15)
Ao adentrar na Idade Média, a Igreja entra em seu apogeu e em uma grande crise existencial,
no qual o poder temporal se conflita com o poder espiritual diante no mal exemplo de alguns
clérigos de carreira e do enfraquecimento dos poderes reais. Tudo isso contribui para a o
aumento da ortodoxia religiosa. (PIRES, 2007 p.16)
É neste contexto que, em 1184, o Papa Lúcio III, e o imperador Frederico I, que, amparados
em recomendações dos concílios de Latrão (1179) e Verona (1184), unificaram a repressão
às diversas heresias. Intensificou-se a atividade inquisitorial do episcopado e várias coroas
iniciaram atividades militares contra os principais centros de difusão das doutrinas não
autorizadas. A fogueira começou a definir-se como o castigo adequado aos impenitentes,
cujo delito, de "lesa-majestade divina", deveria ser considerado como maior e mais horrível
que o de "lesa-majestade humana". Em Verona foi elaborado um regimento especial para os
bispos, considerados "inquisidores ordinários", incumbindo-os de visitar duas vezes pôr ano
os focos de heresia que se encontrassem dentro das suas dioceses. (PIRES, 2007 p.16)
8
Temos o caso do Papa Inocêncio III, que foi pessoalmente a Midi, na França, no ano de
1198, para ajudar os missionários a combater as heresias. Tal fato demonstrou a necessidade
do apoio do Estado no combate às heresias. Assim, iniciava-se o processo de atuação em
vários reinos, mas com o aval do poder soberano. (PIRES, 2007 p.17)
No ano de 1216, o papa Inocêncio III concedeu a Domingos de Gusmão, fundador da Ordem
dos Pregadores, conhecidos Dominicanos, a presidência de um tribunal especial, sediado em
Toulouse. Este tribunal funcionava de acordo com as determinações promulgadas no
Concílio de Verona e de um novo concílio, realizado em Latrão em 1215, os quais
estabeleceram a "inquisição delegada", isto é, os rituais da inquisição seriam presididos e
executados pôr magistrados ligados diretamente à Santa Sé.
Seguindo os mesmos princípios chancelados nos concílios, foram criados outros tribunais
especiais e, três anos depois, o próprio Domingos de Gusmão organizou uma confraria
chamada "Milícia de Jesus Cristo", cujos juravam guardar castidade - ou, se casados,
fidelidade conjugal - e lutar a serviço da Igreja toda vez que fossem convocados. Após a
morte de Domingos, estes passaram a constituir a Ordem militar de São Domingos,
reforçando o seu caráter de milícia armada em defesa da fé. (CARRILLO, 2007 p. 100)
A estrutura definitiva do Santo Ofício foi delineada no concílio realizado em Toulouse no ano
de 1229 e, culminou em 1231 na publicação da bula Licet ad capiendos do papa Gregório IX.
Inicialmente, a atividade dos inquisidores delegados - em geral frades dominicanos ou
franciscanos - era concorrente com a dos bispos, mas, aos poucos, foi dominando esse espaço
por tratar-se de uma instância jurídica específica, que podia concentrar-se exclusivamente no
policiamento da fé e agir com mais celeridade e eficácia. Mesmo assim, os tribunais
continuaram reservando ao episcopado espaços relevantes nas visitas e nos julgamentos, para
demonstrar que a autoridade inquisitorial era ainda uma prerrogativa episcopal (CARRILLO,
2007 p. 100).
Em 1543, o papa Paulo III resolveu restaurar a junta de cardeais, que subsistiu até o
pontificado do papa Sixto V (1585-1590), que organizou as Congregações da Cúria Romana,
incluindo entre elas a do Tribunal do Santo Ofício, que passou a concentrar todas as funções
referentes à Inquisição e a defesa da fé Católica(CARRILLO, 2007 p. 101).
De acordo com Clotilde Marakuwa (1999) a Inquisição previa uma variada escala penal para
os 17 crimes antevistos nos Regimentos do Santo Ofício, a saber:
Os Reis Católicos obtiveram a aprovação da bula Exigit sincerae devotionis affectus pelo
papa Sisto IV em 1478, que autorizou a indicação de inquisidores pelo monarca e, em 1480,
foi criado o Tribunal da Inquisição em Sevilha. Esse poder concedido aos Reis Católicos era
inédito, pois a nomeação dos inquisidores estava reservada ao Papa (BETHENCOURT,
2000. p.17-18).
É dentro do projeto do papa Paulo III que a inquisição portuguesa se inicia. Paulo III e o
então rei de Portugal, D. João III realizam diversas negociações quanto à criação de um
tribunal vinculado a coroa portuguesa. Esse tribunal é criado através da bula Cum ad nil
magis em maio 1536, sendo o primeiro inquisidor geral D. Frei Diogo da Silva, que em 1539
é substituído pelo Cardeal Infante D. Henrique, que depois se tornaria o rei de Portugal
devido a morte de D. Sebastião. (PAIVA, 2003. p.49).
Contudo, é na união das coroas ibéricas, no reinado de Felipe II, que a inquisição portuguesa
toma uma forma mais rígida e firme. É no reinado de Felipe II que houve uma nova
orientação em relação aos locais da ação inquisitorial, que deveria adotar uma perspectiva
cada vez mais ultramarina, atingindo todos os domínios do Império Português, como
mostram as visitas realizadas em diversas colônias nos anos 1590 sob a organização do
inquisidor-geral cardeal D. Alberto, que sustava o cargo desde 1586. (PAIVA, 2010. p.04)
Desta forma, Marcocci e Paiva afirmam que a atuação do Santo Ofício português pode ser
dividido em cinco fases cronologicamente dispostas, que abordam as épocas mais
importantes da sua vigência: a sua fundação em pleno período de humanismo renascentista e
contexto tridentino (1536-1605), a transição entre as dinastias de Avis e de Bragança sob o
domínio filipino (1605-1681), o período barroco (1681-1755), o absolutismo-iluminismo
(1755-1820) e o seu ocaso (1820-1821).
11
Foi no final do século XVI que a Inquisição é inaugurada no Brasil, quando, em 1591, o
licenciado Heitor Furtado de Mendonça desembargou na Bahia para dar início à primeira
visitação (FEITLER, 2006. p.33-45).
A visita iniciada em 1591 foi a primeira de quatro ocorridas no Brasil colonial ao longo do
período em que a Inquisição aqui atuou (LIPINER, 1969. p.22-23). No entanto, a presença
inquisitorial se deu muito bem antes da própria visitação em 1591 por Heitor Furtado
Mendonça, pois os bispos que eram enviados para atuarem no Brasil já vinham com o
intento de exercerem também as funções inquisitoriais, como foi o caso do primeiro bispo
Dom Sardinha e também do bispo Dom Antônio Barreiros em visitação a Olinda. Tal
procedimento configura o caráter atuante e vigilante do Tribunal do Santo Ofício português
mesmo em lugares que não existiam uma jurisdição permanente, como a América
portuguesa:
(...) o Santo Ofício já havia mostrado o quão longo era seu braço,
mandando que se fizessem inquéritos e prisões em seu nome por
diversas vezes, desde pelo menos 1546, quando o donatário de
Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, foi preso e enviado aos
Estaus. Esta ação inquisitorial, sem que houvesse localmente
oficiais inquisitoriais, era um sinal patente de que os inquisidores
de Lisboa não precisavam desses agentes oficiais para exercer seu
poder, mesmo em territórios tão longínquos da sede do tribunal
(FEITLER, 2006, p. 33).
A ação da Inquisição no Brasil foi pontual, mas significativa. Nunca foi montado um tribunal
da Inquisição no território brasileiro, sendo sua ação realizada na colônia através de visitas
esporádicas. De tempos em tempos, a partir das necessidades e conjunturas específicas, o
Conselho Geral do Santo Ofício lisboeta expedia ordens de envio de seus emissários para as
colônias além-mar.
Mesmo não tendo sido instalada uma sede definitiva do Tribunal da Inquisição no Brasil, a
estrutura das vistorias periódicas não deixou de demarcar a presença da instituição sobre as
consciências religiosas, num momento em que os assuntos de fé, no Brasil, pareciam estar em
plano secundário frente a constante necessidade de enfrentamento das dificuldades impostas
pelo processo colonizador. De acordo com a historiadora Sônia Siqueira, as visitações eram
O saldo dessas visitas dos inquisidores enviados diretamente da capital do Reino foi matéria
de estudo por parte de historiadores brasileiros que, recorrendo às fontes inquisitoriais,
analisaram a estrutura do tribunal, as relações entre a Inquisição e o clero local e o nível de
sociabilidade dos cristãos-novos na colônia.
Os clássicos O diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza (1986) e Trópico
dos pecados, de Ronaldo Vainfas (1989) reconstituíram o universo religioso e moral do
Brasil e lançaram uma luz sobre a vida sexual dos colonos, suas ousadias e desgraças,
retirando da penumbra a trajetória de homens e mulheres anônimos, que caíram nas teias do
Santo Ofício. Lana Lage da Gama Lima (1990) e Luiz Mott (1993) deram contribuições
importantes à historiografia do período colonial, investigando os desvios de conduta dos
padres solicitantes, místicas, fanchonos1e calunduzeiros2do Brasil colonial.
Na Capitania do Espírito Santo, a primeira visita se faz no ano de 1628, em que o Licenciado
Luís Pires da Veiga, após visitar Angola e a Capitania do Rio de Janeiro, desembarca nas
terras capixabas. Contudo, a capitania já é citada na visita de 1591, no processo da cristã-
1
[termo pejorativo]Indivíduo do sexo masculino que mantém relações sexuais ou afetivas com outros homens.
2
Aquele que pratica calundu. Rituais de religião de matriz africana.
14
velha Antônia de Bairos,70 anos, residente em Salvador, envolvida com o crime de bigamia,
declarou aos 23 de agosto de 1591 (ABREU, 1935, p.67).
Outro texto que chama a atenção é o de Capistrano de Abreu (1935), na Introdução do livro
da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, no qual se refere a uma carta
escrita pelo Padre José de Anchieta, em 2 de setembro de 1592, com o relato da situação de
um morador da Capitania do Espírito Santo, chamado Rocha, que se sentindo insultado pelo
Visitador Inquisitorial, pois
[...] lhe atirou duas noites com um arcabuz a sua janela. Foi preso
e se os padres que são adjuntos do inquisidor não trabalharam
muito nisso, ele não escapava da morte de fogo, conforme a bula
do Papa, mas eles a interpretaram de maneira que pareceu bem ao
inquisidor dar-lhe a vida, mas contudo saiu com degredo para as
galés por dois anos, sendo os primeiros cinco domingos na Sé
com grilhão e baraço e no cabo deles, pregão por toda a cidade,
com baraço a cumprir um ano de cadeia e depois o degredo. ”
(ABREU, 1935, p.77)
Contudo, mesmo diante dos avanços sobre a inquisição brasileira, o tema da presença do
Tribunal do Santo Oficio na Capitania do Espírito Santo foi pouco explorado pela
historiografia. Quando analisamos a obra História da Companhia de Jesus no Brasil, de
Serafim Leite, encontramos somente o relato do processo do judaizante Brás Gomes de
Siqueira, o “judeu pescador” que, foi retirado da famosa lista publicada por Varnhagen em
1845. O mesmo se repete com outros famosos escritores como José Teixeira Oliveira, Braz da
Costa Rubin, Heribaldo Balestrero, Mário Aristides Freire, Frei Basílio Rower e Affonso
Schwab.
na Província do Espírito Santo", divulgava maiores detalhes sobre a biografia daquele cristão-
novo. Basílio Daemon (2010, p 78), redator de jornais, cronista e memorialista registrou a
passagem do Padre Anchieta na província, bem como relatou toda a montagem da "empresa
Inaciana", como seu colégio na ilha de Victória, seus aldeamentos e fazendas.
O professor Luiz Mott (2000) foi quem retomou a análise sobre a Inquisição no Espírito
Santo, resgatando a lista de condenados descrita por Varnhagen na revista IHGB, realizando
pesquisas na Torre do Tombo – Portugal, lançando nova luz ao tema, e deixando um amplo
caminho aberto para que outros historiadores pudessem aprofundar pesquisas sobre os
processos e desdobramentos da Inquisição na Capitania do Espírito Santo.
Nesta obra de Estilaque Ferreira dos Santos, alguns processos são descritos e explicados, e a
partir deles podemos perceber o processo de circularidade cultural que ocorre junto aos
envolvidos na Santa Inquisição. São apresentados vinte e nove (29) casos da inquisição
relacionados com a capitania do Espírito Santo, dos quais nove (09) eram naturais da
capitania, três de outras partes do Brasil, dois da Espanha, um da França, um da Inglaterra, um
de origem desconhecida e doze (12) portugueses. Deste grupo, seis eram sacerdotes, quatro
militares, quatro comerciantes, três sem profissão, três artesãos, dois senhores de engenho,
dois advogados, um professor, um traficante de escravos e sua esposa, um marinheiro e um
índio natural da terra, cujo caso merecerá maior atenção. Quanto as penas aplicadas temos o
número de onze condenados às de cárcere e degredo, seis condenados à de penitências e
repreensões, dois submetidos à de tormenta e objuração, quatro processos interrompidos e
sem conclusão, uma suspensão de ordem e duas mortes em cárcere (FERREIRA, 2014,
p.249).
Esses dados apontam que a presença e o poder da Igreja Católica e seu braço jurídico na
Capitania do Espírito Santo. A atuação do Santo Ofício manteve a tendência que já possuía,
pois, como nas demais partes império ultramarino português, os cristãos-novos foram o
16
principal alvo da Inquisição, representando mais de 80% no cômputo geral de suas vítimas.
Também fica claro que o período de maior atuação do Santo Ofício nas terras capixabas foi
o século XVII e primeira metade do século XVIII, seguindo a tendência em que estava
mergulhada a inquisição em todo o território sob julgo do trono português (MOTT, 2000,
p.29).
17
Quando Ginzburg escreve O queijo e os vermes, ele lança um novo olhar sobre a Inquisição
e abre caminho para uma nova forma de analisar a história do Santo Ofício. Saímos do lugar
de levantar dados e procurar culpados, para - à luz da cultura dos povos - perceber como a
Inquisição era entendida e influenciava a mentalidade popular. Ginzburg lança o conceito de
circularidade cultural que associa apropriação e transformação social às diferenças culturais.
Antes de entendermos o processo de circularidade cultural mais a fundo, precisamos ter noção
do que seria a cultura para esse grupo de historiadores. Em Ginzburg (1987), a terminação
cultura é utilizada “[...] para definir o conjunto de atitudes, crenças, códigos de
comportamentos próprios das classes subalternas num certo período histórico [...]” (p. 12).
Também nos interessa a noção de cultura popular esboçada por Chartier (1995), que afirma,
Essas definições nos permitem produzir uma opinião de como utilizar o conceito de
circularidade entre as culturas populares e eruditas. Utilizando a cultura popular como ponto
de partida, nos é permitido afirmar que esta se mostra nos discursos e ações submetidas à
dominação e, ao mesmo tempo, nos discursos e ações que ignoram os padrões de
preponderância estabelecidas ou utilizam-se de algum subterfúgio para não se subjugar.
18
Assim sendo, a circularidade pode ser entendida como uma troca de valores entre duas
culturas diferentes. Alguém de determinada “classe” dominante, que tem sua cultura
pertencente, procure conhecer e apropriar-se de características culturais de outro individuo de
“classe” inferior, diferente da sua, possibilitando assim, uma nova visão de mundo sem
abandonar seus antigos valores culturais, mas permitindo a entrada de novos.
Da mesma forma, o outro individuo de “classe” inferior, é levado a fazer o mesmo, quando
lhe é permitido conhecer a cultura do dominante. A partir disso, é enfatizada uma troca de
conhecimentos de duas pessoas diferentes, onde este estará sendo transmitido mutuamente, de
forma circular, surgindo assim o nome “circularidade cultural”.
Essa nova forma de escrever a história da inquisição tendo o predomínio do que, até então, era
chamada de “história das mentalidades”, proveniente da Terceira Geração da Escola dos
Annales, surgiu no Brasil com a publicação do livro O diabo e a terra de Santa Cruz:
feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial (1986), de autoria de Laura de Mello e
Souza.
Porém, haviam casos de cristãos novos que vieram para a colônia com o intuito de continuar a
praticar a sua religião, banida do reino português, sem serem perseguidos pelo Santo Ofício.
O objetivo era se livrar do estigma de cristãos-novos sem que fosse preciso se adaptar a uma
realidade muito diferente daquela que já estavam habituados, mantendo a língua e a
organização social, como foi o caso do Brasil. Os neocristãos na América portuguesa
desempenharam os mais diversos papéis nos diferentes setores da sociedade desde os
primórdios da colonização, “com a ocupação territorial e a exploração econômica do açúcar,
sobretudo no Nordeste, onde a importância desses personagens seria notável” (VAINFAS &
ASSIS, 2005 p. 45).
19
Para a circularidade cultural, que tomamos emprestado da autora para exemplo é o da bolsa de
mandinga. Embora esta remetesse, nos albores da colonização, aos africanos trazidos para a
colônia e, nesta escravizados, a partir do século XVIII, passaria a designar “uma forma
específica de talismã que reunia práticas europeias, africanas e, de certa forma, também
indígenas”, o que mais uma vez nos remete à circularidade da cultura ( p. 211-213).
mandingueiro e trazer uma carta de tocar”. Segundo consta em seu processo, esse caboclo
morava na fazenda de Salvador Corrêa de Macedo, freguesia de Inhomerim, comarca do
Espírito Santo, que neste momento estava sob a jurisdição do bispado fluminense. (MOTT,
2008, p.18)
A segunda testemunha é o pardo Salvador Corrêa de Macedo, trinta anos, que habitava na
mesma propriedade que vivia o delatado. Ele afirmou diante do tribunal que
E disse ainda que outras ocasiões ele via passar, à noite, no meio da casa vacas, porcos e
outros animais que com eles bailava e o mandingueiro ascendia por uma parede acima sem
escada ou outro algum artifício para subir, e tudo isto fazia por arte diabólica, proibindo-a
falar na Santíssima Trindade (MOTT, 2008, p. 17).
Porém, no caso específico da Capitania do Espírito Santo, o caso do mestiço Miguel Pestana
é único. A maioria absoluta dos casos é de cristãos novos que continuavam a praticar rituais
judaicos e acabaram denunciados ao Santo Ofício. Essa característica talvez se relacione à
preocupação com a manutenção do segredo das minas no século XVIII.
Outra medida foi a proibição de entradas para o sertão para evitar os “descaminhos” do ouro.
O próprio Santo Ofício tornou-se mais rigoroso com mercadores de origem judaica
interessados em se aventurar na exploração do rico metal. Consoante Freire (2006, p. 174),
as perseguições na capitania tiveram lugar e enredaram ricos comerciantes em processos
22
Do levantamento realizado para esta monografia e pelas histórias narradas sobre a ação dos
inquisidores na capitania do Espírito Santo, pode-se em princípio concluir que a vigilância
recaía sobre homens estrangeiros, principalmente comerciantes, assim como sobre naturais
que se aventuraram com negócios. Da leitura dos trabalhos de Juliana Simonato (2017) e de
Thiara Dutra (2016), observa-se que muitos eram os escravos vinculados às propriedades
jesuíticas e, talvez por essa razão, suas práticas religiosas não tenham despertado nas
autoridades espiritossantenses maiores preocupações. De fato, eram os homens livres
vinculados ao comércio o alvo da inquisição. Pode-se até arguir que a posição secundária da
capitania fosse atrativa para que os cristãos novos buscassem no local reiniciar suas vidas
longe da perseguição.
23
CONCLUSÃO
Por ser uma capitania de pouco destaque político, a maioria dos réus compõe-se de moradores
temporários da capitania ou de capixabas residentes em outras capitanias, e é por ser um local
que não estava incluído nos grandes círculos políticos que, em dados momentos, a capitania
se tornou um local de refúgio para fugitivos do Santo Ofício, em especial de residentes do Rio
de Janeiro.
Como nos afirma Mott (2000), a presença inquisitorial no Espírito Santo reproduz, mutatis
mutandis, o mesmo padrão das capitanias pequenas: poucos e intermitentes oficiais do Santo
Ofício, raríssima presença de Visitadores, algum episódio envolvendo abuso de autoridade do
comissário inquisitorial, e embora tenha sido relativamente branda a repressão do Santo
Ofício no Espírito Santo, certamente o espectro da Santa Inquisição dominava o imaginário
popular, inibindo palavras e ações que pusessem em cheque a hegemonia deste monstrum
horribilem (MOTT, 2000, p. 29). Como se viu, familiares dos perseguidos evadiam-se
temerosos de novas perseguições.
Os processos apresentados por Mott (2000), Novinski (2009) e Santos (2014) estão
mergulhados no paradigma indiciário, uma vez que tal metodologia se pauta pela descoberta e
investigação de vestígios que podem revelar chaves de significados para um sistema maior de
pensamentos. Assim, eles buscaram demonstrar como essa metodologia a forma como a
inquisição atuava em todas as esferas da sociedade, inclusiva no campo das ideias, através do
trato dos documentos e na condução de pesquisas históricas.
24
A representação histórica deve estar articulada com um lugar social e a cultura desse local.
Segundo Certeau (1982), “não há relato histórico no qual não seja explicitada a relação com
um corpo social e com uma instituição de saber (p. 93-4), como ocorre no jogo inquisitorial,
em que Igreja, Estado e povo estão em constante relação. A história cultural problematiza
diretamente o texto como mediação, desafiando o historiador a confrontar o que havia sido até
então “realidade”, a partir dos documentos com o poder das representações da escrita, da
materialidade textual, investigando mediações, empréstimos, cruzamentos, difusões,
hibridações e mestiçagens.
Ginzburg (1987) vai dizer que “Muitas vezes vimos aflorar, através das profundíssimas
diferenças de linguagem, analogias surpreendentes entre as tendências que norteiam a cultura
camponesa que tentamos reconstruir e as de setores mais avançados da cultura quinhentista.
[...]” Isto segundo ele leva a “[...] uma hipótese muito mais complexa sobre as relações que
permeavam, nesse período, as duas culturas: as das classes dominantes e a das classes
subalternas” (p. 229).
Vai um pouco mais além ao afirmar que além de complexa é “[...] impossível de demonstrar.
O estado da documentação reflete, óbvio, o estado das relações de força entre as classes. Uma
cultura quase exclusivamente oral como a das classes subalternas [...] tende a não deixar
pistas, ou então deixar pistas distorcidas”. Por isso vai dizer que o caso Menocchio, base dos
nossos estudos, é importante, pois escancara “[...] as raízes populares de grande parte da alta
cultura europeia, medieval e pós-medieval. [...]. Todavia, fecharam uma época caracterizada
pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas direções, entre a alta cultura e a
cultura popular. [...]” (GINZBURG, 1987, p. 230).
Essa mesma troca e influência é percebia nos processos analisados da Capitania do Espírito
Santo, no qual as práticas desvirtuastes dos acusados era interpretada como algo nocivo a toda
a sociedade que estivesse ao redor, o que permitia um temor coletivo e muitas denúncias ao
tribunal.
Embora o projeto colonial português fosse o de transmigrar o mundo ibérico para os trópicos,
pelo menos no plano da religiosidade o que aconteceu foi o fato de diversos tipos de cultos –
desde os de origem nativa até os católicos, afros e judaicos – continuaram a ser praticados,
convivendo e se contaminando mutuamente nos três primeiros séculos de ocidentalização do
Novo Mundo, cujas práticas refletem-se até hoje na religiosidade (mestiça) brasileira
(SOUZA, 1986, p.210-13).
25
A reconstituição das mentalidades coloniais, tal como aparece no livro O diabo na terra de
Santa Cruz, suscita ainda importantes questões de ordem metodológica e historiográfica. O
livro é um relato arqueológico dos hábitos e ritos populares que, como indica SOUZA (1986),
eram profundamente marcados no século XVI pela religiosidade popular portuguesa e, ao
longo dos séculos XVII e XVIII, iriam se refundir e refazer pela penetração de crenças
ameríndias, caboclas e africanas. Chegaria o tempo em que os calundús seriam assimilados
aos sabbaths encarnando, aos olhos da Igreja, um dos espaços privilegiados da possessão
demoníaca na Colônia. Como em O queijo e os vermes, salienta-se o conflito entre os níveis
culturais, popular e erudito, inaugurado na Renascença e recrudescido pelas reformas
protestante e católica a partir do século XVI.
26
REFERÊNCIAS
FURTADO, Júnia Ferreira. & RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Travessias
inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos
religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI – XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
______. Os andarilhos dobem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo:Cia das Letras, 1988.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Loyola, 2004.
MOREIRA, A.J. & MENDONÇA, J.L. História dos Principais atos e procedimentos da
Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1980.
27
MOTT, Luiz . "Regimento dos Comissários e seus Escrivães, dos Qualificadores e dos
Familiares do Santo Ofício. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBa, 1989, 15p.
NOVINSKI. Anita Waingord. Prisioneiros do Brasil: séculos XVI a XIX. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
SIMONATO, Juliana Sabino. A capitania do sob aégide dos Filipes: escravidão, comércio de
escravos e dinâmicas de mestiçagens (1580-1640). Tese defendida junto ao Programa de Pós-
graduação em História da UFMG. Belo Horizonte, 2017.
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos índios.São Paulo: Cia. das Letras, 1995.