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©2015 Antonio Evaldo Almeida Barros; Cidinalva Silva Camara Neris; Reinaldo dos Santos Barroso Júnior;
Viviane de Oliveira Barbosa; Tatiane da Silva Sales; Wheriston Silva Neris (Orgs.)
Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema
de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a
permissão da editora e/ou autor.

B2786 Barros, Antonio Evaldo Almeida; Neris, Cidinalva Silva Camara;


Barroso Júnior, Reinaldo dos Santos; Barbosa, Viviane de Oliveira; Sales,
Tatiane da Silva; Neris, Wheriston Silva (Orgs.)
Histórias do Maranhão em Tempos de República/Antonio Evaldo Almeida
Barros; Cidinalva Silva Camara Neris; Reinaldo dos Santos Barroso Júnior;
Viviane de Oliveira Barbosa; Tatiane da Silva Sales; Wheriston Silva Neris
(orgs.). São Luís, Edufma; Jundiaí, Paco Editorial: 2015.

808 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-8148-585-0

1. História do Maranhão 2. Identidade 3. Memória 4. Território


I. Barros, Antonio Evaldo Almeida II. Neris, Cidinalva Silva Camara
III. Barroso Júnior, Reinaldo dos Santos IV. Barbosa, Viviane de Oliveira
V. Sales, Tatiane da Silva VI. Neris, Wheriston Silva

CDD: 900

Índices para catálogo sistemático:


História do Maranhão 981.21
História do Brasil 981

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal
SUMÁRIO
Apresentação.......................................................................................................9
Prefácio.............................................................................................................13
Introdução.........................................................................................................15

Capítulo 1 Antônio Evaldo Almeida Barros

O Pantheon Encantado: sujeitos, culturas e questão racial no processo


de formação de identidade maranhense.......................................................37

Capítulo 2 Mundicarmo Ferretti

Tambor, Maracá e Brincadeiras de Negro no Maranhão na Virada do


Século XIX e Início do Século XX...............................................................81

Capítulo 3 Sergio Ferretti

Bumba-Meu-Boi e Tambor de Mina em Tempos de República.............103

Capítulo 4 Antonio Evaldo Almeida Barros

Em Tempos de Cura: sujeitos e desigualdades na pajelança


no Maranhão...................................................................................................119

Capítulo 5 Carlos Benedito Rodrigues da Silva

Enredos de Fé, Lazer e Obrigação na Cultura do Maranhão..................147

Capítulo 6 Bruno Azevêdo

Choperias, Seresta e MPM: imagens, símbolos e posições sociais na


música maranhense........................................................................................167
Capítulo 7 Wagner Cabral da Costa

Do “Maranhão Novo” ao “Novo Tempo”: a trajetória da oligarquia


Sarney no Maranhão......................................................................................189

Capítulo 8 Igor Gastal Grill


Eliana Tavares dos Reis

Etiquetas Políticas, Intérpretes e Lutas Faccionais no Maranhão


(1945-2010).....................................................................................................237

Capítulo 9 Ariel Tavares Pereira

O “Perigo Vermelho”: as representações anticomunistas na imprensa


ludovicense dos anos 1930............................................................................271

Capítulo 10 Elthon Ranyere Oliveira Aragão

Herança Política e Disputas Eleitorais em Pinheiro-MA........................301

Capítulo 11 Antonio Carlos Lima Gomes

Jogos de Memórias: lucros e prejuízos em pleitos eleitorais..................325

Capítulo 12 Jesus Marmanillo Pereira

Luta por Moradia e Condicionantes Necessários: História, agentes e


organização popular ludovicense entre as décadas de1970 e 1980.........353

Capítulo 13 Marcelo S. Carneiro

&RQÁLWRVH/XWDV6RFLDLVQR&DPSR0DUDQKHQVHDQiOLVHGHVXDV
principais tendências e perspectivas futuras..............................................381

Capítulo 14 Antonio Marcos Gomes

Notas Sobre o Processo de Formação do Mercado de Trabalho no


Maranhão: da grande lavoura aos grandes empreendimentos................415
Capítulo 15 Maristela de Paula Andrade

&RQÁLWRV$JUiULRVH0HPyULD&DPSRQHVDQR0DUDQKmR

Capítulo 16 Rafael Bezerra Gaspar

Das Chapadas Comuns aos Campos de Soja: capítulos da expansão


do agronegócio no Maranhão contemporâneo.........................................457

Capítulo 17 Elizabeth Maria Beserra Coelho


Kátia Núbia Ferreira Correa

Povos Indígenas e Territorialização.............................................................483

Capítulo 18 Lyndon de Araújo Santos

Os Evangélicos no Maranhão Contemporâneo: o pluralismo como


experiência e como processo social............................................................501

Capítulo 19 Elba Fernanda Marques Mota

Estevam Ângelo de Souza: pastor, escritor e liderança carismática


no Maranhão republicano (1957-1996)......................................................529

Capítulo 20 Wheriston Silva Neris

Circulação Internacional, Ação Pública e Engajamento na Fé: notas


sobre a presença dos Missionários Combonianos no Maranhão............557

Capítulo 21 Elizabeth Sousa Abrantes

De Normalistas a Doutoras: a trajetória feminina de acesso ao ensino


superior no Maranhão republicano............................................................589

Capítulo 22 Tatiane da Silva Sales

Pedagogia da Diferenciação entre Meninos e Meninas em São Luís


na Primeira República...................................................................................615
Capítulo 23 Viviane de Oliveira Barbosa

Mulheres do Babaçu: resistência, sociabilidades e feminismo popular


no Maranhão republicano.............................................................................629

Capítulo 24 Márcia Milena Galdez Ferreira

Polifonia Feminina: terra, trabalho, migração e cotidiano em narrativas


de mulheres do Médio Mearim....................................................................657

Capítulo 25 Wagner Cabral da Costa

“Ruínas Verdes”: tradição e decadência nos imaginários sociais............691

Capítulo 26 João Ricardo Costa Silva

A Construção Institucional do Centro Histórico de São Luís................721

Capítulo 27 Cidinalva Silva Câmara Neris

$VLOR&RO{QLDGR%RQÀPGDSUiWLFDGRHVSDoRjFRQVWLWXLomRGH
lugares..............................................................................................................751

Capítulo 28 Helen Lopes de Sousa

Festas, Clubes e Ruas: a circunscrição do espaço social e racial na


Velha-Nova-Iorque do Maranhão...............................................................771

Posfácio............................................................................................................797

Autores e Organizadores..............................................................................799
CAPÍTULO 25
“Ruínas Verdes”: tradição e decadência nos
imaginários sociais

Wagner Cabral da Costa1

Introdução

Uma fantasmagoria preside as discussões sobre o Maranhão, ocupan-


do uma posição estratégica quando se pretende pensar o complexo e mul-
tifacetado processo de instituição dos imaginários sociais acerca da identi-
dade regional. Há quase dois séculos, a decadência local tem sido tematizada
SHORVGLVFXUVRVSROtWLFRHFRQ{PLFRHFLHQWtÀFREHPFRPRWUDQVÀJXUDGD
esteticamente em verso e prosa, em sons e imagens plásticas.

De longe, revemo-la com amor, num crepúsculo de emoções que sua-


viza os contornos da realidade dolorosa; e através da meditação, que é
o caminho da sabedoria, e através da saudade, que é a mãe da emoção
PDLVGXUDGRXUDHHVSLULWXDOL]DGDWUDQVSRUWDPRQRVjVUXDVHjVUXtQDV
verdes de Alcântara. (Raimundo Lopes)

Casarões, becos, telhados e mirantes. Ruínas verdesjVYH]HVOtULFDVjV


YH]HVPRUGD]HVjVYH]HVFUXpLVHVFRQGHQGRHSUHVHUYDQGRPHGRVHVDX-
GDGHVOHQGDVHIUXVWUDo}HVPRUWHVGHVHMRVHPLVWpULRV2VVLJQLÀFDGRVGD
GHFDGrQFLDHPERUDUHPHWDPDXPQ~FOHRPDLVRXPHQRVGHÀQLGRHVWmR
sempre em disputa, em aberto, indeterminados, sendo constantemente
UH DSURSULDGRVH UH LQYHQWDGRVVHJXQGRRVPDLVGLYHUVRVÀQVHLQWHUHVVHV
GHVGHRVpFXOR;,;8PKLVWRULDGRUG·DOpPPDUMiDVVLQDORXTXHDQRomR
´pLQÀQLWDPHQWHPDQLSXOiYHOSDUDÀQVLGHROyJLFRV$ÀORORJLDGiVHFRQ-

1. Wagner Cabral da Costa possui graduação em História pela Universidade Federal do Mara-
nhão (1994) e mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Atual-
mente é professor assistente da Universidade Federal do Maranhão, cursando Doutorado em
História Social na Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de História, com
ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura política -
Brasil; charge e caricatura política - Brasil; sátira política - Brasil; política regional - Maranhão;
Maranhão - história; eleição - Maranhão.

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Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
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ta desta ligação essencial do conceito de decadência com um juízo de valor


negativo” (Le Goff, 1996, p. 413).
A decadência e sua contraparte necessária (o mito da Atenas Brasileira)
se conjugam para fornecer o referencial imagético e discursivo a partir do
qual se fala e se escreve sobre o Maranhão; constituindo e sedimentando
várias camadas de ideias-imagens e representações, presentes no trabalho
de historiadores, geógrafos, literatos, produtores culturais, cientistas so-
ciais, políticos (de esquerda e de direita), dentre outros. O debate sobre a
identidade regional, com variações múltiplas e contribuições diversas, tem
preponderantemente se organizado em torno destes temas, conformando
uma teia discursiva ampla que sustentou (e ainda sustenta) práticas políti-
cas, econômicas e culturais dos mais diversos atores sociais.
Tradição e decadência como elementos instituintes e instituídos dos ima-
ginários sociais (Baczko, 1984; Castoriadis, 1986) – um magma de signi-
ÀFDo}HV VHPSUH D UHYROYHUVH SHOD PRGLÀFDomR GRV kQJXORV GH DQiOLVH
pela construção de novos sentidos, pela introdução de novas temáticas
relacionadas de forma complexa com as anteriores, pela apropriação e
UHLQYHQomRGHDQWLJDVVLJQLÀFDo}HV3URFHVVRFDyWLFRTXHVRPHQWHa poste-
riori pode ser interpretado como um processo ordenado e linear.
Assim, ao problematizar a noção de decadência, procuramos perce-
bê-la a partir de um duplo enfoque: em sua historicidade e em sua pre-
sença recorrente nos imaginários sociais. Nosso esforço, nas páginas que
seguem, consistirá, portanto, numa exploração desse conjunto de ques-
tões, uma exploração fragmentária e lacunar, na medida em que recolherá
indícios dispersos no tempo, tendo como referente comum uma catego-
ria supostamente “espacial”, o Maranhão.
Em nível acadêmico, dois trabalhos iniciam a tarefa de questionamen-
to da noção de decadência, embora sob óticas diferenciadas: A ideologia da
decadência do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida e Formação
social do Maranhão, do sociólogo Rossini Corrêa. Enquanto a ênfase do
SULPHLURUHFDLQDGLVFXVVmRGDSUySULDQRomRRVHJXQGRVHDWpPjPLWR-
logia timbira da Atenas Brasileira (o mito da “prodigalidade terra-gente” ou
“teologia maranhense”, segundo fórmulas do autor).
$OPHLGD  FHQWUDRVHXHVWXGRQDDQiOLVHGDKLVWRULRJUDÀDHFRQ{-
mica do Maranhão, desde os cronistas do início do século XIX (Gayoso,
3HUHLUDGR/DJRHRXWURV SDVVDQGRSHODGRFXPHQWDomRRÀFLDO UHODWyULRV
falas e mensagens de presidentes de província), até os historiadores do
ÀQDOGRVpFXOR;,;HGRVpFXOR;;&RQVWLWXLQGRVHQXPOXJDUHVWUDWp-

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Histórias do Maranhão em Tempos de República

JLFRjVDQiOLVHVDFDWHJRULDGD´GHFDGrQFLDGDODYRXUDµpXWLOL]DGDQHVVDV
fontes para descrever e explicar o quadro econômico conjuntural da pro-
víncia (especialmente do setor agroexportador), sendo manuseada pelas
diferentes facções políticas ao longo do tempo. Dessa forma, a categoria
VH FULVWDOL]RX WDQWR QR SHQVDPHQWR SROtWLFR RÀFLDO TXDQWR QD SURGXomR
erudita enquanto um padrão explicativo aceito sem maiores contestações, o
que lhe conferiu um forte caráter de consenso (o que, por sua vez, ampli-
ÀFDDHÀFiFLDGRGLVFXUVR 
As origens da “decadência da lavoura” residiriam em seu oposto, a
“prosperidade”, forma de idealização de uma suposta “idade de ouro da
ODYRXUDGDSURYtQFLDµ ÀQVGRVpFXOR;9,,,HSULPHLUDVGpFDGDVGRVpFXOR
XIX). Estabeleceu-se assim uma visão cíclica da história econômica do
Maranhão, que carrega consigo uma certa periodização: a um período ini-
cial de “barbárie” (princípios da colonização portuguesa), seguiu-se a épo-
ca da “prosperidade” (com a implantação do sistema da grande lavoura
escravista, como resultado das políticas de fomento pombalinas), e depois
teve início a “decadência” (cujo marco terminal seria a abolição da escra-
vatura, por provocar a ruína dos grandes proprietários). Nestes termos, a
DomRRÀFLDOREWHULDOHJLWLPLGDGHQDPHGLGDHPTXHDSRQWDVVHFDPLQKRV
para o restabelecimento da “prosperidade” perdida.
2DXWRUFRQFOXLVXDDQiOLVHDÀUPDQGRVHUD´GHFDGrQFLDGDODYRXUDµ
a categoria central do discurso das elites regionais, esboçando sua visão
do conjunto dos problemas econômicos e sociais da província (Almeida,
  $ HÀFiFLD GD ´LGHRORJLD GD GHFDGrQFLDµ VH WUDGX] HP VXD UHSUR-
GXomRDFUtWLFDSHODKLVWRULRJUDÀDUHJLRQDOSDVVDQGRSRU9LYHLURV 
1964), Meireles (1980) e Tribuzi (1981), dentre outros. Somente com a
safra de trabalhos acadêmicos produzidos a partir dos anos 1980, a noção
de decadência econômica começou a ser questionada e relativizada em
maior profundidade.
-i &RUUrD   PDQLIHVWD D SUHRFXSDomR GH SURFHGHU j FUtWLFD GR
mito da Atenas Brasileira em sua materialização mais recente, o projeto do
“Maranhão Novo” (organizado por José Sarney), bem como das relações
GHÀGHOLGDGHHFRPSURPLVVRGHVVHJUXSRSROtWLFRFRPDGLWDGXUDPLOLWDU
Propondo-se a fazer uma análise da categoria “Maranhão”, com caráter
ensaístico e panorâmico (sua investigação abrange do período colonial aos
anos 1970), a partir do referencial teórico do materialismo histórico e de
um compromisso político com a redemocratização do país e com a cidada-
nia, o sociólogo apresenta como tese central a ideia de que a “permanente

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sobrevivência do fantasma do passado na sociedade maranhense ... foi


um espectro legitimador de interesses econômicos, culturais e políticos”,
FRPSOHPHQWDQGRTXH´DH[SHFWDWLYDGRUHWRUQRjLGDGHiXUHDGRSDUDtVR
perdido, sem fundamento na realidade objetiva, protegeu-se na mítica e
mágica apologia do renascimento” (Corrêa, 1993, p. 310-1).
Sua “arqueologia” é rica em sugestões e imagens sobre as relações
entre intelectuais e poder político, e, especialmente, sobre a mitologia tim-
ELUDHQTXDQWRLQVWLWXLGRUDGHXPDLGHQWLGDGHUHJLRQDOjpSRFDGR,PSp-
rio, identidade permanentemente reconstruída e reinventada desde então.
Em suas palavras, as elites provinciais fabricaram uma “excepcionalida-
de”, consagrando o Maranhão como partícipe da unidade nacional pro-
movida pelo Estado imperial, mas, simultaneamente, “distinguindo-se do
conjunto em elaboração, pelo manuseio de uma superioridade espiritual,
DRGHÀQLUVHFRPR$WHQDVµ1XPDIyUPXODHVWLOtVWLFDGHLPSDFWRDVVLP
UHVXPH VXD WHVH ´$WHQDV %UDVLOHLUD ² SURYLQFLDQLVPR PDLV UHÀQDGR GR
que o nacionalismo... Maranhenses, nascidos na Atenas Brasileira. Atenas
Brasileira, nascida dos maranhenses” (Corrêa, 1993, p. 102-4).
Essa sugestão é importante porque fornece hipóteses para pensar o
processo de reação e compromisso deste “provincianismo maranhense”
(e seus atores, intelectuais e políticos) com outros processos mais abran-
gentes de formação de identidades no Brasil, não somente a “identidade
nacional” (nos diferentes termos em que esta questão foi colocada desde o
século XIX), como também “identidades regionais”, no caso, os processos
de invenção do “Nordeste” e da “Amazônia”. A situação intermédia do
estado entre essas duas macrorregiões brasileiras (conforme os critérios
JHRJUiÀFRVGR,%*( IRLREMHWRGHGLVFXVVmRSRUSDUWHGRVVHWRUHVSR-
líticos e intelectuais locais. Mas não somente isto, pois a constituição do
Maranhão em “Meio-Norte” (ao lado do Piauí), bem como sua inclusão
na “Amazônia Legal” (na condição de “pré-Amazônia” durante o regime
militar), possibilitou, apenas a título de exemplo, a captação de incentivos
ÀVFDLV WDQWR GD 6XGHQH TXDQWR GD 6XGDP 3URFHVVRV GH FRQVWUXomR GH
identidades culturais regionais e interesses políticos e econômicos estão,
sempre, profundamente imbricados...
Rossini Corrêa ainda ressalta o “problema” da “exportação da inteli-
gência maranhense”, dadas as condições precárias da vida intelectual na
distante província, intelectualidade que busca especialmente no Rio de Ja-
neiro o “reconhecimento nacional”, em contraposição ao “anonimato”
e ao “espírito de ressentimento decadentista” dos que permanecem na

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Histórias do Maranhão em Tempos de República

terra-natal. “Problema” cultural e sentimental que perpassa a produção


OLWHUiULDHKLVWRULRJUiÀFDORFDODVVLPDSRQWDGRSHORateniense Coelho Neto
HPVXDÀFomRDXWRELRJUiÀFD A Conquista, 1898):

6HQWDUDPVHRVGRLVH$QVHOPR>DOWHUHJRGRURPDQFLVWD@S{]VHDIDODU
saudosamente da terra amada e longínqua, berço de ambos, província
farta que é um celleiro e um Parnaso onde, com a mesma exuberância,
pullulam o arroz e o genio: terra de algodão e de odes donde, com
ingrata indifferença, emigram os fardos para os teares da América e os
vates para a Rua do Ouvidor; terra das lyricas, terra das palmas verdes,
terra dos sabiás canoros. (Coelho Neto, 1921, p. 7-8)

1. A invenção da tradição

1RDQRVHJXLQWHjFULDomRGD$FDGHPLD0DUDQKHQVHGH/HWUDV $0/ 
Antônio Lôbo publicou um livro seminal: Os Novos Atenienses (1909), no qual
o poeta e romancista – considerado por Moraes (1977, p. 206) a “principal
ÀJXUDµGDYLGDOLWHUiULDPDUDQKHQVHQRVSULPyUGLRVGRVpFXOR;;²EXVFD
fazer um balanço das atividades e da produção de sua geração intelectual.
O ensaio foi composto em duas partes, “os fatos” e “as individualida-
des” (divididas entre “poetas” e “prosadores”). Precedendo ambas, uma
rápida introdução, em que o fundador da cadeira no  GD $0/ DÀUPD
VXDÀOLDomRWHyULFDD$GROSKH&RVWH Principes d’une Sociologie Objective) e aos
SRVWXODGRVGRFLHQWLÀFLVPR /{ERS $LQWHQomRPDQLIHVWDGDV
´SUHOLPLQDUHVµpUHIXWDUDVSURSRVLo}HVGRÀOyVRIRHKLVWRULDGRU+LSSRO\WH
Taine sobre a literatura, especialmente sua tese de que esta seria subor-
GLQDGD ´j WUtSOLFH LQÁXrQFLD GR PHLR GD UDoD H GR PRPHQWRµ $QW{QLR
Lôbo apóia-se na distinção proposta por Coste entre as “duas ordens de
fatos sociais” (independentes entre si) analisados pelas ciências humanas: a
primeira ordem, ligada ao estudo da produção, população, política, culto –
objetos da Sociologia; e a segunda, dedicada ao estudo das belas artes, das
EHODVOHWUDVGDFLrQFLDGDÀORVRÀD²REMHWRVGH´RXWUDFLrQFLDD,GHRORJLDµ
Tal incursão doutrinária teve por objetivo demonstrar que a história do
0DUDQKmRQRDGYHQWRGRVpFXOR;;FRQÀUPDULDDVWHVHVGH&RVWH3RLVVH-
JXQGR$QW{QLR/{ER´jLQIHULRULGDGHPDQLIHVWDGDQRVVDYLGDVRFLROyJLFDµ
FXMDV´FDXVDVJHUDLVµHVWDULDPOLJDGDVj´GHFDGrQFLDHFRQ{PLFRÀQDQFHLUD
alia-se uma grande exuberância de vida ideológica”. Segue-se uma passagem
bastante expressiva:

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Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

$RVDQRVGHDSDWLDHPDUDVPRTXHVHVHJXLUDPjEULOKDQWHHIHFXQGD
agitação literária, de que foi teatro a capital dêste Estado, nos meados
GRVpFXORÀQGRHTXHÀFDUiPDUFDQGRSDUDKRQUDHJOyULDQRVVDXPD
das épocas mais fulgentes da vida intelectual brasileira, substituiu-se,
DÀQDOXPDIDVHIUDQFDGHUHYLYrQFLDLQWHOHFWXDOTXHGHVGHRVHXLQtFLR
vem progressivamente caminhando, cada vez mais acentuada e vigo-
rosa, destinando-se a reatar as riquíssimas tradições das nossas letras,
TXHDPXLWRVVHDÀJXUDYDPMiWRWDOPHQWHSHUGLGDV /{ERS

Dessa forma, o livro é dedicado ao estudo da “ressurreição espiritu-


al”, ao “atual rejuvenescimento literário do Maranhão”, buscando “fazer
obra imparcial e justa, como devem ser todas aquelas que se destinam a
transmitir ao futuro a memória do presente”. A primeira parte (“os fatos”,
dotados da aura mágica de portadores da “verdade”, segundo os cânones
SRVLWLYLVWDVHFLHQWLÀFLVWDV GHGLFDVHjFRQVWUXomRGDKLVWyULD HWDPEpP
da memória) da geração do autor – os “Novos Atenienses”, pais fundado-
res da Academia Maranhense de Letras.
Contudo, sua exposição vai além, ao instituir uma periodização da vida
literária local em torno da ideia de três gerações consecutivas: a primeira,
de inspiração romântica (contando com Gonçalves Dias, Odorico Men-
des, Sotero dos Reis, entre outros), geração apenas debelada pela morte,
cujo “canto de cisne” foi a publicação do jornal Semanário Maranhense
(1867-68); a segunda, aquela dos que “emigraram da Província, indo levar
a outras mais afortunadas o concurso precioso dos seus talentos e da sua
atividade”, migração forçada pela “barreira inexorável da indiferença pú-
blica”, cujo caso extremo foi a reação adversa da sociedade ludovicense
ao romance “O Mulato” (1881) de Aluísio Azevedo; a terceira, a geração
do próprio autor, responsável pelo “rejuvenescimento literário” da época
(Lôbo, 1970, p. 13-5).
$SHVDUGDGLVWkQFLDJHRJUiÀFDRVFRPSRQHQWHVGDVHJXQGDJHUDomR
RV´HPLJUDGRVµ HUDP´RVGHSRVLWiULRVÀpLVGDVQRVVDVWUDGLo}HVµ´RV
herdeiros diretos do nosso nome literário”, “os únicos que nos assegura-
vam ainda incontestado direito ao realçante cognome de Atenas Brasileira”
(Lôbo, 1970, p. 15-6). Enquanto esses literatos se envolviam ativamente
na vida cultural da capital federal, a província se encontrava assombrada:

Começou então para o Maranhão essa tristíssima e caliginosa noite, em


que, por tão longo tempo, viveram imersas as suas letras, noite cortada,
por vezes, pelo clarão fugidio de algum astro errante, que para logo se

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Histórias do Maranhão em Tempos de República

ia eclipsar na morte, ou perder-se na distância a que era impelido pelas


inelutáveis fatalidades da sua trajetória. (Lôbo, 1970, p. 14).

Decadência – noção instituída e ao mesmo tempo instituinte dos ima-


ginários sociais, cuja vitalidade pode ser dimensionada por sua reprodução
e recriação posterior. O historiador Mário Meireles, ao analisar o panorama
cultural dos primórdios da República, postula a ideia de uma “isocronia en-
tre as fases da evolução de nossa vida econômica e de nossa vida cultural”
(posição que o colocaria ao lado de Taine, no debate com Adolphe Coste).
Ao “ciclo econômico do algodão”, corresponderia o “ciclo literário do cha-
mado Grupo Maranhense (1832/1868), dominado pelo espírito humanísti-
FRGRVGRXWRUHVHEDFKDUpLVGH&RLPEUDH2OLQGDµGRV´ÀOKRVGRVQRVVRV
grandes senhores rurais”; ao “ciclo da cana de açúcar”, o “segundo ciclo
literário (1868/1894)”, momento em que “a província não mais se satisfez
FRPRWHUHPVXDFDSLWDOXP¶JUXSR·URPDQWLVWDµHSDVVRXDH[SRUWDU´RV
seus valores intelectuais, ainda incipientes, para que, na Corte, se façam e se
ÀUPHPFRPRQRPHVQDFLRQDLVDSHQDVQDVFLGRVQR0DUDQKmRµ
Com a abolição e a República (e o “desequilíbrio e decadência eco-
nômica”), sobreveio o “ciclo decadentista (1894/1932)” que viveria “das
glórias daquele passado”, momento em que o Estado “apenas procura
lutar por que se não apague a chama daquele ideal e se não perca a tra-
dição que deu as glórias de Atenas do Brasil” (Meireles, 1980, p. 353-4).
0HVPDSHULRGL]DomRYHOKDVHQRYDVVLJQLÀFDo}HVFRPSDUWLOKDQGRDSUH-
ocupação de preservação da identidade e tradição do Maranhão. Apesar
de reconhecer os méritos da geração dos “novos atenienses”, em sua luta
“pelo restabelecimento dos foros de grandeza intelectual da terra”, em seu
trabalho de fundação da AML (1908), da Faculdade de Direito (1918) e do
,QVWLWXWR+LVWyULFRH*HRJUiÀFRGR0DUDQKmR ,+*0 0iULR0HL-
UHOHVFRQVLGHUDD´GHFDGHQWLVWDµSRUTXH´VHQmRSRGHQHJDU>HVVDIDVH@IRL
LQIHULRUjVGRVFLFORVDQWHULRUHVµ 0HLUHOHVS 
A manipulação discursiva das imagens da decadência e da tradição
encontra-se, portanto, articulada a estratégias de legitimação (ou não) de
SHUVRQDJHQVHJUXSRVLQWHOHFWXDLVQRFHQiULRHVWDGXDOjGHWHUPLQDomRGRV
“lugares a ocupar” na história da literatura maranhense.
Moraes (1977, p. 201-205), apesar de incluir em seu texto alguma pes-
quisa nova com jornais da época (Filomatia e A Alvorada), praticamen-
te reproduz o essencial do argumento de Antônio Lôbo, especialmente
QRWRFDQWHjIXQGDomRGD$FDGHPLDGH/HWUDV´yUJmRFXOWXUDODTXHSRU

697
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

seu caráter de permanência, estaria reservado relevante papel na história


de nossa cultura” (Moraes, 1977, p.201-205). Novas imagens e represen-
WDo}HVFRPELQDPVHDQRYDVSUiWLFDVDVVRFLDGDVjVLQVWLWXLo}HVFXOWXUDLV
fundadas nas primeiras décadas do século XX. Estamos diante de um pro-
cesso de “invenção da tradição”, com a formalização de:

um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou


abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, vi-
sam inculcar certos valores e normas de comportamento através da re-
petição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação
ao passado. (Hobsbawm, 1997, p. 9)

O “caráter de permanência” dessas instituições no contexto regional


FRQVWLWXLXPDWHQWDWLYDGHVXSHUDomRGRWHPSRXQLÀFDQGRSDVVDGRHSUH-
sente, e projetando para o futuro a possibilidade e a esperança de retorno
jIdade de Ouro(PIXQomRGDVSUySULDVFRQGLo}HVGHHÀFiFLDGRGLVFXUVR
acaba-se por delimitar um dever simbólico a cada nova geração (categoria
DUWLÀFLDO TXH QR PHVPR SURFHVVR VH ´QDWXUDOL]Dµ FULDQGR XPD VXSRV-
ta continuidade e homogeneidade biológica e temporal, que se reproduz
socialmente enquanto continuidade horizontal, da “geração”, da “moci-
GDGHµ TXDOVHMDRGHYHUGHGHL[DURVHXTXLQKmRGHFRQWULEXLomRjV´JOy-
rias” da terra-berço, atribuindo aos intelectuais um papel de intervenção
demiúrgica na sociedade local.
Simultaneamente, houve um deslocamento dos processos de “consa-
gração literária” em nível estadual, que passaram a ser mediados por essas
instituições, as quais detêm o poder de conferir um status diferenciado a
seus membros no interior da sociedade maranhense. De certa forma, o
mesmo ocorre com os “emigrados”, pois, ao lado do reconhecimento ad-
TXLULGRQD´PHWUySROHµPXLWRVGHOHVPHVPRjGLVWkQFLDSDVVDPDID]HU
parte dessas instituições, na medida em que as mesmas acabam funcionan-
do como incentivadoras do “sentido coletivo de superioridadedas elites”,
conforme adverte o historiador inglês Eric Hobsbawm (1997, p. 18).

2. Mapeando a Terra das Palmeiras

Além da história, da literatura e do discurso político, um outro campo


de produção de saberes se insere no debate sobre a identidade e a tradição
GR0DUDQKmRDJHRJUDÀDTXHDRSURGX]LUFRQKHFLPHQWRVVREUHDUHJLmR

698
Histórias do Maranhão em Tempos de República

também se movimenta no universo da teia discursiva constitutiva dos ima-


JLQiULRVVRFLDLVVLJQLÀFDQGRHUHVVLJQLÀFDQGRDERUGDQGRYHOKRVWHPDVH
propondo novos.
Lembrando o caráter exploratório deste texto, iremos tratar neste tó-
SLFR GH XP GRV OLYURV IXQGDQWHV GD JHRJUDÀD GR 0DUDQKmR Uma região
tropical de Raimundo Lopes (publicado em 1a edição com o título de O
torrão maranhense, 1916).
No “Prólogo”, o autor anuncia seu intento de aplicar os princípios
H RV PpWRGRV GD ´PRGHUQD JHRJUDÀDµ DR HVWXGR GR FDVR SDUWLFXODU GR
0DUDQKmR /RSHVS (VWDJHRJUDÀDFLHQWtÀFDWHPSRUREMHWLYR
SURGX]LUXPD´VtQWHVHWRWDOGRVIHQ{PHQRVGRSODQHWDµ XPD´JHRJUDÀD
do todo”), articulando aspectos inter-relacionados: o “meiofísico” (geo-
JUDÀDItVLFD D´YLGDµ ELRJHRJUDÀDIDXQDÁRUD D´IRUPDomRKXPDQDµ
HDJHRJUDÀD´QRWHPSRµ KLVWyULFD 3RUFRQWDGLVVRRFDUiWHUVLVWHPiWLFR
e abrangente da obra, que envereda por campos tais como a economia, a
etnologia indígena, a questão racial, a história. Na percepção do conjunto,
o leitor vai descortinando aos poucos o estabelecimento de “problemas”,
apontados com o nítido propósito de intervenção na realidade com vistas
jFRQVWUXomRGHXP´0DUDQKmRUHQRYDGRµ
2GHEDWHTXHFRPRYLPRVDSRQWDQGRJLUDYDHPWRUQRGDGHÀQLomR
da identidade regional em termos da “excepcionalidade maranhense” no
FRQWH[WRGRSHUWHQFLPHQWRjQDFLRQDOLGDGHEUDVLOHLUDVRIUHXXPDLQÁH[mR
VLJQLÀFDWLYDFRPDLQWURGXomRGRVDEHUFLHQWtÀFR,QÁH[mRTXHDFRPSD-
nhou a mudança de paradigmas operada no debate sobre a identidade
QDFLRQDOGHEDWHQRTXDOVRELQÁXrQFLDGDVFRUUHQWHVFLHQWLÀFLVWDVHSR-
sitivistas, diversos grupos intelectuais se envolveram ativamente visando
j FRQVWUXomR GH XP VDEHU SUySULR VREUH R %UDVLO TXH SRVVLELOLWDVVH VXD
transformação e modernização.
Foi imbuído desses princípios e ideias que Raimundo Lopes se pre-
dispôs a pensar o Maranhão. O primeiro ponto a destacar é a discussão
da questão racial. Preso a fortes preconceitos sobre a superioridade “civi-
lizatória” da “raça branca”, e com um particular desprezo pelo “mulato”
(mestiço branco/negro), em contraposição ao “caboclo” (mestiço bran-
co/índio – por quem nutre alguma “simpatia”, na linha da ambiguidade de
Euclides da Cunha), o cientista acompanha em linhas gerais os parâmetros
do debate existente no país no início do século XX acerca dos temas cor-
relatos da raça, da mestiçagem, do caráter e da cultura nacionais (Lopes,

699
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

1970, p. 62-3, 67-73). Segundo Albuquerque Júnior (1994, p. 55), a inter-


pretação naturalista e evolucionista do Brasil

considerava o país como estando preso a um estágio cultural inferior,


ainda não tendo atingido a civilização. O Brasil era visto como atrasa-
do em relação a um processo cujo desenvolvimento paradigmático se
dava na Europa.

Dessa forma, diversos discursos vão mapear o país, dividindo-o em


“regiões raciais”, discursos que, no mesmo procedimento, “procurarão
MXVWLÀFDU D VXSHULRULGDGH GH XP HVSDoR VREUH RXWURVµ H VHUYLUmR GH VX-
porte imagético da produção dos “estereótipos e preconceitos regionais”.
Além disso, houve a emergência do “saber biotipológico”, que colocava
QDRUGHPGRGLD´DGHÀQLomRGRTXHVHULDR¶WLSRQDFLRQDO·µDSDUWLUGD
“construção de tipos raciais e culturais”, os quais aliam “características
somáticas com as manifestações exteriores da psicologia dos indivíduos
ou grupos, procurando determinar o que os individualizava no nível com-
portamental” (Lopes, 1970, p. 62, 66).
A investigação de Raimundo Lopes, acerca das “raças” e do “caráter
psicoétnico” do “maranhense”, se constrói numa relação que pensa tanto as
´UDoDVµHR´FDUiWHUµGR´EUDVLOHLURµTXDQWRDHVSHFLÀFLGDGH´PDUDQKHQVHµ
nesse conjunto. Vejamos o argumento. Ao analisar a “formação humana”,
LQFOXLR0DUDQKmRQD´]RQDGRFDERFORµVHJXQGRFODVVLÀFDomRHODERUDGD
por Roquette-Pinto, porque “realmente, o mestiço de sangue indígena, des-
FHQGHQWHQD¶EDL[DGD·GRVFDWHF~PHQRVGDVPLVV}HVIRUPDRVXEVWUDWXPGD
SRSXODomRPDUDQKHQVHµ$SHVDUGHQR´OLWRUDOµKDYHUXPD´]RQDGHLQÁX-
ência preponderante do branco”, isto não impede que, em seu conjunto, o
estado seja predominantemente “mestiço” (Lopes, 1970, p. 62, 77).
Ao tecer comentários sobre as “raças puras” (baseado em seus conhe-
FLPHQWRVGHHWQRORJLDLQGtJHQD DÀUPDTXH´DDWLWXGHGRVQRVVRVtQGLRV
tem sido mais subterrânea que abertamente hostil, e quase apenas defensi-
YDµ2VFRQÁLWRVVHULDPUHVXOWDQWHVGDV´SUySULDVQHFHVVLGDGHV>GHWHUUDV@
da civilização e dos preconceitos, tanto do civilizado como do selvagem”,
assim, “o quadro que se nos apresenta é o de dois mundos, tendo evolu-
ído distintamente e que estão em graus muito diversos de cultura”. Já em
UHODomRj´UDoDQHJUDµDDSUHFLDomRQmRpWmRSRVLWLYD

'HVGHRVWHPSRVFRORQLDLVFDGDYH]PDLVVHDÀUPDRSUHGRPtQLRVR-
FLDO H pWQLFR GD UDoD EUDQFD >YLWyULD SURYHLWRVD SRUTXH@ PDOJUDGR

700
Histórias do Maranhão em Tempos de República

o horror do regime escravista e a marca, porventura indelével, que


ele deixou no ser moral do brasileiro, a raça negra pouco a pouco se
elevou, ao contacto do branco, e o descendente do fetichista antropó-
fago do Congo converteu-se, pelo cruzamento ou pela educação, num
civilizado. (Lopes, 1970, p. 68-70)

Apesar do marcado preconceito em relação a negros e mulatos, o autor


faz rápidas considerações sobre a existência de quilombos no Maranhão,
considerando-o “uma das províncias onde mais se desenvolveram os qui-
lombos”, alguns “notáveis” como os de Viana (possivelmente uma referên-
FLDjLQVXUUHLomRGH HGH&RGyHVWH~OWLPRGRVWHPSRVGD%DODLDGD
comandado “pelo lendário e funambulesco senhor Dom Cosme Bento das
&KDJDV ¶WXWRU H LPSHUDGRU GDV OLEHUGDGHV EHPWHYLV·µ 0HQFLRQD DLQGD
´DVFRQIUDULDVIHWLFKLVWDVGDV¶3UHWDV0LQDV·TXHVHH[SOLFDPSHODFRQVHU-
vação dos costumes e superstições africanas”, consideradas uma “curiosa
associação, com as suas estranhas práticas, em que o catolicismo romano
VHPLVWXUDjVXVDQoDVHFUHQGLFHVGR&RQWLQHQWH1HJURµ(OHPHQWRVTXH
constituem a “tradição racial da nossa terra” (Lopes, 1970, p.69,73).
Chamamos a atenção sobre este ponto, porque ele sinaliza uma outra
mudança fundamental nas representações sobre o Maranhão, aquela que
se deu com a introdução da temática da cultura popular no debate acerca da
GHÀQLomRGDLGHQWLGDGHQDFLRQDO9iULRVLQWHOHFWXDLVSDVVDUDPDVHRFXSDU
desta temática, a exemplo de Antônio Lopes e Domingos Vieira Filho.
Já apontamos em artigo sobre o bumba-meu-boi sua transformação em
símbolo maior da identidade cultural do Maranhão, em virtude da atuação
GH LQWHOHFWXDLV H yUJmRV RÀFLDLV GH FXOWXUD FRPR WDPEpP GRV SUySULRV
brincantes); transformação que produziu um “silenciamento” da história
DQWHULRUGHFRQÁLWRVHQWUHRVbrincantes de bumba-meu-boi e as elites locais
(Costa, 1999). No caso da cultura negra, a mais acabada expressão literária
da apropriação e reinvenção dessa temática pelos intelectuais timbiras é o
romance Os tambores de São Luís de Josué Montello, que toma como refe-
rente de construção estética a religião afro-brasileira da “Casa das Minas”.
$DQiOLVHGDV´UDoDVµpFRPSOHPHQWDGDSHODGHÀQLomRGR´WLSRµHGR
´FDUiWHUµUHJLRQDO$ÀUPDQGRTXHQR0DUDQKmRKDYHULD´XPWLSRPDLV
YDJRHPDLVFRPSOH[RµGRTXHDTXHOHGR´MDJXQoRµ GHÀQLGRSRU(XFOLGHV
GD &XQKD  R DXWRU DSRQWD ´YiULRV WLSRV PDUDQKHQVHVµ UHODFLRQDGRV jV
´]RQDVJHRJUiÀFDVµGRHVWDGR ´RSHVFDGRUULEHLULQKRLQGROHQWHUHÁH[R
TXDVHÀHOGRVHOYDJHPRYDTXHLURGRVFDPSRVEDL[RVPDLVHPSUHHQGHGRU

701
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

aventuroso; o lavrador rude, sóbrio; o sertanejo do Chapadão, ambicioso


e rude”. E o homem da capital, “o sanluisense, tipo burguês, avesso a vio-
lências, grave, com um pouco de atividade mole do mulato, encarcerado na
rotina funcionalista e comercial” (Lopes, 1970, p.195). Destes tipos sub-
-regionais resultaria “um tipo médio, através da história e do povoamento”,
o “maranhense”. Vale a pena acompanhar a descrição desse personagem:

O maranhense tem em alta escala um vício quase geral da nacionali-


dade: confundir iniciativa e anarquia, ordem e marasmo. A ação não
OKH IDOWD H VLP D FRQWLQXLGDGH GHOD p WtELR SRU YH]HV H GHVDQLPD jV
GLÀFXOGDGHV$DXGiFLDGRVDYHQWXUHLURVpOKHWDQWRRXPDLVVXVSHLWD
que o emperramento... As suas mais belas qualidades, a “tolerância” e a
“ordem”, ou melhor, adaptabilidade, chegam a degenerar em defeitos.
Intelectualmente, nota-se a facilidade de idealizar e aprender. É incon-
WHVWiYHOTXHHVWHV¶DWHQLHQVHV·²SHUPLWDVHRWUDGLFLRQDOHStWHWR²WrP
como os defeitos dos seus protótipos clássicos, uma tradição de cultura
literária relativamente notável, e cabe-lhes um lugar de destaque na for-
mação intelectiva nacional. Há uma qualidade suprema que nunca fal-
tará ao cálamo maranhense: o colorido, a graça e o valor da dicção. Sob
RSRQWRGHYLVWDGDFULDomRHVWpWLFDHFLHQWtÀFDWHPGDGRH[HPSORGH
espírito crítico claro e seguro, e de força conceptiva e associativa. Uma
YDLGDGHGHUDoDH[DJHURXRYDORUGHVVHVGRWHVFRQIHULQGRj²´WHUUDGDV
palmeiras” uma preeminência que não se traduz em plena realidade.
0RUDOHUHOLJLRVDPHQWHRÀOKRGR0DUDQKmRWHPEDVWDQWHVHQVRSDUD
não ser fanático; entre os nossos próprios sertanejos não se desenvolve-
UDPWHQGrQFLDVPtVWLFDV>GR´EHDWRFDQJDFHLURµ@ /RSHVS

Este o “maranhense” na pena de Raimundo Lopes, “tolerante”, “or-


deiro”, “adaptável”, “inteligente”, excelente “falar”, “espírito crítico”, “re-
ligioso”, e não “fanático” (como os sertanejos de Canudos); mas porta-
dor de “grandes defeitos”, tais como “tíbio”, “rotineiro”, “acomodado”,
e com uma “vaidade de raça” que o levou a exagerar na construção da
tradição da Atenas. Se o senso crítico do autor não lhe permite aceitar
sem reservas as representações construídas, por outro lado, seu campo de
VLJQLÀFDo}HVHVWiFLUFXQVFULWRjTXHVWmRIXQGDPHQWDOHPGHEDWHDEXVFDH
GHWHUPLQDomRGDHVSHFLÀFLGDGHPDUDQKHQVHDFUHVFLGDHPVHXWUDEDOKRGD
pesquisa sobre os tipos regionais.
1HVWHVWHUPRVDYDQoDQDSURSRVLomRGHXPDRXWUDHVSHFLÀFLGDGHGD
terra enquanto uma “zona de transição”. Em suas palavras: no conjunto
das grandes regiões brasileiras, o Maranhão faz parte da complexa “transi-

702
Histórias do Maranhão em Tempos de República

ção” entre o Extremo-Norte (a Amazônia) e o Nordeste, entre a baixada


e o planalto, sob o ponto de vista do relevo, como entre a grande mata
HRVHUWmRVRERSRQWRGHYLVWDGDÁRUD /RSHVS 6LQJXODUH
FRPSOH[RJHRJUDÀFDPHQWHFRPFDUDFWHUtVWLFDVWDQWRGRVHUWmRTXDQWRGD
hileia amazônica (“peri-hiléico”, pré-Amazônia), com destacada presença
da palmeira de babaçu, dominante na chamada “zona dos cocais”.
Contudo, o geógrafo revela-se consciente do caráter arbitrário da ca-
tegoria “Maranhão”, cuja existência seria devida unicamente a critérios
político-administrativos. Sendo assim, a única área genuinamente “mara-
nhense” seria a bacia do golfo (formada pela ilha de São Luís e pelos rios
LQWHULRUHVR0XQLPR,WDSHFXUXR0HDULPHVHXVGRLVDÁXHQWHV3LQGDUp
H*UDMD~ SRLVXQLGDJHRJUiÀFDGHPRJUiÀFDHFRQ{PLFDHKLVWRULFDPHQ-
WH7DOFRQFOXVmROHYDjIRUPXODomRGHXP´SUREOHPDµPDUDQKHQVHRGD
“integração” das áreas “isoladas” ao resto do estado e consequentemente
DRSDtVYLVDQGRVXD´XQLÀFDomRUHDOHGHÀQLWLYDµ /RSHVS 
O “problema da integração” apresentaria duas dimensões: o “proble-
PDGDPDWDµ DUHJLmRRHVWHGRHVWDGRGHÁRUHVWDDPD]{QLFD HR´SUREOH-
ma sertanejo” (o “alto sertão”, região sul maranhense). Tanto o “deserto
ÁRUHVWDOµSRWHQFLDOPHQWHULFRHPSURGXWRVH[WUDWLYRV DLPDJHPGH´GH-
serto humano” para designar a hileia foi tomada de empréstimo a Euclides
da Cunha), quanto o sul pecuarista necessitariam ser integrados, “senão
continuará metade do Maranhão como que esquecida da outra metade,
QXPPXQGRjSDUWHµ /RSHVS ÐEYLRVRVLQWHUHVVHVHFRQ{-
PLFRVHSROtWLFRV DVFLWDo}HVSRUH[HPSORjV´GHVRUGHQVµIUHTXHQWHVQR
sertão) envolvidos na tese da “integração regional” sob a égide do “lito-
ral”, a qual projeta, implicitamente, a ideia de dar concretude econômica
e histórica a uma categoria predominantemente política, o “Maranhão”.
A equação se completa com a abordagem do “problema” econômico
maranhense, com uma economia imersa na rotina e no atraso, contraposta
ao “progresso” do sul do país. Por isso, a exortação por um “Maranhão
renovado”, construído a partir da adoção de medidas reformistas, ampa-
UDGDVHPFULWpULRVFLHQWtÀFRV$VLPDJHQVHUHSUHVHQWDo}HVGD´LGHRORJLD
GDGHFDGrQFLDµVmRDFLRQDGDVSHORGLVFXUVRJHRJUiÀFR UH SURGX]LQGRR
GHVHMRGHXPPtWLFR´UHQDVFLPHQWRµXPÁRUHVFLPHQWRGDQRVVDFXOWXUD
material e mental, mais coesa, mais forte e mais brilhante, numa cidade
nova, que, resultante do novo estado de coisas, pompeie, como a princesa
dos campos, na convergência dos grandes rios, no centro da planície fe-
cunda. (Lopes, 1970, p. 197)

703
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

Entretanto, num ponto fundamental, a análise econômica do autor é


divergente do senso comum sobre a “decadência da lavoura”. O que se
pode observar é uma disputa entre as representações que devem nortear a
percepção da realidade, processo no qual a “vitória” de determinada con-
cepção implica no “apagamento” de outras, em seu “silenciamento”. O
ponto de discórdia reside na análise da crise pós-abolição, a qual é marcada
na maioria dos intérpretes pelas imagens da “catástrofe” e da “hecatombe”.
Analisando a estrutura agrária, aponta como a “grande doação”, a
“sesmaria”, foi “o defeito da partilha de terras no Brasil”, e como, no caso
maranhense, o problema da concentração fundiária seria menos acentua-
do, pois, “a Abolição facilitou o evoluir da partilha das terras, pela subs-
WLWXLomR ¶HIHWLYD· PDV DLQGD LQFRPSOHWDPHQWH ¶HVWDELOL]DGD· GDV ID]HQGDV
senhoriais pelas famílias de lavradores” (Lopes, 1970, p. 82). Essa concep-
omRFUtWLFDGDTXHVWmRDJUiULDOKHSHUPLWHFRQFOXLUDRÀQDOGDDQiOLVHTXH
a vitória do abolicionismo:

... foi uma crise econômica profunda, mas trouxe uma verdadeira
UHQRYDomR VRFLDO DOWDPHQWH EHQpÀFD HP VHX FRQMXQWR 6XDV FRQVH-
qüências se desenrolam no período republicano. A importância da
DULVWRFUDFLDDJUtFRODVHGHVID]jSXMDQoDGRVRUJXOKRVRVDoXULRFUDWDV
>VLF@GDIDL[DYL]LQKDGRVFDPSRVEDL[RVVXFHGHDSURVSHULGDGHGRV
pequenos lavradores, e da cultura algodoeira. A esta última se prende
uma tentativa industrialista, uma quase mania das fábricas; ao mesmo
WHPSR WHQWDVH VHP UHVXOWDGRV GHÀQLWLYRV UHJHQHUDU D LQG~VWULD GR
açúcar. Apesar de tudo é o trabalho dos pequenos lavradores, ainda
hoje, a base da vida econômica do Maranhão. (Lopes, 1970, p. 194)

Com todas as ressalvas que possam ser feitas, a análise de Raimundo


Lopes se encontra próxima da recente revisão da questão promovida em
nível de pesquisa universitária. À “decadência da aristocracia” sucederia a
“prosperidade dos pequenos lavradores”, pensada enquanto uma “reno-
vação social”. Novos ângulos de abordagem: a determinação da “deca-
GrQFLDµFRPRDIHWDQGRXPDFODVVHVRFLDOHVSHFtÀFD H[SUHVVDQGRRSRQWR
de vista das elites locais) e a visão positiva do processo de transformações
na estrutura agrária. No entanto, o autor não se estende na avaliação do
“pequeno lavrador” nomeado (fora rápidas passagens sobre ser “rude e
sóbrio” e sua cultura “rotineira” e destrutiva), pois suas páginas mais emo-
FLRQDGDVHSOHQDVGHLPDJHQVIRUDPGHGLFDGDVj´GHFDGrQFLDGDDULVWRFUD-
FLDµDWUDYpVGDGHVFULomRGHXP QmR OXJDU²6DQWR$QW{QLRG·$OFkQWDUD

704
Histórias do Maranhão em Tempos de República

3. As cidades como “texto”

“Alcântara, a morta”. Considerado durante o Império o núcleo urba-


no “mais polido”, “mais faustoso” e mais “aristocrático” da província,
tornara-se uma fantasmagoria, um vilarejo de sofridas lembranças após
o abandono de seus casarões pelas elites derrocadas. A partir do último
quartel do século XVIII, a conjugação da agricultura escravista e do alto
FRPpUFLRSRVVLELOLWRXjDQWLJDDOGHLDGH7DSXLWDSHUDULYDOL]DUHPSUHVWtJLR
com São Luís (o autor chega mesmo a comparar tal contraste com o co-
QKHFLGRFRQÁLWRHQWUHDDULVWRFUiWLFD2OLQGDHDEXUJXHVD5HFLIH $´SURV-
peridade” foi sendo abalada ao longo do século XIX por uma conjunção
de fatores: a comunicação direta de suas áreas-satélites na baixada com a
capital; a lei abolicionista; o deslocamento da atividade econômica para o
baixo sertão. Entretanto, não nos deteremos em análises econômicas, mas
sim na imagética construída sobre sua decadência e morte.

... cidade meio abandonada, Alcântara guarda ainda as relíquias do


IDXVWRH[WLQWR(GLÀFRXVHQXPSODQRODUJRTXDVHPRQXPHQWDOUXDV
amplas, casas sólidas, numerosos sobrados, muitos dos quais são ver-
dadeiros palacetes ... E a velha cidade morta, com os seus templos der-
ruídos e casarões destelhados, tem a poesia do passado, da grandeza
perdida, das relíquias veneráveis... (Lopes, 1970, p. 103-4)

... essas fazendas, que foram colméias do trabalho alcantarense, e são


hoje taperas, reveladas apenas pelas mangueiras seculares e pelos ali-
FHUFHV GRV DVVHQWDPHQWRV GRV HQJHQKRV H ÀQDOPHQWH HVVD UXD GD
Amargura, cujo nome lhe profetizou o destino, hoje ruínasde ponta a
ponta, onde outrora se erguiam as principescas residências dos Men-
des, dos Sousas, dos Guterres, dos Vales e tantos outros potentados.
(Viveiros, 1975, p. 54-5)

Decomposição, ruína, relíquia, morte, fel, poesia. Representação


da decadência em termos de imagens alegóricas, que orientam o olhar
e a percepção. “Metáforas de longo alcance”, que “não reproduzem os
eventos que descrevem”, mas sim “nos dizem a direção em que devemos
pensar acerca dos acontecimentos e carregam o nosso pensamento sobre
os eventos de valências emocionais diferentes” (White, 1994b, p. 107-8).
Decadência cujo substrato material é o sobrado em ruínas, a fazenda re-
gredindo em tapera. A “poesia das ruas” – triste, comovente – das velhas

705
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
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cidades coloniais se transformou, assim, em tema recorrente dos discursos


ORFDLVHPHVSHFLDOGDTXHOHVGHGLFDGRVjVSULQFLSDLVFLGDGHVGD,GDGHGH
Ouro: São Luís e Alcântara, cidades-ruína. Espaços da saudade. Sentimen-
tos despertados no simples ato de visitá-las.

Basta percorrer algumas ruas de São Luís para se sentir que o passa-
do ainda ali está presente. São os velhos sobrados senhoriais... São os
casarões apalaçados... São igrejas venerandas... São as ruelas estreitas,
onde ainda se vêem alguns “passos” das procissõesdeantanho, que nos
transportam insensivelmente para os séculos coloniais.(Azevedo; Mat-
tos, 1951, p. 72-4)

Transportar, trazer para outro lugar, metáfora (meta-phorein). Ven-


cer a distância temporal, esta a sensação do geógrafo Aroldo de Azevedo
(professor catedrático da USP), a de estar caminhando por uma cidade que
R´WHPSRHVTXHFHXµFRQWUDSRVWDjVXDSHUFHSomRGHKDELWDQWHGHXPD
metrópole, onde o “tempo corre depressa”. A cidade como um “texto”
do passado, de uma época de glórias perdidas nas brumas do tempo, mas
reencontradas a todo o momento ao dobrar-se uma esquina, no sobrado,
nas pedras de cantaria, nos azulejos e mirantes. Esta a leitura poética da
XUEHFRORQLDOTXHRWXULVWDUHJLVWURXFRPVXDPiTXLQDIRWRJUiÀFDGLUH-
cionando o “olhar”, com o intuito de preservar mecanicamente este “ins-
tantâneo” do passado. A mesma sensação aguardava-o no outro lado da
baía de São Marcos.

Não tardou que nela se concentrasse a aristocracia maranhense, viven-


do uma existência faustosa, orgulhosa de seus casarões apalaçados e
olhando com certo desprezo para São Luís, centro da burguesia da épo-
ca, considerada uma cidade de mercadores... Desse modo, foi Alcântara
posta fora de combate; hoje, nada mais é que um espectro do passado,
uma cidade “morta” (que o governo federal já considerou “monumen-
to nacional”), com suas ruas desertas e cobertas de capim, seus vene-
randos sobrados que podem ser alugados por 50 ou 100 cruzeiros men-
sais, suas tristes ruínas, invadidas pelo mato (como as que se encontram
na chamada Rua da Amargura). (Azevedo; Mattos, 1951, p. 76-7)

“Derrotada”, a “Olinda maranhense” transformou-se em cidade-fan-


tasma, a natureza reivindicando seus despojos através do capim e do mato.
Todavia, sua rival “burguesa” conquistou uma “vitória de Pirro”, pois,
mesmo que seus casarões ainda persistam em manter-se de pé, conserva-

706
Histórias do Maranhão em Tempos de República

ULDFRPRVXDDQWLJDULYDOXPDUHODomRHVSHFtÀFDFRPRWHPSRDDXVrQFLD
Assim, o repertório alegórico da decadência expande-se em nova erupção.
São Luís e Alcântara, cidades-texto da decadência, cantadas em verso e
prosa na literatura regional, escrituras de um passado desaparecido em seu
fausto e esplendor, cidades-história que nos transportam alegoricamente
do presente ao passado e vice-versa, monumentos, ruínas, patrimônios da
humanidade. Por um efeito de “condensação”, se estabelecem “pontos de
À[DomRµ )OHWFKHUS QDVLPDJHQVGDGHFDGrQFLDSRQWRVTXH
em nosso caso, são melhor visualizados por meio da produção literária.
Selecionamos para análise o romance A noite sobre Alcântara, de Josué
Montello, narrativa de “condensação” dos imaginários sociais maranhen-
VHV5RPDQFHKLVWyULFRGH´À[DomRµPDVWDPEpPGH´LQVWLWXLomRµTXH
´VHPSUHVLJQLÀFDPDLVGRTXHOLWHUDOPHQWHGL]GL]DOJRGLIHUHQWHGRTXH
SDUHFHVLJQLÀFDUHVyUHYHODDOJXPDVFRLVDVVREUHRPXQGRDRSUHoRGH
HVFRQGHU RXWUDV WDQWDVµ :KLWH D S   5RPDQFH HSLWiÀR UHFKH-
ado de saudade, decadência e “expressão da vida”, constitutivo da saga
PDUDQKHQVHGRDXWRU>WDOVDJD²FRQFUHWL]DomRGRSURMHWROLWHUiULRGH UH
construção da identidade regional – compreende vários romances, dos
quais destacamos A décima noite (1959), Os degraus do paraíso (1965), Cais da
Sagração (1971), Os tambores de São Luís (1975), A noite sobre Alcântara (1978).
Este último foi apresentado como a “saga da aristocracia maranhense”,
FRQWUDSRVWD HFRPSOHPHQWDU j´VDJDGRQHJURµ HP´2VWDPERUHVµ @
Um ponto de partida possível para a nossa investigação são as palavras
de outro intelectual regionalista e tradicionalista, Gilberto Freyre, que, em
comentário ao romance A décima noite, se perguntou: “qual o atrativo prin-
cipal do novo livro do escritor maranhense?”. A resposta evidencia um cri-
tério de juízo estético fundamental ao escritor pernambucano – a literatura
enquanto “arte de expressão”, “expressão da vida” – critério pelo qual
combate em defesa da literatura regionalista. Vejamos, então, a resposta:

>RDWUDWLYRp@DHYRFDomRGHXP0DUDQKmRTXHMiTXDVHQmRH[LV-
te, por um maranhense que é também um raro artista literário; e que
guarda daquele Maranhão quase desfeito imagens de uma rica sugestão
poética. São essas imagens que enchem A Décima Noite de uma série
de ressurreições de tempos mortos, que vêm até um homem de hoje
FRPDOJXPDFRLVDGHQRVWiOJLFRGHVDXGRVRjVYH]HVDWpGHVHQWLPHQ-
tal, que só faz aumentar o seu encanto. (Freyre, 1962, p. 23)

707
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

O poder de “evocação”, poder mágico de invocar almas, espíritos e de-


P{QLRVGHFKDPDUjPHPyULDGHUHSURGX]LUQDLPDJLQDomRHQRHVStULWR
Poder divino de ressurreição, de (re)criar o mundo, poder imagético do ro-
mancista de “tocar a sensibilidade” do “homem de hoje”, através do des-
SHUWDUGH´VXJHVW}HVSRpWLFDVµ3RGHUFRQMXJDGRj´YLUWXGHGHQDUUDGRUµ
que constrói sua trama em uma dupla temporalidade, em que passado e
SUHVHQWH>GRVSHUVRQDJHQV@VHLQWHUSHQHWUDP )UH\UHS (VVH
MXt]R GH YDORU HVWpWLFR FXMRV SUHVVXSRVWRV UHVLGHP QD ÀORVRÀD LGHDOLVWD
alemã, pensa o ato de “compreensão” como “interpretação das manifesta-
ções da vida”, da “expressão” de seus “sentimentos” e suas “emoções”. O
poder de “evocação” tem a capacidade de superar a distância (temporal e
JHRJUiÀFD HQWUHRVKRPHQVDSDUWLUGRSRVWXODGRGHXPDLGHQWLGDGHIXQ-
damental entre todo e qualquer homem. Movimento de superação, que,
por sua vez, transforma o regional, o maranhense, em universal, através da
´HPSDWLDµHGD´LGHQWLÀFDomRµ 5LFRHXU6]RQGL 
Visto por esse ângulo, o projeto literário de Josué Montello adqui-
re contornos mais precisos. No depoimento pessoal com que se inicia o
romance, o escritor relata uma “travessia” para Alcântara, visita que lhe
forneceu o leitmotiv do livro, comentando que “tarde da noite, muitos
destes imponentes sobrados senhoriais, há tanto tempo fechados, miste-
riosamente se descerram. Como outrora, refulgem as luzes de seus salões
no retângulo das janelas sobre a rua”. Ao que acrescenta,

ÀTXHLDSHQVDUQHVVDVUHVVXUUHLo}HVQRWXUQDV/HQGD"5HDOLGDGH"(
DRVSRXFRVFRPHFHLDYHUTXHjOX]GRVRO$OFkQWDUDUHWURFHGLDQR
tempo, com o retinir das ferraduras nas pedras de seu calçamento,
o rolar das carruagens de portinholas brasonadas, as janelas que se
escancaravam sobre o passeio, e gente que vinha, e gente que ia, grave
colorida, nas suas roupas fora de moda, e que passava por mim sem
me olhar. (Montello, 1978, p. 7)

$WUDYpVGDUHÁH[mR LPDJLQDomR HIHWXDGD´jOX]GRVROµRURPDQFLVWD


vence o tempo e se transporta ao passado “vivo” de Alcântara, passado
que ressurgia (na “lenda” ou na “realidade”) somente “tarde da noite”,
enquanto a “claridade do novo dia” não chegava. O jogo de palavras com
RVVLJQLÀFDGRVPHWDIyULFRVGH´GLDµH´QRLWHµQmRpLQRFHQWHRDXWRURV
UHYHVWHGHWDODPELJXLGDGHTXHD´QRLWHµXVXDOPHQWHDVVRFLDGDjVLGHLDV
de morte e decadência, também pode ser “expressão de vida” e “ressur-
reição” (a mesma ambivalência vale para o “dia”). Em passagem marcada

708
Histórias do Maranhão em Tempos de República

pela morbidez e pela melancolia (com pitadas de grotesco alegórico), con-


frontando a sensibilidade e os sentidos do leitor, o mesmo jogo de ambi-
YDOrQFLDVUHDSDUHFHDFRQÀJXUDUDLGHLDGH´FLGDGHPRUWDµ

De repente, já longe, teve a sensação nítida de que ia andando pela


alameda de um cemitério. As casas fechadas eram sepulcros, e ali ja-
ziam condes, barões, viscondes, senadores do Império, deputados, co-
mendadores, sinhás-donas, sinhás-moças, soldados, mucamas, juízes,
vereadores, sacerdotes. Somente ele, assim desperto dentro da noite,
estaria vivo na cidade de mortos. E uma impressão instantânea de frio
gelou-lhe as mãos e os pés, com a idéia de que, também ele, ia per-
manecer em Alcântara para sempre, encerrado no mausoléu de seu
sobrado. (Montello, 1978, p. 245)

$OHJRULDFRPHPRUDWLYDGHXPDFLGDGHIDQWDVPDTXHjQRLWHpGRPLQD-
da por pesadelos, alucinações e assombrações (de escravos anônimos e de
pessoas “importantes”, a exemplo do Barão de Pindaré), A noite sobre Al-
cântarapRIHUHFLGRjOHLWXUDVRERVLJQRGDDPELJXLGDGHHGDDPELYDOrQFLD
O romance proporciona ao leitor a possibilidade de uma volta ao passado
que apaga a passagem destruidora e corrosiva do tempo sobre a cidade, e,
simultaneamente, coloca para o presente a necessidade de preservação das
ruínas verdes de Alcântara (patrimônio histórico). Num nível mais abstra-
to, projeta-se para o futuro o desejo de que efetivamente os “imponentes
sobrados senhoriais” descerrem suas “janelas sobre a rua”, num tempo
FtFOLFRGHYROWDj,GDGHGH2XURGR0DUDQKmR6DQWR$QW{QLRG·$OFkQWDUD
– cidade-texto da decadência, “cidade morta” renascida na literatura.
A estrutura narrativa cumpre um papel importante na concretização
do projeto literário do romancista, encontrando-se dividida em duas par-
tes – “A travessia” (depoimento do autor) e “Enquanto a noite não vem”
(o romance propriamente, subdividido em 5 partes). A ambiguidade ca-
racterística do romance pode ser observada na função das sete epígrafes
TXHFRUUHVSRQGHPDHVWDGLYLVmR(VWDVFXPSUHPRSDSHOGHHSLWiÀRVGH
Alcântara, e, na medida em que se apoiam em diversas representações so-
bre a cidade-ruína (de poetas, geógrafos e historiadores), têm o efeito de
“condensar” os imaginários sociais, ao mesmo tempo em que fornecem
diretrizes para pensar tanto a história da cidade quanto a estória do roman-
ce, evidenciando a duplicidade de intenções do gênero romance histórico.
9HMDPRVDOJXPDVGDVHStJUDIHVHSLWiÀRV

709
Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
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Eu careço de amar, viver careço


Nos montes do Brasil, no Maranhão
Dormir aos berros da arenosa praia
Da ruinosa Alcântara
(Souzândrade, Harpas selvagens)

Rainha da opulência destronada,


Tu tens por fausto – o mar;
por trono – o nada:
Grandezas que te restam do passado
(Agostinho Reis, Alcântara)

Adeus, Alcântara, com a tua água fresca e leve da Miritiua, os teus


cravos cheirosos, as tuas praias alvinitentes, a beleza dos teus luares,
a singeleza da tua vida, o teu povo amorável, as tuas moças esbeltas,
WULJXHLUDVGHROKRVOtTXLGRVÁRUHVHQWUHUXtQDVRHVSOHQGRUHDOWLYH]
do teu passado em contraste com o apagado e a humildade do teu
presente. (Antônio Lopes, Alcântara)

Numa linha de interpretação psicológica (vertente na qual Josué Mon-


WHOORpFODVVLÀFDGRSHODKLVWyULDGDOLWHUDWXUD RURPDQFHFRQWDDHVWyULDGR
desencontro amoroso entre dois personagens, o Major Natalino e Maria
2OtYLDDPERVÀOKRVGDDULVWRFUDFLDDOFDQWDUHQVH(OH´QHWRGH%DUmRÀOKR
de Visconde”, “voluntário e herói da Guerra do Paraguai”, republicano e
DEROLFLRQLVWD PRWLYRGHIUHTXHQWHVFRQÁLWRVFRPRSDLOLEHUDOGRSDUWLGR
EHPWHYL (OD´ÀOKDGH%DUmRµ´HGXFDGDQXP,QWHUQDWRHP3DULVµSR-
etisa (“Violeta de Alcântara”), “independente” (entrando em choque com
RFRQVHUYDGRULVPRVRFLDOORFDO SURIHVVRUDTXDQGRDIDPtOLDYDLjIDOrQFLD
O desencontro é motivado pela certeza de Natalino de que é estéril,
GDt VXD UHFXVD D FDVDUVH SRU QmR SRGHU WHU ÀOKRV FXPSULQGR D ´IXQomR
VRFLDOµGDIDPtOLD6RPHQWHDRÀQDODSDUHFHXPÀOKREDVWDUGRGH1DWDOL-
no com uma plebeia, acontecimento que leva-o a repensar toda sua vida.
A decadência de Alcântara projeta-se em todas as esferas, inscrevendo-se
mesmo nos corpos de seus habitantes/personagens: a esterilidade do Major
FRUUHVSRQGHVLPHWULFDPHQWHjTXHGDGHFDYDORVRIULGDSRU0DULD2OtYLDDFL-
GHQWHWUDXPiWLFRQRTXDOÀFRXDOHLMDGDUHWLUDQGRVHGRVFRQYtYLRVVRFLDLVH
tornando-se a solitária “prisioneira do sobrado”. Assim, por vias diferentes,
ambos são dominados pelo doloroso sentimento de ausência da maternida-
de/paternidade. Numa “cidade morta” é impossível gerar-se qualquer fruto.

710
Histórias do Maranhão em Tempos de República

A estrutura temporal da saga aristocrática divide-se em dois planos,


movendo-se entre o presente decadente e o passado de fausto, mas tam-
bém de inconsequência (simbolizada pelo episódio verídico da construção
dos dois “palácios do Imperador”, pelos partidos liberal e conservador,
esperando uma visita que Pedro II jamais realizou...). O presente transcorre
entre o Natal e o Ano Novo de 1900, época em que a vila já está “morta”,
nas vésperas do novo século, com todo o imaginário de renovação e pro-
gresso correspondente. Já o passado engloba o período entre a década de
1860 e a proclamação da República (1889), época do auge e posterior declí-
nio da cidade. Os dois planos são ligados por alguns artifícios narrativos: a
´PHPyULDµGH1DWDOLQR VHXÁX[RGHUHFRUGDo}HVHQTXDQWRVHSUHSDUDSDUD
ir embora) e o “diário íntimo” de Maria Olívia (apresentado como “real” e
em parte guardado no Instituto Histórico, o que lhe confere um sabor de
“fonte histórica”). Além disso, a narrativa constrói situações em que perso-
QDJHQVGHÀFomRFRQWUDFHQDPFRPSHUVRQDJHQVGDKLVWyULDORFDORTXHGi
oportunidade ao relato dos “acontecimentos históricos” da cidade.
$VVLPQRURPDQFHHVWmRFRPSOH[DPHQWHLQWHUOLJDGDVDÀFomRDPH-
mória e a história. Essa união é de fundamental importância no tocante
DRV´HIHLWRVFRQKHFLPHQWRµHDRVVLJQLÀFDGRVTXHDVDJDGH-RVXp0RQ-
tello visa produzir. Esta uma de suas contribuições particulares ao “de-
ver simbólico” de preservação, difusão e (re)construção da tradição e da
identidade do Maranhão: a formação de lugares da saudade, “lugares de
memória” (Nora, 1983). O texto urbano se expande, se desdobra e se
LQGLYLGXDOL]DQDQDUUDWLYDPRQWHOOLDQDFRPSRQGRXPD´FDUWRJUDÀDVHQ-
WLPHQWDOµGDFLGDGHFRORQLDODWUDYpVGDDVVRFLDomRtQWLPDGRVFHQiULRVj
“experiência de vida” dos personagens.

Alcântara resplandecia na claridade crepuscular. Por toda parte, a alga-


zarra dos pássaros. O pesado arfar das ondas esboroando-se na nesga
da praia. E uma viração constante a correr as ruas, as praças, os ca-
minhos, com uma poeira leve e translúcida dançando no ar. Por ali
tinham passado as cadeirinhas de pau-santo, forradas de seda, com
brasões bordados nas sanefas de veludo, levadas pelos ombros dos ne-
gros. Depois, as carruagens de luxo, com arreios de prata nas parelhas.
Agora era aquele deserto e aquele silêncio, aguardando o tanger dos
sinos pelas ave-marias. Entretanto, assim despovoada e quieta, nunca a
cidade parecera tão bela aos olhos de Natalino. Alcântara contemplava
o mar pelas janelas de seus mirantes, enquanto a mata densa, que do
outro lado a circundava, parecia vir avançando, a empunhar o penacho

711
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de guerra de suas palmeiras. Na orla da praia, ele sentou no mesmo


EDQFRRQGHVHKDYLDUHIXJLDGRjQRLWHGHSRLVGRHQFRQWURFRPRÀOKR
(DOLÀFRXGHSHUQDVFUX]DGDVDEHQJDODVREUHRVMRHOKRVYHQGRDOX]
se decompor sobre os telhados. (Montello, 1978, p. 307)

Esta cena do último capítulo, pouco antes do Major Natalino partir


(para sempre?) de Alcântara, marcada pela descrição plástica do crepúscu-
lo a descer sobre a cidade, pela aura de encanto e beleza a envolver o per-
sonagem, contém, entretanto, uma outra chave de interpretação: o tema
do confronto entre natureza e civilização. A reconquista da cidade pelas
IRUoDVQDWXUDLV2PDUHDÁRUHVWDDRVSRXFRVHQFXUUDODQGRDFLGDGHHQWR-
ando seus gritos de guerra, enviando seus primeiros batedores, enquanto
$OFkQWDUDWHQGRFXPSULGRVHXFLFORGHFLYLOL]DomR GDV´FDGHLULQKDVµjV
“carruagens”), resiste com suas últimas forças. A imagem do “penacho
de guerra das palmeiras” parece mesmo evocar um espírito invisível que
estivera adormecido – o espírito dos índios tupinambás, que ressurge para
reivindicar sua antiga Tapuitapera.
,PSRWHQWHHPPHLRDRFRQÁLWRGHGLPHQV}HVWLWkQLFDVQDGDPDLVUHVWDD
fazer ao velho aristocrata senão sentar-se e embevecer-se com tão fabuloso
espetáculo, enquanto interiormente encontra-se dilacerado por sentimen-
tos contraditórios de beleza e medo, contemplação e temor. Poder-se-ia até
DÀUPDUTXHRPHODQFyOLFRÀQDOVLQDOL]DSDUDRWRWDOIUDFDVVRGDVWHQWDWLYDV
de constituição de uma civilização a dois graus do Equador. As elites es-
cravistas maranhenses (por sua incapacidade) demonstraram o avesso da
FRQKHFLGDIyUPXODGH(XFOLGHVGD&XQKD´(VWDPRVFRQGHQDGRVjFLYLOL]D-
ção. Ou progredimos ou desaparecemos”. Agora, desse ponto de vista, só
resta prantear em verso e prosa a Idade de Ouro perdida, criando alegorias
da saudade. Num “crepúsculo de emoções”, “enquanto a noite não vem”,
evidencia-se o jogo de oposições que pontua todo o romance da decadência:
a simultaneidade dos contrastes entre o “dia” e a “noite”; a vida e a morte;
o burburinho e o silêncio; o movimento e o deserto (humano); a fertilidade
HDHVWHULOLGDGH0~OWLSODVVLJQLÀFDo}HVTXHSRGHPVHUFRQGHQVDGDVQXPD
ideia-imagem nuclear – as ruínas verdes de Alcântara.
'HVVHPRGRQRURPDQFHHSLWiÀRGD´DULVWRFUDFLDPDUDQKHQVHµUHSUH-
sentações se envolvem e se cruzam, construindo um percurso que compre-
HQGHRFRQÁLWRHQWUHRVKRPHQV DULVWRFUDWDVYVHVFUDYRV RFRQÁLWRHQWUH
FLGDGHV 6mR/XtVYV$OFkQWDUD HRFRQÁLWRQDWXUH]DYVFXOWXUD)LFomR
história e memória se entrelaçam no projeto literário de Josué Montello

712
Histórias do Maranhão em Tempos de República

SDUD FRQVWLWXLU FDPDGDV VREUHSRVWDV GH VLJQLÀFDomR VREUH D FLGDGH FXMR


texto pode ser lido em várias direções. Através da “evocação da vida”, o
intelectual regionalista constrói um suporte de mediação (o romance) no
qual é possível (re)criar todo um mundo de “glórias” e “tradições” passa-
das, possibilitando ao leitor viajar no/pelo tempo e reencontrar-se com sua
identidade, enquanto “maranhense”, “castiçamente maranhense”.

4. Alminta: o subconsciente da decadência

O tema da vingança da natureza contra o homem, todavia, pode ser


explorado em outras direções que não aquela tradicionalista e saudosista
de Josué Montello. Um caso atípico de desconstrução crítica da “ideologia
da decadência” na cena cultural estadual consiste no conto “Alminta” de
Ferreira Gullar – um pequeno exercício satírico e irônico com imagens e
representações já consagradas sobre a cidade morta.
Sendo uma “cidade inventada” pela história e pela literatura (que
adotam o ponto de vista da antiga aristocracia escravista), Santo Antô-
QLRG·$OFkQWDUDIRLUHFRQVWUXtGDSHORFRQWLVWDHVWUHDQWHDSDUWLUGHRXWURV
OXJDUHVHDWRUHV UHFDOFDGRVSHOD+LVWyULDRÀFLDO RVUDWRVHRVPRUFHJRV
Personagens obscuros dos quais sabe-se pouco, pois, como os negros,
somente são mencionados nos poucos momentos em que “riscam como
HVWUHODV FDGHQWHVµ D KLVWyULD GRV EUDQFRV $VVLP ´ÀOKD GR WUDEDOKR HV-
FUDYR>$OPLQWD@FUHVFHXHSURJUHGLXFRPRVXRUGRVQHJURVDWpTXHXP
GLDHQWUHJXHXQLFDPHQWHjTXHOHVTXHVHGL]LDPVHXVVHQKRUHVFRPHoRX
a morrer. E está morta agora” (Gullar, 1997, p. 13). O “golpe fatal” da
abolição anunciou a debandada geral.

Na mesma noite em que os negros, bêbados de alegria e de álcool,


festejavam a liberdade nas ruas de Alminta, os senhores brancos, car-
regando eles mesmos, trôpegos, seus pesados baús cheios de roupas
ÀQDVSUDWDULDVHFULVWDLVWRPDUDPRVEDUFRVDYHODHDWUDYHVVDUDPD
baía. Pela madrugada, os negros saquearam as residências e violenta-
ram mulheres brancas, retardatárias; puseram fogo na cadeia pública,
destruíram o pelourinho e internaram-se no mato. Ninguém mais sou-
be deles. Assim foi que, na mesma noite, Alminta foi abandonada pe-
los senhores de escravos e pelos escravos. A história dos ratos começa
aí, onde acaba a dos homens. (Gullar, 1997, p. 15-16)

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Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

O conto retoma as teses tradicionais apenas para desmontá-las no mo-


mento seguinte, evidenciando os seus limites e contradições. Na cidade,
ainda viveriam dois dementes (um branco e um negro) e famílias de pes-
cadores. Viveriam realmente em Alminta? Não, porque “os pescadores, de
fato, não moram em Alminta, mas na beira da praia... como se ignorassem
a defunta cidade, hoje pátria de bichos imundos, povoada de fantasmas”.
Não, pois estes personagens infames “vivem voltados para o mar, para o
presente, com seu peso real de sal e sol. Eles ignoram Alminta, mesmo
como passado”. A cidade só existiria, dessa forma, num (quase) não-lugar,
´QRSDSHOGDVPRQRJUDÀDVTXHMiQLQJXpPSHJDSDUDOHUµ8PDH[LVWrQ-
cia precária a partir de falas sem sentido, mal decoradas para responder a
HVWUDQKRVKRPHQV´FRPPiTXLQDIRWRJUiÀFDDWLUDFRORµTXHDSDUHFHP
“perguntando coisas estranhas” (Gullar, 1997, p. 14). Um lugar de me-
PyULDWHFLGRQRVDGHXVHVHHSLWiÀRVGDOLWHUDWXUDHGDKLVWyULDFRPVHXV
textos bolorentos, insossos e gélidos, imersos em vãs tentativas de revi-
vência da Idade de Ouro. Cidade-constructo de tradicionalistas, de olhos
voltados para a contemplação (e não para o horror) do passado, sempre a
lamentar a decadência.
Nas igrejas vazias, “as imagens sujas de excremento de morcego” re-
montam ao tempo do esplendor provinciano. Pois, “Alminta viveu um
dia”, com suas jovens brancas passeando os últimos vestidos de Paris, o
sino chamando para a missa, o rolar das carruagens de portinholas bra-
VRQDGDV ÁRUHV SHUIXPDQGR DV UXDV H JHQWH TXH YLQKD H JHQWH TXH LD
grave colorida, nas suas roupas fora de moda. Contudo, interrompendo o
tom alegre e idílico da narrativa, “sob o assoalho, no forro das casas, nos
porões onde os negros dormiam, os ratos e morcegos espreitavam”. Da
HVFXULGmR VXUJHP RV SHULJRV H DPHDoDV j FLYLOL]DomR EUDQFD 'DV WUHYDV
emerge o “subconsciente das cidades”, os seus não-personagens: o mato,
os parasitas, o penacho de guerra das palmeiras, os dementes, os negros,
os pescadores (Gullar, 1997, p. 13-14).
)HUUHLUD *XOODU HODERUD XPD DOHJRULD jV DYHVVDV GR VXSRVWR FRQÁLWR
natureza vs. cultura, produzindo uma paródia do poder mágico de “evoca-
ção” e de “ressurreição” de mundos perdidos. Utilizando-se de estratégias
narrativas consagradas na produção intelectual local, o autor as desloca,
corrompendo por dentro (através da ironia) a presumida seriedade e rele-
vância desses discursos. Assim, as “controvérsias” e “polêmicas” entre os
historiadores (um rol formado por Arnaldo Tõi-bi, Gyl Berta, El Mané,
O Tô Lará, Gon Dó e Burro), envolvendo o nome, a fundação e a origem

714
Histórias do Maranhão em Tempos de República

dos povoadores da cidade: “Vieram do norte? do sul? do centro? do oeste?


do leste? do centro-oeste?” (Gullar, 1997, p. 13).
1XPURGDSpFRQYRFDVHRRS~VFXOR´)XQGDPHQWRVJHRJUiÀFRVHKLV-
tóricos da Província de Alminta” do general Carlos Studart Filho, lançado
SHOD´(GLWRUD;D[DGRµ QDYHUGDGH´)XQGDPHQWRVJHRJUiÀFRVHKLVWyUL-
cos do Estado do Maranhão e Grão-Pará”, da Biblioteca do Exército), um
“livro proibido” que “contava as intimidades” e a “riqueza passional” da
elite branca (e não a tradicional história política e administrativa!): lutas de
famílias, homicídios por questão de terras, traições por herança, adultérios,
desfalques, trapaças políticas, amores sórdidos, paixões delirantes. O sub-
PXQGRUHFDOFDGRGDKLVWyULDRÀFLDOHFRPHPRUDWLYDYHPjWRQDQDVHVWyULDV
da virtuosa esposa do governador-geral e seu viril amante escravo ou da

linda menina branca, que tinha tara por negros e que foi várias vezes
surpreendida em plena felação, ou em sua própria cama deixando-se
possuir das maneiras mais extravagantes. Morreu estrangulada por um
escravo da fazenda, no transporte do gozo. (Gullar, 1997, p. 14-15)

Momentos em que a paródia assume o tom do escracho e da chalaça


para representar as virtualidades de outros textos e leituras da cidade.
O núcleo urbano “mais polido”, “mais faustoso” e “mais aristocráti-
FRµGDGLVWDQWHSURYtQFLDWUDQVÀJXUDVHHP´PLQLDWXUDGDFDSLWDOGR,PSp-
rio”, com uma elite escravocrata ávida por medalhas e títulos de nobreza,
ciosa de sua vaidade e orgulho (como no episódio da construção do palá-
FLRSDUDDQmRYLVLWDGH'3HGUR,, 8PDFXOWXUDWHDWUDOPHQWHVRÀVWLFDGD
representada por uma elite que “parlava” le français nas recepções, festas e
MDQWDUHVHGXFDYDVXDVÀOKDVHPLQWHUQDWRVQD(XURSD HRVÀOKRVGHQWUHDV
pernas das escravas); e pesquisava árvores genealógicas em busca de bra-
sões, escudos e armas, visando uma nobilitação forjada. Por meio do riso,
evidencia-se o fundo falso e a impostura do processo de “civilização dos
costumes” que caracterizaria a Idade de Ouro tropical, processo reduzido
metonimicamente pelo contista a uma imagem-símbolo:

A preocupação com a origem nobre alcançava mesmo os detalhes


mais íntimos da vida cotidiana, haja vista o urinol de louça, conservado
no Museu Imperial, a única relíquia subsistente de Alminta. Trata-se
GHXPREMHWRÀQDPHQWHWUDEDOKDGRSRUPmRVGHDUWLVWDHXURSHXFRP
as armas do Império em relevo e o escudo da família em lápis-lazúli e
ouro. A propósito dele, escreveu Gyl Berta, o célebre historiador: “É a

715
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Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

própria alma de Alminta – a sua história, os seus sonhos, o seu requin-


te – que neste objeto se concretizou” (Cidades e homens, Editora Anil,
Alcântara, 1930).(Gullar, 1997, p. 16)

Rico, fétido e podre urinol de louça – inusitada associação de obra de


arte e depósito de dejetos, artefato-síntese da “aristocracia” alcantarense/
almintense. Urinol que, por sua vez, “evoca” outra estória do anedotário
HVWDGXDOHQYROYHQGRDFRQWURYHUVDÀJXUDGH$QD-DQVHQHRVSHQLFRVFRP
sua efígie no fundo, mandados fazer em Portugal por um seu adversário
político. Nada mais “maranhense”, “castiçamente maranhense”. A des-
construção paródica do discurso da decadência desestabiliza e confunde
RV´SRQWRVGHÀ[DomRµGRVLPDJLQiULRVVRFLDLVVREUHR0DUDQKmRRVTXDLV
HQWUDPHPFXUWRFLUFXLWRFRPRDÁRUDUGHVHX´VXEFRQVFLHQWHµFRPR
GHVÀOHGHLQIDPHVHUHSXOVLYRVSHUVRQDJHQVGHVDOHVROFRPRQDUUDUGH
sórdidas (des)venturas pessoais – processo recalcado por uma cultura do
simulacro, onde as fantasmagorias da tradição e da decadência não podem
ser levadas demasiadamente a sério...

Considerações finais

Em publicação recente, a historiadora Maria de Lourdes Lauande La-


croix, ao questionar a ilusória fundação gaulesa da capital timbira, analisa esta
IyUPXODPtWLFDHPVXDUHODomRFRPDHPHUJrQFLD HPÀQVGRVpFXOR;,; 
da “ideologia da singularidade”, forjada pelas elites locais durante a crise do
sistema agroexportador escravista. Tal “ideologia do orgulho” apoiar-se-ia na
(falsa) “consciência de que o homem maranhense gozava da virtude da sabe-
doria, da excelência e quase exclusividade no panorama cultural brasileiro”,
qualidades expressas sobremaneira na “cultura vernacular”, que primaria pela
“pureza, correção e elegância da linguagem” (Lacroix, 2000, p. 61).
A “ideia de singularidade da província” (pedra angular dos processos
de constituição dos imaginários sociais sobre a identidade regional) teria
surgido, portanto, na “fase do marasmo”, quando:

um sentimento saudosista dos bons tempos resultou na construção


de uma aura grega no homem e, em especial, em torno dos intelec-
tuais que viveram naquela sociedade, considerada também ilustrada e
requintada. Essa elaboração serviu como um alento, mecanismo esse
que minimizou a postura paralisante da decadência, passando-se a vi-
ver das lembranças de um “glorioso” passado. Ainda hoje, diz-se que
o Maranhão se tornou “a terra do já teve” e do “já foi”... Para acentuar

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Histórias do Maranhão em Tempos de República

HVVHVXSRVWRDWULEXWR>LQWHOHFWXDO@DVRFLHGDGHDSRQWDDEUHYHHIUiJLO
passagem francesa por nossas plagas como o fator diferençador de
uma identidade singular, apesar da evidente lusitanidade de nossas ori-
gens e tradições. (Lacroix, 2000, p. 74-5)

São Luís, cidade do Senhor de La Ravardière – cidade-texto da opu-


OrQFLD SHUGLGD GRV FDVDU}HV FRORQLDLV FRP VXDV VDODV ´VRÀVWLFDGDPHQWH
decoradas numa imitação aos salões da nobreza francesa”, seus aparado-
res vergados “ao peso das iguarias, dos vinhos, dos cristais e porcelanas”
(Lacroix, 2000, p.54). Sobrados que abrigariam uma aristocracia letrada e
DÀQDGDFRPD~OWLPDPRGDGH3DULVTXHUQRVFRVWXPHVYHVWXiULRHDOLPHQ-
tação, quer na literatura e nas artes, où tout le monde “parlava” le français, aussi.
8UEHDXVHQWHHGLVWDQWHGRVÁX[RVWHPSRUDLVHGRVSURFHVVRVGDPR-
dernidade. Cidade-ruína, miticamente greco-gaulesa, em cujo percurso o
visitante vê-se “transportado insensivelmente para os séculos coloniais”.
Patrimônio da humanidade, distinta, a priori, porque “a única capital bra-
sileira que não nasceu lusitana”. Cidade que já foi, por isso, também, uma
FLGDGHPRUWD FXMRVXEFRQVFLHQWHSRGHFRQWXGRDÁRUDUVRPEULRGDVWUH-
YDVRXGRVJXHWRVHSDODÀWDVGD-DPDLFDEUDVLOHLUD 
A análise das diferentes escrituras urbanas permite evidenciar, por
conseguinte, a transformação das noções de tradição e de decadência em
SDUDGLJPDVUHSUHVHQWDo}HVLQVWLWXLQWHV>HLQVWLWXtGDV@GRVLPDJLQiULRVVR-
FLDLV VREUH R 0DUDQKmR (QÀP XP PDJPD GH VLJQLÀFDo}HV UHSHUWyULR
de temas e ideias, a fornecer o referencial imagético e discursivo a partir
do qual se fala, se escreve e se visualiza a “terra das palmeiras onde canta
o sabiá”. Ideias-imagem instrumentalizadas no campo político, nas ciên-
cias e nas artes segundo os mais variados interesses: quer tecendo a “ex-
cepcionalidade” ou a “singularidade” do maranhense, quer reivindicando
XPDIXQGDomRIUDQFHVDG·$WKHQDVTXHUIDEULFDQGROXJDUHVGHPHPyULD
ou seja, conformando uma rede discursiva que sustenta e suscita as mais
diversas e contraditórias práticas sociais.
Relíquias, urinóis e fragmentos reunidos e manipulados para compor
toadas e sátiras; para (re)compor o verso e a prosa citadina (evocando seus
fantasmas, seu não-ser); para canalizar sonhos e esperanças em torno de
>YD]LRV@SURMHWRVGHUHVVXUUHLomRRXUHQDVFLPHQWRGR0DUDQKmRHPGH-
lírios e frenesis de modernização; ou ainda, para (re)escrever identidades
políticas, a exemplo das evanescentes lutas da Campanha de Libertação (a
greve de 1951), que forjou em sangue e fogo a imagética da Ilha Rebelde:

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Antonio Evaldo Almeida Barros | Cidinalva Silva Camara Neris | Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
Viviane de Oliveira Barbosa | Tatiane da Silva Sales | Wheriston Silva Neris (Orgs.)

O entusiasmo da massa popular repetiu durante os 15 dias em que


se manteve em greve, na “Praça da Liberdade”, os comícios cívicos...
na mais plena demonstração de que o Maranhão é mesmo a Atenas do
Brasil, pelos seus talentos e pelo espíritoespartanoGRVVHXVEUDYRVÀOKRV
(O Combate, 14/03/1951, p. 1)

Fronteiras helênicas sempre mutáveis, porque dessa instabilidade e


volubilidade das palavras e representações se alimentaram sempre as (re)
construções da identidade do Maranhão, com suas cidades mortas, assom-
bradas e sangradas por indestrutíveis e inefáveis ruínas verdes.

E que melhor se vê uma cidade / quando – como Alcântara – / to-


dos os habitantes se foram / e nada resta deles (sequer / um espelho
de aparador num daqueles / aposentos sem teto) – se não / entre as
ruínas / a persistente certeza de que / naquele chão / onde agora cres-
cem carrapichos / eles efetivamente dançaram / (e quase se ouvem
vozes / e gargalhadas / que se acendem e apagam nas dobras da brisa).
(Poema Sujo, Ferreira Gullar)

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