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ERICH VON ZAGREB

A TUMBA DE MORELA

Tradução de
Roberto Bava

Digitalização e revisão: ÐØØM™ SCANS

PROJETO BOLSILIVRO

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Copyright © MCMLXXX
CEDIBRA — EDITORA BRASILEIRA LTDA.
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transmitido por qualquer meio mecânico, sem a
expressa autorização do detentor do Copyright.

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CAPÍTULO 1

O uivo de um lobo faminto se prolongou


floresta adentro, como um lamento raivoso
contra a inclemência da natureza.
A neve caíra pesadamente durante a tarde.
Ventos gelados sopravam durante a noite,
açoitando os campos gelados, os galhos desfo-
lhados e cobertos de flocos que se esvoaça-
vam em nuvens finas e rápidas.
Em sua cabana, o Sr. Bayer aguçou os ou-
vidos para captar a uivo do lobo, depois incli-
nou-se e jogou outra tora na lareira. Fagulhas
se ergueram e, por instantes, as chamas sufo-
cadas deixaram escapar uma fumaça branca e
envolvente que foi absorvida pela chaminé.
— Verificou bem o celeiro esta tarde? — in-
dagou a esposa, surgindo na sala aquecida e
rústica.
— Sim, tranquei muito bem. Hoje pela ma-
nhã vi pegadas de muitos lobos. Eles andam
famintos, desesperados por alimento.
— Armou algumas armadilhas?
— Sim, pus algumas delas ao redor do ce-
leiro. Agora vá terminar o jantar. Estou famin-
to — disse ele, indo apanhar seu machado
predileto.

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Trouxe-o para cima da mesa e examinou o
corte. Apanhou sua pedra de amolar e lenta e
metodicamente começou a limar o fio do ins-
trumento, até vê-lo brilhante e pronto.
Uivos sinistros voltaram a ecoar, agora nas
proximidades da cabana. Ao mesmo tempo, o
som de madeira sendo arranhada o fez preci-
pitar-se até a lareira, onde repousava uma ve-
lha espingarda.
Sua esposa surgiu diante dele, franzindo o
cenho.
— Não vou deixá-lo sair, homem.
— Só vou abrir a janela. Um tiro ou dois vai
afugentá-los, garanto-lhe — disse o velho,
indo até a janela e retirando a tranca.
Engatilhou a arma e abriu a janela. À luz se
projetou até o celeiro, como uma estrada
branca que o vento varria.
Ergueu a vidraça. O vento gelado bateu
contra seu rosto curtido. Levou a arma ao om-
bro e apontou-lhe para o alto, disparando.
Ruídos furtivos se seguiram ao estrondo do
disparo, como se o vento arrastasse patas pe-
ludas sobre a neve fofa.
— Tomem, malditos! — riu ele, introduzin-
do novo cartucho na arma.
Ao lado do celeiro, então, um vulto se des-

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tacou, hesitando por instantes antes de avan-
çar até o alcance da luz. Bayer não o viu, se-
não quando levou a arma de novo ao ombro.
Seus olhos se esbugalharam e sua mente
se recusou a acreditar naquela horrível apari-
ção.
— Gerta! — chamou, num fio de voz apa-
vorado.
— O que foi?
— Veja!
— Werwolf! — exclamou a mulher, lívida
pelo terror.
A figura fantástica avançou, a princípio len-
tamente, como se temesse a arma ao ombro
do velho. Depois, com verdadeira fúria, saltou
janela adentro, derrubando o casal.
Seus rosnados furiosos e animalescos en-
cheram a casa e sua ira se abateu sanguinari-
amente sobre os pobres velhos. O sangue jor-
rou contra as paredes, enquanto gargantas
eram rasgadas e unhas poderosas e cruéis
mergulhavam fundo nas carnes indefesas.
Uma matilha faminta de lobos se juntou di-
ante da janela, assanhada pelo cheiro de san-
gue que o vento se encarregava de espalhar.
Pedaços daqueles corpos foram jogados
pela janela. Os lobos caíam sobre eles, lutando

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entre si na disputa de alimento.
Faces arreganhadas digladiavam-se, corpos
se entrechocavam e rolavam pela neve, man-
chada de sangue. A criatura animalesca surgiu
à janela, atirando os últimos pedaços, esbo-
çando algo semelhante a um sorriso.
Depois, como se levada pelo demônio, sal-
tou para fora e desapareceu na noite, uivando
aterradoramente.

***

O furgão negro se aproximou da cancela.


Dois guardas armados sinalizaram ao motoris-
ta, que diminuiu a marcha e parou antes da
barreira.
— Para onde vai, homem? — indagou um
dos guardas.
— Para o seu país — respondeu o motoris-
ta, cujas faces deformadas e retorcidas causa-
ram asco ao policial.
— Deixe-me ver seus papéis!
— Estão lá atrás, com meu senhor — disse
o corcunda ao volante.
Os guardas se entreolharam, farejando
algo irregular com aquele estranho veículo.
— Desça! — ordenou um deles a Torg. —

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Queremos ver esses papéis com seu senhor,
então.
— É preciso realmente? Ele repousa... E
detesta ser incomodado quando repousa.
Os guardas riram, julgando aquilo uma pi-
lhéria, mas o rosto sério do corcunda cortou-
lhes o riso. Disfarçadamente destravaram suas
armas automáticas, preparados para qualquer
emergência.
— Chega de brincadeiras, homem. Está
muito frio e não temos necessidade alguma de
nos congelarmos aqui fora por sua causa. Vá
abrir lá atrás — ordenou um deles, apontando
ostensivamente, agora, a sua arma para o pei-
to de Torg.
— Não digam que não falei! — resmungou
o corcunda, descendo e caminhando adiante
dos guardas, até a porta traseira do furgão
negro.
Abriu-a. A pálida luz de um poste ali perto
iluminou os metais reluzentes do ataúde e de-
ram uma coloração sombria ao negro da ma-
deira.
— Que espécie de brincadeira é essa? —
indagou um deles, enfiando o cano da arma
nas costelas de Torg.
O corcunda riu.

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— Eu lhes digo, meu senhor está ali dentro.
Querem os papéis, não? Por que não vão lá
apanhá-los? — desafiou.
— Cuide dele! Qualquer deslize metralhe-o!
— ordenou o mais corajoso dos dois, saltando
para o interior do furgão.
Aproximou-se do ataúde, curioso e, ao
mesmo tempo, assustado. Já vira muitas tra-
paças, muitas maneiras mirabolantes de se
efetuar um contrabando ou levar pessoas de
um lado a outro.
Aquela maneira macabra, porém, era inédi-
ta. O ataúde impressionava. Um clima quase
irrespirável pairava dentro do furgão, pertur-
bando-o.
Aquele era um trabalho difícil. Dias e dias
naquele local isolado, onde poucos veículos
trafegavam. Era uma estrada não muito utili-
zada por não apresentar muita segurança,
principalmente na época das nevascas.
Segurou a alça da tampa e forçou-a para
cima, erguendo-a. Um rosto pálido foi ilumina-
do fracamente.
— Um defunto! Ele leva um defunto aqui
dentro! — exclamou, quase num grito que de-
sabafava sua tensão interior.
Os olhos do Drácula se abriram e uma ex-

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pressão feroz crispou seu rosto. Sua mão se
ergueu como um raio e suas unhas cravaram-
se na garganta do policial. O sangue jorrou
quando sua mão se retraiu, arrancando peda-
ços de carne.
O urro gorgolejante do policial surpreendeu
o outro, que ficou sem ação, vendo aquele
vulto ameaçador saltar fora do ataúde e voar
em cima dele.
Seu sangue espalhou-se pela neve e seu
pescoço pendeu numa grotesca posição. A
fando furiosamente, Drácula se voltou para
Torg.
— Como ousa permitir que meu repouso
seja profanado, seu bastardo disforme? — ros-
nou, enquanto sua mão se abatia pesadamen-
te contra o rosto do corcunda, atirando-o à
margem da estrada.
— Perdão, mestre! — gemeu o corcunda.—
Eles me intimaram, tinham armas...
Drácula foi até ele e ergueu-o com facilida-
de, jogando-o contra o furgão. Depois, girou o
rosto contra o vento e uivou, cri pando seu
corpo, como se desafiasse a natureza a en-
frentar sua fúria.
— Perdão, mestre! — suplicou o corcunda,
rastejando até seus pés.

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Drácula pisou-o na cabeça, afundando-a na
neve, rindo sadicamente enquanto o corpo de
Torg se debatia, sufocado. Depois chutou-o e
deixou-o se levantar dolorosamente.
— Perdão, mestre! — repetiu o corcunda,
limpando a neve de seu corpo.
— Onde estamos?
— Fronteira alemã, mestre.
— É longo o caminho até a Transilvânia. Eu
poderia voar, mas correria o risco de não en-
contrar um abrigo adequado para proteger-me
durante o dia.
— Eu o levarei em segurança, mestre. Eu
lhe prometo...
— Como pode prometer-me algo assim,
quando acaba de deixar que dois inúteis pro-
fanassem meu local de repouso?
— Não acontecerá mais, eu juro. Eu o leva-
rei a Transilvânia, mestre. Uma vez lá, terei
minha recompensa?
— Eu decidirei quando recompensá-lo,
Torg. Gosto de vê-lo como é. Faz-me valorizar
o que sou, seu pedaço de estrume ressequido
— gargalhou satânicamente o monstro, vol-
tando ao ataúde. — Começo a sentir fome,
Torg. O sangue desses tolos aguçou meu ape-
tite. Consiga-me uma bela e rosada alemã e

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prometo considerar seu pedido.

***

Estendendo-se às margens da Floresta da


Turíngia, Meitzig era um vilarejo onde o tempo
estacionara. A péssima estrada que a ligava ao
resto do país a tomara isolada. O progresso
chegava em doses lentas, lutando contra o ra-
dicalismo tradicional de seus moradores, que,
bem ou mal, apreciavam aquele modo de vida
à antiga.
As casas conservavam a tradicional arquite-
tura, com telhados de cume aguçado e janelas
coloridas abrindo-se para jardins que, durante
a primavera, floriam, espalhando pela brisa
agradáveis aromas.
Durante o inverno, porém, todos se recolhi-
am fugindo aos ventos gelados, Meitzig pare-
cia uma cidade fantasma. Janelas fechadas,
portas reforçadas e muita fumaça pelas chami-
nés.
Raras pessoas se aventuravam a sair du-
rante a noite. O frio intenso era a desculpa ge-
ral, mas, no íntimo, todos escondiam o medo.
O uivar dos lobos, o sibilar do vento, os ruí-
dos dentro da escuridão, o súbito estalar da

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madeira, o roçar de um galho contra a janela,
tudo fazia arrepiar suas peles e abalar a confi-
ança que depositavam em Deus.
Apesar disso, naquela noite fria e tenebro-
sa, um homem cruzava as ruas desertas de
Meitzig, caminhando com dificuldade sobre a
neve.
Parecia apressado. Seu rosto revelava de-
sespero e medo, mas havia uma firme decisão
em seu olhar magoado pelo vento frio.
Avançou pela rua principal, até uma das
maiores casas, que possuía, em seu jardim,
um enorme e secular carvalho. Diante do por-
tão, hesitou por instantes, torcendo as mãos.
Depois, como se o desespero lhe desse forças,
avançou resolutamente.
Bateu a pesada argola contra o suporte
metálico. O som das batidas ecoou pela casa
em silêncio. Ele insistiu, até que uma luz bri-
lhasse na janela ao lado e um criado o obser-
vasse demoradamente.
— Quero ver o burgomestre! — disse.
— O criado foi abrir a porta. O homem en-
trou. A porta foi fechada atrás dele. O calor da
casa o invadiu agradavelmente.
— Preciso ver o burgomestre imediatamen-
te.

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— Ele está ocupado agora. Terá de aguar-
dar, senhor — disse o criado.
— O homem levantou os olhos para o reló-
gio a um canto. Passava da meia-noite. O que
ocuparia o burgomestre até aquela hora tar-
dia?
— Acompanhe-me — pediu o criado, gui-
ando-o até a biblioteca.
Ali lhe foi servido um cálice de uma bebida
reconfortante. Ele se sentou, cobriu o rosto
com as mãos e soluçou, desabafando seu de-
sespero.
Uma figura rechonchuda surgiu à porta,
olhando-o com atenção. Era o burgomestre,
um homem de expressão severa e olhos saga-
zes. Vestia um estranho manto sobre o corpo,
diferente das vestes tradicionais.
— Qual o problema, Otto Keine? — pergun-
tou, entrando, após completar seu estudo so-
bre o visitante.
— Excelência, perdoe-me vir incomodá-lo,
mas preciso de sua ajuda. Minha filha, senhor.
Ela desapareceu. Encontramos sua janela
aberta e suas roupas de dormir despedaçadas,
espalhas pelo quintal. Pegadas de um animal
enorme rumavam para a floresta.
— Interessante, Otto. Havia traços de san-

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gue?
— Não, excelência, mas ela está pratica-
mente nua e não resistirá ao frio intenso.
— Organizaremos uma busca pela manhã,
Otto. É inútil sairmos agora. Há perigo de uma
outra nevasca. Como governante deste burgo,
não posso arriscar a vida de meus governa-
dos.
— Mas minha filha, senhor... — choramin-
gou o homem.
— Deve esperar pelo pior, meu bom ho-
mem. Os lobos se tomam atrevidos com o in-
verno. A fome lhes alimenta o desespero. Ago-
ra volte para os seus. Pela manhã iremos até
sua casa — disse o burgomestre, conduzindo-
o até a saída.
Após a partida de seu visitante, o burgo-
mestre retomou à sala de onde saíra para
atendê-lo. Ali um grupo de pessoas, vestindo
mantos escarlates, esperavam por ele.
Suas vestes brancas o destacava entre os
outros.
O werwolf está de volta — disse, com um
sorriso de pura satisfação.
— Excelente! — exclamaram os outros, re-
gozijando-se, como se aquilo fosse motivo de
uma festa especial.

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— Vamos louvar a noite, nossa aliada. Há
bebidas e leitos para todos. A orgia deve co-
meçar, para deleite de Satã. Quando formos
eleitos seus prediletos, nada mais nos deterá
na face da terra. Seremos os mais ricos e po-
derosos homens do mundo e viveremos uma
eternidade para gozar os vícios e os prazeres
da degeneração e do mal!
— Que assim seja! — responderam os ou-
tros, em uníssono.
— E quanto a ele, excelência? — indagou
uma mulher bela, de longos cabelos dourados
e olhos perturbadores.
— Refere-se ao nosferat, o predileto de
Satã?
— Sim, senhor. Acha que nosso werwolf
poderá exterminá-lo?
— Nosso werwolf terá a força de nós todos.
Nossa força vem de Satã. Nós triunfaremos! —
disse, caminhando até ela e despindo-a do
manto escarlate que escondia suas formas
perfeitas e rijas.
As mãos hábeis do burgomestre caminha-
ram sobre a pele da mulher. Outros casais se
formaram. A bebida foi servida em taças enta-
lhadas em chifres. Incenses poderosos, afrodi-
síacos e alucinógenos, foram atirados na larei-

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ra, espalhando uma nuvem envolvente pelo
aposento.
Sons lúbricos, suspiros obscenos e garga-
lhadas se mesclaram num coro orgíaco e de-
pravado.

***

Otto Keine chorava, quando chegou em


casa. A esposa abriu-lhe rapidamente a porta.
Nos olhos dela havia espanto, mas, além dis-
so, uma alegria indisfarçável e misteriosa.
— Ela voltou! — disse.
Os olhos do homem se esbugalharam. Por
instantes ele fitou a esposa, como se duvidas-
se de suas palavras. Depois, como que possuí-
do por um desespero maior, correu até os
aposentos da filha.
A chama bruxuleante de uma vela grossa
iluminava o rosto plácido de Morela, cujos ca-
belos louros e sedosos se espalhavam gracio-
samente sobre o travesseiro. As pálpebras fe-
chadas escondiam a beleza de seus olhos
azuis.
Lágrimas desceram pelo rosto do pai, que
se ajoelhou ao lado da cama e tomou a mão
da filha. Assustou-se ao ver o ferimento em

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forma de estrela naquela palma suave e ado-
rada.

CAPÍTULO 2

A estrada equilibrava-se precariamente ao


longo daquela região irregular, com alternân-
cia de montes abruptos e colinas mais ou me-
nos suaves, avançando sempre em direção
aos Montes Metálicos, cujas elevações, um dia
claro, podiam ser vistas.
Ao volante, extenuado, Torg ansiava por
um vilarejo qualquer onde pudesse encontrar
abrigo para um dia e descanso para seu corpo
maltratado.
Longa era a viagem até a Transilvânia. O
céu escuro acima dele, mesmo após o ama-
nhecer, indicava que a natureza inclemente
preparava outra nevasca.
Se isso acontecesse, aquela miserável es-
trada se tomaria impraticável, com perigos in-
transponíveis. A neve se acumulava nas en-
costas, criando assustadores paredões que,
cedo ou tarde, tombariam sobre a estrada, so-
terrando-a.
Era preciso uma pausa na viagem, ainda
que contra a sua vontade. Após uma curva pe-

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rigosa, Torg diminuiu a marcha do furgão e
parou-o. Seu olhar se estendeu sobre aquela
sequência de chaminés fumegantes que lhe
pareceu a visão mais deliciosa dos últimos
tempos.
Suspirou, aliviado, afinal. Poderia ali, na-
quele vilarejo, encontrar abrigo por algum
tempo, até que cessasse a ameaça das nevas-
cas.
Providencialmente, poderia atender ao pe-
dido de Drácula, fornecendo-lhe o alimento de
que necessitava. Parecia perfeito.
A pequena cidade margeava uma floresta
imensa que se perdia de vista, cobrindo mon-
tes e colinas. Um pouco além da cidade, como
algo providencial, havia um antigo castelo.
Seguramente seria o abrigo adequado ao
Drácula, pois dominava toda a cidade, planta-
do no alto de uma pequena elevação, servida
por uma estrada ainda que precária, como to-
das as outras da região.
— Bom!— rosnou o corcunda, repondo o
veículo em movimento.

***

Johann Adelfrel, o burgomestre de Meitzig,

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despertou naquela manhã como o repicar dos
sinos. Comprimiu as têmporas por instantes,
até que a dor passasse, depois sentou-se no
leito.
Segundos depois, um criado vestido à anti-
ga entrou no aposento, trazendo, numa ban-
deja, um copo contendo uma mistura leitosa.
— Bom dia, senhor — disse o criado, depo-
sitando a bandeja ao lado do burgomestre,
depois indo afastar as cortinas.
Johann apanhou o copo e, antes de tomá-
lo, olhou as montanhas cobertas de neve que
se descortinavam diante de seus olhos injeta-
dos pela noitada.
— Os sinos dobram, Albert. Por quê?
— O casal Bayer, senhor. Foi encontrado
dilacerado pelos lobos. Uma tragédia.
— Há alguém a minha espera?
— Os de sempre, senhor.
— Irei vê-los em meia hora. Peça-lhes que
aguardem.
Esperou até que o criado tivesse se retira-
do. Depois, em goles ruidosos, engoliu todo o
conteúdo do copo, estalando a língua em se-
guida.
Jogou para o lado as cobertas e apanhou
seu robe, estendido ao pé da cama. Vestiu-o.

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Calçou preciosos chinelos de pele, depois foi
até janela.
— Lobos! Excelente! — exclamou, com um
sorriso misterioso nos lábios.
Rumou ao banheiro, de onde retomou mi-
nutos após para se vestir cuidadosamente.
Uma vez pronto, deixou o aposento e cami-
nhou até a ampla sala de sua casa.
A lareira estava acesa e alguns homens se
achavam diante dela. Johann não lhes deu
atenção e foi se sentar à mesa, ricamente ser-
vido com iguarias típicas e muitas frutas incri-
velmente frescas.
Ao perceberem sua presença, os homens
se voltaram e aguardaram autorização para
que se aproximasse.
— O que houve com o casal Bayer? — in-
dagou o burgomestre, assim que eles se apro-
ximaram.
— Encontramos seus corpos... O que so-
brou deles, senhor, do lado de fora da cabana.
Os lobos agiram com uma violência jamais
imaginada. Por algum motivo o velho Bayer
abriu a janela. Os lobos entraram na cabana,
depois os arrastaram para fora. Foi horrível,
creia — disse o homem, mas havia, além de
seu tom frio de voz, uma indisfarçável satisfa-

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ção.
— Observou as pegadas?
— Sim. Um lobo enorme os liderava. Talvez
o maior que já apareceu por aqui, senhor.
— É uma pena. Quero que tenham um en-
terro decente. Providencie isso.
Aquele homem se retirou rapidamente. O
outro era o pároco da cidade e se mostrava
apreensivo. O burgomestre o ignorou para
olhar um outro. Era Otto Keine, o mesmo que
o viera procurar na noite anterior.
— E então, Otto? Não me parece desespe-
rado, homem — interpelou-o.
— Sim, excelência! Um milagre aconteceu.
Minha Morela retomou... Não sabemos explicar
o que houve, mas ela está bem.
— Fico satisfeito com isso. Algum ferimento
em seu corpo?
— Não, excelência. Apenas um arranhado
na palma de sua mão, uma coisa insignifican-
te.
— Um arranhado? Interessante!
— Em forma de estrela. Curioso, não?
— Sim, muito curioso — riu o burgomestre,
enquanto Otto se despedia respeitosamente.
O pároco se aproximou da mesa.
— Excelência, pode me julgar um tolo, mas

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continuo com aqueles pressentimentos. Um
mal indescritível paira sobre nossa pacata ci-
dade...
— São as nevascas, meu caro Wilhelm. Elas
influem, pode estar certo. Mais alguma coisa?
— A nossa festa, crê que possamos realizá-
la?
— Sim, por que não? Se as nevascas volta-
rem, nós a realizaremos nas dependências do
clube de bolão. Aliás, acho que pode providen-
ciar assim. Organizaremos um torneio, isso
animará todo o pessoal.
— Sim, excelência. Assim será feito — des-
pediu-se o religioso.
Os outros homens presentes, em número
de três, acercaram-se afinal da mesa. Johann
fez-lhes um sinal para que sentassem e se ser-
vissem.
— E então? — indagou logo após.
— Seguimos as pegadas do enorme lobo
que liderou o ataque. Estavam parcialmente
apagadas, mas não foi difícil determinar para
onde rumavam — disse um deles.
— O castelo?
— Sim, o castelo.
— Ótimo! Não há dúvidas de que nosso
werwolf retomou, quando precisávamos dele.

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Ouviram o relato de Otto Keine. Sua filha foi
levada ontem e retomou com a estrela de Satã
em sua mão o werwolf nos indicou a virgem
que sacrificaremos ao nosso mestre para que
ele nos dê forças para vencermos o nosferat.
Quando isso acontecer, seremos os maiores
dentre os filhos das trevas e nosso poder não
terá limites.
— Como sabermos da chegada do nosfe-
rat? — indagou outro.
— Saberemos. O importante é preparar
tudo para o sabbat. Ele coincidirá com a festa
local. Assim, haverá possibilidade de que todos
estejam presentes, sem despertar suspeitas.
Avisem a todos. E você, Klaus, providencie
para que os bens dos Bayer sejam imediata-
mente transferidos para mim!

***

O vento penetrava pelas janelas abertas do


velho castelo, levantando a poeira há muito
acumulada sobre as pedras e sobre os móveis
rústicos.
Tochas ressequidas nas paredes indicavam
que há muito o castelo não era habitado. Anti-
gas velas em castiçais de metal nobre jaziam

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espalhadas pelos aposentos. Ratazanas e
enormes aranhas faziam daquele local seu an-
tro. Nas traves do teto, morcegos dormitavam,
alheios ao frio e ao silêncio.
Nas lages frias do piso, desfazendo-se a
cada nova lufada do vento frio, pegadas de
um estranho animal avançavam pela ampla
sala de entrada, galgando os degraus de uma
escada que se curvava e subia, colada à pare-
de de pedras regulares e úmidas.
Num, dos aposentos acima, um homem nu
revirou-se no leito. Seus olhos se abriram, es-
talados, como se despertasse de um pesadelo.
Ergueu-se num salto. Um espelho enorme
na parede refletiu sua imagem nua. Seus tra-
ços elegantes, seu semblante de linhas bem
traçadas e o porte orgulhoso denotavam sua
descendência nobre.
— Não! — murmurou ele, cobrindo o rosto
com as mãos por instantes.
Quando o descobriu, volveu o olhar para o
leito empoeirado onde adormecera. Depois,
como que alheio ainda, vagou o olhar pelos
móveis velhos, detendo-se num grande armá-
rio de madeira de lei, com um brasão entalha-
do na porta principal.
Aproximou-se do móvel. Sua mão se esten-

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deu lentamente para acariciar respeitosamente
o brasão, cuja figura principal era uma cabeça
de lobo, pairando sobre uma flecha de caça
partida ao meio.
— A força vence a força! — murmurou,
abrindo a porta.
Velhos trajes estavam pendurados em cabi-
des artísticos, livres da poeira e dos insetos.
Apanhou um deles. Sorriu, como que inva-
dido por doces lembranças. Vasculhou um
pouco mais o armário. Havia, a um canto, al-
guns pares de botas longas, mas o couro
apresentava-se manchado pelo bolor.
O homem escolheu um dos pares e levou-
o, com o traje, para junto da cama onde ador-
mecera. Apanhou a colcha empoeirada e lim-
pou com movimentos firmes e fortes as botas,
devolvendo ao couro, em alguns pontos, o an-
tigo brilho.
Depois vestiu-se, sempre observando o
abandono ao seu redor, como se tivesse algo
premente a fazer.

***

Um grupo de homens, desde o amanhecer,


havia trabalhado na limpeza das ruas da cida-

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de.
Primeiro espalharam sal. Quando o sol bri-
lhou ofuscado pelas nuvens pesadas, entrega-
ram-se à limpeza propriamente dita, removen-
do a neve derretida com largas pás, desobs-
truindo as vias principais.
Interromperam o trabalho, porém, quando
viram o veículo que se aproximava. Crianças
saíram às janelas. Mulheres curiosas e homens
maravilhados postaram-se nas calçadas semi-
entulhadas ainda, observando.
Havia poucos veículos em Meitzig. O burgo-
mestre tinha um antigo carro, um Mercedes da
Segunda Grande Guerra. Alguns fazendeiros
possuíam jipes e o velho hospital dispunha de
uma também velha ambulância, deixada pelos
nazistas, há muitos e muitos anos.
O homem do posto de gasolina saiu à rua,
olhando com certa satisfação a chegada da-
quele novo veículo.
Ao ver o estabelecimento, Torg manobrou
para lá. Uma pequena multidão se formou nas
proximidades.
— Posso completar? — indagou o proprie-
tário do posto.
— Sim — respondeu Torg, num péssimo
alemão.

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Seu olhar se alongou cidade afora, até o
velho castelo.
— Quem mora lá? — indagou, apontando.
— Ninguém, no momento.
— Pertence a alguém?
— Sim, ao Barão Von Flaming, mas ele não
aparece há muito tempo.
— Bom! — resmungou o corcunda, vascu-
lhando o porta-luvas da cabine.
Separou o dinheiro que precisaria usar. A
viagem fora planejada com antecedência. Tro-
cara a moeda necessária para cada país que
teria de atravessar.
Depois, quando pagou, pensou na curiosi-
dade que sua chegada causaria. Instalando-se
no velho castelo, seria duplamente suspeito.
Não tinha, porém, outra alternativa. As ne-
vascas voltariam, isso era certo, e não queria
ser surpreendido naquela péssima estrada.
Prometera levar Drácula em segurança à
Transilvânia. Faria isso, portanto.
Quando o veículo atravessou a cidade, pou-
co mais tarde, a população intrigada acompa-
nhou sua subida em direção ao castelo.
De uma das janelas de sua casa, o burgo-
mestre fazia o mesmo. Alguns homens pedi-
ram para vê-lo. Ordenou que fossem trazidos

28
à sua presença.
— Vejo que já tem conhecimento da chega-
da de um estranho à cidade, excelência.
— Sim. Como é ele?
— Um corcunda, excelência. Um corcunda
feio e repugnante.
O burgomestre sorriu e deixou a janela, en-
carando os homens diante dele.
— Não se preocupem. Na certa nosso que-
rido barão o contratou para pôr o castelo em
ordem e preparar sua volta à cidade — expli-
cou.

***

Morela Keine penteava os longos cabelos


diante do espelho, quando sua mãe entrou,
trazendo uma bandeja.
— Filha, não devia estar de pé! — repreen-
deu a mulher.
— E por que não, mãe? — indagou a jo-
vem, a voz incrivelmente suave e doce.
Otto Keine entrou em seguida. Ele e a mu-
lher trocaram olhares apreensivos.
—Tive um pesadelo essa noite — disse a
garota, servindo-se da bandeja que a mãe co-
locara sobre a penteadeira.

29
— Pesadelo, filha? — indagou-lhe o pai, in-
deciso entre contar-lhe o que havia ocorrido
na noite anterior ou deixá-la em sua doce ig-
norância.
— Sim, um pesadelo horrível. Sonhei que vi
dois olhos na janela, brilhantes como brasas.
Depois, a janela se abriu e um vulto negro sal-
tou sobre mim, arrebatando-me. Senti frio,
muito frio. Depois tudo ficou confuso... Só me
lembro que aquilo mordeu-me a mão — disse
ela, lentamente, enquanto observava o feri-
mento real.
Sua mãe se aproximou, forçando um sorri-
so.
— Foi mesmo um pesadelo e tanto, queri-
da. Você se bateu tanto que derrubou o copo
de lei da mesa de cabeceira e se feriu nos ca-
cos.
A garota levantou o olhar intrigado para
ela. Depois reparou na camisola que usava.
Sua mãe pareceu entender, antecipando-se.
— Tive de trocar sua camisola. Você a su-
jou de sangue, filha — disse, mas a expressão
de seu rosto revelava desespero e pavor.

***

30
Torg estacionou o furgão diante da escada-
ria de entrada. Pensou no problema que seria
abrir aquela pesada porta, mas estremeceu
quando, com um rangido tétrico que ecoou
profundamente, elas se abriram de par em
par.
Um homem vestido com elegância e distin-
ção se adiantou. O vento frio agitou seus ca-
belos incrivelmente louros. Seus olhos azuis
pareceram cintilar com a luz do dia.
— Desculpe-me, senhor. Pensei que o cas-
telo estivesse desabitado. É o barão Von Fla-
ming?
— Sim, o que deseja?
— Hospitalidade, senhor.
— Nós, os Flaming, jamais negamos a nos-
sa hospitalidade. A cabana de caça é sua. Fi-
que o tempo que quiser. Se precisar ganhar
algum dinheiro, posso recompensá-lo muito
bem se me ajudar na limpeza do castelo. Ele
esteve vazio por algum tempo, mas pretendo
restituí-lo ao antigo resplendor. O que me diz?
— Que pode dispor deste seu criado, nobre
senhor!

CAPÍTULO 3

31
Faltava pouco para o anoitecer e já aquela
ansiedade invadia seu corpo, como se temores
ancestrais se abatessem sobre a sua mente,
pressionando e inquietando-o.
Deixou seu aposento e foi até o patamar da
escadaria. Lá embaixo, extenuado e no limite
de suas forças, o corcunda terminava de acen-
der o fogo na lareira.
Tochas ardiam, espalhando uma fumaça
perfumada pelo castelo. Livres da poeira, os
antigos móveis pareciam haver readquirido a
antiga dignidade.
— Está muito bom, homem. Já fez seu tra-
balho por hoje. Vejo que está muito cansado.
Repouse agora. Continuará amanhã — disse e
seu tom de voz revelava aquela impaciência
interior que não podia disfarçar.
— Como quiser, senhor — respondeu Torg,
jogando mais uma acha de lenha ao fogo e
depois se retirando.
O barão aguardou até que a pesada porta
fosse fechada. Depois retornou ao seu apo-
sento. Parou diante do espelho por instantes.
Foi até a janela.
Além dos montes cobertos de neve, acima
das pesadas e escuras nuvens de uma nevas-
ca iminente, o sol caminhava celeremente

32
para o ocaso.
Von Flaming não precisava de um relógio
para pressentir isso. Seu destino estava ligado
intimamente ao pôr-do-sol. Antes ainda podia
ter o repouso de muitos dias e muitas noites,
antes que a maldição se manifestasse.
Satânicamente, porém, sua alma estava
dominada e presa por almas dedicadas ao de-
mônio. A maldição se manifestava segundo a
vontade deles. Não havia libertação. Era um
escravo da maldição que, por seu turno, era
escrava da vontade demoníaca dos outros.
Estremeceu. Seus pensamentos retomaram
anos. Daquela mesma janela contemplara o
pôr-do-sol e sofrerá aquela primeira contorção
animalesca em seus músculos e nervos.
A mesma sensação se repetiu agora e seu
rosto crispou-se. Ele se voltou para o espelho.
A visão da metamorfose o fascinava e assusta-
va. Sua alma era afastada, subjugada pelos
instintos de um animal feroz e sanguinário que
o habitava e o forçava.
Estremeceu outra vez e uma dor lancinante
o fez comprimir as têmporas. Sombras domi-
naram seu rosto. As linhas aristocráticas de
seu rosto se alteraram.
Lá fora, além das nuvens, o sol se punha e

33
a noite chegava. No aposento, o barão gemeu
dolorosamente, enquanto uma expressão de
animalesca ferocidade se estampou em seu
rosto.
Os olhos de um azul limpo e inocente tingi-
ram-se de vermelho. Sua boca bem recortada
e sensual se retorceu, alargando-se. Os lábios
engrossaram-se. Os dentes se afilaram. Os ca-
belos dourados foram gradativamente, sendo
substituídos por pelos duros e eriçados.
A dor horrível o fez cair e rolar pelo apo-
sento, rasgando suas roupas nobres e ferindo
sua pele nas lajes ásperas. Pelos cobriram seu
rosto. O crânio se amassou, como que sendo
moldado por uma força sobrenatural à seme-
lhança de um lobo.
Garras cresceram em suas mãos, transfor-
madas em garras, para dilacerar as roupas e
despir o corpo peludo e retorcido. Com um
uivo prolongado, a fera se assentou sobre as
patas, agitando a cabeça de um lado para ou-
tro, as fauces escancaradas deixando escorrer
uma baba gosmenta.
A língua vermelha e pontuda se projetou
para fora da boca. O monstro correu à janela,
galgou-a e, num salto impossível, foi cair lá
fora, na neve fofa.

34
Uivou ferozmente, depois sumiu em direção
à floresta.

***

Antes de fechar a porta atrás de si, Torg


parou para ouvir aquele uivo lancinante que o
fez arrepiar-se.
— Lobo nojento! — rosnou, batendo a por-
ta.
As sombras da noite avançavam celere-
mente. Torg acendeu algumas velas, depois
olhou para o esquife junto à lareira. Sentou-se
ali perto, respirando fundo.
Estava exausto, no limite de suas forças.
Mesmo para ele, a viagem seguida e todo o
trabalho no castelo o haviam arrasado.
O ranger tétrico de velhas dobradiças o fez
erguer a cabeça. A tampa do ataúde equili-
brou-se, aberta. As mãos descarnadas e pon-
tudas do Drácula se apoiaram nas bordas para
que o corpo pálido e feroz se erguesse.
Por momentos o Príncipe das Trevas olhou
ao seu redor, surpreso com a pobreza do am-
biente.
— Onde estamos? — indagou, deixando o
caixão.

35
— Num vilarejo próximo da Floresta da Tu-
ríngia, mestre.
— Numa cabana? Um Drácula alojado
numa cabana? — urrou, possesso.
— Perdão, mestre, mas foi o que pude con-
seguir. Há um castelo logo ali, mas se encon-
tra habitado...
— Besta inútil! Por que Drácula ocupa uma
mísera cabana e não o castelo como lhe é de
direito?
— O castelo pertence a um nobre, mestre.
— Eu o tomarei — disse o Drácula, avan-
çando até a porta.
A noite chegara rápida. A silhueta do caste-
lo mal se recortava contra as nuvens escuras e
baixas que tomavam o céu.
— Pode nevar em breve, mestre. Vai sair
ainda assim?
— Tenho sede, Torg! E quero aquele caste-
lo... Agora! — rosnou, deixando a cabana.
Torg foi até a porta, apoiando-se ao baten-
te. A figura apressada e tétrica do Drácula
avançava em direção às portas maciças do
castelo.
O corcunda se apiedou daquele gentil no-
bre que o tratara tão bem, oferecendo a sua
hospitalidade. Para Drácula, no entanto, isso

36
nada significava.
O corcunda recuou, fechando a porta. De-
pois deixou-se cair numa cadeira e adormeceu
quase que imediatamente.
Enquanto isso, Drácula chegava às portas
do castelo. Uma pesada aldrava estava presa
a uma cabeça de lobo. Riu e suas mãos pode-
rosas se apoiaram à madeira, empurrando-a
violentamente.
As portas gemeram, abrindo-se repentina-
mente. O monstro avançou, satisfeito com o
ambiente que encontrava. A ampla sala estava
iluminada por tochas. O fogo estava aceso. Os
móveis estavam limpos.
Estacou no centro do aposento, olhando
algo acima da lareira. Era um antigo brasão,
ostentando uma cabeça de lobo acima de uma
flecha partida. Julgou reconhecê-lo, mas pare-
cia algo profundamente encravado em sua
memória.
Olhou a escadaria. Caminhou por ela, che-
gando ao pavimento superior. Havia um corre-
dor amplo, dando acesso a diversas portas e a
uma outra escadaria que, possivelmente, leva-
ria a uma das torres.
Ao alcance de sua mão havia uma antiga
armadura medieval. Ele a empurrou, desfa-

37
zendo-a na queda. Esperava que o barulho
atraísse a atenção dos ocupantes do castelo,
mas intrigou-se quando nada aconteceu.
Abriu cada uma das portas, com fúria im-
paciente.
— Há alguém aqui? — indagou e sua voz
trovejou pelos corredores silenciosos.
Sem obter resposta, retomou à sala de en-
trada, levando consigo a lança que estivera
apoiada à armadura que derrubara.
Estacou diante da lareira. Seu braço se er-
gueu e a lança foi arremessada com força po-
derosa contra o brasão acima da lareira, en-
cravando-se entre os olhos da figura do lobo.
Riu satânicamente.
— Este castelo é meu! — berrou, esperan-
do que seu desafio fosse ouvido.
Apenas o vento respondeu, sibilando sinis-
tramente pelas frestas das janelas e através
das portas escancaradas.

***

Ao redor de uma mesa, na casa do burgo-


mestre, um grupo de homens e mulheres se
reuniam. Diante deles, estranhos objetos fais-
cavam à luz de uma enorme vela negra.

38
Johann Adelfrel agitou uma taça trabalhada
a partir do crânio de um lobo. O sangue ver-
melho-escuro em seu interior borbulhou. O
burgomestre mergulhou, então, ali dentro, um
pedaço de osso preso à sua mão por uma cor-
rente de prata.
— Nosso werwolf saiu para a noite, irmãos.
Vamos deixá-lo agir livremente para que atinja
a plenitude de suas forças e de sua sede im-
placável. Quando seus instintos estiverem
aguçados, nós o teremos pronto para nos aju-
dar a vencer o predileto de Satã?
— E onde está ele agora? — indagou um
dos homens.
— É o que veremos agora — disse Johann,
fazendo um sinal para uma das mulheres ao
seu lado.
Ela se levantou e foi ali perto, retornando
com uma gaiola, onde havia um rouxinol.
Abriu a pequena porta e introduziu a mão,
buscando apanhar a pobre ave, que se debatia
contra o arame.
Tomou-o e retirou-o. Duas mulheres ao seu
lado seguraram as asas da ave, mantendo-a
aberta, expondo à luz da vela o ventre delica-
do.
A bruxa apanhou um estilete. Pronunciou

39
algumas palavras cabalísticas e ininteligíveis
antes de abrir, com um golpe cruel, o ventre
do pássaro, cujos olhos estremeceram.
Os dedos apressados da mulher penetra-
ram pela abertura sangrante, retirando as vís-
ceras do animal e depositando-as num prato
contendo uma mistura leitosa e viscosa.
O sangue das vísceras do pássaro se espa-
lharam, formando curiosas figuras. Suas entra-
nhas se acomodaram. A bruxa aproximou a
vela e debruçou a cabeça sobre o prato, fican-
do assim durante algum tempo.
Quando a ergueu, seu olhar revelava sur-
presa.
— Ele já está entre nós! — exclamou, num
rosnado.
Os outros se entreolharam.
— Tem certeza, irmã? — indagou o burgo-
mestre, igualmente espantado.
— Sim, está claro nas entranhas do pássa-
ro.
Um silêncio pesado caiu entre eles. Outras
velas foram acesas, tirando o aposento da pe-
numbra macabra que a dominava.
A surpresa persistiu naqueles rostos crispa-
dos. Pensativo, o burgomestre se aproximou
da janela. Por instantes esteve ali, como que

40
buscando uma resposta para o enigma. Vol-
tou-se, repentinamente.
— O estranho que chegou hoje! — excla-
mou.
— Está no castelo... Possivelmente um cria-
do do barão, excelência — respondeu alguém.
— O veículo... Por que aquele estranho veí-
culo, todo fechado? Alguém vasculhou seu in-
terior?
Os outros se entreolharam, como se a su-
posição do burgomestre ganhasse um signifi-
cado especial para cada um.
— Acredita que o nosferat, predileto de
Satã possa estar lá dentro?
— Apenas isso explicaria!
— Vamos verificar, então.
— Não durante a noite. Nosso werwolf está
solto. Ele teme apenas a mim, que conservo o
osso de um ancestral dele preso por uma cor-
rente de prata. Ele poderia destruir qualquer
outro que cruzasse seu caminho. Amanhã,
quando amanhecer, vocês farão isso. Quero
que matem alguns lobos também, como forma
de acalmar o povo e não despertar o medo
pela volta do werwolf.

***

41
As asas negras e enormes se fecharam e o
morcego sinistro foi pousar no parapeito da ja-
nela.
Em seguida, cresceu o vulto ameaçador do
Drácula, cujos olhos faiscavam de sede maca-
bra, observando através do vidro embaçado.
Lá dentro, os cabelos louros deliciosamente
soltos sobre o travesseiro, descansava Morela
Keine, alheia à ameaça monstruosa.
Sua beleza fascinou o vampiro. Os traços
suaves de seu rosto, as linhas sensuais de
seus lábios e o pescoço gracioso tentaram-no.
O corpo jovem oculto pelas grossas cober-
tas podia ser adivinhado pela imaginação
lúbrica do Drácula. Pensou em seios rijos e es-
petados, com toda a arrogância da juventude
plena. Pensou em coxas sedutoras, em um
ventre achatado e macio, num calor reconfor-
tante e voluptuoso.
Seu olhar luziu fantasmagoricamente. Mo-
rela agitou-se no leito. Seus olhos se abriram
espantados, concentrando-se naquele vulto di-
ante da janela.
Quis gritar, mas o olhar hipnótico do mons-
tro já a dominara. Ela ficou estática, trêmula
como uma corça assustada, deliciosamente

42
tentadora em seu horror.
As mãos do vampiro arranharam o vidro,
tecendo ordens no mover lento dos dedos os-
sudos. Sua boca se abriu e as presas malditas
antegozaram a maciez daquelas carnes frescas
e tentadoras.
Como uma boneca sem vontade, Morela se
ergueu. O vampiro estremeceu de volúpia ma-
cabra, observando as formas que adivinhara
perfeitas naquele cobertor.
A jovem se aproximou da janela, abrindo-a.
Uma lufada fria a fez recuar. Drácula penetrou
em seu quarto. A janela foi fechada. O calor
do aquecimento voltou. O olhar do vampiro
era de sangue.
Drácula, no entanto, hesitou. A beleza in-
gênua da garota o contagiara. Ele pensou em
noites de solidão, no desespero das horas va-
zias, dos apetites insaciáveis.
A ausência de uma companheira nunca
doeu tanto em seu negro coração. Morela
guardava em seu corpo e em sua beleza o fas-
cínio das mulheres, antigas, que se entrega-
vam na adolescência a seus senhores.
Velhos apetites o fizeram emocionar-se. Ele
depositou suas mãos frias sobre os ombros de
Morela e a empurrou delicadamente para o lei-

43
to.
Antes de fazê-la deitar-se, soltou os laços
da camisola, que escorregou farfalhante,
amontoando-se sobre os pés delicados.
O olhar sanguinolento do monstro se
abrandou, dominado pela volúpia, enquanto
percorriam os caminhos curvilíneos e seduto-
res daquele corpo ainda por atingir a plenitu-
de.
As proporções eram uma promessa de que
em breve haveria ali um corpo capaz de enlou-
quecer o mais santo dos homens. Drácula se
debruçou sobre ela, contendo seu apetite ma-
cabro, guiando-se agora pelos seus instintos
lúbricos e bestiais.
Sua boca fria e gosmenta pousou sobre a
pele morna da garota, que estremeceu. Aque-
le tremor deliciou o vampiro, que a beijou ao
redor dos seios, depois no ventre, enquanto
uma de suas mãos acariciava longamente o
pescoço torneado.
Endireitou-se para olhá-la nos olhos. Por
um longo tempo a olhou, amansando-a, tiran-
do dos olhos azuis o medo e a dúvida.
Estava serena, então, à disposição de sua
vontade. Serena e bela, imaculada e tentado-
ra, mescla de pureza e vício, santidade e de-

44
generação.
— Será minha companheira, mulher —
murmurou ele, sempre olhando-a nos olhos.
Ela sorriu levemente, o bastante para que
ele se certificasse de que sua vontade prevale-
ceria mais uma vez, como sempre prevalecera.
Era o senhor do mundo das trevas, o
príncipe da maldade, o herdeiro na Terra do
desejo de Satã. Nada podia ser negado a ele.
Nada podia ser retirado dele.
— Serei suave... Seu sangue será meu san-
gue e seremos apenas um — murmurou ele,
aproximando sua boca do pescoço dela.
Beijou-o e lambeu-o como se o louvasse.
Depois pousou seus lábios sobre a veia late-
jante e arranhou levemente a pele, antes de
fazer com que as presas se aprofundassem,
fazendo o sangue brotar vermelho e apetitoso.
Sugou-o, gorgolejando esganadamente,
enquanto a acariciava gentilmente por todo o
corpo. Seus olhos observaram, esgazeados
pelo deleite, a pele fresca perder o tom rosado
e se tomar cadavérica.
Quando a última gota foi absorvida por
seus lábios sequiosos, Drácula se ergueu. Com
uma das unhas ele rasgou o próprio pulso e
aproximou-o dos lábios da garota.

45
Seu sangue enegrecido e impuro contami-
nou-lhe o corpo, inoculando-lhe a pior das
maldições: aquela que a faria um ser da noite,
uma noiva de Drácula.

CAPÍTULO 4

O estranho e feroz animal caminhava à


frente da matilha que o seguia em silêncio.
Suas pisadas eram abafadas pela neve
fofa. Ao seu redor, a floresta fantasmagórica
parecia estremecer, como se um pavor extre-
mo ferisse a sensibilidade das árvores e das
plantas soterradas na neve.
Pararam no alto de uma colina. O enorme
lobo ergueu a cabeça e farejou. Depois uivou
ferozmente. Sua mente animalesca se agitou.
Pressentira a presença de um ser humano.
Assanhou-se. O gosto pelo sangue, pelo di-
lacerar das carnes, pelo partir dos ossos, pela
destruição total o fez equilibrar-se nas patas
traseiras e rosnar furiosamente.
Os lobos se acercaram. Abaixo, na pequena
fazenda, uma luz se alongou quando uma por-
ta foi aberta. Um homem caminhou até o de-
pósito de lenha. Os animais uivaram e desce-
ram a colina.

46
Guiando-os, a criatura usava de astúcia,
cortando a passagem da futura vítima, sepa-
rando-a da casa. Alguns lobos foram farejar
mansamente a porta aberta da casa. Outros
permanecerem ao lado do monstro, aguardan-
do.
O fazendeiro deixou o depósito, sobraçan-
do algumas achas de madeira para o fogo. Es-
tacou ao ver os animais.
— Werwolf! — exclamou, ao ver aquele
que os liderava.
A criatura rosnou ruidosamente. O pavor
nos olhos do homem assanhou sua fúria. Seus
músculos poderosos se distenderam e ele sal-
tou, urrando loucamente, as garras adian-
tando-se, buscando o pescoço da vítima, dila-
cerando-a, espargindo sangue na neve.
A matilha caiu sobre o homem que estrebu-
chava, tentando gritar, mas expelindo apenas
golfadas de sangue. O lobisomem se voltou,
quando uma figura feminina se alongou, à
porta da cabana.
— Deus! Não! — gritou ela, tentando fe-
char rapidamente a porta.
O homem-lobo venceu rapidamente a dis-
tância e atirou-se contra a madeira, arreben-
tando-a de seus gonzos e derrubando-a sobre

47
a mulher, que gritava horrorizada.
Duas crianças, pálidas e estáticas, assisti-
ram à cena terrível. O sangue da mãe derra-
mou-se pelo assoalho, quando o monstro se-
parou-lhe a cabeça do corpo, atirando-a aos
lobos que rosnavam famintos e agressivos.
— Vá embora! — gritou uma das crianças.
O werwolf correu para elas, apanhando-as
pelos braços, agitando-as, fazendo seus cor-
pos se chocarem um contra o outro. Depois,
ainda não satisfeito, atirou-as contra a parede,
esmagando seus ossos.
Suas garras se abateram, então, sobre os
corpos daqueles infelizes, desmembrando-os,
rasgando-os e atirando-os aos seus amigos lo-
bos.
Uivou em seguida, saltando sobre os mó-
veis, deixando impresso nas toalhas impecá-
veis a marca ensanguentada de suas patas.
Agitou-se ainda, enfurecido, arrebentando
o que via pela frente, sem aplacar aquela sede
de violência impiedosa que torturava seu cor-
po.
Estacou, finalmente, observando o ganir
dos lobos, disputando o macabro festim. Ros-
nava. Seus ouvidos zumbiam, captando os
sons tétricos do sangue jorrando, de carnes

48
sendo despedaçadas, de ossos sendo tritura-
dos. Depois se voltou e olhou a casa. O brilho
de seu olhar amansou ao ver as fotos da famí-
lia sobre a cornija da lareira.
Foi até lá. Pôs-se nas patas traseiras. Ape-
sar das garras enormes, as patas dianteiras
conservavam a aparência e as funções de
mãos humanas, cobertas de pelos enormes e
incomuns.
Apanhou uma das fotos. Olhou-a demora-
damente, como se em seu cérebro animalesco
alguma doce lembrança se manifestasse.

***

Oculto nas sombras, Drácula observava.


Sentia-se fraco ainda. Sugara o sangue daque-
la jovem, mas o devolvera para torná-la sua.
Precisava se alimentar novamente, recupe-
rando a plenitude de suas forças. A viagem se-
ria longa, teria de estar preparado.
Um sorriso quase humano formou-se em
seus lábios ao pensar na companheira que le-
varia consigo. Aquela jovem tinha nobreza e
beleza, ingredientes que um Drácula julgava
imprescindíveis numa mulher.
A docilidade com que ela aceitara ser sub-

49
jugada a fizera particularmente deliciosa, en-
ternecendo até seu bruto coração.
Sons de vozes chamaram sua atenção. Seu
olhar aguçado procurou a origem deles.
— Boa-noite, então, Sra. Rugstein! — disse
um homem, deixando a casa. — Virei ver seu
marido amanhã novamente. Estou certo que
essa crise passará logo.
— Obrigada, Dr. Hansmult! — disse ela, es-
perando até que o médico transpusesse o por-
tão e saísse para rua.
Drácula sorriu diabolicamente, deixando as
sombras onde se ocultara e avançando pela
rua. O médico se afastava em direção oposta.
Transpôs o portão e se aproximou da por-
ta. Bateu com força e esperou. A porta se
abriu quase que imediatamente.
— Esqueceu algo, Doutor... — interrom-
peu-se a mulher, olhando aquelas faces cada-
véricas e aquele olhar sanguinolento.
— Eu quero entrar — disse Drácula,
olhando-a fixamente.
— Sim, entre — disse ela, num fio de voz.
O vampiro entrou, fechando a porta atrás
de si. Amedrontada, a mulher recuara até jun-
to da lareira. O monstro rosnou, caminhando
para ela, fixando-se no seu pescoço.

50
Estendeu as mãos e afastou-lhe a gola do
vestido. Um crucifixo faiscou. O vampiro co-
briu os olhos e urrou, esmurrando-a furiosa-
mente.
— Maldita! Livre-se disso! — ordenou.
Atônita, ela pareceu não entender que o
crucifixo era a salvação. Vendo aquele ser es-
tranho e horripilante se retorcer, porém, reco-
brou a razão e correu da sala.
Drácula foi em sua perseguição, derruban-
do tudo à sua passagem. A mulher trancou-se
num aposento. O corpo furioso do vampiro ati-
rou-se contra a porta, arrebentando-a. A mu-
lher foi se refugiar atrás do leito, onde o mari-
do, surpreso, tentava compreender a situação.
— Quem é você? — gemeu.
— Para o inferno com você — berrou o
monstro, erguendo-o do leito e atirando-o
contra a parede.
A mulher gritou horrorizada. Luzes se acen-
deram nas casas vizinhas. Um policial trilou
seu apito freneticamente, clamando por auxí-
lio.
Drácula saltou sobre a cama, apanhando a
mulher pelos cabelos e jogando-a ao chão.
Deitou-se sobre ela, cravando imediatamente
as presas em seu pescoço e sugando avida-

51
mente o sangue que jorrava.
O marido rastejou pelo assoalho, brandindo
com dificuldade uma banqueta. Arrebentou-a
na cabeça do monstro, que urrou e se pôs de
pé num salto. O homem encolheu-se aterrori-
zado quando o vampiro apanhou um móvel
pesado, alçou-o acima da cabeça e arremes-
sou-o sobre o corpo do pobre infeliz, esma-
gando-o.
A mulher gemeu, rastejando para junto do
marido. Drácula segurou-a pelos cabelos e er-
gueu-a. Punhos furiosos esmurraram a porta
lá embaixo. O vampiro não se atemorizou. Su-
gou o sangue que escorria pelo pescoço da
mulher, depois atirou o cadáver exangue pela
janela, arrebentando-a.
Gritos de pavor cortaram a noite, quando
os vizinhos perceberam aquele corpo despen-
car, estatelando-se na neve.
O vampiro metamorfoseou-se rapidamente.
Suas asas negras e pontudas fulguraram tétri-
camente e o corpo monstruoso ganhou a es-
curidão da noite, desaparecendo rapidamente.

***

O burgomestre fora notificado e rapida-

52
mente compareceu ao local da tragédia. Sobre
uma mesa larga, na sala da casa, estavam os
dois cadáveres.
Insensível, ele se aproximou, observando
as expressões de terror nos rostos dos mortos.
Um de seus seguidores apontou discretamente
para o pescoço da mulher. O burgomestre em-
palideceu, estremecendo.
Fez um gesto com a cabeça, retirando-se,
seguido por meia dúzia de pessoas. Momentos
mais tarde, reunidos numa das salas de sua
casa, o burgomestre desabafou sua apreen-
são.
— Ele está aqui, realmente. Viram suas
marcas no pescoço da pobre Sra. Rugstein.
Temos de nos apressar. Amanhã é sábado. À
meia-noite, nós nos retiraremos da festa e vi-
remos para cá, realizar nosso sabbat. Convo-
caremos Satã e sacrificaremos a virgem para
que nosso werwolf se tome invencível e des-
trua o nosferat. Quando o dia chegar, nós se-
remos os prediletos do mestre.
— Assim será — responderam os outros. —
Mas onde vamos achá-lo?
— Façam como disse antes. Vão ao castelo
ao amanhecer. Estou certo que aquele veículo
é a resposta. Se assim for, nosso werwolf não

53
precisará procurar muito pelo seu oponente —
riu.
Os homens compartilharam de sua satisfa-
ção, trocando sorrisos e olhares cúmplices.
— Antes de mais nada, é preciso que algo
seja feito em relação à Sra. Rugstein — disse
o burgomestre. — Ela foi contaminada e terá
de ser destruída. Cortem-lhe a cabeça, depois
extirpem-lhe o coração, sepultando-o em ou-
tra parte. Assim ela não se tornará um vampi-
ro também.
— Cuidarei pessoalmente disso — disse o
Dr. Hansmult.
— E você, faça como sempre: transfira os
bens da família Rugstein para mim — ordenou
a outro.
Um criado entrou, trazendo bebidas fortes.
Uma das mulheres presentes se adiantou. Era
a sacerdotisa da irmandade satânica.
— Como faremos com Morela, senhor?
— Creio que o Dr. Hansmult também pode
cuidar disso. A pretexto de um exame qual-
quer, irá buscá-la para interná-la no hospital.
Ao invés disso, vai trazê-la até aqui, onde será
preparada para satisfazer a luxúria de Satã,
antes de ser sacrificada a ele.
— Eu faço isso, excelência — sorriu o médi-

54
co.
— Creio, então, que está tudo preparado.
Quando o domingo chegar, nós seremos con-
templados com a eternidade, ganhando a pre-
ferência do Rei das Trevas.

CAPÍTULO 5

Drácula vasculhou o castelo de ponta a


ponta, sem encontrar sinais de seus ocupan-
tes. Faltava pouco para o amanhecer quando
foi até a cabana.
Torg jazia, profundamente adormecido, so-
bre uma cadeira. O vampiro sorriu sadicamen-
te, depois chutou-a, derrubando-a. Torg sal-
tou, assustado.
— Desperte seu bastardo inútil! Não é o
servo de Drácula apenas para dormir.
— Perdão, mestre. Eu estava no limite de
minhas forças.
— Já repousou. Tenho trabalho para você,
muito trabalho. Vasculhei o castelo. Não en-
contrei sinais de seus ocupantes.
— É apenas um, mestre. Um nobre.
— Para o inferno com ele. O castelo é meu.
Minha vontade é soberana. Leve para lá meu
ataúde. Há celas adequadas nos calabouços.

55
Seja rápido. O dia está para chegar.
— Apenas isso, mestre? — indagou o cor-
cunda.
— Depois quero que providencie um pu-
nhado desta terra e o acomode como sabe fa-
zer. Providencie também um ataúde de luxo.
Leve-o para junto do meu...
— Uma companheira, mestre?
— Não me interrompa, verme apodrecido!
— rugiu o monstro. — Faça como mandei.
Possivelmente uma mulher seja sepultada
hoje. Quero que lhe crave uma estaca no co-
ração. Não desejo outra. Já tenho o que me
basta.
— Assim será feito, mestre! Quando a noite
chegar novamente, irei ao cemitério da cidade
e tratarei disso.
O vampiro não esperou que ele terminasse.
Deixou a cabana e caminhou para o castelo.
As brumas da noite se desfaziam. Drácula se
apressou.
Quando entrou no castelo, um rosnado fe-
roz fez que ele se voltasse. Parado atrás dele,
à porta, estava um lobo enorme, de olhar fais-
cante e boca escancarada, exibindo dentes
pontiagudos e mortais.
Um sorriso de desprezo desenhou-se nos

56
lábios do vampiro, que fixou seu olhar injetado
no olhar da fera. Para sua surpresa, porém,
ela caminhou ameaçadoramente em sua dire-
ção.
— Afaste-se! Sou Drácula, senhor dos ani-
mais da noite.
O lobisomem ergueu-se nas patas trasei-
ras. Só então o morcego-humano percebeu o
que tinha pela frente. Esquivou-se agilmente,
quando o salto enraivecido aconteceu.
O lobisomem caiu adiante, parando por ins-
tantes. Em seus olhos bestiais pareceu cintilar,
ainda que por breves instantes, um lampejo
de surpresa e admiração.
Depois, deixando-se levar pelos instintos,
sedento de ódio e destruição, voltou a saltar
sobre o vampiro, que rosnou furiosamente e
aceitou o combate.
Os corpos poderosos se chocaram em ple-
no ar, rolando pelas lajes frias, urrando deses-
peradamente. As garras do monstro em forma
de lobo buscaram a garganta do Príncipe das
Trevas, que reagiu, empurrando-o para trás.
Sua mão foi segura pelas garras do lobiso-
mem, que girou o corpo furiosamente, arre-
messando o vampiro contra a cornija da larei-
ra.

57
Antes de se chocar contra as pedras, Drá-
cula se transformou no morcego, que esvoa-
çou ao redor do lobisomem, cujos urros besti-
ais abalavam as estruturas do castelo.
O dia chegava, finalmente. Torg surgiu à
porta, a tempo de assistir o adiamento do
combate.
Uivando grotescamente, o lobisomem gal-
gou as escadas, em direção aos aposentos su-
periores.
Drácula materializou-se diante do corcun-
da.
— Rápido, besta humana! O dia chega! —
alertou, caminhando em direção ao calabouço,
seguido por Torg, que arrastava atrás de si o
precioso ataúde.

***

Amanhecera. As nuvens escuras continua-


vam baixas, quase roçando os picos mais al-
tos. O vento cortante varria a floresta, ocul-
tando em nuvens desvanecentes as tocas
sombrias onde os lobos se ocultavam.
Na cidade, um clima de medo se instalara,
após os acontecimentos da noite anterior.
Uma família fora devorada pelos lobos. Outra

58
fora destruída violentamente por algo que nin-
guém podia imaginar o que fosse.
Grupos de homens se formavam, todos ar-
mados e carregando armadilhas metálicas
para animais. Aguardavam apenas as ordens
do burgomestre para entrarem em ação.
Ele acordou cedo naquele dia. Após visitar
mais uma vez a casa dos Rugsteins, foi levado
até a fazenda atacada pelos lobos. Ali ordenou
que a pista da matilha fosse seguida e que
todo e qualquer animal fosse exterminado.
Com suas espingardas de grosso calibre
preparadas para disparar, os homens aprofun-
daram-se pela floresta. Algo, porém, parecia
preocupar o homem poderoso.
Ele retomou à cabana, seguido de meia dú-
zia de colaboradores. Parou junto à lareira,
olhando o retrato caído. Apanhou-o. O vidro e
a moldura, estavam manchados de sangue.
Exibiu-os aos outros.
— Acha que ele, quando fera, pode se lem-
brar?
— Eu não sei. Posso dominar sua vontade,
não suas lembranças. Além disso, não sei se
um werwolf pode pensar...
— Corremos algum perigo de que ele fuja
ao seu controle, excelência?

59
— Não, jamais. Enquanto eu tiver o osso
de seu ancestral preso àquela corrente de pra-
ta, sua vontade estará subordinada a minha
vontade.
— Quer ir conosco ao castelo, excelência?
— indagou um deles.
— Não, tenho algo a fazer na cidade. O pá-
roco precisa de ajuda para dar os últimos reto-
ques aos preparativos da festa, além de nosso
sabbat, é claro.
Os outros compreenderam.

***

Torg terminara de instalar o ataúde de Drá-


cula numa das celas mais profundas do cala-
bouço escuro. Depois retomara à sala princi-
pal.
Em suas retinas ainda estavam impressas
as cenas que presenciara ali. Vira seu mestre
em luta com uma fera semelhante a um lobo.
Olhou as escadas. A besta fugira naquela
direção. Intrigado, o corcunda caminhou até
lá. Detestava os lobos. Procurou algo com que
se defender. Viu a lança espetada no brasão
acima da lareira.
Precisou usar de todas suas forças para de-

60
sencravá-la. Com ela nas mãos, subiu um a
um os degraus. Havia poeira no pavimento su-
perior. Pegadas confusas conduziam numa só
direção: os aposentos do barão.
Foi até lá. A porta estava aberta. Sobre a
cama, nu e adormecido, estava o corpo claro
do nobre. Pé ante pé o corcunda se aproxi-
mou.
Não sabia o que pensar. As mãos do barão
estavam sujas, seus pés também, como se ele
houvesse caminhado pela poeira do corredor.
Roupas dilaceradas se espalhavam pelo
chão. A janela estava aberta. Notou alguns fe-
rimentos no corpo do barão. Algo estalou em
sua mente.
— Werwolf! — murmurou, inaudível.
Recuou, ganhando o corredor e voltando à
ampla sala. Observou o brasão dos Flaming,
acima da lareira.
— A cabeça do lobo! — exclamou, atônito,
compreendendo afinal.
Ruídos de vozes chegaram até ele. Foi até
a porta do castelo. Um grupo de homens esta-
va junto do furgão, examinando-o. Apontaram
em sua direção, ao vê-lo.
— Ei, você! — gritou um deles e todos se
aproximaram. — O que faz aqui?

61
Torg percebeu a animosidade no tom da
voz e nos olhares que o cobriram.
— Trabalho aqui.
— O que trouxe no furgão?
— Nada!
— Acho que está mentindo, corcunda! —
falou um deles e lentamente eles foram gal-
gando a escadaria de entrada.
Torg foi recuando para a sala. As intenções
daqueles homens não eram claras, mas podia
perceber uma ameaça velada na maneira
como se portavam.
— Vamos, homem. Poupe problemas para
si mesmo e conte-nos tudo. O que trouxe no
furgão? O que faz aqui?
— Ele trabalha para mim! — disse uma voz
firme, no alto da escadaria ao fundo.
Os olhares convergiram naquela direção. O
barão terminava de vestir um casaco pesado
de couro, próprio para a caça. Trazia nas
mãos uma espingarda de grosso calibre. Seus
olhos estavam vermelhos, denotando uma noi-
te mal-dormida.
— Von Flaming! — exclamaram os recém-
chegados, em uníssono.
— O que fazem aqui? Quem lhes deu per-
missão para invadirem meu castelo dessa for-

62
ma? — indagou o nobre, enquanto suas mãos
brincavam com a terrível arma.
— Suspeitamos que tivesse voltado e... Co-
nhece esse homem? — indagou um, apontan-
do Torg.
— Sim, ele é meu criado. Mais alguma per-
gunta, cavalheiros? — perguntou asperamen-
te.
— Não, senhor barão. Estamos satisfeitos
— disse o porta-voz do grupo, que se retirou
em seguida.
O barão foi até a porta do castelo, observá-
los descerem a colina, na direção da cidade.
Depois olhou as nuvens baixas e ameaçado-
ras. Voltou-se para o corcunda.
— Vou caçar! Acha que pode cuidar do pa-
vimento superior agora? Não será necessário
que limpe os calabouços e as salas das torres.
Nada disso será usado mesmo — disse, afas-
tando-se.
Torg ficou ali, por instantes, depois cami-
nhou até a porta, a observá-lo.
— Se precisar de alguma ferramenta, vai
encontrá-las no galpão junto às cavalariças.
Seria interessante se consertasse as janelas —
gritou-lhe o nobre.

63
***

Bandeirolas festivas se estendiam de um


lado a outro do enorme barracão. Garotas e
jovens se entregavam com alegria à tarefa de
preparar o local para a festa tradicional.
Coordenando os trabalhos, estava o burgo-
mestre. Quando percebeu a entrada de seus
homens de confiança, afastou-se para um can-
to e esperou que eles fossem até lá.
— E então? — indagou.
— Estivemos no castelo. Vimos o barão e
examinamos aquele veículo. Não constatamos
nada de anormal e...
— Falaram com o barão?
— Sim, ele afirmou que aquele corcunda
que dirigia o veículo era seu criado.
— Isso nos deixa sem resposta — ponde-
rou o burgomestre, pensativo.
Afastada a suspeita sobre o único recém-
chegado, tornava-se impossível determinar
onde estaria o predileto de Satã. Preocupou-
se.
— Ele sabe... Ele zomba de nós! — murmu-
rou.
— Quem, excelência?
— O vampiro! A sacerdotisa não pode ter

64
falhado em sua previsão. Ele está entre nós.
Nós vimos a Sra. Rugstein e as marcas carac-
terísticas em seu pescoço. Onde está ele, en-
tão? — finalizou, encarando os outros.
O médico da cidade entrou no barracão na-
quele instante. Ao perceber onde se encontra-
va o burgomestre, caminhou rapidamente em
sua direção.
— Algum problema, Hansmult? — indagou
o maioral.
— Otto Keine mandou me chamar. Disse
que sua filha não estava bem. Vou para lá
agora mesmo.
— Excelente! Tem o motivo de que precisa-
va para levá-la para o hospital. Seja esperto e
afaste a família. Aquela jovem é importante
para nossos planos.
— Compreendo perfeitamente, excelência.
Vou tratar disso agora mesmo — disse o médi-
co, afastando-se apressadamente.
O burgomestre fez um sinal para que os
homens se aproximassem um pouco mais.
— Aquele maldito vampiro pode ser mais
astuto do que podemos supor. Vamos nos pre-
caver, então. Prepararemos uma armadilha
mortal. Há um meio de conjurá-lo. Faremos
realizar o sabbat no próprio castelo. Conheço

65
um local lá que se presta muito bem para a ci-
lada que tenho em mente. Usaremos o fogo
para destruir o vampiro, quando ele estiver
combatendo nosso werwolf.
— Fogo? E o werwolf?
O burgomestre sorriu satânicamente.
— Quando conseguirmos nosso intento,
não precisaremos mais do lobisomem. Ouçam
bem o que desejo que façam...

***

Morela mal respirava.


Brandamente seu peito se elevava, dando o
único sinal de vida de seu corpo. As faces páli-
das, as pálpebras cerradas, os lábios frios,
tudo indicava uma prostração total. Apesar
disso, havia uma expressão tranquila em seu
rosto, como se sonhasse deliciosamente.
Ao seu redor, os pais a olhavam com
apreensão, trocando olhares pesarosos, ansi-
ando pela chegada do médico. A preocupação
de ambos era com a mão da garota.
O ferimento estava ligeiramente infecciona-
do, pondo-os apreensivo quanto a sua nature-
za e suas consequências. A pronta chegada do
médico lhes deu um pouco de alívio.

66
— Como está ela? — indagou Hansmult.
— Ainda não despertou. Veja o ferimento
em sua mão. Parece infeccionado — apontou
o pai.
Hansmult concentrou ali sua atenção. To-
dos sabiam do desaparecimento da garota e
da história daquele estranho pesadelo que
contara. Não seria, portanto, difícil inventar
uma desculpa para afastá-la da família.
— Temo que seja grave! — disse, repre-
sentando seu papel. — Não sabemos onde ela
esteve naquela noite. Isto está me parecendo
uma mordida de animal. Se assim for, vamos
ter de isolá-la, evitando consequências desas-
trosas.
— Não pode tratá-la aqui mesmo? — inda-
gou a mãe, apreensiva.
— Creio que não, Sra. Keine. Pode não ser
nada, mas pode também ser algo grave. É
bom estarmos preparados. Vou mandar que
venha a ambulância..
— Eu faço isso Dr. Hansmult — antecipou-
se Otto.
Pouco mais tarde, a garota foi levada ao
hospital, onde isolaram-na numa sala. Satisfei-
to com o resultado da missão que lhe tinha
sido confiada pelo burgomestre, o médico não

67
se preocupou com outros exames.
Apenas curou o ferimento na mão da garo-
ta, depois deixou-a, aguardando a chegada da
noite para levá-la. Mais tarde, quando tivesse
de dar explicações à família sobre o que acon-
tecera à jovem, teria preparado uma boa his-
tória.
Poderia dizer que o ferimento contaminara
a bela Morela com o vírus da cólera. Possessa,
ela deixara o hospital durante a noite e fora
encontrada na manhã seguinte com o ventre
aberto e as carnes dilaceradas pelos dentes
impiedosos de uma matilha de lobos.
Sorria, quando deixou o hospital e se
apressou em procurar o burgomestre para pô-
lo a par de toda a situação.

***

O barão permaneceu ali, imóvel, por um


longo tempo. Suas mãos acariciavam longa-
mente a arma. Seu polegar alisava os gatilhos.
Sua mente se confundia com a brancura da
neve. Seus pensamentos se formavam e se
desfaziam como as nuvens rápidas que o ven-
to levantava adiante de si.
Um galho vergado deixou cair alguns flocos

68
de neve que pareceram despertá-lo. Seu olhar
se endureceu. Ele engatilhou a arma decidida-
mente, depois foi avançando em direção à ca-
verna.
Usou de toda a sua cautela, deixando que
seus olhos fossem se habituando à penumbra,
à medida que avançava. Um rosnar ameaça-
dor o fez levantar a arma.
No fundo da caverna, uma loba amamenta-
va seus filhotes. Os olhos do barão cintilaram
raivosamente. Ele levou a arma à cara. Seu in-
dicador procurou o gatilho. A loba voltou a
rosnar, mas era como se lhe pedisse tempo ou
o convidasse a sair, deixando-a em paz com
seus filhos.
O homem estremeceu. Uma imagem se for-
mou em sua memória. Viu uma mulher loura e
bela, abraçando duas crianças igualmente lou-
ras e angelicais.
Havia pavor nos olhos delas, como se elas
encarassem a face do próprio demônio. Gotas
de suor se desprenderam de seu rosto, apesar
do frio.
Os olhos do barão se fecharam, fugindo às
lágrimas que brotavam. Não conseguia expli-
car aquela visão brutal que explicava a morte
de sua esposa e de seus filhos.

69
Fora horrível. A tragédia o abalara profun-
damente. Ao voltar ao lar, certa manhã, depa-
rou com a cena sangrenta. Sua família fora
massacrada cruelmente. Jamais alguém men-
cionara alguma coisa a respeito do responsá-
vel.
Von Flaming queria apagar isso de sua me-
mória.
— Maldição! — berrou, como um louco,
apertando o gatilho com uma fúria incomum.
O estrondo das explosões abalou a caver-
na. Os corpos da loba e de seus filhotes foram
varridos contra a parede, numa pasta san-
grenta e agonizante.
— Maldição! — voltou a urrar o homem, re-
carregando a arma e disparando novamente,
transformando os corpos dos animais em algo
repugnante e irreconhecível, formado de ossos
partidos, vísceras expostas, veias arrebenta-
das, nervos à mostra.
Von Flaming atirou a espingarda para um
lado e correu para fora da caverna. A clarida-
de da neve ofuscou seus olhos, criando a vi-
são de seus fantasmas.
O corpo da loba e seus filhotes se mistura-
vam ao de sua esposa e dos filhos, todos es-
pelhando horror nos olhos inocentes, todos

70
chacinados brutalmente.
— Maldição! — voltou a gritar, apertando
as mãos contra a cabeça, depois correndo de
volta ao castelo.

***

Anoitecia. O vento uivava lugubremente lá


fora.
Torg foi até o galpão junto à cavalariça e
guardou as ferramentas que usara durante o
dia.
Sua atenção foi atraída para um objeto me-
tálico, misturado a algumas picaretas e pás.
Lembrou-se de que necessitaria daqueles ins-
trumentos para a macabra missão que tinha a
desempenhar.
O objeto metálico, no entanto, fascinou-o.
Ele revolveu as antigas ferramentas, até li-
bertá-lo. Era uma pesada bengala encastoada
com habilidade e arte. Limpou-a cuidadosa-
mente. O apoio tinha a forma de uma cabeça
de lobo e era de prata pura.
Gostou do objeto. Possivelmente pertencia
ao barão, mas, o fato de estar ali, atirado en-
tre velhas ferramentas, atestava sua inutilida-
de para o nobre.

71
Segurou-a com firmeza, procurando endi-
reitar ao máximo o corpanzil deformado, assu-
mindo ares de nobreza. Riu de si mesmo, de-
pois foi apanhar uma pá.
Retomou ao castelo, já invadido pelas som-
bras da noite. Um uivo medonho fez gelar seu
sangue. Sabia o que estava acontecendo e
procurou se esconder.
Permaneceu algum tempo espremido atrás
da escadaria, diante da pequena porta que
conduzia ao calabouço. Nada aconteceu. O si-
lêncio era quebrado apenas pelo gemer do
vento.
Deixou o abrigo e olhou demoradamente a
escada. Depois foi subindo um a um os de-
graus. Apertava na mão a pesada bengala,
como se fosse uma arma.
Pensou em tudo que sabia sobre os lobiso-
mens. A prata lhes era fatal. Se assim fosse,
estava bem protegido contra qualquer ataque.
Foi até o aposento do barão. Na escuridão, viu
as roupas dilaceradas no chão. Um uivo pro-
longado e doloroso veio de fora. Ele correu até
a janela, a tempo de ver uma sombra esguei-
rar-se na direção da floresta, desaparecendo
rapidamente.
Não gostou daquela situação. Drácula e um

72
lobisomem abrigados sob o mesmo teto fatal-
mente terminaria num confronto de forças po-
derosas, onde qualquer um poderia sair ven-
cedor.
Seriam duas bestas digladiando-se em fú-
ria, buscando a destruição e o extermínio do
oponente.
Talvez devesse cientificar seu mestre a res-
peito daquilo. Essa idéia o atirou na direção do
calabouço, levando-o até a cela onde o mons-
tro repousava.
Nenhum ruído se ouvia. A negra e sinistra
figura estava estendida no ataúde, repousan-
do sua cabeça sobre o travesseiro contendo
sua terra natal.
Drácula tivera uma caçada proveitosa noite
anterior. Possivelmente nem despertasse na-
quela noite, já que seus instintos estavam sa-
ciados.
Torg se retirou. Era preciso cumprir as or-
dens recebidas. Por instantes tentou imaginar
como seria a companheira escolhida pelo vam-
piro.
Invejou-o. Drácula podia ter o que desejas-
se sua vontade. As mulheres mais lindas podi-
am ser atraídas para ele. Torg, no entanto,
lastimava e quase o odiava por isso.

73
Estava nas mãos do monstro tirá-lo daque-
la agonia, premiando-o com um novo corpo,
cheio de beleza e vitalidade, adequado para
que todos os apetites que dormiam em seu
íntimo pudessem ser saciados.
Teria de esperar, no entanto. Havia uma
tênue esperança de que, de volta à Transilvâ-
nia, o vampiro resolvesse ser condescendente,
afinal.
Apanhou a pá e ia sair. Voltou-se e reco-
lheu a bengala. Não lhe parecia muito útil
mas, de certa forma, alimentava sua vaidade
doentia.
Deixou o castelo. Flocos brancos caíam do
céu, formando um véu que ia cobrindo grada-
tivamente a estrada, tornando confusas as ár-
vores da floresta, confundindo os montes
numa brancura total.
Julgou ver alguma beleza em tudo aquilo.

CAPÍTULO 6

A escuridão se fizera total, enquanto a


neve continuava caindo, cobrindo velhos jazi-
gos, sepulturas, cruzes e árvores desfolhadas.
Uma camada de neve se formara, dificul-
tando o trabalho do corcunda em localizar o

74
túmulo onde fora sepultada a mulher mencio-
nada por Drácula.
Caminhou a esmo pelo antigo cemitério,
até deparar com um jazigo recém-lacrado.
Junto dele, ainda havia as ferramentas e um
resto de cimento utilizado pelo coveiro para
terminar seu trabalho.
Descansou a pá e a bengala, sondando o
lacre da entrada. O cimento fresco esfarelava
em suas mãos. Com uma das ferramentas re-
moveu-o até libertar a laje que tapava a entra-
da.
Retirou-a. Dois ataúdes jaziam lado a lado.
Um era negro, com metais dourados, o outro
era branco, com ingênuos enfeites e um rosto
de anjo em bronze colado à tampa. Torg apa-
nhou-o e arrastou-o para fora.
Abriu-o com facilidade. Aguçou seu olhar,
tentando compreender o que via. O corpo es-
tava separado da cabeça. Com curiosidade,
rasgou a blusa fechada até o pescoço do cadá-
ver, descobrindo seios ainda firmes, separados
por uma chaga enorme, como se o peito da
mulher tivesse sido escavado.
Meteu ali seus dedos grosseiros e vascu-
lhou, à procura do coração, sem encontrá-lo.
Por instantes ficou estático, tentando com-

75
preender o que acontecera.
Tateou, em seguida, o pescoço do cadáver,
encontrando as duas feridas que provavam ter
sido vítima da sede de Drácula. O que estava
errado, então? Quem cortara-lhe a cabeça e
extirpara-lhe o coração?
Fosse quem fosse, sabia como tratar com
as vítimas de um vampiro. A curiosidade inicial
se transformou em perplexidade e, em segui-
da, em apreensão.
Alguém, possivelmente, sabia da presença
de Drácula na aldeia. Se assim fosse, talvez
suspeitasse onde localizá-lo. Já que sabia
como livrar as vítimas da maldição, segura-
mente também sabia como exterminar o
monstro.
A sensação de que um perigo extremo
ameaçava seu mestre o fez agir com rapidez.
Retirou o cadáver do ataúde, deixando-o no
mausoléu, fechando-o precariamente. Depois
apanhou um pedaço de corda ali perto e
amarrou o ataúde, improvisando um macabro
trenó.
Deixou o cemitério, tentando se apressar. A
nevasca diminuíra de intensidade. Raros flocos
caíam agora e um vento gélido soprava, arran-
cando fúnebres melodias das árvores ao redor.

76
Um uivo sinistro e prolongado se fez ouvir
acima do ruído do vento, não muito longe da
trilha usada pelo corcunda. Ele estacou, aper-
tando com força a bengala que trouxera. De-
testava os lobos.
Os uivos se repetiram, num coro macabro e
assustador. Entre aquelas vozes selvagens,
destacava-se uma, quase humana, lançando
uma espécie de lamento furioso contra o céu.
Torg identificou-a rapidamente. Era da
mesma figura que vira nas proximidades do
castelo. Com toda certeza, era o próprio Barão
Von Flaming, em sua forma de lobo, vagando
ferozmente pela floresta.
Os uivos aumentaram em número e inten-
sidade, como se deliberadamente formassem
um círculo ao redor do corcunda, que se liber-
tou da corda que usava para arrastar o caixão
e empunhou a bengala.
Era sua única arma. O pesado bastão de
prata poderia arrebentar algumas carcaças,
antes que pudessem se aproximar o bastante
para abocanhá-lo.
Momentos depois, podia ouvir os rosnados
selvagens bem próximos. Aquelas respirações
pesadas e animalescas estavam em toda parte
a sua volta. Uma sombra saltou agilmente

77
para a estrada, caminhando de um lado para
outro, revelando impaciência.
Tinha a forma de um lobo enorme e seus
olhos faiscavam na escuridão.
— Vá embora, maldito! — berrou o corcun-
da.
A criatura sobrenatural firmou-se nas patas
traseiras e manteve o corpo semi-curvado,
como uma grotesca mescla de homem e fera.
Seu uivo horrendo fez silenciar tudo ao ser
redor e gelar o sangue de Torg. Os outros lo-
bos aquietaram-se, como se respeitassem a
fúria bestial da criatura que os comandava.
— Vá embora! — berrou novamente Torg,
brandindo a bengala e fazendo-a assobiar no
ar.
O mostro não se intimidou, no entanto.
Rosnando selvagemente, aproximou-se lenta-
mente. Seus olhos avermelhados chispavam.
Sua boca aberta, exibindo longas e aguçadas
presas, deixava escorrer uma baba gosmenta.
Torg estremeceu, percebendo a terrível
ameaça. Rebelou-se, enfurecido, contra aque-
le ataque que poderia trucidá-lo.
Mas antes que a criatura infernal saltasse
sobre ele, seu olhar caiu sobre o bastão de
prata da bengala.

78
O berro foi lancinante e aterrador. Como
uma flecha, o lobisomem saltara sobre ele. No
último instante, Torg se esquivara e, com toda
a sua força violenta e desumana, golpeou o
corpo da criatura, que rodopiou pela neve, ga-
nindo dolorosamente.
Cego pela fúria, Torg avançou contra ele,
atingindo-o na cabeça com novo golpe.
O lobisomem gemeu e uivou, afastando-se
em saltos grotescos, arrastando uma das pa-
tas traseiras como se estivesse quebrada.
Ofegante, o corcunda ficou ali, ouvindo os
passos furtivos dos lobos que se afastavam.

***

O Dr. Hansmult levantou os olhos para re-


ceber os amigos que entravam em seu gabine-
te. À frente deles, o burgomestre parecia sa-
tisfeito.
— Como está a garota? — indagou.
— Um pouco abatida, mas isso é muito na-
tural. E a festa, como está?
— Estamos aguardando a vinda do pessoal,
mas a nevasca pode retardá-los. Estou certo,
porém, que, quando chegarem, não sairão tão
cedo. Estive pensando em algo muito impor-

79
tante. O salão do clube de boliche é perto da-
qui, alguém poderia ver quando a garota for
retirada. Acho prudente anteciparmos isso. As-
sim evitaremos que olhos curiosos possam cri-
ar problemas, Hansmult — ponderou o burgo-
mestre.
— Sugere que devo retirá-la daqui agora?
— Sim. Podemos levá-la para minha casa.
Será mais seguro. Quanto partirmos para o
castelo, ela irá conosco.
— Se prefere assim, não vejo inconvenien-
te.
— Há algo, porém, sobre o que devemos
estar seguros — disse o burgomestre, grave-
mente. — A virgindade da garota. Você a exa-
minou?
— Não com esse objetivo. Isso, porém, não
será difícil fazer.
— Então cuide disso. Depois leve-a para os
fundos do hospital. Estaremos lá, aguardando
em meu carro. Seja breve, no entanto. Se a
neve voltar a cair com intensidade, teremos
problemas para nos locomover.
Enquanto os outros saíam, o médico deixou
o gabinete e foi até o aposento onde Morela
estava internada. Entrou silenciosamente. A
garota estava adormecida, sob influência de

80
um narcótico ministrado por ele.
Aproximou-se do leito. Uma expressão de
deleite estampou-se em seu rosto, fitando o
corpo da garota, que descobriu cuidadosa-
mente.
Uma camisola grosseira moldava-se às for-
mas jovens e tentadoras de Morela. Um sorri-
so de luxúria e perversão desenhou-se nos lá-
bios do médico.
Esfregou as mãos, aquecendo-as, depois
levantou lentamente a camisola, desnudando
gradativamente as coxas rijas e bem tornea-
das.
Uma calcinha graciosa cobria as formas
íntimas da jovem. Hansmult estremeceu, en-
quanto a repuxava para baixo. Morela agitou-
se, girando o corpo, voltando para os olhos
lúbricos do médico as nádegas bem-conforma-
das.
A respiração de Hansmult se apressou,
traindo sua excitação. Alguém gemeu no apo-
sento ao lado, sobressaltando-o. Ele aguardou
alguns instantes, depois completou o trabalho
de despir a garota.
Tocou-lhe as coxas mornas e delicadas,
forçando-a a acomodar-se numa posição que
lhe possibilitasse o exame. Sua volúpia assa-

81
nhada impediu-o de perceber aquela palidez
anormal que cobria a pele da garota.
Sua mão avançou, entre tremores e hesita-
ções, num misto de carícia voluptuosa e frieza
profissional. Mordeu os lábios, endireitando-
se, afinal.
Sua respiração soava ofegante. Suas faces
estavam em fogo. Aquele corpo perfeito e ten-
ro despertou-lhe idéias absurdas que o delicia-
ram e assustaram ao mesmo tempo.
Nada podia fazer, no entanto. Aquela vir-
gindade precisava ser preservada para a glória
de Satã.

***

A escuridão era total no velho castelo. O


vento assobiava por entre as ameias e setei-
ras. Ratazanas se esgueiravam, rápidas e as-
sustadas. Aranhas aguardavam pacientemente
em suas teias, imóveis como a mão do destino
à espera da aproximação da presa.
No calabouço escuro e gélido, um murmú-
rio se agigantou, como se a presença de uma
criatura sobrenatural intimidasse as pedras
que compunham os alicerces do castelo.
Farfalhando, a capa longa e negra, esvoa-

82
çava, enquanto o vampiro avançava rapida-
mente pela escada em direção aos pavimentos
superiores.
Pouco depois, no alto de uma das torres,
contemplou as luzes da cidade ao longe e a
queda lenta e silenciosa dos flocos de neve.
Respirou fundo. O vento fez agitar sua
capa e seus cabelos. Seus olhos ganharam um
brilho intenso e fantasmagórico. A lembrança
daquela virgem deliciosa que escolhera para
companheira o fez estremecer.
A impaciência o dominou. Ele abriu os bra-
ços e a metamorfose grotesca se operou. O
morcego sinistro mergulhou em direção à flo-
resta, num vôo seguro, tomando a direção da
cidade.
Havia muitas luzes acesas na parte central
daquele amontoado de casas, denunciando a
festa, que lá teria lugar. Drácula não se per-
turbou com isso. Seu vôo tinha um destino de-
terminado: a casa de Morela.
Momentos depois, o negro e enorme mor-
cego equilibrava-se no beirai do telhado, agar-
rando-se à calha com suas unhas fortes em
forma de garras.
Seu olhar animalesco observou o aposento,
através da janela embaraçada. A cama estava

83
vazia. Morela não estava ali. Retomando a sua
forma humana, Drácula agarrou-se aos caixi-
lhos da janela, sondando impaciente o interior
do quarto.
A ausência de Morela o intrigou e enfure-
ceu. Ela deveria estar ali. Sugara-lhe o san-
gue. Seu corpo jamais poderia ter se levanta-
do.
Uma suposição o fez estremecer. Suas
mãos se fecharam em fúria e se abateram
contra a janela, estilhaçando os vidros e retor-
cendo os ferros que os emolduravam. Sua fi-
gura negra e sinistra saltou para o interior do
aposento.
— Malditos! — rosnou, caminhando pesa-
damente em direção à porta, que se abriu re-
pentinamente.
Otto Keine e sua esposa recuaram, bestifi-
cados pela presença ameaçadora daquele des-
conhecido, com olhos de fogo.
— Onde está ela? — urrou Drácula, saltan-
do ao encontro deles e agarrando Otto pelo
pescoço.
— Piedade, senhor! Somos pobres e... —
choramingou a mulher, mas o vampiro a fez
calar-se com uma violenta bofetada que dei-
xou impressa em sua face a marca daquela

84
mão maldita.
— Quero aquela jovem! Onde está ela? —
indagou furioso, quase esganando Otto Keine.
— Foi levada ao hospital! — gemeu a mu-
lher, aturdida, tentando se levantar. — Morela
foi levada ao hospital pelo Dr. Hansmult.
Drácula julgou reconhecer aquele nome,
mas sua fúria não o deixou atentar para isso.
Atirou Otto Keine para um lado e desceu a es-
cadaria em direção ao pavimento inferior da
casa.
Seu desejo de rever Morela estava acima
de qualquer coisa, até daqueles passos apres-
sados atrás de si.
— Morra, maldito! — berrou Keine, aper-
tando os gatilhos de sua espingarda de caça.
O estalido seco o fez aterrorizar-se. A arma
estava descarregada. Ele a segurou pelos ca-
nos e avançou na direção do monstro, golpe-
ando-o na cabeça com todas as forças de seu
desespero.
Drácula se voltou, encarando-o raivosa-
mente.
— Não! — gritou a mulher, quando o
monstro agarrou Otto pela cabeça e a fez girar
trezentos e sessenta graus, num estalo maca-
bro.

85
O corpo do homem amontoou-se como um
fardo vazio. A mulher desceu precipitadamen-
te as escadas para correr em sua direção. O
vampiro a agarrou pelos cabelos, girando-a no
ar antes de arremessá-la contra o corrimão.

***

Os dois caçadores sorriram, enquanto o fa-


cho de uma lanterna iluminava os olhos cinti-
lantes de um lobo preso numa das armadilhas
metálicas.
O animal se debatera, mas os dentes de
ferro haviam se fechado contra sua perna,
quebrando-a e prendendo-a. O sangue molha-
va a neve.
— Esse é dos grandes! — disse um dos ho-
mens.
— Vai ficar muito bom exposto na entrada
do salão de boliche. O burgomestre ficará sa-
tisfeito com nosso trabalho.
— Vamos matá-lo! Você quer atirar?
— Sim, deixe-me fazer isso. Quero fazer de
meio a não estragar-lhe a pele.
— Atire nos olhos. Uma bala bem colocada
se alojará em seu cérebro, sem danificar o
couro.

86
— Sim, mas não poderei fazer isso enquan-
to ele se mover furiosamente assim. É preciso
imobilizá-lo.
— Eu faço isso — disse o caçador, indo até
uma árvore e quebrando um pesado galho.
Aproximou-se do animal, que pareceu en-
tender sua intenção. Em vez de rosnar e se
debater, o lobo ergueu a cabeça e emitiu um
longo e doloroso uivo, que foi interrompido
pela pancada seca que o fez cair atordoado.
O outro caçador aproveitou-se disso. Com a
lanterna junto à arma para iluminar a mira, fez
fogo. Um espasmo violento agitou o corpo do
animal, que estrebuchou, antes de imobilizar-
se com uma cratera sangrenta e disforme
onde fora um de seus olhos.
— Belo tiro! — elogiou o outro. — Agora
ajude-me a tirá-lo da armadilha.
Os dois se juntaram para afastar os terrí-
veis dentes metálicos que prendiam a perna
do lobo. O vento gemeu lugubremente. Passos
furtivos pareceram soar de todos os lados.
Olhos chamejantes formaram um círculo de
terror ao redor dos dois caçadores.
— Diabos! Mais lobos — exclamou um,
pondo-se em pé e recarregando a arma.
O outro varreu os arredores com o facho

87
da lanterna, detendo-o numa sombra grotesca
e furiosa que se aproximava lentamente.
— Werwolf! — gritou ao outro, que apon-
tou a arma e fez fogo.
O impacto da bala fez o lobisomem cair
para trás e ganir loucamente, antes de se er-
guer num salto e voar para cima dos homens.
Suas garras sibilaram no ar, abatendo-se
sobre a garganta de um, arrancando-lhe car-
nes, veias e cartilagem. Um urro gorgolejante
se ouviu e o corpo tombou para trás, banhado
em sangue.
O outro caçador tentou correr. A lanterna
ficara para trás, iluminando a corrida oscilante
do lobo humano, que arrastava uma das per-
nas.
— Não, Deus! — suplicou o homem, trope-
çando num galho e rolando na neve.
Não pôde ver nada. Apenas um pavor insu-
portável dominá-lo, enquanto aquela respira-
ção animalesca se aproximava.

***

Cego pela fúria, o vampiro empurrou a por-


ta, deixando entrar uma lufada de vento frio
que fez a plantonista erguer os olhos, atrás de

88
seu balcão.
O medo estampou-se em suas faces ao ler
nos olhos daquele recém-chegado uma bestial
determinação.
— Onde está Morela? — indagou Drácula,
estendendo o braço poderoso e agarrando a
mulher pelos cabelos, trazendo-a para cima do
balcão.
— Lá atrás... — balbuciou, antes de ser jo-
gada sobre uma escrivaninha.
O monstro avançou pelo corredor, arreben-
tando portas selvagemente, em busca da mu-
lher que o cativara. Gritos desesperados se
elevaram. A presença daquele desconhecido,
agindo daquela forma, aterrorizou os pacien-
tes, pondo-os em polvorosa.
— Onde está ela? — berrou Drácula, reto-
mando em seguida, sem haver localizado o
aposento onde ela deveria estar.
Uma das enfermeiras surgiu a sua frente.
Drácula a agarrou pelo pulso, torcendo-o sadi-
camente.
— Morela! Onde está Morela? — indagou.
— Lá atrás, no isolamento — respondeu a
mulher, horrorizada, crispando-se pela dor.
— Onde? — insistiu o vampiro, jogando-a
para frente, na direção apontada.

89
Seguiu-a furiosamente. Um médico o inter-
pelou, mas foi silenciado imediatamente com
uma pancada no alto da cabeça que o fez
murchar como um balão vazio.
Dois internos se aproximaram por trás, ten-
tando agarrar o estranho e cruel personagem.
As mãos do Drácula se fecharam ao redor de
suas gargantas e seus corpos foram erguidos
facilmente.
Seus rostos se avermelharam. Seus olhos
se esbugalharam, injetando-se. Suas línguas
se projetaram obscenamente. Eles esmurra-
ram e chutaram o corpo rijo do vampiro, até
que suas forças esmorecessem e a morte che-
gasse.
Drácula soltou seus corpos e se voltou à
procura da enfermeira, que se valera da con-
fusão para escapar. Um policial surgiu à entra-
da do corredor, sacando a arma.
Drácula o encarou ferozmente. A arma foi
acionada. Os projéteis atravessaram o corpo
do vampiro, indo encravar-se na parede opos-
ta.
O monstro rugiu e saltou para cima de seu
agressor, golpeando-o no pescoço. Não satis-
feito, ergueu-o e torceu seu pescoço até ouvi-
lo estalar. O corpo do policial ficou se contor-

90
cendo no piso frio, estertorando em agonia.
Uma enfermeira ocultara-se atrás do bal-
cão. Drácula foi apanhá-la pelos cabelos.
— Mostre-me onde está Morela! — orde-
nou.
Tremulamente a mulher indicou o caminho.
À porta do quarto indicado, Drácula a atirou
para trás, contra a parede, depois empurrou
violentamente a porta.
O aposento estava vazio. A cama desfeita
parecia ainda sugerir as formas do corpo de
Morela. Gritos se ouviram, estridentes e deses-
perados. Vozes masculinas se agitaram e o
som de muitos passos fez Drácula arrebentar
a janela e desaparecer na noite escura.

***

A calma retomara ao hospital, uma hora


depois. Os pacientes foram acomodados e
tranquilizados.
O burgomestre ordenara ao chefe de polí-
cia que providenciasse uma guarda ostensiva
ao prédio. Depois se retirou para o salão de
boliche, em companhia de seus colaboradores.
Estava apreensivo e, ao mesmo tempo, sa-
tisfeito com o que ocorrera pois servira para

91
provar a presença do vampiro na aldeia. Sua
apreensão tinha origem na violência e na ex-
trema força demonstrada pelo monstro. Sua
satisfação vinha da descoberta interessante,
que lhe dava um trunfo poderoso na luta con-
tra ele, pela preferência de Satã.
Todos aqueles que estavam no hospital
afirmaram que o estranho visitante buscava
por Morela. Isso aguçou sua curiosidade.
— E então, excelência, o que pensa de
tudo isso? — indagou alguém.
— Acho que nossa lesta não irá muito lon-
ge. Primeiro, a nevasca atrapalhou a vinda de
muitos dos nossos, depois, esse trágico acon-
tecimento no hospital deve ter tirado o ânimo
de todos.
— E quanto ao sabbat?
— Será realizado. Antes, porém, há algo
que preciso descobrir. Vamos até minha casa.
Algum tempo depois, todos estavam na re-
sidência do maioral, ao redor do corpo pálido
e adormecido de Morela. O burgomestre se
debruçou sobre ele, afastando os cabelos que
sé espalhavam pelo travesseiro.
Riu satânicamente, depois apontou as duas
marcas no pescoço da jovem.
— É irônico, não? Nós a escolhemos para

92
glorificar Satã e o vampiro a escolheu como
sua eleita. Deve desejá-la muito para fazer o
que fez. Isso nos põe em vantagem. Temos
algo que ele quer e algo com que destruí-lo.
Providenciaram o que pedi?
— Sim, excelência. Deixamos num jeep,
mas será fácil transferir para um trenó.
— Façam isso agora mesmo. Ainda temos
uma hora para a meia-noite. Quando ele che-
gar, quero tudo pronto no castelo. Reúnam os
nossos. Satã se surpreenderá com nossa força
e nos recompensará.

CAPÍTULO 7

Torg havia arrastado sua macabra carga


até o castelo. Seus pensamentos ainda esta-
vam ligados ao lobisomem que o atacara. O
castão de prata da bengala fora sua salvação.
O fato de saber, no entanto, que aquele era o
castelo da fera o punha apreensivo e em sus-
pense.
Levou o ataúde ao calabouço, deixando-o
ao lado do outro. Drácula não estava e isso foi
mais um motivo para preocupá-lo. Não sabia o
que aconteceria se os dois monstros se encon-
trassem.

93
Na certa Drácula seria mais poderoso, mas
era difícil prever os resultados de um combate
como aquele. Eram duas criaturas malditas e
infernais. A maldade e a crueldade os guiava.
Seus apetites e forças eram idênticos.
Caminhava pelo castelo, ansioso, quando
ouviu ruídos e som de vozes lá fora. Rumou
para a sala de entrada. As vozes eram nítidas.
Os aldeões estavam chegando. Torg não en-
tendeu o que eles pretendiam, por isso se
ocultou.
Os trenós foram deixados junto à escadaria
de entrada. Um homem entrou, carregando o
corpo de uma garota. Outros praguejavam,
enquanto transportavam misteriosos tambores
para o interior da sala.
Tochas foram sendo acesas. As mulheres e
homens se moviam com rapidez e determina-
ção, como se a cada um estivesse reservada
uma tarefa.
Rapidamente rumaram para o calabouço, o
que deixou Torg curioso. Tratou de Seguiu-os.
Eles haviam deixado tochas por todo o corre-
dor úmido e frio.
O som de suas vozes vinha em forma de
ecos que ricocheteavam contra as paredes
empoeiradas e confundiam sua audição.

94
As tochas, porém, formavam uma trilha se-
gura. Momentos mais tarde, localizou-os numa
ampla sala que desconhecia. Uma espécie de
altar fora montado. O corpo da jovem estava
amarrado ao fundo, estendido sobre uma anti-
ga roda de torturas.
Diante dela, abria-se um alçapão enorme
que deveria cobrir um posso profundo.
Alguns homens mediam-no. Outros marte-
lavam alguns pedaços de madeira.
— Fechem o alçapão! — ordenou uma voz
imperiosa.
O olhar do corcunda se dirigiu àquele ho-
mem, que vestia uma túnica escarlate, borda-
da com símbolos que reconheceu logo.
— Satanistas! — murmurou, remexendo-se
com curiosidade.
O alçapão foi puxado por dois homens.
Aquele que ditara a ordem recuou até uma
alavanca na parede, baixando-a. Com um ruí-
do desagradável, o alçapão se abriu. O ho-
mem riu, demonstrando satisfação.
— Outra vez! — ordenou.
Parecia testar o funcionamento do alçapão.
Torg acompanhava tudo com curiosidade, sem
poder entender o que eles pretendiam.
— Deixem os tambores ali, daquele lado —

95
voltou a ordenar o homem de túnica escarlate,
sendo obedecido imediatamente.
O corcunda dirigiu, então, seu olhar para a
garota presa além do alçapão. Haviam amar-
rado seus pulsos com uma corrente, suspensa
no teto por uma roldana enferrujada.
A posição repuxada para o alto deveria ser
dolorosa, mas a garota permanecia imóvel, in-
crivelmente pálida, como se já estivesse mor-
ta.
— Fizeram na medida certa? — indagou o
que chefiava aquele estranho grupo.
— Sim, burgomestre — respondeu um dos
homens, enquanto erguia uma cruz improvisa-
da, antes de levá-la para cima do alçapão.
Os outros cercaram-no, concordando na
exatidão das medidas. Algo estalou na mente
do corcunda, ao observar e concluir.
A jovem presa era a isca. O alçapão era a
armadilha. A cruz seria a prisão. Os tambores,
na certa, significava a morte, com toda certe-
za.
Não era uma armadilha para o lobisomem,
disso estava certo.
— Mantenham esses tambores longe das
tochas — voltou a dizer o homem de escarla-
te.

96
— Gasolina! — exclamou o corcunda, com-
preendeu, afinal.
Tudo se encaixou em sua cabeça. Aquela
jovem, a armadilha quase perfeita e a atitude
determinada daquelas pessoas explicavam
quase tudo.
Apenas uma criatura estaria ameaçada por
aquilo: Drácula.
Havia confessado que escolhera uma com-
panheira. Ordenara a Torg que providenciasse
um ataúde. Depois apareciam aqueles estra-
nhos, com uma jovem pálida e uma armadilha
ameaçadora.
— Como? — Indagou-se.
Quem eram aquelas pessoas? Por que agi-
am daquela forma, como se soubessem da
presença do Drácula e quisessem eliminá-lo?
Não tinha as respostas, mas a certeza de
que seu mestre estaria ameaçado o fez deixar
o local. Precisava encontrá-lo e alertá-lo.
Não ouviu, portanto, o diálogo que se se-
guiu entre aqueles invasores do castelo.
— Excelência, esquecemo-nos do criado do
barão!
— Que mal ele pode nos pausar? — retru-
cou o burgomestre.
— Alertar o barão ou...

97
— Ou?
— E se ele for o vampiro?
— Tolo! Nós o vimos à luz do dia. Não
pode ser o vampiro. No entanto, em parte
você tem razão preocupando-se. Aquele criado
e seu veículo são os únicos desconhecidos na
cidade.
— Revistamos o furgão, estava vazio!
— E quem garante que ele já não tivesse
ocultado o vampiro aqui mesmo no castelo?
Encontrem-no!

***

O morcego sinistro havia pairado sobre a


cidade por um longo tempo, procurando fare-
jar a presença de Morela. Foi dependurar-se,
finalmente, num telhado.
Ali metamorfoseou-se em Drácula, cujos
olhos raivosos traduziam o estado de espírito.
— Morela! — murmurou, enquanto o vento
açoitava seu corpo, fazendo farfalhar a capa
longa e negra.
Ela estava em alguma parte da cidade, isso
era certo. Precisava encontrá-la. Não podia, no
entanto, dizimar toda a população do local.
O inverno prometia ser rigoroso. As estra-

98
das estariam intransitáveis. Era preciso cuidar
de sua alimentação. Torg poderia localizá-la.
Ordenaria ao corcunda que a encontrasse.
Torg sempre se desincumbia bem desse tipo
de missão.
Abriu os braços, transformou-se em morce-
go, e voou para dentro da noite.

***

Torg estacou, arrepiado, ao ouvir aqueles


uivos animalescos e prolongados varando a
noite. Passos soaram a suas costas e ele se
voltou. Três homens deixavam a porta do ca-
labouço.
— Ali está ele! — gritou um deles.
— Vamos pegá-lo! — ajuntou outro.
Surpreso, Torg não pôde evitar o ataque.
Os três se lançaram sobre ele, escoiceando-o
e esmurrando-o.
— Malditos! — urrou o corcunda, procuran-
do revidar, mas havia uma sanha cruel e as-
sassina brilhando nos olhos daqueles homens.
Atraídos pelo rumor da luta, outros surgi-
ram na sala, avançando em direção aos con-
tendores. Torg pressentiu um perigo terrível.
Seus braços fortes empurraram para trás dois

99
deles, depois ergueram uma pesada mesa.
Antes que pudesse arremessá-la sobre os
outros, um uivo feroz se fez ouvir, ecoando
pelos corredores do castelo como o lamento
maldito de uma alma penada.
Ele se voltou para a entrada. Os olhos do
lobisomem faiscavam, injetados. Sua boca
aberta deixava escorrer uma gosma sangren-
ta. Entre seus dentes pontiagudos, farrapos de
roupa traíam os resultados daquela noite.
— Werwolf! — exclamaram os satanistas,
recuando na direção da porta do calabouço.
— Vá embora, animal do inferno! — berrou
Torg, atirando a mesa na direção do lobo hu-
mano, que recuou habilmente ao pressentir o
perigo.
Avançou, em seguida, arrastando uma das
pernas. Havia ódio em seus olhos. Reconhece-
ra Torg e se lembrou da agressão sofrida.
Rosnou ameaçadoramente. A matilha san-
guinária postou-se atrás dele, faminta, ansiosa
pelo repasto que ele proporcionaria.
O corcunda foi recuando na direção da es-
cadaria que levava ao pavimento superior, trê-
mulo de pavor. Conhecia sua força, mas ja-
mais poderia enfrentar a fúria de um lobiso-
mem sem dispor de uma arma adequada.

100
— Werwolf! — gritou o burgomestre, exi-
bindo a corrente de prata em cuja ponta pen-
dia um pedaço de osso humano.
A fera se voltou para ele e seus olhos bri-
lharam ainda mais, como se o ódio em relação
ao burgomestre suplantasse qualquer outro.
— Venha cá! — ordenou o maioral, girando
a corrente.
O lobisomem tentou recuar, mas era como
se uma força sobrenatural o ligasse àquela
corrente e àquele osso. Uivou em desespero,
depois rosnou ferozmente.
Pouco a pouco, porém, foi se aproximando
do burgomestre, que percebeu a perna que-
brada que se arrastava penosamente. A cólera
estampou-se em seu olhar.
— Maldito! — urrou. — Está inutilizado ago-
ra! Nem ao menos pode lutar pela própria
vida. Venha comigo! Eu lhe ordeno! — falou
Johann Adelfrel, guiando o lobo humano pelo
corredor, até a sala.
Torg aproveitou-se da confusão momentâ-
nea para subir apressadamente as escadas, na
direção do pavimento superior.
Os homens não se incomodaram com isso,
seguindo o lobisomem e o burgomestre.
— Abram o alçapão! — ordenou o satanis-

101
ta.
Um rangido tétrico e um baque anunciou a
abertura da passagem para um fosso sem saí-
da. Uma expressão de crueldade estampou-se
no rosto do burgomestre, que apontou o bura-
co, ordenando:
— Vá para lá!
A besta urrou, como se entendesse a ame-
aça que pairava sobre sua cabeça horrenda. O
poder daquele amuleto nas mãos do burgo-
mestre não lhe deixava outra escolha. Ele ui-
vou dolorosamente, depois saltou para o va-
zio.
Havia sangue e dor no olhar do lobisomem,
olhando fixamente para a figura dominadora e
zombeteira do burgomestre, parado à beira do
fosso. Em seu cérebro animal, lampejos de in-
teligência traziam quadros enlouquecedores.
Havia uma mulher e duas crianças gritando
horrorizadas. Havia sangue espargindo-se pe-
las paredes, lavando o assoalho, manchando
um espelho. Cabelos louros tingidos de rubro,
carnes claras rasgadas horrendamente.
O lobisomem rosnou, como se a figura do
burgomestre fosse seu fantasma interior, fosse
o próprio monstro que habitava seu corpo.
Johann Adelfrel sorriu, brandindo o amuleto

102
terrível.
— De que nos servirá um lobisomem de
perna quebrada, excelência? — indagou uma
das mulheres.
— Tempo o bastante para lançarmos a ga-
solina no fosso e atearmos fogo, Gudrun.
— Vamos destruir os dois?
— Sim, por que não? — gargalhou o maio-
ral, fazendo um sinal para os outros. — Vamos
começar nossa cerimônia. Disponham os obje-
tos rituais. Fechem o alçapão.
Atada às correntes, além do fosso, Morela
era uma pálida e frágil boneca, servindo de
isca para um vampiro. Numa de suas palmas,
havia um sinal macabro, traçado pelos dentes
do lobisomem, que impregnara o ferimento
com sua saliva maldita. Em seu belo e delica-
do pescoço, duas marcas atestavam a presen-
ça de outra maldição igualmente terrível.
Suas pálpebras cerradas estremeceram por
instantes. Lá fora, oculta pelas nuvens baixas
da nevasca iminente, a lua cheia atingia seu
apogeu.
Seus olhos se abriram, esgazeados, bri-
lhantes, tintos de sangue. Imagens turvas se
formaram momentaneamente, apagando-se
em seguida quando os olhos se fecharam len-

103
tamente.

***

Os passos firmes e pesados atestavam a ira


do Drácula. Seu peito arfava ferozmente. Seus
olhos cintilavam injetados. Suas mãos se cris-
pavam como terrível garras. Ele estacou no
centro da sala, farejando o ar.
No alto da escadaria surgiu Torg, aliviado
ao perceber a presença monstruosa.
— Mestre! — chamou, descendo apressa-
damente.
— Tenho uma missão para você, Torg!
— Sim, mestre, mas antes ouça-me. Há sa-
tanistas no castelo. Eles prepararam uma ar-
madilha, querem destruí-lo.
— Satanistas? Maldição infernal! A inveja
os tortura e eles me perseguem. Desejam a
predileção de Satã, mas jamais a terão! Eu
sou o preferido do Inferno, sou o Príncipe das
Trevas! Eles conhecerão a força de minha vin-
gança...
— Mestre, a armadilha...
— Nada pode deter um Drácula! Onde es-
tão eles?
— Mestre, preciso alertá-lo que...

104
— Cale-se, inútil trambolho humano! Pre-
tende dizer a um Drácula o que deve fazer? —
interrompeu-o o vampiro, cravando nele seu
olhar furioso. — Mostre-me onde estão!
— Lá! Nos fundos do corredor, numa anti-
ga sala de torturas!
Uma careta animalesca retorceu o rosto do
monstro, que se dirigiu para a direção aponta-
da, ofegando, trêmulo pela cólera.
Avançou pelo corredor. O som pesado e lú-
gubre de uma ladainha arcaica foi crescendo,
como o rumor de uma tempestade que se
aproximasse.
Uma atmosfera sinistra pairava na grande
sala esfumaçada e cheirando a misteriosos in-
censos. Drácula estacou à porta. Seu olhar
desprezou os homens e mulheres envergando
bizarras túnicas e se fixou no vulto frágil e
pálido de Morela, ao fundo, presa às corren-
tes.
Sua presença foi notada. A ladainha ces-
sou. Os satanistas se entreolharam, em sus-
pense.
— Malditos vermes das trevas! Hoje conhe-
cerão o poder de Drácula — urrou o vampiro,
avançando em direção à garota.
Um dos homens postou-se diante dele,

105
brandindo um punhal recurvo, entalhado em
osso. Drácula esbofeteou-o, atirando-o para o
lado.
No momento seguinte, seus pés batiam so-
bre a tampa do alçapão. Com uma gargalhada
estridente, Johann Adelfrel acionou a alavanca
e as velhas dobradiças rangeram, abrindo-se.
Um rosnado feroz seguiu-se à queda do corpo
surpreso do Drácula, no fundo do fosso.
O burgomestre e seus seguidores se apro-
ximaram da borda. Drácula se erguia, ainda
atônito, mas furioso. O lobisomem arreganhou
suas fauces, rosnando com furor.
— Afaste-se, criatura maldita! — ameaçou
Drácula, desprezando a ameaça do lobisomem
e olhando para cima, onde os rostos zombetei-
ros dos satanistas o encaravam. —Seus cora-
ções serão devorados esta noite — ameaçou,
abrindo os braços e preparando-se para a me-
tamorfose.
O burgomestre fez um sinal. A cruz impro-
visada foi atravessada sobre as bordas do fos-
so, no exato instante em que o morcego hu-
mano batia suas asas, prestes a ganhar a li-
berdade.
Com um grito desumano, o corpo do Drá-
cula voltou a cair pesadamente. O lobisomem

106
saltou sobre ele, cravando suas presas no om-
bro do vampiro, enquanto suas mãos podero-
sas buscavam-lhe a garganta.
— Cavasti, Werwolf! — berrou Drácula, sal-
tando como se movido por uma mola e atiran-
do contra a parede o corpo do lobisomem, que
ganiu dolorosamente, mas voltou ao ataque.
Drácula cambaleou, sentindo dores inten-
sas em seu corpo maldito. A influência da cruz
o enfraquecia. O lobisomem o encurralou con-
tra a parede, rosnando ferozmente, agitando
suas garras, talvez surpreso pela súbita fra-
queza de seu oponente.
O vampiro encolheu-se, cobrindo-se com a
capa, contorcendo-se, sentindo suas carnes se
desfazerem e seus ossos se transformarem
numa massa sem consistência. Um odor fétido
espalhou-se, como se uma sepultura lacrada
fosse aberta e libertasse um odor de podridão
de mil anos.
Os satanistas gargalharam e começaram a
entoar um hino a Satã, conclamando-o a com-
parecer para presenciar a vitória do mal supre-
mo.
À porta, confuso, Torg os observava, ouvin-
do os urros furiosos do lobisomem e os gritos
lancinantes do Drácula, desfazendo-se em pó.

107
Percebeu aquela cruz sobre o fosso e com-
preendeu. Avançou, então, furiosamente, na
direção daquele grupo de pessoas, gritando
raivosamente.
Seu punho abateu-se pesadamente sobre a
cabeça de uma das mulheres, partindo-o num
ruído grotesco. Sangue e miolos saltaram,
misturando-se aos cabelos dela, enquanto seu
corpo tombava sobre a cruz, arrebentando-a.
Mulher e pedaços de madeira caíram para
dentro do fosso, surpreendendo o lobisomem.
Um outro homem foi atingido entre, os
olhos pela mão do corcunda, sendo jogado
para dentro do fosso. Seus gritos lancinantes
ecoaram pelo castelo, quando o lobisomem
saltou sobre ele, sedento de vingança, dilace-
rando suas carnes, arranco-lhe os membros,
vazando-lhes os olhos numa fúria incontrolá-
vel.
O sangue da mulher escorria junto ao cor-
po retorcido do Drácula, que se arrastou até
ele, lambendo-o e recuperando gradativamen-
te suas forças.
Depois, agarrou aquele corpo arrebentado
e trouxe para junto de sua boca fria e mons-
truosa o pescoço delicado, cravando-lhe as
presas, rasgando-lhe as carnes e sugando-lhe

108
o sangue.
Lá encima, Torg era atacado pelos satanis-
tas e chicoteado com grossas correntes que se
abatiam sobre seu corpo num ruído surdo e
desagradável.
Manchas horrendas e chagas aterradoras
se abriam em suas carnes, enquanto suas rou-
pas eram dilaceradas pelos golpes impiedosos.
— Derramem a gasolina! — ordenou o bur-
gomestre e dois dos homens se apressaram e
cumprir a ordem.
O líquido inflamável foi derramado sobre o
fosso e uma tocha foi atirada. Uma explosão
de fogo se ergueu, surpreendendo-os. A fuma-
ça dominou a sala. O burgomestre ordenou a
todos que se retirassem.
Quando corriam para a porta, porém, algo
como uma serpente de névoa se concentrou
ali, tomando a forma negra e vingativa do
Drácula.
— Abutres das trevas, vermes da podridão,
víboras repelentes do negro coração de Satã!
Conhecerão a ira do Predileto! — rugiu, amea-
çadoramente.
Johann Adelfrel estremeceu, apavorado,
pressentindo que seu lugar de predileto estava
irremediavelmente perdido. Sua preocupação,

109
agora, era com a própria vida.
— Detenham-no — ordenou a seus segui-
dores.
Drácula gargalhou, quando homens e mu-
lheres formaram uma parede humana diante
dele. Ao fundo, cessavam os uivos dolorosos
do lobisomem, definitivamente destruídos pe-
las chamas. O burgomestre recuou até junto
da jovem Morela, inerte e acorrentada ainda,
observando seus sequazes enfrentarem o
monstro implacável.
Gritos lancinantes se ouviram, então, quan-
do Drácula avançou, esmagando aqueles cor-
pos como se fossem folhas secas que o vento
do destino pusera sobre seus pés.
Quebrava-lhes os ossos, arrebentava-lhes
os crânios, golpeando-os e pisoteando-os
numa sanha infernal. O piso de lajes frias co-
briu-se de sangue. O fosso se transformara
num forno ardente. A fumaça enegrecia a cha-
ma das tochas, enchendo de sombras o apo-
sento.
Os rugidos furiosos do vampiro cessaram,
quando corpos despedaçados se imobilizaram.
Um pequeno grupo de sobreviventes foi se
juntar ao burgomestre.
— Salve-nos, excelência!

110
— Peça clemência a Satã!
— Seremos exterminados!
As lamúrias desesperadas ecoaram, acima
do rugir do fogo. Uma das mulheres restantes
tinha um punhal em suas mãos. Olhou a figura
ameaçadora do Drácula, avançando para eles.
Gritando, ela cravou em seu próprio peito a
lâmina fria, esvaindo-se em sangue e caindo
aos pés do burgomestre.
Este olhou o punhal cravado naquele peito
e o sangue que escorria, empapando as rou-
pas dela. Depois voltou-se para o corpo de
Morela, ainda dependurado. Abaixou-se e ar-
rancou o punhal do cadáver e correu para jun-
to da eleita de Drácula.
A lâmina afiada foi colada horizontalmente
em seu pescoço. O burgomestre encarou o
vampiro.
— Se a quer, maldito, pare aí mesmo! —
ordenou.
Drácula entendeu a ameaça e vacilou. Mo-
rela era-lhe preciosa agora. Sua beleza frágil o
contagiara. Seu sangue corria nas veias dela e
o dela nas suas.
O fogo atingia as vigas do teto, que em
breve desmoronaria, sepultando-os num infer-
no de chamas. A hesitação do vampiro animou

111
o burgomestre, que ordenou:
— Soltem as correntes que prendem a ga-
rota!
Seus seguidores o atenderam. Ele segurou
Morela com um dos braços e, com o outro,
manteve o punhal ameaçador sobre sua gar-
ganta.
— Afaste-se, maldito! — ordenou a Drácu-
la, que estremeceu de indignação.
Um mortal qualquer jamais poderia ditar
uma ordem a um Drácula. Tinha, porém, que
escolher entre o orgulho e a vida de Morela.
O burgomestre e os seus avançaram lenta-
mente, passando por ele.
— Nem o inferno os protegerá, malditos. A
ira de Drácula os caçará para todo o sempre e
os exterminará.
— É o que veremos, nosferat! — zombou o
burgomestre, afastando-se com os seus.
As chamas ardiam nas pesadas vigas aci-
ma, prestes a desabarem. A pesada porta foi
puxada e trancada pelo lado de fora.
O Drácula urrou de raiva. Torg rastejou até
seus pés.
— Erga-se, inútil! — ordenou ao corcunda,
que se pôs em pé com dificuldade.
Depois, furioso, o vampiro avançou contra

112
a porta, esmurrando-a com todas as forças da
ira, lascando-a, partindo-a, pondo-a abaixo.
Correu em perseguição ao grupo de sata-
nistas. À porta do castelo, viu os trenós des-
cendo a colina em desabalada carreira.
Abriu os braços. O morcego vingador bateu
suas asas e se lançou no espaço, sedento de
violência.
Viu Morela num dos trenós e nele concen-
trou toda sua atenção. Flechou em direção aos
cavalos, cortando-lhes a frente, fazendo-os
empinarem-se e espantarem-se.
Os animais, farejando a presença maléfica,
tomaram um rumo suicida, deixando a estrada
e rumando para a encosta íngreme da colina.
— Não! — berrou Drácula, percebendo a
tragédia e desesperando-se.
O trenó saltou no espaço, os cavalos se de-
batendo no vazio, os gritos lancinantes dos sa-
tanistas ecoando pelas encostas cobertas de
neve, que estremeciam, como que protestan-
do contra a paz quebrada, derramando-se rai-
vosamente em ruidosas avalanches.

CAPÍTULO 8

Drácula estava à janela. O frio tornara-se

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intenso, insuportável. Torg estava diante da
lareira, jogando achas no fogo.
Voltou-se, então, para fitar seu mestre. A
frustração o pusera misterioso, ligeiramente
melancólico. Naquela noite terrível, Morela
fora sepultada na neve, junto com os satanis-
tas que a acompanhavam.
O outro trenó escapara. Drácula não conse-
guira localizar seus ocupantes, reprimindo a
vingança em seu coração amargurado.
Moveu-se, então, na direção da porta. Torg
coxeou ao seu encontro.
— Vai sair, mestre?
O monstro passou por ele sem responder,
olhando fixamente para a madeira grossa e
velha das portas enormes e reforçadas com
ferro.
— Mestre, talvez tenhamos outra nevasca
esta noite...
— Eu sei, Torg. Esta noite e nas noites que
virão. A neve caíra por todo o inverno, mas
cessará, isto é certo. A primavera é um tempo
que jamais me agradou. Suas noites possuem
uma magia estranha, feita de amor. Desco-
nheço esse sentimento, mas aguardo a prima-
vera com a mesma emoção dos mortais.
— Por que, mestre?

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— Morela era seu nome. Ela repousa agora
numa tumba de gelo, Torg. Quando a prima-
vera chegar, ela brotará da terra como a mais
bela das flores e então eu a colherei. Isso é
tão certo como a minha vingança!

FIM

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