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literatura do presente

Data · January 2015

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Susana Scramim
Federal University of Santa Catarina
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LITERATURA DO PRESENTE
É vedada a reprodução total ou parcial desta obra.

Associação Brasileira de
Editoras Universitárias
SUSANA SCRAMIM

LITERATURA DO PRESENTE:
história e anacronismo dos textos

Chapecó, 2007
REITOR: Gilberto Luiz Agnolin
VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO
E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato
VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer
VICE-REITOR DE GRADU AÇÃO
AÇÃO:: Odilon Luiz Poli
GRADUAÇÃO

Scramim, Susana
S433p Literatura do presente: história e anacronismo dos textos / Susana
Scramim. – Chapecó: Argos, 2007.
190 p.

1. Literatura - Teoria. 2. Literatura – História e crítica.


I. Título.

CDD 801

ISBN: 978-85-98981-81-9 Catalogação: Yara Menegatti CRB 14/448


Biblioteca Central Unochapecó

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Priscila Casari (Vice);


Alessandra Machado; Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin;
Arlene Renk; Edilane Bertelli; Jacir Dal Magro; José Luiz Zambiasi;
Juçara Nair Wollf; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella;
Monica Hass; Ricardo Brisolla Ravanello
Coordenadora: Monica Hass
As idéias expostas neste livro foram discutidas na primavera de
2005 no transcurso de uma disciplina, Crítica e Ficção,
ministrada por mim na pós-graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina. Portanto, este livro é
fruto de um trabalho comum. Esta nota quer ser um
agradecimento aos que com entusiasmo ouviram e contribuíram
para o desdobramento das análises neste livro apresentadas.
Portanto, a tarefa original de uma autêntica revolução
já não é simplesmente “mudar o mundo”,
mas também e, sobretudo, “mudar o tempo”.
Giorgio Agamben
SUMÁRIO

11 ...... Abertura: historiar o presente –


um problema metodológico

37 ...... PRESENTE ANACRÔNICO I

39 ...... P OESIA E PENSAMENTO

41 ....... Infância, arquivo e experiência

59 ....... A metáfora. Um lugar mais


originário que o espaço

83 ....... Os fractais do modernismo

103 ..... A literatura e o mal. O arco floral


Torquato Neto e Marcos Siscar
123 ..... PRESENTE ANACRÔNICO II

125 ..... D ERIV AÇÃO


ERIVAÇÃO E PROCEDIMENTO NARRA TIV
NARRATIV
TIVOO

127 ..... Wilson Bueno e a “Sintesis Misteriosa”

143 ..... Dobrar e desdobrar: procedimentos da literatura do presente


no relato de Bernardo Carvalho

159 ..... A plenitude do tempo e a prática


do desvio em César Aira

175 ..... Relato de um certo oriente:


recordar o presente
ABERTURA: HISTORIAR O PRESENTE –
UM PROBLEMA METODOLÓGICO

O que é o presente?

Quando Giorgio Agamben introduz-nos na discussão sobre o


tempo, previamente nos alerta que uma experiência com o tempo acompanha
cada concepção de história; e que numa concepção de história reside uma
experiência com o tempo que inclusive a condiciona. Sendo assim, não se
produz uma nova cultura, que é resultado de uma experiência com o tempo,
se não se muda a relação com o tempo e não se altera nossa percepção da
história. Não podemos acercar-nos da idéia de presente sem que entremos
na discussão sobre uma concepção de tempo. Muitos pensam que quando
incluem um pensamento sobre a história em seus trabalhos estão,
conseqüentemente, refletindo sobre o tempo; se assim fosse, a produção
criativa feita no decorrer do tempo somente poderia ser vista como um mero
documento da história. Sabemos que a história não se resume a uma sucessão
de fatos no tempo cronológico; entretanto, ainda assim, é preciso sublinhar
que o tempo não se opõe à história, e não podemos ignorar a historicidade
|12|

dos atos criativos dada pelos estratos de tempo que neles encontramos. No
entanto, segundo Didi-Huberman, em seu livro Devant le temps, o princípio
de síntese é ilusório tanto na disciplina história da arte como na história da
literatura. Na modernidade, o saber histórico se vê confrontado com as
questões fundamentais da disciplina, que são o anacronismo e o eterno
retorno. Segundo Huberman, com isso estamos no “pliegue exacto de la
relación entre tiempo e historia. Cabría preguntar ahora a la misma disciplina
histórica qué quiere hacer de este pliegue: ¿ocultar el anacronismo que
emerge, y por eso aplastar calladamente el tiempo bajo la historia – o bien
abrir el pliegue y dejar florecer la paradoja?” (Huberman, 2006, p. 31). Esse
é um aspecto fundamental para refletir sobre a categoria de presente, isto é, a
densidade de tempo histórico que “pervive”1 nas obras, a absorção das afecções
que as obras produzem, isto é, o seu “efeito”, a sua “duração”2. Raúl Antelo,
em seu ensaio O arquivo e a política do anacronismo, ressalta que graças ao
anacronismo o tempo passa a ser definido como “tempo-com”. Retomando a
reflexão de Giorgio Agamben de que a imagem pertence a um tempo no
qual os homens encontram-se ou perdem-se, Antelo propõe que o anacronismo
é a “con-temporização” ou temporalização do acontecido, é o tempo posicionado
na diferença e no “diferimento”. Antelo ainda ressalta que:

1
Walter Benjamin desenvolve o conceito de pervivência, Fortleben, como algo que faz com que
alguns elementos ou mesmo as obras de arte sobrevivam para além da época que as viu nascer. Na
argumentação que Benjamin constrói do conceito de Fortleben ou da “pervivência” da obra na
memória coletiva sobressaem as observações sobre “transformação” (Wandlung) e sobre “renovação”
(Erneuerung), a isso o filósofo alemão chama o “pós-amadurar” (Nachreife) da linguagem da obra,
“um dos processos históricos mais fecundos” (Benjamin, 2001).
2
Gilles Deleuze em seu trabalho sobre Spinoza ressalta que a característica do signo para o filósofo
da Ética era a de ser sempre um efeito. O efeito num primeiro momento é um vestígio de um corpo
sobre outro, é o estado de um corpo que sofreu a ação de outro corpo. Dessa forma, segundo Deleuze,
em Spinoza é o efeito de uma “affectio”. As afecções são conhecidas pelas idéias que temos, pelas
sensações ou percepções. Porém, essas afecções não são efeitos instantâneos de um corpo sobre outro,
mas são, especialmente, efeitos sobre a própria duração. Deleuze dirá que esses efeitos pensados,
enquanto duração, não podem mais ser chamados de afecções, mas antes devem ser pensados como
“afectos” propriamente ditos, pois indicam que as durações constituem “passagens, devires, ascensões
e quedas, variações contínuas de potência que vão de um estado a outro” (Spinoza, 1997, 2002).
|13|

[...] esse tempo-com defende a noção de que a essência do tempo é


uma co-essência, ativada no presente de uma leitura, de tal sorte que o
anacronismo crítico não pode ser definido como um amálgama
aleatório ou impróprio de tempos quaisquer. A temporalização do
anacronismo significa, pelo contrário, uma participação temporal na
temporalidade e ela revela, além do mais, uma hiper-temporalização,
infinita e potencializada, do evento. Se o que define o anacronismo é,
portanto, a ‘con-temporização’, então, não é o tempo natural o que
interessa ao comparatista ou ao historiador cultural. Aquilo que define
a temporalidade de uma cultura (lida com outras culturas) é, pelo
contrário, a sua sintaxe ou composição, seu uso, sua política, e não
uma fórmula autonômica e racional. (Antelo, 2007, p. 11-12).

A discussão do tempo presente na literatura não se resume a um


“agora” das obras baseado em uma causa que provoca uma alteração ou
uma mudança a qual fornece um caráter único e irreversível aos
acontecimentos e às obras. O tempo presente é um “agora” das obras nos
efeitos que produz nos tempos do “agora” de outras obras, bem como da
“duração” e da absorção desses efeitos, isto é, da absorção dos “afectos” que
essa obra produz, o que de toda maneira cria as condições de sua
sobrevivência como forma primordial. No entanto, essa sobrevivência atesta
que as formas primordiais elas mesmas são, ainda segundo Didi-Huberman,
configurações de uma mesma complexidade temporal, outras montagens
de tempos heterogêneos que permanecem emergindo. Essa relação não
ocorre apenas no nível formal do texto, uma vez que as homologias
morfológicas indicam apenas alterações de caráter cíclico e repetitivo e não
satisfazem a necessidade de compreensão dos estratos de tempo que
sobrevivem nas obras. É preciso ultrapassar a constatação de que as formas
se repetem. Também é importante compreender que esses estratos de tempo
não se referem a uma confluência ou uma concordância entre o tempo em
que se produz a obra e o tempo da obra; não se referem a uma “eucronia”.
Tampouco esses estratos de tempo que sobrevivem na obra se manifestam
nos conteúdos; ao contrário, ganham forma mediante uma economia das
|14|

paixões e dos afetos dos corpos que se manifestam nos valores de uma
determinada época. Essa economia das paixões promove uma mímica de
determinadas formas cujos modelos encontram-se sob a forma de ruínas,
objetos destruídos e depositados nas camadas de tempo das obras criativas
daquilo que chamamos de história. No entanto, os modelos selecionados
mediante as “affectios” de uma época são carregados de novos sentidos,
polarizando-se muitas vezes com o seu sentido original3. Com esse
procedimento, mais do que uma atualização de uma forma, o que se opera
é uma apropriação crítica de um meio, descobrindo não somente os estratos
de tempo ali presentes, mas despertando a sua temporalidade, isto é, sua
capacidade de intervir, sua potência crítica. Dessa maneira, chegamos a
uma definição possível de temporalidade do presente. As obras que
consideraremos portadoras desses estratos de tempo “presente” serão aquelas
que lograram selecionar os valores que se encontram formalizados numa
economia dos afetos, que não são precisamente uma forma, mas antes
maneiras de combinar os efeitos do processo de “vir-a-ser” e extinguir-se
das obras. Daí que o presente seja uma categoria que não esteja na obra
senão como traço de sua vida, aquilo que Walter Benjamin denominou
como vida natural da obra. Vida natural das obras, isto é, o seu processo de
“vir-a-ser”e de seu declinar.

3
O conceito de origem aqui empregado é o desenvolvido por Walter Benjamin em seu trabalho
sobre o Barroco. Para Benjamin no processo de transmissão da tradição ou na leitura histórica do
legado cultural o conceito de “origem” não pode ser lido sem o de destruição. “O termo origem”,
lê-se na tradução daquele trabalho de Benjamin feita por Sérgio Paulo Rouanet, “não designa o vir-
a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do “vir-a-ser” e da extinção.” Segundo a reflexão
que Walter Benjamin propõe, para que o presente possa apropriar-se da lição do passado seria
necessário que ela fosse destruída, transformando sua vida em algo diferente, mas que não cessa de
passar. Assim que a origem (Die Ursprung) para Benjamin, mesmo sendo uma categoria histórica,
não se refere à genese (Die Entstehung). Não se objetiva com a reflexão sobre a origem descrever o
processo pelo qual o existente veio a ser, mas antes contemplar o que emerge do processo de “vir-a-ser”
e desaparecer. Dessa maneira, ao discutirmos a origem como efeito, como “duração” do processo de
“vir-a-ser” e desaparecer, estamos discutindo também a potência das formas primordiais, digam-se
originárias, que são produzidas nesse processo, estamos discutindo as categorias de presente que
emergem da observação da “pré” e “pós-história” daquilo que estamos a contemplar.
|15|

Como produzir literatura do presente?

Uma literatura do presente mais do que pressupor uma


contemporaneidade implica uma noção compartilhada do fazer literário.
Os “escritores do presente” não são necessariamente contemporâneos, mas
produzem um pensamento comum acerca do literário cujo efeito não é o de
reuni-los em um grupo, mas o de criar uma comunidade sem laços, uma
comunidade de singularidades movidas por um desejo de fazer arte e não
propriamente de um fazer artístico. Walter Benjamin escreveu o seu trabalho
sobre o drama barroco alemão motivado por esse conceito do presente, isto
é, um presente artístico-filosófico. O que Benjamin buscava eram “as formas
originárias” da arte, intimamente ligadas ao próprio conceito de origem
desenvolvido nesse mesmo trabalho. Encontrou as formas originárias do
drama barroco alemão no século XVI e XVII e detectou como elas
sobreviviam nas formas originárias do expressionismo alemão da primeira
década do século XX. Além de formular uma teoria das formas primordiais
na arte, baseado na leitura de Goethe sobre as formas originárias, Walter
Benjamin produz um conceito de temporalidade do presente na arte. O
tempo presente se constitui com base no conceito de forma originária. Desse
modo, as obras do tempo presente, além de manifestarem uma forte opção
pela arte produtora de pensamento, estariam ligadas a certas noções de fazer
literário que incluem um não-fazer, reafirmam, ao contrário, apenas um
“querer” fazer, isto é, incluem uma noção de abandono do próprio ato de
“fazer” literatura. Walter Benjamin detecta essa modulação de arte do presente
no barroco do século XVII e no expressionismo. Partindo desse método,
que deve ser entendido como um procedimento crítico, essa comunidade
do presente pode ser aumentada mediante uma modulação desses mesmos
procedimentos na arte. Assim, uma tentativa de fazer conjunto crítico dessas
obras, abrigando-as em uma nova tendência ou grupo, estará sempre marcada
por sua mais fiel característica: a de ser incompleta ou de ser provisória,
|16|

uma vez que obras serão justamente analisadas com base em um “querer
ser” e não efetivamente em um “ser” arte. É daqui que surge a posição
política de algumas obras do presente de abdicarem definitivamente da
característica de “ser arte”. Esse “abandono” pode levar a uma ultrapassagem
dos limites de mediação entre a realidade e a ficção nos quais a arte modernista
se situa, assumindo-se como uma prática fluida que promove o trânsito
entre as fronteiras dos gêneros da crítica e da ficção ou ainda levando à
enunciação de uma forte negatividade ativa. Nesse sentido, a arte do presente,
ou ainda, a literatura do presente é ficção no mesmo momento em que é
ensaio ou crítica, no entanto, sendo ao mesmo tempo todas essas modalidades
discursivas, não é nenhuma delas autonomamente.
Essa atitude afirmativa frente ao “ser” arte que se manifesta apenas
em “querer ser arte” acontece justamente quando se arrisca com desconhecido
para se chegar a outros lugares igualmente desconhecidos e assim produzindo
uma “modulação”, um “movimento” que não é de ruptura e tampouco é de
continuidade, ao contrário, pertence a uma deriva da tradição moderna. A
modernidade com sua tradição caracterizada pela ruptura revelou-se incapaz
de elaborar um pensamento para o tempo presente, bem como para o de
literatura do presente. A literatura do presente que envolve uma noção muito
maior do que a noção de contemporâneo é aquela que assume o risco inclusive
de deixar de ser literatura, ou ainda, de fazer com que a literatura se coloque
num lugar outro, num lugar de passagem entre os discursos, entre os lugares
originários da poesia, e que não devem ser confundidos com o espaço, com a
circunscrição de um território para a literatura. Escrever literatura do presente
hoje tem a função de fazer coincidirem duas coisas que a modernidade esgotou
há muito: a possibilidade do conhecimento e da experiência.
O problema é como fazer experiência poética e ao mesmo tempo
produzir conhecimento se nosso presente está saturado de memória. Nietzsche
já falava da hipertrofia da memória em Considerações extemporâneas, essa
superabundância que paralisa a ação, elimina o futuro e promove a
|17|

melancolia. Como recuperar a faculdade de se ter e fazer experiência? Será


que precisamos suspender o conhecimento, a tradição? Giorgio Agamben
comenta as possibilidades da experiência na filosofia e na arte em seu livro
Infância e História. Reconstrói, para propor caminhos, a história da
experiência no pensamento ocidental. E ao comentar o problema da
experiência nas “quêtes” medievais nos oferece uma reflexão interessante
para pensar a literatura do presente. A instância que marcava a produção do
conhecimento na Idade Média demonstra que o sujeito do conhecimento
somente poderia conhecer o bem “per scietiam”, dessa forma, na “quête”
residiria essa impossibilidade de unir conhecimento e experiência num único
sujeito. A experiência humana precisamente é concebida nas “quêtes” como
“aporia”, isto é, como ausência de caminho. Giorgio Agamben completa a
análise dizendo que enquanto a experiência científica é efetivamente a
construção de um caminho seguro, de um “méthodos”, em direção ao
conhecimento, a “quête” ao contrário é o reconhecimento de que a ausência
de caminho, isto é, a “aporia”, do grego “a-poria” (sem caminho), é a única
experiência possível para o sujeito. Dessa forma, Agamben ressalta a posição
de Dom Quixote, o velho sujeito do conhecimento, com toda sua memória
da tradição, que foi enfeitiçado, e só pode fazer a experiência sem nunca
possuí-la. Dom Quixote é o sujeito marcado pelo procedimento da “quête”,
isto é, ele vive o cotidiano e familiar como extraordinário e exótico, porém,
esse tipo de “Unheimlich” pré-freudiana é somente a cifra da “aporia”
essencial de toda experiência. À “quête”, ou seja, o reconhecimento do não-
saber, da não-arte, e a aceitação de um apenas “querer fazer”, Agamben
opõe o procedimento que envolve a aventura. Segundo o filósofo italiano a
aventura pressupõe que exista um caminho até a experiência e que esse
caminho passe pelo extraordinário e pelo exótico como instâncias a serem
conquistadas e dominadas ao final do processo do conhecimento. Dom
Quixote faz experiência com a tradição e não a propõe como uma aventura.
Não se relaciona com a tradição para nela encontrar valores e critérios, nunca
|18|

toma posse da sua experiência e tampouco a reproduz com base num cânone,
portanto, não produz o conhecimento mediante a construção de um caminho
certo, de um “méthodos”, ou seja, de um ABC da literatura em direção ao
valor máximo da construção lingüístico-discursiva. Ao invés disso, o
procedimento de Dom Quixote se baseia em um caminho paralelo que é o
caminho da “quête” medieval, o caminho dos heróis que ele recorda em sua
relação de desvio da tradição. Ao contrário de todo experimentalismo
possuidor de conhecimento seguro, é o reconhecimento da ausência de
caminho (“a-poria”), de método, que fundamenta a única experiência possível
para uma literatura do presente. Pelo mesmo motivo a “quête” é o oposto da
aventura que na idade moderna se apresenta com o último refúgio da
experiência. Poderíamos com isso sublinhar que Jorge Luis Borges, ao
reciclar o valor de Quixote em Pierre Menard, el autor del Quijote se mostra
também um produtor da literatura do presente, pois Pierre Menard arrisca
com o desconhecido retomando e ao mesmo tempo abandonando a noção
do autor na modernidade.
Essa relação experimental teleológica que envolve toda aventura na
modernidade, isto é, a vivência e como conseqüência a autoridade exemplar
dela decorrente, como procedimento franqueador do conhecimento, conduz
toda experiência artística na modernidade ao cansaço. A aventura gera
cansaço, gera a fatiga nas retinas do poeta, relembrando aqui o poema, “No
meio de caminho” (1928)4, de Carlos Drummond e que teve seu valor
reciclado pelo poema “Fractal” (1991)5, de Carlito Azevedo. Devemos estar

4
No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no
meio do caminho tinha uma pedra.//Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas
retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma
pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra. (Drummond, Revista de
Antropofagia, n. 3, 1928. In: Alguma poesia, 2001).
5
No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro
e sólido/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido no/[meio da faixa de terreno
|19|

atentos que os vanguardistas brasileiros já falavam do cansaço. Mario de


Andrade em A escrava que não é Isaura anota que um “menino de 15 anos
neste Maio de 1922 já é um cansado intelectual. [...] O raciocínio, agora
que desde a meninice nos empanturram de veracidades catalogadas, cansa-
nos e CANSA-NOS” (Andrade, 1980, p. 251). O cansaço é algo produzido
por uma exaustão do projeto da modernidade. Se o problema da arte do
presente não pode ser definido pelo projeto moderno porque ele já provocou
seu próprio cansaço, não é possível apenas atualizar os procedimentos da
vanguarda, a saber, a paródia, o pastiche e a citação. Das análises em que se
toma o cansaço e a repetição como único caminho a percorrer decorrem as
visões da literatura contemporânea baseadas na ruptura ou continuidade
das gerações e nas filiações entre os trabalhos daqueles que se aventuraram
e se iludem com a sensação de que ao tomarem o espaço que seus antecessores
lhes deixaram estão construindo o futuro. Enganam-se, pois a fatiga é estéril
e a melancolia paralisa. É interessante nesse sentido pensar a literatura do
presente com os procedimentos da “busca”, ou seja, da “quête”, no lugar de
aventura. Na “quête” sobrevive uma noção de abandono do “projeto”.
Contudo, o tomar o caminho de um outro projeto, o da “quête”, pressupõe a
aceitação não da memória carregada de imagens da modernidade, mas a
consciência da “aporia” constitutiva de toda experiência, de todo projeto. A
literatura do presente se propõe a catar, a buscar catando, catando esmola,
catando aquilo que sobra, para então querer fazer com esses restos alguma
literatura. Isso se constitui em outro tipo de projeto. A aventura envolve um
projeto detentor de uma finalidade, um fim. A literatura do presente é um

destinada a trânsito/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido/no meio da faixa de
terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro e sólido.//Nunca me
esquecerei deste acontecimento/Na vida de minhas membranas oculares internas em que/[estão as
células nervosas que recebem/[estímulos luminosos e onde se projetam/[as imagens produzidas
pelo sistema/[ótico ocular, tão fatigas. [...] (Azevedo, 1991, p. 32).
|20|

meio que abandona o seu fim, e isso deve ser entendido na sua ambigüidade,
ou seja, ela é um meio sem finalidade. Penso que há textos que podem
demonstrar essa opção pelo abandono do projeto como possibilidade da
literatura continuar existindo em seu processo, em sua vida, e não como peça
que pertence a um museu de inutilidades. Transcrevo aqui alguns versos do
poema “Sigo”, da poeta portuguesa Adília Lopes, de seu último livro Le
vitral de la nuit. A árvore cortada (2006). O poema constrói fortemente essa
política da poesia do presente como acumulação sem dono, direção sem rumo,
isto é, a experiência produzida pelo poema tomada como “aporia”.

Sigo
o meu caminho
que é torto

Um corvo
me acompanha
e um porco

Passo
pela árvore
e pela forca

Passo
pela igreja
ao abandono

Não abandono
a igreja
ao abandono
(Lopes, 2006, p. 74).

Não está em jogo propriamente o abandonar a literatura, trata-se de


um abandono da concepção de poesia como produtora de experiência e de
|21|

conhecimento baseados num caminho seguro, na tradição. Os jogos


intertextuais são abandonados em suas funções anteriores e usados nessa
concepção anacrônica do tempo como procedimentos que permitem o tomar
posse do tempo histórico.
A mesma idéia do abandono do projeto, abandono da ação, ao se
abandonar a própria viagem, é desenvolvida nesse poema de Carlito Azevedo
“Do livro das viagens”, de Versos de circunstância.

Liliana Ponce não esqueceu o seu casaco no salão de chá


Liliana Ponce nem estava de casaco
(No Rio de Janeiro fazia um belíssimo dia de sol e dava gosto olhar
[cada ferida exposta na pedra)
Liliana Ponce, conseqüentemente, não teve que voltar às pressas
[para a casa de chá
(a garçonete com cara de flautista da Sinfônica de São Petesburgo
[não veio nos alcançar à saída
[acenando um casaco esquecido)
Desse modo Liliana Ponde chegou a tempo de pegar o avião
Partiu para a Argentina.
(Azevedo, 2001, p. 8).

As ações expressas pelo poema e que nunca se realizam de certa


maneira proporcionam ao poema a potencialidade de executar uma ação
sem ato, uma ação referida ao mesmo agente, uma ação em que agente e
paciente entraram em uma zona de absoluta indistinção, aquela que Deleuze
lê em Espinosa, a do passear-se a si, ou seja, constituir-se a si visitante,
mostrar-se a si visitante. São essas expressões que fazem coincidir a potência
com o ato e a inoperosidade com a obra.
E a própria Liliana Ponce diz em “El conocimiento siembra el
cuerpo”, de Teoría de la voz y el sueño:
|22|

[...]
Hablo en lo transitorio, busco en lo transitorio
y las señas pasan por el silencio de las cicatrices.

Después del mar, la tierra.


Después de la tierra, los ojos
– placer maternal.

En todas partes derramas las preguntas


que se alinean en el mapa de la sed.
Sin guía tus pasos me encuentran
y aun sin fruta tu boca es mordida.
Ahora mis brazos se alargan
para llegar a tu carne desnuda.

Y en el pensamiento tu semejanza me sostiene


para huir del temor o del éxtasis.
(Ponce, 2001, p. 45).

Nesses poemas não há lugar para o cansaço, uma vez que todos
esses temas tão fervorosamente trabalhados pelas imagens modernas são
tomados em seu aspecto tão fresco e ao mesmo tempo tão passado de si
mesmos, a bela imagem de Liliana de buscar o transitório no silêncio das
cicatrizes fala por si mesma. A “quête” não gera fadiga uma vez que nela
vive-se o ordinário e o familiar como extraordinário e o extraordinário como
familiar e nisso reside o seu valor que não é da ordem das grandezas e nem
pode, porque ela pode ser chamada ainda uma vez mais de literatura menor.
É literatura do presente, é literatura ordinária, isto é, de todas as ordens,
envolve todos os tempos, pois é anacrônica já que trata o extraordinário
como ordinário e vice-versa. Não provoca fadiga como na aventura
|23|

intelectual, porque no lugar de reinstituir a prática da memória, a memória


do modernismo, por exemplo, propõe a prática imemorial da “quête”, isto
é, a busca pela experiência como “aporia”.

O anacronismo como
método para produzir o presente

Oferecendo potência à leitura da história feita por Marx, Walter


Benjamin entende que uma força de destruição move a história, desse modo,
concluindo que há uma impossibilidade da regeneração da vida histórica
numa totalidade harmoniosa e que é impossível o futuro esquecer o
sofrimento e a corrupção do passado. Quanto mais catástrofes tanto maior a
história adquire seu índice negativo de transcendência, portanto, não há
lugar nesta concepção de história para a idéia de progresso, pois diz Benjamin,
“a idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia
de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo” (Benjamin,
1994, p. 229). Sem possibilidade de transcendência e marcada pela
negatividade a história se vê compreendida num tempo que nunca deixa de
ser presente, isto é, retomando as teses que nortearam o trabalho sobre o
drama barroco, a história estaria marcada por um traço de finitude no qual
a idéia de progresso e evolução inexistem, tudo muda no processo de vir a
ser e declinar-se, porém nada evoluciona ou aumenta infinitamente e
tampouco se progride. O passado advém em cada momento do presente em
que ele é reconhecido. Na 5ª Tese sobre o conceito da História, Walter Benjamin
expõe um conceito presente como instante de reconhecimento dos tempos
heterogêneos de que se compõe a história. “A verdadeira imagem do passado
perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. ‘A verdade nunca
nos escapará.’ – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em
|24|

que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é


cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente
se sinta visado por ela.” (Benjamin, 1994, p. 224). É dessa maneira que
podemos compreender que para Benjamin a história não seria o lugar6 de
uma sucessão progressiva de acontecimentos num tempo homogêneo e
vazio, mas sim o resultado de uma construção de um tempo “saturado de
agoras”. Nesta concepção de história não possuem valor as imagens
reconciliadoras entre o passado e o futuro, e mais uma vez aqui retomamos
a premissa deste trabalho que, fundamentado na leitura operada por Walter
Benjamin, não há que se ponderar sobre a história, bem como sobre a história
literária como uma conciliação de tempos, como contemporaneidade, uma
vez que o tempo presente justamente se constrói com uma atitude de recusa
à harmonia na qual está baseada a totalidade simbólica. Assim, não é motivo
de escândalo quando as imagens presentificam a injustiça ou a mentira,
pois o continuum da história foi explodido, outros detalhes chamarão a atenção,
outras combinações serão feitas, uma outra leitura se constrói. Que
combinações serão possíveis para a retomada das discussões sobre a injustiça
ou a mentira, que combinações serão possíveis para retomarmos as imagens
de Auschwitz. Benjamim propõe que para figurar a verdade e a justiça todo
ato criativo terá que se manter voluntariamente em silêncio a respeito delas.

6
Em A ideologia da estética, Terry Eagleton opera uma leitura da concepção de tempo em Walter
Benjamin que contrasta à formulação de uma de suas teses feita pelo próprio Benjamin. No capítulo
ironicamente intitulado “O Rabino Marxista”, Eagleton afirma categoricamente que o tempo na
leitura messiânica da história de Benjamin fica reduzido a um espaço de repetição. Diz Eagleton: “O
tempo, nessas condições, é reduzido ao espaço, limitado a uma repetição tão agonizantemente vazia
que deve pôr a tremer na sua fronteira uma epifania salvífica.” Se retomamos a tese Sobre o conceito da
História de número 14 poderemos verificar que explicitamente Walter Benjamin diz que a história
não é o lugar de um tempo homogêneo e vazio, mas sim de um tempo heterogêneo. “A história é
objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’”. Portanto, para Benjamin o tempo histórico nunca se reduz a um espaço, a um território, ele
sempre será tempo e, mais, um tempo que se constitui com base em acúmulos de ruínas de outros
tempos, dessa forma, então, um tempo como lugar, no entanto, um lugar mais originário que o espaço.
|25|

No entanto, este silêncio voluntário traz, nas camadas de tempo com as


quais deliberadamente joga, um turbilhão de imagens que presentificam os
conflitos nas figuras que constrói. Portanto, é um silêncio pleno de
ambigüidades uma vez que a obra acontece no intervalo entre o silêncio e a
figuração, o “evento-obra” não se materializa, ao contrário, ele abdica de se
situar num espaço conhecido, seguro e delimitado dos campos de
conhecimento autônomos da modernidade.
Nesse sentido, os fundamentos científicos e políticos baseados em
concepções autonômicas ou concepções que ratificam pertencimentos que são
saldados com os exílios dos indesejáveis não podem ser mais utilizados como
paradigmas de nossas práticas críticas. Sabemos já que o resultado final dessa
opção é Auschwitz, isto é, a lógica do campo como paradigma da racionalidade
moderna, segundo Giorgio Agamben. Considerar a literatura fora de seu
estatuto de autonomia é uma opção que alcança uma refinada sintonia com a
temporalidade de um agônico presente, caracterizado pelo trânsito entre
fronteiras antes muito rigidamente separadas, trânsito de informações e modos
de existência que modificam as antigas configurações. Apesar de ser uma
modificação que implica a permanência do mesmo, como assim analisou Mario
Perniola sobre a noção de trânsito que acompanha a produção do pensamento
produzido no presente: “O trânsito é um movimento do mesmo para o mesmo,
onde, porém ‘mesmo’, não quer dizer ‘igual’, porque implica a introdução
de uma diferença, de uma mudança, que é mais profunda quanto menos
chamativa.” (Perniola, 2000, p. 28-29).
Os estudos literários que não querem ser tributários da teoria que
produziu Auschwitz não devem buscar as marcas que justamente fazem da
literatura, como toda produção artística, um campo de frações segmentadas
ou territórios autônomos. Buscar a categoria do presente nas obras que
analisamos não tem o sentido de reencontrar a história cultural de cada
época nessas obras, mas sim de descobrir e reconhecer a sua vida interior,
que longe de ser apenas documento histórico pertence a um mundo textual,
|26|

portanto tanto ficcional quanto histórico, porém um mundo no qual os


textos declaram e ratificam sua potência discursiva, sua potência de “ser
não-”. Vimos anteriormente que a literatura do presente abdica de sua prática
teleológica, isto é, não tem mais a pretensão de se auto-instituir bem como
abdica de toda pretensão instituidora. A literatura do presente abre mão de
agir e, quando age, o faz enquanto negativo, ao revés. A literatura é um ato,
segundo Jacques Derrida, no entanto, esse ato está muito mais próximo
daquilo que Giorgio Agamben compreende com base nas reflexões
formuladas por Aristóteles, no De anima, isto é, como um ato que conserva
em si a “potência de não-”. Giorgio Agamben explica que “a interpretação
que propomos obriga-nos a pensar de uma forma nova e não banal a relação
entre potência e ato. A passagem ao ato não anula nem reduz a potência,
mas esta se conserva no ato como tal e marcadamente na sua forma eminente
de potência de não (ser ou fazer)” (Agamben, 2006, p. 18). É disso que se
trata: a literatura não é um ato qualquer de linguagem uma vez que o ato de
linguagem se esgota na sua comunicação. Após o efetivo cumprimento da
comunicação ele não existe mais como potência comunicativa.
Muito se discute e já se discutiu nos últimos 30 anos sobre a exaustão
desse modelo autonomista que tem seu fundamento na reflexão sobre a
literatura como atividade transformadora e construtora de um outro tipo de
humanismo, constatado ainda como necessário mesmo após o fracasso do
humanismo europeu no início do século XX que não conseguiu evitar a
implantação da lógica do campo enquanto lógica hegemônica na
modernidade. Depois das duas guerras mundiais a questão já não passava
mais por ensinar a literatura na sua manifestação e materialização artística
das línguas nacionais como estratégia formal para a consolidação dos novos
Estados Nacionais modernos e ocidentais. No entanto, isso não significou a
suspensão de uma metodologia de ensino de literatura baseada teoricamente
na história e no cânone dessas manifestações artísticas em língua nacional.
|27|

Cânone esse, por sua vez, fundado mediante o critério de seleção que
pressupunha um estar de acordo das obras literárias com os temas e assuntos
da nacionalidade, no caso do Brasil, citemos, apenas para efeito de exemplo,
o destaque dado ao tema da exuberância da natureza local, dos problemas
de adaptação do ser humano a esse meio que apesar de maravilhoso era
adverso, o problema do subdesenvolvimento social, bem como da
cordialidade brasileira e seu avesso superficialismo de ritual, entre outros.
Esses parâmetros, digamos, não deixaram de estar presentes no momento
em que a rediscussão do papel da literatura é proposta, isto é, após as guerras
na Europa e após os fracassos na consolidação das repúblicas democráticas
na América Latina. Ainda valorizávamos nas nossas metodologias os critérios
autonômicos da língua nacional, dos meios de produção especificamente
literários e nacionais e de um público receptor nacional. Contudo, o que
estava em discussão era: qual o papel que a literatura teria na nova tentativa
de construir o futuro? Qual seria sua função? Detectar a função de algo
significa compreender a sua experiência com a história e com o tempo.

O método de uma política

Em Infância e História, Giorgio Agamben ressalta que cada


concepção da história vem sempre acompanhada por uma determinada
experiência com o tempo. Sendo assim, não se repensa uma sociedade sem
antes reformular sua experiência com o tempo e não é possível desenvolver
uma nova cultura sem uma modificação profunda dessa mesma experiência.
Em nossos dias experimentamos uma nova configuração do tempo. Estamos
diante do tempo como que em um caleidoscópio, toda a experiência histórica
que parece ser-nos oferecida a cada instante é mediada por uma enorme
quantidade de dispositivos que têm a função de capturar nossa subjetividade
|28|

e convertê-la em elemento produtivo7. Entretanto, cabe-nos interrogar sobre


esse tempo pleno no qual tudo parece estar ao alcance de nossas mãos e sobre os
dispositivos que governam a produção advinda do nosso relacionamento com
esse tempo. Ou melhor, o que valorizamos como experiência produtora de
conhecimento quando definimos que tipo de temporalidade organiza nossa
experiência de escrever sobre literatura hoje? A experiência que definimos como
válida é aquela experiência segura, baseada no caminho já trilhado da experiência
de outro, uma experiência que se fundamenta numa temporalidade homogênea
cujo resultado é a adesão a um conceito de tempo evolutivo e ainda progressivo?
Ainda pensamos em movimentos literários, escolas, autores e cada um com seu
tempo e seu espaço únicos? Ainda pensamos a literatura como se ainda
estivéssemos no tempo dos Estados Nacionais do século XIX no qual a literatura
transformou-se em matéria e cuja lógica esteve submetida à lógica disciplinar da
sociedade de massa? Ainda pensamos que precisamos ter uma língua comum e
uma literatura comum para que constituamos uma nação? Uma concepção de
literatura com esses perfis serve a uma prática de despolitização, por mais que a
intenção primeira fosse exatamente a de politizar, mais ainda, as análises que
criamos baseadas nessa concepção de literatura são tributárias da “biopolítica”
do século XIX.
A crítica do século XXI caracteriza-se por um estar entre os estatutos
do pré-moderno, do moderno e o de um pós ainda por vir. No entanto,
urge pensar a literatura em seus aspectos intrínsecos artísticos e políticos sob
pena de perdermos a potência da multidão da qual somos parte e que produz
em nós novas subjetividades mais adequadas e, ao mesmo tempo, mais
críticas à noção de progresso linear e evolutivo.

7
Para uma melhor compreensão do procedimento de captura de nossa subjetividade operada pelos
dispositivos conferir: “O que é um dispositivo?” (Agamben, 2006).
|29|

Anacronismo: um método impolítico

Para refletir sobre o movimento entre as linguagens e a sua não


delimitação em territórios autônomos e estanques gostaria de citar mais uma
vez Giorgio Agamben quando responde à questão sobre o que é um
movimento, compreendendo-o como algo falacioso. “Se, porventura,
quisermos pensar de forma diferente o conceito de biopolítica, como o faz
Toni (Negri), mesmo que em perspectiva diferente, e da qual eu me sinto
muito próximo, se quisermos, pois, pensar a intrínseca politicidade do
biopolítico – se o elemento biopolítico é visto como político desde sempre, e
por isso não precisa ser politizado através do movimento – então precisaremos
repensar, desde a raiz, o conceito de movimento. Não poderemos usar a-
criticamente o conceito de movimento se, por exemplo, quisermos pensar a
politicidade do elemento biopolítico.” (Agamben, 2005, p. 2). Dessa forma,
devemos nos interrogar sobre a categoria política do “biopolítico”, por
exemplo, dos pressupostos que promoveram no século XIX a aplicação da
terminologia e, conseqüentemente, a incorporação de métodos de estudos à
literatura e à sua história cujo resultado foi o acréscimo ao corpo informe da
literatura pré-moderna da noção de movimentos e escolas literários e a
transformação da literatura em disciplina escolar a qual se configurava com
base no movimento linear temporal e espacial entre esses movimentos e
escolas, ou seja, a instituição da história da literatura e a sua transformação
em entidade autônoma. Portanto, para podermos fazer a crítica à noção
autonomista e moderna de literatura, que rejeita a concepção de temporalidade
do presente e de literatura do presente, há que se recuperar e se refletir sobre
o que de político havia nos textos que vieram a compor os organismos que
foram posteriormente chamados de escolas literárias. Em seu estado pré-
moderno a literatura era um corpus pelo qual o político se constituía e
transformou-se, na sua forma autonomista e moderna, em organismo, ligada
a uma concepção de povo demográfico-biológica da qual passou a ser
|30|

expressão, e, como tal, isto é, como organismo biológico a literatura tornou-


se “impolítica”. O que não significou que a literatura não falasse do político.
É claro que o político continuou a estar presente nesse discurso, porém,
esteve presente mediante a identificação de uma cesura interna ao seu
organismo “biopolítico”, isto é, “impolítico”, cuja função é a de justamente
permitir a sua politização. A identificação dessa cesura é tarefa dos assim
chamados no século XIX movimentos literários, escolas literárias, que irão
identificar o elemento estranho a esse corpo biológico, isto é, o que não é
literatura, ou seja, a publicidade, as artes visuais, a moda, a cultura popular
etc. Dessa forma, o político transfere-se para fora do corpo literário,
identificando o que é estranho a esse discurso. O político na literatura passa
a ser tarefa de algo que lhe é exterior no mesmo momento em que procura
criar o efeito de interioridade, isto é, criar o efeito de fazer-nos sentir como
se estivéssemos no seio de uma calorosa família quando na verdade nos
encontramos num campo de refugiados.
E em que se baseia o organismo biológico da literatura a partir do
século XIX? Se o elemento político não é o texto literário, mas o movimento
como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade?
A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade
de identificar no interior do organismo literário um inimigo, ou seja, um
elemento biologicamente estranho: o não-literário, o não-nacional, o não-
contextualizado, o não-idêntico a si mesmo etc. Onde há movimento sempre
haverá uma cesura que corta corpo, que o divide, nesse caso, identificando
um inimigo. Eis por que me parece tão urgente repensar o conceito de
movimentos e escolas literárias, dentro dos quais a noção de literatura do
presente, isto é, a literatura e o político, é impensável. A conseqüente
transformação da literatura em algo que lhe é exterior, ou seja, em forma,
em cânone e em memória a ser cultuada e não vivida obstrui a passagem
que franqueia a relação entre arte e pensamento.
|31|

O corpo político da literatura e a


metodologia inclusiva-não-excludente

Não precisamos tomar uma decisão política sobre o “impolítico”, ou


seja, excluí-lo ou incluí-lo é tarefa que leva à lógica do “campo”, que é restritiva
e punitiva desde sua concepção moderna, segundo Giorgio Agamben, ou
seja, é uma zona circunscrita na qual a lei foi suspensa. A decisão política
sobre o “impolítico” pode adquirir a forma de uma cesura formal, étnica ou
racial, textual ou lingüística e, dessa forma, fazendo-nos exercitar o ato de
excluir ou incluir e até mesmo o de diluir para fazer desaparecer. O resultado
dessa operação é a exclusão do critério excludente, seja ele o da forma, isto é,
dos gêneros textuais, da tipologia de textos, seja ele o das matérias, isto é, o da
língua nacional ou materna, o dos campos de conhecimento. Contudo, aquilo
que num primeiro momento pareceu inclusivo logo a seguir foi substituído
por outra fronteira, outro critério de seleção e combinação.
Não é isso o que reside na idéia de uma metodologia do anacronismo
para produzir crítica/ensino de literatura. Essa metodologia tem que ser
inclusiva sem ser excludente, portanto, não pode obedecer a critérios de se
ter uma língua, de se ter uma identidade lingüística, de se pertencer a um
gênero textual ou de se vincular a um campo artístico ou não. Tampouco
ela poderá apregoar uma tipologia textual ideal ou apontar novas escolas
literárias ou estilos artísticos a serem valorizados.
Diante desse novo desafio produzido por uma concepção anacrônica
que compreende a literatura como um problema do pensamento, temos
que lidar com a questão de que o currículo na escola não pode ser definido
antes do fato e, novamente com Agamben dizemos, não há experiência
cujos caminhos, isto é, cujos métodos possam ser definidos a priori, e, por
conseqüência, não há processo algum de aquisição de conhecimento antes
do ato de colocar-se numa posição de não-saber, posição de risco total.
Portanto, a experiência e a aquisição do conhecimento ocorrem após o fato,
pos factum.
|32|

Pensar uma nova metodologia para a literatura, seu ensino e sua


crítica, é pensá-la como experiência de risco, experiência com o que é
estrangeiro a nós mesmos e que deve ser visto sob uma perspectiva familiar,
ou seja, é pensar a literatura como aquilo que não se enquadra no contexto
ou do texto que é estranho a si mesmo, contudo, que passa a ser visto com
base na sua mais íntima relação consigo mesmo. Pensar a literatura na sua
experiência sem a garantia de um caminho seguro já trilhado é assumi-la
em sua vida interior, sua vida a meio do caminho, que “ainda-não-se-
realizou” na sua realização, vida essa composta por formas originárias que
se caracterizam por serem a soleira da potência do mundo empírico da
literatura frente à sua correlação entre tantas outras formas de vida interior.
Formas essas que também devem ser vistas mediante uma concepção de
lugar, isto é, de “topos” de conhecimento que são igualmente entendidos
como lugares, “topoi” de não-saberes, como, por exemplo, a arte, a psicologia,
a biologia, a história e a própria idéia de crítica literária, o que significa
pensar a literatura como limite de si mesma e como negação de si mesma,
no próprio ato de ensiná-la. Giorgio Agamben pergunta em “O fim do
poema” o que restará ao poema depois da sua transformação em discurso
prosaico? A sua resposta tem o sentido de abrir o poema para o futuro e não
encerrá-lo num discurso autonomista e tampouco dissolvente. Desse modo,
Agamben, dirige o fim do poema para um lugar – e não um espaço – no
qual ele reste como pensamento crítico, ou melhor, pensamento “dynamico”:
o pensamento-potência. Entretanto, nesses nossos tempos de trânsito, de
transição de tempos, de temporalidades incessantes, o pensamento de Walter
Benjamin permanece ainda válido. Diz-nos Benjamin, no seu ensaio sobre
o tradutor e no livro sobre o Barroco, que aquilo que restará das obras
literárias depois do fim da literatura “perviverá” como ruína, como traço,
nas obras das gerações vindouras. Portanto, a tarefa da literatura do presente,
a tarefa de uma metodologia de aproximação do texto literário, hoje, depois
do fim da história, do fim da literatura e do fim da crítica consistirá em
|33|

identificar e reconstruir a vida interior ou natural, como prefere Benjamin,


“das” obras em vez de se reconstruir “as” obras e “as” criaturas. É importante
não perdermos a literatura na literatura, e para isso teremos que abandonar
a idéia mesma de literatura. Não importa identificar no texto as diversas
linguagens ali presentes, e constatar se estão, ou não, adequadas ao contexto
que as produziu, importa é não deixarmos escapar, bem como preservar, a sua
“potência de não-” da qual falávamos anteriormente, essa sim verdadeiramente
política. Potência essa que iremos encontrar em vários personagens literários,
como por exemplo, Bartleby, Gregor Samsa, Joseph K., Mendonça, G. H.,
entre tantos outros que poderiam constituir outras comunidades que não
formam laço social. Essa comunidade não pretende formar outro cânone, já
que está construída sob uma concepção de literatura que tem a chance de
abdicar da autonomia e aceder a uma soberania que, mesmo não sendo
universalista nem relativista, permitirá a reflexão sobre os afetos humanos e a
reorganização efêmera de comunidades literárias mais efetivas.

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PRESENTE

I ANACRÔNICO
POESIA
E
PENSAMENTO
INFÂNCIA, ARQUIVO E EXPERIÊNCIA1

Uma forte tradição moderna latino-americana, que se estende ao


momento das afirmações de identidade cultural mediante a produção literária
em língua nacional, designava ao artista da linguagem a tarefa de inventar
sua obra enquanto fundava seu país. Para cumprir sua tarefa, os artistas
recorriam a uma Arkhé que, pensada em seu sentido de arquivo como origem,
oferecia-lhes um repertório de materiais culturais para inventar sua obra.
Entretanto, no contexto desta mesma Arkhé, tomada em seu sentido que
também lhe atribui Derrida em seu livro Mal de arquivo, quer dizer, como
mandato, poderíamos pensar que estes artistas tinham o poder de ordenar,
eleger e propor que tipo de material cultural iria fazer parte desse mesmo
arquivo original. Interessa-me, nesse sentido, pensar quais são as funções
que tem a noção de arquivo em trabalhos poéticos que se apresentam como

1
Este texto foi apresentado como intervenção no seminário Archivo & Experiencia, coordenado pela
professora Dra. Luz Carranza-Rodríguez, na Universiteit Leiden, Holanda, em fevereiro de 2007.
|42|

algo mais além das categorias modernas. Para construir uma reflexão sobre
isso escolhi dois poemas que me pareceram estar em sintonia com o
pensamento do presente. Em seu livro Enigmas, Mario Perniola define o
pensamento do presente como algo que, sendo mais que um objeto do
pensamento, está marcado por um pensar-se a si mesmo que é operado por
um anular-se para poder escutar o presente em todo seu não-sentido, o
pensamento do presente cala seus próprios desejos, suas próprias afecções
desordenadas, suas próprias opiniões íntimas, portanto, não o projeto está
ausente, para não antepor obstáculos e esquemas que impeçam a compreensão
da história. O pensamento do presente posiciona-se como lugar de trânsito,
como passagem e ainda como limiar em relação aos fenômenos que nos
surpreendem e nos perturbam. O pensamento do presente parece possuir
uma tarefa distinta daquela que tinha a experiência moderna. Este parece
ter que se apropriar de uma experiência que não pode mais ser compreendida
de forma exclusiva, isto é, não pode lançar mão de um repertório original,
inicial, fundador de uma comunidade delimitada seja por uma experiência
linear e subjetiva com a tradição que ele mesmo construiu, seja delimitada
por uma vontade de aproximação não-crítica com outras tradições que, por
sua vez, são frutos também de uma experiência de resgate de origens originais.
Proponho, nesse sentido, a análise de dois poemas que apresentam
experiências diferentes frente aos arquivos modernos, quer sejam, “La
inocencia”, de Arturo Carrera e “Hiléias”, de Josely Vianna Baptista. A
primeira delas se caracteriza pelo desnudamento, pela deserção de toda
pretensão de originalidade fundadora do arquivo, e a outra pela vestidura
por meio da superposição de variadas peles, vários tecidos, formando com
isso um tipo de sítio arqueológico onde as camadas fazem a vez dos arquivos
originais.
|43|

O desnudamento

O trabalho do poeta argentino Arturo Carrera, que nasceu em


Pringles, na Província de Buenos Aires, em 1948, vem produzindo um
efeito na literatura latino-americana que o ingressa nessa temporalidade do
presente. Seus livros e poemas refletem a tradição com a qual dialoga, bem
como a minimaliza de uma maneira muito própria com vistas a refletir
sobre o tempo e sobre o presente. Entre seus livros mais importantes estão
Arturo y yo (1983), Children’s corner (1999), Tratado de las sensaciones (2002),
Potlatch (2004) e Noche y día (2005). O poema que analisaremos dá nome
ao livro de Arturo Carrera, La inocencia, publicado também, como o livro
Noche y día, em 2005, e trata de assinalar com a epígrafe inicial sua opção
pela inocência como experiência limite, como possibilidade em direção a
uma poética que produza efeitos. A citação da epígrafe foi tomada de
Kierkegaard, e diz “La inocencia es el arma que me resta”. No livro La
inocencia, Arturo Carrera volta a um de seus lugares discursivos mais
característicos, a infância, no entanto, dessa vez para investigar um mundo
original perdido que está composto por uma inocência que produz uma
experiência autêntica cujo efeito é alterar nossa relação com o tempo. Em
seu livro Infancia e Historia, Giorgio Agamben toma a experiência “in-
fans”, situada no pólo oposto ao da experiência com a morte, como um
momento de ameaça à oposição entre os significantes da diacronia e os da
sincronia, momento de ameaça a nossa concepção de tempo como oposição
entre tempo histórico, teleológico, e o tempo utópico imprecisamente infinito
da sincronia. A idéia da infância produz na reflexão de Agamben significantes
não-estáveis, e assim o diz na versão para o castelhano de seu livro: “así como la
muerte no produce directamente antepasados, sino larvas, del mismo modo
el nacimiento no produce directamente hombres, sino niños, que en todas
las sociedades tienen un particular estatuto diferencial. Si la larva es un
muerto-vivo o un medio-muerto, el niño es un vivo-muerto o un medio-
vivo” (Agamben, 2001, p. 122).
|44|

Nesse sentido, o morto e a criança devem ser entendidos como


fantasmas, como intermédios, como instantes nos quais a linguagem
alcançaria sua possibilidade máxima. Um signo larva pode criar instabilidade
até o ponto de estabelecer simultaneidade, isto é, coexistência de extremos e,
dessa forma, suspender o tempo evolutivo. Diz ainda Agamben: “los niños
y las larvas – como significantes inestables – representan en cambio la
discontinuidad y la diferencia entre ambos mundos. El muerto no es
antepasado: tal es el significado de la larva. El antepasado no es el hombre
vivo: tal es el significado de niño” (Agamben, 2001, p. 123). Da mesma
maneira, a infância pode ser tomada como potência de falar2, uma vez que
é a conjunção momentânea entre passado e presente.
O poema “La inocencia” sintomaticamente tem como epígrafe um
fragmento de um texto do escritor Daitsetsu Teitarô Suzuki (1870-1966)
que diz “Debemos reconquistar la inocencia a través de largos años de
ejercitación en el arte de olvidarnos de nosotros mismos. Logrado esto,
pensamos sin pensar. Pensamos como la lluvia. De hecho somos la lluvia.”
Sabemos que a obra de Suzuki influenciou o músico John Cage, os escritores
Jack Korouac e Allen Ginsberg. E não é a primeira vez que Arturo Carrera
cita a Suzuki em sua obra. No livro Arturo y yo como epígrafe ao poema
“Un día ‘La esperanza’”, que abre o volume, encontramos então outra
epígrafe de Daitsetsu Teitarô Suzuki: “La vida es una pintura sumi-é que
debemos ejecutar de una vez y para siempre, sin vacilación, sin intelección,
sin que sean permisibles ni posibles las correlaciones.” Por que não podemos
na visão de Suzuki tornar possíveis as correlações? Parece que a resposta a
obra de Arturo Carrera vem oferecendo. As correlações desviariam do

2
Pode-se desenhar uma órbita para paradiso, esse significante poderoso, potens, o que tem virtude
e eficácia, que inclua aquela faculdade a que se refere Giorgio Agamben como “potenza de
parlare”, a que é capaz de articular a gramática do verbo poder. Sendo assim, acontece uma
articulação de sentidos para esse significante, articular uma língua com a qual se construam as
relações entre a imagem do passado e a imagem do futuro (Agamben, 2001, p. XII).
|45|

problema crucial para a preocupação neobarroca do ano de 1984, da mesma


forma que caracteriza o que Perniola propõe como pensamento do presente:
que é o desvio de si mesmo, uma vez que correlacionar necessita ainda de
uma noção sujeito forte. Já na epígrafe de Suzuki do poema “La inocencia”
se reivindica a reconquista da inocência mediante o esquecimento do sujeito
e a recolocação da experiência pura até o ponto de que pensemos com a
chuva e de fato nos convençamos de que somos a chuva. E assim o poema
também vai construindo seu procedimento que não tem em seu campo de
expectativas a criação de uma linguagem articulada ou um estágio de
desenvolvimento mais evoluído em relação à idade infantil. O que ocorre é
a chegada ao status divino de uma língua onde tudo é.

La inocencia

No está lejos de los dioses


Aquel a quien vas a abrir los labios
Noche y día

Le hablabas y los repitió:


“No es lengua lo que tenía,
era un colador de insípidos placeres.”

Y fue sentido de la muerte


en la canícula secreta el sonido;

un niño que no hablaba mucho decía secreto


sin saber que era secreto:
|46|

en la violencia de sus pasiones mínimas


giró para nosotros, giró para mí.

¿En qué umbral dejó apenas


un yo que parecía un tú a cada palabra,
un poco de futuro deseo?
(Carrera, 2005, p. 97-98).

Esse processo de chegar a uma linguagem não articulada ocorre


mediante uma aprendizagem na qual há uma passagem, um trânsito de um
“eu” a um “tu”, isto é, “un yo que parecía un tú”. Aqui, além do mais, constitui-
se um momento de desnudamento de um sujeito, um “yo” que aprende a ser
“tú”. Contudo, esse “tú” não tem a pretensão de ser um outro “yo”, de fundar
outra identidade. Desse modo, a infância com sua inocência conquistada,
contraída, e também, nesse sentido, fundada, estaria assemelhada a um signo
“larva”, que é uma memória sem conteúdo. A inocência contraída, esse “tú”
que guarda semelhanças com o “yo”, jamais se tornará substantiva, porque
sua memória não tem conteúdo próprio e necessita do reiniciar do ciclo de
vida natural, de uma vida que se define por seu “vir-a-ser” que se faz de
ruínas de outras vidas que por sua vez já se extinguiram, isto é, de tantos
outros “tús” que também já se transformaram em fragmentos.

Una tangencial escritura


colmada de paciencia. Y un abrazo
como.
¿Cómo hago para contornear
Lo que me dice tu pensamiento?
|47|

¿Cómo deshago lo que te dice el mío


Antes de que te advenga nuestra palabra?

Antes de que en la apariencia todo sea


la leve confusión de un poema… o de
la aburrida novela que no quiera advertir
el impreso golpe de su mentira;

o lo que es peor: desvía su poca verdad casi eterna,


casi natural,
hiriente y pasajera:

…que somos la mascota del tiempo.

que somos la mascota


de una felicidad inesperada.

Que nos lleva de paseo de vez en cuando


al atardecer. Y que volvemos de sus recurridos
con la lengua afuera,
pero con todo para callar y soñar.

La mascota de unas formas,


(Carrera, 2005, p. 98-99).
|48|

Este processo de formação direciona-se ao desnudamento do sujeito


que se olha e se percebe como uma mascote, uma mascote do tempo, mas
de um tempo que está cumprido. O “yo” que está aprendendo a seu “tú”
faz suas eleições, isto é, seleciona com base em um arquivo que não se
constitui de coisas que deveriam ser recolocadas, repetidas, resgatadas, mas
nele, nesse arquivo, habitam toda memória do mundo, memória de
fantasmas, daquilo que já foi, no entanto, encontra-se composto por coisas
que virão a ser e que obedecem a outro movimento que não aquele em
direção ao fim da história, ao domingo da vida, mas que mantém a ação em
direção à possibilidade mesma da memória, isto é, do arquivo continuar
existindo. Entretanto, a lógica desse tipo de arquivo é outra. A eleição e a
combinação dos elementos que compõem o arquivo no poema de Arturo
Carrera se encontram sob:

(De) una complejidad como la luna

creciente y decreciente, y llena y


nueva y en el almanaque, negra

rayada,

de un desorden en el punto de igualdad


de dos pasiones que pueden saber a goce,
y a desdén y a sexo

y a crecer y multiplicarse como todo


|49|

o apenas

como crecen las piedras y los desiertos:


en un invisible que no podemos tocar
dado que su crecimiento feliz continúa…
(Carrera, 2005, p. 98-99).

E esta é a lógica das “Sicigias”, isto é, das conjunções e oposições da


lua com o sol, trata-se de conjunções coordenadas pela potência empírica
das coisas, das “sintesis misteriosas” da natureza, da qual fala Goethe no
livro A metamorfose da plantas, e que Walter Benjamin recoloca na discussão
sobre a concepção de arte no barroco com o conceito de “ponderación
misteriosa” retomado, obviamente, de Baltasar Gracián. Esse operar da arte
por conjunções misteriosas, uma maneira de refletir e se reconectar com as
formas primordiais da arte, é tema de outro poema de Arturo Carrera do
livro La inocencia, intitulado, justamente, “Las Sicigias”.

Me acerqué a la pileta del molino


¿oí, yo
esa querella del sapo
del potlatch?

¿hablé, yo
con las ácidas sustancias que lo
conmovían?: allá,

conjunciones,
sicigias […]
(Carrera, 2005, p. 39).
|50|

Arturo Carrera já retomara os procedimentos da infância, isto é, da


língua que não fala, para desestabilizar os signos do arquivo moderno em
outros livros seus. Em Potlatch, volta à infância para propor uma história e
uma análise do dinheiro. O arquivo infantil tem seu lugar na história
peronista da Argentina, mas este lugar está dado não pela fidelidade com
que os fatos são reconstituídos, mas sim pela confluência entre os signos e o
poder de nomeação que a escritura pode ter sob a perspectiva da infância.

Que la confidencia efímera no se transforme en parábola. Pero


necesito escribir un breve prólogo. Escribo este libro como
continuación de los anteriores, donde las series tíos, primos,
abuelos, padres, abuelas, tías, primas, pequeñas parcas... parecían
carecer todavía de esa amalgama de representaciones que une, liga
los órdenes que simulan la gran indiferencia de la infancia. Y ese
pega-pega es el dinero. Y sobre todo ese aparente apagón de
sentido: el dinero en la infancia. Cuando no sabíamos lo que era –
cuando era sólo el eco de un valor que pudo llamarse música. Y
cuando no se había esclerosado bajo ninguna denominación donde
juntos, la palabra y el dinero, son forzamientos, ‘inequidades
metafóricas’. (Carrera, 2004, p. 9).

As “ineqüidades metafóricas” são as desproporcionalidades


cometidas pelo homem em sua faculdade, isto é, com o poder de reler sua
vida sob uma concepção de linguagem e de tempo em que as coisas todas
estão ao alcance da mão. O tempo no trabalho de Arturo Carrera está
cumprido como “in-fans”. Nele tudo se encontra disponível, e o ingresso
nessa temporalidade está condicionado a um despojamento de si e a uma
produtividade baseada no dispêndio. Em Arturo Carrera essa produtividade
dispendiosa já começa por um abrir mão da própria língua, da linguagem
que o produziria enquanto um sujeito. Dessa maneira, o abrir mão da
linguagem tem como resultado uma poética do desnudamento, uma poética
na qual o sujeito se desnuda e se despoja.
|51|

A vestidura

O outro poema proposto para esta análise foi escrito pela poeta
brasileira Josely Vianna Baptista, que nasceu em Curitiba, no Paraná, em
1957. A poesia de Josely traz consigo os traços do arquivo ao qual recorre e,
também sob o mesmo princípio da poesia de Arturo Carrera, desdobra o
arquivo, porém, no lugar de minimizá-lo, o sobrepõe a outros arquivos.
Com Francisco Faria desenvolveu um projeto de superposição da poesia à
arte visual. Desse trabalho surgiu o livro Corpografia (1992). O projeto
continuou sendo executado com a série Os poros floridos (2003). Superpõe-se
também ao trabalho poético de Josely sua atividade de tradutora. Desde
1985, com a tradução de Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier, sua intensa
atividade como tradutora de língua espanhola ao português – traduziu uma
série de obras como as de Lezama Lima, Severo Sarduy, Néstor Perlongher,
Simón Bolívar y Borges – nos permite refletir sobre sua obra como frutos
de eleições que produzem efeitos de superposição e mobilidade entre
distintos arquivos do mosaico latino-americano. O poema que proponho
para a análise da potencialidade do arquivo no nosso presente, arquivo este
composto de imagens anacrônicas que se encontram todas ao alcance da
mão, isto é, imagens que compõem um tempo pleno, foi escrito por Josely
Vianna Baptista no começo da década de 1990 e tem como título “Hiléias”.
Sabemos que o termo “hiléia” vem de hylaia, da floresta, e que foi
usado pelos viajantes naturalistas dos séculos XVIII e XIX para designar a
floresta selvagem. Na “hiléia” da poeta Josely Baptista se sobrepõem os
arquivos de Humboldt, de Buffon e de Góngora. De Humboldt, a própria
formulação do vocábulo hylaia utilizada para designar a floresta amazônica,
de Buffon, a idéia de que na América prevalecia um estado de evolução
retardada tanto para as plantas e animais como para o ser humano, os
indígenas, e, por fim, de Góngora, sua visão pessimista do império
ultramarino espanhol, entendido como uma desgraça e fruto de vaidade
|52|

trágica, conforme podemos ler no poema Soledad Primera. As imagens do


grande poema de Góngora tratam também de sobrepor o arquivo lingüístico
retórico da poesia de sua época, natureza em analogia com a vida humana
compreendida no seu aspecto transitório, excessivo, e carregada de erotismo,
ao arquivo das imagens de uma concepção de vida austera e em
conformidade com a natureza boa e domesticada dos estóicos gregos.
Góngora justamente está nomeado no poema de Josely Baptista. Há um
tropo, uma figura de linguagem, que o faz presente no poema, “orquídea
rara góngora buffonia”. Porém, esta é uma figura de similitude que está
além de sua função analógica. Sabemos todos que há uma orquídea rara na
Amazônia que tem seu nome de batismo em homenagem à admiração que
Humboldt devotava à floresta tropical. Ele próprio é a “orquídea rara”,
mas que é também, mediante o tropo, “góngora buffonia”, seu extremo
oposto, isto é, o menosprezo frente ao continente americano. Estas imagens
superpostas funcionam como estratos de matéria destruída aos quais o
repertório poético recorre para compor o novo tecido poético. O tecido poético
reflete, cria efeitos com as imagens de que lançou mão.

[...] que pulse, repulse sóis, tufos, violetas sob um céu pedrento,
de chuva ou de vento, e traduza os fólios da imagem da pele em
nuvem lazúli, bulbo de veludo e pulse, repulse sóis, tufos, lilases
ao ler os infólios da imagem da pele em palimpsestos [...] (Baptista,
1992, p. 39).

O procedimento construtivo do poema “Hiléias”, de maneira distinta


ao desnudamento que encontramos na poesia de Arturo Carrera, ocorre por
acumulação, e há duas operações que montam a trama. Vemos pelo exemplo
anteriormente citado que uma operação é a de tradução e a outra é a de
leitura. Ambas as ações se mantêm em posição contígua com os modos de
ação da natureza. A primeira operação é, enquanto a natureza pulsa e repulsa
em sóis sob céus pedregosos com chuva e vento, traduzem-se os fólios da
imagem da pele em nuvem lazúli e bulbo de veludo. A segunda operação
|53|

é, enquanto a natureza pulsa e repulsa, lêem-se os infólios da imagem em


palimpsestos. A tradução nesse trecho é uma rua de mão dupla por onde se
vai à natureza do mesmo modo que se vai à escritura, esta compreendida
como imagem. Uma imagem que demonstra sua complexidade, sua
natureza desdobrada, sua condição de produto tecido e entretecido, que é
ao mesmo tempo pele e tecido, a própria pele, que é natureza, já que é um
tecido que já é resultado da tradução e da leitura.
Estas operações construtivas que compõem o poema de Josely
Baptista estão vinculadas a um campo conceitual desenvolvido por Gilles
Deleuze no que se refere à idéia de tecer e de tecido. O conceito de dobra e
de desdobra nos introduz em uma idéia de verdade como algo essencialmente
vestido. O poema, dessa maneira, se compõe de uma série de camadas, sob
cada capa há outra capa. Sob o vestido está a pele, mas a pele é também um
tecido. Não é por acaso que Severo Sarduy escreve um texto para também
compor o projeto do livro Corpografia, de Josely, quer dizer, é mais uma
pele selecionada para compor e conjugar. A peça tecida por Sarduy
sintomaticamente se intitula “Irezumi”, uma tatuagem, mas esse “Irezumi”
se divide em três peças que não têm unidade entre si e tampouco estão
prontas, há que se terminá-las; no entanto, para terminar uma tatuagem
somente com mais tatuagem, mais inscrições, mais pele, mais vestidos. É a
realidade do poema como vestidura, como o abraçar e entretecer coisas
distintas, arquivos que pertencem a mundos distintos como são a natureza e
a escritura. Entretanto, produz-se um efeito sob o qual o trânsito entre
arquivos absorve os materiais. A passagem franqueada entre mundos
distintos, mas compreendidos ambos como dobra, como desdobramento e
como vestidura, não é expressão do eu, mas antes perda da individualidade,
cancelamento do sujeito. Tem o sentido de criar situações, eventos nos quais
se mantém a possibilidade de seguir dobrando e desdobrando o arquivo em
sua plenitude e abundância. Esse verso que se segue do poema “Hiléias”
de Josely Baptista pode dizer muito sobre isso que leio na sua produção:
|54|

q u a n d o a a l m a n u a s e v e s t e d e a r e s
(Baptista, 1992, p. 39).

O vestir a alma nua com ar tem o sentido de permanecer-se nu.


Dessa forma, o poema se volta para um aspecto que, aparentemente, que
pouco tem a ver com o pensamento da vestidura, uma vez que assinala
também que o desnudamento também é uma forma de investir contra todo
pensamento utópico, contra toda reprodução centrada em si mesmo. Tanto
a poesia da vestidura como a do desnudamento estão pensadas como se
fossem eventos, são novos objetos prefigurados pela dobra, mas que serão
sempre irredutíveis a este já que são anti-subjetivas e absolutamente fundadas
numa concepção de tempo presente. A primazia do tempo presente é uma
característica da mentalidade barroca, a qual está conectada com um modo
de sentir, por sua vez, antinostálgico e anti-utópico.
No poema “La inocencia” de Arturo Carrera persiste uma concepção
de poema como desnudamento, como um retorno à natureza humana,
inclusive ao desnudamento animal, uma vez que o retorno à natureza é um
retorno a um ser natural, o qual tem sua própria história e seu próprio
processo de dobrar-se e desdobra-se, isto é, de “vir-a-ser” e extinguir-se, e
seus restos permanecem sobrevividos nos novos eventos da matéria. Nesse
sentido, a poética de Carrera pode também ser pensada no contexto de uma
poesia do presente, já que ela demonstra tanto um antinihilismo como uma
anti-utopia.
Os poemas que analisamos pertencem a uma esfera de produções
artísticas a que poderíamos chamar de poesia “neobarroca”. Contudo, a
poesia “neobarroca” necessita de seu evento, há que se comentar a opção de
leitura desses poemas como “neobarrocos”, mais do que lhes distinguir como
herdeiros do arquivo barroco, já que isso poderia gerar controvérsias quanto
a suas características genuinamente barrocas, isto é, se originalmente
pertencem ao arquivo do século XVII. Exemplo disso é a oposição que
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César Aira percebe em Arturo Carrera frente ao barroco. Aira não encontra
as ruínas barrocas em Carrera; no texto “Epílogo-haiku” que compôs para
um breve livro chamado Carpe Diem Aira comenta que em todos os livros
do ciclo que vai de 1984 até 2003 se reafirma:

[...] la persistente militancia antibarroca de Carrera. En efecto, el


barroco se caracteriza por la presencia de un espacio único que se
modula en perspectivas torcidas y enroscadas por la subjetividad. Yo
he argumentado en otra parte que el paisaje de la pampa se afila más
bien al rococó de las contigüidades intimistas. Y en el secreto doméstico
de las comunidades inmigrantes puede estar la clave del peculiar
hermetismo que preside su poesía (Aira apud Carrera, 2005, p. 86).

No entanto, quando Aira detecta uma busca pela simplicidade no


livro Arturo y yo, cujo resultado, segundo o autor, justamente lhe afastaria
dos procedimentos barrocos, não poderia essa simplicidade ser analisada
sob a perspectiva daqueles elementos que também compõem os efeitos do
barroco na arte e no pensamento do presente? Ou seja, a busca pelo
desnudamento do sujeito, pelo voltar-se ao ser animal e pelo fazer-se coisa é
também uma forma de criar efeitos barrocos. Há que se repensar: a busca
pela simplicidade não constitui uma “militância antibarroca”.
Nesse sentido, o que estou propondo é pensar estas poéticas inseridas
em algo que denomino de poesia do presente, isto é, uma poesia que não se
preocupa com a atualização e homologação do arquivo ou mesmo do passado,
uma vez que compreende o presente como um aqui e agora. Esse presente
não é um tempo eterno, não é um presente que se pauta por uma compreensão
sincrônica do tempo, mas sim como confluência de tempos, como “Sicigias”,
conjunções entre tempos a partir das quais poderá aparecer a subjetividade,
porém apenas seu rastro, como “pegadas” daquilo que já foi algum dia um
sujeito. Mediante essas “sicigias” os rastros do sujeito se tornam presentes,
porém, são apenas seus gestos que restam. Giorgio Agamben no ensaio
“L’autore como gesto” desdobra a análise de Michael Foucault sobre a
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função-autor atribuindo a ela uma qualidade que deverá sempre permanecer


não-expressa como a vida de um homem infame que atua como testemunha
da presença-ausência do autor na obra. A essa qualidade do ser não-expresso
Agamben denomina o gesto.

Se chiamiamo gesto ciò che resta inespresso en ogni atto di


espressione, protremmo dire, allora, che, esatamente come l’infame,
l’autore è presente nel testo soltanto in un gesto, che rende possibile
l’espressione nella misura in cui insedia in essa un vuoto centrale.
(Agamben, 2005, p. 73).

O sujeito-gesto produz o texto livre do imperioso ato de expressar


uma mensagem, uma moral e as essências delas decorrentes. Mediante o
gesto o texto torna-se evento, um “vir-a-ser” e seu declinar, cuja potência o
gesto extrai da conjunção entre extremos, isto é, como “in-fans” e como
“sicigias”.
Essa poesia do presente compreende o tempo como anacronismo e
por não se lamentar da ausência ou da perda de nada está situada no pólo
oposto do pensamento negativo e das distintas formas que tem assumido
recentemente: o pensamento da crise, nihilismo etc. Tampouco há no passado,
para esses poemas que foram analisados, algo que recuperar, não há um
hipotético valor perdido ou talvez mesmo uma identidade positiva. Os valores
e os ideais da identidade são problemas demasiadamente abstratos, conforme
vimos, essa poesia busca a materialidade das coisas naquilo que está arruinado
no presente. O arquivo é entendido por estes procedimentos construtivos
como plenitude, como pleno de coisas todas à disposição para um processo
de transmissão, de trans-valoração, de trânsito, de um estado a outro da
coisa sem jamais se reduzir a esta.
|57|

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Tradução do italian Silvio Mattoni.


Buenos Aires: Ed. Adriana Hidalgo, 2001.

_______. Experimentum linguae. Infanzia e storia. Nuova edizione accresciuta.


Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, 2001. p. XII.

_______. L’autore come gesto. Profanazioni. Roma: Nottetempo, 2005.

AIRA, Cesar. Epílogo Haiku. In: CARRERA, A. Noche y día. Buenos Aires:
Losada, 2005.

BAPTISTA, Josely Vianna; FARIA, Francisco. Corpografia. São Paulo:


Iluminuras, 1992.

CARRERA, Arturo. Inocencia. Buenos Aires: Mansalva, 2005.

_______. Arturo y yo. Buenos Aires: Alción, 2002.

_______. Noche y día. Buenos Aires: Losada, 2005.

_______. Potlatch. Buenos Aires: Interzona, 2004.

DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o barroco. Tradução Luiz Orlandi. São


Paulo: Papirus, 1991.

PERNIOLA, Mario. Enigmas. Egipcio, barroco y neo-barroco en la sociedad y


el arte. Tradução do italiano Javier Melenchón. Murcia: Cendeac, 2006.

_______. A erótica do trânsito. Repensando o ritual. Sexualidade, Morte, Mundo.


Tradução do italiano Maria do Rosário Tochi. São Paulo: Nobel, 2000.
A METÁFORA.
1
UM LUGAR MAIS ORIGINÁRIO QUE O ESPAÇO

O problema e a análise que proponho partem de um não-lugar


discursivo e, sendo assim, constituem um paradoxo, pois vou discorrer sobre
a questão da topologia do texto lírico com base em um u-topos, isto é, vou
partir da concepção do termo utopia como não-lugar discursivo. A questão
se coloca já de antemão nos termos de um sem-lugar discursivo do texto
poético. Excetuando-se a república platônica, a poesia já ocupou muitos
bons lugares, especialmente depois do romantismo quando assumiu
juntamente com a instituição governamental uma função etiológica na
máquina discursiva do Estado-Nação. Entretanto, outra máquina substituiu
a anterior; agora à poesia é oferecida a potencialidade de ser legitimadora de

1
Este texto foi apresentado como intervenção no Simpósio Topologias da Poesia na Modernidade,
organizado pelos professores doutores Marcos Siscar e Fabio Akcelrud Durão no âmbito do X
Congresso da ABRALIC, em 2006, no Rio de Janeiro. Foi publicado posteriormente em versão
eletrônica no número 45/1, dossiê “Poesia e Cultura no Contemporâneo”, da revista de Letras da
Universidade Estadual Paulista. Disponível em: <http://www.fclar.unesp.br/seer/index.php?journal
=letras&page=issue&op=view&path[]=1>.
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outra instituição, de outra máquina, a do mercado editorial. Desse modo,


espero ter definido a que topos poético me refiro nesta análise. E para explicitar
melhor o meu ponto de vista, bem como para sabermos exatamente onde
estamos pisando neste momento, gostaria de esboçar uma pequena
genealogia do conceito de lugar na tradição discursiva ocidental.
O que seria um lugar? No Livro I da Retórica, Aristóteles define
tópoi como as linhas de argumentação que expressam os raciocínios dialéticos
e retóricos; somente através dessas linhas de argumentação é que poderiam
ser conformados raciocínios ou serem ditos os entitemas sobre questões
relacionadas à justiça, à natureza ou a qualquer tema, ainda que fossem
diferentes em espécie. Contudo, as linhas de argumentação serão específicas
quando derivarem de premissas referidas a cada espécie e gênero. Aristóteles
aplica uma classificação que separará a retórica e a dialética do pensamento
científico ao distinguir as premissas específicas de cada gênero como espécies
e a linhas de argumentação como tópoi, isto é, argumentos que são comuns
a todos os discursos. Já o termo latino localis, derivado de locus, que em
Cícero podia tanto ter o sentido de lugar como igualmente o de tempo, isto
é, o espaço de tempo que uma dada ação levou para acontecer e que já não
tem as conotações de divisão entre de um lado o pensamento científico
resultado da aplicação de princípios específicos e de outro o pensamento
por lugares comuns: a retórica e a dialética. Para Cícero quando as suspeitas
já estão confirmadas a comprovação é elaborada com base em lugares próprios
e lugares comuns. Os lugares próprios são aqueles que ou apenas o acusador
pode usar, ou apenas o defensor. Os comuns são os que se empregam na
causa, ora a favor do réu, ora a favor do acusado. Para Aristóteles não se
confundem espécie e linhas de argumentação comum, isto é, o lugar da produção
do conhecimento específico e o lugar da utilização de um conhecimento
comum. Em Cícero a noção de espaço de tempo se acrescenta a essa divisão da
produção de saberes discursivos. As derivações dessa noção de espaço de
tempo não são difíceis de serem acompanhadas, pois no século XVII o discurso
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utópico que até então era eminentemente calcado na descrição de lugares


terrestres reimaginados sob a perspectiva espacial passa a incorporar uma
outra noção, a de tempo, ou seja, a imaginação de um espaço de tempo
decorrido para que aquele lugar se transformasse. No entanto, paralelamente
à incorporação da noção de espaço de tempo ao discurso utópico, nos séculos
XVII e XVIII o pensamento de Aristóteles recobra prestígio, especialmente
em relação à ciência, em que se impõe uma noção de experiência baseada
em reflexões específicas de cada gênero, isto é, pensar por espécies. O discurso
lírico deixa de incorporar somente lugares comuns discursivos e passa a
produzir, mediante a observância mais ousada do funcionamento daquilo
que Aristóteles entendeu como espécies, um pensamento específico. Isso não
significa que os gêneros textuais passem já a refletir sobre seus próprios
procedimentos. Pensando por espécies, o gênero lírico desenvolve a
capacidade de compreender e enfrentar outros gêneros específicos. Dessa
forma, deixa de ser um gênero usado exclusivamente como memória para
abarcar também a tensão típica do drama. Goethe com Fausto soube operar
muito bem este enfrentamento. Posteriormente, a lírica irá concentrar-se
especificamente em si mesma e reivindicará com a modernidade
baudelairiana seu estatuto de autonomia discursiva, a poesia passaria então a
ter linguagem própria. Haroldo de Campos, no estudo em que desenha a
genealogia da poesia moderna, ressalta a poesia de Baudelaire como aquela
na qual a analogia entre os diversos tópoi discursivos já não encontra mais
função; e que encontrará em Mallarmé a total implosão das regras discursivas
alheias, inaugurando uma discursividade poética imanente a si mesma. No
entanto, a poesia de Mallarmé não estará fundamentada na propriedade de
sua linguagem, ao contrário, os tropos de que se irá valer serão aqueles
inventados pela constatação de uma inadequação a si mesma. Essa poesia
será caracterizada por uma linguagem que lhe será imprópria.
Gilles Deleuze define imanência como existência em si-mesma, ela
não depende de um objeto e não pertence a um sujeito. Em “A imanência:
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uma vida...” argumenta que “assim como o transcendental não se define


pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um
Objeto capazes de o conter.” (Deleuze, 2002, p. 12). Agenciando imanência
e vida, efetivada pela grafia do título, conforme observou Agamben,
Deleuze cria um ducto, uma via de mão dupla entre esses dois conceitos,
portanto, além de discorrer sobre a imanência, necessitou, igualmente,
explicitar seu conceito de vida. E o conceito de vida de Deleuze vem
exemplificado em um trecho de Dickens em que se narra a situação de um
homem malvado e desprezado por todos à beira da morte, sendo acudido
por uma espécie de respeito e solicitude por parte daqueles que estão cuidando
dele. Deleuze sublinha que tais cuidados fazem com que o malvado homem
experimente algo de terno. No entanto, conforme ele volta à vida, tudo
volta ao que era antes. Esse estar entre a vida e a morte dá lugar a algo de
impessoal, mas singular, que Deleuze chamará vida.

A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, mas singular,


que desprende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da
vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade
daquilo que acontece [...] Trata-se de uma hecceidade, que não é mais
de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência,
neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o sujeito que
a encarava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal
individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um
homem que não tem mais nome, embora ele não se confunda com
nenhum outro. [...] Uma vida está em toda parte, em todos os
momentos que este ou aquele sujeito vivo atravessa e que esses objetos
vividos medem. [...] Essa vida indefinida não tem, ela própria,
momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas
apenas entre-tempos, entre-momentos. (Deleuze, 2002, p. 14).

Refletir sobre a poesia como imanente a si-mesma implica pensar


sobre o conceito de vida ou de existência da poesia. Implica pensá-la não
como produto individualizado, classificado pela topografia textual, mas
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como fruto de uma singularidade que não tem mais nome, embora não se
confunda com outros lugares discursivos. Pensar a poesia como imanência
pura significa compreender que ela existe em toda parte, em todos os
momentos, não realizando nenhuma aproximação que lhe permitiria
individualizar-se em outro discurso. Sua existência seria somente possível
nos entre-lugares e nos entre-tempos de sua passagem.
Poderíamos, nesse sentido, compreender a linguagem poética de
Mallarmé como imanente a si-mesma. Isso significa dizer que a poesia de
Mallarmé não contentará com a topografia que a modernidade lhe havia
legado, isto é, o livro impresso. Benjamin dirá que Mallarmé, “no mais
íntimo recesso de seu estúdio, porém em preestabelecida harmonia com
todos os eventos decisivos de seu tempo na economia e na técnica”, lança a
poesia de volta “à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal
heteronomia do caos econômico” (Benjamin, 1994, p. 28). Esse retorno à
vida cotidiana da cidade retira a poesia de qualquer pretensão de autonomia
em relação ao mundo e à vida, pois como imanente a si-mesma ela será o
próprio mundo e a própria vida. No entanto, ela permanecerá neste projeto
sem lugar, a-tópica, ou melhor, u-tópica. O projeto poético de Mallarmé era
gráfico, baseado numa nova discursividade cujo fundamento era o de uma
escrita icônica. A poesia não seria definida por um sujeito e tampouco por
um objeto, ao contrário, o lugar da poesia seria definido por sua
impropriedade frente ao que lhe é interior e exterior. Diferentemente do
que uma posição autônoma ou mesmo autotélica poderia acarretar, o retorno
da poesia para a rua não marca uma topografia, mas, como analisou
Benjamin, deixa entrever sua posição de transpasse, um lugar de passagem,
onde ela se deixa permear pela caótica heteronomia moderna.
|64|

Poesia e utopia

A poesia tem um lugar? O que significa reivindicar um lugar para


a poesia, para a literatura, ou mesmo para a política? Massimo Cacciari
analisando o quanto a relação intrínseca entre Nomos e Lugar, desenvolvida
por Carl Schmitt entre os anos 1945-1947, é tendenciosa no sentido de ter
sido elaborada para dirimir sua responsabilidade diante da possibilidade de
ser acusado como criminoso de guerra, mostra-nos como esta relação é bem
mais complexa do que aquela que Schmitt tenta expor. Para Schmitt Nomos,
isto é, a Ordem, indica a divisão (nemein) de um território conquistado. Daí
o porquê de as alterações na relação entre Ordem e Lugar misturarem-se
com alterações e justificações do sentido da guerra. Assim, não há como
regulamentar as ações de uma guerra mundial ou da guerra civil mundial.
Cacciari irá contestar essa noção dizendo que ela depende de uma clara
imagem do Nomos divino. No termo Nomos reside a idéia de tomar e repartir
um território, contudo também inclui a idéia de justiça desta partilha. O
anomos seria imoral ou como ressalta ainda Cacciari “el anomos es el impius.
Este nexo, que es decisivo em Platón, se mantiene fuerte em Aristóteles.
(Política, 3, 16)” (Cacciari, 1994, p. 107). Ter um lugar nesse sentido implica
uma decisão entre tomar, conquistar e dividir, e ordenar. Entretanto, isto
resulta impossível de se fazer sem apelar para uma linha de argumentação
que é específica e geral, é espécie enquanto é topoi, ao mesmo tempo em que
é o pensamento do sagrado. Baseado na consideração laica da figura do
sagrado, Agamben expõe claramente como funcionam os dispositivos da
Lei ou Nomos, quer sejam da tomada, da divisão e do ordenamento, para
garantir sua própria anomia. Isso ocorre mediante a ficção implícita em que
para pertencer a um lugar se faz necessário tomar, conquistar, dividir e
ordenar. O que significa que para ter um ou ser de um lugar, além do
nascimento, o Nomos requer uma ação que lhe garanta esse pertencimento.
Separando potência e ato, impossibilita-se a aplicação de uma norma sem
|65|

que se tenha, de alguma maneira, rompido com ela. Assim, resulta impossível
tomar, conquistar, dividir e ordenar, isto é, ter ou pertencer a um lugar sem
que sejam expostas as muitas contradições desse ato.
Na reflexão sobre o lugar da poesia, como vimos, deve-se incluir o
pensamento sobre os seus limites e os paradoxos que isso gera. Sem lugar
próprio, ou ainda, com base em sua impropriedade, a poesia usa sua potência
para questionar seus limites discursivos, ciente de que isso é o que lhe resta
fazer, como ato.

Confins da poesia I

Em 1992 Josely Vianna Baptista e Francisco Faria publicam


Corpografia, em que apresentam um trabalho de enfrentamento de limites.
Os territórios aos quais os trabalhos de ambos estavam vinculados eram o da
poesia e o das artes plásticas. Apesar de seus autores denominarem essa
experiência como um “amálgama” em que um “milagre topológico” se
realiza, gostaria de ler esse encontro mais como um “enfrentamento
topológico” do que como um “amálgama”, já que neste as diferenças são
perdidas. Além de ser um enfrentamento entre dois topos artísticos, o trabalho
apresentado em Corpografia constitui uma retomada da interrogação sobre o
lugar próprio do poema, se está submetido ao Nomos poético do alto-
modernismo, em sua pretensão por autonomia frente a outros campos, ou
se assume sua singularidade utópica. Detenho-me em “Hiléias”, que é uma
das partes de Corpografia e está composto por cinco poemas. O primeiro nos
oferece uma imagem sonora dos microdetalhes que a luz provoca numa
paisagem natural não domesticada:
|66|

quando a alma nua se


veste de ares e o sol
calcina em salamand
ras rubras a gala s
em flor de uma oriqu
ídea rara, góngora
buffonia, idéia da i
déia o gozo invisí
vel [...]
(Baptista, 1992, p. 39).

No segundo poema a imagem é a dos raios de sol, espelhados na


metáfora dos móbiles de bronze no pólen suspenso, penetrando por entre as
folhas da vegetação quase inviolável. No terceiro, estão as marcas do tempo
gravadas e percebidas na luz e pela observação geológica. No quarto e quinto
poemas, as imagens do tempo são percebidas pela presença da areia, do sal e
de fósseis marinhos na hiléia. Hiléia (hylaia, da floresta por extensão, selvagem)
é um termo ligado ao naturalismo dos exploradores das novas terras na
passagem do século XVIII ao XIX. A expedição de Humboldt-Bonpland,
em 1799, resultou em várias publicações nas quais podemos encontrar a floresta
amazônica descrita como a hiléia tropical. Os temas das imagens de Francisco
Faria, desenhos feitos a bico de pena à maneira dos exploradores do século
XIX, bem como os temas dos poemas de Josely Baptista da floresta selvagem
que compõem “Hiléias” fazem questão, como vimos, de explicitar sua relação
com uma história natural. Não somente com a história natural, mas, sobretudo,
explicita sua relação de confronto com a narrativa histórica americana que
teve nas figuras de Buffon e Góngora – presentes nos versos anteriormente
citados do primeiro poema de “Hiléias” – um de seus primeiros detratores.
Góngora em Soledad primera intercala uma narrativa épica no seu
grande poema, na qual um serrano relata o descobrimento e a conquista do
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império ultramarinho da Espanha no século XVI, caracterizando esse


império como uma desgraça e um ato de vaidade trágica. A aposta de
Góngora, com seu poema de la edad del sol, ou sua idade do ouro, o
contraponto ao el dorado, é a da vida em conformidade com as leis da natureza.
O náufrago ou peregrino é um personagem que vive uma vida qualificada
pelo trabalho produtivo e com a variedade da natureza.
Já Buffon em sua Historia Natural, que influenciou as idéias de
Hegel acerca da inferioridade da natureza e das povoações da América
católica e mestiça, insistia em suas análises que as espécies naturais americanas
tinham experimentado uma evolução desigual – menor – em relação às
demais espécies européias. Há nestes versos de “Hiléias” a contraposição a
qualquer idealização da produção poética latino-americana tanto àquela que
leva à consolidação da construção discursiva dos estados nacionais quanto a
que com base em um universalismo supranacional que, como assinala Raúl
Antelo, quando analisa a produção cultural latino-americana “se sustenta
en paradojales inclusiones excluyentes” (Antelo, 2005, p. 33). Os poemas
de “Hiléias” estariam levando ao confinamento da história social da América
Latina com sua história natural, ou vice-versa?
Para tal apreciação é conveniente observarmos a noção de confim
que Massimo Cacciari desenvolve com o objetivo de refletir sobre a questão
do lugar. Confim, além ser um limite que nos separa do outro, é o que nos
colocaria cara-a-cara com ele por envolver a noção de fronteira, uma vez
que quem está na fronteira está próximo, isto é, avizinha-se do outro. Cacciari
apresenta a noção de confim como algo que separa, sendo assim, reside nela
um fundamento do pensamento religioso. Giorgio Agamben define a
religião como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais e pessoas do uso
comum e as transfere para uma esfera separada, “Non solo non c’è religione
senza separazione, ma ogni separazione contiene o conserva en sé un núcleo
genuinamente religioso.” (Agamben, 2005, p. 84); reflexão essa que se
avizinha daquilo que Cacciari encontra até nas barreiras e muros que foram
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arruinados pelo tempo, isto é, que mesmo arruinadas essas linhas divisórias
que se colocam diante de nossa visão continuam a se mostrar como algo
sagrado. Contudo, a noção de confim que nos interessa aqui é aquela que,
ainda segundo Cacciari, funciona como um nome próprio que exprime
nosso próprio lugar, o nosso próprio corpo. O que define um lugar é
justamente o ponto em que se toca o outro. E é graças a esta relação que nós
nos definimos. Esse confim constitui uma exposição ao perigo de tocar e
ser tocado, de ferir e ser ferido. Dessa forma, o confim não será mais visto
como aquilo que divide, mas, ao contrário, será sempre isso que em nós – o
lugar que somos – é sempre o outro. Esse confim pode resultar em amor ou
inimizade, no entanto, Cacciari dirá que somente os organismos condenados
à morte poderão esquecê-lo ou removê-lo. Nesse sentido, aqui ressoa o
pensamento de Deleuze para quem a noção de vida implica estar em uma
situação limite, estar entre a vida e a morte, como aquele malvado e odiado
personagem de Dickens. A situação limite depreende um evento de
singularização que não é subjetivo nem objetivo; significa localizar-se para
além do bem e do mal.
Contudo, surge uma questão: esse confim, esse estar em uma posição
limite pode conduzir-nos ao fim da história? Ou pelo menos à redução de
nossa história social à história natural? Quando levantamos a hipótese de
que o fim da história coincide com a animalização do homem, isto é, a sua
transformação em vida nua normatizada, o fim da política, o estado de
exceção planificado, não devemos nos esquecer de que também o fim do
poema conduz ao silêncio, isto é, o enjambement, conforme a análise de
Agamben, como dispositivo que garante à poesia sua característica mais
própria: de encadear dois fluxos discursivos, quer seja, um sintático e outro
semântico. Se o enjambement é o fim do verso, de acordo com o pensamento
de Cacciari, ele, então, conduz o verso ao seu confim. Não o seu fim ou à sua
separação em dois fluxos discursivos, mas à sua possibilidade de estar sempre
podendo definir-se em relação a um outro. Em sua radicalidade a poesia de
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Josely Vianna define-se a si mesma, isto é, os vários lugares que ela é em


confinamento com o outro. Qual é o radicalmente outro em relação à
materialidade dos versos da poeta paranaense? Em primeiro lugar me parece
que seja a prosa, pois ela não delimita fronteiras sagradas intransponíveis
entre os versos e as linhas da prosa, basta observarmos as linhas que
preenchem a folha do papel, ocupando de margem a margem o papel,
usando um procedimento prosaico, porém, não é prosa, trata-se de versos
esgarçados até o limite da margem que mantêm uma relação nem de
identidade nem de negação com a prosa. Com isso, estabelece sua relação
de confim com a prosa poética de Haroldo de Campos desenvolvida em
Galáxias, durante a década de 1970. Entretanto, menos experimental do
que Galáxias, a prosa poética de “Hiléias” reinterpretará a história da poesia,
mediante uma singularidade imanente e não só uma relação objetiva com a
tradição como é o caso de Galáxias. Tanto a poesia de Haroldo de Campos
como a de Josely Vianna localizam-se num tipo de bazar cujo estoque se
compôs a partir de suas respectivas tarefas de tradutores, no caso de Haroldo
de Campos, da poesia universal, e, no de Josely Vianna, da poesia latino-
americana. Contudo, a relação que se estabelece entre sujeito e objeto na
poesia de Josely está ligada a uma concepção de vida poética muito próxima
daquilo que discutimos anteriormente como o conceito de vida em Deleuze.
O seguinte confim dos versos de “Hiléias” é com o discurso cultural
que expõe sua visão da história como circular, mas que nunca é repetição.
Os tropos “orquídea rara” e “góngora buffonia” são figuras de similaridade
usadas de modo inusitado. Está claro que se trata de uma analogia, tendo
em vista que uma orquídea foi batizada com o nome do explorador alemão.
No entanto, essa analogia não se configura com os conectivos que compõem
as similaridades, que seriam o verbo “ser”, as conjunções “tal qual”, “como”
etc. A relação de similaridade é construída pela pontuação que cria uma
espécie de “aposto” para “orquídea rara”, “góngora buffonia”. Trata-se assim
de uma tensão que se cria num entre-lugar, na passagem do nível sintático
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para o semântico. Mas isso não seria o que define o limite do poema em relação
à prosa? O tropo “orquídea rara, góngora buffonia” aparece como resultado de
um dispositivo sintático, o aposto, em que um termo é agregado a outro que
exerce a mesma função sintática e que no poema em questão é marcado pelo
entre vírgulas. Desse modo a figura de similaridade ocorre mediante uma relação
de imanência absoluta, uma vez que se situa em um confim. Só é possível perceber
a relação do poema com essa concepção de história circular na observação e
análise do modo como foi construída esta figura.
Se entendermos “tropo” com base em sua etimologia, isto é, como
desvio que se faz mediante o uso de linguagem figurada, poderíamos dizer
que “Hiléias” confina e desvia de seus outros discursivos. Confina e desvia de
Soledad, de Luis de Góngora, e da História Natural, de Buffon. Mas ainda
resta perguntar-nos sobre o que resulta dessa ubiqüidade imanente da poesia,
no poema que se enrosca nos ramos da vegetação. Por que ele dança entre os
móbiles da poeira refletida nos raios de sol? Por que se escora nos frisos do
granito da Vila Velha e da Ponte Vecchio? E por que coleciona fósseis marinhos
para compor as fronteiras da floresta? Que resta de tudo isso?
Para encontrar algumas das respostas a essas questões, desviemo-
nos de nossa floresta, confinemo-nos com um novo “tropo”.

Confins da poesia II

Em 2003, Daniel Samoilovich publicou um livro de poemas


intitulado Las encantadas, mais um título, como vimos em “Hiléias”,
carregado de confins. Contudo, a centena de poemas reunida sob esse título
parece ser um único e extenso poema, um canto lírico que se situa entre um
complexo lugar que ocupa a épica nacional e as problemáticas narrativas de
viagens marcadas por um ponto de vista universal e, portanto, irrepresentável.
Não foi por acaso que o lugar escolhido para a viagem a ser narrada
no livro de Samoilovich tenha sido o arquipélago de Galápagos. Também,
|71|

não foi sem uma fina ironia e uma grande capacidade de pensar por meio de
figurações que Melville tenha se referido a Galápagos como ilhas “Encantadas”.
No entanto, sua visão tem algo do sublime poético, pois que esse encantamento
se encontra em uma zona de indistinção entre um sentimento de terror e de
ternura. Em 1840, Melville esteve no arquipélago situado a um passo da
latitude 0°, ponto zero entre os dois hemisférios, aqui uma outra zona de
indistinção, a geográfica; aquele lugar o impressionou profundamente, tanto
que escreveu posteriormente uma série de esboços intitulada “The encantadas”.
Na visão de Melville havia algo de aterradoramente inumano naquelas ilhas,
visão muito próxima daquela em que ele criaria dois de seus interessantes
personagens: o atormentado capitão Ahab e seu espelho natural: o não menos
perturbado cachalote branco, Moby Dick, aliás, esses dois personagens que
terão seu encontro final justamente ali em algum lugar naquelas mesmas
latitudes do oceano Pacífico onde está situado o arquipélago de Galápagos.
Melville descreve as ilhas por meio de figuras que nos apresentam um lugar
inóspito e inabitável ao ser humano e onde mudanças jamais ocorriam.

Cut by the Equator, they know not autumn, and they know not
spring; while already reduced to the lees of fire, ruin itself can
work little more upon them. The showers refresh the deserts;
but in these isles, rain never falls. Like split Syrian gourd left
withering in the sun, they are cracked by an everlasting drought
beneath a torrid sky. ‘Have mercy upon me’, the wailing spirit of
the Encantadas seems to cry, ‘and send Lazarus that he may dip
the tip of his fingers in water and cool my tongue, for I am
tormented in this flame’. (Melville, 1975, p. 132).

Se há algum encantamento nesse lugar, ele parece advir da atração


irresistível que essas figuras trazem consigo pelos limites que separam o
humano do não-humano, do histórico e do natural.
Contudo, Melville não foi o único ilustre viajante a visitar
Galápagos. Em 1835, portanto, cinco anos antes de Melville, o naturalista
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Charles Darwin visitou essas ilhas como uma das escalas que o Beagle faria
em sua viagem ao redor do mundo. A visão do naturalista inglês se conforma
no seu modo de refletir sobre os dados que vinha coletando em sua viagem
ao redor do mundo. Sua visão era a de um comparatista europeu que
interessado em comprovar sua teoria de que a evolução das espécies ocorre
em função da necessidade que as mesmas têm em relação ao ambiente em
que vivem nas ilhas Encantadas encontra um lócus propício e esclarecedor
de suas hipóteses. Nesse arquipélago se tem a impressão, do mesmo modo
que nos recônditos da floresta tropical, de se estar no segundo dia da criação
do mundo. Encontramo-nos novamente em uma zona limítrofe, um confim
entre história social e história natural.
O livro de poemas Las encantadas, de Daniel Samoilovich, está
divido em cinco partes: 1. El sueño; 2. En las islas; 3. Tortugas, Lagartos,
Iguanas; 4. Cómo llegamos a bañarnos entre los tiburones; 5. La tormenta.
Há uma pequena introdução em cada uma das partes, localizando o leitor
no percurso da viagem proposta pelo grande poema. Na primeira parte já
somos informados de que há um narrador e que ele é o sujeito das ações
mínimas que irá narrar. Não sem ironia, também somos informados de que
esta viagem nos será narrada com base nas memórias de um viajante. Esse
ex-viajante está em um quarto de hotel, desperta exatamente à meia-noite e
se põe a rememorar os eventos que, segundo o próprio narrador, se
configuram como não-ações; portanto, encontramo-nos novamente em uma
zona de indistinção, só que agora estamos na zona de confinamento entre a
poesia lírica e a épica. Quando Emil Staiger aborda a poesia lírica como
rememoração a operação analítica que o conduz a essa concepção passa pela
constatação de que no lírico reside uma lógica que é sempre idêntica a si
mesma e que não há distanciamento entre sujeito e objeto. Supera-se na
poesia lírica a distância entre obra e leitor, bem como entre o poeta e aquilo
de que ele fala. Daí que o poeta lírico diz quase sempre “eu”. No entanto,
não se emprega esse “eu” da mesma forma que se faz em uma autobiografia,
|73|

uma vez que na prosa autobiográfica se descreve um passado da forma que


se compreendeu. Segundo Staiger, o poeta lírico não se descreve porque
não se compreende, somente recorda o passado e não o institucionaliza em
outros tipos de discurso.
Dessa forma, o viajante das ilhas Galápagos narra-nos sua viagem
de dentro de um quarto de hotel no meio da noite depois de ter sonhado
com os fragmentos de sua viagem de quinze anos antes, fragmentos esses
que funcionam como imagens rasuradas de álbum de recordações, de um
diário de uma viagem que tem tudo para ser, mas não será narrada como
um poema épico e tampouco como uma narrativa de viagem.
A maneira como se age no poema “El islote Chatham” tenta efetuar
uma mimese das ações do jovem naturalista Charles Darwin que investigava
as espécies vegetais e animais da ilha, conforme se pode ler em seu diário,
com base em comparações com as espécies já conhecidas e classificadas pela
ciência de então. O ritmo do poema é marcado não por suas rimas e acentos
métricos, como costuma acontecer na lírica moderna, mas pela repetição de
alguns versos, como na lírica clássica. O que se repete e se ratifica nestes
versos é justamente o procedimento da comparação que o narrador-viajante
desse poema faz de suas próprias ações com as de Darwin.

[...]
No parece - parece - no parece
Parece- no parece - puro seca
escam - asuperfí - ciecá - paboca.
[...]
que diríase... que parece...no parece...
[...]
No parece...parece...no parece,
[...]
(Samoilovich, 2003, p. 16).
|74|

Além de oferecer o ritmo a este poema, esse mesmo refrão reaparece


em outros poemas do livro, o que lhe proporciona certa unidade temática
que não é oferecida somente no nível semântico do texto. No poema “El
islote Chanthan”, essa intensificação do procedimento da analogia, que é
afinal o princípio que constitui, no nível semântico do poema, as figuras de
similaridade, constrói a passagem para uma outra comparação, não mais
com o jovem naturalista inglês, mas sim com o jovem baleeiro americano
Herman Melville, que, como vimos, possui uma visão bem menos positiva
das mesmas ilhas.

[...]
Como si a los ángeles se pudiera
burlar, y a sus espadas encendidas,
y volver al Edén, y el Edén fuera
un infierno, me asalta una fatiga
horrible: y mi andar es arrastrarse
sobre esta superficie: un lagarto.
(Samoilovich, 2003, p. 18).

E aqui nos encontramos diante de mais uma comparação, a do sujeito


com o lagarto, do homem com o animal. O sujeito que constrói as
comparações entre as visões de Darwin e Melville agora se compara a um
animal. No entanto, se detivermos nossa atenção à pontuação que também
oferece ritmo ao poema, poderemos observar que os dois pontos são os
sinais gráficos que introduzem a analogia. Agamben, no ensaio sobre
Deleuze e o problema da imanência, sobre o qual já comentamos aqui
quando analisamos a questão do ser imanente a si mesmo da poesia, fala de
uma filosofia da pontuação. Não sem referir-se a Adorno, que também
escreveu um ensaio sobre a pontuação, e também ao próprio Deleuze que
no livro Diálogos desenvolve uma teoria sobre a conjunção “e”, Agamben
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acrescenta a reflexão sobre outros sinais como o hífen e os dois pontos. Para
o filósofo italiano o hífen é o “mais dialético dos sinais de pontuação, porque
une só na medida em que distingue e vice-versa.” (Agamben, 1996, p. 171).
Nesse sentido, interessa neste momento relembrarmos como a analogia entre
o procedimento de Darwin, do narrador viajante do livro de poemas Las
encantadas e de Melville é construída no poema, isto é, interessa observarmos
a construção sintática baseada no uso de hífens, No parece - parece - no parece,
bem como no uso de reticências, No parece...parece...no parece. Uma
construção que em si mesma já expressa sua dialética, a do hífen, e outra
construção que, igualmente imanente a si, propõem sua virtualidade e,
portanto, sinal de indeterminação, as reticências. Contudo, voltemos aos
dois pontos da comparação entre o lagarto e o sujeito viajante. Para Agamben
que analisa a utilização dos dois pontos no título do texto de Deleuze, “A
imanência: uma vida...”, este sinal gráfico não significa ali uma relação de
identidade e apresenta algo mais que uma relação de agenciamento, “um
agenciamento de espécie particular, algo como um agenciamento absoluto,
que inclui também a não-relação, ou a relação que deriva da não-relação
[...] Neste sentido, os dois pontos representam o deslocamento da imanência
em si mesma, a abertura a um outro que, porém, permanece absolutamente
imanente.” (Agamben, 1996, p. 172). Tanto é assim que poderíamos ler
essa analogia entre sujeito e animal no poema “El islote Chanthan” como
ponto de passagem, de movimento entre lugares, deslocamentos,
desterritorializações que o poema efetua sem, entretanto, realizar a ação,
como era de se esperar se o verso fosse composto por uma metáfora. A
apresentação da sinédoque que toma o andar do sujeito por ele mesmo no
verso, mi andar es arrastrarse sobre esta superfície: un lagarto, não constitui
ação e tampouco estado, simplesmente toma um pelo outro e também toma
o lugar da metáfora, “eu sou um lagarto”.
Perpassa pelos poemas o intenso tema da concepção “da” e “de”
vida. Assim como em Deleuze o conceito de vida passa, como vimos, por
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uma indefinição, “essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos,
por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos,
entre-momentos” (Deleuze, 2002, p. 14). No poema “Como si entre «vos »
y «yo »” uma terceira dimensão de vida é apresentada como existente entre
o animal e o homem e o homem e a mulher. Essa outra dimensão de vida
entre “vos” y “yo”, entre sujeito e objeto, aparece como zona de
indeterminação, isto é, como aquele lugar em que não se é possível decidir
sobre nada.

Como si entre “vos” y “yo”

animal y hombre y hombre y mujer,


oh y ah, se insinuara
una tercera categoría. Como si hiciera falta.
¿Ama Ulises su exilio
o ama a su mujer? ¿ O lo que ama es la línea de puntos
que a uno lo une con la otra?
Lo que nos une está, lo encontramos aquí,
quiaquí lo encontramos,
estas islas peladas, perros salvajes
y dragones mansos, las ruinas
de un Palacio de Lava bajo el sol de fuego.
(Samoilovich, 2003, p. 44).

Esta terceira categoria de vida está dimensionada pela escolha, porém


não se trata de uma escolha soberana que decide entre isto e aquilo, pois o
que une sujeito e objeto, o que une as linhas que se atravessam mutuamente,
é encontrado num território intervalar, no “quiaquí” do oitavo verso do poema.
As ilhas são a alegoria deste território intervalar que é o arquipélago das
Galápagos, onde, apesar de toda a catástrofe gerada pela história moderna,
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resistem as ruínas de um “Palacio de Lava”, reino do soberano barroco, que


não quer decidir entre isto ou aquilo, entre ser ou não civilização, entre basear
ou não a sua concepção de vida no Cogito. No lugar da soberania o sujeito
não-agente desses versos tem diante de si: a imanência absoluta ou a profanação2.
No livro de poemas Las encantadas, antes de tudo, trata-se de uma
experiência com o poema, da poesia como imanente à sua própria vida. O
topos em que se constituem as ilhas Galápagos se transforma mediante o uso
da alegoria do lugar onde se pode refletir sobre a origem da vida em tropos
poético. É a partir daí que ele se transforma no lugar propício para o
desenvolvimento da noção de vida do poema. No poema “Son moretones,
sombras, islas,” a imagem da ilha espelha a do poema.

2
A reflexão de Agamben encontra no conceito de profanação, cujo significado está na passagem de
mão dupla do sagrado ao profano, o ponto em que se distanciará da reflexão sobre a soberania de
Bataille, que não é o único dos pensadores da soberania escolhidos pelo filósofo italiano para compor
a enunciação de sua tese da “vida nua do homo sacer”. Isso está claro num ensaio de 1987, Bataille e
il paradosso della sovranità, no qual Agamben já assinalava que percebia a dificuldade de Bataille em
levar até as últimas conseqüências o projetado trabalho sobre a soberania. “Procurando pensar além
do sujeito, procurando pensar o êxtase do sujeito, ele pensou, na verdade, somente o seu limite
interno, a sua antinomia constitutiva: a soberania do sujeito, o estar sobre do que está sob. [...] Mas – e a
impossibilidade de levar ao fim o projetado trabalho sobre a soberania é prova disso – ele não
conseguiu chegar até o fim.” Agamben enuncia preliminarmente nesse texto a sua tese de que o
paradoxo se dá justamente na transposição da reflexão para o campo do político pois que já faz menção
à definição de Carl Schmitt, base sobre a qual se assenta a sua reflexão acerca da exceção como
estrutura do poder soberano, ou seja, a suspensão da lei, “a lei está fora de si mesma, está fora da lei;
ou: eu, o soberano, que estou fora-da-lei, declaro que não há fora da lei.” Sabemos que essa tese seria
estendida e aprofundada no Homo Sacer onde o filósofo apontará explicitamente que Bataille, ao
ponderar sobre a vida nua (ou vida sacra) em sua relação de bando como constituinte da soberania,
procurou fazer valer a própria vida nua como figura soberana e errou por não se ter dado conta de que
há um caráter “eminentemente político (aliás, biopolítico)” na estrutura da soberania. “Ele [Bataille]
inscreve sua experiência, por um lado, na esfera do sagrado, que confunde, segundo os esquemas
dominantes na antropologia do seu tempo e retomados pelo amigo Caillois, como sendo originariamente
ambivalente, puro e imundo, repugnante e fascinante, e, por outro, na interioridade do sujeito, ao
qual ela se dá por vezes em instantes privilegiados ou miraculosos. Em ambos os casos, no sacrifício
ritual, assim como no excesso individual, a vida soberana se define para ele através da transgressão
instantânea da interdição de matar.” Em vez de inscrever a vida nua e sua figura soberana na reflexão
sobre o político preferiu conservar inteiramente a reflexão no círculo ambíguo do sacro. Com isso,
para Agamben a consideração sobre a vida permanece como que enfeitiçada entre o sagrado e o
profano e por esse caminho não haveria outra possibilidade que não a repetição. Assim é que
|78|

Fracaso al definir las islas


como excepción o como regla:
sólo una impresión, la impresión,
viendo el mar al frente, de un uno,
si girara vería otra vez
el mar, y las prolongaciones
de esa impresión en la conciencia,
[...]
o el simple tamaño de la isla
impidan ver el mar. La isla
se confunde con su mapa, viviendo en una isla
no es posible apartar de la cabeza
el mapa de la isla. Es cierto que todo
vive de una forma, plegado en una forma,
en una superficie; pero la isla es una forma
a la que una oscura razón, quizás la propia
limitación de su tamaño, le impone
conciencia de ser forma,
y esto es bien raro, esto sí que es capricho,
esto sí es pandemonio, estando dentro
de su cuerpo no hay ninguna razón
para que sepa que es un cuerpo.

Agamben, mesmo destacando o conhecimento de Benjamin acerca da forte aversão de Bataille ao


fascismo, compreende o motivo pelo qual o filósofo alemão estigmatizou a pesquisa do grupo Acéphale
dizendo: “Vous travaillez pour le fascisme”. Para Agamben mesmo a inoperância negativa, una negatività
sensa impiego, ainda é problemática para compreender a forma soberana em Bataille a não ser que se
reflita sobre ela como um “modo de existência genérica da potência, que não se esgota (como a ação
individual ou aquela coletiva, compreendida como a soma das ações individuais) em um transitus de
potentia ad actum”, caso contrário a forma soberana será ainda vista sob a forma de um excesso,
transgressão ou êxtase. Profanar não constitui a limitada passagem da potência ao ato, uma vez que
ainda está baseada em excessos, transgressões ou êxtases. Profanar é o que está compreendido como
“modo de existência genérica da potência” (Agamben, 1987, 2002).
|79|

Sólo cabe pensar que algo


o alguien se lo dice
y su merito consistirá entonces
en escuchar, rendirse a la evidencia,
de que sí, bueno, es así.
(Samoilovich, 2003, p. 28).

O mapa é quem diz à ilha que ela é ilha, o mapa revela seu tamanho –
os seus confins – e seu tamanho lhe diz quem é. Conforme a análise de
Cacciari, um confim funciona como um nome próprio que exprime nosso
próprio lugar, nosso próprio corpo. Por isso, a ilha se confunde com seu
mapa, bem como é o mapa que permite o passear-se da ilha por si mesma,
numa operação de autoconhecimento. Ilha: Poema, sem nenhuma relação
analógica. Agamben nos diz que os dois pontos podem funcionar como
“um agenciamento absoluto, que inclui também a não-relação, ou a relação
que deriva da não-relação. [...] Neste sentido, os dois pontos representam o
deslocamento da imanência em si mesma, a abertura a um outro que, porém,
permanece absolutamente imanente” (Agamben, 1996, p. 172). Sendo assim,
não há a metáfora dizendo que a ilha é o poema, também não se diz que ela
é tal qual ele, e tampouco há construções de imagens que culminam no
final, afirmando que esta ilha é feita de palavras; porém, os dois pontos
permitem aproximá-los sem ao menos mantê-los como vizinhos. A ilha e o
poema se espelham, pois ambos se confundem com seu mapa; o poema e a
ilha vivem de uma forma, estão dobrados nela, e a própria limitação de seu
tamanho impõe a consciência de ser forma. O mapa de certa maneira
proporciona ao poema a potencialidade de executar uma ação sem ato, uma
ação referida ao mesmo agente, uma ação em que agente e paciente entraram
em uma zona de absoluta indistinção, aquela que Deleuze lê em Espinosa,
a do passear-se a si, ou seja, constituir-se a si visitante, mostrar-se a si visitante.
Nessas expressões em que a potência coincide com o ato e a inoperosidade
|80|

com a obra, Agamben encontra o resultado da imanência e o enuncia como


vertigem provocada pelo movimento da autoconservação e autopreservação
do ser, como visitante de si mesmo. Daí os versos iniciais do epílogo da
primeira parte do livro Las encantadas iniciarem dessa forma:

Darwin, Eneas; Roma, el vértigo


de la evolución. La cosa rara
de basar un destino de gloria
en los vencidos.
(Samoilovich, 2003, p. 31).

Confins I e II: o poema passeia a si mesmo

Caminhamos até aqui na construção de um paralelismo interpretativo


entre Hiléias: Las encantadas. Com isso, tentou-se operar uma crítica que
não esteja baseada em decisões de cunho universalista que ratifiquem posições
nacionalistas que ao contrário de oferecer potencialidade ao pensamento,
como a crítica imanente poderia operar, isola de modo problemático a tradição
crítica que investe em desenvolver o conhecimento sobre si mesma. Para
tanto, se faz necessária uma compreensão de crítica que situada entre culturas
assuma como tarefa, conforme sublinha Raúl Antelo, a “de rescatar un
régimen estético que proponga un modo de ir más allá de las decisiones de
cuño racionalista, característica de los modelos universalistas heredados del
alto modernismo. Se trata, en verdad, de uma alternativa que confronta, de
hecho, dos modelos de historicidad. Una historia evolutiva, historicista,
pautada por rupturas; y una historia circular, hiper-historicista, construida a
través de reinterpretaciones” (Antelo, 2005, p. 33). O que se propôs até
aqui foi justamente o enfrentamento de duas tradições poéticas interpretadas
com base em uma relação delimitada pelos dois pontos; seus confins
|81|

significaram nada mais que o enfrentamento de uma na outra. Contudo,


sabemos que ambos os textos confinam com muitos outros mais nesse mesmo
tipo de relação, uma vez que os dois poetas aqui em questão são tradutores;
portanto, a poesia deles confina com os textos que eles traduzem. Josely
Vianna Baptista, como vimos, é tradutora de Lezama Lima, Carpentier,
Arguedas, Juan Carlos Onetti, Néstor Perlongher e os poemários de Borges.
Daniel Samoilovich traduziu Horácio, Shakespeare, Katherine Mansfield.
Contudo, não importam os objetos que traduzem, mas sim a maneira pela
qual eles são transformados em textos singulares, pois, como propôs Cacciari,
nós nos definimos em relação ao outro. Um lugar é um nome próprio que
se define justamente no ponto em que se toca o outro lugar.

Referências

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|82|

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Continente. Traducción L. Alvarado y J. Nucete Sardí. I-V. 2. ed. Caracas: UCV,
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STEIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Tradução Celeste Aida Galeão.


Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro. s.d.
OS FRACTAIS DO MODERNISMO1

O homem moderno acaba por arrastar consigo, por toda parte,


uma quantidade descomunal de indigestas pedras de saber, que ainda,
ocasionalmente, roncam na barriga, como se diz no conto.
Com esses roncos denuncia-se a propriedade mais própria desse
homem moderno: a notável oposição entre um interior,
a que não corresponde nenhum exterior, e um exterior, a que não
corresponde nenhum interior, oposição que os povos antigos não conhecem.
Nietzsche, Considerações extemporâneas

Na cultura do Ocidente moderno produz-se um excesso ineficaz de


memória, uma síndrome do falso reconhecimento ou dèjá vu, como constatou
Bergson, ou ainda, como quis Nietzsche, uma “hipertrofia da memória” na
qual o saber é absorvido em desmedida e sem fome, que é a causa de uma

1
Este texto foi parcialmente apresentado com intervenção no Colóquio “Pós-Crítica”, organizado
pelo professor Dr. Raúl Antelo, na Universidade Federal de Santa Catarina, em dezembro de
2006. Posteriormente, foi parcialmente publicado no livro organizado por Maria Lúcia de Barros
Camargo e Raúl Antelo (2007), Pós-crítica, que reuniu as contribuições apresentadas no colóquio.
|84|

paralisia e de uma conseqüente contemplação melancólica da vida. A arte e a


cultura de hoje encontram-se diante desse impasse que não é inédito, mas
que, em tempos pós-históricos, pode adquirir contornos produtivos.
É nesse sentido que leremos os poemas de Carlito Azevedo com
um enfoque na discussão sobre o tempo e a memória. Sabemos que analisar
as categorias temporais em um texto poético que privilegia o jogo com
espaço, como são os poemas de Carlito Azevedo, implica ampliar um pouco
mais essas categorias. Sendo assim, não desconsiderando a questão espacial,
refletiremos sobre o espaço como lugar, isto é, como topoi discursivos.
Pensaremos o lugar como algo mais originário que o espaço. Essa tópica ou
essa topia discursiva leva-nos obrigatoriamente a refletir sobre a temporalidade
das obras, uma vez que para Walter Benjamin o lugar da origem é aquele
do fluxo que envolve tanto a “pré” como a “pós-história” das obras e das
formas. Assim que, analisar os poemas de Carlito Azevedo no âmbito de
uma discussão sobre o tempo significa inseri-los numa historicidade do
presente, que contempla, simultaneamente, tanto a sua pré quanto a sua
“pós-história”, mesmo que isso possa parecer paradoxal para um trabalho
que ainda está em processo de criação como é o trabalho do poeta carioca.
Dessa forma, poderíamos propor que a literatura do presente intervém não
somente em sua realidade mais imediata, mas vê (inter-vê) através de olhos
anacrônicos que confinam com todos os tempos presentes de que se compõe
a história da obras e das formas.
Flora Süssekind analisa o livro de Carlito Azevedo, As banhistas,
sob um ponto de vista do espaço ressaltando a opção dos poemas por uma
geometria e não por uma etimologia da “janela”, já presente no primeiro
poema do livro. No entanto, ao levar em consideração o procedimento da
composição em séries, que mimetiza a série das banhistas de Cézanne e de
Valloton, Flora Süssekind indica que este problema merecia um estudo
aprofundado, uma vez que há “uma acentuação dos elementos dinâmicos
da expressão poética, de um esforço marcado de redimensionamento
|85|

temporal na literatura brasileira contemporânea” (Süssekind, 1998, p. 178).


Baseada na constatação de que a experiência é concebida naqueles poemas
como uma negação de um “determinado conceito de vida”, negação que
indica uma compreensão da vida como horizonte de inacabamento, Flora
Süssekind propõe que é o ponto de vista marcado por um modo impessoal
de se relacionar com o vivido que conduz a uma abertura para a realidade.
Os três primeiros livros de Carlito Azevedo são abertos por poemas que
põem em jogo o problema do abrir-se; o primeiro deles é “Os pés premindo”,
de Collapsus Linguae (1991), que na antologia que o poeta faz de seus poemas,
em 2001, ganha o título de “Limiar”, o segundo deles é o “Abertura”, de As
banhistas (1993), e o último é o poema “Limiar”, do livro Sob a noite física
(1996). Deve-se ainda ressaltar que em 2001, na antologia Sub-lunar, na
qual o poeta Carlito Avezedo reedita seus poemas sob o influxo de um
tempo, que não mais o da escrita de cada um daqueles poemas ali relidos,
há um gesto no qual reside algo de temporal. Nesse gesto se valoriza a
atenção que se oferece à experiência poética e o seu jogo de presença-ausência
no tempo, dez anos de poesia, 1991-2001. Os tempos participam com esse
gesto do antologista de uma nova temporalidade, além do tempo da escrita
que viu nascer os poemas, o tempo contido nos próprios poemas, o ritmo, a
rima, os silêncios, acresce-se o tempo do segundo momento da escrita do
poema, uma vez que é o próprio poeta que cata um poema de um livro e de
outro e o reagrupa obedecendo a uma afinidade gerada por novas afeições.
Mário de Andrade, quando comenta os poemas de Pau-Brasil de Oswald,
afirma com energia que aqueles poemas sofrem de um terrível mal: o de
objetivar somente o efeito do poema e não o de produzir o lirismo. Para
Mário de Andrade o lirismo era uma produção de um afeto, o que ele
chama de “comoção”, dentro do poema, esse afeto tinha como causa a tensão
produzida no jogo com a linguagem e não com a preocupação com a forma
que ele achava excessiva em Pau-Brasil.
|86|

Às vezes até a comoção escapa meio não querendo dentro da


forma desejadamente excitante [...] O. de A. gosta do efeito.
Principiou a procurá-lo. [...] O. de A. está se preocupando por
demais com a forma escravizando o lirismo dele a uma poética dos
efeitos. (Andrade, 2003, p. 74-75).

O lirismo ou os afetos produzidos no poema são absorvidos por


numa duração, Gilles Deleuze relendo Spinoza chama esse absorver das
afeições de efeito. Nesse sentido, diríamos que o efeito de um poema pode
ser produzido na sua duração. Portanto, os efeitos de Pau-Brasil poderiam
na visão de Mario de Andrade ser fruto de um defeito de economia poética,
porém, seus efeitos serão produzidos pelo absorver dos afetos que deveria
ter criado. Dessa forma, a produção afetiva do poema ocorre nos efeitos que
produz. O ato do Carlito Azevedo de fazer a antologia em 2001, reorganizar
os poemas, reagrupando-os sob a influência de outros afetos, produz outros
eventos, produz outros poemas.
A que afetos estão conectados os poemas de As banhistas (1993), em
especial o poema “Abertura”, o poema “Limiar”, do livro Sob a noite física
(1996), e o “Os pés premindo”, de Collapsus Linguae (1991), que na antologia
ganha o título de “Limiar”? E como eles produzem efeitos?
“Abertura” (1993), “Limiar” (1991) e “Limiar” (1996) estão incluídos
na seção temática intitulada “Do lado de fora” da antologia de 2001. O
poema “Abertura” continua abrindo, como no livro As banhistas, ele introduz
a seção e marca um ponto de vista que segundo Flora Süssekind é o ponto
de vista da deserção. A abertura funciona como significante daquilo que
falta, “daquilo que não acontece com tal”, a ensaísta entende que a abertura
conduz a geometria do poema a um tipo de deserção.

Desta janela
domou-se o infinito a esquadria:
desde além, aonde a púrpura sobre a serra
|87|

assoma como fumaça desatando-se da linha,


até aqui, nesta flor quieta sobre o
parapeito – em cuja bordas se lêem
as primeiras deserções
da geometria.
(Azevedo, 2001, p. 35).

Que afetos, que tempos o poema recolhe e se conecta em 2001? O


afeto é produzido “do lado de fora” da abertura, fora da esquadria, da geometria
da janela, da qual já em 1993 o poema abrira mão. Mas em 2001 o lugar do
evento, do efeito, da duração do afeto, acontece “do lado de fora”. O poema
radicaliza o processo de deserção da geometria, marcada pela imagem da flor,
essa cifra do tempo, que está no parapeito, no limiar da deserção. A imagem
da flor, o carrossel do tempo, na borda, no marco da janela reforça sua opção
pelo tratamento desse espaço geométrico como um lugar mais originário que
o espaço, como um lugar do poema como acontecimento temporal que ocorre
fora, inclusive, do tempo da tradição literária. No poema ocorre a deserção do
ponto de vista seguro, deserção do ponto de vista da experiência pessoal,
deserção do processo de conhecimento baseado nessa experiência, isto é, deserção
de uma subjetividade que se funda em economizar e gerenciar o passado
como maneira de se autoperpetuar.
Em “Limiar” (1996) que também está “do lado de fora” e a imagem
da via-láctea que é uma galáxia está despenteada no dia quem sabe em que
se comemorava a passagem ao novo século. Um poema do futuro, quiçá,
uma vez que ainda em 1996 não comemorávamos a passagem ao novo
século. No entanto, em 2001, a passagem ao novo século era já passado, ou
pelo menos teria sido transferida para o final dos próximos 100 anos.

A via-láctea se despenteia.
Os corpos se desgastam contra a luz.
Sem artifícios, a pedra
|88|

acende sua mancha sobre a praia.


Do lixo da esquina partiu
o último vôo da varejeira
Contra um século convulsivo.
(Azevedo, 2001, p. 41).

A deserção ao século não se estanca, e ainda sem os artifícios que


acendem a mancha da pedra na praia. A varejeira continua a empreender
seu vôo frágil, mas asqueroso, contra o tempo linear e, portanto, moderno.
O poema igualmente radicaliza sua opção pelo ausentar-se do tempo da
modernidade.
No livro Collapsus Linguae o poema “Os pés premindo” (1996) ou
“Limiar” (2001) que estava situado na sessão dedicada a tratar da relação da
pintura e da poesia, intitulada “Água forte”, agora, em 2001, está “do lado
de fora”.

Os pés premindo
a inexistente relva do asfalto
duro da rua sem vida a não ser a
que lhe dás quando subitamente cruzas
o espaço e somes num átimo deixando
entretanto no ar qualquer coisa de tão
botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo
uma colhedora de mimosas a que um
homenzinho cedesse a passagem
à espera (desesperada)
de um sorriso
(Azevedo, 1991, p. 13).
|89|

A abertura põe em jogo o problema do estar entre dois estatutos,


não somente o da pintura e o do poema, mas também o de estar entre a
opção por um poema narrativo e o poema como instante, como o ápice
temporal de um acontecimento que lhe sintetizaria os demais momentos
que o compuseram, posição essa que esbarra na possibilidade de incorporar
o movimento na pintura. Segundo Flora Süssekind os poemas alcançam
um efeito de movimento temporal mediante o uso do princípio da
serialização que faz o tempo escoar de modo descontínuo, numa forma de
expressão baseada na repetição, nas variações sobre um mesmo tema e na
observação de cada um dos pontos de vista que cada evento promove. De
alguma forma, essa preocupação com a faculdade de concentrar no instante
que dura o poema toda a sua informação estética, como nesse poema que
acabamos de ler em que o tema do olhar que reconhece por um instante na
efêmera passagem da figura feminina uma imagem da vida de uma obra
que por sua vez já estava gravada em suas retinas, ou seja, o quadro A
alegoria da primavera de Botticelli, é uma preocupação que deve acompanhar
toda reflexão sobre a imagem. Devemos lembrar que uma das mais marcantes
características da imagem é a de provocar anacronismos, provocar movimento
temporal, nesse sentido, a poética da brevidade e a poética do instante
concretista, baseada no corte sincrônico, podem ser analisadas sob a
perspectiva de um erro estratégico do concretismo em sua busca pelo poema
visual. Ao optar pela sincronia, o concretismo não levou em consideração
que a imagem traz consigo uma montagem de tempos heterogêneos. Sendo
assim, a imagem, em termos físicos, é reflexão da luz no tempo, revelação
da luz na retina, cujo efeito é o ingressar da imagem na história. E dessa
imagem-poema, desse “Limiar”, dessa passagem desdobra-se uma outra, a
da “Nova Passante”, o poema que passa.
|90|

1. Sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
– sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)

2. talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
– mas eu que venero (mais que o ouro
verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz
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3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)
(Azevedo, 1991, p. 50-51).

No entanto, sua passagem não gera o poema, gera, ao contrário, um


poema que poderia ter sido, pois os verbos falam de ações que não ocorreram,
e que, por isso, conservam sua potência de dizer: “sobre esta pele branca[...]
teria gravado [...] talvez um poeta afogado [...] dissesse [...] algum
mozárabe ou andaluz decerto te dedicaria um concerto [...]”. O mesmo
ocorre com o poema “Do livro das viagens”, publicado pela primeira vez
em Versos de circunstância.

Liliana Ponce não esqueceu o seu casaco no salão de chá


Liliana Ponce nem estava de casaco
(No Rio de Janeiro fazia um belíssimo dia de sol e dava gosto olhar
[cada ferida exposta na pedra)
Liliana Ponce, conseqüentemente, não teve que voltar às pressas
[para a casa de chá
(a garçonete com cara de flautista da Sinfônica de São Petesburgo
[não veio nos alcançar à saída
[acenando um
casaco esquecido)
|92|

Desse modo Liliana Ponce chegou a tempo de pegar o avião


Partiu para a Argentina.
(Azevedo, 2001, p. 8).

Portanto, estamos diante de poemas que retomam não a experiência


subjetiva do já vivido como apenas uma experiência pessoal, estamos sim
diante de uma experiência com o poema marcada por uma historicidade
que lhe é fornecida mediante a reflexão que opera do já vivido como
faculdade, isto é, como potência que a distingue de uma existência singular.
No poema há um contundente esforço da linguagem por dissociar a
experiência pessoal, portanto, espacial e territorial, da experiência temporal,
por sua vez, desterritorializada e, desse modo, desubjetivada, sem, no
entanto, arrancar-lhe o caráter de experiência de um sujeito poético. Assim
acontece no poema “Collapsus Linguae” que gera uma parada, um colapso
que se dá na retina de uma experiência pessoal, uma provável despedida em
que a água e a sílaba retêm a partida.

retina: água e sílaba


retendo a partida?

um lapso de vida:
collapsus linguae?

o vivente morrente:
torrente e clepsidra
(Azevedo, 1991, p. 28).

Novamente estamos diante de uma concepção de tempo do poema


permeada pela obsessão do punctum temporis, porém, é no “lapso de vida”
que ocorre a experiência história, e não no acontecimento seguro, pois entre
|93|

a memória pessoal e a memória histórica, que é coletiva, houve uma cisão


simultânea, um colapso entre a potência de dizer e o ato de fala realizado
como novidade, e essa é mais uma característica da imagem. E uma bela
imagem reforça no poema a reflexão sobre o tempo que, simultaneamente,
o abre para o tempo anacrônico: o relógio de água – “clepsidra”, que é o
fluxo, o rio corrente, que gera a experiência histórica “na vida das retinas tão
fatigadas” do poema. A temporalidade radical do poema é estranha ao
discurso cronológico, uma vez que conjuga todos os tempos na sua própria
temporalidade.
Há uma simultaneidade entre o “antes” não cronológico e o logo
“em seguida” do evento poético inserido numa temporalidade radical, nela
encena-se mais um desdobrar cujo efeito é o de fazer-nos refletir justamente
sobre esta temporalidade do presente. No poema “Fractal”, também
publicado em Collapsus Linguae, “pervivem” os vincos das pregas do trabalho
poético de Carlos Drummond de Andrade desdobradas ali.

No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um


[mineral da natureza das rochas duro e sólido
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido no
[meio da faixa de terreno destinada a trânsito
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
no meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um
[mineral da natureza das rochas duro e sólido.

Nunca me esquecerei deste acontecimento


Na vida de minhas membranas oculares internas em que
[estão as células nervosas que recebem
[estímulos luminosos e onde se projetam
[as imagens produzidas pelo sistema
[ótico ocular, tão fatigas.
|94|

Nunca me esquecerei que no meio da faixa de terreno


[destinada a trânsito
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
[no meio da faixa de terreno destinada a
[trânsito
no meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um
[mineral da natureza das rochas duro e
[sólido.
(Azevedo, 1991, p. 32).

Sem aprofundar muito a questão, apenas gostaria de sublinhar que


como nos fractais que compõem a teoria do caos, a irregularidade no poema
“Fractal” tanto em relação a si mesmo como em relação ao poema “No meio
do caminho” de Drummond é, paradoxalmente, regular. Está é uma das
principais características dos fractais: a auto-semelhança; da mesma forma
que um pedaço desse todo é semelhante ao conjunto inteiro. Se relembrarmos
a teoria das mônadas de Leibniz descritas e comentadas por Deleuze, veremos
que a teoria da dobra barroca e do procedimento de derivação está baseada
na “ex-plicatio”, isto é, o de estender para fora mediante o pli, a prega,
veremos que a compreensão dos fractais implica uma imersão em sua pré-
história barroca. No Goethe relido por Walter Benjamin tanto em O conceito
de crítica de arte no romantismo alemão como em Origem do drama barroco
alemão encontraremos essa mesma reflexão nas considerações sobre a obra
de arte fragmentária. Walter Benjamin nos diz, via Goethe, que a história
das obras é interna,

[...] e não deve ser entendida como algo de infinito, e sim como algo
relacionado com o essencial, cuja pré e pós-história ela permite
conhecer. A pré e a pós-história de tais essências, testemunhando
que elas foram salvas ou reunidas no recinto das idéias, não são
|95|

história pura, e sim história natural. A vida das obras e formas, que
somente com essa proteção pode desdobrar-se com clareza, não-
contaminada pela vida dos homens, é uma vida natural. [...] Porque
o conceito de Ser da ciência filosófica não se satisfaz com o fenômeno,
mas somente com a absorção de toda a sua história. O aprofundamento
das perspectivas históricas em investigações desse tipo, seja tomando
como objeto o passado, seja o futuro, em princípio não conhece
limites. Ele fornece à idéia a visão de totalidade. E a estrutura dessa
idéia, resultante do contraste entre seu isolamento inalienável e a
totalidade, é monadológica. A idéia é uma mônada. O Ser que nela
penetra com sua pré e pós-história traz em si, oculta, a figura do
restante do mundo das idéias, da mesma forma que segundo
Leibniz, em seu “Discurso sobre a Metafísica”, de 1686, em cada
mônada estão indistintamente presentes todas as demais. [...] A
idéia é mônada – isto significa, em suma, que cada idéia contém a
imagem do mundo. (Benjamin, 1984, p. 69-70).

Interessante para essa discussão sobre os atributos do fractal é


relembrar que Luz Rodríguez-Carranza em ensaio ainda inédito sobre a
novela, Congreso de Literatura, de César Aira, ressalta o processo de duplicação
de objetos perdidos no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de Borges,
processo pelo qual são criados os hrönir, que são objetos em segundo grau,
sendo que o mais estranho e puro de todos os hrönir é o grande Ur, isto é, a
duplicação produzida por sugestão. Luz Rodríguez relaciona esse Ur com
o seu sentido etimológico de pré-história e sua possibilidade de sobreviver
sob formas novas. Dessa forma, o Fractal, o Ur e por que não pensar no
Aleph, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo,
vistos de todos os ângulos, seriam formas superiores de derivação histórica
porque estão baseadas em anacronismos. Assim, poderíamos pensar a história
natural das obras e das formas, conforme assinalou Walter Benjamin no seu
estudo sobre o drama barroco, regida por uma vida natural das obras baseada
em outra ordem, isto é, compreendida por um princípio de diferenciação
do idêntico. A pergunta que se instaura é: depois de “a vida das retinas tão
fatigadas” de Drummond e da “vida de minhas membranas oculares internas
|96|

[...] tão fatigadas” de Carlito Azevedo e todos os poetas que vivem a


temporalidade radical do presente, como criar uma reflexão sobre o futuro
da literatura? Como pensar o futuro com tanta memória gravada nas retinas?
À sua vez, Paolo Virno, em seu livro sobre a hipertrofia da memória,
Il ricordo del presente, alerta que a história pode ser retida quando a faculdade
e a potência do recordar ficam reduzidas a um roteiro meticuloso e forçado,
a um acúmulo de ações que se repetem até o infinito. Tomada como mera
repetição, a história transforma todas as ações em epígonos ou espectadores
da faculdade de poder-ser presente em cada uma dessas ações. A reflexão
sobre o fim da história de Virno tem como base o que Nietzsche analisou
como uma paralisia da ação provocada pela hipertrofia da memória. Também
toma parte desse pressuposto a análise que Alexandre Kojève fez do esgotamento
da história diagnosticado por Hegel como o “domingo da história”, como o
fato consumado, uma vez que as sociedades industriais posteriores à segunda
grande guerra deixaram para trás a luta contra a natureza e a luta pelo
reconhecimento recíproco, já que a oposição entre sujeito e objeto perde o
peso e o significado a partir do momento em que os processos produtivos
automatizados capturaram e submeteram a natureza e permitiram um acordo
com ela. Do mesmo modo declina a importância da política, isto é, a busca de
reconhecimento alheio por meio de guerras, disputas de grupos e revoluções.
Portanto, acaba o problema da negação “do ser-dado” que instituía sempre de
novo o mundo histórico, reduzido a trabalho e política em Hegel. Então
surge a pergunta: Quais são as formas de vida que prevalecem na sociedade
pós-histórica? Segundo Kojève, duas: uma nova animalidade (um
contentamento, exemplificado no “American way of life”, que se distingue da
felicidade) e o esnobismo (cunhado mediante a observação que fez da cultura
japonesa em sua viagem ao Japão em 1959) materializado num comportamento
artificioso que reúne todo automatismo utilitário e contradiz o dado natural e
animal. No esnobe residiria uma cesura entre a forma e o conteúdo de sua
própria atividade, um formalismo extremo seria um tipo de princípio-esperança
|97|

de alcance geral, sempre separando as formas para contrapor-se como uma


forma ao outro, tomado sempre como conteúdo. Diz Paolo Virno: “O
esnobismo põe a nu os fundamentos dos conflitos históricos, já que se empenha
em representar, mediante uma série de gestos determinados, o contraste que
subsiste entre o gesto humano e o ser-dado.” (Virno, 2003, p. 45).
Giorgio Agamben, no livro, L’ aperto, o aberto, ao analisar a questão
do esnobismo proposta por Kojève percebe nele uma semelhança, isto é,
uma versão mais elegante ou paródica daquela “negatividade inoperante”
de Georges Bataille. Agamben associa Kojève e Bataille a uma excessiva
preocupação com um fim, com a morte, o que, segundo sua análise, reinstitui
um tipo de messianismo ou uma escatologia para a história.

Il tono farsesco che Bataille rimproverava al maestro ogni volta


che questi provava a descrivere la condizione poststorica raggiunge
un questa nota il suo vertice. Non soltanto l’American way of life è
equiparato a una vita animale, ma la sopravvivenza dell’uomo alla
storia nella forma dello snobismo giapponese assomiglia a una
versione più elegante (anche se, forse, parodica) di quella
‘negatività senza impiego’ che Bataille cercava di definire nel suo
modo certamente più ingenuo, e che agli occhi di Kojève doveva
apparire di cattivo gusto. (Agamben, 2003, p. 18-19).

Melhor do que pensar a história ou o futuro da literatura e da crítica


sob a perspectiva do seu fim, ou de sua “pós-história”, para Agamben, e
aqui seu pensamento revela sua pré-história benjaminiana, é pensar o futuro
da história na aporia, entendida inclusive na sua falta de caminho seguro,
entre a “pré” e a “pós-história” das obras e das formas, isto é, “na aporia do
corpo dividido irredutivelmente entre animalidade e humanidade”, entre a
voz e a linguagem, entre a memória e o esquecimento.

Ma che ne è dell’animalità dell’uomo nella poststoria? Che


relazione c’è fra lo snob giapponese e el suo corpo animale e fra
questo e la creatura acefala intravista de Bataille? D’altra parte, nel
|98|

rapporto fra l’uomo e l’animale antropoforo, Kojève privilegia


l’aspetto della negazione e della morte e sembra non vedere el
processo per cui, nella modernità, l’uomo (o lo Stato per lui)
comincia invece a prendersi cura della propria vita animale e la vita
naturale diventa anzi la posta in gioco in quello che Foucault ha
chiamato il biopotere. Forse il corpo dell’animale antropoforo (il
corpo del servo) è il resto irrisolto che l’idealismo lascia in eredità
al pensiero e le aporie della filosofia nel nostro tempo coincidono
com le aporie di questo corpo irriducibilmente teso e diviso fra
animalità e umanità. (Agamben, 2003, p. 19-20).

Nesta aporia que divide e fragmenta o corpo, que também fragmenta


e divide a filosofia, bem como o poema, estariam contidas em potência, isto é,
em sua virtualidade, a totalidade da história e do modernismo, uma vez que a
história mesma é contemplada e estudada mediante o seu próprio avesso. Essa
por excelência é a imagem alegórica para Walter Benjamin quando sublinha
que a “pré” e a “pós-história” das obras não são história pura, e sim história
natural. No entanto, de acordo com o filósofo alemão, a natureza mesma
somente pôde ser compreendida em seu aspecto de não-natureza.

Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca,


mundana, da história como história mundial do sofrimento,
significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a
significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que
grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a
physis e a significação. Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita
à morte, desde sempre ela foi alegórica. (Benjamin, 1984, p. 188).

Não deveríamos esquecer também que é o próprio Giorgio Agamben


quem sublinha, em Infância e História, a função da aporia como saída para
o impasse da experiência nos tempos da “pós-história”, isto é, como
possibilidade ainda de pensarmos a experiência depois do fim da história.
Daí que a poesia do presente, hoje, tenha a função de fazer coincidir,
assumindo que há uma total impossibilidade de sua realização, duas coisas
|99|

que a modernidade literária esgotou há muito: a possibilidade do


conhecimento e da experiência.
O problema é como fazer experiência poética e ao mesmo tempo
produzir o novo se nosso “agora” está saturado de memória. Giorgio
Agamben quando comenta o problema da experiência de modo particular
nas “quêtes” medievais, como vimos, ressalta que nas “quêtes” a única
experiência possível ao homem é a da aporia. Por esse mesmo motivo, a
concepção de experiência das aventuras, que se apresenta na idade moderna,
como último refúgio da experiência, se opõe à das “quêtes”, já que a aventura
prevê que exista um caminho para a experiência que passe pelo extraordinário
e pelo exótico. Agamben ressalta ainda que nas “quêtes” o exótico e o
extraordinário são a cifra da aporia de toda experiência. O sujeito das “quêtes”,
o velho sujeito da experiência, se desdobrou em dois modernos sujeitos que
se materializam na primeira novela de aventura e não mais nas “quêtes”,
apesar de operar mediante a mimese desta, e que esboça os princípios
reguladores da experiência na modernidade, Don Quijote de la Mancha. Ali
os sujeitos do conhecimento desdobrado, isto é, “ex-pli-cado” nas suas
instâncias subjetivas, unem-se, segundo Agamben, numa busca tão
aventureira quanto inútil. Uma dessas instâncias seria aquela marcada pela
posição de Dom Quixote, o velho sujeito do conhecimento, com toda sua
memória da tradição, que foi enfeitiçado, e só pode fazer a experiência, sem
nunca possuí-la. E, inseparavelmente ao seu lado, instância marcada pela
posição de Sancho Pança, o velho sujeito da experiência, que só pode ter
experiência, sem fazê-la nunca. Enquanto um faz experiência com a tradição –
não com a racionalidade, mas sim baseado na falta dela – para encontrar
valores e critérios, o outro apenas possui a experiência e a reproduz com
base no caminho já percorrido, em outras palavras, no cânone, reproduz o
conhecimento mediante a construção de uma trilha segura, de um
“méthodos”, ou seja, de um “ABC” da literatura em direção ao valor máximo
da construção lingüístico-discursiva. Ao invés disso, a aventura de Dom
|100|

Quixote se baseia em um caminho paralelo, que é o caminho da “quête”


medieval, o caminho dos heróis que ele recorda em sua relação pouco ortodoxa
com a tradição.
Ao contrário de todo experimentalismo contraditoriamente
possuidor de conhecimentos seguros, é o reconhecimento da ausência de
caminho (a-poria), de método, que fundamenta a única experiência possível
para a literatura. No mesmo momento em que a aventura gera cansaço, gera
a fatiga nas retinas do poeta. Já vimos que os modernistas, especialmente
Mário de Andrade, falavam disso. O problema do presente não pode ser
definido pelo cansaço, pois assim teremos que reutilizar os mesmos
procedimentos textuais já usados pelos modernistas diante da hipertrofia da
memória, que foram a paródia, o pastiche e a citação. E é daí que decorrem
as análises críticas baseadas nas gerações, nas filiações entre a poesia dos que
estão com as retinas cansadas. Dom Quixote, se visto apenas pelo prisma da
sua “quête”, não se cansa. A “quête” não gera fadiga uma vez que nela
vive-se o ordinário e o familiar como extraordinário e o extraordinário como
familiar e nisso reside o seu valor que não é da ordem das grandezas e nem
pode, por isso, ser chamada de literatura menor. A poesia do presente é a
poesia ordinária, isto é, de todas as ordens, que é imemorial uma vez que é
impossível guardá-la na memória para preservá-la, pois envolve todos os
tempos já que sempre esteve aí. Em seu anacronismo trata o extraordinário
como ordinário e vice-versa. Não provoca fadiga como na aventura
intelectual, porque no lugar de reinstituir a prática da memória, a memória
do modernismo, por exemplo, propõe a prática imemorial da “quête”, isto
é, a busca pela experiência como “a-poria” (o abandono do caminho).
Nesse sentido, a “ex-pli-catio” produzida no poema “Fractal” de
Carlito Azevedo toma o ordinário e o familiar como extraordinário, posição
que caracteriza uma opção por uma concepção de tempo imemorial, tanto
em relação ao passado como ao futuro. Diferente da aventura moderna, na
busca de “Fractal” pervive uma noção de abandono do “projeto”. A
|101|

experiência produzida no poema entende o lugar do poema como lugar


originário, que é o de catar, buscar catando, catando os resíduos, catando
aquilo que sobra da experiência histórica com o poema, para produzir a
experiência histórica do poema. Na aventura reside a necessidade do projeto
e para se ter projeto há que se ter uma finalidade e, portanto, um fim. A
poesia do presente é um meio que abandona o seu fim, a sua finalidade. Há
textos que podem falar melhor sobre isso, por isso, transcrevo aqui um
trecho do poema “Depois da história”, do último livro de Marcos Siscar, O
roubo do silêncio:

(Hoje dispensei os chinelos, desci descalço na direção da porta do


prédio. Tudo me levava à comunhão com o solo, a um espírito de
precisão. Mas logo na sola dos pés percebeu-se o embaraço. E a razão
do próximo passo feriu-se à sombra amarela da repetição. Olhei bem
direto no metal e no vidro da porta, mas minha força se dividiu em
duas. Uma dela partiu em direção à rua, levando o lixo, fiel à humana
pista, e desfez-se no pó de dias. A outra ficou, ciência sem método,
acumulação sem dono, direção sem rumo) (Siscar, 2006, p. 42).

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da


história. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

_______. L’aperto. L’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2003.

ANDRADE, Mário. Oswald de Andrade: Pau Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925.
In: ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.

AZEVEDO, Carlito. Collapsus Linguae. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1991.

_______. Versos de circunstância. Rio de Janeiro: Moby Dick, 2001.

_______. Sublunar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.


|102|

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sérgio Paulo


Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

_______. O conceito de crítica de arte no romantismo. Tradução Márcio Seligmann-


Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.

_______. Dos ensayos sobre Goethe. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., 1996.

CAMARGO, Maria Lúcia de Barros; ANTELO, Raúl. Pós-crítica. Florianópolis:


Letras Contemporâneas, 2007.

DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o barroco. Tradução Luiz Orlandi. São


Paulo: Papirus Editora, 1991.

_______. Espinosa. Filosofia Prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal.


São Paulo: Escuta, 2002.

_______. Spinoza e as três éticas. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart.
São Paulo: Editora 34, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Considerações extemporâneas. Tradução Rubens R. Torres


Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

SÜSSEKIND, Flora. A Voz e a série. Rio de Janeiro: 7Letras; Belo Horizonte:


Ed. UFMG, 1998.

VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente. Ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos
Aires: Paidós, 2003.
A LITERATURA E O MAL.
O ARCO FLORAL TORQUATO
NETO E MARCOS SISCAR1

Em 1971, era possível ler no terceiro número do semanário A Flor


do Mal, publicação “underground” produzida pelo grupo que editava e
publicava o jornal Pasquim, um anti-manifesto da produção cultural tomada
em sua potência de inoperante.

O mal da Flor é ser um jornal, por isso existe sua mistificação,


assumindo e queimando no próprio fogo que apaga a última pala
travada nos dentes da máquina, que bate, bate e está presente sem
natal, pois todo dia é natal, e nem todo dia tem panela na sopa.
Quem diria que o pato é macho? Se tem barata embaixo do tapete?
É mato, batalhões na dispensa, milhares nas bocas de lobo, centenas
nas varandas tomando sol de lomba, procurando uma psidelinha.
Ainda assim voam pra cascalho. Mas voltando ao assunto anterior,
alguém bate na porta, eu não quis abrir e me distraí novamente no

1
Este texto foi inicialmente apresentado como intervenção no Seminário “Políticas do Anacronismo”
organizado pelo professores doutores Raúl Antelo e Susana Scramim, na Universidade Federal de
Santa Catarina, em agosto de 2007.
|104|

barato da barata que está aqui mentalmente, enormemente, fatalmente,


despudoradamente anunciando a flor do mal. Chega de falar mal da
Flor, mas era indispensável, no esclarecimento do assunto, proposto,
cordialmente, pela casualidade do personagem tão mal compreendido
pelo vulgo verdadeiro, o diabo. (Luiz, 1971, p. 5).

O ato de rejeitar em 1971 a função do jornal como porta-voz de


uma posição política ou cultural militante contra a organização social
capitalista e contra a ditadura militar no Brasil não significava desviar de
sua potência de rejeitar o princípio mesmo que governa essa maneira de
conceber a produção cultural. O semanário Flor do Mal toma para si a
tarefa da contracultura transformando-a de uma utopia de vida em
conformidade com o mito da natureza idílica em uma distopia, isto é, a
ativação de uma passividade negativa na relação com a utopia na qual a
potência-não se transforma em ato, conservando sua virtualidade de “ser-
não”. Aproximar-se da flor e tomá-la como “distopia”, portanto, da natureza
como negatividade, não deixa atestar uma compreensão da cultura avessa à
noção dualista entre racionalidade e obscuridade, entre vanguarda e atraso,
bem como entre arte abstrata e arte figurativa.
O semanário Flor do Mal que circulou somente no ano de 1971 era
editado por Sérgio Cabral e Luiz Carlos Maciel, mas nele figuravam autores
como Torquato Neto, Ana Maria Silva Araújo Duarte, Waly Salomão e
Hélio Oiticica. O poeta Torquato Neto monta a capa da primeira edição do
Flor do Mal de uma fotografia que ele junta do lixo da redação do jornal
Última Hora, onde trabalhava. Era a foto de uma menina negra e pobre
que havia desaparecido e posteriormente soube-se que ela fora assassinada –
essa nossa intemporal sociedade violenta – em Belfor Roxo, no Rio de
Janeiro. A fotografia revelava o busto da menina favelada que parecia estar
nua porque estavam à mostra os seus seios. Por causa da censura os
responsáveis pela edição acharam por bem publicar a imagem da menina
apenas do pescoço para cima.
|105|

De acordo com uma concepção anacrônica do tempo, podemos


pensar que a capa de Flor do Mal que Torquato Neto compõe insere mais
uma prega na serialização das imagens da flor, tomada na sua abjeção e
erotismo e transformada em musa da literatura. Sabemos que vários artistas
ilustraram as edições de Les Fleurs du Mal de Baudelaire com desenhos de
nus femininos, a que ilustrou Auguste Collot apresenta três adolescentes
desenhadas nuas da cintura para cima. Há nessa foto rasgada da menina
morta pela violência intemporal brasileira uma duplicação da imagem do
mal na literatura, que foi produzida por uma atenção distraída de Torquato
Neto que a resgatou de um cesto de lixo para colocá-la na capa do primeiro
número de Flor do Mal.
Mas o que é essa flor “underground” e no que ela se diferencia da
flor “contra-cultural” dos hippies?
Christine Buci-Glucksmann, em Au-delà de la mélancolie (2005),
associa a história do olhar no Ocidente à história da paixão floral. Diz a
crítica francesa que é como se o motivo das flores na sua variedade histórica –
desde as naturezas mortas e das Vanitas do século XVII às flores de Manet,
Monet, Van Gogh, Matisse, O’Keeffe, Warhol ou Richter – desdobra os
motivos de um olho reflexivo e atento, aberto sobre o mundo. A crítica
completa sua análise sublinhando que a flor não é uma essência, mas sim
uma metáfora e por que não uma alegoria da pintura no sentido que lhe
ofereceu Vermeer. A flor vê e se ela vê é porque há uma visão primeira
ensaiada na flor. Desse modo, a análise de Christine Buci-Glucksmann
passa a compreender o emblema do anjo da história para além da leitura
benjaminiana das teses sobre a história, isto é, o anjo como signo da destruição
que é a história, e retoma a reflexão sobre a história que o expressionismo
faz, mais especificamente, como o faz o trabalho de Paul Klee, ou seja,
como incessante e impessoal “vir-a-ser” e declínio. Christine Buci-
Glucksmann enfatiza os trabalhos dos últimos anos do artista alemão nos
quais há uma intensa produção de seres de passagem entre o céu e a terra,
|106|

entre a vida e a morte, entre a natureza e a abstração da vida. Daí que nesse
lugar de passagem o angélico adquira a leveza de uma linha e a pura inflexão
rítmica de uma borboleta. Se associados à natureza, anjos passam de seres
intermediários imortais e atemporais a seres sujeitos às metamorfoses da
natureza, portanto, passam a ser compreendidos em seu constante “vir-a-
ser” e declinar. A natureza nesse modo de tratamento artístico incorpora os
atributos daquilo que antes estava limitado apenas ao devir histórico. Passa
a ser pensada com os parâmetros de uma história que age mais por
combinação de elementos do que por evolução. Se, de seu lado, o
conhecimento produzido no evento com a natureza doa impessoalidade às
abordagens do evento humano na modernidade, um recurso muito
freqüentemente utilizado pelos críticos do paradigma modernista e, portanto,
vanguardista, para desviar do dualismo radical entre o abstrato e o figurativo,
por outro lado, o conhecimento produzido pelo evento histórico doa à
natureza a historicidade.
Em 1972, no ano seguinte à publicação do primeiro número do
semanário Flor do Mal, com sua imagem do feminino maldito, o poeta
piauiense compunha para ser musicado por Jards Macalé o poema “Let’s
play that”.

Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse


apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
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vai bicho desafinar


o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Let’s play that


(Torquato, 2004, p. 131).

O anjo que deveria ser barroco, isto é, franqueador da passagem


entre o céu e o inferno, e que poderia ter sido um anjo-borboleta, anjo-
natureza, não o é; ao contrário, é um anjo possuído por uma falta de razão
e com asas pesadas como as de um avião. Ele é um anjo que não tem
vocação para ser “gauche” na vida, já que o “gauche” lhe associaria
imediatamente a utopia social da estética de Drummond. Esse anjo
“nosferatu”, que também pode ser o vampiro baudelairiano2 que é ao mesmo
tempo algoz e vítima de seu destino, é, na sua imanência, anjo das trevas,
isto é, o próprio mal. George Bataille, criticando o livro de Sartre sobre
Baudelaire publicado em 1946, analisa a opção pelo mal em Baudelaire
como um modo de produzir uma forma poética impessoal. A equação de
Sartre previa que a obra de Baudelaire opta pelo mal para chegar ao bem.
Estaríamos, com isso, diante de um transgressor ainda utópico, que toma o
mal como meio para chegar a uma finalidade: a destruição do sistema que
transforma o mundo em mercadoria. O mal para Sartre é visto como uma
estratégia de ruptura. A discussão travada entre Sartre e Bataille possui os
contornos éticos que também estavam inerentes à polêmica entre Walter
Benjamin e Bataille já assinalada por Giorgio Agamben, isto é, de como

2
“[...] Imbecil! – se de teu retiro/ Te liberássemos um dia,/ Teu beijo ressuscitaria/ O cadáver de
teu vampiro”, em As Flores do Mal (1985, p. 181).
|108|

não haver uma responsabilização moral e individualizada na prática do


mal. No entanto, o mal, que Bataille entrevê também na obra de Baudelaire,
é um meio sem fim, é o mal pelo mal, e não o mal que busca o bem, é um
uso do mal como produção negativa. Mediante o mal a poesia de Baudelaire
pode aceder a uma soberania sem sujeito, ou ainda à soberania sem decisão.
O mal da flor produz na poesia de Baudelaire a “imanência absoluta”, isto
é, a sua passagem ao “fazer-se coisa”.
Se combinamos a reflexão que Buci-Glucksmann faz da alegoria
da flor na sua possibilidade de escapar ao subjetivismo moderno na arte e
na história com a reflexão sobre o mal compreendido simplesmente na sua
imanência, poderemos pensar que o anjo torto e a flor do mal do poeta
maldito Torquato Neto reafirmam uma opção da potência da literatura e da
arte na América Latina de “ser-não”. Portanto, não se trata de ser negação
da cultura capitalista e neocolonialista, mas sim de evidenciar o quão incisiva
essa arte pode ser uma vez empreendida a tarefa de alterar sua própria
concepção de tempo e de arte. Em 1995, Waly Salomão recupera essa
soberania sem sujeito da poesia de Torquato Neto afirmando que sua poesia
não era nem crítica nem prestava culto, ao contrário, criou para si um ritual
de auto-imolação.

Ironia, sorriso escarninho ou gargalhada zombadora, elegia ou


ode, amarga ou gaia ciência: são algumas veredas para além da selfy-
pity masoquista. Contudo a autocomiseração é a marca registrada de
“Death & Co.” , “Lady Lazarus” et caterva. Quão tautológico é o
cogito nascido da extrema e estéril clarividência da tristeza: triste
ergo sum! Entre a oswaldiana linha recortada do Manifesto Antropófago
“Alegria é a prova dos nove” e a linha seguinte ancorada na sabedoria
de um adagiário conservador que reza “A tristeza é o meu porto
seguro”, o coração ainda quer balançar, mas o peso maior recai
sobre a última linha, infelizmente. Talvez mordido pelo escorpião
do seu signo zodiacal, Torquato grudou em si a “persona” de um
anjo que se queria ainda mais torto que o anterior anjo, gauche de
Carlos. Em vez de tornar-se crítico irônico ou pagão politeísta
|109|

adorador do mundo multifacetado, Torquato Neto paganizou-se


num moto-perpétuo de auto-imolação. Semelhante ao gosto do
escritor japonês Mishima, que medusado pela imagem de São
Sebastião flechado, executou o haraquiri enquanto expressão-limite
da bod art camicase. O suicídio seria uma sinopse niilista haicai da
vida??? (Salomão, 1995, p. 8).

Se o parâmetro da reflexão é aquilo que muitos artistas e poetas


brasileiros do início da década de 1970 estão pensando e produzindo e,
mais ainda, se atentamos para o fato de que quem publicava o semanário
Flor do Mal era o grupo Pasquim, veremos que coexistem uma produção
que atesta compromissos sociais e de práxis política, com uma propensão a
certo didatismo, e sua contraparte formalista neovanguardista, com algo
que poderíamos aproximar com o que Germano Celant em seu livro
Inexpressionismo caracteriza como uma arte profana e cética que trilha o
caminho do não-ser. A poesia de Torquato Neto transita entre tropicalistas,
como Caetano e Gilberto Gil, entre neo-expressionistas como Glauber Rocha
e entre os neovanguardistas como Haroldo e Augusto de Campos, não
esqueçamos que Haroldo escreve um poema para Torquato Neto que foi
incluído na reedição em homenagem ao poeta de Os últimos dias de Paupéria,
organizada por Ana Maria Duarte e Waly Salomão, em 1982. Nesse sentido,
coexistem na poesia de Torquato: um Baudelaire com seu modo singular
de ver a flor, isto é, vê-la na imanência do mal, que está nas encarnações da
flor e dos versos que dizem que os poetas têm a palavra silenciada pelas
doenças do mal, como no poema: “A poesia é a mãe das artes”:

Mal, muito mal: a paisagem, o verde


da manhã, rever-te sob o sol de tropical
reverso da mortalha (o mal), notícias
de jornal – vermelho e negro – naturalismo
eu cismo
(Torquato Neto, 2004, p. 173).
|110|

Bem como um Mallarmé e sua pesquisa por uma sintaxe poética impura
está no que o poema “A matéria. O material, 3 estudos de som, para ritmo”:

(Torquato Neto, 2004, p. 162).


E a máquina expressionista de Bertold Brecht com “[...]Mamãe
mamãe não chore/ A vida é assim mesmo/ E eu quero mesmo/ É isso aqui
[...] Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho jeito de quem não se
espanta/ (Braço de ouro vale dez milhões)/ Eu tenho corações fora do peito
[...]” (Torquato, 2004, p. 96). No entanto, a poesia de Torquato não faz
senão emperrar cada uma dessas máquinas.
A análise de Germano Celant ressalta ainda que entre os anos 1970 e
1980 se organiza uma atitude artística que se enfrenta com as posições neo-
expressionistas, essa atitude colocava em cena a catástrofe da subjetividade
e da expressividade, sua dissolução e desorientação. A grande questão
não passava necessariamente pela rejeição do retorno do “eu” romântico,
do gesto do nobre selvagem, do narcisismo do sujeito e da boa consciência
na arte, e sim o fato de que desse “eu” deveria ser tomado em sua qualidade de
instrumento e maquinaria, de ser puro espetáculo, de ser cena passível de repetição.
Para Celant esse artista “trabalhava sobre a ilusão para evitar iludir-se a si
|111|

próprio” (Celant, 1988, p. 12). A questão estava posta sobre a duplicidade, a


inautenticidade e o “remake”, tudo isso para se chegar ao “estado das coisas”.
No entanto, esse caminho em direção ao “estado das coisas” não deveria tentar
mostrar qualquer solução positiva, porque a proposta era a de colocar a si mesmo
em direção a ou entrar em contato direto com o impessoal e com a natureza do
mundo externo a fim de desconstruí-lo e reconstruí-lo sem finais felizes ou
inquietações de salvação. Muito mais do que uma utopia, o que se propunha
era uma viagem ao “estado das coisas” como “heterotopias” no sentido que
Michael Foucault desenvolve em 1967, isto é, como um lugar engendrado a
partir de espaço e tempos contraditórios e incompatíveis, no entanto imanentes
à sociedade. Para Foucault as “heterotopias” de crise ou de transgressão justapõem
num lugar real uma variedade de espaços incompatíveis. Entre esses espaços
incompatíveis encontra-se o território do “eu”, que passa na “heterotopia” a ser
pensado como trajeto em deslocamento à certa “inautenticidade”, tornando-se
assim mais um entre tantos artefatos, isto é, coisas que são tomadas sem distorções
ou contornos em reiterações de hipótese banais nem de mitos culturais, portanto,
sem utopia, sem didatismo e sem modernismo.
Nessa busca pelo estado das coisas a noção de contemporâneo perde
sua sedução, já que as coisas não são mais vistas no seu estado evolutivo, mas
como repetição de gestos e, portanto, não-originais e tampouco atuais. E se
toda repetição cria um lugar transpassado de imagens em movimento
desobedientes à noção de tempo cronológico há uma outra noção de história
baseada no tempo da repetição de certas paixões. Paixões em “pathos” ou pelo
menos motivadas por um “pathos” sem sujeito, mas paixões. O padecimento,
o pathos, pelo mal ou padecimento pela flor são, inseridos na discussão aqui
levantada, uma maneira de declinar uma ação não-ativa, uma forma informe.
Em 2003 publica-se o livro Metade da arte, reunindo os poemas do
primeiro livro Não se diz e os novos poemas de Marcos Siscar elaborados
entre 1999 e 2003. A epígrafe do livro aponta para seu descaminho “le
transitoire, le fugitiv, le contingent, la moité de l’art...”. A metade da arte
|112|

que os poemas produzem é a literatura do mal em sua potência passiva para


questionar a modernidade na sua pedagogia e no seu formalismo. Com
essa opção o arco floral se arma novamente em sua busca pelo “estado das
coisas”. No poema “Jardim à francesa” a imperfeição do poeta contrasta
com a perfeição do modelo ou de plano de cultivo:

[...] meu coração é menos perfeito do que esta praça


às vezes se lembra e dificilmente
da hora exata do retorno do tempo
meu coração às vezes tropeça projeta uma perna
sobre outra
se interrompe mudo parece
que pensa
(Siscar, 2003, p. 106).

A pedagogia da modernidade ensina o caminho da geometria e do


cálculo que produz um diagrama os afetos no poema. O poema “Jardim à
francesa” prefere o anagrama, ou ainda um diagrama cósmico, ao diagrama
modernista. Engendra, com isso, um tipo de modernidade que age mais
por combinação do que por organização racional da página em branco. A
composição de Metade da arte arma, pouco a pouco num processo
anagramático, o poema quem vem com imagens que foram construídas e
utilizadas em outros poemas dessa mesma série, bem como, conforme
veremos, tirados de outras séries de Marcos Siscar, a exemplo das que
compõem o livro O roubo do silêncio, de 2006. A imagem do jardim à francesa
retorna para compor “Fuga 1ª parte: exposição contra-exposição”3:

3
Interessante lembrar que, em 1864, Baudelaire promove uma exposição em Bruxelas “de suas
obras nos salões de Prosper Crabbe, agente de câmbio e colecionador. Ainda que convidados como
das vezes anteriores, os editores Lacroix e Verboeckhoven não tiveram a delicadeza de comparecer.
|113|

[…] no final do verso a poesia


imperfeita o meio não tem fim continuar
capturar fundir esquecer abdicar
até que o equilíbrio revele seu deserto
a desabitada geometria a calmaria bruta
como um jardim à francesa arranca
porém algumas restam como que árvores
(Siscar, 2003, p. 123).

Música, artes visuais, arte da jardinagem, tudo o que se expõe na


grande exposição, nos grandes salões da modernidade, é ao mesmo tempo
contra-exposição, é fluxo e contra-fluxo4. E o poema também fazendo parte
da grande exposição é também materialidade, concretude, coisa, pois o poema
“Natureza morta com flores secas” transforma em coisa o afeto dos amantes.

estes íris secos estas pétalas estateladas


já não aquecem os dedos dos amantes
já não irrompem aos olhos dos amantes
onde floresciam e eram colhidos sobras
de cultura sombra de outros jardins hoje
[...]
(Siscar, 2003, p. 113).

Essa decepção, somada à que provocou a ridícula quantia enviada ao poeta por suas conferências
e ao materialismo que ele via então embrutecer a Bélgica, faz nascer em Baudelaire um ódio
inaudito contra esse país.” Ver “Calendário Baudelairiano”, em As Flores do Mal (1985, p. 35).
4
Célia Pedrosa já analisou as imagens de fluxo armadas em Metade da arte, chamando a atenção
para a metáfora do rio repetida de maneira intensa nesse livro. Ver: em “Versos que correm entre
a margem e o fluxo, a linha e o corte”, disponvível em:<http://jbonline.terra.com.br> (30 out.
2004).
|114|

As flores no tempo presente do poema já não aquecem os dedos dos


amantes estão limitadas ao espaço da exposição, ao vidro do quadro que
emoldura a flor, no entanto, dizem dos versos de Siscar: “todas as noites o
espanto de sentir suas raízes crescendo como veias dos próprios olhos” (Siscar,
2003, p. 113). Marca-se com isso a passagem do afeto ao seu estado de coisa
em si e também o seu retorno ao estado de afeto, isto é, sua capacidade de
provocar outros efeitos mesmo sendo coisa. A poesia se coloca no trânsito
entre a coisa e o ser, entre natureza e cultura, entre o humano e o animal.
Elabora-se com o poema um lugar de passagem, o trânsito entre a natureza
morta, o estado da coisa, e a natureza viva, o ser da coisa. Há uma dedicação
dessa poesia à mesma religião de Baudelaire: a preocupação com o evento
desencadeador da separação entre o humano e a natureza, que era, antes da
saída do paraíso, divina. Poderíamos chamar isso de moralismo? A poesia
de Marcos Siscar é crítica porque toma para si o lugar da outra metade da
arte, mas nesse lugar são postas em cena imagens dedicadas a um moralismo
cujo fundamento não está na instituição de um novo moralismo, ao contrário,
está na retomada de uma moral que prevê a outra metade da arte. Os filósofos
moralistas gregos, entre os quais se encontram os cínicos, criticaram as
convenções sociais na Grécia dedicando-se a um modo de vida minimalista
e simples no qual as rígidas distinções eram entre natureza e cultura, entre
o bem e o mal, entre o cru e o cozido, bem como entre o que era grego e o
que era estrangeiro. À maneira dos antigos filósofos cínicos, o arco floral de
Baudelaire que se arma na poesia de Siscar combate a pedagogia cínica
moderna com o cinismo antigo. Peter Sloterdijk analisa em seu livro Crítica
da razão cínica o pensamento produzido nas últimas décadas do século XX
detectando nele um movimento de declínio do niilismo, bem como da
pedagogia moderna que levaram ao cinismo moderno. Para Sloterdijk, para
enfrentar-se ao cinismo moderno o pensamento do presente recoloca em
cena o cinismo antigo em sua volta à natureza como problema e inclusive
ao desnudamento animal.
|115|

No naturalismo do século XVII nem a natureza nem o animal são


compreendidos mais como pertencentes a reinos distintos, portanto, estamos
novamente diante da imagem do anjo que recebe e doa sentido. Os anjos
são compreendidos nesse pensamento como seres de passagem, de trânsito.
Desse modo, as flores, os animais e os anjos são tomados na sua transitoriedade
imanente. Transitoriedade essa que longe de simplesmente criar um efeito
de realidade da obra, apesar de levá-la ao conhecimento do que realmente
são as coisas, tem a ver com um princípio vital e produtivo, isto é, de vida
natural, que está carregada de erotismo. Daí, portanto, seu moralismo às
avessas. No poema “Bloco de notas”, de Marcos Siscar, lemos:

1. olhe sempre para baixo enquanto anda


como se ainda pudesse pisar em carrapicho
manter os pés no chão causa boa poesia
lagartos e sarjetas têm o potencial analítico
(calçamento contém em si o avesso
da terra instaurado pelo passo civilizado et coetera)
(Siscar, 2003, p. 125).

A flor do mal, do baixo, da sarjeta é posta em cena de novo,


anagramaticamente, pela imagem do verso do poema anterior de Siscar do
íris emoldurado pelo quadro que não aquece mais os dedos dos amantes,
mas que possui raízes que continuam crescendo por debaixo do vidro nos
olhos do leitor. Os fósseis dos íris continuam produzindo afetos, mas sob a
forma e efeitos no leitor, pois se passa agora à realidade do carrapicho, agora,
a flor do mal. O erotismo da flor do mal produz a boa poesia. Lembremos
Georges Bataille em seu texto “A linguagem das flores”:

O amor tem cheiro de morte. Parece, de fato, que o desejo nada tem
a ver com a beleza ideal ou, mais exatamente, que ele se exerce
unicamente para macular e murchar esta beleza que, para tantas
|116|

mentes sombrias e regradas, não passa de um limite, de um


imperativo categórico. Assim, a mais admirável das flores seria
representada, não de acordo com a verborréia dos velhos poetas,
como a expressão mais ou menos insípida de um ideal angelical,
mas, muito ao contrário, como um sacrilégio imundo e
resplandecente. (Bataille, 2007, p. 91).

O arco floral mais uma vez posto em cena: o século XVII, Baudelaire,
Bataille, Mario de Andrade5, Torquato, Siscar. Em seu último livro, O
roubo do silêncio, não somente estão apresentadas ali as flores do mal como
construção anagramática de si mesmo como a própria concepção de tempo
que organiza essa experiência floral é repensada. O poema “As flores do
mal” que abre este livro de Siscar afirma que o mal é gerado por uma força
passiva inerente à atitude de sua poesia frente ao tempo: uma contemplação
ativa da vida.

Ninguém pode cortar por mim o mato do quintal.


[...]
Digo-me que foi gerado pela força do meu silêncio
ou da minha omissão. Mas de fato foi semeado pela
mão que outrora o arrancou e involuntariamente se-
meou.
(Siscar, 2006, p. 17).

O mato a que o poema se refere é o carrapicho que gera a boa poesia


no poema “Bloco de notas” do livro A metade da arte. O carrapicho como
flor do mal é chamado no poema desdobrado de “amor-cego” e é elevado
ao mesmo nível da imagem cristã do grão de trigo, proliferação da palavra

5
Sobre o problema da flor como informe, isto é, sobre a posição de Mário de Andrade em contraste com
a visão de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade com relação à imagem da flor como
elemento não sublime na literatura brasileira modernista conferir ensaio de Raúl Anelo, “A aporia da
leitura” (p. 31-35), em Ipostesli, revista de estudos literários, Juiz de Fora (v. 7, n. 1, p. 31-45).
|117|

intemporal do amor, que tem que morrer para germinar, assim como alcança
também o estatuto do íris, que mesmo sob o vidro do quadro provoca o afeto.

[...] O carrapicho,
por exemplo, essa flora incisiva, nasce no centro de um
círculo raiado e vai expandindo seus dedos, até entre-
gar o bago louro do trigo ruim. Visto de cima, ele
tem a forma exata de uma íris. Pelo menos é a forma
que enxergo quando fecho os olhos.[...]
(Siscar, 2006, p. 17).

No poema seguinte a flor é apresentada na qualidade de evento


observado. No entanto, esse evento está submetido a uma lógica intemporal,
não é um evento que atesta sua atualidade, testemunha, ao contrário, sua
virtualidade, sua possibilidade e potência de estar-sempre-aí.

[...] Olho o carrapicho com muita atenção. Assim,


emoldurado pelo meu olhar, ele não parece tão noci-
vo. Suas folhas ásperas resistem sob o sol quente, mir-
radas. Algumas delas secaram, dando-lhe um aspecto
de descuido que não faz justiça a seu acontecimento
tão impositivo. Ali domado pela mão inquiridora,
tem toda a aparência de amores secos, e seus bagos
se assemelham às pétalas de antigas flores, quando já não
aquecem os dedos dos amantes. [...]
(Siscar, 2006, p. 18).

É uma noção de tempo que se arma aqui, pois a flor mesmo seca,
mesmo emoldurada e imobilizada pelo quadro no museu de arte ou de
história natural, germina. Não aquece os dedos dos amantes, mas provoca o
|118|

afeto sob a forma de efeito. A flor é forma que apresenta a transitoriedade


do tempo, sua passagem é sintoma também da destruição que é história. O
mal da flor é uma não-forma, é intemporal, é “forma originária”, para usar
um termo bejaminiano, e insere as matrizes artísticas no tempo anacrônico.

[...] O carrapicho não precisa


de uma planta. Basta ter havido, para que o
fruto se manifeste, em sua versão mais doída. Já não
me lembro como o evitava, na época dos pés descal-
ços. Talvez não o evitasse.
(Siscar, 2006, p. 18).

Ao recriar a imagem do homem que morreu nos Alpes austro-italianos


com base no estado em que ele foi encontrado depois de 5300 anos de sua
morte, isto é, mumificado e congelado pela ação do tempo e da história natural,
o poema “Ötzi” supõe que somente poderemos ser afetados por essa imagem
na medida em que essa imagem – comparadas no poema às palavras justapostas
do dicionário – tivesse força de presente, ou seja, força para inverter a direção
de nosso olhar e fazê-lo enxergar o que da coisa nos observa.

[...] Penso nas infindáveis semelhanças entre as palavras


justapostas e as vidas apagadas que se achatam enquanto tombam
infindamente rumo ao chão. Talvez algumas se levantassem,
tendo força de presente, e invertessem por curto instante a direção
daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.
(Siscar, 2006, p. 25).

A coisa nos olha e nós olhamos para a coisa num trânsito de


contingências e estados, de efeitos e afetos. A coisa é o fóssil, e o fóssil é uma
imagem primordial, uma forma original, a despertar no fluxo temporal sua
força de presente, sua potência de desacomodar os estratos de tempo histórico
|119|

destruídos para dali serem reorganizadas outras virtualidades. A flor é a imagem


da transitoriedade do tempo e da história, mas flor fóssil é a imagem anacrônica
da história. Esse fóssil, essa flor, em seu estado de coisa, não é a flor Crisantempo,
livro que Haroldo de Campos publica em 1998, no qual reafirma o movimento
do tempo linear e cronológico com a nova primavera reflorida depois de cinqüenta
anos de atividade poética. Tampouco é a “saxífraga rosa” de William Carlos
Williams que tem a potência de fender a rocha com a atividade da flor que,
numa postura claramente antinaturalista, é observada fora de seu contexto para
provocar estranhamento. Essa imagem da flor “saxífraga” antinatural no Brasil
ganha forma no poema “Rastros” de Claudia Roquette-Pinto, justamente o
poema de abertura de seu livro Saxífraga, de 1993.

[...]
e eu no espinheiro, sem rumo
longe, o chão de pedregulhos
a flor essência saxátil
(Roquette-Pinto, 1993, p. 6).

Ao contrário disso, a flor do mal não está separada de seu entorno,


propõe-se a ler o naturalismo de modo histórico, como os jardins que escapam
do diagrama poético do geômetra de a Pedra do Sono.

Ó jardins enfurecidos,
pensamento palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente freqüentado:
[...]
(Cabral, 2003, p. 51).
|120|

Criam-se dessa maneira condições para a produção de uma história


pós-natural no âmbito de uma história moderna agora compreendida na
sua perda de finalidade, sem pedagogia, sem utopia, mas com “heterotopias”,
coexistência de lugares e tempos incompatíveis. Para estancar essa escrita
que pode derivar para outras tantas mais escritas da poesia, transcrevo alguns
versos muito baudelairianos, isto é, com níveis de acidez moral elevada, do
poema “Depois da história” de Marcos Siscar:

[...], tantas cabeças cortadas e


enroladas em verso metrificado e no fluxo informe
do bom senso, tanta arbitrariedade e tanta sutileza reu-
nidas no fio do relho e da frase tensa, tanta chuva e
tanta laranja, e com as mãos secas, aqui estamos – nus,
mudos, indigentes, como se tivéssemos acabado de
nascer. Nosso pecado de origem foi o de não ter nas-
cido antes, antes da história, antes da conversa ao pé
da porta, antes do banho quente. Giramos em torno
de tudo, até que tudo passe a girar em torno de nós e
refaça a sangrenta marcha em direção ao passado. [...]
(Siscar, 2006, p. 42).
|121|

Referências

ANTELO, Raúl. A aporia da leitura. Ipostesli, Revista de Estudos Literários, Juiz de


Fora, v. 7, n. 1, p. 31-35.

BATAILLE, Georges. A linguagem das flores. Tradução Marcelo Jacques de


Moraes e João Camillo Penna. Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n. 19, jan./jul. 2007.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal. Tradução Ivan Junqueira. Rio de


Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.

CABRAL, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

CELANT, Germano. Unexpressionism. Art Beyond the contemporary. New York:


Rizzoli, 1988.

FOUCAULT, Michael. Des espaces autres. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1984.

LUIZ, André. A flor do mal. Flor do Mal, Rio de Janeiro, n. 3, O Pasquim


Empresa Jornalística, 1971.

NETO, Torquato. Torquatália, {O lado de dentro}. In: PIRES, Paulo Roberto


(Org.). Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

ROQUETTE-PINTO, Cláudia. Saxífraga. Rio de Janeiro: Salamandra


Editorial, 1993.

SALOMÃO, Waly. Memória de paupéria, 1995. Mimeografado.

SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

_______. A metade da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras; Cosac&Naify, 2003.

TORQUATO, Neto. Torquatália {Do lado de dentro}. In: PIRES, Paulo


Roberto (Org). Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
PRESENTE

IIANACRÔNICO
DERIVAÇÃO
E
PROCEDIMENTO NARRATIVO
WILSON BUENO E A “SINTESIS MISTERIOSA”

Além disso, vemos, em várias flores, folhas comuns reunidas


imediatamente abaixo da corola, formando uma espécie de cálice. Como elas
ainda conservam completamente sua forma normal, podemos basear-nos
apenas na observação visual e na terminologia botânica, que as denomina
‘folhas florais’, folia floria. (p. 16, § 34).
Surge um estame quando os órgãos que até agora vimos expandir-se
como pétalas aparecem nem estado de máxima concentração e, ao mesmo
tempo, de máxima sublimação. Assim se confirma mais uma vez a conotação
feita acima, e nos conservamos mais atentos a esse efeito alternado de
contração e expansão pelo qual a natureza chega à sua meta. (p. 19, § 50).
Goethe, A metamorfose das plantas, 1790.

Sobretudo, ... o que leva a cabo uma análise deveria indagar, ou melhor,
fixar sua atenção na questão de que se efetivamente se trata de uma síntese
misteriosa, ou se aquilo de que se ocupa é só um agregado, uma mera
conjunção de elementos díspares...,
ou inclusive como poderia tudo isso ser modificado. (p. 29).
Walter Benjamin, O conceito de crítica no romantismo alemão, 1920.

Si por el contrario admitimos que nuestra agitación más extrema


estaba “dada”, por ejemplo, en el estado de ánimo humano representado por
|128|

cierta boda provinciana fotografiada hace veinticinco años,


nos situamos fuera de las reglas establecidas, lo que implica una
verdadera negación de la existencia de la naturaleza humana.
La creencia en la existencia de esa naturaleza supone en efecto la
permanecía de ciertas cualidades eminentes y, en general,
de una manera de ser respecto, de la cual el grupo representado en esa
fotografía resulta monstruoso aunque sin demencia. Si se tratase de una
degradación en cierto modo patológica, es decir, un accidente que
sería posible y necesario reducir, el principio humano quedaría
resguardado. Pero si, de acuerdo con nuestro enunciado, observamos a ese
grupo como el principio mismo de nuestra actividad mental más civilizada y
más violenta, e incluso a la pareja matrimonial – entre otras – de una manera
simbólica, como el padre y la madre de una conmoción salvaje y apocalíptica,
se engendraría una serie de monstruos incompatibles que reemplazaría la
supuesta continuidad de nuestra naturaleza.
Georges Bataille, “Figura humana”, Dicionário Crítico,
em Documentos 4, 1929

Como se estivesse inserido num projeto maior, vem a público, em


1999, o livro Jardim Zoológico de Wilson Bueno. No que diz respeito a esse
projeto maior, há uma possibilidade de imaginá-lo a partir do livro Manual
de Zoofilia (1991), que, por sua vez, se modula em Mar Paraguaio (1992),
com uma justaposição, nesse caso, não entre “seres” propriamente, mas entre
as línguas portuguesa, espanhola e guarani, criando com esse procedimento
uma espécie de “portunhol” selvagem. A esse “projeto”, que desde 1991
vinha sendo desdobrado, acresce-se mais uma dobra, Jardim Zoológico, no
qual, à semelhança de Manual de Zoofilia, são reapresentados os seres
imaginários cujas características mais marcantes fazem com que o “ente”
co-participe da “entidade” de outros seres: gerando assim uma co-existência
entre “entidades” animais, seres humanos e seres fantásticos. Entretanto, há
uma diferença produzida na modulação de Manual de Zoofilia para Jardim
Zoológico. Como num manual, a zoofilia praticada nesse livro de Bueno está
ainda aderida às qualidades permanentes e próprias dos “entes” ali figurados.
|129|

COLIBRIS

Iguais a estes, indefiníveis, a não ser pelo seu lado de vento,


caídos da lágrima de um haicai e Kobaiashi Issa, os colibris
são cor em movimento. Flores? [...] Iguais a estes não há
nem tem nem se dá nome.
Existem outros, mas – sem exceção – todos perfeitamente
explicáveis.
(Bueno, 1997, p. 56-57).

O colibri confina com uma identidade, uma “entidade”, que é


expressão daquilo que os manuais anteriores, isto é, o conhecimento anterior,
lhe atribuiu como sendo a sua identidade e por conseqüência a sua “des-
identidade” em relação a outros não idênticos. São animais que não
ultrapassaram a relação com o seu outro, não reconhecendo nele a sua condição
de “ser”. Atordoam-se com o outro animal que lhes potencializa a condição
de definição de si mesmos, no entanto, o atordoamento produz neles um
reconhecimento que se situa ainda no âmbito de identidades anteriores, isto é,
definidas a priori, antes do encontro, antes da experiência com o outro. Isso
acontece quando se conclui que a lagarta é algo “mais que um invertebrado
cândido, pode que a lagarta incendeie todo um casulo” (Bueno, 1997, p. 15),
ou no momento em que culmina com a conclusão de que o “pardal é além
que um passarinho” (Bueno, 1997, p. 17), bem como quando se apresenta o
camaleão como sendo “bem mais que um réptil de faiscante colorido”. (Bueno,
1997, p. 37). Esses “entes” posicionam-se no intervalo entre o que eles são e o
que poderiam “vir-a-ser”, o que significa a passagem entre meras “entidades”
e a da existência de um “ser”. Essa heurística do “ser” que é o intervalo entre
“ente” e “ex-istente” intensifica-se na descrição do anjo que a princípio é um
ser intermediário e que, com base nessa qualidade de mediador, apresenta-se
não para além de sua “entidade”, mas como aquém dela numa justaposição de
imagens, seriadas e construídas por figuras de similitude que trabalham na
construção da imagem principal do anjo degradado em homem.
|130|

ANJOS

Te oferecerei um anjo morto dentro de uma mala,


igual que um mágico de sua ilusão sozinha igual que
um SS, botas, tacões, máusers geladas, igual que um
pária [...]
anjo com copos de campari por todos os lados, igual
que um bolero, anjo, feito de bofetões, solidão e tra-
paça, igual que.
(Bueno, 1997, p. 61).

Ainda que essas “entidades” se posicionem no limiar, isto é, na soleira


de um “vir-a-ser” potencializado pelo abrir mão de uma positividade
idealizada, muitas vezes imposta pela forma artística no seu desejo pela
beleza clássica, no Manual encontram-se igualmente descritas e catalogadas
“entidades” como a desses “Anjos”, que colocam em questão o problema da
representação do belo, do bom e do moralmente exemplar na arte. Isso
pode ser observado se repararmos na expressão dessa exemplaridade na arte,
ela se constrói com base nos comparativos “igual que”, no caso de “Anjos”,
e nos “iguais a estes” do poema “Colibri”.

ARANHA

Tarde da noite as vigio, cuidadosamente, com a paciência


de um voyeur taxidermista.
São tantas as pernas e os pêlos, horrendos ambos
Como sucumbir num fosso-de-elevador, [...]
Imagino, daqui, como é que bate nelas o coração, e
sofro por saber que, prontas ao bote, são como serpen-
|131|

tes – o mesmo e rancoroso veneno que você destila


pelo canto do lábio, quando me jogo na calçada.
(Bueno, 1997, p. 46-47).

O animal passa aqui a ser pesado a partir do encontro, depois do


cara-a-cara, pois a passagem ocorre ao refletir-se sobre o modo como o
“coração” bate dentro delas e de como o bote e o destilar do seu veneno estão
conectados a esse “bater do coração”. Esse movimento da comparação se
concentra, nesse poema, no aspecto “informe” dos seres que compara.
Desse modo, a imagem que a apresentação do animal produz ingressa
numa categoria de “ser” que pode ser associada ao que Georges Bataille,
em seu projeto nietzschiano de esquecimento do “ser”, propõe como uma
categoria possível para pensar esse “ser” fora de sua “essencialidade” pré-
concebida, portanto, formal. Com a categoria do “informe” Bataille tenta
escapar às taxionomias científicas modernas, uma vez que o “informe” “serve
para desclassificar, exigindo geralmente que cada coisa tenha a sua forma.
O que ele designa não tem seus direitos em sentido algum e se faz esmagar
em toda parte como uma aranha ou um verme” (Bataille, 2007, p. 81).
Destaca-se no trecho citado de “Aranha” que o “descriptor” que nos apresenta
os animais não assume a função de um taxonomista moderno, mas antes de
um “taxidermista”, isto é, alguém que quer classificar e designar a forma do
animal descrito, da aranha, com a atenção de um “voyeur taxidermista”,
cujo método científico é o de classificar com e a partir da pele. Quando
Bataille escreve sobre o informe, curiosamente, o está definindo e
classificando num dicionário, obra de taxionomia, de catalogação e fixação
daquilo que há de “informe” na língua que é a sua modulação na oralidade,
contudo, afirma, ainda no verbete Informe de seu dicionário crítico, que os
cientistas ou “homens acadêmicos” se enchem de contentamento com a idéia
de pensar o universo dentro de uma forma. Conclui Bataille que o universo
é apenas informe e que ele não se assemelha a nada da mesma maneira que
não se assemelham a nada uma aranha ou um escarro.
|132|

Ainda assim, os “entes” de Manual de Zoofilia se abrem para o


problema da percepção do humano e da forma artística enquanto “informe”
no momento em que discute a “natureza” dessa arte e desse humano, e isso
acontece em Manual de Zoofilia no ingressar da poesia e das formas poéticas
na busca por sua história natural.
No livro Jardim Zoológico o desdobramento dessa série das passagens
entre história natural e história cultural parece orientar-se pela proposta que
Jorge Luis Borges esboça em 1967 no El libro de los seres imaginários, em
cujo prólogo seu autor-compilador convoca os curiosos a freqüentar o livro
como jogadores que jogam com formas mutantes e, com mais energia,
convoca os leitores da Colômbia ou do Paraguai para que lhe enviem os
nomes, com suas respectivas descrições, dos hábitos e dos monstros locais.
O autor de Mar Paraguaio parece ter levado a sério e em série o convite de
Borges. Em Jardim Zoológico a discussão sobre o limiar entre a história natural
e a história cultural se intensifica. Contudo, o seu ingresso não se dá somente
no mundo mítico dos índios Kaxuianas do alto amazonas, dos Kraôs do alto
Goiás, dos Kadiuéus e dos índios do Chaco paraguaio, o procedimento de
apresentação das “entidades” já não ocorre baseado em identidades definidas
e classificadas pelo taxonomista, ainda que fosse um “taxidermista”, mas como
justaposição ou montagem de fragmentos dos “entes” em jogo na construção
daquela imagem, propiciando com isso a possibilidade do “vir-a-ser” de que
se constitui o conceito de “ser”. A montagem como procedimento pressupõe
a desmontagem, a dissociação prévia do que a constrói, daquilo que, em
suma, não faz mais que remontar ruínas, tanto no seu aspecto de rememoração
de temas como de estruturas. Nesse sentido, estamos também diante de imagens
de bichos literários que aceitaram o convite metodológico de Walter Benjamin
de que o conceito absorve a série das manifestações históricas, isto é,
relacionando-o com a “pré” e “pós-história” dos fatos, apostando em um
conhecimento produzido pela montagem que faz do não-saber de suas imagens
originárias, “pré” e “pós-históricas”, o objeto e o momento de descoberta
|133|

de sua própria constituição. Em Origem do Drama Barroco Alemão quando


discorre sobre as teorias do conhecimento Walter Benjamin diz que não há
processo bem-sucedido de representação “enquanto o ciclo dos extremos nela
possíveis não for virtualmente percorrido” (Benjamin, 1984, p. 69). O
sentido desses “seres” imaginários reside no que está colocado de uma maneira
bastante contundente na montagem que os engendra, que é o processo de
metamorfose nelas proposto tanto no que toca ao tema das imagens quanto
ao processo de formalização das mesmas.

As yararás

Bichos só encontrados na banda oriental do Paraguai, as


yararás são exclusivamente femininas. A rigor, constituem
exemplares perfeitos de réptil hermafrodita, mas como para
os índios inexista esta mediação – e tão só o limitado império
dos dois sexos – as yararás serão sempre as yararás – fêmeas,
femínias, serpentes emplumadas, os olhos de moça e o
recurvo para de presas que apunhala os apaixonados.
Zoólatras chilenos que pesquisaram o mito na aldeia de
Soledad, encontraram histórias de homens que engravidaram
a yarará, acrescentando ter dela nascido, algum tempo
depois, uma espécie feroz de cobra – curta e grossa, a qual
por cega, atira-se, odiosa, em qualquer direção. Parecida a
um cão em fúria.
(Bueno, 1999, p. 51).

Encontram-se, dessa maneira, justapostas as lendas da Cobra-grande


da Amazônia, da cobra emplumada do leste do Paraguai, território de
confinamento não somente de culturas, mas de confinamento geopolítico,
portanto, confinamento de “entidades”, e a sua versão chilena que oferece
|134|

atributos à sua descendência monstruosamente anômala em si mesma de


um cão em fúria que reage mais por vingança contra o destino que os
homens impuseram à sua mãe e à sua descendência. A imagem do “ser”
complexo, e não híbrido, uma vez que sobrevivem nela, mesmo que
arruinadas e destruídas pelo processo de “vir-a-ser” e desaparecer, as
“entidades” anteriores, constituiu-se pelo processo de montagem, o que não
significa que houve apenas uma junção de características díspares entre o
reino animal e humano, vingança, solidão justaposto com fúria, instinto
assassino etc. Produz-se essa imagem mediante aquilo que Georges Bataille
comenta em outro verbete de seu Dicionário Crítico, “Metamorfose”. Ao
comentar a ridícula atitude do ser humano em separar-se das características
que definem o mundo selvagem, Bataille justapõe ele mesmo o animal ao
homem, pois “el hábito no puede impedir, sea cual fuere la apariencia, que
un hombre sepa que miente como un perro cuando habla de dignidad humana
entre los animales” (Bataille, 2003, p. 53).
A imagem criada da “yarará”, longe de ser mera justaposição de
atributos díspares, evidencia uma história interna da própria imagem no
sentido de que eles nos dão a conhecer a sua pré-história ao mesmo tempo
em que nos oferecem a sua “pós-história”. Nos animais nomeados como os
“rememorantes” novamente encena-se o “vir-a-ser” animal-humano na
imagem da cobra-rememorante.

Também chamados de os duendes das noites, os remomorantes


são animais de uma inimaginável memória.
Vigiam o sono dos demais seres que habitam este nosso
mundo acerbo, graças a uma característica que faz deles,
dos rememorantes, únicos sobre o planeta – não dormem,
nunca dormiram, e, porque sejam perenemente insones,
podem penetrar nosso sono sem se deixarem contaminar
por sua impossível matéria.
|135|

[...]
É com eles (nossos sonhos) que os rememorantes se
refestelam, gordas jibóias de nossa talvez mais sublime
quimera.
(Bueno, 1999, p. 65-66).

É interessante observar que as imagens apresentam um conjunto de


contrastes pertencentes tanto ao mundo natural quanto ao mundo contaminado
pela vida dos homens. No entanto, elas estão como que em outra esfera que
não aquela da história pura, a história como sucessão de fatos humanos no
decorrer do tempo. A história que essas imagens apresentam é uma história
que está intimamente relacionada com uma noção de história natural. Uma
história natural que, longe de estar ligada a qualquer tipo de determinismo,
apresenta-se como uma história das obras e das formas, tomadas em sua
concepção de tempo anacrônico. Tempo esse que permite seu acesso a um
“vir-a-ser” constante. Walter Benjamin ressalta no livro sobre o barroco que
isso que ele chama de história natural inautêntica nada mais é do que um
observar “o vir-a-ser dos fenômenos em seu Ser”. Uma história natural
inautêntica compreende que as manifestações de vida que sustentam as relações
naturais demonstram o quanto estão intimamente ligadas ao ser vivo, sem
significarem nada para ele. Sendo assim, seria possível pensar que o resultado
da reflexão sobre o tempo e sobre as obras no contexto dessa história natural
inautêntica deriva não da evolução da vida no decorrer desse mesmo tempo,
mas da sobrevivência das formas dessa vida. Benjamin no seu ensaio sobre a
tradução esclarece que atribuir vida à corporeidade orgânica é uma empresa
decorrente de uma época em que o pensamento sofria de limitações sérias, no
entanto, não se trata também de pensar a sobrevivência da obra no seu aspecto
metafórico estendendo a ela o poder frágil da alma das coisas, e tampouco se
trata de definir esta sobrevida mediante o uso de aspectos da vida animal.
Trata-se assim de atribuir “vida a tudo aquilo que possui história e que não
|136|

constitui apenas um cenário para ela [...] Daí deriva, para o filósofo, a tarefa:
compreender toda a vida natural a partir dessa vida mais vasta que é a história. E
não será ao menos a continuação da vida das obras incomparavelmente mais
fácil de reconhecer do que as criaturas?” (Benjamin, 2001, p. 193).
Os fragmentos dos animais que compõem o jardim não são passíveis
de uma classificação científica, tornando ainda mais complicado pensar no
jardim zoológico moderno cujo princípio organizador é a catalogação em
espécies, subespécies, famílias etc. O procedimento de composição desses seres
imaginários é o da montagem. Nesse procedimento articulam-se paradoxos
concretos feitos de montagem visual com paradoxos teóricos de montagens
temporais por meio dos quais se pode perceber uma concepção de tempo,
cuja característica maior é a de pertencer a todos os tempos, isto é, ao tempo
anacrônico. Essa visualidade do trabalho de Wilson Bueno pode ser lida
também à luz de uma convivência do autor com a forte prática de trato com as
imagens da literatura produzida no Paraná, que vai da intensa atividade dos
poetas simbolistas até as interessantes revistas ali editadas, nas quais a visualidade
contribui e constitui as próprias revistas. Entre essas revistas encontramos
Joaquim, editada pelo escritor Dalton Trevisan na década de 40, a revista Nicolau,
editada pelo próprio Wilson Bueno na década de 80, no fim da década de 90
a revista Medusa, editada pelo poeta Ricardo Corona, assim como a revista
Coyote, editada desde 2002 pelo poeta Rodrigo Garcia Lopes, e a revista Oroboro,
editada por Ricardo Corona e pela artista plástica Eliana Borges desde 2004,
todas elas operando sobrevivências dessa história natural, isto é, dessa história
imagética na cultura produzida no Paraná.
Em entrevista recente ao “Diário Catarinense”, em 2 de junho de
2007, Wilson Bueno se refere tanto ao Manual de Zoofilia quanto ao Jardim
Zoológico como bestiários. Os bestiários como eram produzidos na Idade Média
se compunham por descrições detalhadas do mundo natural e essencialmente
animal. Tal como os herbários, que consistiam em listas de ervas, flores e
plantas, e os lapidários, que eram compilações de pedras e de fósseis, os bestiários
|137|

retratavam os animais, pássaros e peixes, dos mais comuns e facilmente


reconhecíveis, como o leão, o corvo e o golfinho, até os imaginários e fantásticos,
como o unicórnio, a fênix e a sereia. As descrições destes animais não eram
fruto de observação direta dos mesmos, mas sim de informações retiradas de
outras obras. Tal como outros manuscritos da Idade Média, os bestiários eram
copiados por monges e não eram o resultado de um único autor. À medida
que eram escritos, acrescentavam-se novos animais, funcionando como um
tipo de livro de notas de um naturalista, em permanente revisão. Desse modo,
o procedimento da montagem na criação das imagens desses “seres”
imaginários opera a sobrevivência da forma bestiário que foi destruída no seu
processo de declínio vital, isto é, histórico. No entanto, a montagem é feita
com base nos tempos das Metamorfoses da natureza. Isso não quer dizer
montar com base em materiais relativos à vida dos animais ou das plantas,
mas montar mediante um princípio de inadequação a si mesmo. Entramos
na esfera do sublime, isto é, das monstruosidades, porque o belo, fora de
sua relação com a história, para continuar citando Walter Benjamin, isto é,
“em sua relação com o a natureza, o belo pode ser definido como aquilo que
apenas ‘permanece essencialmente idêntico a si mesmo quando velado’”
(Benjamin, 1994, p. 133). Mesmo inadequados, mesmo inautênticos, as
plantas, os animais, os artefatos culturais e seres humanos emprestam seus
fragmentos para a composição da montagem de mais um ser inautêntico. E é
talvez por isso que a inadequação a si mantenha ainda a potência de recolocar
com frescor a mesma questão sobre a origem da história, mesmo depois de
todas as sobrevivências dos traços de todas as metamorfoses de Ovídio até
Kafka, de Borges até Clarice Lispector.
Situado entre sua materialidade selvagem e cultural o ser representado
não é idêntico a si, porém, está velado. Ele é apresentado como um problema.
Não por acaso, essas figuras cedem um lugar aos paradoxos botânicos de
Goethe. No livro A metamorfose das plantas, Goethe postula a investigação das
relações entre o disseminado e o configurado, e posteriormente essa mesma
|138|

preocupação será recuperada por Benjamin no ensaio sobre o romantismo


alemão, isto é, que há que se diferenciar o que é agregado, mera conjunção de
elementos díspares, daquilo que ele chama, a partir de Goethe, de síntese
misteriosa1. O que se agrega e o que se torna uma configuração, uma síntese
misteriosa, nas metamorfoses do Jardim Zoológico de Wilson Bueno?

Os lazúlis

[...]
Os lazúlis são cubos perfeitos com uma gargalhada dentro
e desenvolveram de tal modo a sincronicidade que, pânico
espanto, enfileiram-se no horizonte, boêmios e dançantes,
àquela precisa hora da noite sem testemunhas, um cubo
encaixando-se ao outro feito vértebras que se ajustassem –
flexíveis bailarinas.
(Bueno, 1999, p. 83).

1
O jesuíta Baltasar Gracián, personagem inominado no estudo de Walter Benjamin sobre o barroco,
resgatou o uso da agudeza no século XVII reivindicando para ela a função de produzir no discurso a
experiência prática da Beleza como um caminho inexorável para o conhecimento (Gracián, 2001, p.
49). A agudeza produz uma beleza aguda, afiada como uma espada, com base nas correspondências
entre objetos díspares. Ainda é interessante ressaltar que Gracián diz que a produção da agudeza é
trabalho de um anjo (Gracián, 2001, p. 49), e que o discurso agudo, além de situar-se nesse campo
conceitual teológico, encontra-se envolvido no conceito de que a palavra, o gesto e inclusive o silêncio
são entendidos como uma arma e o homem de letras como um combatente, um guerreiro, um herói. Um
herói que luta para produzir atos de entendimento, conhecimento ativo, que exprimem a correspondência
que se encontra entre os objetos (Gracián, 2001, p. 55). Walter Benjamin, no último e escuro fragmento
do livro Origem do drama barroco alemão, intitulado Ponderación Misteriosa, no qual o autor defende a
monstruosidade antiartística do barroco que converge no Mal-em-si da figura alegórica, há uma
descrição do movimento executado na obra barroca: um milagre flutuante traz de volta pelas alegorias
o anjo caído e fixa-o no céu pela ponderación misteriosa. E o movimento será iniciado novamente quando
esse anjo, que é ninguém menos que Lúcifer, voltar a cair. A ponderación misteriosa é uma das formas da
agudeza tratadas por Gracián em seu Agudeza y arte de ingenio: “quien dice misterio, dice preñez, [...]
Las contingencias son la ordinaria materia de los misterios [...] Fúndase el misterio tanto en lo positivo
como en lo negativo de las circunstancias, y hácese el reparo, así en la que concurre como en la que faltó,
sí bien es menester más fundamento cuando se forma por carencia” (Gracián, 2001, p. 89). Ver Baltasar
Gracián (2001), Agudeza y arte de ingenio. O milagre na obra barroca resgata e ao mesmo tempo impede
a experiência do saber prático porque o anjo melancólico volta a cair.
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Nessa imagem é possível observar uma sucessão de justaposições


de elementos díspares: cubos que gargalham, objetos que se embriagam e
praticam uma transa sexual geometricamente milimetrada como a dos
sistemas de simetrias precisas de encaixe, mas que incrivelmente se
comportam com muita flexibilidade como bailarinas invertebradas,
constituindo um tipo de enigma formal e, ao mesmo tempo, biológico.
Sendo assim, percebe-se o quanto o procedimento da montagem em
Jardim Zoológico concede um lugar especial aos paradoxos botânicos de
Goethe. No século XIX, conforme o estudo que Walter Benjamin faz
sobre a obra de Grandville, para a qual atribuirá a característica de “sadismo
gráfico”, faz-se presente um tipo de maneirismo neogoetheano, que não
passará despercebido por Benjamin no ensaio “Paris, capital do século
XIX”, nos processos construtivos de montagem e desmontagem nas obras
de arte. Nas séries compostas por Grandville, intituladas “Uma revolução
vegetal” e “As flores animadas”, ambas de 1846, há a proposição de um
método de criação conduzido pela alegoria das formas naturais. Benjamin
sublinha, no ensaio anteriormente citado, que

[...] as fantasias de Grandville transferem para o universo o caráter


da mercadoria [...] A moda prescreve o ritual segundo o qual o
fetiche da mercadoria pretende ser venerado. Grandville estende
tal pretensão aos objetos do uso cotidiano e inclusive ao cosmos.
Ao levá-los até os seus extremos descobre a sua natureza. Ela
consiste na contraposição do orgânico. Relaciona o corpo vivo ao
mundo inorgânico. Percebe no ser vivo os direitos do cadáver.
(Benjamin, 1991, p. 36).

A contraposição do mundo das coisas da mercadoria ao mundo


vegetal ou animal é observada por Benjamin como procedimento, isto é,
como testemunho da eficácia alegórica das formas naturais. Essas formas
naturais são tomadas como formas originárias e elas nada têm de simples
nem de puro, tanto que “os lazúlis”, “os rememorantes”, e mesmo “os anjos”
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de Manual de Zoofilia não contemplam em suas metamorfoses um novo ser


previsível. O resultado da metamorfose é a deformação da natureza de simples
ou puro modelo para testemunha do tempo da alteração e da perturbação.
Esse procedimento leva ambas as obras para baixo, inclusive aquelas que
trabalham com temas que tradicionalmente possuem um estatuto elevado
na arte como o tema da imitação da natureza e os bestiários que tinham
intenção moralizante. Esse movimento em direção à baixeza torna as imagens
algo repugnantes, sua tactibilidade, o seu savoir-faire, é a princípio repulsiva.
No entanto, compõe por este caminho sua beleza singular e irredutível.
Os “seres” criados em Manual de Zoofilia e Jardim Zoológico de Wilson
Bueno posicionam-se num lugar mais originário que o espaço e neles reside
algo da magia das coisas cuja comunidade com a linguagem humana se
estabelece pelas forças imateriais, com o “informe”. Seu lugar de origem é o
torvelinho temporal num fluxo de imagens que não são objetos inorgânicos,
animais, vegetais e tampouco seres humanos. Esse lugar poderia ser pensado
como uma passagem entre essas tantas formas de vida, entre essas tantas
formas originárias, reduzindo e rebaixando com isso a pretensão humana
de ser a forma originária da criação. Esse lugar, mesmo sendo o lugar de
uma história inautêntica, uma história natural, garante a função histórica do
prazer das imagens e do jogo que se realiza com elas como produtoras/
criadoras de um saber.
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Referências

BATAILLE, Georges. La conjuración sagrada. Ensayos 1929-1939. Tradução


Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2003.

_______. O informe. Tradução Marcelo Jacques de Moraes e João Camillo


Pena. Revista Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n. 19, 2007.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sérgio Paulo


Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

_______. Paris, capital do século XIX, em Walter Benjamin. Tradução Flávio


Kothe. São Paulo: Ática, 1991.

_______. A tarefa do tradutor. tradução Susana Kampf Lages. In: HEIDERMANN,


Werner (Org.). Clássicos da Teoria da Tradução. Florianópolis: UFSC, Núcleo de
Tradução, 2001.

_______. Sobre la fotografia. Traducción de José Muñoz Millanes. Valencia:


Pre-textos, 2005.

_______. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles.


Um lírico no auge do capitalismo. Tradução Jose Carlos M. Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1944.

BORGES, Jorge Luis. El libro de los seres imaginários. Madrid: Alianza Editorial,
1998.

BUENO, Wilson. Manual de Zoofilia. Ponta Grossa: Editora UEPG, 1997.

_______. Jardim zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.

GOETHE, J. W. A metamorfose das plantas. Tradução Friedhelm Zimpel. São


Paulo: Antroposófica, 1997.

GRACIÁN, Baltasar. Agudeza y arte de ingenio. Madrid: Editorial Castalia, 2001.


DOBRAR E DESDOBRAR: PROCEDIMENTOS
DA LITERATURA DO PRESENTE NO RELATO
DE BERNARDO CARVALHO

No livro Teatro, publicado em 1998, Bernardo Carvalho reafirma o


que vinha propondo como procedimento organizador do relato desde a
publicação do volume intitulado “Aberração”, que reuniu seus primeiros
contos em 1996. Trata-se de um procedimento que coloca em xeque o
trabalho do romance moderno que desde A educação sentimental de Flaubert
se esmera em responder à pergunta sobre qual é o sentido da vida. Walter
Benjamin já observa essa obsessão da narrativa moderna e a contrapõe com
a narrativa clássica na qual o sentido da vida já estaria dado na experiência
vivida, “Das Erlebnis”, do narrador que transferiria ao relato a autoridade
que a experiência lhe havia concedido. No entanto, a experiência que estaria
disponível ao narrador moderno não lhe concederia autoridade, ao contrário,
“Die Erfahrung” (lembrando aqui a relação, que não passou desapercebida
a Benjamin e já sublinhada por muitos de seus comentadores, entre essa
concepção de experiência com o verbo “ir”, ou ainda, “andar”, que em
alemão se escreve, “fahren”), é a experiência sem garantia do resultado da
sabedoria transmissível, seria mesmo um risco ao próprio sujeito da
|144|

experiência que poderia inclusive sucumbir durante o processo da experiência.


Diz Walter Benjamin no fragmento 14 do ensaio sobre o narrador:

Se o modelo mais antigo do romance é Dom Quixote, o mais


recente talvez seja A educação sentimental. As últimas palavras deste
romance mostram como o sentido do período burguês no início
de seu declínio se depositou como um sedimento no corpo da
vida. Frédéric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se
de sua mocidade e lembram um pequeno episódio: uma vez,
entrando no bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e
limitaram-se a oferecer à dona da casa um ramo de flores, que
tinham colhido no jardim. “Falava-se ainda dessa história três anos
depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as
lembranças do outro, e quando terminaram Fréderic exclamou: –
Foi o que nos aconteceu de melhor! – Sim, talvez. Foi o que nos
acontece de melhor! Disse Deslauriers.” Com essa descoberta, o
romance chega a seu fim, e este é mais rigoroso que em qualquer
narrativa. Com efeito, numa narrativa a pergunta – e o que aconteceu
depois? – é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não
pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo
na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir
sobre o sentido da vida. (Benjamin, 1994, p. 213).

Se, segundo a reflexão de Walter Benjamin, o romance moderno


propõe uma experiência que vá ao encontro do que seja o sentido da vida,
mesmo que essa busca esteja restrita a uma reflexão, o procedimento narrativo
empregado nos relatos de Bernardo Carvalho propõe uma experiência
radicalmente sem garantiras na sua busca pelo sentido. Já no livro Aberração,
que reúne onze contos e onze personagens à procura de um sentido ou de
uma explicação, a busca se converte numa impossibilidade do sentido, mesmo
que seja por uma reflexão posterior ao ponto final do relato. O que marca
essa interdição do sentido é um procedimento formal do relato de Bernardo
Carvalho, isto é, a divisão do enredo em duas partes sem que a segunda seja
uma mera explicação do sentido da primeira. Deste ponto de vista, seria
|145|

melhor que falássemos de uma duplicação do sentido e não de uma divisão


do enredo em duas partes. No romance Teatro quando Ana C. passa de
personagem secundária na primeira parte da história a personagem principal
da segunda não adquire com a metamorfose o estatuto de personagem
principal oculto da primeira. No lugar de apresentar-se como personagem
principal que guarda um segredo, ou ainda, que detém a solução do mistério,
a personagem Ana C. potencializa as senhas para a compreensão do enigma,
mas nunca as fornece ao leitor. A personagem Ana C. duplica o relato, ou
ainda, duplica a falta de sentido do primeiro relato, acrescentando-lhe
elementos novos que tornam o mistério algo impossível de ser solucionado,
garantindo a impossibilidade de construir-se o sentido. Esse procedimento
não se configura como apenas uma questão formal. O romance Teatro encena
um enfrentamento com a reflexão de Ricardo Piglia sobre a narrativa curta.
Em “Teses sobre o conto”, Piglia enuncia a primeira e a mais fundamental
de suas teses que reafirma, com as reflexões de Poe e Tchekhov, o caráter
duplo da forma do conto: “Primeira tese: um conto sempre conta duas
histórias.” (Piglia, 2004, p. 89). Daqui se desdobram outros procedimentos
que produzem conseqüências no modo de construir a narrativa. Se Poe “contava
uma história anunciando que havia uma outra; o conto moderno conta duas
histórias como se fossem uma só” (Piglia, 2004, p. 91). A versão moderna do
conto para Piglia encontra-se nos textos de Tchekhov, Katherine Mansfield,
Sherwood Anderson e James Joyce. Contudo, mesmo com essas variações
do procedimento principal o conto para Piglia é “construído para revelar
artificialmente algo que estava oculto. Reproduz A busca sempre renovada
de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da
vida, uma verdade secreta” (Piglia, 2004, p. 94). Se tomamos como
fundamento da leitura de Teatro de Bernardo Carvalho o que Ricardo Piglia
propôs como problema técnico que caracterizaria a narrativa curta, isto é,
narrar uma história enquanto se está narrando outra e que a segunda história,
a história secreta, seria a clave da forma do conto e de suas variantes,
|146|

concordaremos que a estrutura desse romance de Bernardo Carvalho leva


em consideração o que Piglia pondera sobre a narrativa curta. No entanto, há
uma diferença que divide e opõe esse modo de conceber a narrativa curta,
uma diferença de procedimento que envolve a produção de uma outra
modalidade de escrita da literatura. Para além daquilo que Flora Süssekind
acertadamente analisou quando detecta no ensaio “Escalas & Ventríloquos”,
publicado no “Caderno Mais!” da Folha de São Paulo, no dia 23 de julho de
2000, uma miniaturização na narrativa e um alargamento da poesia na
literatura brasileira da década de 1990.

Chama a atenção, nesse sentido, sobretudo no último decênio,


uma espécie de variação sistemática de escala, manifesta tanto em
exercícios, por vezes paradoxalmente concomitantes, de expansão
e compressão, quanto em movimentos de narrativização da lírica,
de um lado, e de miniaturização narrativa, de outro, ou quanto na
retomada de gêneros como a novela ou o conto mínimo, no campo
da prosa de ficção, ou como o poema em prosa e a seqüência
poética, no da lírica. Variações que teriam contraparte plástica em
pinturas que se avolumam, trabalhos bidimensionais que se
projetam em direção ao espectador, ou em figuras escultóricas
transparentes, abertas, corroídas internamente por fatias, vazios,
parecendo fadadas, por seu turno, à autodestruição, ao
despedaçamento. Passagens de uma dimensão a outra, múltiplas
proporcionalidades, relações variáveis de medição, reduções, ajustes
que parecem atribuir ao referente genérico, à proporção, a função
simultânea de modelos e avessos ativos no interior dos processos de
formalização a que se acham vinculados. E que talvez possam mediar,
ao mesmo tempo, via escalas móveis, um exercício crítico de
correspondências genéricas (entre prosa em redução e poema em
expansão), artísticas (entre produção plástica e literária) e
conjunturais (entre cultura e economia). (Süssekind, 2000, p. 3).

É interessante observar que no diagnóstico de Flora Süssekind se


impõe a análise de que há nesses procedimentos de variação de escala uma
atitude de negação da própria modernidade, ou ainda segundo a autora,
procedimentos esses que
|147|

parece dialogar, de perto, igualmente, com a experiência


contemporânea da financeirização da economia, da dessolidarização
nacional, do esvaziamento estatal, da inserção brasileira num
mercado global marcado por uma instabilidade sistêmica.
Lançando-se, assim, para o primeiro plano, no panorama cultural
atual, por meio da ênfase na dificuldade de determinar a própria
dimensão, a discussão das simbologias do valor e a reconceitualização
da forma a partir exatamente de seus fatores de instabilização, de
suas relações de escala, de suas equivalências com alguns dos
mecanismos dominantes do mercado financeiro. (Süssekind,
2000, p. 3).

Ainda segundo Flora Süssekind, os procedimentos de miniaturização


da narrativa, da expansão do poema e do transbordamento dos limites de
volume nas artes plásticas indicam um rumo que toma essa produção artística
em direção “à autodestruição, ao despedaçamento”, que no caso da narrativa
moderna, isto é, o romance, metamorfoseia-se, na estrutura da novela.

A redução de escala própria ao novelesco, a estruturação


descontínua, contrastada, intensificando, a partir de um foco
narrativo aparentemente coeso (o do narrador-memorialista), a
visualização, ao contrário, no seu método de composição,
exatamente das heterogeneidades, das variações de distância e de
tom, das desestabilizações de perspectiva e enquadramento
temporal, que o orientam e acentuam o tensionamento
particularmente crítico que o define. (Süssekind, 2000, p. 3).

Apesar de Flora Süssekind não se referir propriamente ao “relato”


como uma forma narrativa que poderíamos compreender como a que
substitui o romance em termos de escalonamento de tamanho e tensão
narrativa, o que fica dessa análise é que o relato se impõe como uma forma
de narrativa. No “relato” a miniaturização não apenas altera o tamanho do
texto, mas também a sua própria maneira de conceber a narrativa, algo
como a aproximação oscilante entre da sua estrutura à do roteiro de cinema
|148|

e da estrutura técnica do conto. Com esse sentido, a clave da forma da


narrativa curta acaba por tomar o lugar da clave romanesca. Daí que a
miniaturização do romance ocorrerá com freqüência na estrutura do enredo,
isto é, o enredo é reduzido a mínimas ações, nisso concordando os
procedimentos de Piglia e Carvalho. No entanto, como dizia anteriormente,
a diferença não é somente de escala, ou melhor, a variação de escala produz
uma diferença constituinte já não mais entre o relato clássico e o romance
moderno, mas, sobretudo, entre o romance moderno e o relato que recicla o
moderno. Raúl Antelo sublinha essa atitude de um relato como o de Bernardo
Carvalho como vinculado a uma concepção de modernidade como detrito,
em oposição à da narrativa de Piglia como vinculada à concepção de
modernidade pedagógica.

Admitindo que o mote do projeto, Crítica e ficção, inspira-se no


livro de Ricardo Piglia, é imperioso esclarecer que o horizonte da
pesquisa nos leva, contudo, a aprofundar as perspectivas abertas
pelo escritor argentino e, talvez, até mesmo postular alternativas a
esse modelo. Nesse sentido, poderíamos falar, esquematicamente,
de duas linhagens a esse respeito. Uma é a modernidade
pedagógica. A outra, a da modernidade como detrito, como
vertigem e como resto. Uma trabalha com imagens compactais; a
outra, com imagens ausentes. (Antelo, 2005, p. 29).

No entanto, a modernidade como detrito poderia ser compreendida


também como um processo de reciclagem da própria modernidade, uma
vez que além da miniaturização, detectada por Süssekind, procede à
duplicação da narrativa, que não se limita à mimese do real, conforme
sublinha Antelo, porém, o ato de duplicação está mais próximo de um
dobrar e desdobrar o enredo na sua busca por sentido do que propriamente
uma revelação de algo se que encontrava oculto na primeira história. Bernardo
Carvalho resenha o primeiro livro de contos de Ricardo Piglia, A invasão,
publicado em 1967, e comenta que:
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O desenlace desses contos pode ser muito sutil, quase


imperceptível, fazendo de alguns deles uma espécie discreta de
parábola. (Carvalho, 1997, p. 6).

A parábola sempre tem uma moral, uma mensagem segunda,


duplicada num segundo fluxo narrativo, seja ele simultâneo ou posterior à
história que se narra. Mensagem essa que deve ser encontrada na reflexão
após o fim do relato. Os enredos no relato de Bernardo Carvalho não se
duplicam, ao contrário, se dobram, e o encontro com o sentido é sempre
adiado. A segunda história não desarticula a primeira, no lugar disso, duplica
o seu problema num outro enredo para o qual igualmente não se encontra
sentido. A lacuna de sentido que se constrói entre uma história e outra
indica que a dobragem de sentido não ocorre mediante o desvendamento
do mistério, ao contrário, opera com base no vazio deixado pelo sentido no
espaço lacunar entre as duas histórias. Com isso, o problema do espaço na
narrativa ganha outros contornos e estimula a presença de outros procedimentos
no texto. Simultaneamente, espaço e tempo operam em uma mesma direção:
criar efeitos de descontinuidade, com vistas a interromper o fluxo linear da
linguagem. Poderíamos, com isso, relembrar e aproximar o que faz Bernardo
Carvalho com os efeitos de descontinuidade entre seus dípticos com o que
Jacques Derrida encontra no trabalho de Mallarmé com a linguagem:

Es la doctrina mallarmeana de la sugestión, de la ilusión indecisa


Esta indecisión, que les permite moverse solas, indefinidamente,
las corta, salvo simulacro, de todo sentido (tema significado) y de
todo referente (la cosa misma o la intención, consciente o
inconsciente, del autor). (Derrida, 1989, p. 9).

A sugestão torna possível a indecisão que desvia do sentido único,


do mesmo modo que desfaz a pseudotransgressão e a polissemia cujo
pressuposto continua a ser a causalidade do sentido. No livro Aberração,
primeiro livro de contos de Bernardo Carvalho, são colocados como
|150|

problemas narrativos, como problemas de procedimento da construção do


relato os temas da desaparição, do segredo familiar, da dissimulação e da
interrupção de comportamentos qualificados quando da exposição a
comportamentos aberrantes. O conto que dá título ao livro narra a história
do desaparecimento da tia do narrador, idolatrada por sua beleza, que fora
imortalizada pelo fotógrafo Alain Dèguy. Essa história se duplica na história
do quanto esse desaparecimento impactou a vida do narrador, impacto esse
transformado num desejo obsessivo por reencontrá-la. Esse desaparecimento
poderia ser compreendido dentro qualquer trama policial na literatura na
modernidade. Caroline Firmino em sua dissertação de mestrado, Valor e
paranóia em Bernardo Carvalho, sobre o problema do valor em alguns
romances de Bernardo Carvalho, analisa que a categoria do fait divers
utilizada por Roland Barthes, vale dizer, a inserção de elementos que
estruturam a notícia no jornalismo na literatura produzida em massa e para
uma multidão, pode ser utilizada para pensar a relação entre a ficção e a
realidade na literatura de Bernardo Carvalho. A utilização do fait divers,
segundo Barthes, pela arte de massa preserva a ambigüidade entre o racional
e o irracional, do inteligível e do insondável, e especialmente a indiferença
para com o que é verdadeiro e para o que é falso. A notícia ou um relato de
um acontecimento real na vida de um homem infame, relato que faz com
que, segundo Michael Foucault, em 1977, analisa no texto “A vida dos
homens infames”, apareça aquilo que estava oculto, isto é, aquilo que não
deve ou não pode aparecer, é a marca com a qual a literatura na modernidade
passa a existir. Foucault chama a atenção para uma diferença não de escala,
mas de procedimento discursivo que foi fundamental no século XVII para
a constituição de novos saberes, dentre os quais se inclui a literatura moderna.

A fábula, de acordo com o sentido da palavra, é o que merece ser


dito. Por muito tempo, na sociedade ocidental, a vida do dia-a-dia
só pôde ter acesso ao discurso atravessada e transfigurada pelo
fabuloso; era preciso que a vida fosse extraída para fora dela mesma
|151|

pelo heroísmo, pela façanha, pela Providência e pela graça, eventualmente


por um crime abominável; era preciso que ela fosse marcada com
um toque de impossível. Somente então ela se torna dizível. O que
a colocava fora de acesso lhe permitia funcionar como lição e exemplo.
Quanto mais o relato saía do comum, mais ele tinha força para
fascinar ou persuadir. Nesse jogo do fabuloso imaginário, a
indiferença para com o verdadeiro e para com o falso era, portanto,
fundamental. E se acontecia alguém se propor a dizer da própria
mediocridade do real, não era senão para provocar um efeito de
chiste: apenas o fato de falar dele fazia rir. A partir do século XVII,
o Ocidente viu nascer toda uma ‘fábula’ da vida obscura da qual o
fabuloso se viu proscrito. O impossível ou o irrisório cessaram de
ser a condição sob a qual se poderia contar o comum. Nasce uma
arte da linguagem cuja tarefa não é mais cantar o improvável, mas
fazer aparecer o que não aparece – não pode ou não deve aparecer:
dizer os últimos graus, e os mais sutis, do real. [...] Daí sua dupla
relação com a verdade e o poder. Enquanto o fabuloso só pode
funcionar em uma indecisão entre o verdadeiro e o falso, a literatura
se instaura em uma decisão de não-verdade: ela se dá explicitamente
com artifício, mas engajando-se a produzir efeitos de verdade que
são reconhecíveis como tais. (Foucault, 2003, p. 220).

Portanto, decidir por um regime de não-verdade na literatura é aderir


à discursividade moderna. Exercer o poder de decisão implica delimitar os
pontos de chegada, bem como esquadrinhar, isto é, dividir e conquistar o
novo território. Contudo, quando Barthes propõe o procedimento do fait
divers como a passagem, o limiar, entre o inteligível e o monstruoso, o
impossível, o insondável, não produz uma passagem de sentido único, não
produz o limite, a divisão de uma literatura pós ou antimoderna, ao invés
disso, propõe que a literatura se compreende na ambivalência de sua existência
com seus resíduos do moderno, do pré-moderno e do pós-moderno
simultaneamente. Enfim, produz uma concepção de tempo na narrativa e,
por conseqüência, na leitura da realidade e da história que escapa às imposições
de uma compreensão linear do tempo.
|152|

A mimese que se executa no fait divers é diferente da mimese do


realismo, uma vez que acontece no âmbito da ficção, o problema da
representação não passa pela separação entre o que é realidade e o que é
ficção. Desse modo, o dado banal da realidade ganha a estrutura de uma
informação relevante para a ficção ao mesmo tempo em que dado da
imaginação ficcional adquire estatuto daquilo que sempre estivera ali, porém
não percebido. Não há segredos a serem desvendados porque o que existe
na narrativa está ali como cenário pleno de informações à disposição do
desenvolvimento da ação. Roland Barthes analisou o fait divers como um
movimento antitético na narrativa, que ocorre justamente no seu ápice, na
revelação dos fatos, e pautada por uma relação de coincidência que aproxima
dois termos qualitativamente distantes. A essa coincidência Barthes aproxima
um movimento da estrutura da tragédia clássica, o cúmulo, que consiste em
operar uma conversão do acaso em signo. No entanto, este signo tem
conteúdo incerto, porém que, mediante o uso do fait divers, pode apoiar-se
em uma certa cultura, “mas, ao mesmo tempo, pode encher in extremis essa
cultura de natureza, já que o sentido que ele dá à concomitância dos fatos
escapa ao artifício cultural, permanecendo mudo” (Barthes, 1999, p. 67). O
fait divers, desse modo, seria o responsável pela irrupção do monstruoso, da
aberração, no relato. Essa irrupção não viria de forças externas ao relato, ao
contrário, teria ela estado sempre ali, uma vez que a estrutura da rubrica sob
a qual se publicam pequenos escândalos nos jornais pressupõe, segundo
Barthes, o preenchimento desse fato cultural com sua contra-face de natureza.
A estratégia do conto “Aberração”, bem como do romance Teatro, de B.C.
consiste em fazer que esta outra face da natureza, o seu monstro, a sua
aberração seja imanente ao texto e à realidade simultaneamente. Caroline
Firmino observa que esse procedimento em Bernardo Carvalho que:
|153|

[...] tem predileção pelos casos que se incluem entre os


insignificantes e faz de sua escrita uma matriz produtora de
significações para esses mesmos fatos. Assim, uma vez
impressionado com um “fait divers” qualquer, escreve um relato
inteiro. Ora, mas isso não seria novidade nem digno de sublimação,
afinal, quase todo escritor o faz. A validade não está, não se pode
esquecer, portanto, na “fábula” criada, e sim no “fabular”. Pense-
se, por exemplo, na tarefa de escrever “Medo de Sade”, que foi
um livro encomendado pela Companhia das Letras. O mais óbvio
seria fazer do Marquês de Sade uma personagem, deixá-la agir
por si só. Ao contrário, B.C. apenas insinua sua presença através
de uma ilusão (a voz da primeira parte) e da temática, mas tudo o
que se aproxima do Marquês de Sade não faz nada além de marcar
sua total ausência. E da mesma maneira poder-se-iam pensar
sobre os casos reais que vêm a aparecer nos outros relatos, como
o pintor, de “Onze”; o caso do seqüestro do casal francês, num
aeroporto do Rio de Janeiro, em “Medo de Sade”; o caso do
acidente do avião que cai na Baía da Guanabara, em “Os bêbados
e os sonâmbulos”; o caso do terrorista, em “Teatro”, enfim, todos
eles lá estão, disfarçados, distorcidos até quase tornarem sua relação
original com a realidade invisível. BC confessa, em entrevista a
um jornal português: “A minha escrita ficcional não interfere na
escrita jornalística e tenho aproveitado nos meus livros histórias
de gente a quem entrevistei e que me impressionaram. Olhe, em
‘Onze’, uma delas foi feita a partir de um pintor americano, Jim
Rollins, que pintava com sangue de cavalo sobre páginas ampliadas
da ‘Tentação de Santo António’, de Flaubert”. (Carvalho, 2001).

Essa busca pela invisibilidade da relação, evidentemente, dá conta


do diferimento essencial entre literatura e jornalismo que BC
bem conhece, já que atesta em suas duas atividades. (Firmino,
2004, p. 57-58).

O irracional, o monstruoso e a aberração nos relatos de Bernardo


Carvalho estiveram sempre aí, coexistindo, no plano da imanência, com o
que é racional. Dessa forma, a relação com a tese do conto de Ricardo Piglia
é herdada como problema e não como solução. A segunda história não
|154|

enuncia uma verdade, a clave para a forma do conto. Para Piglia ambas as
histórias são mimeses do real, real esse compreendido como verdade, como
informação, e não como problema que não cessa de derivar-se. As histórias
nas teses do conto de Piglia, conforme ressaltou Raúl Antelo, são também
“simultâneas e a alegoria é usada como um procedimento de desarticulação
da forma, dos valores do relato” (Antelo, 2005, p. 36), no entanto, estão ali
para a enunciação de outro valor, o valor da história como representação
ideológica. No relato de Bernardo Carvalho, cuja estrutura sempre está de
acordo com o procedimento de dobragem e desdobragem da trama, a história
dobrada não se constitui apenas como uma desarticulação da forma da
primeira para a valorização da segunda, mesmo que seja para valorizar o
seu poder de desarticulação. A segunda história também será desarticulada
e nesse caso não por uma terceira história, o que implicaria a manutenção da
estrutura da narrativa como representação. A segunda história desconstrói a
primeira e a primeira a segunda, não restando nenhum sentido que possa
ser reconstruído após o seu dobramento.
Não há segredos a serem desvendados no relato de Bernardo
Carvalho porque o que existe na narrativa está ali como cenário repleto de
elementos à disposição do desenvolvimento da ação. O livro Os bêbados e os
sonâmbulos é dedicado à mãe do autor que lhe contara uma história pedindo,
mesmo sabendo que ele não cumpriria a promessa, que não a recontasse a
ninguém. Conhecer a história que fez um filho trair a confiança de uma
mãe e o fato terrível e abominável que estrutura o livro. Porém, o segredo
que constituiria essa história jamais será revelado na narrativa, não
configurando nem a traição e tampouco a história. O livro é povoado de fait
divers, que configuram séries de não-acontecimentos, os quais não fazem
senão configurar a cena da história e seu segredo, mas não o seu
desvendamento. O livro constrói as séries baseado na dobragem, na
duplicação dos pequenos e insignificantes eventos: num deles o personagem-
narrador descobre que tem uma doença hereditária e incurável cujo sintoma
|155|

é perda total da memória de sua identidade primeira e a adoção de uma


segunda identidade. Conta sua história a outra pessoa com o intuito de que
o outro se apodere da faculdade de manter seu segredo vital e lembrá-lo
(contar de novo) de quem ele era. Há uma ação simultânea que se configura
nesse procedimento que diz que no mesmo momento em que sua história
se duplica no outro ela se perde, se esvazia, uma vez que portador original
do segredo dessa história, ou ainda, de sua vida, irá perdê-la já que tem
uma doença degenerativa que o fará esquecer completamente quem ele é.
Para preservar o sentido de sua vida o narrador empreende uma tarefa de
interpretação de todos os pontos cegos de seu passado. Para isso, cria para si
mesmo um sistema de correspondências que não o levam a desvendar nada,
ao contrário, potencializam cada vez mais a ausência de sentido das coisas.
As correspondências que o narrador cria para doar sentido aos
acontecimentos, vazias de sentido próprio, ampliam a rede de não-
significação. O narrador está no vôo para Santiago do Chile, de onde tomará
um outro vôo para Temuco e seguirá por duas horas de viagem por terra até
Los Angeles, durante o vôo para Santiago, lê no guia do Sul do Chile que
comprara a informação de que no dia 22 de maio de 1960 ocorreu o maior
terremoto, com epicentro em Valdívia, registrado naquele século. A essas
informações sacadas do guia turístico acresce-se:

Quase vinte anos depois, o psiquiatra tinha aparecido na pequena


cidade de Los Angeles, a trezentos quilômetros de Valdívia, louco,
após nove anos desaparecido, no dia seguinte a um forte abalo sísmico
que sacudira Los Angeles, na Califórnia. (Carvalho, 1996, p. 28).

O narrador se empenha, durante o mesmo vôo, a ler o dossiê do


psiquiatra desaparecido. Não vê ali nada de especial, porém, relata o primeiro
dos textos do psiquiatra que ele folheia, trata-se do relato de um caso clínico
do psiquiatra. Com esse sistema de correspondências, cuja função primeira
é reconstruir o caminho que o leve até o psiquiatra, nada mais faz que
|156|

proliferar mais e mais caminhos que não conduzem ao paradeiro do médico


e tampouco ao desvendamento do próprio passado do narrador. O primeiro
documento do dossiê que lhe passa pela mão já lhe desvia o olhar da busca
primeira que é o paradeiro do médico. O narrador se interessa por um
relato assinado com as iniciais B.C. e intitulado “Eu”, não esquecer que o
ponto de partida dessa proliferação intensa de sentidos começou com a leitura
do guia turístico sobre um terremoto ocorrido no ano de 1960, ano de
nascimento de B.C. Assim que mais um elemento se duplica, agora em
direção ao próprio autor do relato, numa tentativa de discutir a vida da
obra, o processo do seu “vir-a-ser” e o seu declínio. O sistema de
correspondências, ou ainda nas palavras de Flora Süssekind “da composição
em dípticos contrastantes”, longe de se explicar e explicar alguma coisa,
prolifera o não-sentido da história, isto é, recoloca de uma outra maneira a
“indiferença para com o verdadeiro e para com o falso” da fábula pré-
moderna da qual falava Foucault em “A vida dos homens infames”.
Sendo assim, os dípticos no relato de Bernardo Carvalho funcionam
como propulsores da força que move os acontecimentos e não como peças
que deverão terminar encaixadas no final da narrativa para o desvendamento
daquele sentido que estava oculto. A parte que falta para completar o díptico
Os banhistas ao sol, quadro que desvendaria o segredo de uma morte e de
toda uma história, jamais será encontrada, no entanto, o narrador conhece a
cópia do quadro, que ele não sabe se é realmente reprodução do quadro
inteiro. Assim o problema da produção da totalidade da obra transfere-se
para a ação de duplicar e dobrar ou reproduzir algo que não possui um
referente integral e primeiro. A frase com que o texto de Os bêbados e os
sonâmbulos esclarece o porquê de apenas uma parte do quadro ter sido vendida
parece funcionar como um sintoma que perpassa toda a obra de Bernardo
Carvalho.
|157|

O museu acredita que o resto do quadro só pode estar com a


família. Foi vendido desmembrado de propósito, quando
passavam por dificuldades, para que sempre pudessem contestar
a imperfeição da obra, com base no fato cabal de estar incompleta,
até o mais idiota dos curadores pode afirmar isso sem hesitar, com
uma simples passada de olhos. Venderam ao empresário americano
a parte esquerda de um díptico com a direita de outro, como se
fossem um único trabalho. Oficialmente, vim procurar o resto, a
outra peça do quebra-cabeça. Para o museu, o importante é achar
a parte esquerda, que acompanha a mulher morta. As testemunhas,
os banhistas ao sol, The sunbathers, [disse ele, em inglês] sua obra
máxima. (Carvalho, 1996, p. 76-77).

Referências

ANTELO, Raúl (Org.). Crítica e ficção. Florianópolis: Nelic/CAPES, 2005.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. 3. ed.


São Paulo: Perspectiva, 1999.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia, técnica. Arte e política. Tradução Sérgio


Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CARVALHO, Bernardo. Aberração. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

_______. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

_______. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

_______. As iniciais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_______. O desafio inicial de Piglia. Mais!, Folha de São Paulo, 3 ago. 1997.

______. Tentação de Santo António, de Flaubert. Disponível em: <https://


www.expresso.pt/default.aspx>. Acesso em: 21 mar. 2001.
|158|

DERRIDA, Jacques. Mallarmé, Traducción Francisco Torres Monreal.


Antología, Anthropos. Revista de Documentación Científica de Cultura, Barcelona,
n. 13, 1989.

FIRMINO, Caroline. Valor e paranóia em Bernardo Carvalho. 2004. Dissertação


(mestrado em Literatura), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2004.

FOUCAULT, Michael. A vida dos homens infames. Ditos e Escritos IV. Tradução
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Cuaderno de extensión Universitaria, n. 9,


Serie Ensayo, Universidad Nacional del Litoral, Argentina, 1986.

_______. Formas breves. Tradução José Marcos Mariani de Macedo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SÜSSEKIND, Flora. Desterritorialização e forma literária – literatura brasileira


contemporânea e experiência urbana. Literatura e Sociedade, Departamento de
Teoria da literatura e Literatura Comparada, USP, São Paulo: Nankin, n. 3,
2003-2004.

_______. Escala & ventríloquos. Mais!, Folha de São Paulo, 23 jul. 2000.
A PLENITUDE DO TEMPO E A PRÁTICA
DO DESVIO NO RELATO DE CÉSAR AIRA

César Aira é um escritor que começa a despertar algum interesse


nos estudos sobre literatura operados no Brasil. Em 2002, a Editora
Iluminuras trazia ao público brasileiro o livro de contos a Trombeta de vime.
Em 2006, duas das dezenas de novelas de Aira foram publicadas pela editora
Record, Um acontecimento da vida de um pintor viajante e As noites de flores.
Em meados de 2007 vem a público uma reunião de esparsos de César Aira,
Pequeno Manual de Procedimentos, pela editora Arte&Letra. Em dezembro
de 2006, no colóquio intitulado “Pós-Crítica”, realizado na Universidade
Federal de Santa Catarina, a professora Dra. Luz Carranza-Rodríguez,
catedrática em Literatura Latino-Americana da Leiden University,
apresentou uma análise da novela Congreso de Literatura de César Aira, e o
professor Dr. Antonio Carlos dos Santos, da Universidade do Sul de Santa
Catarina, apresentou uma análise da novela Um acontecimento da vida de um
pintor viajante. César Aira esteve algumas vezes no Brasil convidado a falar
sobre sua obra em instituições de ensino e pesquisa.
|160|

Com uma obra marcada por uma preocupação com a literatura,


mas sem ser metalingüístico, características das obras do alto-modernismo,
César Aira vem discorrendo sobre o problema do tempo, da autoria, do
espaço literário como procedimentos de desconstrução da idéia mesma de
obra. Raúl Antelo dirá que

[...] a narrativa de Aira pratica uma estética do abandono. É uma


obra em miniatura que se derrama, como efeito potlatch, através de
infinitos títulos. Dela se poderia dizer que (como Aira disse em
relação a Ma Beerbohm) que é uma obra frívola, contrária à
sociedade, à transcendência e ao compromisso ideológico, traços
que a empurram em direção ao anacronismo. (Antelo, 2006).

Nesse sentido, a deriva praticada pela narrativa não passa por um


abandono da forma narrativa moderna, não poderíamos dizer que Aira
abandona a narrativa e esposa o relato, como vimos na análise do trabalho
do escritor brasileiro Bernardo Carvalho. A deriva se realiza no mesmo
tempo em que ele esposa os procedimentos a serem desconstruídos. Portanto,
trata-se de um estar com e contra no mesmo momento. Daí que poderíamos
retomar a tese de Raúl Antelo de que o trabalho de Aira o conduz a uma
concepção de tempo anacrônico, uma vez que nela, nesta narrativa, poderíamos
dizer que dois corpos ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. A
noção de tempo anacrônico assume para si que o tempo está completo. Walter
Benjamin, em Origem do drama barroco alemão, ao contrapor sua concepção
de origem à de gênese, sem contanto extrair essa origem da história, chama
a atenção para um aspecto da história que ele chama de “natural”, que prevê
um estudo do estado de uma obra com base ao mesmo tempo na “pré” e
“pós-história” daquela obra. A história natural das obras é dessa forma a
história do declínio, do processo de “vir-a-ser” e extinguir-se das obras.
Sendo assim, assumindo essa prerrogativa, o trabalho do artista e o do
crítico estão pautados por um anacronismo, uma vez que a “pré” e a “pós-
|161|

história” da obra se cumprem em seu presente. É com um ponto de vista


anacrônico que Benjamin analisa o drama alemão do século XVII. E detecta
no pensamento alemão que produz o drama do século XVII elementos que
se desdobrarão na sua “pós-história”, o expressionismo. Benjamin explica
que a concepção de história do século XVII é “panoramática”, pois que ela
é determinada pela justaposição de todos os objetos memoráveis. Era a
vivência do tempo que tudo destrói, do caráter implacavelmente efêmero
de todas, que gera o gosto acentuado pelo pitoresco, pela paisagem natural
como espaço de refúgio do mundo.

Pois o que é decisivo na tendência barroca de fugir do mundo,


não é a antítese entre a história e a natureza, mas a total secularização
da história no estado da Criação. Não é a eternidade que se
contrapõe ao fluxo desesperado da crônica do mundo, mas a
restauração de uma intemporalidade paradisíaca. A história migra
para a cena teatral. (Benjamin, 1984, p. 189).

O presente para o pensamento do século XVII apresenta-se num


tempo cumprido, ou ainda, em um tempo que conjuga e combina todos os
tempos. Um tempo em que tudo parece estar à disposição. Não é outra a
leitura que Benjamin faz do expressionismo, atribuindo a ele a produção
de uma não-arte cujo efeito não é o de negar a existência da arte, mas de
transformá-la em problema.

É na dimensão da linguagem que aparece com toda a sua clareza


a analogia entre as criações daquela época e as contemporâneas, ou
do passado recente. O exagero é uma característica comum a todas.
Essas produções não brotam do solo de uma existência comunitária
estável; a violência voluntarista do seu estilo procura, pelo
contrário, marcada, pela literatura, a ausência de produções
socialmente válidas. Como o expressionismo, o Barroco é menos
a era de um ‘fazer’ artístico, que de um inflexível ‘querer’ artístico.
É o que sempre ocorre nas chamadas épocas de decadência. A
|162|

realidade mais alta da arte é a obra isolada e perfeita. Por vezes, no


entanto, a obra acabada só é acessível aos epígonos. São os períodos
de ‘decadência’ artística, de ‘vontade’ artística. Por isso, Riegl
cunhou esse termo exatamente com relação às últimas criações
artísticas do império romano. Somente a forma como tal está ao
alcance dessa vontade, e não a obra individual bem construída. É
nesse querer que se funda a atualidade do Barroco, depois do
colapso da cultura clássica alemã. (Benjamim, 1984, p. 77).

Note-se que Walter Benjamin toma o Barroco em sua existência


temporal, o Barroco é uma ‘era’, e não um estilo, ou arte. Isso tem a
conseqüência de tomar o Barroco em seu tempo presente, que não pode ser
confundido com um momento sincrônico, de instante já, ou de presente
eterno que se distanciaria do tempo histórico. O tempo presente no qual
Walter Benjamin insere o Barroco é o tempo histórico da decadência de
uma vida, que não se relaciona com o seu desaparecimento, mas com o seu
“vir-a-ser” e declinar. Aqui reside uma noção de trânsito muito interessante
para retomarmos a discussão sobre a obra de César Aira. Uma não-arte que
inclui a idéia de declínio não é uma arte que nega a si mesma, convive com
a idéia de sua desaparição e de seu próprio fim, criando uma passagem
franca, um trânsito livre, um limiar entre o seu processo de “vir-a-ser” bem
como o processo de declinar. Esse declínio, em Walter Benjamin, está
indiretamente ligado à idéia de declínio natural, de uma história natural,
que Benjamin retoma de Goethe.
Sob esse aspecto interessa-nos a novela Parménides, publicada em
2006, ainda sem tradução para o português. Depois de ser contratado por
Parmênides, personagem de grande prestígio da Grécia antiga, do século V a.C.,
para que o ajude a escrever seu livro sobre a natureza, Perinola, um poeta
de certo respeito entre os seus, se vê numa situação um tanto paradoxal:
recebe durante anos o pagamento por uma tarefa que não chega a concluir,
seja por dispersão e falta de projeto de seu patrão e orientador, seja por
dispersão e falta de projeto dele mesmo. Mais que uma reflexão sobre a
|163|

natureza, motivo do livro de Parmênides, a novela de Aira desenvolve um


vasto pensar sobre o problema do tempo e da vida da literatura. O personagem
Perinola, que, segundo Raúl Antelo, poderíamos traduzir em português
popular como Pinóia, isto é, chateação, aborrecimento, amolação e também,
coisa reles e sem valor, era um poeta jovem e promissor quando Parmênides
o manda chamar e o contrata para a tarefa de escrever seu livro. Não sem
ubiqüidade temporal, Perinola é descrito já no início do texto em três tempos:
o da história já transcorrida, isto é, dez anos depois da contratação por
Parmênides, o do início de sua carreira como poeta jovem, cuja fama lhe
apresentava como uma promessa, e como um não tão jovem assim escritor,
pois que já começa nessa época a deixar de ser jovem.

Ésta es la historia triste y fatal del escritor Perinola, que vivió a


comienzos del siglo quinto antes de Cristo en una colonia griega
de la costa italiana del sur. Cuando empezó la historia, aunque ya
estaba empezando a dejar de ser joven, era un escritor joven una
‘promesa’ como suele decirse; no había gran cosa en la que basar
la promesa, pero con un poco alcanza, y hasta con nada, si lo que
se promete es algo tan inverificable como la poesía. En realidad no
había escrito casi nada, y lo habían leído menos, pero eso no
significaba que la consideración (un tanto ambigua, además) en
que lo tenía un puñado de entendidos o supuestos entendidos en
poesía careciera de todo fundamento. A veces se dan casos de
adivinación social, que suelen entrar en la categoría de profecías
autocumplidas. Eso puede deberse a que son tan escasos los
escritores buenos que cuando aparece una, entre mil malos, casi
no necesita escribir para que alguien se dé cuenta. Y además está
el hecho de que las falsas adivinaciones o las promesas que no se
cumplen no se toman en cuenta. (Aira, 2006, p. 7).

Esse anacronismo de base, isto é, princípio que estrutura a narrativa


e disponibiliza ao narrador a possibilidade de conjugar todos os tempos, de
tê-los à sua inteira disposição, também permite à narrativa a faculdade de
abdicar da lógica do sentido. Conjugando tempos diferentes, o texto adquire
|164|

o poder de propor o abandono de uma lógica discursiva que permeia toda


a construção da história e do mundo ocidental. No entanto, há uma diferença
de modulação desse abandono dada pelo próprio anacronismo, ou seja,
pela distinção entre esses tempos diferentes, os quais a narrativa lança mão.
O tempo da narrativa do narrador, este que conta a história de Perinola em
terceira pessoa, é o tempo da narrativa tradicional, tampouco é moderna,
uma vez que vimos no exemplo anteriormente citado que o narrador possui
a onisciência, conhece todos os fatos já ocorridos, sabe do fim e da finalidade
do trabalho de Perinola. “Ésta es la historia triste y fatal del escritor Perinola,
que vivió a comienzos del siglo quinto antes de Cristo en una colonia griega
de la costa italiana del sur.” Sua escrita não abandona a literatura, porém
abdica das técnicas narrativas modernas, pois não abandona a fabulação e
há certa moral pré-moderna que faz questão de se manifestar, especialmente
nas considerações que o narrador tece sobre a função social do trabalho de
autor desempenhado por Perinola. Porém quando o narrador trata de
comentar e descrever o fazer poético do poeta de aluguel e que se conecta ao
tempo do não tão jovem escritor, isto é, da promessa literária que ele
representou um dia, quando o tempo da narrativa é o tempo do escritor já
em um momento de “maturidade” intelectual, interrompe-se a lógica
discursiva moral, corta-se o processo de fabulação e irrompe uma outra
lógica que poderíamos chamar de não-lógica, mas que não chega a ser
ilógica. Isso se materializa no texto quando se passa a descrever o processo de
composição do livro que Perinola está escrevendo, a escrita ali desempenhada
e que atesta a alteração no ponto de vista e no tempo narrativo é a escrita
automática.

De modo que esa noche, después de acostar a los niños, se sentó


en su rincón y se puso a escribir. Antes de empezar, en ese momento
de suspensión en el que todo era posible, hasta desobedecer a la
musa, se preguntó una vez más (y esta vez a sí mismo): escribir…
¿qué? Fue como si la vieja pregunta tomara sentido pleno por la
|165|

primera vez. Fue un instante: al siguiente ya estaba escribiendo, y lo


hizo sin detenerse durante dos o tres horas. Fue un trabajo sonriente,
intercalado con risas, que tuvo que contener para no despertar a la
familia. No porque lo que escribía fuera cómico: era serio, pero él no
lo escribía en serio; lo cómico estaba en la situación. La sonrisa
también reflejaba la facilidad con que salían los versos, una emisión
fluida, casi automática, que parecía como si pudiera seguir
indefinidamente. En cierto modo, era un regreso de la musa, por el
camino indirecto del personaje adoptado o la voz ajena. Quizá
siempre debería haberla buscado ahí. (Aira, 2006, p. 35-36).

Esse momento da escrita automática é o tempo presente de Perinola


e, portanto, o presente da literatura. E a pergunta que Perinola faz a si
mesmo é a pergunta que sempre se coloca à escritura, isto é, ao fazer literário,
é a pergunta que não cessa nunca de não se inscrever e por isso existe a
literatura: “escribir… ¿qué? Fue como si la vieja pregunta tomara sentido
pleno por la primera vez.” A pergunta de sempre introduz Perinola no
presente da literatura, ou aquilo que sempre esteve aí.

Porque lo que estaba haciendo, y lo que suponía que tendría que


seguir haciendo durante meses, era asumir la voz y el pensamiento
de “autor”, es decir, Parménides. Ahora bien, justamente ése era el
problema: que no sabía qué contenía ese pensamiento. A pesar de
lo cual descubrió que podía asumirlo. Tenía la máscara, y se la ponía,
y la máscara arrastraba todo lo demás. La “máscara” eran los gestos
de Parménides, el timbre de su voz, su modo de hablar; no le era
difícil ponerse en el personaje porque lo había tenido en el primer
plano de su mente cada momento de esos tres días, desde que lo
había conocido. Y sí el “estilo” exterior de una persona es expresión
del pensamiento, éste puede deducirse de aquél. Por supuesto, esta
magia no funcionan en los hechos, aunque basta con que uno se
convenza de su eficacia para que funcionen. A Perinola lo dio
resultado, dentro de los modestos límites que se había propuesto.
En realidad, traspasó esos límites. (Aira, 2006, p. 36-37).
|166|

De fato, surrealistas e dadaístas haviam apostado na escrita automática


como procedimento que garantisse o desvio da imposição de fazer arte com
finalidade, seja ela uma finalidade autônoma seja ela uma finalidade social.
A escrita automática arrancava o fazer artístico de ambas as lógicas. No
entanto, a escrita automática desenvolvida pelo personagem Perinola, e não
pelo narrador da história de Perinola, desdobra e, desse modo, explica o
procedimento dos vanguardistas. No conceito de prega de Gilles Deleuze,
desenvolvido no livro A dobra,reside a noção de explicação como um
desdobramento e não como revelação ou esclarecimento de um problema.
O processo de dobragem em sua diferenciação do de iluminação ou
esclarecimento é comentado e desenvolvido por Mario Perniola, em Enigmas.
A explicação, segundo Perniola, nas línguas derivadas do latim, indica a
atividade de conhecer, e que na leitura de Kant haverá um privilegiar do
termo esclarecimento em detrimento do termo explicação.

Mientras la primera [la clarificación] – dice Kant – consiste en el


exponer originariamente el concepto explícito de una cosa dentro
de sus límites seguros, la segunda tiene un ámbito de aplicación
meramente empírico. En la explicación, según Kant, el concepto
no está dentro de límites seguros y por tanto no puede ser definido.
(Perniola, 2006, p. 17).

O que parece um defeito do processo de aquisição do conhecimento


baseado na explicação para Kant para Mario Perniola pode funcionar, sob
outro ponto de vista, como uma possibilidade produtiva. Se a produção de
conhecimento e sabedoria nunca se encontra em limites seguros e tende
sempre a ficar à margem deles tentando superá-los é porque os conceitos de
conhecimento e de sabedoria não estão baseados em limites pré-fixados.
Reutilizar um procedimento vanguardista quer dizer que esse procedimento
esteja sendo explicado, isto é, desdobrado em sua potência produtiva.
Reutilizá-lo pode ter o sentido de esclarecê-lo e, portanto, de fixá-lo sob
|167|

uma forma rígida do conhecimento. Dessa forma, não se garante a


transferência da força “disruptiva” e desestabilizadora com a qual o
procedimento foi criado ou utilizado na última vez em que apareceu como
evento. Sua força vem justamente de sua potência de “ex-pli-car”, isto é, de
desdobrar e desenvolver as pregas.
Dessa forma, a escrita automática, procedimento da vanguarda, se
desdobra, se “ex-pli-ca”, em uma hesitação entre um apagar a presença do
sujeito auto-suficiente e uma apreciação do lugar vazio dessa presença. Ainda
no livro Enigmas, Mario Perniola ressalta que o “neo-pathos”, que é proposto
especialmente pelo expressionismo e posteriormente desenvolvido pelos
surrealistas e dadaístas, implica a suspensão e a abolição do eu considerado
em sua identidade e em seu papel psicológico e social. A arte que esse novo
pensar produz congrega uma nova forma do sentir que é mais abstrata e
indeterminada. E mais, lembremos também o diagnóstico que Walter
Benjamin faz do expressionismo na sua comparação com o barroco, cuja
similaridade está baseada em um incontido e impessoal desejo de ser arte.
Aira ultrapassa o limite do procedimento vanguardista quando não o
considera um conhecimento limitado, e procede a desdobragem do
procedimento com o perseguir dos rastros deixados pelo sujeito que se
ausentou. A escrita automática que Perinola executa persegue o rastro de
Parmênides que funciona como máscara de um sujeito. A máscara
testemunha uma presença que não está presente. Perinola não é Parmênides,
tampouco assume seu lugar como “persona”, como artifício, ao contrário,
reconhece-lhe estatuto de existência, porém se contenta apenas em contemplar
sua ausência. Esse contemplar o vazio produz para o trabalho do poeta
Perinola o tão necessário pensamento de Parmênides. A já solene frase para
a literatura de que o “estilo é o homem” adquire um sentido a mais. Aira
inverte a equação: o estilo é que representa o homem, transforma-se em: é o
pensamento, isto é, o homem é que pode ser criado a partir de seu estilo.
|168|

Y sí el “estilo” exterior de una persona es expresión del


pensamiento, éste puede deducirse de aquél. (Aira, 2006, p. 36).

O sujeito pode ser recriado mediante a sua ausência. Esse é o tempo


mediante o qual a novela concebe o poeta Perinola, o tempo de sua maturidade
como autor, que no experimento da escrita automática se interessa pela
contemplação de um sujeito pertencente a um outro tempo, Parmênides.
Estamos diante de uma novela que conjuga tempos paralelos que pertencem
à temporalidade do presente. E com isso retornamos ao tempo da narração
da história de Perinola pelo narrador que sabe que a história de Perinola
teve um final cujo desdobrar ingressa a opção do poeta de aluguel numa
também temporalidade do presente. Da mesma forma que Perinola se deixa
levar pelo automatismo da escrita para criar o autor do texto que escrevia,
isto é, criar Parmênides, compreende que também poderia aplicar o mesmo
procedimento para com os acontecimentos de sua vida. Como se talvez lhe
fosse possível com esse procedimento contemplar a presença no vazio de
significação de outros sujeitos. Os procedimentos artísticos vanguardistas,
no que toca ao seu pertencimento à categoria de experiência, levam consigo
sua potência de perigo, perigo pela insegurança do caminho ainda não
trilhado. O desenlace da trama interessa mais do que propriamente o destino
de Perinola que morre golpeado pelas patas de um cavalo “branco”, que
impaciente e zangado por estar preso no estábulo acertou a cabeça de Perinola
que tomou a forma de um melão maduro arrebentado. O que impressiona
não é propriamente a brutalidade do destino e tampouco a da cena descrita,
é antes a inserção da vida de Perinola num fluxo de acontecimentos que
produzem o inesperado. A esse fluxo a literatura de Aira tem chamado, não
somente na novela Parménides, de “presente”. Depois de despistar um jantar
familiar na casa de seus sogros, com desculpa que ainda tinha que finalizar
o livro já terminado que Parmênides lhe encomendara, Perinola, que apenas
se contagiou por um desejo de deixar que as coisas acontecessem, entra
num fluxo de acontecimentos que ele mesmo já não pode controlar.
|169|

Era el presente. Al entrar en la taberna Afrodita, Perinola había


entrado en el presente, a sabiendas. ¿Qué otro motivo habría tenido
para entrar? Habría bajado allí huyendo de las acumulaciones
rutinarias de tiempo, en busca de un presente que resistiera. Ahora
advertía (en la medida en que su estado de aturdimiento le permitía
advertir algo) que el presente podía llegar a resistir demasiado, a
hacerse intratable. Quizás así debía ser. Después de todo, él no se
había propuesto violar al presente, penetrarlo, o dominarlo; en
todo caso, había aspirado a ponerlo de su parte. Pero ¿cómo poner
de su parte a una fiera turbulenta que soltaba rugidos
incomprensibles y escapaba en todas direcciones? En un último
intento de pensar, se dijo: El presente crece… En realidad lo que
crecía dentro de él era un fenomenal disturbio visceral, efecto de la
comida y de la bebida, que no tardó en poderlo del otro lado.
(Aira, 2006, p. 125).

O presente ao qual a novela de Aira se refere insere-se num fluxo


de acontecimentos que não obedece a uma lógica cronológica linear. Ao
contrário de uma orientação em direção ao futuro, essa temporalidade do
presente da qual se compõe a narrativa de César Aira se posiciona num
fluxo de uma rede que interseciona todos os tempos que a obra conjuga.
Essa temporalidade é mais um operador temporal do que propriamente
uma sustância temporal, nela o tempo encontra como se estivesse sempre à
disposição e num sempre aí da coisa. Antes de refletir sobre essas questões
no livro Parménides, é importante lembrar que não é a primeira vez que esse
fluxo presente se justapõe ao tempo linear. Em El congreso de Literatura,
César Aira, ao descrever o efeito que o rum proporcionava ao escritor que
estava deprimido num congresso de literatura em que ele era um dos
convidados como um efeito sem causa, sobrepõe o efeito do álcool em seu
corpo a uma sensação de dominar todas as situações que lhe são apresentadas.
|170|

Había un clima festivo, casi eufórico; todo mundo parecía contento


menos yo. Me dejé llevar por la idea de extraerme de la depresión
bebiendo. […] Pero el ron es engañoso siempre suave, siempre
tranquilizante, como una perenne causa sin efecto, hasta que el
efecto si manifiesta, y entonces uno se da cuenta que el efecto ya
estaba presente desde el principio, desde antes que empezara a
haber causa. (Aira, 2007, p. 29).

Luz Rodríguez-Carranza reconhece, em seu texto ainda inédito


“Los usos de la utopia”, nesse efeito sem causa uma compreensão crítica da
causalidade que rege a lógica do tempo histórico linear, isto, da lógica daquilo
que veio antes para que o seguinte pudesse existir.

Proliferación y olvido son los procedimientos que me interesan,


porque son los que utiliza Aira em “El congreso de Literatura”,
pero yo haría una salvedad a la interpretación de Irby: los “hrörnir”
no se alejan del original, del “ur”, sino que se dirigen hacia él:
nadie sabe ya de dónde han salido, pero son deseo de algo, y ese
algo será reconocido cuando aparezca. La memoria no está
proyectada al pasado, el recuerdo es deseo presente y su efigie
distorsiona y olvida todas las anteriores. En momentos privilegiados,
aparece un “ur” en lugar de un “hrörnir”. Un “déjà-vu”, diría
Bergson, una imagen dialéctica, diría Benjamín, una imagen-cristal,
diría Deleuze citando a Guattari, que duplica el presente con un
pasado que siempre estuvo allí. Ese pasado es efecto, no causa,
como el efecto del ron en El congreso de Literatura. (Rodríguez,
2006, p. 6).

No caso da novela El congreso de Literatura, o autor homenageado


era Carlos Fuentes, e o personagem que também é um escritor é mais um
dos autores que para o evento foram convidados, os quais serviam de cenário
para a consagração da autoridade de Carlos Fuentes por antiguidade, ou
seja, por um critério histórico-literário linear. O efeito-rum transporta e corta
a sensação de não-pertencimento que o personagem escritor-coadjuvante,
ou ainda, o escritor-disjunto, para reutilizar a reflexão de Jacques Derrida
|171|

sobre a possibilidade de a obra produzir-se num passado absoluto,


experimenta frente ao evento temporal linear, isto é, presença absoluta, que
é Carlos Fuentes. No entanto, esse efeito-rum sempre esteve aí, uma vez
que o efeito-rum é um efeito sem causa, ele sempre é desde o momento em
que se ingressa no fluxo dos eventos sob o seu efeito. Estar sob o efeito-rum
é ingressar numa temporalidade do presente. Essa temporalidade de alguma
forma anula a forma passado como instância originária e produz o ingresso
da obra numa espécie de passividade, isto é, ainda retomando a reflexão de
Jacques Derrida no seu livro A gramalotogia, a relação com o passado enquanto
um “aí-desde-sempre” a que nenhuma atualização da origem (o passado)
poderia dominar plenamente e despertar para o presente. Para Derrida o
tempo poderia ser pensado como uma passividade fundamental e como
uma irredutibilidade ao “aí-desde-sempre”.
O personagem escritor-disjunto de El congreso de Literatura percebe
seu ingresso na temporalidade do presente quando de uma série de eventos
vão vertiginosamente saindo, desdobrando-se, duplicando-se um do outro: a
obra dramática, En la corte de Adán y Eva, do próprio escritor-disjunto sendo
encenada num palco, para uma platéia cuja figura mais eminente era o escritor
transformado em escritor histórico-linear Carlos Fuentes, e a iminência da
aparição dos clones do evento histórico-linear Carlos Fuentes, é daí que o
efeito-rum faz a narrativa ingressar na temporalidade passiva do presente, não
devemos esquecer que na primeira parte da novela, “El hilo del Macuto”, o
escritor-disjunto desenvolve uma teoria de que “mientras tanto”1 não existe,

1
“La solución al problema principal no me vino de inmediato. Durante dos o tres horas no supe
que estaba elaborándose en mi cerebro, mientras daba un paseo, subía a mi habitación a escribir
un rato, miraba el mar por la ventana, y volvía a salir, en el tedio de la espera. Durante ese lapso
tuve tiempo de observar las evoluciones de unos niños que se zambullían al mar desde unas rocas
a unos veinte metros de la costa. Esto ya es la ‘pequeña historia’, y en realidad no tiene interés más
que para mí. Pero de esas piezas inenarrables y microscópicas está hecho el rompecabezas. Porque
en realidad no existe el ‘mientras tanto’. Por ejemplo, en mi distracción consideraba el juego de
|172|

por isso não podemos deixar de pensar que o drama En la corte de Adán y
Eva, encenado durante o congresso durante o qual será processada a clonagem
de Carlos Fuentes, e o gênio que irá criar o clone de Carlos Fuentes, que
com isso deixa de ser um fato histórico-linear para ser transformado num
evento sem causa, um efeito-rum, participam de uma mesma temporalidade.
Dessa forma, retornamos: não existe o “mientras tanto”, o que há é a
temporalidade do “aí-desde-sempre”. “Enquanto isso”, na novela Parmênides
o personagem de Perinola entra num tipo de passividade fundamental, isto
é, ingressa na irredutibilidade de um “aí-desde-sempre” quando se embriaga
e se empanturra com a pouca a comida que come na taverna justamente na
noite em que termina o livro cujo efeito era o de duplicar o pensamento do
patriarca Parmênides na sua própria escrita.

En un último intento de pensar, se dijo: El presente


crece…
En realidad lo que crecía dentro de él era un
fenomenal disturbio visceral, efecto de la comida y de la
bebida, que no tardó en poderlo del otro lado. (Aira, 2006,
p. 125).

esos chicos como un artefacto humilde hecho con elementos naturales, uno de los cuales era el
reconocimiento del placer cinético de la zambullida, el shock muscular, la natación-respiración...
¿Cómo hacían para esquivar esas aristas de piedra traspapeladas en el oleaje? ¿Cómo se las
arreglaban para pasar a milímetros de la roca que los habría matado con su caricia de medusa
rígida? Por el hábito. Debían de hacerlo todas las tarde. Lo cual le daba al juego la materia
necesaria para volverse una leyenda. Esos niños eran un hábito de la costa de Macuto, pero la
leyenda también es un hábito. Y la hora, la hora que era precisamente entonces, el crepúsculo tan
adelantado en los trópicos y a la vez tan demorado y majestuoso en sus acordes, la hora participaba
del hábito... De pronto, todo caía en su lugar. Yo, que nunca comprendo nada si no es por
cansancio, por renuncia, de pronto lo comprendía todo. Pensé en tomar una nota, para una
novelita, pero ¿por qué no hacerlo, por una vez, en lugar de escribirlo?” César Aira (2007).
|173|

Se ainda insistirmos na idéia do personagem de César Aira de que


o “mientras tanto” inexiste, não deveremos nos esquecer que o livro que
Perinola escreve nada mais é do que a sua grande obra Sobre a Natureza, ou
Fisiologia. Um complexo poema sobre o ser no qual ele é definido como
uma revelação da verdadeira natureza da realidade, do ser, ingênito e
imperecível, uno e contínuo, imutável, perfeito, esférico, ao contrário das
atribuições que lhe conferia Heráclito para quem o ser era mutável, isto é,
em movimento. Sendo assim, com o produzir-se da obra Sobre a Natureza,
Perinola entra nesse presente que “crece” que lhe insere na temporalidade
do conceito de devir em Heráclito da mesma forma em que lhe ingressa na
temporalidade de toda forma de escrever que perdeu sua causa.
Com essa prática de que o “mientras tanto” não existe a escrita
César Aira vai ingressando em uma literatura cujo eixo talvez não esteja no
abandono do literário propriamente dito, mas na mudança da concepção de
tempo histórico linear para uma imersão na temporalidade anacrônica do
presente, somente com isso, então, poderíamos falar que a literatura de César
Aira constrói um outro fazer literário.
|174|

Referências

AIRA, César. Parmênides. Barcelona: Mondadori, 2006.

_______. Um acontecimento na vida de um pintor-viajante. Tradução Paulo Andrade


Lemos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2006.

_______. El Congreso de Literatura. Disponível em: <www.oordswithoutborders.org>.


Acesso em: 20 mai. 2007.

ANTELO, Raúl. Crítica e ficção: uma perspectiva hispano-brasileira. Critica e


Ficção. Florianópolis: Nelic/CAPES, 2005.

______. Orelha. In: AIRA, César. Um acontecimento na vida de um pintor-viajante.


Tradução Paulo Andrade Lemos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sergio Rouanet.


São Paulo: Brasiliense, 1984.

PERNIOLA, Mario. Enigmas. Egipcio, barroco y neo-barroco en la sociedad y


el arte. Murcia: Cendeac, 2006.

RODRÍGUEZ, Luz Carranza. Los usos de la utopia. Inédito.


RELATO DE UM CERTO ORIENTE:
RECORDAR O PRESENTE

O livro Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, é uma


narrativa sobre o tempo histórico. Essa afirmação pode soar estranha para
aqueles leitores que vêem nela a tentativa de reconstrução da história de
uma família de imigrantes árabes na Amazônia brasileira. No entanto, se
fixarmos o olhar nos movimentos desencadeados pela matriarca Emilie,
personagem a partir da qual se desdobra a narrativa, perceberemos que o
movimento executado entre os parentes, além de rememorar a história familiar,
rememora a história coletiva em que está incluída a história de todos os
imigrantes que participaram da empresa da colonização da região amazônica.
Além disso, faz-se fundamental compreender o procedimento narrativo
utilizado no livro, cujo eixo gira em torno da filha adotiva da matriarca,
que retorna de uma clínica psiquiátrica, depois de anos de reclusão, para
tentar atribuir sentido à sua vida naquele contexto familiar. Aproximar a
história de uma família de imigrantes libaneses no coração da Amazônia à
história da colonização daquela região cria condições para refletirmos também
sobre o processo autoritário de modernização às quais muitas regiões no
Brasil foram submetidas.
|176|

Contribuindo para a caracterização do Relato de um certo Oriente


como rememoração de uma história coletiva, a narração é organizada a várias
vozes. O narrador que orquestra os pontos de vista narrativos é a filha adotiva
de Emilie. A jovem narradora, estrangeira em sua própria família, e exilada
durante anos numa clínica de tratamento psiquiátrico, reúne e analisa as
ruínas de um passado que já está soterrado. Esse processo de análise está
pautado, portanto, pela ausência e negatividade. Dessa forma, ela não
alcançará um sentido pleno para toda a matéria colecionada. A coleção,
organizada de modo caótico, é construída mediante os depoimentos, bem
como da leitura que faz de objetos que teve a sensibilidade de selecionar
para a coleção, das cartas que recebeu e reuniu e das fotografias que guardou
e arrancou dos álbuns de família. Ela não encontrará um sentido pleno para
essa coleção do passado, pois coloca todos esses objetos em relação dinâmica
com o presente da narrativa, tempo esse que está repleto de perguntas à espera
de respostas. Para compreender melhor essa relação dinâmica do passado com
o presente é interessante recordar aquilo que Aristóteles chama dynamis, isto é,
potência (a respeito desse termo ressalta-se que ele significa tanto potência
quanto possibilidade, e que ambos os significados não deveriam jamais ser
dissociados como infelizmente acontece nas traduções modernas). Porém, nos
cabe ainda questionar o modo pelo qual uma coleção de objetos do passado
arruinados pelo tempo possui a potência de intervir, mas não a executa; ou
ainda questionar como pode existir, portanto, uma ausência de sentido em
um relato que se coloca em busca de um sentido? Como pensar todo um
mundo árabe-amazônico com sua profusão de sentidos, com seus aromas,
cores, paladares e sonhos sem o sentido?
Giorgio Agamben ao comentar o problema da potência em Aristóteles
compreende que o verbo ter (exis, do grego echo) um hábito ou faculdade significa
uma inexistência da sensação (e das outras “faculdades”) em um ser vivo.
|177|

Aquilo que é ‘tido como faculdade’, dessa forma, não é uma simples
ausência, mas tem na realidade a forma de uma privação (no vocabulário
de Aristóteles, steresis, privação, está estrategicamente relacionado com
exis), ou seja, de algo que atesta a presença daquilo que falta no ato. Ter
uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação. Por isso
a sensação não sente a si mesma, da mesma forma que o combustível
não queima a si mesmo. A potência é, portanto, a exis de uma steresis:
‘às vezes’, lê-se em Met. 1019 b, 5-8, “o potente é tal porque tem algo,
às vezes porque lhe falta algo. Se a privação é de uma certa forma uma
exis, o potente é tal ou porque tem uma certa ‘exis’, ou porque tem a
‘steresis’ dela.” (Agamben, 2006, p. 3).

Ainda incrementa a reflexão desenvolvida por Giorgio Agamben a


questão recolocada por ele de que estamos acostumados a representar a
sensibilidade como uma faculdade da alma, no entanto, não nos interrogamos
sobre o que viria a ser uma faculdade.

A Grécia arcaica não concebia a sensibilidade, a inteligência (ou,


menos ainda, a vontade) como ‘faculdades’ de um sujeito. A
própria palavra aisthesis é, na sua forma, um nome de ação em –sis,
que expressa uma atividade real. Como pode existir, portanto,
uma sensação na ausência de sensação, uma aisthesis no estado de
anestesia? (Agamben, 2006, p. 4).

Dessa forma, os sentidos do mundo particular da família árabe-


manauara, bem como o sentido da história da Amazônia, acontecem na
proporção em que se sofre uma privação de potência, privação das sensações
que constituem aquele mundo, uma vez que o hábito atesta a presença
daquilo que falta nessas próprias sensações e sentidos. Interessante religar
esse pensamento da ausência desdobrado em Relato de um certo Oriente a
uma também duplicação dessa compreensão tornada procedimento. Quando
em El congreso de Literatura, o escritor-disjunto1 e narrador do relato, César

1
Para a compreensão do que se quer propor com o conceito escritor-disjunto, conferir neste livro
o ensaio “A plenitude do tempo e a prática do desvio no relato de César Aira”.
|178|

Aira, descreve a circunstância que o faz concluir que a forma primordial da


narrativa se baseia no hábito, isto é, de acordo com a reflexão de Giorgio
Agamben sobre a potência em Aristóteles, baseia-se em não afirmar essas
mesmas possibilidades, essas privações, “steresis”, como essências ou como
gênese do relato.

Esto ya es la “pequeña historia”, y en realidad no tiene interés


más que para mí. Pero de esas piezas inenarrables y microscópicas
está hecho el rompecabezas. Porque en realidad no existe el
“mientras tanto”. Por ejemplo, en mi distracción consideraba el
juego de esos chicos como un artefacto humilde hecho con
elementos naturales, uno de los cuales era el reconocimiento del
placer cinético de la zambullida, el shock muscular, la natación-
respiración... ¿Cómo hacían para esquivar esas aristas de piedra
traspapeladas en el oleaje? ¿Cómo se las arreglaban para pasar a
milímetros de la roca que los habría matado con su caricia de
medusa rígida? Por el hábito. Debían de hacerlo todas las tarde.
Lo cual le daba al juego la materia necesaria para volverse una
leyenda. Esos niños eran un hábito de la costa de Macuto, pero la
leyenda también es un hábito. Y la hora, la hora que era precisamente
entonces, el crepúsculo tan adelantado en los trópicos y a la vez tan
demorado y majestuoso en sus acordes, la hora participaba del
hábito... (Aira, 2007, p. 29).

Ao contrário, nos diz Aira, seria privação dessas mesmas sensações


que atribuiriam à arte de narrar a declaração de sua presença e, dessa forma,
garantiriam a sua potência, a sua forma primordial.
Desde a primeira página do romance a narradora se prepara para o
reencontro com sua mãe, que não acontece, uma vez que a reencontrará
morta, desse modo, efetivamente, selando-se o encontro por sua negação.
Há uma potência extraordinária na paisagem humana em foco na narrativa,
a qual nos é oferecida mediante sua falta. O ponto de vista do Relato de um
certo Oriente, que é conformado pelo relato da filha de Emilie, o qual reúne
os demais pontos de vista ao seu, é fundado num exílio conceitual dado
|179|

num primeiro momento pela consangüinidade negativa, a filha é adotiva;


depois pelos anos de ausência do convívio com essa mãe, sendo essa presença
negativa ratificada pela morte da mãe. Com base na formulação de Julia
Kristeva de que o estrangeiro é aquele que perdeu sua mãe seria possível
pensar que o que se tenta reconstruir não é uma história de estrangeiros; é
mais do que isso, essa é uma história de exilados, de homens e mulheres que
perderam uma cultura, uma língua, uma religião e buscam desesperadamente
reencontrá-la, nos objetos, nos rabiscos, nas marcas de café deixadas no fundo
das xícaras, nos desenhos de crianças estampados nas paredes da casa e nos
depoimentos baseados na memória de pessoas que ainda trazem consigo os
vestígios dessa cultura. A historicidade dessa narrativa será construída no
ausentar-se do tempo cronológico, pois o presente da narrativa, com suas
ausências, oferece a possibilidade de devolver potência ao passado, isto é,
aquilo que perdeu o seu sentido original ganha uma oportunidade de continuar
intervindo. Esta historicidade está, portanto, pautada numa concepção de
tempo anacrônico, uma vez que o relato marca-se por compressão do passado
como um hábito, como uma faculdade ou potência passiva.
Participam do processo de narração baseado na rememoração de
ausências não somente os relatos que dão testemunho daquele passado mas
também imagens, vestígios, traços do caráter de pessoas manifestos nos afetos
que a relação com as coisas que compõem o mundo amazônico. Esse
rememorar, construção da ausência, funda-se com base numa historicidade
anacrônica, pois as imagens narram a história de uma privação. A história
dessa família foi reconstruída com base em sua própria ruína. Alegoria
maior disso materializa-se na descrição, feita no presente da narrativa, do
jardim e da casa da família em ruínas. Com isso, não seria demasiado dizer
que o Relato de um certo Oriente é ele mesmo, em sua materialidade narrativa,
um objeto que falta, uma vez que o relato da destruição e do desaparecimento
de um mundo com seus objetos e corpos nada mais faz que dar testemunho
de sua falta. Trata-se de um jogo paradoxal, tendo em vista que testemunhar
|180|

é colocar em ato, no entanto, o que se coloca em ato é uma ausência.


Lembremos do conceito de dynamis refletido por Aristóteles e comentado
por Giorgio Agamben, no qual o ter uma potência possui a forma de uma
privação, mas não é uma simples ausência. A concepção de tempo narrativo
em Relato de um certo Oriente está baseada em um jogo que se executa pela
alternância entre uma ausência e uma presença, isto é, pelo que está em ato
perdido, no entanto, potencialmente presente.
Um dos objetos que testemunham a concepção anacrônica do tempo
dessa narrativa é o grande relógio da casa de Emilie. O relógio anuncia a
morte de Emilie já na primeira parte do livro. Quando a filha adotiva retorna
a casa para rever a mãe, ocorre uma intersecção entre o tempo passado e
presente:

Foi nesse instante que a coisa aconteceu com uma precisão incrível;
mal posso afirmar se houve um intervalo de um átimo entre as
pancadas do relógio da copa e o trinado do telefone. Os dois sons
surgiram ao mesmo tempo, e pareciam pertencer à mesma fonte
sonora. A coincidência de sons durou alguns segundos; no
momento em que o telefone emudeceu, a criança arremessou a cabeça
da boneca de encontro às hastes do relógio, provocando uma
seqüência de acordes graves e desordenados, como os sons de um
piano desafinado. As duas hastes ainda se chocavam quando ouvi a
última pancada do sino da igreja. Só então corri para atender o
telefone, mas nada escutei senão ruídos e interferências. (Hatoum,
1989, p. 12).

Além de fazer coincidir o tempo presente e passado, o relógio é um


dos objetos que conseguem criar na menina surda-muda, Soraya Ângela,
uma interação comunicativa de outra ordem, um diálogo surdo com o tempo,
porque, mesmo quando as graves e intensas pancadas que anunciavam o
meio-dia afugentavam todas as pessoas de perto do relógio, a menina
permanecia impassível diante do objeto marcador do tempo. O diálogo
com o tempo no Relato de um certo Oriente desconstrói a lógica lingüística e,
|181|

portanto, também coloca em questão o logocentrismo da história. Nesse sentido,


a relação com o tempo pode ser também tomada a partir das ondas de som
emitidas no espaço – o vibrar das badaladas do relógio, do sino, do telefone,
as vibrações de uma sonata para piano – além de ser também uma relação
verbal, que, no entanto, não será logocêntrica, visto que não se funda em
presenças e sim em ausências. Está relação com o tempo acontecerá também
através das imagens. Emilie mantinha o primitivo costume de ler o futuro
nas linhas ressecadas que restavam nas paredes de uma xícara de café
emborcada numa bandeja, “desaterrando”, dessa forma, as forças miméticas
que a linguagem articulada dos signos tratou de conter. A relação não-
discursiva com a história talvez tenha seu emblema privilegiado no Relato
de um certo Oriente com a personagem Soraya Ângela, para quem Milton
Hatoum escreveu um poema em separado do livro e que ainda permanece
inédito. É um poema que fala da morte e, sintomaticamente, foi intitulado
“Olhos da memória”. O luto pela morte da menina desencadeia um processo
de anamnese para o qual o olho se torna o elemento que concomitantemente
capta e irradia sentido. Nesse processo a menina tem seu ser caracterizado
pelo olho, aquele ser era um olho, mas era um ser inacabado, muda e surda,
portanto, era pura imagem. Um olho para o qual convergiam todos os
olhos, para o qual convergiam todos os desejos, uma vez que envolvia a
todos com o poder encantador da comunicação não-verbal. Não obstante, a
peça de Schubert, Der Tod und das Mädchen, A morte e a menina, é introduzida
como mais um elemento de estrutura do texto no relato da saga familiar. A
peça é citada pela narradora enquanto conversava com Dorner depois de
um reencontro casual na beira do rio. Reencontro que desencadeia mais
rememorações marcadas por imagens em movimento que, no entanto,
ultrapassam o estatuto das singularidades.
|182|

Recitei, um pouco vexada mas em voz alta, os dois versos que


sempre recitavas ao voltar das aulas, no porão já distante da
adolescência; desde então, cultivei o prazer em recitar palavras e
sons que desconhecia. [...] Reparei, então, que ele manuseava a
pasta de couro, mais parecida com um surrão onde se acumulam
as relíquias e as adversidades de toda uma vida. Do amontoado de
cadernos e livros retirou uma folha branca e um lápis Faber.
(Hatoum, 1989, p. 133).

Nesse pedaço de papel novamente configura-se a opção por uma


linguagem não apenas verbal. Dorner opera ali naquela folha uma espécie de
tradução dos versos que a narradora tinha acabado de recitar, contudo, a maneira
pela qual transcreveu os versos produziu um desenho que se assemelhava

[...] a um céu diminuto pontilhado de astros cinzentos, formando


uma espessa teia de palavras que às vezes desaparecia, pois o
grafite de ponta finíssima desenhava letras invisíveis, sulcos sem
cor, linhas d’água. E, de repente, a inclinação do grafite ou o atrito
deste com o papel fazia ressurgir volutas pardacentas ou escuras,
criando passagens bruscas e inesperadas do invisível ao legível.
(Hatoum, 1989, p. 132).

No ir e vir das imagens configura-se o movimento de presenças e


de ausências marcadas pelo tempo. No “Lieder” de Matthias Claudius que
foi posteriormente adaptado na peça para quatro cordas de Schubert, Der
Tod und das Mädchen, pode-se perceber claramente o movimento de recusa
e aceitação por parte da menina que adere e ao mesmo tempo abandona o
discurso da morte que deseja seduzi-la, depois de muito oscilar ela acaba
sendo levada pela morte. Assim, aquilo que se perde serve, ao mesmo tempo,
de estrutura ao relato: a história. O anjo da história olha para o passado e
nele não enxerga nada mais do que imagens de ruínas. São as imagens e
não as palavras que orientam a relação do tempo com a história. O diálogo
da menina com a morte acontece em outra passagem do romance. O fascínio
|183|

que um dos anjos de pedra do pátio da casa exercia sobre Soraya Ângela é
compreendido como uma forma de comunicação.

Esquecida de tudo, deitada sobre o solo de ardósia, ela mirava


detidamente um dos anjos de pedra. Seu olhar detinha-se numa
das mãos abertas de um corpo tingido de açafrão, nos dedos
separados de uma mão espalmada entre a cabeça da criança e a da
escultura. Desde o dia que ela conseguiu ficar de pé, a cabeça
passou a roçar a mão da estátua: os dedos de pedra bem próximos
aos olhos, ao olhar hipnotizado do corpo plantado sozinho no
quadriculado vermelho do piso. Sozinha, mas sem abandono, ela
repetia a quietude da pedra, talvez procurando no anonimato da
matéria esculpida um nome qualquer; não um nome morto, antes
um nome esquecido ou perdido, incrustado em algum recanto da
estátua. Toda manhã se esvaía nesse tênue contato: o encontro do
olho com a mão. (Hatoum, 1989, p. 108-109).

Essas imagens não somente são detentoras da função de anunciar a


morte da menina, mas igualmente sinalizar a tragédia urbana na história
recente da cidade de Manaus. Quando Walter Benjamin aproxima a forma
tragédia à reflexão sobre a teoria da história e não ao “Trauerspiel” que está
mais adequado à crônica por sua fidelidade às fontes históricas, podemos
antever uma sobrevivência dessa proximidade da reflexão histórica no Relato
de um certo Oriente. A narrativa passa a ser organizada a partir de Manaus e
desde 1954 serão vinte anos de história, o que inclui o reflorescimento
econômico da região com o estabelecimento da Zona Franca, e o anúncio
de seu declínio. Entretanto, esses anos não estarão cronologicamente
encadeados, os fatos se dispersarão em um tempo que passa por 1898,
nascimento de Emilie, 1917, passagem por Ebrin, Beirute, em 1920,
finalizando-se a viagem em 1924 quando chegam a Manaus. Nesses vinte
anos da história da família, entre ausências e silêncios, como o silêncio maior
de Soraya Ângela, a história da cidade, trágica num sentido e barroca no
outro, é narrada com base na justaposição de todos os objetos memoráveis.
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Ao mesmo tempo em que há uma secularização da história, isto é, o


movimento temporal é captado e analisado numa imagem espacial,
arrancando-a de sua acepção trágica, há na personagem de Soraya Ângela,
a menina surda-muda, um apego à compreensão trágica dessa mesma maneira
de compreender a história. Não somente nessa personagem, mas especialmente
em Soraya Ângela reside o selo de sua grandeza e fragilidade: o silêncio. A
linguagem é a linguagem da ausência.
O relógio de Emilie faz parte da coleção de objetos do passado que
aparecem no presente da narrativa do Relato de um certo Oriente. Esses objetos
são portadores de um vazio existencial, uma vez que eles já não são mais o
que eram, foram esvaziados de seus conteúdos anteriores. O relógio fora
adquirido na transação entre o marselhês que vendeu a loja Parisiense à
família. Emilie já havia encontrado algo de especial e significativo naquele
relógio, o que a fez negociar por quatro meses com o comerciante marselhês
até que a operação realizou-se com a troca de duas peças de tecido importado
de Loyn e um papagaio capaz de pronunciar, depois de um árduo processo
de treinamento por Hindié, com sotaque do Midi “Marseille”, “La France”
e “Soyes bien venu”. Emilie abre mão de seu papagaio Laure ou Laura,
em sua tradução para o português e, por metonímia negativa, a arte ou a
arte sem aura, conforme análise de Raúl Antelo, por um relógio. O mundo
amazônico perde sua aura, o papagaio Laure, isto é, sua afirmação enquanto
presença, que envolve as questões ligadas à essência das coisas como a
identidade, o exotismo, quando é trocado por um relógio, a contemplação
desse mesmo mundo sob a forma de uma privação. Portanto, um enfoque
analítico temporal conduz a uma leitura da história de ausências, as quais
conservam sua potência de intervir: o anacronismo. Nessa troca de funções
importa sublinhar que um objeto sem função, um papagaio que sabia repetir
uma oração – a Ave-Maria – e citar versículos da Bíblia, uma arte sem aura,
uma mimesis nos trópicos, é trocado por outro objeto que de antemão já
possui a função de marcar nossa relação com o tempo e com a história.
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O relógio passará a ser o depositário da chave que leva aos objetos/


imagens da memória de Emilie. No entanto, os objetos perdidos quando
reencontrados não reproduzem o seu sentido original. Há um fracasso prévio
na atribuição de um sentido para aquele hábito monástico amarelado, para
as pulseiras de ouro e para as cartas assinadas pelas iniciais de V.B. Há um
esvaziamento de sentido desses objetos, mas esse vazio é dinâmico e, retomando
novamente o que argumentamos com o estudo de Giorgio Agamben sobre
Aristóteles, existe nele uma potência de sentido que lhe é dada justamente
pela total ausência de intenção de atribuir-lhes um sentido. A perda do sentido
que esses objetos apresentam não é tratada como um ato definitivo, e sim
como um movimento em que o objeto perdido desaparece e volta a reaparecer
intermitentemente proporcionando surpresa e espanto por parte de quem o
encontra. Esse movimento encerra uma teoria da história como repetição, no
entanto, uma história que nunca será a mesma. Nietzsche enxergou esse
movimento através da perspectiva histórica do eterno retorno. Ao estudar os
problemas da diferença, do sentido, do desejo e da multiplicidade, Gilles
Deleuze reivindica o eterno retorno como aquilo que sobra, aquilo que se
“seleciona”, a forma extrema, a diferença, no movimento da história.

O extremo não é a identidade dos contrários, mas, antes, a


univocidade do diferente, a forma superior não é a forma infinita,
mas, antes, o eterno informal do próprio eterno retorno através
das metamorfoses e das transformações. [...] O gênio do eterno
retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento
tornado ativo. (Deleuze, 1988, p. 104-105).

Walter Benjamin, num sentido paralelo, articulou uma teoria da


história como impossibilidade de transmissão da tradição, isto é, como
impossibilidade de repetição na repetição quando correlaciona sua teoria da
história com a teoria da experiência. Giorgio Agamben, lendo a teoria da
história de Benjamim, soube evidenciar essa relação interna quando observou
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a importância da categoria “in-fans” como produtora de significantes instáveis


e perviventes na relação entre experiência e história na obra do filósofo alemão.

De modo que se observamos ahora nuestra cultura, que cree


haberse librado de esos problemas y haber resuelto de manera
racional la transmisión de los significantes del pasado al presente,
no tardaremos mucho en reconocer las ‘larvas’ en los Nachleben y
en las supervivencias de los significantes del pasado, despojados
de su significado original. […] la verdadera continuidad histórica
no es la que cree que se puede desembarazar de los significantes
de la discontinuidad relegándolos en un país de los juguetes o en
un museo de larvas: (que a menudo coinciden actualmente en un
solo lugar: la institución universitaria), sino la que los acepta y los
asume, ‘jugando’ con ellos, para restituirlos al pasado y transmitirlos
al futuro. (Agamben, 2001, p. 126-127).

Retomemos essa noção de tempo contínuo que inclui a potência


descontínua dos significantes vazios, isto é, essa noção de historicidade
construída no Relato de um certo Oriente, numa das recordações narradas por
um dos filhos de Emilie que se torna um dos emblemas dessa historicidade
negativa no texto. Quem recorda é Hakim, porém o costume era de Emilie.

Ela pedia para que todos emborcassem a xícara na bandeja, e


depois examinava o fundo de porcelana para decifrar no
emaranhado de linhas negras do líquido ressequido o destino de
cada um. (Hatoum, 1989, p. 31).

Ao ler o destino das pessoas a partir dos traços deixados pelos resíduos
de café numa xícara emborcada na bandeja evoca-se, não da técnica, que
está na superfície do ato de produção da imagem, mas das longínquas forças
da magia de que nos fala Walter Benjamin. No ensaio Sobre la faculdad
mimética, Benjamin analisa o processo de descrever imagens, criar
significação, a partir da leitura das linhas traçadas na palma de uma mão.
Esse procedimento suporia que a língua seria um estágio superior do
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comportamento mimético e o mais perfeito arquivo de semelhanças não


materiais: um meio para o qual emigram sem resíduos as mais antigas forças
de produção e recepção mimética, até eliminar as forças da magia. Em
Relato de um certo Oriente se questiona se a língua tomada como estágio
superior do comportamento mimético e como o mais perfeito arquivo de
semelhanças não materiais, portanto, algo que ela, a língua não é mais, uma
vez que ela é estágio superado desse momento mimético, é capaz de produzir
uma linguagem paralela à lógica da representação analógica do discurso.
Na relação intrínseca complementar entre um significante e um significado,
a linguagem não é mais entendida como mimética, e sim como um arquivo
de semelhanças não materiais. Curiosamente, em Relato de um certo Oriente,
esse arquivo de semelhanças imateriais é compreendido também como
linguagem. Essa é uma discussão que perpassa a arte no século XX, ou
seja, a ruptura com o conceito de arte que tem relação com a representação
clássica e convencional do mundo das coisas. O Relato de um certo Oriente se
posiciona nessa discussão. Exemplo disso é a opção da narrativa em utilizar
o procedimento fotográfico como recurso da narração. As imagens que as
fotografias revelam apresentam-se não como imagens analógicas, mas como
impressões de uma ausência, como marca, sintoma, traços de uma presença
física que encena, enquanto possibilidade, a presença no ato de olhar para a
foto. Nesse sentido, a imagem que a fotografia veicula não obtém seu sentido
dela mesma, mas sim de uma relação que ainda está por fazer-se entre o que
vemos e o que nos olha naquilo que vemos. E o que impressiona é que
algumas mortes são anunciadas e apresentadas no Relato mediante este
procedimento fotográfico. A imagem de Emir momentos antes de seu
suicídio no Rio Negro foi captada pela câmera fotográfica de Dorner. Imagem
essa para a qual Emilie irá olhar tantas vezes em busca de uma explicação
para o evento da morte do irmão, mas a cada vez que olha para a foto
encontra um sentido diferente para o mesmo evento, uma vez que Emir,
em seu olhar perdido, olhava para alguém ou alguma coisa. A mesma relação
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pode ser encontrada na fotografia que o tio Hanna envia a seus parentes no
Líbano, despertando o interesse do pai da narradora a viajar para a Amazônia.

Passados onze anos, talvez em 1914, Hanna enviou-nos dois


retratos seus, colados na frente e no verso de um papel-cartão
retangular; dentro do envelope havia apenas um bilhete em que
se lia: “entre as duas folhas de cartão há um outro retrato; mas
este só deverá ser visto quando o próximo parente desembarcar
aqui”. Ao ler o bilhete, meu pai, dirigindo-se a mim, sentenciou:
chegou a tua vez de enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido,
no outro lado da terra. (Hatoum , 1989, p. 72).

Contudo, o outro retrato, o que “deverá ser visto quando o próximo


parente desembarcar aqui”, já era um anúncio da morte, porque, chegando
ao lugar onde deveria encontrar o primo, o parente recém-chegado do Líbano
irá reencontrá-lo somente no que resta dele no filho. É esse filho que o
levará até o túmulo de seu pai. O parente do distante Líbano, no espaço e
no tempo, não se convence apenas com a impressão de uma presença, de
um “haver-estado-aí” de seu ancestral no rapaz que se apresenta a ele agora
que poderia ser dada tanto pela fala quanto por alguma certidão de nascimento
ou óbito. O crédito de que aquele jovem é realmente filho de seu primo
vem mediante a observação dos traços, dos sinais, nas ruínas de uma presença
que já não é mais e que todavia sobrevive como se estivessem “sempre-
estado-aí”, as quais são colhidas pela imagem fotográfica do primo
fotografado ainda quando era jovem.
Muitas foram as vidas perdidas neste Relato, um relato de várias
mortes. A morte tem ali uma presença forte, é quase uma personagem a
constituir ausências. Nesse sentido, a morte é uma figura no Relato de um
certo Oriente, figura essa que também se constitui em imagem, ou melhor, em
ausência de imagem. O leitor não encontrará configurada na materialidade
do texto nenhuma das cenas da morte, apenas sua ausência. A cena da morte
da menina é apenas descrita no seu entorno, da mesma forma o suicídio de
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Emir, descrito pela fotografia que Donner tirou dele pouco antes de seu
suicídio no rio Negro, a morte de Emilie também não será enfocada
diretamente. No fim das contas, será preciso convir que, para além da morte
como figura iconográfica, é de fato a sua ausência que rege esse balé
desconcertante de imagens sempre interditas. A ausência é considerada aqui
como motor tanto do desejo – da própria vida – quanto do luto – que não
possui o mesmo sentido que a morte. A morte não importa, ela nada produz,
contudo, o luto desencadeia um trabalho psíquico naquele que se confronta
com a morte e movimenta o olhar com esse confronto. Dessa forma, o relato
da perda, os seus volumes vazios – os túmulos vazios – transformam-se em
figuras, em objetos doadores de sentidos. Sendo assim, quando se opera a
leitura desses volumes, encontra-se neles uma fenda por onde algo olha
para o leitor.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Tradução Carolina Pizzolo


Torquato. Revista do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense,
Niterói, v. 18, n. 1, jan./jun. 2006.

_______. Infancia e Historia. Tradução do italiano Silvio Mattoni. Buenos Aires:


Adriana Hidalgo Editora, 2001.

AIRA, César. El congreso de literatura. Disponível em: <www.oordswithout


borders.org>. Acesso em: 20 mai. 2007.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sérgio Paulo


Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Gomes.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
Título Literatura do presente: história e anacronismo dos
textos

Autor Susana Scramim

Assistente editorial Hilario Junior dos Santos

Assistente administrativo Neli Ferrari

Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza

Divulgação Alexandra Fatima Lopes de Souza e Josué Carvalho

Projeto gráfico e diagramação Ronise Biezus

Capa Hilario Junior dos Santos

Preparação e revisão dos originais Jakeline Mendes Ruviaro

Formato 16 X 23 cm

Tipologia CaslonOldFaceBt e Latin725BT


entre 7 e 15 pontos

Papel Capa: Cartão Supremo 350 g/m2


Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas 190

Tiragem 800

Publicação outubro de 2007

Impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

Argos - Editora Universitária - UNOCHAPECÓ


Av. Attilio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 89809-000 - Caixa Postal 747
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