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Quer aperfeiçoar sua prática pedagógica? O especialista português garante que o melhor
caminho é debater com os colegas
POR:
ANTONIO NÓVOA "O educador que acaba de se formar não pode ficar com as piores turmas
nem ser alocado nas unidades mais difíceis, sem acompanhamento". Foto: Paulo Rascao
A formação dos professores é apontada por muita gente como uma das principais responsáveis
pelos problemas da educação. O senhor concorda com isso?
Embora tenha havido uma verdadeira revolução nesse campo nos últimos vinte anos, a
formação ainda deixa muito a desejar. Existe uma certa incapacidade para colocar em prática
concepções e modelos inovadores. As instituições ficam fechadas em si mesmas, ora por um
academicismo excessivo ora por um empirismo tradicional. Ambos os desvios são criticáveis.
O equilíbrio entre inovação e tradição é difícil. A mudança na maneira de ensinar tem de ser
feita com consistência e baseada em práticas de várias gerações. Digo que nesta área nada se
inventa, tudo se recria. O resgate das experiências pessoais e coletivas é a única forma de
evitar a tentação das modas pedagógicas. Ao mesmo tempo, é preciso combater a mera
reprodução de práticas de ensino, sem espírito crítico ou esforço de mudança. É preciso estar
aberto às novidades e procurar diferentes métodos de trabalho, mas sempre partindo de uma
análise individual e coletiva das práticas.
O aprender contínuo é essencial em nossa profissão. Ele deve se concentrar em dois pilares: a
própria pessoa do professor, como agente, e a escola, como lugar de crescimento profissional
permanente. Sem perder de vista que estamos passando de uma lógica que separava os
diferentes tempos de formação, privilegiando claramente a inicial, para outra que percebe esse
desenvolvimento como um processo. Aliás, é assim que deve ser mesmo. A formação é um
ciclo que abrange a experiência do docente como aluno (educação de base), como aluno-
mestre (graduação), como estagiário (práticas de supervisão), como iniciante (nos primeiros
anos da profissão) e como titular (formação continuada). Esses momentos só serão formadores
se forem objeto de um esforço de reflexão permanente.
Se tivesse de escolher a mais decisiva, ficaria com a dos anos iniciais da profissão. Infelizmente,
não se dá a devida atenção a esse período. É ele que define, positiva ou negativamente, grande
parte da carreira. Para mim é inaceitável que uma pessoa que acabou de se formar fique
encarregada das piores turmas, muitas vezes sem apoio nem acompanhamento. Quem está
começando precisa, mais do que ninguém, de suporte metodológico, científico e profissional.
Ou seja, apenas ler sobre as novas teorias pedagógicas não é suficiente para se manter
atualizado?
Há alguns anos surgiu o conceito de profissional reflexivo como uma forma de valorizar os
saberes experimentais. Ele teve mais influência na pesquisa educacional do que nas atividades
concretas de formação, mas foi importante na reorganização das práticas de ensino e dos
modelos de supervisão dos estágios. No entanto, sempre me recordo das palavras do educador
americano John Dewey: "Quando se diz que um professor tem dez anos de experiência, será
que tem mesmo? Ou tem um ano de experiência repetido dez vezes?" Só uma reflexão
sistemática e continuada é capaz de promover a dimensão formadora da prática.
Como eu já disse, há dois pólos essenciais: o professor como agente e a escola como
organização. A preocupação com a pessoa do professor é central na reflexão educacional e
pedagógica. Sabemos que a formação depende do trabalho de cada um. Sabemos também que
mais importante do que formar é formar-se; que todo o conhecimento é autoconhecimento e
que toda a formação é autoformação. Por isso, a prática pedagógica inclui o indivíduo, com
suas singularidades e afetos.
E a escola?
De que forma o governo (no caso da rede pública) e a própria escola (no caso da particular)
podem agir para melhorar a formação dos professores?
Eles devem criar as condições básicas, com infra-estrutura e incentivos à carreira. Só o
profissional, no entanto, pode ser responsável por sua formação. Não acredito nos grandes
planos das estruturas oficiais. Esse é um processo pessoal incompatível com planos gerais
centralizadores. É no espaço concreto de cada escola, em torno de problemas pedagógicos ou
educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação. Universidades e especialistas
externos são importantes no plano teórico e metodológico. Mas todo esse conhecimento só
terá eficácia se o professor conseguir inseri-lo em sua dinâmica pessoal e articulá-lo com seu
processo de desenvolvimento. Não quero tirar a responsabilidade do governo, mas sua
intervenção deve se resumir a garantir meios e condições.
Qual é a maneira mais eficiente de aprender a ensinar? Voltando a ser aluno? Observando?
Praticando?
Tudo isso é importante, mas novas práticas de ensino só nascem com a recusa do
individualismo. Historicamente, os docentes desenvolveram identidades isoladas. Falta uma
dimensão de grupo, que rejeite o corporativismo e afirme a existência de um coletivo
profissional. Refiro-me à participação nos planos de regulação do trabalho escolar, de pesquisa,
de avaliação conjunta e de formação continuada, para permitir a partilha de tarefas e de
responsabilidades. As equipes de trabalho são fundamentais para estimular o debate e a
reflexão. É preciso ainda participar de movimentos pedagógicos que reúnam profissionais de
origens diversas em torno de um mesmo programa de renovação do ensino.
Saber trabalhar em grupo, então, é mais uma competência que o professor deve ter?
Sim. São as equipes de trabalho que vão consolidar sistemas de ação coletiva no seio do
professorado. Não se trata de adesões ou ações individuais, mas da construção de culturas de
cooperação. O esforço de pensar a profissão em grupo implica a existência de espaços de
partilha além das fronteiras escolares. Trata-se da participação em movimentos pedagógicos,
da presença em dinâmicas mais amplas de reflexão e da intervenção no sistema de ensino. No
passado, esses movimentos tiveram um papel insubstituível na afirmação social da classe.
Hoje, são decisivos para a renovação.
Existe algum método na educação continuada que alie todos esses aspectos que o senhor
preconiza?
Sim, vários programas integram essas preocupações de forma útil e criativa: seminários de
observação mútua, espaços de prática reflexiva, laboratórios de análise coletiva das práticas e
os dispositivos de supervisão dialógica, em que os supervisores são parceiros e interlocutores.
Para além dos aspectos teóricos ou metodológicos, essas estratégias sublinham o conceito de
deliberação, que por sua vez exige um espaço público de discussão. Nele, as práticas e as
opiniões singulares adquirem visibilidade e são submetidas à opinião dos outros. Ao fazer isso,
chama-se a atenção para o conjunto de decisões que os professores tomam a cada instante, no
plano técnico e moral. Em outras palavras, a articulação entre teoria e prática só funciona se
não houver divisão de tarefas e todos se sentirem responsáveis por facilitar a relação entre as
aprendizagens teóricas e as vivências e observações práticas.
Paulo Freire escreveu que a formação é um fazer permanente que se refaz constantemente na
ação. "Para se ser, tem que se estar sendo", disse ele. O que o senhor acha dessa afirmação?
A formação é algo que pertence ao próprio sujeito e se inscreve num processo de ser (nossas
vidas e experiências, nosso passado etc) e num processo de ir sendo (nossos projetos, nossa
idéia de futuro). Paulo Freire explica-nos que ela nunca se dá por mera acumulação. É uma
conquista feita com muitas ajudas: dos mestres, dos livros, das aulas, dos computadores. Mas
depende sempre de um trabalho pessoal. Ninguém forma ninguém. Cada um forma-se a si
próprio.
Sem dúvida. O potencial formador de cada um depende das ponderações feitas com os
colegas, com quem está sendo observado e com o supervisor. Sem isso, a observação
transforma-se em exercício mecânico, sem interesse. É essencial estudar os processos de
organização do trabalho escolar, da gestão das turmas e da sala de aula, bem como as formas
de utilização dos métodos de ensino e a capacidade de resposta às situações inesperadas. As
competências para realizar essa análise são individuais e coletivas. A pertinência do estágio
reside na compreensão da contribuição específica dos professores e na identificação da cultura
profissional docente.
Não gosto de fazer futurologia. Acho esse terreno repleto de armadilhas e banalidades. A
paixão pelo futuro freqüentemente significa déficit do presente. Por isso, falo de apenas um
aspecto: neste século, devido à complexidade do fenômeno educativo, à diversidade das
crianças que estudam e aos dilemas morais e culturais que seremos chamados a enfrentar,
teremos de repensar o horizonte ético da profissão. Acredito que os próximos anos serão
marcados pela instabilidade e pela incerteza. A atitude ética não depende só de cada um de
nós, mas da possibilidade de uma partilha efetiva com os colegas. Precisamos reconhecer, com
humildade, que há muitos dilemas para os quais as respostas do passado já não servem e as do
presente ainda não existem. Para mim, ser professor no século XXI é reinventar um sentido
para a escola, tanto do ponto de vista ético quanto cultural.