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LEMBRAI-VOS DA GUERRA.
RIO DE JANEIRO
2013
RICARDO ZORTÉA VIEIRA
LEMBRAI-VOS DA GUERRA.
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Economia
Política Internacional, Instituto de
Economia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção
do título de mestre em Economia
Política Internacional.
Rio de Janeiro
2013
2
FICHA CATALOGRÁFICA
3
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
DEZEMBRO/2013
4
Para meus pais.
5
“Então que todos os profetas
armados venceram, e todos os
profetas desarmados foram
destruídos”.
MAQUIAVEL, Nicolau. O
Príncipe.
6
RESUMO.
7
ABSTRACT
8
Sumário
Introdução ........................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1: O Entendimento sobre a Construção Nacional no Brasil e na
Europa e a Questão do Papel dos Militares .................................................... 12
1.1.As Explicações Brasileiras .............................................................. 12
1.2.A Interrelação entre as dimensões do processo de construção
nacional dentro da visão sistêmica e de longa duração da Economia
Política Internacional ............................................................................. 22
1.3.A Variável Perdida: As Bases Geopolíticas da Atuação das Elites
Militares Durante o Estado Desenvolvimentista .................................... 29
CAPÍTULO 2: A Revista Defesa Nacional e o Pensamento Militar Brasileiro
entre 1913 e 1930 ............................................................................................ 36
2.1. O Exercito e o Tabuleiro Geopolítico do Prata entre o Final do
Século XIX e o Inicio do Século XX ....................................................... 37
2.2.O Pensamento Militar da Revista Defesa Nacional (1913 – 1930) . 43
CAPÍTULO 3: Da Doutrina Góes – Travassos à Doutrina de Segurança
Nacional – O Pensamento Militar entre 1930 e 1964 ....................................... 77
3.1.O Tabuleiro do Prata, as Forças Armadas e Política Interna entre os
anos 1930 e 1950. ................................................................................. 79
3.2.O Pensamento Militar dos Anos 1930: A Doutrina Góes – Travassos
............................................................................................................... 86
3.3.O Elo Perdido: A Geopolítica de Lysias Rodrigues ....................... 100
3.4.A Doutrina de Segurança Nacional ............................................... 107
Considerações Finais ..................................................................................... 127
Bibliografia e Fontes....................................................................................... 132
9
INTRODUÇÃO.
1
Na ciência política e na sociologia política o termo construção nacional é ocasionalmente utilizado
como sinônimo de formação do Estado, e assim analiticamente distinguível dos processos de
acumulação de capital e industrialização. Aqui, utilizaremos esse termo, nos baseando na Economia
Política Internacional (campo no qual se insere o nosso trabalho), para denotar justamente a integração
entre os processos de formação do Estado, acumulação de capital e ascensão no sistema interestatal.
10
Com isso em mente, nosso objetivo final nessa dissertação é contribuir
para a abertura de um novo caminho de interpretação para esses processos
paralelos de industrialização e centralização política, ou de Construção
Nacional, sintetizados nas expressões “Estado desenvolvimentista” ou
“desenvolvimentismo”, o que buscaremos fazer identificando uma possível
variável alternativa às explicações dominantes sobre o tema. Essa tarefa será
realizada em três capítulos, mais a conclusão.
11
CAPÍTULO I. O ENTENDIMENTO SOBRE A CONSTRUÇÃO NACIONAL NO
BRASIL E NA EUROPA E A QUESTÃO DO PAPEL DOS MILITARES.
12
impactos de suas iniciativas sobre a industrialização. Outras correntes, por sua
vez, articulam a visão econômica com uma interpretação sobre o caráter do
Estado durante a fase de construção nacional. Tais análises buscam assim
conectar as bases das motivações do Estado com as suas iniciativas
modernizantes e industrializantes, e, em alguns casos, com o próprio processo
de expansão de suas atividades ou concentração de poder interno.
13
consumidor, e em um impulso endógeno para o desenvolvimento. Essa
situação, que tem como ponto final uma economia de alta produtividade
homogeneamente distribuída, é aquela que caracteriza os chamados países
desenvolvidos2.
2
Furtado, 1961; Mantega, 1984.
3
SUZIGAN, 2000.
14
dinâmico da economia, levando a um processo de desenvolvimento endógeno
e autossustentado4.
4
MANTEGA, 1984.
5
TAVARES, 1972; SUZIGAN, 2000.
6
FURTADO, 1963.
7
SUZIGAN, 2000; TAVARES, 1972.
15
Como se vê dessa explicação esquemática, o estruturalismo entende o
processo de desenvolvimento como sendo essencialmente econômico, estando
ligado ao aumento da produtividade, viabilizada pela implantação de um polo
dinâmico que faria a economia superar seu caráter reflexo e tornar-se auto
impulsionada. As causas desse processo, por sua vez, são em parte também
econômicas, ligadas ao crescimento do setor agroexportador e depois ao
choque externo, e em parte políticas, no que se refere a proteção tarifária e
cambial, bem como aos subsídios, à indústria. Entretanto, a análise cepalina se
restringe a apontar os efeitos econômicos das políticas, e nunca faz realmente
um estudo sobre o caráter e as motivações do Estado, apenas presumindo ser
seu interesse geral a promoção da industrialização8. Dado o foco dos próprios
estruturalistas nessa agenda, tal presunção, sem uma análise política
correspondente, tinha potencial para levar a decepção com os rumos tomados
pelo Estado, como realmente aconteceu após o golpe de 1964 e na ditadura
que se seguiu.
8
Como coloca Fiori (1999), pg. 26: “O Problema é que o ‘Estado’ dos desenvolvimentistas foi sempre
uma abstração que ora aparecia como construção ideológica idealizada, ora era transformado pela
teoria ‘numa deduçao lógica ou num mero ente epistemológico requerido pela estratégia de
industrialização, sem que se tomasse em conta a natureza das coalizões de poder em que se
sustentava”.
16
Como havia ocorrido na Europa, o feudalismo brasileiro seria um grande
entrave ao desenvolvimento, concebido basicamente como um processo
industrializante, por resultar na atrofia do mercado interno e encarecer os
custos das matérias – primas para o setor fabril. Não bastassem esses
problemas, o feudalismo ainda estaria aliado com os interesses imperialistas,
que dominavam o pequeno mercado doméstico e extraíam o excedente
econômico nacional, o que bloquearia a capitalização e os investimentos da
indústria.
9
Ver Sodré, 1967 & 1978.
17
A Teoria da Dependência foi exposta no trabalho de Fernando Henrique
Cardoso e Enzo Faletto, publicado em 1969, e intitulado “Dependência e
Desenvolvimento na América Latina”10. Nessa obra, os autores elegem como
interlocutor central, devido à sua vinculação institucional, não os demais
marxistas, mas a própria escola estruturalista. Sua crítica à interpretação
cepalina do desenvolvimentismo é justamente, na voga do golpe, de que os
seus integrantes não se deram ao trabalho de realizar uma análise política, e
acabaram incorrendo em automatismos econômicos. Entretanto, ao contrário
de Caio Prado, os dependentistas propuseram uma alternativa ao modelo
cepalino.
10
Ver Cardoso & Faletto, 2004
11
Idem, pg. 40.
18
acontecia, por exemplo, com a burguesia mercantil portenha na Argentina. O
Brasil ainda conjugava essa situação de descentralização com a ascensão das
classes médias, dos industriais e dos tenentes. Assim, quando a crise de 1929
veio, os novos segmentos sociais, descontentes com o status quo, puderam
contar com a aliança de algumas oligarquias periféricas para eliminar a
hegemonia paulista da política nacional.
19
Estado com seu ímpeto centralizador e industrializante é José Luís Fiori 12. O
autor identifica três bases fundamentais para o Estado desenvolvimentista: A
quebra do padrão ouro, o que forneceu ao Estado o poder de arbitrar o valor da
moeda, as margens de rentabilidade e a distribuição dos lucros; a pressão
social advinda dos novos agentes, nomeadamente o operariado e as classes
médias urbanas, e o dissenso intraoligárquico. Nessas circunstâncias, a recusa
do Estado em assumir o novo papel de árbitro da acumulação, a sua
incapacidade em absorver minimamente as reivindicações da base, ou conciliar
os interesses em disputa da oligarquia ameaçariam a estabilidade e a própria
unidade nacional.
12
Ver Fiori, 2003
20
um segundo movimento, em que se ampliava a atuação pública como um todo
sobre a sociedade. A cada novo ciclo político, então, se acentuava ao mesmo
tempo a balcanização do Estado e sua extensão. Fiori lembra, todavia, que tais
movimentos não impediram que existisse um polo central que tentasse, diante
das tendências centrífugas, implantar uma estratégia geral.
1.1.3. Conclusão.
21
fornece uma explicação direta e integrada, ao contrário das teses anteriores,
para as duas características – chave do Estado desenvolvimentista que
descrevemos na introdução, a centralização política a e industrialização. Em
segundo lugar, apesar de focar na questão da balcanização do Estado, afirma
existir um núcleo decisório que procura se impor aos interesses segmentados,
ainda que não identifique quais são os agentes centrais por trás desse núcleo
nem qual é o caráter de sua motivação. Todavia, a sua existência pode jogar
luz sobre qual é a força que, além das frações da classe dominante com seus
conflitos internos, temor das reivindicações populares e busca pela reprodução
econômica, são responsáveis pelo ímpeto centralizador e industrializante do
Estado desenvolvimentista.
13
Tilly, 1996.
22
próprio sistema interestatal), foi a disputa, presente desde o século X de forma
intensiva, entre as unidades de poder do continente em busca de segurança. A
única forma que os participantes dessa competição tinham para atingir tal
objetivo era formando zonas – tampões entre o seu território e seus
adversários potenciais, o que requereria a anexação de áreas vizinhas.
Frequentemente, isso somente poderia ser conseguido pela guerra, que se
tornou uma constante na política europeia.
14
Aqui, seguindo a denominação de Tilly, iremos usar os termos príncipe e soberano também para nos
referirmos a elite estatal constituída dos burocratas e assessores que ocupavam as posições chave no
aparato de Estado.
15
Fiori, 2004.
23
pelos poderes territoriais. Em troca, eles ganharam instituições representativas,
e, tão importante quanto, se tornaram os beneficiários preferenciais dos
espólios das guerras, que vinham na forma da exploração colonial, do direito a
coleta de impostos, dos juros da dívida e do acesso exclusivo aos “mercados
nacionais” construídos pelos Estados e protegidos pelas barreiras
alfandegárias. Em resumo, os capitalistas financeiros se fundiram às estruturas
do Estado territorial, formando um “Bloco Nacional” de acumulação de capital e
poder16.
16
Ver Kennedy, 1989 & Fiori, 2004.
17
Tilly, 1996.
24
principalmente pela forma como a nova dinastia escolheu viabilizar a luta
contra um poder com recursos demográficos e territoriais muito superiores aos
seus.
18
Kennedy, 1989.
19
Idem.
20
Wallerstein, 2006.
25
prejudicados pela interrupção da expansão francesa se associaram aos
integrantes da classe média e aos interesses populares num esforço para
eliminar aqueles que internamente haviam se tornado um obstáculo à
expansão do poder do Estado central. Em outras palavras, os proprietários de
terras, funcionários senhoriais, detentores venais de cargos, o clero e as
oligarquias municipais21.
21
Wallerstein, 2006 & Tilly, 1996.
22
Tilly, 1996.
23
Idem.
26
conversão do poder coercitivo em dominação legítima. No segundo, o fracasso
na expansão levou a autofagia interna e à Revolução.
27
Isso foi feito através do que Wallerstein chamou de “liberalismo de
centro”, ideologia que se converteu na geocultura do sistema-mundo após
1848, e que incluía como seus componentes o sufrágio universal, a educação
gratuita, os primeiros sistemas de aposentadorias e pensões, a laicização do
Estado, entre outros24. A implementação desse programa levou a superação,
no esquema de Tilly, da fase da Nacionalização em prol daquela da
Especialização, na qual os ramos da burocracia civil se expandem
exponencialmente, e os ramos do Estado encarregados da guerra e da coerção
interna se tornam comparativamente menores, perdendo sua centralidade
anterior. Como corolário desse processo, o próprio estabelecimento militar é
enquadrado. Sua antiga hegemonia dentro do aparato de Estado dá lugar a a
ideia de profissionalismo militar, e de subordinação das Forças Armadas a um
sistema de governo representativo civil25.
24
Wallerstein, 2011.
25
Tilly, 1996.
26
Arrighi, 2008.
28
Construção Nacional. Assim, a construção dos laços de autoridade direta e sua
intensificação, a acumulação de capital e a ascensão sistêmica são vistos de
forma interdependente. O eixo que conecta todos esses processos, por sua
vez, é uma preocupação constante da liderança ou da elite estatal com a
disputa interestatal, com a guerra e com a preparação para a guerra.
Entretanto, essa liderança não é vista como um agente demiúrgico, e seus
objetivos do que se poderia modernamente chamar de “segurança nacional”
são atingidos através de negociações primeiramente com o capital cosmopolita
e depois com as populações sob domínio da Autoridade Central. Essas
negociações em torno dos recursos financeiros e humanos para as guerras
tiveram como subprodutos a economia nacional, ou o Bloco Nacional de Poder
e Capital, e depois os laços de autoridade direta e dominação legítima,
alcançadas através das modernas instituições e ideologias liberais, inclusive o
próprio nacionalismo e a cidadania. O conjunto dessas estruturas, que
constituem o Estado Nacional moderno, por sua vez, foram simultaneamente
viabilizadas pela vitória nas guerras e pela expansão externa e se converteram
em elementos de pressão responsáveis pelo aumento do próprio ímpeto
expansivo das novas formas de configuração de poder.
29
poder. As teses sobre o Estado desenvolvimentista propriamente dito, por sua
vez, sustenta sua dependência de um agente externo, a burguesia ou os
interesses empresariais ou oligárquicos, por sua vez movidos por
preocupações econômicas.
27
Ver Boschi & Diniz, 1978; Leopoldi, 2000; Mancuso, 2007.
30
São representativos do primeiro grupo João Quartim de Moraes, Eliezer
Rizzo de Oliveira e Alfred Stepan. Quartim28 elaborou a tese de que existira um
embate político e ideológico secular entre duas correntes dentro das Forças
Armadas, que entretanto não se daria em torno das questões próprias da
instituição, mas da política em geral. Partindo da classificação de Norberto
Bobbio sobre o sistema político, o autor argumenta que uma dessas correntes
seria uma representante da direita no espectro político, defendendo a
repressão e os interesses dominantes, e a outra constituiria a esquerda, por
estar em linhas gerais associada à causa da igualdade. O foco da análise é
essa segunda corrente, que teria se originado no jacobinismo militar dos anos
1890, e no seu programa que mesclava soberania nacional, proteção da
indústria, laicidade do Estado e identificação da causa republicana à causa
patriótica e popular. Posteriormente, a esquerda militar teria seguido nas
Salvações Nacionais, em determinadas facções do tenentismo, na ala
nacionalista do Exército dos anos 1950 e, finalmente, na luta armada contra a
ditadura nos anos 1970.
Rizzo de Oliveira29, por sua vez, liga mais diretamente a ação militar ao
interesse de classe. Para o autor, seguindo a tradição do estruturalismo
maarxista, as forças armadas não podem ter poder “em si”, sendo na realidade
representantes dos interesses sociais. Assim, ao buscar explicar as origens do
movimento de 1964, Oliveira afirma que naquele momento a burguesia
enfrentava uma crise de hegemonia, devido à ascensão do movimento popular.
O grupo da ESG constituiria uma resposta à essa crise, através da elaboração
e difusão de uma doutrina que era funcional à burguesia devido a sua defesa
do status quo e da aceleração da acumulação de capital. A justificativa para tal
programa era a ameaça comunista, da onde também se derivava o combate ao
inimigo interno e o alinhamento com os EUA, país com o qual o Grupo da Esg
tinha fortes laços. Nesse ponto, a tese da ação militar segundo o interesse de
classe se associa a influência americana e a ideia da diferença fundamental
entre os objetivos das forças armadas antes e depois da II Guerra. Um autor
que dá ênfase a esses dois pontos é Joseph Comblin, ao afirmar ser a DSN na
28
Quartim de Morais, 2005.
29
Ver Rizzo de Oliveira, 1976.
31
realidade uma invenção estadunidense, tendo como foco a luta contra o
comunismo, da onde se extraíam os seus objetivos. Para Comblin, a DSN é
autônoma e distinta dos objetivos da escola geopolítica brasileira 30.
30
Comblin, 1978.
31
Stepan, 1971
32
Campos Coelho, 2000.
33
Carvalho, 2005.
34
McCann, 2009.
32
deslocado temática e temporalmente do Estado desenvolvimentista, razão pela
qual ele não se concentra nesse elemento.
Uma última posição, que difere das duas retratadas acima, é a do próprio
Charles Tilly. O argumento do autor é que, ao contrário dos países europeus,
que, dentro do movimento geral de formação do Estado e acumulação de
capital, viram a redução da coerção interna somada a profissionalização e
subordinação das forças armadas aos governos civis, na periferia ocorreu o
oposto: Aumento da coerção e controle militar, de diversas formas, sobre o
Estado. A causa desse fenômeno, para Tilly, é o contexto da Guerra Fria, no
qual as superpotências ampliaram o auxílio para os exércitos dos países em
disputa, e eliminaram a necessidade dessas organizações em negociarem os
recursos necessários para sua manutenção.
33
de Carlos Meira Mattos. Além disso, elaboraram doutrinas que expandiram o
escopo da preparação para a guerra, como a própria Doutrina de Segurança
Nacional. Tudo isso nos indica que um estudo mais detido sobre o pensamento
militar pode trazer novos elementos para o campo da ação política das elites
militares no Brasil. Mas, para além disso, dado o contraste entre a centralidade
da disputa interestatal, da guerra e da preparação para a guerra nas
explicações da EPI sobre a construção nacional no contexto europeu e a sua
ausência nas explicações brasileiras, também pode jogar luz sobre o próprio
caráter do desenvolvimentismo brasileiro e seus principais resultados.
36
A escolha do surgimento da Revista Defesa Nacional como marco inicial da pesquisa se justifica pela
publicação contar, nos seus primeiros anos, com uma gama de colaboradores que desempenharam
papel central no período desenvolvimentista posterior, como se verá no Capítulo 2.
34
Defesa Nacional até sua fase de maior elaboração e sistematização na
Doutrina de Segurança Nacional décadas depois.
35
CAPÍTULO II: A REVISTA DEFESA NACIONAL E O PENSAMENTO MILITAR
BRASILEIRO ENTRE 1913 E 1930.
INTRODUÇÂO.
36
2.1. O Exercito e o Tabuleiro Geopolítico do Prata entre o Final do Século XIX e o
Início do Século XX.
37
Pelos termos do Tratado de Madri (1750), o território atual do Rio Grande ficaria quase que
inteiramente para Portugal. Posteriormente, em Santo Ildefonso (1777), Portugal cederia os
Sete Povos a Espanha, região recuperada finalmente no Tratado de Badajoz (1801).
37
visão do Império, queriam reconstituir o Vice-Reinado do Rio da Prata, e com
isso potencialmente arrancar do domínio brasileiro as províncias do Mato
Grosso e do Rio Grande do Sul (Doratioto, 2000). Tais lutas terminaram em
vitórias para o Brasil, que logrou derrubar os Oribe em Montevidéu em 1851, e
Rosas em Buenos Aires no ano seguinte, e jogar o antigo Vice Reinado do
Prata em um estado de confusão, crise econômico-financeira e fragmentação
política que duraria três décadas. Nesse período, se consolidou a hegemonia
imperial na região, o que se refletiu na liderança brasileira da Tríplice Aliança,
durante a Guerra do Paraguai (1965 – 1870).
O período que se estende de 1870 até 1930, compreendendo assim a
origem e a primeira fase da tradição de pensamento analisada nesse capítulo,
foi marcada por uma reversão progressiva desse domínio brasileiro no Prata.
Do lado brasileiro, foi decisiva para tal decadência o retorno, após o interregno
da reação conservadora, daquilo que Edmundo Campos Coelho denominou de
“Política de Erradicação” do Exército pelas elites políticas do Império. Como
coloca o autor,
38
caracterizava pela quase que total inaptidão para atuar em um conflito armado.
Como colocaria Estevão Leitão de Carvalho, que seria depois um dos
fundadores da Revista de Defesa Nacional e general líder da reforma do
Exército durante o Estado Novo,
Outro oficial, citado por Murilo de Carvalho, apresenta com ainda mais
precisão a formação e as ideias que dominavam a Praia Vermelha e seus
egressos:
39
haviam frequentado os cursos de cavalaria e infantaria da Escola Militar de
Porto Alegre), e que em grande parte era veterana da Guerra do Paraguai.
Contando com expoentes como Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca, esses
oficiais não eram republicanos ou pacifistas, mas tinham como preocupação
central a sobrevivência do Exército. Quando os tarimbeiros foram atingidos por
rumores de que o Império estaria se preparando para extinguir o Exército, eles
se aliaram aos “Doutores”, movimento que, se materializando no golpe de 15
de Novembro, deu origem a República (Carvalho, 2005, Coelho, 2000).
Do ponto de vista da inserção geopolítica regional do Brasil, a
República representou uma intensificação do processo de decadência que já
vinha de 1870. Apesar do relativo fortalecimento do Exército durante o governo
Floriano Peixoto, imune ao pacifismo da Praia Vermelha e para quem o Brasil
necessariamente teria que enfrentar a Argentina38, e do programa de
modernização industrial desse presidente, a Revolta da Armada de 1893
destruiu o maior instrumento de projeção de poder brasileiro no Prata. Logo em
seguida, os militares foram expulsos do governo central pelas Oligarquias
Regionais, que passaram a implementar seu programa de descentralização. A
tentativa florianista e jacobina de recuperar o poder, por sua vez, chegou ao fim
após o atentado fracassado contra o Presidente Prudente de Moraes, em 1898,
e a exposição da debilidade militar do Exército e da sua geração de “Oficiais
Doutores” em Canudos, no mesmo ano.
A situação brasileira era ainda mais grave porque, somada a sua
debilidade interna, a adversária central do país não era mais a débil e
fragmentada confederação de caudilhos sofregamente articulados em torno de
Buenos Aires que o Império havia derrotado em 1852. Com a abertura do
mercado interno britânico de produtos agropecuários de 1880 em diante, a
Argentina havia ocupado, em par com os domínios ingleses do Canadá e
Austrália, a posição de grande exportadora de carnes e trigo para a maior
potência mundial. Disso resultou uma gigantesca expansão econômica, que
levou a Argentina a ter uma renda per capta cinco vezes maior que a brasileira
em 1900, e um PIB um terço maior. Além da prosperidade econômica, a
ligação comercial e financeira com a Grã-Bretanha trouxe vantagens
38
Ver: Doratioto, 2012.
40
diplomáticas, ao ponto de se considerar em Buenos Aires que não haveria
necessidade de se armar contra o Brasil, dado que qualquer ataque brasileiro
seria repelido com a assistência da Inglaterra, interessada em garantir seu
suprimento de alimentos e proteger seus investimentos (Moniz Bandeira,
2010). De qualquer forma, a Argentina, em parte estimulada pela sua rivalidade
com o Chile, expandiu tanto seu Exército, com a instituição do Serviço Militar
Obrigatório nos anos 1900, quanto a sua Marinha, que se tornou, numa
inversão direta do que se observava até 1880, muito superior a brasileira 39. A
capacidade militar argentina ainda era potencializada pela extensão de sua
rede ferroviária, que começava a alcançar na virada do século o Paraguai, a
Bolívia e o Chile, e pela centralização político-administrativa realizada pelo
presidente Júlio Roca após 1880.
A resultante geral da ascensão argentina foi o aumento da sua
influência sobre o Uruguai, Bolívia e Paraguai, e a correspondente perda da
posição brasileira nesses países. Tanto no Uruguai quanto no Paraguai,
governos instituídos com a proteção brasileira foram contestados, e no caso
desse último, o Ministro do Exterior do Brasil, Rio Branco, foi forçado a aceitar
a hegemonia argentina. Como coloca Doratioto (2000):
39
A Esquadra Brasileira em 1901 era de 27.500 toneladas, contra 39.564 da Argentina. Mesmo
com todas as aquisições da década (resultantes do programa naval idealizado por Rio Branco,
como veremos adiante) o Brasil ainda teria 57.324 toneladas, contra 81347 da Argentina. Ver:
Moniz Bandeira, 2010.
41
argentino. O Paraguai era o "gambito do rei" no xadrez
geopolítico armado por Rio Branco, sendo sacrificado à
influência de Buenos Aires, em favor do entendimento
argentino-brasileiro (Idem)”
42
Zeballos se explicava pela fraqueza militar do Brasil, de
conhecimento público (Idem)”
O plano não foi levado a cabo pois não se conseguiu manter o sigilo,
mas a Argentina iniciou um amplo programa de modernização militar e naval,
levando as tensões com o Brasil a níveis extraordinariamente elevados. No
auge dessas tensões, foi iniciada, com a colaboração do Ministro da Guerra,
Marechal Hermes da Fonseca, a segunda iniciativa militar de Rio Branco, que
consistiu em enviar oficiais para treinamento na Alemanha. Esperava-se assim
contribuir para um processo de reversão da falta de profissionalismo dos
oficiais positivistas, que já havia se iniciado com a instituição do EME em 1899
e o fechamento da Escola da Praia Vermelha, em 1904, pelo próprio Hermes
(McCann, 2009).
40
Ver McCann, 2009.
43
colaboradores deteriam durante a chamada “Era Desenvolvimentista” que se
seguiria. Senão vejamos.
Bertholdo Klinger e Euclides Figueiredo, dois dos membros fundadores,
foram posteriormente os articuladores do golpe que derrubou Washington Luís
do poder em 1930, e líderes militares da revolta paulista de 32. Um terceiro
membro fundador, Estevão Leitão de Carvalho, foi o artífice da reforma do
Exército nos anos 1930 e 1940. Humberto Castello Branco, editor da Revista
no final dos anos 192041, foi presidente da República entre 1964 e 1967. O
Grupo Mantenedor da publicação, por sua vez, teve como seus integrantes da
fundação até os anos 1930 os oficiais Eurico Dutra42 e Mario Travassos. O
primeiro foi um dos maiores sustentáculos do Estado Novo, e depois presidente
da República por cinco anos (1946 – 1951). O segundo se tornou Instrutor
Chefe da Escola de Comando e Estado Maior do Exército nos anos 1930 e
1940, tendo seu pensamento constituído doutrina para gerações de alunos
tanto dessa escola como da Academia Militar de Agulhas Negras (Meira
Mattos, 1975). Finalmente, no período estudado, foram representantes
regionais da Revista os Tenentes Góes Monteiro, Emílio Medici e Orlando
Geisel43. Góes Monteiro foi o comandante militar da Revolução de 30, e o
responsável por, junto com Leitão de Carvalho, reformular completamente o
Exército nos anos seguintes, bem como sistematizar uma Doutrina de tutela
militar na política que revisaremos na próxima seção, e que orientou a ação
interna da instituição até os anos 1980. Emílio Médici foi o terceiro presidente
do regime militar (1969 – 1974), tendo no seu gabinete como Ministro do
Exército Orlando Geisel, que também desempenhou papel fundamental para a
escolha de seu irmão mais novo, Ernesto, para a presidência em 1974.
Durante os anos em que esses homens estiveram na Revista, a sua
linha editorial se caracterizou pelo foco, declarado e efetivo, nos temas
concernentes à corporação militar e a sua profissionalização. Entretanto, isso
não impediu que simultaneamente se elaborasse nas suas páginas, sob forte
influência germânica, uma visão mais ampla que articulava uma concepção do
41
Ver: RDN, Janeiro de 1929.
42
Dutra foi membro do Grupo Mantenedor a partir de Setembro de 1920.
43
Goes Monteiro foi representante regional da RDN no Rio de Janeiro a partir de Setembro de
1920. Emilio Medici e Orlando Geisel tiveram as mesmas posições em Bagé e Cachoeira (Rio
Grande do Sul) a partir de 1929. Ver: RDN, Setembro de 1920 & RDN, Janeiro de 1929.
44
sistema internacional e uma leitura de ameaça geopolítica ao Brasil por um
lado, a prescrições sobre como o país deveria organizar sua política interna e
externa, além de sua base econômica, de outro, como veremos agora.
44
RDN, Julho de 1916, Editorial (“Acima de tudo devemos ser brasileiros”), pg. 282: “A lição
que promana dos factos que se desenrolam na Europa é significativa e eloquente no sentido de
ensinar aos povos fracos e desorganizados da América Latina, que no concerto internacional
só têm direitos respeitados e respetiaveis os povos fortes, aquelles cujos exercitos e armadas
poderosos e temidos levam na bocca dos seus tonitorantes canhões o argumento irrespondível
e convincente da força”.
45
exteriores45, como também se duvidava de arranjos de segurança coletiva ou
mesmo qualquer dependência com relação a um aliado mais forte. Nas edições
da Defesa Nacional, se ironizava a capacidade ou a coerência dos esforços da
Liga das Nações em manter a inviolabilidade dos Estados neutros em
conflitos46, e se criticava a confiança brasileira nos princípios do pan-
americanismo e na proteção dos Estados Unidos47.
Fundamentados nessa visão quase darwiniana sobre a cena internacional,
na qual os Estados eram organismos coerentes lutando pela sobrevivência e
na qual somente os mais fortes venciam48, os Turcos construíram sua leitura de
ameaças ao país, nomeadamente: O Imperialismo, as Oligarquias Regionais e
a vizinha, a República Argentina.
De acordo com os Turcos, a ameaça Imperialista tinha origem
essencialmente econômica. Todavia, a competição econômica era associada
indissoluvelmente a competição interestatal, dado que também dependia da
força, e também seguia a lógica do aniquilamento dos adversários. De acordo
com essa concepção, a segurança econômica, assim como a segurança militar
da qual ela depende, só ocorre plenamente quando o inimigo (ou concorrente)
desaparecer por completo49. Além disso, o Imperialismo era uma etapa natural
do desenvolvimento das nações, a ser atingida quando as condições territoriais
45
RDN, Outubro de 1920, Editorial (Precisamos ser fortes. A Prova de 1922. ), PG. 63: “...
ninguem poderá negar que os fracos perdem o direito de ter opinião e sua justiça só procede
quando é tributária da que convem a um forte”.
46
No editorial de abril de 1920 (pg. 287), a Revista ironizava o argumento liberal sobre a
desnecessidade da preocupção com o suprimento das munições, sugerindo que a Liga das
Nações poderia solucionar o problema mediante uma reforma na sua carta: “Clausula Especial:
‘1 – A Soberania dos Mares é da LIGA DAS NAÇÕES. 2- A LIGA DAS NAÇÕES fornecerá em
pesos iguaes, com uma equanimidade néoneutral, as munições para os belligerantes’.”
47
Ver: “À FRATERNIDADE AMERICANA”, RDN, Outubro de 1926.
48
“A guerra moderna significa o esforço maxio de uma nação pela propria sobrevivencia. O
organismo social, affectado pela guerra, tem que reagir por inteiro, como um blóco, sem que
nenhuma de suas energias fique inactiva” Ver: “A Doutrina da Cooperação Militar Naval e o
Caso Brasileiro. RDN, Maio e Junho de 1926, pg. 122.
49
“Mas o problema é, como já dissemos, muito complexo. A riqueza é o grande objectivo. E a
riqueza só pode ser obtida atravez de um notavel desenvolvimento economico,
desenvolvimento esse que não póde ser attingido em isolamento. Os capitaes e os productos
industriaes ou agricolas, precisam preferencias e nessas preferencias há concorrentes. Para
produzir como para concorrer é indispensavel segurança, ou melhor, força, salvo si o inimigo
desapparecer completamente como productor ou concorrente” RDN, Editorial “Paz!”, Junho de
1919. Pg. 342.
46
e as riquezas naturais não conseguem mais garantir o sustento adequado de
uma população em crescimento50.
Apesar de o Imperialismo não ser exclusividade de um país, na medida
em que se rejeitava mesmo a doutrina pan-americana por se considerar os
EUA uma Nação imperialista, era a Inglaterra que ocupava desde cedo as
preocupações dos colaboradores da RDN. Denunciava-se a ação inglesa que,
sob a justificativa dos benefícios mútuos do livre comércio, havia violado as
repúblicas africanas do Transwaal e do Orange para satisfazer a cobiça da
“plutocracia londrina”, e depois levado o mundo inteiro à guerra, com o objetivo
de ampliar seus monopólios comerciais51. Mais importante que Transwaal e
Orange, ou os motivos da expansão inglesa, contudo, eram as capacidades de
Londres, notadamente o controle dos mares52. Aliás, era o controle inglês dos
oceanos um dos motivos centrais da desconfiança dos Turcos com relação à
capacidade da Liga das Nações de proteger as nações que dependiam do
comércio ultramarino.
Se a ameaça inglesa derivava as suas ambições comerciais, e poderia
levar a perda de território e soberania, as oligarquias regionais eram vistas
como destruidoras em potencial da integridade nacional. O temor das
oligarquias se relacionava ao caráter débil e corrupto dos seus membros,
interessados apenas nos ganhos imediatos e nas disputas faccionais, estando
dispostos a sacrificar os interesses do país se fosse necessário53. Além disso,
a Oligarquia, que se confundia com a classe política e com os “bacharéis”, era
50
Nesse ponto, as posições da Revista se assemelham nitidamente daquelas de Ratzel sobre
a necessidade do “Espaço Vital”: “É que nós (os brasileiros) não julgamos o homem como é e
sim como devia ser (...) quando as difficuldades da vida se multiplicam, as populações crescem
ao ponto de excederem ás condições territoriaes, riquezas naturaes se extinguem ou se
transformam e o homem precisa maior conforto”. RDN, Idem, pg. 343.
51
“Reproduzia-se ahi o mesmo espetaculo de menosprezo à soberania dos neutros
manifestado pela Grã-Bretanha quinze annos antes da conquista das repúblicas do Transwaal
e Orange para satisfazer exclusivamente à cobiça da plutocracia londrina, e não para
desaffronta de um só ado internacional que os campos de concentração do exercito britânico
sacrificavam ao imperialism de Cecil Rhodes”. RDN, Editorial (“Paraíso da Neutralidade”), Julho
de 1915, pg. 303.
52
“... os acontecimentos diários estariam ahi para testemunhar, em flagrante delicto, as
aspirações de monopolio commercial que animam e orientam a acção politica do grupo
chefiado pela Inglaterra. Esta, honra lhe seja feita, age sem rebuços, apregoando aos quatro
ventos o seu florescimento mercantil e demonstrando de modo insphismavel, pelas condições
eliminatórias que impõe ao commercio maritimo das naçoes neutras e fracas, que é realmente
senhora absoluta dos mares”. RDN, Editorial (“Tudo nos une, nada nos separa”), Agosto de
1916.
53
Ver: RDN, “Exercitos Estadoaes”, Janeiro de 1914. Pg. 111; RDN, Editorial (Precisamos ser
fortes. A Prova de 1922.), Outubro de 1920, pg. 63; RDN, Editorial, Setembro de 1915, pg. 366.
47
tida como a responsável direta pelo abandono ao Exército, pelo seu
enfraquecimento, e pela sua instrumentalização como “Guarda Pretoriana” dos
interesses dominantes54.
Do ponto de vista militar, as Oligarquias eram um problema difícil de ser
equacionado tanto pelo seu peso eleitoral, principalmente no caso dos Estados
maiores, que controlavam a República contra os interesses nacionais, quanto
pelo seu poder bélico, representado pela Guarda Nacional e pelas Forças
Públicas55. Como solução, a RDN apresentou propostas visando neutralizar
ambos os pilares da política oligárquica. Depois de lutar por, e obter, a extinção
da Guarda Nacional, a revista propôs colocar as Forças Públicas sob controle,
ou ao menos a supervisão, federal, de modo a impedir que a política facciosa
dos oligarcas regionais prejudicasse a integridade nacional ou o Exército 56. E,
de modo a neutralizar a aliança entre Grandes e pequenos Estados que
controlavam a República, propôs a redivisão territorial do país, bem como a
criação de territórios federais, que seriam necessários para o desenvolvimento
do interior, abandonado pelas elites locais.
Apesar dessa forte hostilidade frente a Inglaterra e às oligarquias
regionais, a ameaça mais forte na visão dos colaboradores da Defesa Nacional
nas suas primeiras décadas foi, sem sombra de dúvida, a República Argentina.
A tese da ameaça argentina foi construída paulatinamente nas páginas da
publicação passando por diversas etapas. Inicialmente, chama a atenção o
constante uso do país vizinho, e de suas Forças Armadas, como exemplo a ser
seguido no processo de reforma do Exército brasileiro pelo qual a Revista se
batia. Nesse sentido, se destacava o Espírito Patriótico superior dos argentinos
(mais fiéis ao seu governo que os brasileiros), além de aspectos da
organização militar daquele país, como a instituição do Serviço Militar
54
Ver: RDN, Editorial (A Instiuição do Patriotismo), Janeiro de 1916, pg. 113; RDN, Editorial
(Pátria Livre), Janeiro de 1917, pg. 113.
55
Ver: RDN, “Organização divisionária... e 18000 homens”. Fevereiro de 1915, pg. 134.
56
“Os governos estaduaes – que são de facto irresponsaveus por todas as cousas que não
dizem respeito a luctas partidarias – trataram logo de por os officiaes de suas milicias a salvo
do sorteio, pelo que o alistamento começou burlado. De quando em vez, e ainda agora,
levantam-se não poucas vozes, para negar existencia legal aos pequenos exercitos estaduaes,
como um perigo permanente para a unidade nacional (....) Mas, como a toda regalia deve
corresponder uma obrigação, o governo federal exigiria que os Estados organisassem suas
forças de accordo com o estabelecido pelo Grande Estado – Maior do Exercito, que as
superintenderia no que diz respeito à instrucção, que tivessem todas armadas com o mesmo
armamento, que fossem comandadas, como ainda o é a do Rio Grande do Sul, por officiaes do
Exercito, etc.” RDN, “Exercitos Estadoaes”, Janeiro de 1914. Pg. 111.
48
Obrigatório, a formação de quadros de oficiais da reserva, o contingente total
superior, entre outras dimensões que se pretendia fossem copiadas pelo
Brasil57.
A partir da Primeira Guerra, as referências à Argentina se tornam
progressivamente mais incisivas. Por um lado, começou a divulgação, com
tons de alerta, de trabalhos de brasileiros sobre as capacidades argentinas,
como aquele do Major Genserico Vasconcellos, ex-adido militar em Buenos
Aires, “A Argentina Militar e Naval”58. Por outro, foi aberto espaço na Revista
para publicações de autores militares argentinos e uruguaios, que levantavam
a possibilidade, ou julgavam inevitável, um conflito entre Brasil e Argentina no
Prata59. Nesse ponto, a Revista apenas apoiava e divulgava, indiretamente e
com todos os cuidados, a doutrina que estava sendo formulada
simultaneamente no Ministério da Guerra e no Estado-Maior do Exército, que
previa o conflito com Buenos Aires, e onde trabalhava um dos três redatores (e
fundadores) da Defesa Nacional, Leitão de Carvalho (McCann, 2009).
Essa relação entre o pensamento do Estado – Maior do Exército e dos
redatores da publicação seria ainda maior nos anos 1920. Em 1922, assumiu a
chefia do EME o General Tasso Fragoso, historiador dos conflitos brasileiros
com a Argentina no século XIX, ex-comandante do Regimento em Uruguaiana
e ex-adido militar do Brasil em Buenos Aires. Fragoso levou para o EME um
amigo seu, que também fora Adido na Argentina, e havia feito um relatório
completo da capacidade militar daquele país, o Major Armando Duval 60. Nessa
época, também serviram no Estado- Maior os tenentes Eurico Dutra e
57
Ver RDN, Outubro de 1913, pg. 13; RDN, Setembro de 1915, pg. 366; RDN, Editorial (“O
Problema dos Vencimentos”), Setembro de 1919, pg. 2 – 3; RDN, Editorial, (“Officiaes de
Reserva”), Maio de 1921, pg. 352; RDN, Setembro de 1914, “O Serviço Militar Obrigatório” (por
Tasso Fragoso), pg. 376.
58
“Tendo em vista que o Barão Stoffel escreveu relatorios de caracter reservado e o nosso
camarada um livro que deu à publicidade, eu aventuro, não sei se laborando em erro,
estabelecer a seguinte proporção entre os dous trabalhos: o livro do 1 tenente Genserico
Vasconcellos como obra de ensinamento, está para nós brazileiros, na mesma razão em que
os relatórios do Barão Stoffel estavam para os francezes em 1868.” Ver: RDN, “Sobre o Livro ‘A
Argentina Militar e Naval’ de Genserico Vasconcellos”, Setembro de 1916, pg. 397.
59
RDN, Novembro de 1917. “A Organização do Exército Oriental”. No artigo do militar uruguaio
se lê: “1- porque tudo nos leva a suppor que a longa duração da paz na América é duvidosa;
2- porque a República Argentina e o Brazil disputam a supremacia no coninente e suas forças
logicamente, em caso de guerra, devem convergir para o territorio do Uruguay, principal campo
provavel da lucta;”, pg. 41.
60
Ver McCann, 2009
49
Humberto de Alencar Castello Branco61, que eram respectivamente membro do
Grupo Mantenedor e Redator-Chefe da Revista Defesa Nacional. Nos anos em
que, por meios dessas figuras, se estreitou a relação entre o EME e a Revista,
ocorreu também uma sofisticação crescente da análise da ameaça argentina
nas edições da publicação.
O primeiro sinal dessa tendência se manifestou em um artigo da revista
que articulava pela primeira vez de forma clara e direta, por um autor brasileiro,
a hipótese de uma guerra entre Brasil e Argentina, que seria motivada pelo
expansionismo econômico de Buenos Aires62. Depois, apareceram referências
ao Sul como zona militar central para o país, ao mesmo tempo em que se
reclamava das dificuldades de acesso a essa área, pela falta de vias de
comunicação, como tornado evidente nos exercícios organizados pela Missão
Militar Francesa no Rio Grande63. Aí fica mais uma evidência da sintonia entre
a RDN e o EME, dado que os exercícios haviam sido planejados para
corresponderem à hipótese de guerra central para o Brasil64.
Apesar dos indicativos que surgiam desde o início da década, foi a partir
de 1926, ano em que Mario Travassos, depois creditado como um dos
fundadores da Geopolítica brasileira e um dos maiores formuladores do
pensamento do Exército, se torna redator da Revista, que a percepção de
61
Idem.
62
RDN, Setembro de 1919. “A Visão Estratégica para o Sul do Brasil”, pg. 46: “De facto, ao
primeiro espraiar de vista, dirimidas as contendas territoriaes que ergiam uma tormentosa
barreira de interesses immediatos entre o Brasil e as republicas visinhas, principalmente em
relação à Confederação Argentina, parecerá que não subsistem os ingentes perigos que a todo
instante poderiam accender o facho de uma deploravel conflagração nesta parte do continente
americano. Será, porém, irrecusavelmente logica semelhante persuasão. (...)O commercio e a
industria indumentam-se de expandimentos progressivos, avoluma-se dia por dia a massa de
negocios, intensifica-se gradualmente a força viva das injuncções egoisticas do mercantilismo;
e no turbilhão dos objectivos economicos que animam a mentalidade progressista esvaem-se,
com pouco, os commedimentos e as cautelas peculiares aos estados normalisticos da
operosidade embryonaria, nascem anceios incontidos de açambarcamento de mercados,
fomentam-se gerizas das mais variegadas especies, tecem-se endrominas do mais alto poder
erosionante, e o pensamento se dirige para resplandescentes mindos de utopias e
dominações. Caminha-se, então, a largos passos, para a grandeza economica apoiada na
força e na conquista violenta. (...) Poderão os argentinos, colligados a outros elementos que
porventura arrastem, palmilhar, um dia, essa cereda escaborasa por onde procurarão ferir a
soberania nacional do Brasil,premidos pela expansão verigionsa do seu activismo economico?
Affirmal-o, talvez, seria ainda uma longinqua hypothese. Negal-o, em todo caso, constituiria
uma grave preposição, de possíveis consequencias funestas para o futuro...”.
63
RDN, Editorial, Janeiro de 1920. Pg. 189; RDN, Janeiro e Fevereiro de 1922. Editorial (“A
Nova Organização do Exército”), pg. 193: “o centro de gravidade há massa de tropas há de
cahir fatalmente o sul do paiz, sob pena de agravarmos, com medidas de ultima hora, as
difficuldades naturaes que já de si embaraçam a concentração do nosso Exercito.”; RDN, Abril
e Maio de 1922. Editorial (“Uma lição da experiência”), pg. 258.
64
McCann, 2009.
50
ameaça argentina chega a um novo patamar. Já nesse mesmo ano se insinua,
pela primeira vez, a noção de um possível cerco hispânico ao Brasil, em um
artigo que ressalta a inferioridade brasileira frente ao Exército Argentino 65. Nos
anos seguintes, a análise da preparação militar argentina chegou a um nível
inédito. Artigos se dedicaram a descrever as reformas militares do país, como a
instituição da Lei do Realistamento Geral66, bem como as aquisições maciças
de equipamento bélico, com destaque para navios e aeronaves de
combate67.Também se ressaltava, com especial preocupação, a instalação de
uma indústria aeronáutica na Argentina68. Simultaneamente, levantava-se a
noção de que a Argentina estava se preparando para aproveitar-se da
debilidade brasileira (provavelmente, em decorrência das rebeliões
tenentistas)69 o que seria facilitado, na visão dos colaboradores da RDN, pois o
vizinho platino já havia, então, adquirido superioridade aérea, naval e terrestre
na América do Sul70. A resultante geral de toda essa situação era que se
65
RDN, Maio e Junho de 1926, “Ideias sobre a organização militar argentina”, pg. 123: “Seria o
mesmo que pensarmos nós numa colligação dos paizes ibero-americanos lenceando o flanco
brasileiro, sommando a isso as tres vanguardas, ceconomicas se se quizer, mas
caracteristicamente offensivas, estabelecidas nas Guyanas, e lançadas por tres paizes que já
em outros tempos encheram, com acções um tanto macabras, paginas e paginas da nossa
historia, na epocha colonial, imperiao e até mesmo Republica. E neste caso de quantas
divisões precisaria o Brasil?”
66
RDN, Maio e Junho de 1927, “Os Preparativos Militares da Argentina”.
67
RDN, Janeiro de 1927, Editorial (“Lembrai-vos da Guerra”), pg. 45: “Emquanto isso, a
actividade militar ao sul do continente tem sido intensificada methodica e generalizadamente.
Acquisição de copioso material e possibilidades de fabricação de material de guerra;
preparação tactica dos quadros e manobras visando dar ao commando o hábito da direcção de
grandes unidades; aumento consideravel do poder naval, não só quanto á potencia e ao
número do material fluctuante como ao aperfeiçoamento das bases navaes existentes, e
formentação de outros recursos dessa natureza; politica economica e ferroviária
acompanhando de perto tôda essa complexamontagem, eis, em resumo, o que tem sido feito.”
68
RDN, Março de 1927, “A supremacia aerea dos argentinos”, Pg. 97. “A fundação da
industrua do fabrico de aviões na America do Sul, por qualquer país, colloca todos os outros
numa situação de innegavel inferioridade. E como a Argentina acaba de fazê-lo,a sua
supremacia aerea torna-se indiscutivel. Na hypothese de um conflito, onde buscariam os
demais países sul-americanos os seus aviões para a guerra? Teriam recorrer naturalmente á
importação da America do Norte, do Japão ou da Europa. Mas a Argentina, maximé com a
execução do seu recente programma naval, possuirá o dominio do mar. Sem a liberdade desse
caminho,as importações serão impossíveis.”
69
RDN, Fevereiro de 1927, “A Propósito da Situação Militar: O Espírito da Reforma”, pg. 47:
“Uma fôrça militar relativamente consideravel se forma apressada e energicamente em torno de
nós outros, conturbados por desavenças políticas...Háperigo? É condemnavel que assim
procedam vizinhos nossos quando justamente estamos em crise e tem syncopes o nosso
progredir natural?
70
RDN, Março de 1927, “A Significação Estratégica da Política Ferro-viaria argentina e de suas
linhas fluviaes”, pg. 79. . “Teve o Jornal do Brasil opportunidade, em sucessivos editoriaes, de
tratar no quadro de informações fidedignas dos grandes preparativos militares, navaes e
aereos da Republica Argentina, que lhe dão, sem duvida alguma, a supremacia da força na
America do Sul.
51
vislumbrava um conflito com Buenos Aires para o qual o país não estaria
preparado:
71
RDN, Editorial - “Lembrai-vos da Guerra”, pg. 45: “Quem quer que estude as circumstancias
políticas do extremo sul da vertente atlântica do continente, não pode deixar de reconhecer o
esírito de coherencia que existe entre a citada actividade militar e as demais actividades que
estão manifestadas pela política fluvial e ferroviária, em curso já de há muito.”
72
Ver: RDN, Março de 1927, “A Significação Estratégica da Política Ferro-viaria argentina e de
suas linhas fluviaes.”.
52
De acordo com a RDN, no caso da política de transportes, assim como
naquele da política militar, a Argentina também apresentaria uma ampla
vantagem frente ao Brasil. Na dimensão das ferrovias, afirmava-se, os
argentinos já controlavam a maior rede da América do Sul, muito maior que a
brasileira73. Nesse ponto, era ainda mais preocupante que o planejamento
ferroviário argentino buscava ligar Buenos Aires as capitais do antigo vice-
reinado do Prata, como havia feito com Assunção em 191274. E, tanto as
ferrovias quanto as vias fluviais significavam que as divisões do Exército
Argentino estavam em posição de atacar a fronteira brasileira, principalmente a
do Rio Grande do Sul75.
A disputa geopolítica na Bacia do Prata não envolvia só a dimensão do
conflito armado, todavia. Na realidade, segundo os colaboradores da RDN,
tradicionalmente Buenos Aires havia tentado se tornar o polo econômico na
região, em preparação para o domínio político76. Assim, tanto as vias fluviais
como ferroviárias eram parte auxiliar de uma política econômica expansionista
argentina, que tinha como objetivo a hegemonia no antigo Vice-Reinado do Rio
da Prata. Relembrando então a antiga tradição geopolítica do Império do Brasil,
se levantava em seguida que a expansão argentina, uma vez concluída,
constituiria um perigo direto a integridade territorial brasileira, principalmente ao
Estado do Mato Grosso77.
Por todas essas razões, Brasil e Argentina estariam necessariamente
envolvidos em uma luta pelo domínio econômico e político da bacia. Ademais,
dada a desvantagem em que se encontravam, para que fossem bem-sucedidos
73
“Possuindo a Republica Argentina a mais extensa rde ferro-viaria da AmerIca do Sul,
dispondo de vasto systema fluvial, a sua mobilização será mais rapida do que a dos seus
vizinhos.” Idem, pg. 79.
74
“Quaes os objectivos da politica ferroviária argentina a partir de 1920? A ligação de suas
linhas com as dos paizes que formara, antes da independencia, o antigo vice-reinado do Prata
e o aumento das linhas de transporte á fronteira traçada pelo rio Uruguay”, Idem, pg. 79.
75
Idem, pg. 80.
76
RDN, Agosto de 1927, “A Situação Brasileira no Rio Paraguay”, pg. 58: “Além disso, quem
conhece, ainda que superficialmente, a historia da grande republica do Prata, há de haver
notado a directriz dominante, hontem e hoje, na sua evolução: Buenos Aires a lutar, vencendo
sempre para ser o centro de gravitação de toda a actividade da vastissima bacia, primeiro
economica depois politicamente.”
77
Idem, pg. 59: “Não é exagero dizer que se trata de uma partida sobre o taboleiro da politica
internacional sul-americana, na qual o Brasil joga uma cartada decisiva para o seu prestigio,
pelo menos perante os ex-componentes do velho vice-reinado do Prata, e põe talvez em
cheque os destinos de uma grande porção do território mato-grossense, precisamente aquella
cuja conservação alcançamos ao preço de laboriosos prelios diplomaticos e acções militares
sangrentas, sustentadas pelos nossos antepassados”.
53
nessa luta os brasileiros precisariam, na visão dos colaboradores da Revista,
além de ampliar as ligações ferroviárias entre a capital e o sul do país 78, prover
aos Estados continentais da Bolívia e do Paraguai uma alternativa a Buenos
Aires. Isso poderia ser feito através de uma ligação ferroviária entre o litoral do
Brasil e Corumbá, que deveria se tornar o polo de atração brasileira no Rio
Paraguai, contendo a influência econômica e política da Argentina na região79.
Como ainda veremos, tanto os princípios quanto as propostas principais
formuladas na RDN sobre as relações econômicas e políticas na Bacia do
Prata nos últimos anos da década de 1920 seriam incorporadas nas teses de
Travassos publicadas após 1930, e constituem assim um precedente à escola
geopolítica brasileira.
Ao mesmo tempo em que intensificava e sofisticava a percepção
acerca da ameaça argentina, os colaboradores da Defesa Nacional também
começaram a elaborar hipóteses que previam a junção do conjunto de
ameaças ao país. A base dessa hipótese foi a recuperação da pregação anti-
imperialista na Revista, colocada em segundo plano nos anos 1920 diante do
predomínio da Argentina no rol das preocupações, e novamente com a
Inglaterra como arquétipo do país imperialista. Os ingleses eram percebidos
não só mais como expansionistas comerciais ou detentores do monopólio dos
mares, como também os agentes centrais na criação da instabilidade mundial,
provocando subterraneamente dissensos em diversas regiões, e na América do
Sul em particular80. Nesse continente, a ação da Inglaterra, dublada de “Espirito
Machiavellico Ativo” se daria contra o Brasil, procurando incitar as nações
78
RDN, Fevereiro de 1927, “A Propósito da Situação Militar: O Espírito da Reforma”, pg. 48
“Mais urgente que multiplicar as ligações Rio – S. Paulo, apresenta-se evidentemente religar,
por multiplos e diversos laços S. Paulo aos estados do sul, não só dobrando, pelo menos, as
ferrovias existentes em suas possibilidades de tráfego, como unindo as pontas dos trilhos que
morrem a meio caminho, do sul e do norte, n’uma solução incompleta e como que indicando
aos homens o que devem fazer; e ainda criar nessazona as grandes rodovias de penetração,
complementares.”
79
Idem, pg. 59. “A política brasileira acena ao Paraguay e á Bolívia com uma saida pelo
Atlantico, como mais rapida do que a actualmente feita pelo rio da Prata. (...) Do ponto de vista
da defesa nacional o aspecto economico se entrelaça intimamente com o aspecto militar,
podendo-se mesmo dizer que a nossa integridade nacional, no valle do Alto Paraguay,
depende mais de uma boa situação economica de que de uma defesa puramente militar.”
80
RDN, Janeiro de 1929, “Meditações em torno da política militar Latino-americana”, p. 7: “As
coincidências históricas dão ao egoísmo da política ingleza uma enorme responsabilidade na
permanência do estado de guerra latente em que vive o mundo”.
54
hispânicas a cortarem pedaços do país81. E seria no sul que tal ação seria mais
forte, criando divergências entre Brasil e Argentina, mas tendendo a favorecer
o último país82.
A ação imperialista inglesa, entretanto, não se daria sem resistência no
mundo, e esta viria principalmente dos EUA, país interessado em acabar com o
domínio do Reino Unido sobre os mares. Na visão da Defesa Nacional, essa
rivalidade acabaria necessariamente na guerra entre as duas potências, que
por sua vez atingiria em cheio a América do Sul, e mais precisamente, o Brasil
e a Argentina. Senão vejamos:
81
Idem, p. 9: “Prophetizando a nossa desintegração em tres pedaços, aquele lemure
cadaverico de Solano Lopez, concita as outras republicas sul-americanas a cortarem, cada um,
o seu quinhão nas nossas fronteiras.” P. 9.
82
Idem, p 8 -9: “Mas de outro lado, affirma a esta que trilhos brasileiros invadem-na para pôl-a
sob o guante de seu imperialismo. E com tal desplante o faz, num caso ou noutro, que acha
argumentos meigos e doceis para enaltecer política identica, porém, real, activa, tenaz,
orientada e emprehendedora da Argentina. Maus um resultado: atira o Brasil contra a
Argentina. Torna-os rivaes (...)Diz que o imperialismo brasileiro impõe uma política ferroviária
que favoreça sua premeditada invasão!... Mas as rocadas e linhas de penetração são
favoráveis à Argentina. Nova intriga entre esta e o Brasil. É bem fácil vilipendiar e engodar os
povos.”
55
Revista, era reestabelecer na região do Prata o antigo Vice-Reinado.
Constituía-se assim um cenário em que haveria, como previam os modelos de
planos de guerra elaborados pelos colaboradores da revista, uma junção entre
a ameaça argentina e o imperialismo britânico 83. E nesse cenário, de acordo
com os planos de guerra, o Brasil incorreria imediatamente em duas
dificuldades. A primeira seria a incapacidade do país em suprir as suas
necessidades bélicas e civis em tempo de guerra, dado o advento de um
possível bloqueio naval84. A segunda seria a incapacidade de mobilizar seus
recursos de modo a enfrentar inimigos que tinham consensualmente uma
capacidade militar e econômica maior que a sua. E tal incapacidade se ligava
diretamente à política nacional, e ao seu domínio pelas oligarquias regionais,
pela classe de bacharéis e pelos interesses segmentados, que impedem que a
Nação atue como deve, ou seja, como um organismo unificado85. Em ambos os
casos, a Defesa da Nação exigiria alterações profundas tanto no campo da
economia quanto no campo da política interna, entendidos como extensões da
prática da guerra.
83
Como colocava Mario Travassos: “Deve-se contar que a guerra, mesmo de caracter
continental, extravasará do scenario puramente continental.” Ver: RDN, Maio e Junho de 1926,
“A Doutrina da Cooperação Militar e Naval e o Caso Brasileiro”, pg. 119.
84
RDN, Abril de 1921, Editorial (“A Reorganização da Nossa Indústria Militar: O Quadro
Technico e a Mobilisação Industrial”), pg. 317: “Permittirá o inimigo que a nossa industria
continue a abastecer-se em seus mercados longinquos após a declaração de guerra? Não
devemos suppol-o tão incapaz.” & RDN, Fevereiro de 1929 (“O que é e como se faz um plano
de guerra”), pg. 100: “Esse último ponto, como, aliás, aquelles relativos à importação de viveres
mostra a importancia do mar, seja pelo facto da propria superioridade maritima, seja pelo
concurso de seus alliados. Se esta condição não for realizada o problema dos abastecimentos,
de qualquer espécie, torna-se extremamente difícil, no caso em que o bloqueio das costas seja
efficaz, porque sómente será possível contar com os recursos de que disponham ou com o
contrabando que exerçam, em nosso proveito, vizinhos próximos, alliados ou neutros. Mas os
recursos próprios dos vizinhos são forçosamente limitados, e pode acontecer que além disso
que lhes faltem completamente as materias primas, indispensáveis para as fabricações de
guerra”.
85
Ver: RDN, “Exercitos Estadoaes”, Janeiro de 1914. Pg. 111.
56
para a guerra. Esta concepção foi bastante influenciada pelo pensamento
alemão contemporâneo, e chegou à Defesa Nacional de duas formas. A
primeira foi o já mencionado treinamento que seus fundadores receberam na
Alemanha entre 1906 e 1912. Tal treinamento depois foi disseminado através
da chamada “Missão Indígena”, quando um grupo de oficiais egressos dos
cursos na Alemanha foi treinar os cadetes da Escola Militar do Realengo, a
partir de 1916. Essa missão foi articulada por um dos fundadores da RDN,
Leitão de Carvalho, que à época servia no Ministério da Guerra sob o General
Caetano de Farias, simpatizante dos “Turcos”, e colaborador da Revista 86. O
segundo canal de influência germânica se deu através da publicação massiva
pela revista de artigos escritos por oficiais alemães, além de contatos e
colaboração direta desses oficiais com os membros do seu corpo editorial.
86
RDN, Dezembro de 1914, Editorial, pg. 70: “A Defeza Nacional cumpre um elementar dever
de gratidão tornando publico o seu agradecimento pelo continuado e valiosissimo concurso
com que sempre a distinguio o illustre divisionario, em boa hora elevado a gestão do Ministerio
da Guerra.
Desde seu apparecimento, esta Revista contou não só com o decidido apoio material (...) mas
também com a preciosa collaboração do Sr. General Faria.”
87
Na edição de Junho de 1920, a RDN divulgou que estava revendendo o livro “Minhas
Memórias de Guerra” do General Ludendorff. O militar alemão também foi citado em um artigo
técnica da edição de fevereiro de 1921 da revista.
57
à existência, como havia acontecido no Concerto Europeu anterior.
Consequentemente, e de forma semelhante ao que observamos nos artigos da
RDN, o General alemão argumenta que passou a vigorar a luta sem limites
pela sobrevivência, invariavelmente vencida pelo mais forte em detrimento dos
demais88.
88
Ver HONIG, 2011.
89
RDN, Abril de 1921, “A Transformação da Indústria Civil em Indústria de Guerra”, pg. 325 –
27.
58
A Dimensão Econômica.
90
RDN, Agosto de 1917, Editorial (“Serviços de Estradas de Ferro”), pg. 349: “Ferrovias
privadas devem ser planejadas levando em conta critérios estratégicos, e se não houver
interesse privado, o Estado deve construir.”
91
RDN, Abril e Maio de 1922, Editorial (“Uma lição da experiência”), pg. 258: “Não deve ficar
perdida essa licção das manobras: é um dever de petriotismo, que incumbe ás autoridades
militares, pôr o governo ao corrente da situação precaria das vias de comunicação nessa
importantissima zona do Rio Grande do Sul, interessando na solução do problema o
Congresso Federal e o governo do Estado, de forma a se chegar, no mais breve prazo
possível, á construcção dos ramaes ferreos, cuja imperiosa necessidade foi posta de manifesto
no decorrer da manobra, e á abertura de novas estradas de reodagem e melhoramento dos
caminhos actuaes, que, se podem servir longiquamente a fins militares, prestarão desde logo
inestimável auxilio a toda zona comprehendida entre o Jacuh e o Camaquan, arrancando ao
isolamento estnacias e cidades, que se tornarão em breve tempo felizes e prosperas.”
92
RDN, Junho de 1917, “O Problema da Munição e do Material Bellico na Proxima Guerra.”,
pg. 302.
59
Armada”93, a RDN elaborou a tese de que o país precisava chegar à autarquia
industrial.
93
Idem, nota 49: “A situação política mundial da Allemanha tambem reagia beneficamente
sobre a industria productora de armamentos; a necessidade de manter um forte exercito, de
ser uma ‘nação armada’ trazia como consequencia a de que todo o variado material de guerra
imprescindível fosse fornecido pela industria nacional”.
94
RDN, Junho de 1914, “Fabrica do Realengo”, pg. 302: “Os officiaes da Fabrica sabem muito
bem que ella absolutamente não está em condições de nos emancipar do extrangeiro, o que é,
aliás, de urgentiíssima necessidade”.
95
Ver Nota 44, pg. 20.
60
manejando a lança e a espada, vencia nos campos de batalha:
Osório é hoje uma lenda (RDN, Março de 1923, “A Industria
Militar”, pg. 552)”
96
RDN, Abril de 1921, Editorial (“A Reorganisação de Nossa Industria Militar - O Quadro
Technico e a mobilisação industrial “), pg. 315: “Ficaremos na dependencia do estrangeiro para
a renovação dos nossos stocks. Sempre será isso possível? Devemos imitar o Japão e os
Estados Unidos da America do Norte.”
97
RDN, Janeiro de 1920, Editorial, pg. 288. “Para nós a melhor solução é formar um sistema
completo, do qual estejamos perfeitamente capacitados, sem o risco de vêrmos faltar em
momento crítico uma das principaes peças da engrenagem.”
61
Nos meses e anos posteriores, a Revista moveria verdadeira campanha
pela implantação da indústria siderúrgica nacional, dedicando inúmeros
editoriais à questão98, além de artigos de colaboradores e mesmo séries de
notas técnicas escritas por engenheiros detalhando o processo de fabrico do
aço, com o propósito de convencer os céticos que a produção do item no país
era viável e necessária99. Em todo esse material, o nível de detalhe atingiu
patamares elevados, inclusive buscando responder a qual fonte de energia
seria adequada para a indústria nacional, optando-se pela hidroelétrica.
Todavia, o grau de precisão técnica não impediu que se perdesse de vista o
motivo da campanha. A siderurgia era vista como necessária primeiro à
autonomia no fabrico de munições, primeira urgência dos militares100, e depois
como forma de embasar a produção de armamento propriamente dito,
principalmente peças de artilharia. E todo o processo, em última análise, era
justificado devido ao temor da ameaça argentina:
98
RDN, Julho de 1917, “Notas sobre a industria nacional do aço”, pg. 317: “A Defeza Nacional
tem insisitido em seus ultimos numeros sobre a necessidade palpitante de crear-se a industria
do aço no paiz, dado o importante papel que ella representa em sua preparação militar”.
99
Ver: Série “Notas sobre a industria do aço”, RDN, Julho – Outubro de 1917; Abril de 1918.
100
RDN, Maio de 1920, Editorial (“As Escolas da M.M.F. – Complementos absolutamnete
necessarios. – Tacto e tento”), pg. 327: “Si daqui a 48 mezes tivermos iniciado a nova industria
siderurgica e se as necessidades militares crescem com a adopção de novos methodos, será
criminosos retrogradar ou parar – elo menos no que diz respeito à fabricação integral das
munições.” (Original em negrito)
101
Ver: RDN, Agosto de 1912, “Uma industria bem nacional e bem militar”, pg. 394 – 95.
62
tóxicos na I Guerra102. Finalmente, também foram incluídos como essenciais os
automóveis de diversos modelos e as aeronaves 103.
102
Ver: RDN, Abril de 1923, “Necessidades Industriais da Defesa Nacional” & “A Chimica –
Nova Arma de Guerra”.
103
Ver: RDN, Julho de 1917, pg. 315.
104
Ver nota 49, pg. 23: “Abarcando-se, porém, com a vista o conjuncto da industria antes da
guerra, se reconhece que era uma parte bem pequena a que se dedicava especialmente ao
fabrico de armamentos. Aliás, é da natureza das coisas que na paz a necessidade de
conservar completo o material de guerra pouca producção exige; só raramente se
emprehendem substituições radicaes e quando isso acontece a actividade dahi proporcionada
ás fabricas não dura muito.” 325.
63
Entendia-se assim a indústria privada civil como base para o esforço de
guerra. E, na realidade, não eram somente as empresas que poderiam fabricar
itens militares que eram importantes. Isso porque a indústria nacional deveria
ser capaz de abastecer tanto o Exército quanto a própria população civil
durante o conflito. Daí que as diretrizes de planejamento econômico tendo em
vista a segurança nacional deveriam ter como objetivos:
105
Ver: RDN, Abril de 1923, “Necessidades Industriais da Defesa Nacional”, pg. 570: “Sem
discutir as causas – o que nos desviaria de nosso objectivo, é facto geralmente positivo que os
governos estão condemnados a fallir, por melhores que se nos afigurem as providencias
acauteladoras, sempre que se aventurem em negocios cuja prosperidade é uma funcção
naturalmente decorrente dos lucros correspondentes”.
106
Ver: RDN, Agosto de 1923, Editorial – “A Organização Nacional”, pg. 718 & RDN, Abril de
1923, “Necessidades Industriaes da Defesa Nacional”, pg. 571.
107
Ver: RDN, Julho de 1927, “Communicações Electricas. Sua Missão Civilizadora no Brasil
Seus Aspectos Industrial e Commercial”, pg. 69.
64
população civil. Ao mesmo tempo, ligavam essa visão à ameaça geopolítica,
principalmente a Argentina e um poder naval capaz de bloquear as linhas de
suprimento ultramarinas, e não tinham qualquer preconceito com relação a
utilização maciça de capitais privados no processo de industrialização nacional.
De fato, até concediam a este uma primazia sobre os empreendimentos
estatais, mesmo na fabricação de armas.
A Politica Interna.
108
RDN, Agosto de 1923, Editorial – “A Organização Nacional”.
65
para tornar-se a luta entre duas nações” (RDN, Novembro de
1913, pg. 37).
66
“o Brazil não é, siquer, uma anachia; é uma anti-archia. A
anarchia é uma organisação sem lei e sem governo: o Brazil é
uma desorganização dominada por arbítrios; o Brazil não é um
paiz, uma nação, um estado, uma Pátria: é uma exploração.O
explorador é o político, o magistrado, o parlamentar, o
funccionario publico, o bacharel, emfim, o bacharel que frue a
delicias das rendosas e commodas posições que occupa,
posições e logares que se multiplicam à medida que lhe
nascem os filhos;” (TORRES, citado em: RDN, Março de 1916,
Editorial “A Organização Nacional”, p. 178.)
109
Se referindo à oposição dos políticos civis ao serviço militar obrigatório, motivo de
campanha constante durante seus primeiros anos de existência, a RDN se expressa assim:
“Se a filjha da moral e da razão, no dizer do patriacha da independencia, não tivesse cedido
logar, na governação brazieleira, à politicagem das conveniencias partidarias e pessoaes, que
sempre relega os interesses patrios para último plano, a lei que hoje ensaia os primeiros
passos de sua execução já estaria de há muito produzindo grandes beneficios à nossa
organisação social, política e econômica”. Ver: RDN, Janeiro de 1917, Editorial (“Pátria Livre”),
p. 113.
110
Ver: RDN, Janeiro de 1914, “Exercitos Estadoaes”, p. 111: “A ingenuidade da constituinte
republicana, imbuida nas utopias da paz universal, pelo bafejo de tantas philosophias
demolidoras, não nos deixou aberta uma única porta para chegarmos à Nação Armada;
desfraldou aos ventos da Victoria o pendão da democracia absoluta, cujos fructos estão quase
maduros, e d’ahi esssa autonomia de tudo e para todos, que é o caminho mais curto do
desmembramento. E não será ess o perigo?”
67
consequência direta de tornar o país vulnerável às ameaças regionais111. Além
disso, a falta de coesão nacional derivada da ação das elites civis também
impossibilitaria o país de dissuadir, caso fosse necessário, a ameaça
imperialista112. Ou seja, as elites regionais e particulares impediriam o
desenvolvimento do Exército e da organização nacional, e assim garantiriam o
enfraquecimento do país e a sua incapacidade de enfrentar tanto a ameaça
regional (representada principalmente pela Argentina) quanto a ameaça
imperialista.
68
centrífugas capitaneadas pelas elites civis e assim resguardar os interesses da
coletividade114. Entretanto, ficava a questão de quem seria, devido ao estado
de total desorganização e predomínio dos interesses particularistas, capaz de
sustentar tal governo. A resposta, se poderia suspeitar, era o próprio Exército.
114
RDN, Outubro de 1920, Editorial (“Precisamos ser fortes: a prova de 1922”), pg. 64: “...
indispensável que a União seja forte e que atrás de suas palavras e opiniões haja uma senção
forte, indubitável, capaz de assegurar o exercicio sereno do poder para o bem comum.”
115
RDN, Outubro de 1913, pg. 1.
116
Nesse ano Mário Travassos assume o cargo de Redactor – Secretário
117
RDN, Maio e Junho de 1926, Editorial (“O que fizemos – O que nos resta fazer.”), pg. 105 –
107: “Que todos saibam que não há Exercito, que não há defesa nacional emquanto se esperar
das instituições armads do paiz que actuem d’essa ou d’aquella fórma, ao sabor das correntes
partidárias. Que todos sintam que o Exercito nada é sem a intima e constante participação de
69
mude o foco da luta, deixando-se de se centrar na profissionalização do
Exército para, ao contrário, se preocupar em “...fundar as bases da
organisação militar da Nação.”118
todas as manifestações civis da Nação. Que o que se chama correntemente de Exército não é
senão o apparelho de enquadramento das possibilidades nacionaes, na paz como na guerra.
Que o nosso problema militar não é mais, somente, não pode ser mais, apenas, fazer e manter
esse Exercito, mas organisar a defesa nacional tão bem que se chegue com isso a integralisal-
o na propria Nação, da qual será elle o symbolo de suas conquistas politicas e sociaes, no
interior como no exterior do paiz.”
118
Ou, como ainda colocam os editores (Idem, Pg. 106): “A organisação do Exercito esta
virtualmente feita. A nova jornada que nos cumpre é integralisar na Nação o Exercito que
construimos.”
119
RDN, Agosto de 1926, Editorial (“Um só ideal – Frente única!”), pg. 197: “E quando a
organisação prima sobre todas as coisas tem-se que reconhecer o Exercito como o grande
plasmador da Nação. De facto; na paz cabe ao Exercito – para a satisfação das necessidades
militares do paiz – ser o apparalho de caldeamento social ao mesmo tempo que o condensador
das reservas nacionaes; como expressão pratica da soberania nacional é elle o grande
estimulo e o grande condensador de todos os crescimentos, de todos os progressos. Na guerra
– quando a Nação inteira se mobilisa para a batalha – cabe-lhe enquadral-a, leval-a nas
malhas de sua organisação de campanha á Victoria das proprias armas.
120
Idem, pg. 193: “Em resumo – na paz a Nação precisa do Exercito, na guerra o Exercito
precisa da Nação. Na paz como na guerra o Exercito tem que ser a espinha dorsal da
nacionalidade, sufficientemente forte para que possa articular todos os desdobramentos da
vida nacional, flexivel na medida necessaria à homogeinização desses mesmos
desdobramentos. Emfim, o Exercito Nacional, como todas as forças que devem representar
papel politico – social predominante – tem que pairar acima de tudo e de todos, realizar o
esforço apostolico de isentar-se das paixões ambinetes, pra que possa sentir de perto o rythmo
das verdadeiras aspirações da Pátria”.
121
Ver Carvalho, 2005; Campos Coelho, 2000.
70
regime e que Bertholdo Klinger, seu mais respeitado colaborador, renunciou à
presidência de honra da publicação devido a suspeita de seu envolvimento na
segunda rebelião tenentista122. Todavia, o próprio envolvimento de Klinger
atesta uma grande compatibilidade entre as correntes. E, de fato, os
“Tenentes” foram alunos da “Missão Indígena” articulada pelos Turcos
colaboradores da RDN ao final dos anos 1910, e muitas de suas
reinvindicações eram semelhantes (o que inclusive ajuda a explicar a
suspeição em torno de Klinger em 1924). Na realidade, pode-se afirmar que a
diferença fundamental entre Tenentes e “Turcos” no que diz respeito à política
era mais de método do que de conteúdo.
(...)
122
Ver: RDN, Julho e Agosto de 1925, pg. 208.
71
no meio castrense, e se preservaria o Exército das lutas faccionais e
partidárias. Consequentemente, a corporação teria um alto grau de coesão
interna e de força para agir com firmeza e solidez perante a classe política civil,
prevenindo-se contra sua própria dissolução ao mesmo tempo em que obtém
os recursos morais necessários para desenvolver sua função política, fazendo
prevalecer suas exigências123.
123
Idem, pg. 160 – 63.
124
RDN, Setembro de 1926, Editorial (“A Organização da Defesa Nacional”), pg. 237: “É que a
defesa nacional traduz complexto problema para o qual o Exercito e a Marinha são meros
componentes; exige além de medidas nitidamente militares, outras de caracter extra-militar;
requer além de technicosm militares capazes, organisação social e administração civil
concordantes com os objectivos que se teem em vista”
125
RDN, Agosto de 1923, Editorial (“A Organização Nacional”), pg 718: “Mas a natureza não
se apresenta sobre o aspecto desejado, de modo que o problema se complica em excesso,
exigindo a existência de um órgão centralisador, alheio de todo ás contingencias da política, de
acção permamente e podendo por isso orientar devidamente ao chefe da Nação no momento
opportuno, e a creação dese órgão é o que nos cumpre fazer com urgência.”
126
Idem, nota 82, pg. 238: “O apparelho coordenador que nos falta é o Conselho de Defesa
Nacional – órgão a que caberá determinar o Plano de Guerra, a organisação militar da Nação,
moral e materialmente...”
72
social e da administração civil às diretrizes centrais da Defesa Nacional127. Em
resumo, caberia ao Conselho de Defesa Nacional, na melhor tradição do
pensamento germânico de eliminação da distinção entre as esferas da política
e da guerra (ou da estratégia) a tarefa de exercer a direção política do país.
2.3. CONCLUSÃO.
127
Idem, nota 82, pg. 238: “Mediante o estabelecimento e funcionamento regular do Conselho
de Defesa Nacional, não só serão sufficientemnete encaradas as medidas nitidamente
militares, como serão cuidados, em seus justos termos, todos os aspectos extramilitares da
organisação da defesa militar da Nação. Porém o que avultará da grandiosidade dessa
realisação será determinar-se o quadro em que se terão de exercer todas as actividades, todas
as energias, precisar-se como se deve dar a intepenetração do Exercito e da Nação.
128
RDN, Outubro de 1926, Editorial (“O Conselho de Defesa Nacional”), pg. 278.
73
Para responder a essa pergunta, procuramos inicialmente contextualizar
as origens da Revista, que são ligadas diretamente aos tabuleiros geopolíticos
em que o Brasil se inseria, principalmente aquele do Prata. Argumentamos que
nas décadas precedentes à fundação da RDN, havia ocorrido uma inversão na
balança de poder nesse tabuleiro em favor da Argentina. Tal inversão foi
consequência do avanço econômico portenho, articulado à Grã-Bretanha, e
dos processos de colapso das Forças Armadas e debilitamento da autoridade
central que o Brasil viveu entre o final do Império e as primeiras décadas da
República. Foi para recuperar as Forças Armadas, e através delas
reestabelecer a balança de poder platina, que os oficiais que fundariam a RDN
foram mandados para o treinamento na Alemanha por dois integrantes da elite
diplomática e militar brasileira, o Barão do Rio Branco e o Marechal Hermes da
Fonseca.
74
influência germânica, transmitida através dos treinamentos (diretamente ou
através da ‘Missão Indígena’), e de artigos de militares alemães. Nessa
concepção de guerra, sistematizada na tese da “Guerra Total” de Ludendorff, a
área econômica e a área política interna são dimensões do conflito, e caem na
esfera de responsabilidade das Forças Armadas. É a partir daí que se articulam
as teses da RDN sobre a industrialização, a infraestrutura e a organização do
Estado Brasileiro.
75
nacional, ideias que convertem em inimigos potenciais todos aqueles que
discordam com o que o General Góes posteriormente chamaria de “A Política
do Exército”. O impulso centralizador gerado por essas ideias, sempre
acompanhado da preocupação com a autossuficiência econômica e industrial,
tem uma semelhança inegável com os acontecimentos posteriores a 1930,
quando muitos colaboradores da RDN chegam ao comando do Estado.
76
CAPÍTULO III: DA DOUTRINA GÓES – TRAVASSOS À DOUTRINA DE
SEGURANÇA NACIONAL – O PENSAMENTO MILITAR ENTRE 1930 E 1964.
INTRODUÇÃO.
77
na disputa entre Argentina e Brasil pela hegemonia sul-americana, para
gerações de oficiais do Exército.
129
Ver Coelho, 2000 & Trevisan, 1985.
130
Arruda, 1983.
78
contrário dos demais membros do Grupo Original da ESG, ele estava no centro
dos acontecimentos na época mais dura do regime de 1964, quanto
supostamente a doutrina do inimigo interno, da defesa do ocidente e da guerra
insurrecional teria dominado completamente as preocupações das elites
militares.
131
McCann, 2009
79
1920. Todavia, esses oficiais, em contraste direto com os tenentes, estavam no
momento anterior à Revolução em posições de chefia, servindo sob Tasso
Fragoso no Estado Maior do Exército. Assim, permaneceram fiéis ao governo,
gerando uma divisão entre os “Turcos” de um lado e Góes e os “Tenentes” do
outro132.
132
Idem.
133
McCann, 2009.
134
Idem
80
movimento na realidade havia sido arquitetado pelos líderes militares para
imporem uma ditadura, e não pelas elites civis que queriam o retorno à
situação pré-1930. Além disso, durante a Revolta, suspeitas surgiram que os
generais que comandavam as tropas dos dois lados, Klinger e Góes, se
articulavam para se livrarem dos seus parceiros civis e instalarem o governo
militar direto135.
135
Idem.
136
Idem.
81
Apesar de se preservar Getúlio como presidente, o golpe deveria ser dado
mesmo contra sua vontade, e mudou completamente o sistema político, com a
abolição das instituições liberais e representativas. No seu lugar, e dos
interesses civis, o Exército assumiu o papel de garantidor final do Estado, que
assim passou a refletir nas suas políticas as preocupações do Alto Comando.
137
D’Araújo & Castro, 2007.
82
Enquanto o Brasil se aliava aos EUA, o vizinho platino seguia no
caminho oposto. Em 1943, militares germanófilos assumiram o poder num
golpe de Estado. Tanto o golpe quanto o novo governo foram entendidos pelo
embaixador americano como sendo uma operação nazista, que buscaria, após
a derrota em Stalingrado, garantir uma nova base no hemisfério ocidental. Esse
entendimento do embaixador (e depois Secretário de Estado para o Hemisfério
Ocidental) foi incorporado pelo Departamento de Estado chefiado por Cordell
Hull, que iniciou uma política de contenção e boicote à Argentina. Parte dessa
política era constituída de embargos econômicos, mas os diplomatas
americanos também pressionaram o governo brasileiro para que realizasse um
ataque militar ao vizinho. Apesar do apoio do General Góes Monteiro, esse
ataque não se realizou, tendo o Brasil se limitado a garantir o Uruguai e o Chile
contra qualquer ataque de Buenos Aires138.
138
Ver Moniz Bandeira, 2010 e Elibio Junior, 2011.
139
Ver Moniz Bandeira, 2010.
83
britânico em Buenos Aires, para quem a política americana buscava, através
do controle sobre a Argentina, o país mais rico e poderoso da América Latina,
expulsar a influência de Londres no hemisfério ocidental140.
140
Moniz Bandeira, 2010.
141
Idem.
142
Ver D’Araújo & Castro, 1997 & Moniz Bandeira, 2010.
84
Estado Maior do Exército, General Cesar Obino, que depois seria um dos
articuladores da Escola Superior de Guerra. A segunda fonte era a UDN, em
cujos relatórios do Diretório Nacional se propunha a interrupção das relações
econômicas com Buenos Aires, para não auxiliar nos preparativos para a
guerra que se planejava contra o Brasil143.
143
Moniz Bandeira, 2010.
85
Estado Maior das Forças Armadas, negociou o Acordo Militar com os EUA,
alinhando o Brasil a Washington em troca de apoio técnico e financeiro144.
144
Ver Fundo General Góes Monteiro, Arquivo Nacional.
145
A exposição dessa seção se baseará em Travassos, 1938
86
a preponderância do último país, às quais se somam à outras teses expostas
pela primeira vez na “Projeção Continental”.
87
em uma posição geopolítica ideal para, superando os antagonismos pacifico-
atlântico e amazônico-platino, estender sua dominação pelo continente.
146
“O Estado Argentino, com o acionamento das comunicações platinas, exprime a mais perfeita
compreensão do seu destino geo-político – em face dos dois antagonismos em redor e no quadro da
massa continental – principalmente porque, entre as formas de expansão, se decidiu pelo fomento das
comunicações terrestres.”.XIX.
- “A Expansão política por meio das comunicações marítimas levaria o Estado Argentino à luta imediata
com o Estado brasileiro, por isso que o litoral sul do Brasil é que definiria os pontos de aplicação das
forças expansionistas. A Expansão terrestre afastou essa possibilidade, ao mesmo passo que, por linhas
interiores, se manifesta sob a forma altamente simpática da solidariedade continental”.
88
Ucaile. Assim, a articulação Buenos Aires – La Paz apresentava o sentido de
superação dos antagonismos sul-americanos, mas a favor do Prata.
Em primeiro lugar, poderia ser facilmente ligada por via férrea até
Corumbá, no Mato Grosso, e daí até São Paulo e Santos. Nesse ponto,
89
Travassos repete ipsis literis as teses já expostas na RDN de que Corumbá
seria o ponto de influência natural brasileiro no Rio Paraguai, e que o país
deveria construir uma ferrovia dessa cidade até Santa Cruz, com o mesmo
objetivo que o geopolítico dá para a empreitada, ou seja, conter a influência
argentina no interior da América do Sul.
90
3.2.2: A Visão sobre a Organização Política Interna, ou A Doutrina Góes.
147
A exposição dessa seção se baseia na obra “A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército”, de
1931.
91
se organizarem e se fortalecerem e assim deixá-las à mercê do imperialismo.
Nesse sentido, a Luta de Classes passa a ser um instrumento para enfraquecer
o Estado.
92
organizados logravam sobreviver, e o faziam predando os países mais fracos,
os dominando, absorvendo ou os forçando as mais humilhantes concessões
dentro da corrida imperialista global. E, além disso, o Brasil havia nos últimas
décadas perdido a vantagem regional, e agora estava em situação de
inferioridade com relação a sua adiantada vizinha.
93
nacional quanto sobre o papel do Exército na frente doméstica, e que começa
com uma crítica feroz ao liberalismo, o grande impeditivo na sua visão do
fortalecimento e organização da sociedade brasileira.
94
para o bem dos seus adeptos. Representam a divisão, a luta
estéril, que leva à anarquia e à desorganização” (Goes, pg. 89).
95
Essa proposta está coerente com a tese de Góes sobre a marcha
evolutiva inevitável dos povos, que, como vimos, passaria por uma etapa de
organização interna, ou nacionalista, em que os países se fortaleceriam e se
qualificariam para se protegerem dos perigos externos, até que chegasse o
momento deles próprios se expandirem em direção ao exterior. Entretanto,
havia um problema central no programa do militar, dado que, como ele próprio
afirmava, todas as correntes políticas estavam contaminadas pelo virus do
liberalismo e dos interesses imediatistas e particulares, e logo nunca poderiam
encampar um programa que pudesse gerar um “Estado orgânico” como este.
96
O primeiro passo para que as Forças Armadas fossem “tão fortes
quanto o possível” , por sua vez, era a destruição do espírito liberal dentro das
próprias instituições armadas. No seu lugar, deveria surgir um espírito de
“sacrifício em prol da nacionalidade”, orientado pela camaradagem, coesão,
consenso doutrinário e “... a mais acentuada unidade de vistas”. Para tanto, o
Exército deveria eliminar completamente a influência de elementos estranhos
nas suas fileiras, sejam eles propagadores de ideologias alienígenas, agentes
de governos estrangeiros e políticos e oficiais seduzidos pela política partidária
Góes sumarizou esse programa na expressão sobre a necessidade de se fazer
a política do Exército, não a política no Exército, e que a menos que tal
mudança de atitude fosse realizada, com a expulsão dos manipuladores de
plantão, a corporação nunca veria seus planos realizados:
97
“A política do Exército é a preparação para a guerra, e esta
preparação interessa e envolve todas as manifestações e
atividades da vida nacional”(Goes, 79)
98
Elas são a favor da Nação brasileira unida e forte, e contra todo
elemento e contra tudo que prejudicar essa união”.
99
que lhe podiam fazer sombra. O ministro da Guerra de 1937, o
general Eurico Dutra, era por todos os motivos para ele o
homem ideal. O que faltava ao general Góis sobrava ao
general Dutra: coragem pessoal e capacidade de execução.
Podia agora fazer quantos planos quisesse, como chefe do
Estado- Maior, na certeza de que o ministro da Guerra os
executaria.”(Amaral Peixoto In Murilo Pinto, 1997, pg. 294).
100
autoritário dos anos 1930 e 1940, e a Doutrina de Segurança Nacional dos
anos 1950 em diante. Mas, para além do aspecto cronológico, também é
interessante a posição do autor, na rede de relações políticas dentro das
Forças Armadas. Por um lado Rodrigues foi um estreito colaborador do Estado
Novo, e assim se aproximava do grupo “autoritário” liderado por Góes Monteiro
e Eurico Dutra. Nessa condição, foi um dos idealizadores e fundadores da
Força Aérea Brasileira. Por outro lado, era aliado do Brigadeiro Eduardo
Gomes, ex-tenente de 1922, primeiro comandante da FAB e candidato à
presidência em 1945. Portanto, Lysias também se associava à facção mais
pró-americana e supostamente “democrática” dentro das Forças Armada, que
era constituída em grande parte por membros da FAB e liderada por Gomes.
Tudo isso faz das ideias do brigadeiro um bom indicador sobre se aquelas
propostas sobre a ameaça geopolítica e a organização política interna
elaboradas por Góes e Travassos, e em grande medida herdadas da Defesa
Nacional, foram abandonadas com o fim do Estado Novo, ou se foram
incorporadas por correntes insuspeitas das Forças Armadas, que foram ainda
mais associadas ao alinhamento com os EUA e a defesa da democracia liberal
do que o grupo da ESG que surgiria depois.
148
A exposição dessa seção será baseada na obra “Geopolítica do Brasil”, de Lysias Rodrigues
(Rodrigues, 1947).
101
pelo regionalismo. Deixado em segundo plano por Travassos, a ameaça dos
interesses locais destacada pela Defesa Nacional retorna com toda força na
geopolítica de Lysias. Nesse sentido, o Brigadeiro afirma que os Estados agem
de forma contrária ao interesse nacional, se comportando como verdadeiros
países rivais na questão das disputas de limites, e que desse jeito arriscavam
levar o país a nada menos que a Guerra Civil, como havia acontecido no
passado:
(...)
102
seguida da derrubada do Estado Novo, sua intenção é prover uma justificativa
para a preservação da herança centralizadora desse regime, para o qual havia
colaborado. A necessidade de uma justificativa geopolítica para a continuidade
da centralização transparece na sua tese das sístoles e diástoles, em que
afirma haver na geografia brasileira uma tendência de estímulo à
descentralização política, periodicamente revertida pela ação do Estado. No
momento em que escreve, o país estaria em uma vaga centralizante,
claramente representada pelo Estado Novo. Entretanto, se houvesse omissão
dos responsáveis, os regionalismos perversos e desagregadores voltariam a
predominar. Como adverte:
103
Entretanto, apesar de necessário, a contenção da ameaça regional não
seria suficiente para garantir a segurança do Brasil. Além do problema interno,
o país enfrentaria outro, de caráter continental. Nessa dimensão, Lysias
retoma a noção de que o país está cercado por ser na América do Sul “o único
de sua raça”. Esse cerco, representado pelos países hispânicos, se manifesta
em três “Punctum Dolens” no qual as rivalidades seriam mais intensas. Tais
pontos seriam o “heartland sulamericano” de Travassos, ou seja, o triângulo
Cochabamba – Sucre – Santa Cruz, a fronteira do Brasil com a Argentina,
como foco em Foz do Iguaçú, e a fronteira do Perú com o Equador, perto da
cidade brasileira de Letícia. De acordo com o Brigadeiro, a necessidade de
conter a influência hispânica nesses pontos, e nas fronteiras brasileiras em
geral, foi a motivação fundamental para a criação dos territórios federais
fronteiriços. Ele propõe que, além dos já existentes, de Ponta Porá e Iguaçú,
correspondentes aos “Punctum Dolens” do Triângulo Boliviano e da fronteira
com a Argentina, um terceiro, que seria o correspondente ao foco de Letícia.
149
Rodrigues, 1947, pg. 121.
150
Idem, pg. 122.
104
que enfrentou o Brasil para implantar o Vice-Reinado do Prata no século XIX,
entidade que é o maior fantasma da geopolítica brasileira desde então.
105
Ora, dada a tônica geral da obra, os “altos destinos” do Brasil são o status
de Grande Potência e de “Império Estatal”, além de chefe do bloco político sul-
americano, desígnios que se forem respeitados serão retribuídos com a
fidelidade do “bom vizinho continental”.
106
3.4 A Doutrina de Segurança Nacional.
151
Ver Arruda, 1983.
107
Sem ter como objetivo contestar os efeitos que a ESG ou a DSN
tiveram na política e no desenvolvimento brasileiros, o objetivo dessa seção
será relativizar, sem nunca negá-los de todo, os aspectos descritos no
parágrafo anterior, e tentar demonstrar como a Doutrina apresenta fortes
continuidades com o pensamento que se vem analisando nessa dissertação.
Nesse sentido, buscaremos verificar em que medida as preocupações com a
geopolítica continental e interna, a concepção de guerra total e as teses sobre
o Estado enquanto ente orgânico e sobre a industrialização autárquica
presentes nas etapas anteriores do pensamento militar brasileiro impactaram
ou foram incorporadas na Doutrina de Segurança Nacional. Para tanto, iremos
primeiro revisar alguns dos postulados centrais da geopolítica do General
Golbery do Couto e Silva. Em seguida, buscaremos identificar a concepção de
guerra da ESG, e como dela se derivam as teses da escola sobre a
industrialização e sobre a organização do Estado.
108
bem como a Ilhéia Amazônica, se defrontariam com os centros de poder
hispânicos da América do Sul. Estes, por sua vez, seriam uma ameaça vital
para o Brasil, pois se caracterizariam pela unidade linguística e cultural. Dessa
forma, ainda que até o momento tivessem mais divergido que convergido,
haveria sempre como hipótese a sua união contra o Brasil, que seria por eles
entendido como um vizinho exótico e débil, sobre o qual seus interesses
poderiam ser satisfeitos. Assim:
Aqui se pode ver, ainda com mais clareza, a tese do cerco hispânico
primeiro elaborada na Defesa Nacional nos anos 1920 e depois presente tanto
na geopolítica de Mário Travassos quanto na de Lysias Rodrigues. Golbery
também deve a esse último a caracterização dos desafios particulares que
cada ecúmeno brasileiro sofreria das suas contrapartes hispânicas. Assim, ao
Punctum Dolores de Letícia de Lysias, Golbery corresponde a tese de que a
Ilhéia Amazônica estaria vulnerável ao cerco dos países andinos, muito mais
populosos do que ela, que não poderia, dada a ausência de comunicações,
contar com o auxílio da plataforma central. Ao Punctum da Bolívia, ou o
“Heartland Sulamericano” de Travassos, por sua vez, o autor corresponde a
ameaça que adviria da instabilidade desse país e do Paraguai, bem como de
sua condição de espaço de confrontação privilegiada entre Brasil e Argentina,
para o ecúmeno nacional do centro:
109
podem vir a contender, quer queriam quer não, os interesses
brasileiros e argentinos”(Idem, pg. 55).
110
Na realidade, apesar de toda a ênfase que Golbery confere à divisão do
mundo entre ocidente e oriente, liderados pelos “superestados” americano e
soviético, e as previsões apocalípticas que tece sobre o confronto entre os dois
gigantes, parece ser a preocupação e as ambições geopolíticas regionais as
motivadoras da proposta do alinhamento com os EUA. Dentro da ESG, o
General Juarez Távora já havia incluído como um dos Objetivos Nacionais
Permanentes do Brasil a obtenção da hegemonia no continente sul-
americano152. Na visão de Golbery, a obtenção desse objetivo passaria por
Washington.
152
Távora, 1954
111
liderança regional, mediante a suspensão, por Washington, da política de
garantia da balança de poder no Cone Sul:
112
nas escolas de guerra americanas e estimulada pelo conservadorismo militar é
a concepção de guerra adotada na Doutrina de Segurança Nacional. Ocorre
que nos anos 1950, quando esta foi formulada, os militares da ESG não tinham
como referência central a noção, que depois ficou identificada com a escola, de
guerra interna, revolucionária ou subversiva. O combate à subversão somente
passou a ser foco de estudos mais sistemáticos de 1959 em diante, por
ocasião da Revolução Cubana e através principalmente da influência dos
militares franceses, que tinham uma produção doutrinária vasta nesse campo
devido à experiência no Vietnã e, principalmente, na Argélia 153.
153
Ver Martins Filho, 2008; 2012.
113
Além dessa concepção de conflito não poder ser atribuída à influência
americana, dado que os EUA não a utilizavam à época, e não ser diretamente
ligada à insurreição ou a subversão, também o modelo de aplicação prática da
“guerra total” com que a ESG trabalhava não se voltava para o frente interno.
Na realidade, a Escola entendia como o cenário em que os conceitos da guerra
total se aproximaram mais concretamente da realidade foi aquele dos
combates convencionais da II Guerra154.
154
Ver Sardenberg, 1954.
114
Na realidade, radicalizando o raciocínio, Juarez Távora chega a
afirmar que uma vez decidido o ponto central, a “corrida para a preparação”, o
conflito em si seria praticamente inconsequente. Seguindo a mesma linha,
Couto e Silva afirma que, no caso de países que tem adversários superiores, é
o fortalecimento do potencial, e não a guerra em si, que deve ser o foco do
planejamento da segurança nacional. Entretanto, não se perde nunca de vista
a possibilidade e a centralidade do conflito armado, e, apesar de se colocar o
foco no fortalecimento do poder nacional nos campos político, psicossocial e
econômico, eles tem como sentido sempre a guerra, como se vê na própria
definição de potencial, e de poder, nacional155.
155
O Potencial nacional é definido como sendo o conjunto integrado de todos os meios ou forças
políticas, econômicas, psicossociais e militares que a Nação considerada pode mobilizar, em
circunstâncias determinadas, para fazer a guerra (Ver Couto e Silva, 1981, pg. 178).
156
Ver Couto e Silva, 1981.
115
entre o Brasil e o adversário, ou adversários previstos nas dadas Hipóteses de
Guerra (HG).
116
Em termos gerais, portanto, a Doutrina de Segurança Nacional
concebe o desenvolvimento econômico (“Fortalecimento do Potencial”) como
sendo o prelúdio da guerra. Entretanto, os colaboradores da ESG não se
restringiram a definir os marcos conceituais sobre os quais deveria se dar o
planejamento econômico, mas também indicaram algumas diretrizes
específicas, também baseadas nas ameaças possíveis ao país.
Ou ainda:
117
“... a enumeração do ANEXO N 1 apenas englobou indústrias
direta e indiretamente ligadas a uma mobilização geral.
Diretamente quando se tratarem de indústrias que produzam
artigos utilizados pelas Forças Armadas, sem necessidade de
qualquer adaptação ou correção, como, por exemplo: discos de
cortiça, máquinas para rolar cartuchos,material eletrônico,
metralhadoras, molas giratórias, munições objetivas
cinematográficas, aparelhos de precisão para aeronatica e
marinha, ouvidos para fusís, pistões, baterias, transformadores,
refletores, rolamentos para mancais, vagões para estradas de
ferro, tratores, etc... E, indiretamente, quando a produção atual
puder ser substituida pela de outros artigos de interesse para a
mobilização, por incremento de consumo ou por dificuldades de
importação, como, para exemplifica: emprêsas que produzam
bem aparelhos de precisão para fins civis, poderão fabricá-los
também para fins militares; ou firmas que produzam correias
metálicas de um tudpo determinado poderão, com mais
facilidade vir a produzir correias de outros tipos, si para tanto
houver necessidade.” (Di Pietro, 1955, pg. 267).
118
Não era somente com a indústria que a ESG se preocupava, entretanto.
Outro ponto fundamental era a instalação da estrutura nacional de transportes
e energia. Nesse caso, além do apoio à autarquia fabril, se contribuiria para
fortalecer a comunicação entre o núcleo central (A plataforma central de
manobra) e os núcleos secundários (Penínsulas e Ilhas) do país. Essas
comunicações, por sua vez, seriam úteis para os deslocamentos necessários
para a mobilização e concentração de pessoal para o combate, assim como
para o fluxo de matéria prima da periferia para os centros industriais e dos
petrechos bélicos para a frente de batalha157
157
Távora, 1952.
158
Couto e Silva, 1981.
119
implementação das diretrizes elaboradas pela política. Essas definições
reproduzem grosso modo a distinção de Clausewitz que leva a subordinação
da guerra aos objetivos políticos. Todavia, logo em seguida a DSN abandona
a linha de Clausewitz e afirma, como Ludendorff, que a intensificação das
rivalidades entre os Estados e a consequente totalização do conflito levariam a
uma confusão entre a política e a estratégia, com a segunda praticamente
ocupando todo o espaço da primeira:
159
“Por outro lado, é certo, é certíssimo, que a base de uma mobilização eficiente se encontra,
sobretudo, na preparação espiritual da coletividade nacional, seja para prevenir, seja para enfrentar a
contingência da guerra. Essa preparação, tando no âmbito do governo, como na consciência do povo,
torna-se imprescindível para que a passagem do regime de tempo de paz para o de tempo de guerra
120
Estado da publicação dos Jovens Turcos, único modelo político compatível
com a subordinação de todas as atividades e funções nacionais ao objetivo da
guerra160. De fato, na visão de Estado elaborada por Lyra Tavares, o sistema
político é o equivalente ao sistema nervoso, o governo ao cérebro, o poder
militar ao sistema muscular, o psicossocial ao sistema sensorial e o sistema
econômico ao sistema circulatório.
esteja organizada, a quelaquer momento, fazendo convergir o esforço nacional, em todos os setores
interessados, no sentudo da execução pronta e objetiva das medidas previstas, com a necessária
compenetração do risco coletico que a guerra impõe e sem qualquer tipo de resistência interna, que
poderia agravá-lo”. (Lyra Tavares, pg 97).
160
“... o Estado deve ser encarado como um organismo vivo, sujeito às mesmas regras de evolução e
com os campos de vulnerabilidde comparáveis aos que caracterizam a biologia humana.”(Idem, pg. 89).
121
A política de transportes não era a única listada por Lyra Tavares como
passível de coordenação pelo estabelecimento de segurança nacional.
Através do Estado Maior das Forças Armadas, os militares deveriam exercer
diretamente o papel de preparação da indústria civil para fins de
mobilização161, assim como a condução de pesquisas nas áreas consideradas
estratégicas162.
Conclusão.
161
“A Solução progressiva dos problemas idênticos, tendo em vista as necessidades de mobilização,
abrange, porém, muitos outros setores, dependentes todos de uma coordenação prévia dentro de cada
uma das três Forças Armadas e do conjunto destas, por intermédio do EMFA, com a Indústria Civil”.
(Idem, 173).
162
- “Tal foi o caso, por exemplo, da fabricação do dessalgante da água do mar (empôlas), obtida, com
ótimos resultados, pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) de S Paulo, mediante indiação e
encomenda do EMFA.” (Idem, 173).
163
Távora, 1961.
122
entre ameaça geopolítica e agendas para o campo da política interna e o
desenvolvimento econômico, como ocorreu na fase compreendida entre 1913 e
1930. O segundo era responder a pergunta sobre, existindo essa associação,
ela apresentava uma continuidade entre as ideias herdadas da fase anterior e
elaboradas nos anos 1930, de um lado, e aquelas sistematizadas no pós-
guerra, de outro. Mais especificamente, se a tese da ameaça geopolítica
regional e interna, a concepção de guerra total, a noção de industrialização
autárquica e de Estado orgânico permaneceram após 1945 ou foram
substituídas por noções importadas dos EUA que estabeleciam a União
Soviética, o comunismo e o inimigo interno como centrais, e portanto a
associação unilateral com Washington, a adesão a democracia liberal e a
abertura econômica ao líder do bloco ocidental. Em outras palavras, se estava
indiretamente debatendo com a posição que vê na ESG e na Doutrina de
Segurança Nacional uma invenção alienígena e produto da Guerra Fria, e que
teve como sentido maior a proteção dos interesses dos EUA e da burguesia
dependente brasileira.
123
As seções seguintes se concentraram no pensamento militar
propriamente dito. Na segunda, buscamos analisar as teses do Capitão Mário
Travassos e do General Góes Monteiro. Geralmente, os trabalhos dos dois
autores, publicados no mesmo ano, são estudados em separado, com
Travassos sendo objeto dos especialistas em geopolítica e Góes interessando
aqueles que querem entender a ação política do exército. No nosso caso, dado
nossa perspectiva baseada interestatal sistêmica, entendemos os dois autores
como complementares. Por um lado, Góes propõe a tutela do Exército sobre o
Estado, e a expansão do controle do Estado sobre sociedade ao mesmo
tempo em que os interesses particulares devem ser purgados do seu interior. O
sentido da atuação do Exército na política, por sua vez, deveria ser o de
prepará-la para a guerra. O General chega a identificar uma queda da posição
brasileira na América do Sul, mas é Travassos que mais claramente define
quem seria o adversário nessa guerra. De acordo com a sua geopolítica,
baseada na oposição entre as bacias do Amazonas e do Prata, nosso grande
desafio seria a Argentina.
124
possibilidade de um conflito interestatal regional sem auxílio externo, por sua
vez, abre espaço para que as antigas concepções presentes na tradição de
pensamento militar brasileiro, inclusive de origem germânica, como a Guerra
Total, a ideia de um Estado organizado sem dissensos internos capaz de ser
mobilizado inteiramente e coerentemente para o conflito, e a necessidade de
industrialização autárquica, sejam incorporadas na Doutrina de Segurança
Nacional. Todo esse quadro difere bastante da noção que coloca a dita
doutrina como um pensamento originado nos EUA, baseado fundamentalmente
na dicotomia Oriente – Ocidente, e que, tendo como sentido a defesa dos
interesses externos e da burguesia associada local, adotou como central a
visão de ameaça interna e a concepção de guerra insurrecional.
125
126
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
127
pensamento militar propriamente dito. Então, constatamos que a Revista
Defesa Nacional articula uma leitura de ameaça geopolítica baseada nos
regionalismos, no Imperialismo e, principalmente, na Argentina, com uma visão
de Estado orgânico e tutelado pelas forças armadas e um projeto de
industrialização autárquica, ambos derivados de sua concepção de guerra.
128
todos os recursos nacionais em caso de guerra se articula com o padrão de
exclusão dos interesses segmentados no núcleo de decisões do Estado, que
chegou ao seu nível máximo durante o regime militar. Nesse sentido, as elites
militares e sua preocupação geopolítica podem ser os agentes responsáveis
por, face à tendência de balcanização apresentada pelo Estado
desenvolvimentista, manter ao longo do tempo um grau de coesão nos seus
objetivos estratégicos.
129
para pesquisas futuras nesses temas. Em primeiro lugar, seria necessário um
estudo mais aprofundado sobre as origens e a evolução do próprio
pensamento militar, buscando diferenciar suas principais influências (por
exemplo, a germânica e a americana), e seus veículos de elaboração e
transmissão, como os periódicos militares editados no período
desenvolvimentista e o ensino nas escolas militares, como a ECEME, que não
analisamos nessa dissertação. Com isso, se reproduziria mais precisamente as
relações de continuidades que detectamos.
164
Ver MELLO, 2012.
130
conflitos sul-americanos. Para garantir tais alianças, e os demais objetivos
estratégicos, a acolhida ao capital estrangeiro, a concentração de renda e
mesmo a repressão interna podem ter sido apenas instrumentos.
131
5. BIBLIOGRAFIA E FONTES.
BIBLIOGRAFIA:
D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso (org.). Ernesto Geisel. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1997.
132
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polít. int. vol.43 no.2 Brasília July/Dec. 2000. Disponível em:
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HONIG, Jan Willen. The Idea of Total War: From Clausewitz to Ludendorff. In.:
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133
KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro:
Campus, 1989.
MANTEGA, Guido. A Economia Politica Brasileira. São Paulo: Ed. Vozes, 1984.
134
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Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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povo brasileiro: analise politica. Rio de Janeiro: ESG, 1961. [4], 28p.
TILLY, Charles. Coerção, Capital e Estados Europeus. São Paulo: Ed. UNESP,
1996.
FONTES:
Artigos
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Pamphiro, Arthur J,“A Industria Militar” RDN, Março de 1923, v.10, n.113, pg.
552.
Paula Cidade, F. “Exercitos Estadoaes”. RDN, Janeiro de 1914, v.1, n.4, p. 111.
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Editoriais, edições completas e artigos de autor indefinido
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197.
“A Indústria Nacional do Aço”, RDN, Maio de 1917, Editorial, v.4, n.44, p. 251.
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“Enquanto é tempo”, RDN, Junho de 1917, Editorial, v.4, n.45, pg. 281.
“Lembrai-vos da Guerra”, RDN, Janeiro de 1927, Editorial, v.14, n.157, pg. 45.
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“Necessidades Industriais da Defesa Nacional” & “A Chimica – Nova Arma de
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“Notas sobre a indústria do aço”, RDN, Julho de 1917, v.4, n.46, pg. 317.
“O que fizemos – O que nos resta fazer.” RDN, Maio e Junho de 1926, Editorial
, v.13, n.149-150, pg. 105.
“Pelo porvir e para os vindouros”, RDN, Julho de 1917, Editorial, v.4, n.46, p.
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“Tudo nos une, nada nos separa”, RDN, Agosto de 1916, Editorial, v.3, n.35, p.
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“Uma indústria bem nacional e bem militar”, RDN, Julho e Agosto de 1922, v.9,
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140