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Rodolfo Ilari, “Tem a lingüística contribuído para o desenvolvimento dos estudos literários?” em
A lingüística e o ensino da língua portuguesa
“Lidar com a poesia marginal é, relativamente, fácil, pois quando coletada e catalogada, ela já
está positivada enquanto artefato lingüístico desprovido de valor, uma vez que, no seu
momento mais “autêntico”, de máxima negatividade, ela consiste na anulação da presença e,
assim, sua presença é, facilmente, anulável. Já a poesia propriamente dita, de Rimbaud a
Oswald, ou de Maiakóvski a João Cabral, por consistir na presentificação de um nada, de
uma “ausência”, não é tão fácil de ser anulada ou manipulada”.
Uma pergunta
Se tentarmos derivar de cada um desses elementos (Eu, mundo, poesia) uma função ou
finalidade da obra literária, ou artística de maneira geral, podemos de maneira simplificadora
dizer que ao Eu corresponde a função expressiva, que compreende a necessidade de
exteriorização da subjetividade, a qual assegura ao indivíduo a condição de agente da história,
na medida em que lhe faculta um comércio com o mundo, no qual ele não apenas recebe mas
também emite sentimentos e idéias. Ao mundo corresponderia a função cognitiva, que consiste
em atribuir à obra de arte a condição de forma capaz de possibilitar um certo conhecimento do
mundo, sua apreensão em signos mais ou menos sensíveis, mais ou menos intelectuais, nos
quais o artista cifra o que foi capaz de apreender da realidade em que se encontra imerso. À
arte corresponderia a função metalingüística, em que o pensamento se volta sobre si mesmo,
em que a linguagem se volta sobre a própria linguagem, questionando sua própria realidade, a
realidade do mundo e a realidade do Eu num discurso problematizador.
Tais funções são simplificadas porque delas se podem derivar outras. Assim, da função
expressiva, pode-se derivar uma função confidencial1[1], para ficar com uma possibilidade. Da
função cognitiva, lato sensu, pode-se derivar uma função de conhecimento introspectivo ou
subjetivo e outra de conhecimento objetivo do mundo, por exemplo2[2]. Da metalingüística,
uma voltada para os elementos do código, outra para o sistema retórico, considerado um
código de segundo grau, entre outros possíveis objetos.
O extravasamento da subjetividade
Pode-se dizer que, conquanto desconfiado do que momentaneamente afirma (“Eu não devia te
dizer”) — e essa desconfiança atravessa todos os momentos da obra de Drummond, porque
nele raramente um discurso da positividade domina o poema e, quando o faz, na relação que o
poema mantém com o espaço total da obra, tal positividade se relativiza —, alguns poemas de
Drummond parecem conter uma função de “extravasamento da subjetividade” que por si só
justificaria o ato poético. É o que se pode notar por exemplo no “Poema de sete faces”,
primeiro poema do primeiro livro do poeta, no qual se pode enxergar uma bipartição do
poema3[3], segundo a qual as quatro primeiras estrofes se voltariam para o registro de fatos
1[1] Que é a que ele mesmo Drummond, numa de suas primeiras entrevistas, reconhece
como fundamental em sua poesia.
2[2] Da função cognitiva pode surgir uma que é a de intervenção social, na medida em
que o conhecimento se converte em crença, no sentido pragmático do termo, ele se
converte em gatilho para a ação.
leitura de Alcides Villaça). O propósito deste texto é outro; logo, é outra a leitura que
pretendo extrair do poema.
Tem poucos, raros amigos
se eu me chamasse Raimundo
A primeira estrofe, embora escrita em primeira pessoa, toma o Eu como personagem de uma
narração. Nela começamos a assistir à construção do mito pessoal do poeta. Como lembra
Sartre, “a poesia cria o mito do homem, enquanto o prosador traça seu retrato.”4[4]De fato,
portanto, repito, apenas nas três estrofes finais do poema é que a ênfase em um discurso
confessional recai, mas em todas e Eu perpassa e se dá a ver, de diferentes ângulos e
perspectivas, em estrofes distintas até mesmo do ponto de vista estilístico, ora como aquele
que vê ou espia (caso da segunda estrofe) ora como o que é visto (caso da quarta, em que o
homem descrito o é em termos coincidentes com a imagem do poeta à época em que o
poema foi escrito)5[5]. E tal ênfase, fechando o poema, autoriza uma leitura que pode querer
ver nele aquela função de “extravasamento da subjetividade” a que já fiz menção e que pode
4[4] Sartre, J.P., Que é a literatura?, Ed. Ática, São Paulo, 1989, p.30. Registro, a
propósito que a leitura dos ensaios de Sartre neste livro simultânea à leitura de certos
poemas de Drummond revela surpreendentes afinidades entre os textos. Evidenciá-las é
um trabalho possível que deixarei para um outro texto.
Em carta a João Cabral de Melo Neto, datada de 17 de janeiro de 1942, Drummond escreve, a
propósito da inclusão de um poema de Cabral em uma coletânea a ser publicada:
Acho que você deve publicar. Sou de opinião que tudo deve ser publicado, uma vez que foi
escrito. Escrever para si mesmo é narcisismo, ou medo disfarçado em timidez. Sem dúvida
todo sujeito honesto escreve por necessidade, mas nessa necessidade está latente a idéia de
comunicação. Os outros é que gostem ou não gostem. A reação do público evidentemente
interessa, mas não deve impressionar muito o autor. Daqui a 20, 30 anos, que ficará de nossos
atuais pontos de vista e juízos críticos? As obras terão que ser examinadas de novo. E então
haverá uma importância maior no julgamento, ao qual, provavelmente, não estaremos
presentes. Como v. vê, eu acho que se deve publicar tudo, menos pelo valor da experiência do
que pela operação de extravasamento da personalidade, de outro modo cativa, e pela
tomada de contato com o mundo exterior, que é fértil em sugestões e excitações para o
autor.6[6]
Passados já doze anos da publicação de seu primeiro livro, Drummond dirige-se ao amigo
poeta mais jovem incentivando-o a dar a público seus poemas em termos — em que pese a
função de estímulo ao iniciante — nos quais nota-se um tom de convicção e argumentos
sólidos. Para além do objetivo de “extravasamento da personalidade”, o argumento da “tomada
de contato com o mundo exterior” capaz de excitar e sugerir coisas ao autor também
fundamenta o conselho de publicar. Neste segundo argumento aparece, então, não apenas a
vantagem de dar passagem ao indivíduo mas o de pô-lo em processo de constituição. Falar de
si aos outros é oportunidade para construir-se enquanto sujeito, na “praça dos convites”, no
âmbito da vida social. O discurso do eu é para o outro. E é ao dizer-se ao outro, na experiência
de confronto com a alteridade, que se encontram os estímulos (“sugestões, excitações”) para o
processo de individuação pelo qual o poeta constrói sua poesia e a si mesmo quer enquanto
mito, quer enquanto sujeito.
Isto parece contraditório, a respeito de um poeta que sublinha a própria secura e recato,
levando a pensar numa obra reticente em face de tudo que pareça dado pessoal, confissão ou
crônica de experiência vivida. Mas é o oposto o que se verifica. Há nele uma constante invasão
de elementos subjetivos, e seria mesmo possível dizer que toda a sua parte mais significativa
depende das metamorfoses ou das projeções em vários rumos de uma subjetividade tirânica,
não importa saber até que ponto autobiográfica.7[7]
9[9] Merquior, J.G., Verso universo em Drummond, Livraria José Olympio Editora, Rio
de Janeiro, pp. 243 a 245.
O encontro com o mundo: “Tinha uma pedra no meio do caminho”
O encontro entre o Eu e o mundo não é harmonioso: um “anjo torto” o aguardava logo na chegada; os
desejam roubam o azul da tarde; o excesso de pernas femininas deixa perplexo o coração; os amigos são
poucos, raros; Deus abandona o Eu, que se sabe fraco; o amor, uma toada: briga perdoa perdoa briga; os
poetas disputam entre si a esfera federal; a vida é besta; resta ao poeta a cachaça do verso.
Sociedade
Os dois dançaram.
E todas as quintas-feiras
A ironia fica a serviço do registro de uma experiência deceptiva do Mundo. Denuncia, por
exemplo, em “Sociedade” a hipocrisia, a teatralidade obscena da vida regulada por convenções
sociais que determinam o primado das aparências. Sua suspensão, rara, se dá nos poucos
momentos em que o poeta substitui o olhar histórico pela perspectiva utópica10[10], a atenção
à vida presente pela entrevisão da vida possível. Os ímpetos de crença na possibilidade de
regeneração do homem se dão sobretudo na conjuntura mundial da Segunda Grande Guerra.
É quando sua poesia tenta o salto participante. O chamado da consciência à participação em
uma luta de resistência aos totalitarismos e o sentimento de fraternidade ocasionam poemas
de adesão aos sentimentos coletivos e a atitude existencial do engajamento político. Como diz
novamente Antonio Candido:
A consciência social, e dela uma espécie de militância através da poesia, surgem para o poeta
como possibilidade de resgatar a consciência do estado de emparedamento e a existência da
situação de pavor. No importante poema “A flor e a náusea” (de Rosa do Povo), a condição
individual e a condição social pesam sobre a personalidade e fazem-na sentir-se responsável
pelo mundo mal feito, enquanto ligado a uma classe opressora. Apesar da distorsão do ser,
dos obstáculos do mundo, da incomunicabilidade, a poesia se arremessa para frente numa
conquista, confundida na mesma metáfora que a revolução.
O poeta
promete ajudar
a destruí-lo
um verme.
Essa ira, embora redentora, porque situa claramente o empenho participativo do outro lado da
ordem dominante, a do sistema capitalista que o poeta ameaça destruir, não apaga o
ceticismo em relação ao poder da poesia no sentido de modificar concretamente e a curto
prazo a realidade, o qual já se podia ver, por exemplo, no poema que segue.
Se lhe desagradar a opinião dos jornais e revistas, não publique para eles, publique para o
povo. Mas o povo não lê poesia... Quem disse? Não dão ao povo poesia. Ele, por sua vez,
ignora os poetas. É certo que sua poesia tem muito hermetismo para o leitor comum, mas se v.
a faz assim hermética é porque não pode fazê-la de outro jeito, se você é hermético, que se
ofereça assim mesmo ao povo. Ele tem um instinto vigoroso, quase virgem, e ficará perturbado
com suas associações de coisas e estados de espírito, que excedem a lógica rotineira. Já
meditou na fascinante experiência que seria fazer livros de custo ínfimo, com páginas
sugestivas, levando a poesia moderna aos operários, aos pequenos funcionários públicos, a
toda essa gente condenada absorver uma literatura de quarta classe porque se convencionou
reservar certos gêneros e tendências para o pessoal dos salões e das universidades? Eu
acredito de certo que sua fase poética atual é fase de transição que v., com métodos, inclusive
os mais velhos, está procurando caminho, e que há muita coisa a fazer antes de chegarmos a
uma poesia integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e que ao mesmo tempo o
supere. Não devemos nos desanimar com isso. Desde que estejamos vivos, as experiências se
realizarão dentro e fora de nós, e haverá possibilidade de progredirmos na aventura poética. O
essencial mesmo é viver e acreditar na força admirável da vida, que é nosso alimento e nosso
material de trabalho.
Ainda que a experiência direta do mundo cause ira, decepção, tédio, repugnância, a crença na
poesia enquanto experiência da vida mobiliza o poeta a prosseguir tentando escrever o poema,
“claro enigma” que nasce “da força admirável da vida” e se dirige “ao instinto vigoroso, quase
selvagem” dos leitores. Apesar do que nele há de cerebrino, perceptível na falta de jeito para
entregar-se à inspiração e à confidência que caracterizam Bandeira, Drummond afirma que
escreve seus poemas a partir da emoção e dirigidos à emoção, ou pelo menos a instâncias
mais emocionais que racionais, como se pode depreender das expressões que extraio da
passagem acima.
Quer seja assumindo a função de comunicar, quer seja assumindo a de atuar como forma de
registro da realidade e de conhecimento do mundo, ao poeta é a experiência do poema, como
corpo a corpo com a linguagem, que interessa e que move. A ira pode estar na fonte do
poema, assim como o amor e a alegria, mas enquanto sentimentos não são ainda o poema. As
palavras dirigidas ao jovem amigo parecem ser, mais do que qualquer outra coisa, um estímulo
a que ambos, enquanto poetas, não desistam de levar adiante sua aventura poética, ainda que
não tenham receptores nem entre os esperados leitores (jornais, revistas, o pessoal do salão e
das universidades), nem entre os inesperados (o povo), nos quais, no entanto, Drummond
deposita a esperança, contra toda esperança, de que venham, com seu “instinto vigoroso,
quase virgem”, a pertubar-se com as inesperadas associações de que são capazes os poetas.
Associações estas que, excedendo a lógica rotineira, nada poderão comunicar aos leitores
rotineiros, embora possam perturbá-los. Fica claro que o que se espera da poesia não é que
ela comunique, informe, mas que perturbe os espíritos. Não importa que seja hermética,
incompreensível, complicada ou obscura. Importa que os poetas façam os poemas e que eles
possam chegar até os leitores, inquietando-os do modo específico pelo qual a poesia pode
fazê-lo. E qual é essa especificidade?
Num ensaio intitulado “A situação atual da poesia no Brasil”, Décio Pignatari11[11] , lembrando
o Sartre de O que é literatura, afirma que o projeto de Drummond, oscilando entre a poesia e a
prosa, oscilou também entre os pólos do fracasso (échec) e do êxito(réussit).
estamos presentes
....................................................................
Mãos dadas
Cresce o “índice” participante: cresce a prosa, aumenta o êxito, a vontade de ação quer o
presente. Decresce o animus participante: regride a prosa, o fracasso se exibe, a
contemplação quer ver o eterno (enraizado no passado). Em Drummond, os versos curtos e o
duro enquadramento de sua quadra caracterizam, em geral, este segundo hemisfério do
conflito. E para esse total conflito, a simples trégua é já euforia — e ela está em A rosa do
povo, 1945: participa e/ou não participa com a mesma convicção: “Áporo”e “Carta a
Stalingrado”. A guerra fria vai lançá-lo numa longa noite tartamuda, onde parece perder os fios
do projeto e do concreto: formalismo e subjetivismo tomam conta de sua poesia e ameaçam
aliená-lo, entregá-lo embrulhado ao misticismo (recuperação do fracasso).”
Não discutirei aqui todas as implicações da leitura de Pignatari, com as quais não concordo
inteiramente. Vou me limitar a comentar os aspectos que me parecem apropriados para o que
tenho a dizer no desfecho deste pequeno ensaio.
Para além de todas as funções da poesia, e desvinculada de qualquer conceito de utilidade,
não haveria lugar para uma que decorre, não de qualquer tema específico, nem de um poema
especialmente considerado, nem de nenhum verso, mas do fato de que a poesia é um fazer
que se basta a si mesmo, sem nenhum vínculo com a idéia de utilidade tal como a concebe a
sociedade moderna? Que pode sim servir ao homem, mas apenas na medida em que,
capturando os padrões de sensibilidade de cada época, seja capaz de manter viva no homem
exatamente a própria poesia enquanto modalidade específica do fazer humano, isto é,
enquanto exercício da sensibilidade a partir da emoção e para a emoção12[12]?
Drummond foi um grande poeta, não apenas porque soube falar de si com pungência,
problematizar o mundo e comprometer-se com seu tempo, mas, sobretudo, porque soube fazer
tudo isso sem perder de vista a especificidade do fenômeno estético. Para ele a poesia foi um
fazer. Poiéin, fazer. Criação de uma realidade que não apenas reproduz outra realidade, mas
que se pode acrescentar ao conjunto das coisas reais. Capaz de criar objetos nem miméticos,
nem irreais, mas co-reais, a poesia não seria uma ação válida em si mesma, na medida em
que os usos que dela se pode fazer podem variar com o tempo e com as diferentes culturas,
enquanto os verdadeiros poemas mantêm seu interesse ao longo do tempo e atravessando
fronteiras culturais na condição de enigmas que fascinam?
O papel do signo estético inclui, sem dúvida, o de interferir na realidade — quer se trate da
realidade do Eu, do mundo, da linguagem, da arte ou da ação — ora para modificá-la, ora para
confirmá-la, ora para aboli-la. Mas não se reduz a isso. Pela ação da poesia, a peculiar
experiência do poeta se monumentaliza na forma de escritura e passa a constituir uma
realidade que se soma à própria realidade, da qual guarda a opacidade e a força motivacional
que sidera pensadores e poetas.
Alimento para a atividade da sensibilidade, o signo estético dura na medida em que subsume
lirismo (experiência existencial) mais técnica (regras de linguagem que constrangem a
expressão). Só assim, o poeta pode cifrar a ira, cuja maior negatividade está na ação
furibunda, num poema que pode até ser a “presentificação de um nada” mas que jamais pode
se limitar à emoção descuidadamente expressa, a qual não logrará ser mais que a anulação do
poema.
Que significará num futuro longínquo e que função terá, então, um poema como este?