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RESUMO
Este artigo baseia-se na discussão e reflexão sobre as questões gerais inerentes ao Luís Mendes
paradigma marxista da Geografia e sua repercussão nos conceitos e metodologia luis.mendes@ceg.ul.pt
que Neil Smith utiliza, desde o final da década de 1970 até ao presente, para com-
Instituto de Geografia
preender e analisar a gentrificação enquanto processo de reestruturação urbana.
e de Ordenamento do
Vamos procurar interpretar este tema da geografia urbana à luz da contribuição de
Território da Universidade
Smith, dentro do quadro geral de posições normativas da Geografia Crítica que
de Lisboa. Mestre em
explica a realidade social e espacial no âmbito da Epistemologia e da Filosofia da
Estudos Urbanos pelo
Ciência em geral.
Departamento de Geografia
Palavras-chave: Gentrificação, Geografia Crítica, Geografia Marxista, Estudos da Faculdade de Letras da
Urbanos, Neil Smith. Universidade de Lisboa. É
Investigador Permanente do
Instituto de Geografia e de
ABSTRACT Ordenamento do Território
da Universidade de Lisboa.
This article is based on the discussion and reflection about the general issues inhe-
rent in the Marxist paradigm of Geography and its repercussion in the conceptu-
alisation and methodology that Neil Smith has used, since the end of the 1970s
until the present, to understand and analyse gentrification as a process of urban
restructuring. We will thus seek to interpret the theme of urban geography in the
light of Smith’s contribution, within the framework of general normative posi-
tions of Critical Geography that explains the social and spatial reality within the
Epistemology and the Philosophy of Science in general.
Key-words: Gentrification, Critical Geography, Marxist Geography, Urban Stu-
dies, Neil Smith.
encontra vinculada ao carácter social e histórico do espaço, numa concepção que não crê num espaço
capitalismo na produção do espaço. sem as marcas da sociedade que historicamente se
Revisitar o conceito de espaço é, atualmente, expressa em processos reais e mais complexos. Esta
fundamental. Primeiro porque as relações sociais é a proposta desenvolvida por Smith (1986a) e por
de produção têm uma existência social enquanto e- Harvey (1987): descortinar as formas concretas que
xistência espacial, isto é, projetam-se concretamente qualificam e determinam a relação sociedade-espaço
no espaço (Soja, 1989). Segundo, porque o encur- na base da gentrificação e cuja historicidade a define
tamento das distâncias, associado a uma importante como processo permanente de socialização do espaço
compressão espaço-temporal, decorrente do desen- urbano. Este mesmo processo segmenta-se em várias
volvimento acelerado dos meios de comunicação e áreas centrais defendidas e controladas por determi-
transporte, estimula estratégias globais, sob o signo nados grupos sociais de maior poder socio-económi-
da reestruturação do sistema econômico, no sentido co, definido e delimitado por relações de poder. Ain-
de alterações na organização da produção assentes na da a propósito da crítica que constrói em torno da
desintegração vertical, fragmentação das linhas de promiscuidade gerada entre este tipo de relações de
montagem e desenvolvimento de estratégias de sub- poder e o discurso de modernidade urbana associado
contratação (Harvey, 1989). Estas alterações são, em à gentrificação, Smith (1986a, 1992b) aplica a me-
última análise, responsáveis pelo processo de gentri- táfora do avanço da fronteira da colonização norte-
ficação, pois estimulam a desconcentração do capital americana do século XVIII sobre os territórios já
produtivo do centro para a periferia e estão na base previamente ocupados pela população indígena e faz
da formação do “rent gap”, como veremos adiante. o paralelo com a situação actual de “displacement”
Nesta perspectiva, surge a necessidade de supe- provocado pela gentrificação.
ração da noção de espaço como mero produto so- Neil Smith insere-se indubitavelmente na escola
cial, apenas como palco das relações sociais, ultra- de pensamento marxista quando procura expor e de-
passando a exterioridade que tal noção apresenta nunciar as injustiças e desigualdades sociais decor-
em relação à sociedade. O que, em última instân- rentes das bases econômicas do funcionamento do
cia, Neil Smith argumenta como fio condutor dos modo de produção capitalista, reforçando a ideia de
seus estudos é que a gentrificação no espaço urbano que as relações sócio-espaciais estruturadas pela gen-
central intervem na produção e organização do tra- trificação são reguladas pelas estruturas capitalistas e
balho produtivo, ao mesmo tempo que determina as que se enquadram como meios de reforçar e repro-
relações de produção, é também, simultaneamente, duzir a riqueza e o poder da classe dominante, por
produtora e produto, suporte das relações sociais e, via da exploração do trabalho da classe dominada. A
portanto, tem um papel importante no processo de mediação introduzida no espaço residencial urbano
reprodução geral da sociedade. Tem-se, com efeito, pela gentrificação, enquanto estratégia residencial
uma produção espacial que se manifesta sob as for- específica, detém uma responsabilidade grande na
mas de apropriação, utilização e ocupação de uma fabricação de determinados padrões de diferenciação
dada área, num momento específico que se revela social do espaço urbano que, em última análise, re-
no uso, como produto da divisão social e técnica do forçam a segregação sócio-espacial.
trabalho e que, no seio do processo capitalista, pro- A gentrificação é, por definição, um processo de
duz uma morfologia espacial “fragmentada” e hierar- “filtragem social” da cidade. Vem desencadear um
quizada, contribuindo para um aprofundamento da processo de recomposição social importante em bair-
divisão social do espaço urbano. Esta conclusão só ros antigos das cidades, indiciando um processo que
pode ser válida para um autor que defende o con- opera no mercado de habitação, de forma mais vin-
ceito marxista de modo de produção e o inscreve na cada e concreta nas habitações em estado de degrada-
explicação que tece em torno da reestruturação do ção dos bairros tradicionalmente populares. Corre-
espaço urbano. spondendo à recomposição (e substituição) social
Assim, o paradigma da geografia marxista encon- desses espaços – tradicionalmente da classe operária/
tra-se presente na terminologia de Neil Smith quando popular – e à sua transformação em bairros de classes
este reconhece importância ao objetivo de identificar média, média-alta – não se pode deixar de referir,
como as relações sociais entre classes, mediadas pelas por conhecimento deste processo de “substituição
estratégias residenciais encabeçadas pela gentrifica- social”, o reforço da segregação sócio-espacial, que
ção, variam no espaço urbano de forma a reproduzir na sua sequência parece aprofundar a divisão social
e sustentar os modos de produção e consumo capita- do espaço urbano (Smith e LeFaivre, 1984).
listas e a ordem social estabelecida. O autor valoriza a Smith (1996a, 2001, 2002, 2005) deixa claro que
possibilidade de se trabalhar uma relação sociedade- os projectos de regeneração urbana, que suportam a
literatura apenas incidia nos efeitos da gentrificação: imobiliário. Portanto, percebe-se que a partir do pós-
características sócio-econômicas e culturais dos “gen- guerra, o capital se tenha passado a dirigir preferen-
trifiers” enquanto migrantes, o desalojamento pro- cialmente para o setor da construção, em detrimento
vado pela sucessão residencial, as iniciativas estatais do setor tradicional da produção industrial, gerando
de redesenvolvimento urbano e os benefícios para a importantes recomposições na expansão e organiza-
cidade. Pouco esforço tinha sido feito para construir ção espacial da forma urbana (Gottdiener, 1985).
uma explicação histórico-política e comprometida O ambiente construído tornou-se o cenário de
com os então emergentes princípios da geografia altos e baixos cíclicos no mercado imobiliário, com
crítica e marxista, incidindo nas causas estruturais, a existência paralela de deterioração e de supercons-
em detrimento dos efeitos. Numa primeira fase de trução. Os dois fenômenos são produzidos pelo pro-
estudo da gentrificação predominavam análises des- cesso de construção na cidade sob relações sociais
critivas e isoladas sem qualquer esforço de contex- capitalistas e têm subjacente a ideia de que o cresci-
tualização e de enquadramento teórico do processo. mento urbano desigual é intrínseco à natureza capi-
Apresentando um carácter iminentemente empiricis- talista de desenvolvimento. Inaugura-se, assim, um
ta, as investigações recaíam sobre estudos de caso que novo ciclo: o da valorização/desvalorização do espaço
apenas focavam as transformações físicas e sociais em urbano nos mercados regionais de solo, com início
determinados bairros, entendendo-as como produto do processo de suburbanização.
da ação de alguns indivíduos autônomos, não con- Os processos de suburbanização e emergência
templando as diversas dinâmicas estruturais que a do “rent gap” são estudados por Neil Smith (1979a,
condicionam e que a moldam. Numa segunda fase 1979b, 1982a, 1987a, 1996c; Smith e Schaffer,
do estudo da gentrificação destacou-se a importân- 1986; Smith et. al. 2001) como predominantemente
cia da reabilitação urbana e as suas implicações ao responsáveis pela forma como o processo de reestru-
nível dos usos do solo e da valorização fundiária que turação urbana se apresenta nos dias de hoje. Isto
sucede aos processos de reabilitação (Smith e Wil- porque o movimento de saída de capital para a peri-
liams, 1986). Numa terceira fase, a análise deste feria provoca uma alteração inversamente proporcio-
fenômeno centrou-se nas esferas da produção e do nal dos níveis de renda do solo dos próprios subúr-
consumo. As explicações tenderam a dicotomizar-se, bios e dos bairros centrais. Enquanto o valor do solo
procurando, cada uma delas, privilegiar a supremacia nos subúrbios aumenta significativamente com o
de uma esfera em relação à outra no estudo do pro- crescimento de novas construções e infra-estruturas,
cesso de gentrificação. e com a consequente introdução nesses espaços de
Para Smith, e do ponto de vista da circulação do uma multiplicidade de atividades, o valor fundiário
capital, os “booms” imobiliários aliados à gentrifi- dos bairros centrais, ao invés, sofre uma progressiva
cação coincidem com a transferência do capital do diminuição, sendo cada vez menor a quantidade de
circuito primário de acumulação (a esfera produti- capital canalizado e investido na manutenção, repa-
va) para o circuito secundário (produção do ambi- ração e recuperação do parque habitacional destas
ente construído) em épocas de excesso de liquidez áreas no interior das cidades.
e problemas de acumulação registadas no processo Deste fenómeno resultou o que Neil Smith de-
produtivo. À luz deste princípio, Smith procura ex- nominou de emergência do “rent gap” nos bairros
plicar a reestruturação do espaço urbano como um centrais – acentua-se a diferença entre a atual renda
processo intimamente ligado à própria reestrutura- capitalizada face ao presente uso do seu solo, e a
ção da economia capitalista, mais precisamente, aos renda que potencialmente poderá a vir a ser capital-
ciclos macroeconómicos de evolução irregular que izada tendo em conta a sua localização central. É pre-
marcam o desenvolvimento das sociedades de capi- cisamente o movimento de saída de capital para os
talismo avançado. Segundo o autor, e à semelhança subúrbios e o consequente surgimento do fenómeno
do pensamento de Harvey, o desenvolvimento do “rent gap” no espaço urbano central que, segundo o
capitalismo resultou, em parte, na superprodução autor, cria maiores oportunidades econômicas para
das comodidades geradas, o que provocou uma inev- a reestruturação urbana dos bairros centrais e para o
itável quebra dos lucros no domínio da produção e, investimento público e privado, na reabilitação e re-
consequentemente, uma crise no seu interior. Deste cuperação do seu parque habitacional. Corresponde
modo, na sua concepção, esta crise do capitalismo só a um fenômeno de ocorrência quase universal em
conseguiu ser atenuada e superada por intermédio todas as cidades das sociedades de capitalismo avan-
de novas oportunidades e de novas formas de canali- çado.
zação do investimento para setores que permitissem A conclusão lógica da aplicação do princípio “rent
uma rápida e eficaz reprodução, designadamente, o gap” decorre do princípio da análise urbana marxista
estratégicas de controle, poder e dominação do es- reprodução social das classes de maior estatuto sócio-
paço urbano, condição fundamental na perpetuação econômico (Smith, 1993; Smith e Low, 2006).
da reprodução do capital, premissa essencial para o Defende-se que a mera crítica e o desperdício de
suporte do sistema de produção e consumo capita- esforço político em defender políticas que se ocu-
lista. Tudo isto à custa dos investimentos em serviços pam do limitar as causas da desigualdade esbarram
locais de consumo coletivo. É que se, em última em obstáculos de maior nível e de difícil superação,
análise, a atração e o crescimento propiciados pela pois as forças geradoras de formações sócio-espaciais
gentrificação a todos beneficiam, em primeiro lugar desiguais na estrutura urbana mantêm-se. Acresce-
ganham os promotores imobiliários, as empresas e se ainda o fato de que a classe operária, segundo
as instituições financeiras, muito frequentemente à Smith (1996b), se encontra alienada e pulverizada,
custa da expulsão dos residentes e das empresas mais desprovida de capacidade de mobilização: «The un-
débeis dos lugares requalificados, lançados por via fortunate truth is that the comparatively low levels
desta (des)valorização, num processo de exclusão. of working-class struggle since the Cold War (with
A seletividade dos investimentos favoráveis à re- the exception of those during the late 1960’s, and in
produção do capital implica o abandono, o esqueci- much of Europe during the early 1970’s) have meant
mento e a menor atenção à “cidade da maioria”, com that capital has had a fairly free hand in the struc-
particular gravidade para as áreas mais carentes onde turing and restructuring of urban space. This does
se concentram os mais desfavorecidos. É a emergên- not invalidate the role of class struggle; it means that
cia da cidade revanchista produzida pela ofensiva with few exceptions it was a lopsided struggle during
neoliberal e que Smith tem explorado mais recente- this period, so much so that the capitalist class was
mente (1996a, 2001, 2002, 2005a). O autor desven- generally able to wage the struggle through its eco-
dou, desta forma, a máscara social de compreensão nomic strategies for capital investment» (p.356).
e “bondade institucional” inerentes a estes recentes Daí a ideia decorrente da necessidade de uma
produtos imobiliários da nova gestão urbana, ar- revolução econômica e social que contribua para a
gumentando como estes promovem uma lógica de derrocada do capitalismo e sua substituição por um
controle social favorável à reprodução do capital e modo de produção que esteja organizado em torno
às classes dominantes. É neste aspecto que reside o dos princípios de igualdade e justiça social. Para o
fundamental do discurso político crítico do autor no marxismo, só a perspectiva de transformar o mundo
seu trabalho mais recente da última década. fornece a possibilidade de compreendê-lo. Só a visão
O seu contributo, tal como o paradigma marxista crítica permite apreender a essência dos processos
que o impregna, está ideologicamente vinculado e sociais. Só a inserção no movimento global propicia
assenta em questões com objetivos políticos bem de- o seu entendimento. Esta visão do objeto de estudo
terminados. O marxismo estabelece que a desigual- revela-se de forma muito evidente nos últimos
dade é inerente ao modo de produção capitalista. trabalhos de Neil Smith. A Geografia é proposta
A desigualdade produz-se inevitavelmente no pro- como elemento na superação da ordem capitalista.
cesso normal das sociedades capitalistas e não pode É desta ideia particularmente marxista e de forte
ser eliminada sem alterar de modo fundamental os intervenção crítica e social que Neil Smith partilha
mecanismos do capitalismo. Ademais, forma parte igualmente. Primeiro, quando se posiciona por uma
do sistema, o que significa que os detentores do transformação da realidade social, pensando a sua
poder têm interesses criados em manter a desigual- argumentação geográfica como uma arma política
dade social. Ao nível do redesenvolvimento urbano, nesse processo (Smith, 1998, 2000, 2005c). Segundo,
Smith enquadra-se perfeitamente neste contexto de quando não coloca dúvidas à necessidade da ação
pensamento. Nota como as ações de reabilitação e política de oposição da classe trabalhadora residente
regeneração urbana, no âmbito do processo de gen- nas áreas centrais da cidade ou de outros movimentos
trificação, determinadas, igualmente, pela neces- sociais urbanos, à hegemonia capitalista, representada
sidade de melhorar a imagem da cidade, de a tor- pela ofensiva da classe burguesa que para o autor
nar mais atrativa num quadro e cenário estratégicos a gentrificação encerra (Smith, 2008b). Terceiro,
de competitividade global entre cidades; implicam, quando reforça uma importante componente social,
muito frequentemente, a expulsão de habitantes crítica e ideológica, consubstanciada na análise
de menor estatuto sócio-econômico das áreas cen- geográfica dos processos de (re)produção social do
trais, condenados, doravante, a uma marginalidade espaço urbano, a nível multiescalar desde o local ao
sócio-espacial, algo diretamente correlacionado com global (Marston e Smith, 2001; Cowen e Smith,
modelações ideológicas que visam a manutenção da 2009).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
primeira é de que a ação sócio-espacial dos “gentri-
Poucas correntes acadêmicas no seio da teoria fiers” tende a ser subordinada à estrutura econômica.
social e espacial podem reivindicar uma continui- A segunda, e que deriva em parte da primeira, tem
dade, um crescimento e uma acumulação literária que ver com o fato destes autores privilegiarem uma
significativos ao longo de todo o século XX como abordagem causal unidimensional, insistindo em ex-
o marxismo. São vários os sentidos em que se pode plicações de tipo materialista. É atribuída uma im-
considerar Marx como um teórico social clássico portância explicativa bastante exagerada aos aspec-
típico. Mas aquele que diz mais respeito à análise tos instrumentais e coercivos das estruturas sobre a
social urbana refere-se aos conceitos-chave de modo agência.
de produção, de alienação e de luta de classes que De acordo com Hamnett (1991, 1992), a teo-
tiveram uma enorme influência no desenvolvimento ria urbana de índole marxista de Neil Smith é capaz
da teoria sócio-espacial ao longo do passado século. de oferecer explicações convincentes acerca do efeito
O marxismo fundou e ajudou a estabelecer uma rica das estruturas materiais, bem como das causas das
e sofisticada tradição na geografia da dinâmica do desigualdades sócio-espaciais produzidas pelo avanço
modo de produção capitalista, centrada na discussão da fronteira da gentrificação na paisagem urbana e
dos processos estruturais (que mais tarde seriam fun- dos conflitos que daí derivam, mas as suas explicações
damentais como argumentos da produção social do da estrutura repousam essencialmente em princípios
espaço de Lefebvre, como vimos anteriormente), utilitaristas e instrumentais que não permitem aos
como a concentração monopolista, a expansão im- aspectos culturais e subjetivos da produção do espaço
perialista e o papel comprometido e regulador do urbano ocupar uma posição mais regular nas análises
Estado no planejamento e economia urbanos. Para realizadas. A visão marxista relaciona-se, desta feita,
além dos estudos urbanos, o marxismo teve ainda com um certo determinismo econômico, sobrevalo-
uma influência profunda na evolução do pensamen- rizando a posição explicativa dos fatores considera-
to geográfico, quer na forma como se analisam os dos econômicos na evolução dos processos sociais,
processos de mudança histórica de longa duração nos espaciais e políticos.
territórios, quer nos estudos do desenvolvimento do Mesmo assim, ainda que seja verdade que certas
Terceiro Mundo (Smith, 1979c). formulações marxistas parecem conduzir a uma ten-
Todavia, a partir da última década do século XX, tativa de explicar a mudança social e espacial por de-
a influência do marxismo tem vindo a diminuir. As terminismos econômicos e tecnológicos, uma análise
causas disso são altamente complexas e, em grande mais atenta da produção literária neste domínio pos-
medida, estão mais relacionadas com dinâmicas so- sibilita a verificação de que para os teóricos urbanos
ciais contemporâneas do que com deficiências in- marxistas os movimentos de reestruturação urbana
telectuais intrínsecas à teoria marxista. Tais dinâmi- são explicados fundamentalmente pelas configura-
cas incluem a vigorosa permanência do capitalismo ções que as trocas sociais assumem num determinado
enquanto sistema social, o fracasso das sociedades so- momento histórico. Assim, quer a cidade capitalista
cialistas e comunistas da Rússia e da Europa de Leste moderna, quer a pós-moderna, são ambas essencial-
e as críticas ambientalistas que o Ocidente tem da mente modeladas pelas formas dominantes que o
Natureza enquanto domínio que deve ser totalmente trabalho pode assumir e pela divisão social do espaço
manipulado e dominado. Tornam-se, no final do urbano que produz.
século XX, claras as limitações teóricas do marxismo A maior parte dos autores da gentrificação ainda
enquanto paradigma dominante na geografia, em influenciados pelo marxismo admite que a superes-
geral, e nos estudos urbanos, em particular. Primeiro, trutura também influencia a infra-estrutura. A base,
nem Marx, nem a tradição subsequente de estudos alimentada pelas relações sociais de produção e pelas
marxistas, conseguiram resolver o problema do dua- forças produtivas, constitui o fundamento da estru-
lismo da estrutura e da agência. turação das diversas formações sociais e das compo-
Se bem que apesar das limitações marxistas exista nentes ideológicas e políticas da superestrutura. Os
um reconhecido mérito por parte da comunidade fatores políticos e ideológicos, embora mantenham
científica das ciências sociais e humanas pela aná- uma relativa autonomia e detenham também uma
lise que os autores marxistas fazem de como o poder capacidade de retorno sobre a economia, podendo
econômico influencia a ordem social através dos até ser dominantes em algumas formações sociais,
mecanismos políticos e econômicos, muitas vezes são, contudo, determinados, em última instância,
através de estruturas profundas, a verdade é que as pela infra-estrutura (Smith, 1987b, 1992a, 1999).
respostas avançadas por este paradigma na análise Esta posição, partindo do pressuposto materialista de
urbana da gentrificação apresentam duas falhas. A que é a economia que determina a consciência social,
quer na vertente política, quer na vertente ideológi- sedutora estratégia: extinguir a metanarrativa ao
ca, além de reforçada pelas considerações elaboradas desconfiar da totalidade do modelo moderno e dos
de Althusser, encontra realmente alguma fundamen- regimes singulares de verdade. É, simultaneamente,
tação nos escritos de Marx e Engels. a sua maior fraqueza.
Na atualidade, todavia, não reúne unanimidade Persiste a incapacidade da condição pós-moderna
entre os marxistas, sendo mesmo de destacar que, se afirmar enquanto bloco teórico coerente e único,
por parte não só de críticos do marxismo, como o que nos leva a considerar que a teoria sócio-espacial
também de alguns neomarxistas, se têm desenvolvi- pós-moderna se caracteriza mais pelas modas e pela
do contributos que defendem que este determinismo fragmentação do que pelo crescimento contínuo.
deve ser ajustado tendo em conta a diversidade con- Ainda assim, em nada esta conclusão pareça con-
temporânea de níveis de estruturação da produção trariar o espírito pós-moderno, pois os movimen-
sócio-espacial, levando à necessidade de enveredar tos críticos mais característicos têm sobretudo con-
por abordagens pluricausais, para as quais o binômio testado “a grande teoria” ou as “grandes narrativas”
base-superestrutura se encontra ultrapassado. É claro modernas, afirmando o caráter necessariamente in-
que os autores marxistas não desejam, acima de tudo, completo e fragmentado de todo o conhecimento,
colocar uma ênfase tão simplista nos fatores materi- salientando a diversidade e a diferença de interpre-
ais, existindo mesmo um conjunto de teóricos ulte- tações, por oposição a princípios universais e tota-
riores que, apesar de fortemente influenciados pelo lizadores. Neil Smith (1981, 1992c, 1994, 2005b,
paradigma marxista, rejeitam o excessivo determinis- 2006, 2008a) apela para os perigos que este rela-
mo do modelo base-superestrutura, afirmando que tivismo científico pode acarretar na defesa de uma
os dispositivos estruturais não explicam satisfatoria- suposta neutralidade no conhecimento geográfico.
mente a produção do espaço urbano e da vida social Não se estabeleceu, contudo, nenhum programa co-
por este mediada. É o caso de Manuel Castells, Allen erente e auto-sustentado de pesquisa, nem se conhe-
Scott, Doreen Massey, Mark Gottdiener, David Har- ce uma continuidade de trabalhos posteriores, em-
vey, Michael Dear, Edward Soja, entre outros. bora tenham surgido contributos interessantes. Uma
No entanto, se o conceito de modo de produção contradição fulcral no pensamento pós-moderno
é rejeitado, também não é claro o que surge no seu subsiste. Se a modernidade é dominada pela ideia de
lugar. Se bem que a um nível mais epistemológico esclarecimento progressivo e se define como a era da
se tenham produzido importantes reflexões que de- superação, então, a asserção de uma superação crítica
fendem que a análise marxista deve implicar uma da metafísica ocidental pela condição pós-moderna é
abordagem mais desprendida para com a noção de uma contradição em si mesma. Não está disponível
determinação material, a verdade é que o argumento nenhum sistema alternativo de pensamento, nenhu-
perde pertinência se não se souber com que regu- ma linguagem alternativa, que nos permita superar
laridade e graus aquela se manifesta. Perante este im- os erros da modernidade.
passe conceptual, defende-se nas ciências sociais e Em suma, o marxismo continua a fornecer uma
humanas o “cultural turn”, de que o “político” e o base teórica sólida e pertinente na análise dos pro-
“cultural” são relativamente autônomos, o que acaba cessos de mudança sócio-espacial urbana. Parece
por conduzir as investigações a problemas de inde- hoje inegável que considerar as práticas individuais
terminação. A condição pós-moderna ao defender e sociais como simples reflexo de determinantes es-
que a(s) verdade(s) apenas têm um caráter proba- truturais de uma sociedade é um mecanicismo que
bilístico, aproximativo e provisório, arrasta para a nada tem a ver com a dialética inerente à evolução
Geografia a noção da flexibilidade cultural com que dos processos espaciais. Se bem que as estruturas se-
o conhecimento deve ser interpretado. As ideias tra- jam preenchidas e ativadas pelos indivíduos e pelos
çadas por este saber baseiam-se em posições culturais grupos sociais com motivações e interesses próprios,
dinâmicas, flexíveis, não definitivas, em permanente estes elementos não deixam, todavia, de ser condi-
estado de projeto e reconfiguração, não se excluindo cionados pela organização sócio-econômica e por um
a possibilidade de serem transitórias, de se configura- modo de produção específico. Portanto, considerar
rem como uma mera passagem para outras necessari- as práticas sociais e individuais de forma atomizada
amente diferentes e igualmente dignas de validade. e “desligadas” dos mecanismos estruturais que regem
Corrobora-se, assim, que todas as interpretações as formações sócio-espaciais, é, no entendimento de
da gentrificação poderão ser válidas, não podendo Smith (1986b, 1987c, 1990) um postulado da ideo-
afirmar-se que uma o é em total e absoluto, única logia liberal que reconhece no indivíduo um agente
e verdadeira. Essa é, afinal, a grande potencialidade histórico autônomo, sem atender às forças materiais
epistemológica da pós-modernidade e a sua mais que não só estruturam a sociedade e o espaço, como
também condicionam a ação dos agentes sociais. tura social, e não um conjunto independente, ou
Mas, a este respeito, é também cada vez mais relativamente autônomo, de relações espaciais. To-
evidente que nenhuma explicação da gentrificação é das as abordagens marxistas até Lefebvre rejeitavam
satisfatória se não incluir referências cruzadas, quer a necessidade de uma teoria distinta do espaço, em
da tese da oferta, quer da do consumo. Além disso, favor de uma análise política e econômica das rela-
nenhuma destas perspectivas consegue ser coerente ções sociais desenvolvidas espacialmente, com base
e, por si só, dar resposta ao problema epistemológico na luta classista. Compartilhavam a crença de que os
colocado pela gentrificação nos estudos urbanos dos processos de desenvolvimento capitalista são materi-
últimos 40 anos, sem aludir às dimensões explicati- alizados no espaço, quase que através de uma corre-
vas e argumentos uma da outra (Smith, 1995a). O spondência unívoca com as formas reais do ambiente
que também confirma que as velhas oposições entre construído.
holismo e individualismo, estrutura e agência, ma- Na obra lapidar de Lefebvre de 1974, “La Pro-
terialismo e idealismo, podem ser vistas como pro- duction de l’Espace”, culmina a visão ontológica do
blemas quando abordadas em termos concretos e no autor de mais de uma década de análise da condição
âmbito de situações sociais específicas localizadas no urbana contemporânea que demonstra que o espaço
tempo e no espaço. não pode ser reduzido apenas a uma localização, às
Estas dicotomias, especialmente aquela que é relações sociais da posse de propriedade, ou ao mero
primária a todas as outras, a do materialismo vs. ide- desdobramento/reflexo das estruturas econômicas,
alismo, resume uma questão elementar da filosofia da políticas e ideológicas. Aqui Lefebvre formula uma
ciência, mas também da epistemologia da geografia, abordagem marxista do espaço que difere drastica-
delineando tradicionalmente duas grandes correntes mente da dos seus contemporâneos. O espaço re-
de entendimento da realidade sócio-espacial. As múl- presenta uma multiplicidade de preocupações sócio-
tiplas implicações destas duas formas de pensamento materiais. No espaço figuram proeminentemente as
permitem-nos compreender algumas transformações relações sociais de produção. É por meio do espaço
recentes do social e do espaço, inerentes à gentrifica- que a sociedade se reproduz, pois este é simultanea-
ção. Alguns teóricos utilizam com rigor a dissociação mente um meio de ações sociais – porque as estru-
entre uma posição idealista e uma posição materi- tura – e um produto dessas ações. Ele recria continu-
alista, sendo muitos os que aprofundam o estudo das amente as relações sociais, reproduzindo-as; mas estas
características de cada abordagem. A leitura “mate- também ajudam a produzi-lo em primeiro lugar. Ele
rialista dialética” de Lefebvre (1947) conduz-nos à é ao mesmo tempo objeto material ou produto, o
formulação de um esquema representativo da relação meio das relações sociais, e o reprodutor destas. É
entre as diferentes concepções filosóficas associada à simultaneamente o local geográfico da ação e a pos-
grande questão materialismo vs. idealismo. A pro- sibilidade social de engajar-se na ação. Esta ideia é
posta da dialética de Lefebvre é a de romper com fundamental para a noção de práxis sócio-espacial de
essa dicotomia ao realizar a efectiva interação sujeito Lefebvre, que representa potencialidades tremendas
vs. objecto, reconhecendo a realidade como a própria de encarar o espaço como instrumento político me-
ação conjunta e concomitante (práxis sócio-espacial) diante as necessidades de luta urbana contra o avanço
entre consciência e matéria. A vida-realidade é bem da fronteira da gentrificação4, como vimos no último
mais complexa do que a objetividade da filosofia ma- ponto deste artigo.
terialista nos faz crer. Desta forma, Lefebvre, ao basear a multiplici-
A visão lefebvriana de espaço socialmente pro- dade da articulação sociedade-espaço numa relação
duzido remete-nos – no estudo da gentrificação en- dialéctica, deixa o princípio para a transformação
quanto processo de reestruturação urbana – para a revolucionária da sociedade através da expropria-
articulação entre o sistema de organização social na ção do espaço, a liberdade de usar o espaço, cum-
sua totalidade e a organização do espaço, sob o signo prindo o direito existencial à cidade. Em “Le Droit
do contributo de uma abordagem marxista que leve à la Ville” Lefebvre (1968) faz a apologia da extin-
em conta a necessidade de considerar os vários níveis ção do sistema de relações de propriedade – onde
de organização social, inclusive o político e o cul-
tural, tanto quanto o econômico. Segundo a análise
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urbana marxista, a transformação do espaço está vin- Não esqueçamos que no pensamento de Lefebvre (1970) a
culada diretamente às transformações da sociedade práxis sócio-espacial é elevada à categoria de atividade radical
de resistência ao lado de outros esforços para reorganizar as
produzidas pelo esforço de acumulação de capital e relações sociais, onde a transformação da sociedade moderna
pela luta de classes. Esta perspectiva argumenta que numa sociedade humanista deve ocorrer sob a forma de “re-
a análise do espaço é uma mera expressão da estru- volução urbana”.
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