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A fé como suspensão da ética – O mito de Abraão e Isaac

segundo Søren Kierkegaard e José Saramago (por Eduardo


Carli de Moraes)

Caravaggio (1571-1610)
Com a faca afiada colada a seu pescoço, prestes a ser degolado, o que passava pela mente do
pequeno Isaac? Com o coração apavorado, golpeando com violência as paredes do tórax, que tipo de
opinião sobre a fé e sobre a paternidade podem ter ocorrido ao garoto ao perceber-se na posição
de ovelha-de-sacrifício? Eis algumas questões intrigantes que me ocorrem ao fim da leitura
de Temor e Tremor, de Søren Kierkegaard (1813-1855), obra de tom altamente interrogativo, mas
que pode ser complementada pelo leitor com uma multiplicação de novos pontos de interrogação.
Na pintura de Caravaggio, que retrata o momento em que Abraão vai sacrificar Isaac mas é impedido por uma
intervenção angélica, enxergo uma cena de tortura. Na pintura, foquemos o olhar sobre o rosto de Isaac,
contorcido pela angústia extrema, oprimido pela violência das mãos viris de Abraão: o que nos contam estes
olhos infantis aterrorizados pela lâmina da faca ameaçadora? Diante deste quadro, é quase como se desse
para ouvir o grito de Isaac, um berro quase Munchiano, reação visceral de uma criança incapaz de
compreender o desatino do mundo encarnado na loucura de seu pai. Eu diria, Camusianamente, que Isaac
está aí representado em pleno confronto com o Absurdo. Pois Abraão encarna nesta cena o famoso creio pois
é absurdo.
Edvard Munch, “O Grito”

No prelúdio de seu livro, Kierkegaard pinta com palavras o retrato de


Isaac abraçado aos joelhos de Abraão, caído aos pés do pai,
implorando por sua jovem vida. Mas é algo bem diferente da
misericórdia ou da ternura o que o filho descobre na atitude, a um só
tempo intransigente e resignada, de Abraão-da-faca-na-mão. Este
é um dos momentos cruciais desta narrativa mítica que nos mostra
uma figura que, embriagada pela fé, acaba por suspender a ética: o
velho está prestes a cometer um crime hediondo, o assassinato de
seu próprio filho, pois acredita que os céus o ordenaram. A fé é uma
das forças psíquicas capazes de varrer do quadro as mais básicas das
atitudes éticas: não matar cessa de valer quando o crente acredita-se
requisitado por seu deus a assassinar o ímpio ou a sacrificar a vítima
apontada pelo dedo invisível do divino.
Diante de Abraão, não há como evitar a questão: estamos diante de um
santo ou de um louco? Eis um herói a ser celebrado, ou então um psicopata
perigoso digno de ser metido no hospício? Devemos louvar esta heróica
demonstração de obediência à vontade divina, ou lamentar a psicopatologia que levou este demente senil às
beiras de cometer um ato grotesco? Devemos imitar o exemplo desta obediência pia e estrita aos ditames de
um deus suposto, ou devemos ler esta narrativa como um símbolo dos perigos que há nestes vícios (humanos,
demasiado humanos!) da idolatria e do fanatismo?

Nossa tendência é lidar com a história de Abraão e Isaac, narrada no Gênesis, com a tranquilidade daqueles
que já conhecem seu “final feliz”: sabemos que tudo não passou de um teste, de um julgamento, uma espécie
de “trote” divino. Ufa, tudo não passou de um blefe! Sabemos que Abraão não consuma seu ato sacrificial
sangrento e que só pode ser acusado de um quase-assassinato. Além do mais, a tradição judaico-cristã inteira
posteriormente tratou de desenhar auras de santidade sobre a cabeça do “Pai da Fé”: somos todos
convidados a imitá-lo como modelo, já que nada apraz mais ao deus único, criador ex nihilo de tudo, do que
uma criatura que sacrifica a autonomia de seu intelecto para tornar-se plenamente obediente aos ditames do
céu…
O que mais me emociona no prelúdio de Temor e Tremor é o modo como Kierkegaard pinta a perspectiva da
vítima: voltando para casa depois do quase-sacrifício, pai e filho, rumando ao reencontro com a mãe Sarah,
estão caminhando lado a lado, mas separados por um intransponível abismo. Isaac, escreve Kierkegaard,
“tinha perdido a fé.” [1] Para Isaac, não houve final feliz coisa nenhuma, apenas a vivência traumática de uma
tortura absurda; para Isaac, o episódio com certeza fez com que se rompesse a confiança que um filho
deposita na boa vontade de seu pai, e é de se suspeitar que nunca mais, depois daquilo, Isaac conseguirá
permanecer na presença de Abraão sem o temor e tremor que sente alguém diante de um psicopata perigoso.
Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

Temor e Tremor, é claro, não é um livro sobre a perda da fé, mas muito mais um tratado psicológico
que se debruça sobre Abraão, descrito como o “cavaleiro da fé” [the knight of faith, na tradução
inglesa], tão crente que está disposto a extinguir a vida do próprio filho amado se Deus assim
ordenar. Kierkegaard escreve mais como poeta do que como pregador, questionando mais do que
dogmatizando, ainda que no geral o tom seja de elogio e admiração à figura de Abraão. Tanto é
assim que o segundo capítulo é um panegírico onde o leitor é convidado a empatizar com o sofrer
de Abraão, que tanto havia ansiado por um filho, que conquistou somente em sua velhice, e que
descobre-se ameaçado de perder o rebento que ama tão intensamente pois a divindade exige seu
sacrifício.
Alguns dos trechos mais belos do livro são aqueles em que Kierkegaard, ainda que timidamente, ousa
questionar os supostos ditames do criador, perguntando: que diabos de deus é este capaz de exigir que um
homem, já com os cabelos brancos, aniquile aquilo que mais ama neste mundo, seu filho único? “Não há
compaixão alguma pelo venerável idoso, nenhuma pela criança inocente?” [2] Interrogações como estas,
porém, são raras em Temor e Tremor, obra que não chega a questionar seriamente a existência deste deus
que Abraão supõe como ordenante do sacrifício. Leitores ateus, agnósticos e céticos podem perguntar-se: e se
tudo não passa de um delírio subjetivo de Abraão? E se a “voz de Deus” não for nada além de uma ilusão
psíquica que acomete o cérebro senil do patriarca? Se Deus não existe, há qualquer possibilidade de sustentar
que Abraão agiu de modo “heróico”? Ou ele foi nada mais do que um fanático que só não tornou-se assassino
por um triz?
Na tragédia grega, podemos encontrar um caso semelhante ao de Abraão e Isaac: em Ifigênia em
Áulis, Eurípides narra as ocorrências que precederam o início da Guerra de Tróia. Os exércitos chefiados por
Agamemnon já estão a postos, preparados, ansiosos por embarcar para a carnificina. Mas as intempéries
impedem as naus de navegar a contento rumo às terras de Príamo, onde Helena encontra-se após ser
sequestrada (ou seduzida?) por Páris. Apesar das diferenças consideráveis entre o politeísmo grego e o
monoteísmo judaico-cristão, há um certo paralelismo: tanto Ifigênia quanto Isaac são escolhidos como vítimas
sacrificiais pois acredita-se que assim ordena o divino. A maior diferença entre Agamemnon e Abraão não é
tanto entre um crente politeísta e um crente monoteísta, mas entre um homicida consumado e um quase-
homicida. Ifigênia, a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra, não tem a
sorte de Isaac: ela não escapa da faca. É um episódio que o poeta-filósofo Lucrécio descreve, em seu Da
Natureza, com o horror que sente o homem lúcido diante das atrocidades cometidas por mentes transtornadas
pela superstição:

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia


“Na maior parte das vezes foi exatamente a religião que produziu feitos criminosos e
ímpios. Foi assim que em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam
vergonhosamente com o sangue de Ifigênia o altar… E em nada podia valer à infeliz,
em tal momento, ter sido a primeira a dar ao rei o nome de pai. Foi levantada pelas
mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse,
cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para,
criminosamente virgem, no tempo em que deveria casar-se, sucumbir, triste vítima
imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. A tão grandes
males pode a religião persuadir.” LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. [3]

A tragédia grega mostra o ato de Agamemnon em todo seu horror, como violação de um preceito ético
fundamental, e as consequências dele para este família serão desastrosas: como narrado na trilogia de
Ésquilo,Oréstia, a mãe de Ifigênia, Clitemnestra, transtornada pelo luto e pela ira, tratará de vingar-se de seu
marido, o assassino da primogênita do casal. Assim que ele retornar de Tróia, triunfante na guerra porém
esquecido de que deixou em casa alguém que o odeia intensamente, Agamemnon será por sua vez
trespassado pelo punhal da vendeta. O ciclo de violências multiplica-se: a vingança de Clitemnestra contra
Agamemnon alimenta a fúria de Orestes, que encaminha-se então para o matricídio… O theatrum
mundi inunda-se de sangue.
Em Temor e Tremor, Kierkegaard não ousa penetrar tão fundo na sondagem das relações entre fé e violência:
no livro, quase não aparecem palavras como “superstição” e “fanatismo”, tão aptas a descrever o tipo de
demônio que traz Abraão sob seu domínio. Em sua Expectoração Preliminar, porém, faz esta interessante
reflexão: alguém que ouvisse, na missa de Domingo, um padre a narrar o mito de Abraão e Isaac, poderia sair
dali convencido de que não há melhor prova de amor à Deus do que sacrificar na terra a pessoa que mais
ama. Impelido pelo sermão, levantaria o punhal contra o próprio filho e depois diria à polícia, enquanto é
conduzido ao presídio ou ao hospício, que agiu sob a influência da edificante parábola que ouviu na igreja. Se
a imitação de Abraão se transformasse em algo epidêmico, em que mundo viveríamos? Não é perigoso
acreditar que a fé tem o direito de suspender a ética? Que sociedade resulta da disseminação da crença em
uma divindade transcendente faminta por sacrifícios e imolações?
O que Kierkegaard destaca de modo recorrente é o paradoxo que se manifesta no mito de Abraão e Isaac, em
que Deus exige o crime e atentação consiste em agir eticamente. É nesse contexto que Kierkegaard mobiliza o
conceito de absurdo, tão caro aos pensadores existencialistas, especialmente Albert Camus: há um paradoxo
incontornável em um deus que exige do devoto que corte a goela do filho que adora, já que então revela-se
como um deus anti-ético. Ora, se este deus é compreendido como tendo como atributos a justiça, a bondade e
o amor, como compreender que exija de Abraão algo de tão absurdo quanto a violação explícita do preceito
evangélico não matarás? Um deus que exige beber o sangue das crianças será mesmo um deus autêntico ou
somente um demônio disfarçado?
A multiplicação de tais dúvidas teológicas só nos conduz ao exacerbamento da sensação de absurdo e de
paradoxo – e talvez não haja saída deste labirinto a não ser pela via do ateísmo: um deus malvado é uma
contradição, um paradoxo, uma impossibilidade, e desta aporia só escapamos ao concluir que este deus das
carnificinas nunca existiu fora das imaginações humanas. É um argumento sintetizado belamente por José
Saramago, em artigo publicado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001: “Os deuses, acho eu, só
existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou.” [4]
Em um de seus últimos romances, o autor português faz seu Caim sintetizar uma posição atéia, de rebeldia
contra o deus bíblico que é tão frequentemente um genocida, praticante do assassinato em massa pela via dos
dilúvios e das hecatombes, deixando vivos só um punhado de eleitos:
“A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse
presente no acto”, sustenta Caim, que quando confrontado com a tese de que “Deus está em todo o lado”,
replica: “Uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para o condenar sem remissão.”
[5] Se evoco aqui a obra literária e o pensamento anti-teísta do Prêmio Nobel de Literatura lusitano é para
melhor ilustrar o “tremendo paradoxo da fé” que Kierkegaard explora em Temor e Tremor: como é possível a
transformação do homicídio em um ato sacro? Só por ser cometido com fé, o homicídio deixa de ser um
pecado para tornar-se uma prática santa que agrada aos céus?
A ética, sustenta Kierkegaard, é universal, aplica-se a todo mundo,
o tempo todo: não há época histórica ou localização geográfica
onde não seja uma atrocidade, do ponto de vista ético, o homicídio
dos inocentes – como aquele que perpetra Medéia contra suas
crianças. Em outras palavras: a ética prescreve, como
mandamento universal, o dever maternal e paternal que proíbe
tratar os filhos como sacrificáveis. O problema, portanto, está na
reputação cheia de honra e glória de que goza Abraão, como pai
da fé e patriarca do monoteísmo, quando o mesmo Abraão é um
violador da ética, já que ergueu a lâmina para assassinar Isaac. Eis
o paradoxo e o absurdo: a divindade demanda a suspensão da
ética; deus é o mandante de um crime; a fé é o heroísmo maluco e
a loucura sagrada através do qual alguém peca contra o universal.

Se Abraão simboliza tão bem o que significa ter fé, é pois leva ao
extremo a fidelidade cega e a obediência absoluta à divindade (ou
ao que supõe ser a “vontade do deus”). Sua submissão é tão total
que ele está pronto a obedecer a um deus que ordena
assassinatos ao invés de rebelar-se contra ordens que ofendem
radicalmente a consciência moral. Recusar-se a cumprir o sacrifício
do primogênito seria uma atitude bastante razoável de qualquer pai
apegado ao filho de sua carne e motivado pela chama do amor
paternal. Abraão só tornou-se tão célebre por seu extremismo, por
sua intransigência, por esta extraordinária teimosia na fé e que
merece ser chamada, apesar de Kierkegaard não fazê-lo jamais, de fanatismo.
A absurdidade do mito consiste nisto: a divindade, que se presume o princípio criador do Bom, do Belo e do
Justo, exige do homem-de-fé que cometa um ato hediondo, horrendo e injusto. Se este deus é amor, como é
possível que exija, como prova de fé, um ato que é transgressão obscena do amor? A tentação, para Abraão, é
justamente a ética: respeitar o dever universal, que exige de um pai a proteção e o cuidado para com seu(s)
filho(s), equivale neste caso à desrespeitar o mandamento divino. O que falta em Temor e Tremor é justamente
um questionamento mais amplo e sistemático da possibilidade de que Abraão esteja alucinando, que tudo não
passe de um delírio senil, que o absurdo está na cabeça de um velho e não no ser das coisas. Para ser bem
rude com a obra de Kierkegaard, eu perguntaria: para que gastar tanta palavra de interpretação teológica
deste mito, se em algumas páginas seria possível argumentar que este deus em que Abraão crê não passa de
um déspota imaginário fabricado pela fantasia de um velho crédulo?
É uma interrogação inescapável: aquilo que se chama de “amor à deus” é realmente a maior de todas as
virtudes e deve ser colocado acima de todo e qualquer dever ético? O Novo Testamento fornece-nos também
razões de sobra para desconfiar que um paradoxo pernicioso, prenhe de consequências sangrentas, está
alojado e embrenhado na ideologia religiosa de nossa tradição judaico-cristã: em Lucas (14: 26 e 33), Jesus de
Nazaré exige: “Se alguém vier a mim, e não odiar a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e
ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. […] Qualquer de vós, que não renuncia a tudo
quanto tem, não pode ser meu discípulo.” [6]

É essa a religião que querem nos vender como amorável e caridosa? É este o profeta que devemos honrar de
joelhos nas igrejas? Kierkegaard viu bem que estamos lidando com um conceito de deus que requer um amor
absoluto que se expressa através da renúncia a amar pessoas de carne-e-osso. Eis um deus que exige ser
amado mais que tudo, na exclusão de tudo, e que como prova de fé demanda que o amor entre pai-e-filho seja
aniquilado em um altar. A um deus destes eu me recuso a tirar meu chapéu. Não acho que mereça minha
devoção. E mais: bateria boca com Kierkegaard, que quer pintar auréolas sobre Abraão e dizer que a fé é a
mais elevada das paixões humanas. Aquele que é capaz de levantar a lâmina fatal contra o próprio filho não
me parece um herói a ser celebrado, mas um caso clínico; não um adorável modelo de conduta mas um
nocivo psicopata; não a ilustração dos caminhos que o sábio deve seguir mas o contra-exemplo que nos conta
daquilo que faremos bem em evitar: o fanatismo, a obediência cega, a fé que dá licença à suspensão da ética
e ao cortejo das atrocidades.
“…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior
simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa
que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano
seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã
seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a
lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe
indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no
altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre
rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o
braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar
o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro
e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo
que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os
povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” [7]

Um dos méritos maiores da obra de Saramago está na coragem quase punk em que ele escancara os
absurdos da fé com sua sagaz mordacidade atéia, desfazendo alguns dos mais arraigados preconceitos ainda
hegemônicos em nosso mundo, como por exemplo a ideia de que crimes obscenos e horrendos são realizados
por gente “sem fé no coração”. Tais comentários ateofóbicos que pretendem explicar os ímpetos criminosos a
partir de um déficit de fé em Deus caem por terra quando atentamos para o fato de que a fé é com frequência
a justificativa e a motivação para atos criminosos – e não somente no âmbito mítico, como vimos nos casos de
Abraão e Agamemnon.
Para retornar ao tema do artigo saramaguiano publicado logo após o 11 de Setembro de 2001, é explícito
neste caso o quanto os atentados terroristas foram realizados por homens cheios de fé, e que se imolaram nos
ataques camicase na esperança de que Alá os aplaudiria e já preparava para eles um paraíso de delícias e
privilégios no Além. De modo bastante similar, a resposta militar dos EUA e seus aliados, na invasão do
Afeganistão e do Iraque, baseou-se largamente em justificativas teológicas, com o uso e abuso da noção
maniqueísta de um Eixo do Mal (islâmico) a ser derrotado pelas forças do Bem (cristãs) – como se os
bombardeios genocidas e as torturas institucionalizadas nas prisões (como Abu Ghraib e Guantánamo) fossem
suspensões da ética completamente válidas, já que seus praticantes estavam a serviço do Deus verdadeiro
(além de favorecendo com suas bombas e matanças um outro deus… a Mão Invisível do Mercado, que não
funciona jamais sem seu aliado, o punho-de-ferro das violências coercitivas e da pilhagem do petróleo
alheio…). “Se Deus não existisse”, sugere um personagem de Dostoiévski, “tudo seria permitido”; ora, a
experiência histórica nos conduz a pensar, ao contrário, que na verdade são aqueles para quem Deus existe
indubitavelmente, os cavaleiros da fé que jamais duvida de si, que agem na base do “tudo é permitido”.

Em suma: a versão oficial do mito de Abraão e Isaac nos conta de uma intervenção divina que, na hora H (a
hora do Homicídio), salva Isaac da faca, salvando ao mesmo tempo Abraão de transformar-se em assassino e
salvando o deus em que ele crê de virar um mandante de um crime hediondo. Para encerrar este texto, repleto
de blasfêmias sadias e heresias essenciais, eu sugeriria uma interpretação mais realista do mito: não foi uma
angélica aparição o que impediu Abraão de consumar o sacrifício, mas um lampejo súbito de bom senso, um
clarão salvífico de dúvida, uma hesitação providencial de último instante, um insight da absurdidade daquilo
que ele estava prestes a cometer. Se a fé de Abraão tivesse sido de fato imperturbável, irremovível,
intransigente, Isaac teria sido transformado de criança em cadáver. No último instante, porém, Abraão deve ter
duvidado de deus e de si: e se eu estiver louco? E se meu deus não for senão delírio? E se eu tiver
compreendido mal seus ditames? E se não houver ninguém nos céus mas apenas um desarranjo e um
desatino nos meus miolos?
A fé teria assassinado Isaac; a dúvida acabou por salvá-lo.

Eduardo Carli de Moraes


Goiânia, Dezembro de 2014
*****

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] KIERKEGAARD, S. Fear and Trembling. Princeton, 2013. Pg. 43.
[2] KIERKEGAARD, S. Op cit. Pg. 52. Na tradução inglesa de Walter Lowrie, o trecho ficou assim:“Who is he
that would make a man’s gray hairs comfortless, who is it that requires that he himself shall do it? Is there no
compassion for the venerable oldling, none for the innocent child?” (pg. 52)
[3] LUCRÉCIO. Da Natureza. Livro I. In: Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco
Aurélio. Abril Cultural, 3ª ed., 1985.Pg. 33.
[4] SARAMAGO, J. Folha de São Paulo, 2001.
[5] SARAMAGO, J. Caim. Cia das Letras, 2009. pg. 135.
[6] NOVO TESTAMENTO. Lucas 14:26 e 33.
[7] JOSÉ SARAMAGO. Caim. Pg. 80-81.

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