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São Paulo
2005
FABRIZIO AUGUSTO POLTRONIERI
BANCA EXAMINADORA
Maurice Merleau-Ponty
(O homem e a adversidade)
RESUMO
Este trabalho busca estabelecer elos entre a concepção de arte inaugural do artista bra-
sileiro Hélio Oiticica – com foco nos parangolés – e os games, as manifestações tecnológicas
digitais imersas na cultura. Nesta pesquisa, foram enfatizados os aspectos interativos de am-
bos. Examinamos os conceitos inclusivos e descondicionantes dos parangolés para depois rea-
lizarmos reflexões acerca dos sistemas interativos existentes nos games atuais. Com relação a
estes, a análise se deteve em suas características interativas, nos seus aspectos programados e
dos games, à luz de um entendimento proporcionado pelo estudo da obra de Hélio Oiticica.
This work aims to stablish links between the inaugural art of the Brazilian artist Hélio
Oiticica – focusing on the ‘parangolés’ – and the games, the digital and technological
manifestation immersed in culture. In this research, the interactive features of both of them
have been emphasised. First, we searched into the inclusive and unconditioning concepts of
the ‘parangolés’ and then, we contemplated the interactive systems found in ongoing games.
About the latter, the analysis aimed at their interactive facets, programmed aspects and
narrative manifestations. At last, we raised some questions about the games aesthetics, based
Figura 1 Luiz Fernando Guimarães veste PARANGOLÉ CAPA 23, M’Why Ke,
NY, 1972. Foto Hélio Oiticica..................................................................33
Figura 5 Capa 11: Eu incorporo a revolta, 1967. Foto Revista Art In America......65
Figura 6 Nildo da Mangueira veste Capa 13: Estou possuído, 1965. Foto Revista
Art In América..........................................................................................66
Figura 9 Estudo para PARANGOLÉ Cabeça, Gimme Head, Nova Iorque, 1976.
Coleção Projeto H.O...............................................................................107
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1.2 Os parangolés 31
REFERÊNCIAS 108
10
Introdução
O objetivo deste texto é realizar reflexões multidisciplinares acerca dos meios interati-
vos digitais, partindo de pressupostos fornecidos pela arte – a partir dos “parangolés”1, do ar-
tista brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980). Os parangolés fornecem uma base para pensarmos
mento de diálogos com um conceito-chave para a compreensão das idéias que serão aqui
de linguagens existentes nos parangolés, para então buscar pontos de intersecção com os siste-
mas digitais, em particular com os games. Os games aparecem aqui como estruturas que po-
dem possibilitar a atualização, de forma contemporânea, das inquietações encontradas nas ex-
cultural que, neste início de século, não é determinado, mas condicionado por mecanismos
contemporâneos que cada vez mais flexibilizam processos de abertura à participação indivi-
dual. Para um foco mais preciso e de acordo com os interesses desta pesquisa, o texto trata
dos processos interativos que utilizam os meios técnicos digitais como canal de transmissão,
por acreditarmos que estes processos configuram-se como convites ao pensamento multidisci-
plinar e representam uma aposta no sentido de promover uma maior participação dos recepto-
Para esta discussão os parangolés foram escolhidos como ponto de partida para uma
aproximação com as interfaces digitais por representam uma metodologia ímpar no que diz
1 De acordo com Favaretto (2000:118), o termo parangolé advem da gíria carioca, significando, neste contexto,
“conversa fiada, palavreado, assunto, baile de ínfima classe”.
11
pois
discussão apresentada e uma idéia de possíveis desdobramentos no campo dos sistemas inte-
rem numa só significação, numa só comunicação”. Atualizando esta colocação, este início de
pesquisas e discussões provenientes das esferas humanas, exatas, biológicas e, mesmo, prag-
máticas, cotidianas, promovendo o que Morin (2001) chama de “religação dos saberes”. Oiti-
cica, de certo modo, já previa esta religação em seu fazer artístico, já que
Já o universo aberto pelas mídias digitais revela-se inaugural por compatibilizar supor-
tes (Santaella, 2001:23) e, conseqüentemente, romper com barreiras impostas por meios de di-
fusão de mensagens que usam suportes físicos, como o livro. Assim, áreas que tradicional-
mente se estranhavam, mas que sempre possuíram elementos em comum, estão a um link de
lhava na teoria da relatividade e Marx já havia desenvolvido suas reflexões sobre os fenôme-
nos sociais. Em comum, todos levantavam as contradições entre as novas descobertas e os pa-
fim das certezas e a multiplicidade de visões existentes que, até então, eram negadas em favor
das questões levantadas fossem compartilhadas pelos artistas do cubismo, por Einstein e pelos
pensadores sociais, não se estabeleceu uma zona de ligação entre tais áreas.
mais variadas áreas contribui para a urgência da religação e do cruzamento de dados entre as
Na era pós-Gutemberg, os novos títulos são tantos que a noção mesma de in-
finitude do saber parece concretizar-se, afirmando a sua extensividade sem
limites. O conhecimento também precisou de novos suportes para poder con-
tinuar a sua marcha cumulativa, e só se tem acesso a ele pelo acionar dos
computadores, quer consultando-os nas bibliotecas, quer a distância pelos
novos sistemas de telepresença.
Uma das formas de se encarar o desafio da complexidade crescente e evitar redundâncias des-
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necessárias é a indexação, possível através das tecnologias digitais, com o objetivo de indicar
ponteiros, hiperlinks, para dados que complementem informações referenciadas que perten-
çam ao escopo do assunto tratado. Os dados, neste caso, não se limitam somente a escritos. A
abertura digital permite a inclusão e o referenciamento de textos, vídeos, imagens, sons e ani-
Porém, para que estes sistemas tenham sentido, novas interfaces multidisciplinares
precisam ser reatadas, entre as ciências humanas, exatas e biológicas. As associações come-
çam a se tornar evidentes e necessárias, o processo de reunificação dos saberes, defendido por
Morin (op. cit.), passa a se tornar viável e seu sentido passa a ser cada vez maior, em um hori-
zonte que tem o ser humano como total, e não fragmentado em especializações. Tal ideal re-
mete à pedagogia da escola alemã Bauhaus (1919-1933), que tinha como um de seus pilares a
Oiticica compreendia a tarefa do artista neste mesmo sentido, como sendo um abando-
cas próprias dos meios digitais só tornam-se possíveis através de uma visão do homem con-
temporâneo como total, no sentido que a Bauhaus e Oiticica empregavam ao termo. A setori-
Lévy (2001a), chama a atenção para o fato das tecnologias serem condicionantes de
expandindo seu raio de ação através de desdobramentos de sua utilização inicial. Assim, tal-
vez o grande papel delas nessa ruptura do modelo de comunicação e conhecimento que separa
os saberes, seja atuar como uma ponte, através de instrumentos técnicos, que possibilite ao
homem realizar a permeação entre os diversos tipos de saberes, visto que os instrumentos
Plaza (2003:27), o ato artístico combinado com os sistemas técnicos interativos pode fazer
simplesmente pela tecnologia na qual estamos presos, porém, esta última po-
de delegar uma ontologia linear àquela. (Bairon, op. cit.)
É neste panorama que o este texto busca explorar zonas de interface entre a arte e a
linguagem emergente dos meios digitais, mais especificamente relacionando a obra de Oiti-
tivo aqui adotada, visto que o termo interatividade abarca hoje uma grande quantidade de pro-
conceito é adotado neste texto como concepção projetual favorecedora de uma arte combina-
tória, não acabada, mas que contém elementos básicos constituintes e convenções de substi-
tuição e criação, definidas por meio de algoritmos2 projetados por um enunciador, que passa a
tituindo as constantes por variáveis. Cada receptor irá atualizar parte desta virtualidade em
discursos únicos, e a composição da mensagem se dará nesta tensão entre as brechas do dis-
curso proposto e o desafio da inclusão dos diversos repertórios provenientes dos receptores,
que não mais simplesmente contemplam a mensagem, mas agem sobre ela de forma efetiva.
No limiar deste processo, percebe-se que neste tipo de abordagem o discurso somente torna-se
significante com a participação realmente ativa do alter, que é convidado a incluir suas im-
pressões nas brechas deixadas pelo algoritmo. Assim o receptor realmente escreve o roteiro,
“recupera (tal como nos primórdios da narrativa oral transmitida boca a boca) o seu papel fun-
dante como co-criador e contribui decididamente para realizar a obra” (Machado, 1997:146).
2 Cf. Salvetti & Barbosa (1998: 15), um algoritmo é uma seqüência finita de instruções básicas, executável den-
tro de um tempo também finito, que tem por objetivo resolver um problema lógico, qualquer que seja sua instân-
cia.
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clusão entre o homem e os mecanismos digitais se dá por uma série de razões. Oliveira (op.
cit.:217) aponta para o teor transformador das manifestações artísticas. Neste recorte, uma das
possibilidades a ser explorada é a ação direta de uma alfabetização não-verbal dos receptores
para a quebra da rigidez imposta pelos sistemas digitais atuais, uma busca por uma sintaxe
que desperte o interesse real dos usuários em compartilhar experiências dentro de comunida-
des que lhe digam respeito. Existe o sentido de resgate da história da humanidade e da própria
fala-se tanto em arte e tecnologia como se entre esses dois campos se estabe-
lecesse uma relação inaugural e característica da arte de hoje. Sem nos es-
quecer do fato de que na Antiguidade arte e técnica designavam a mesma
coisa, a questão é que a arte sempre esteve sintonizada às tecnologias de
ponta de todas as épocas e dela se serviu como um dos elementos constituti-
vos de sua linguagem. (Ibid.:219).
Além disso a arte, segundo McLuhan (2002), tem o poder de antecipar o futuro em
estavam além de seu tempo, já que realizou esta antecipação, sendo um artista que levantou
problemáticas embrionárias e essenciais aos meios interativos digitais. Eco (1976:18) diz que
“se a arte reflete a realidade, é fato que a reflete com muita antecipação. E não há antecipação
Deste modo, muitos dos questionamentos presentes no seguinte texto de Oliveira (op.
[…] a arte com toda a parafernália das tecnologias, incorporada também co-
mo um de seus meios de expressão, convida os sujeitos, agora de todo o pla-
neta, a fazerem parte dela e re-aprenderem a interagir. Encontrando outras
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Importante lembrar que Oiticica não é contemporâneo dos meios computacionais digi-
tais, ou pelo menos não das facilidades de produção que encontramos hoje e, já em sua época,
Todo projeto que eu faço, gradativamente vai entrando numa coisa que eu
chamo de “programa”. Na realidade, são programas não-programados. Eu
chamo de “programas in progress”. Na realidade, tudo se transforma num
programa, a longo prazo. Todas as coisas que eu faço são coisas paulatinas e
a longo prazo (Oiticica, apud Favaretto, 2000:13).
Logo, para a reflexão a ser feita nesta pesquisa, partimos da análise dos elementos en-
dade de apropriação desses elementos pela emergente linguagem utilizada nos meios digitais
3 A respeito das formas de participação do receptor encontradas na arte, Justino (op. cit.:121) traça um panora-
ma: “Sem esmiuçar o universo da participação e a título unicamente didático, posso classificar a participação em
quatro formas: a contemplação passiva (a arte tradicional), a contemplação ativa (do cubismo à arte abstrata e
outras experiências da arte moderna), a emotiva (happening) e, finalmente, a experimental (parangolés e outras
formas contemporâneas). No entanto, é preciso estar atento a que essas formas apresentam-se muitas vezes in-
trincadas”.
Já Plaza (op. cit.:10) completa dizendo que a história da participação na arte trilhou o seguinte percurso
conceitual: “participação passiva (contemplação, percepção, imaginação, evocação etc.), participação ativa
(exploração, manipulação do objeto artístico, intervenção, modificação da obra pelo espectador), participação
perceptiva (arte cinética) e interatividade, como relação recíproca entre o usuário e um sistema inteligente”.
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do a arte do cotidiano. A arte contamina-se pela técnica, pela tecnologia. A questão aqui le-
vantada é porque a tecnologia, muitas vezes, não se deixa permear pela arte?
O texto persegue estas questões. Para isso, buscamos não uma compartimentação te-
mática, mas sim uma estutura que privilegie capítulos que estabelecem ligações mútuas, ini-
ciando com um capítulo dedicado à conceituação dos temas centrais: Um apanhado das expe-
riências realizadas no campo da arte participativa e interativa, seguido por um resgate da tra-
jetória de Hélio Oiticica, com foco no processo de conceituação e concepção dos parangolés.
Este primeiro capítulo também trata da descoberta do outro e das possibilidades de permeação
repertorial; do modo de ser da obra de arte enquanto jogo, mostrando que este é um conceito
nuclear para toda concepção de humanidade e cultura, e, por fim, introduz os métodos intera-
tivos digitais.
nos de linguagem, com a intenção de recuperar e analisar os principais elementos que os tor-
exame das experiências desencadeadas pelo processo de fruição da estética proposta por Oiti-
cica em seus parangolés, que provocam dinâmicas muito particulares e promovem o encontro
Já o terceiro e último capítulo trata das questões envolvendo os games enquanto pro-
dutos culturais que utilizam meios técnicos digitais como suporte para a criação de narrativas
simbólica das camadas de programação – que dão forma e possibilitam a ação e atualização
dos elementos propostos nos games –, indicando alguns caminhos para novas possibilidades
mento de narrativas com a lógica das imagens, mais aberta e plural. Paralelos com os paran-
golés e as potencialidades que podem ser desencadeadas por esta junção de conceitos também
com o advento das redes telemáticas e dos computadores digitais. Como veremos, esta discus-
são não foi desencadeada pelos sistemas informáticos. A história da arte apresenta um grande
caminho percorrido no que diz respeito a experiências interativas, já que, em última análise, o
próprio processo de leitura de qualquer obra implica em reconstruí-la, pois o ato de observar
obra, apodera-se do modo como ela foi feita, já que a leitura é efetuada pela restituição ou re-
cuperação da poética a ela inerente” (Tavares, 2003:39). É claro que os meios técnicos e as
possibilidades por eles abertas deixam este processo mais evidente, pois efetuam mudanças
ambientes abertos, antes das inovações introduzidas pela tecnologia digital. Os impressionis-
tas, e mais radicalmente os cubistas, segundo Oliveira (op. cit.:221), já haviam percebido e
4 Santaella (2003a:24) traz uma análise do campo semântico do termo “interatividade”: “A palavra 'interativida-
de' está nas vizinhanças semânticas das palavras 'ação', 'agenciamento', 'correlação' e 'cooperação', das quais em-
presta seus significados. Na ligação com o termo 'ação', a interatividade adquire o sentido de operação, trabalho e
evolução; da sua ligação com 'agenciamento' vem o sentido de intertrabalho; na vizinhança com o termo 'correla-
ção', a interatividade ganha o sentido de influência mútua, e com o termo 'cooperação' adquire os sentidos de
contribuição, co-agenciamento, sinergia e simbiose.”
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formação estética percebida na fruição artística, torna toda obra de arte virtualmente aberta a
leituras infinitas, cada uma contextualizada com as vivências pessoais de cada receptor, mes-
Eco (1976) defende um modelo teórico que ele chama de “obra aberta”, modelo este
que não tem a pretensão de ser um tratado estruturalista sobre um hipotético modelo de pensa-
mento artístico que poderia produzir obras participativas, mas sim caracterizando-se como um
cia prática, fatual, de obras caracterizáveis como ‘abertas’” (Cutolo, op. cit.:9) –, que estaria
Em seu estudo, conforme Cutolo (op. cit.:10), Eco analisa as relações envolvidas na
fruição da arte, os processos que presidem a criação artística e as probabilidades que compre-
dos aspectos fundamentais de um discurso aberto, típico da arte. O outro aspecto apontado co-
discurso onde as fronteiras são fixadas por leis probabilísticas. O resultante de uma intencio-
nalidade artística sempre foi um significado aberto, portanto dependente da ação de um recep-
tor para completá-lo. A arte moderna, contudo, amplificou esta percepção, pois contesta
Conforme Eco (op. cit.:22), a obra de arte por si só constitui-se como sendo uma men-
sagem com alto grau de ambigüidade, plural em significados que convivem em um só signifi-
cante, sendo naturalmente fecunda para a inclusão dos mais variados repertórios. A ambigüi-
dade fundamental da arte, entendida como abertura, é elemento presente em qualquer obra, de
qualquer tempo ou movimento artístico, indicando que a arte, mais do que resolver questões,
acaba por problematizá-las através de proposições. A relação entre a obra e seus fruidores é
marcada por uma dialética entre a estrutura da obra e a resposta ativa do consumidor, que in-
Quando o artista dá sua obra por acabada, formalmente realizada, ela torna-se ponto
de partida para que os receptores iniciem um processo de consumação que articula-se e volta
a dar vida à obra, por meio de leituras e perspectivas diversas, muitas vezes completamente
distintas e absolutamente repertoriais, sendo que é o repertório do receptor que acaba por de-
cit.:28). A obra não é somente um modo de formar, mas também algo a ser formado, já que
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A obra exibe-se como teia complexa de constuções comunicativas, que pode ser infi-
Para Plaza (op. cit.:10), porém, a interatividade é realmente inaugurada de modo pio-
neiro no campo artístico quando Moholy-Nagy5 “pinta”, em 1922, um quadro pelo telefone.
passam a estar presentes no discurso da arte, muitas vezes com as manifestações artísticas an-
constituição da obra de arte. Esta tendência problematiza o estatuto até então atribuído à obra
de arte. (Plaza, op.cit:10-11). Atualmente, muitas das intervenções artísticas que buscam no
computador um suporte material procuram problematizar o uso das tecnologias como mero
aparato para o crescimento acelerado da economia simbólica que move a sociedade capitalis-
ta, não vendo o computador somente como um instrumento para o aumento da produtividade
do trabalho cotidiano.
Porém, ainda conforme Plaza (Ibid.:14) é somente a partir da década de 1960 que a
nas artes, sendo a partir desta década que os artistas passam a incluir em suas obras mecanis-
mos que possibilitam a intervenção ativa dos observadores, solicitando uma resposta autôno-
5 Cf. Martin (2004:21), Laszlo Moholy-Nagy, artista auto-didata e professor da Bauhaus, era interessado na in-
vestigação dos novos meios artísticos, em conciliar a arte aos meios técnicos de produção e em conferir à arte
um novo posto na então nova sociedade industrial.
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ma e não prevista, dissolvendo fronteiras físicas entre a obra e o processo de fruição. A per-
cepção passa a tomar o lugar, antes privilegiado, da materialidade artística. A percepção que
os espectadores tem sobre as propostas artísticas são incorporadas como uma “re-criação” do
discurso iniciado pelo artista, agora muito mais um propositor do que alguém que apresenta
algo acabado.
O corpo começa a ocupar posições centrais nesta concepção de arte, já que não é mais
somente o olhar que se inscreve e atua na obra, mas, com o conceito de ambientes e instala-
ções ocupando o lugar dos quadros, o corpo do espectador passa, muitas vezes, a ser a própria
materialidade do discurso artístico. Neste tipo de obra, é o “corpo inteiro do observador e não
mais somente o seu olhar que se inscreve na obra, enquanto esta ganha em extensão […] po-
de-se então falar de participação real e não mais mental” (Couchot, 1997:136). Estabelecendo
o espectador como centro da obra, o artista convida-o uma nova atitude diante dela: “A obra
cit.:10). Este discurso faz o espectador partilhar do tempo da criação da obra (Couchot, op.
cit.:136), pois ela passa a ser sensível à solicitações e manipulações oriundas dos observado-
res e do ambiente.
los coletivos do grupo Living Theatre, os happenings do grupo Fluxus e os bichos da brasilei-
ra Lygia Clark. É no contexto desta época que Oiticica se insere e passa a criar ruídos novos
gitais. Como contraponto, têm-se uma parcela significativa da produção embrionária de expe-
olhar para a obra de Oiticica pode indicar novos rumos conceituais e fazeres desafiadores para
a produção crítica de sistemas de linguagem que encontram no meio digital um canal ímpar
Para Oiticica, autor de uma concepção de obra de arte inaugural, a obra de arte só
existia enquanto anti-arte7 já que, classicamente, a arte operou em um mundo descolado dos
valores cotidianos, tidos como superficiais ou mundanos. Ele sempre se colocou como um
provocador, em todos os sentidos, sendo alguém que clamou por uma “transcendência social
da arte, isto é, uma metafísica concreta, uma arte interessada na vida” (Justino, op. cit.:21).
Suas obras quebram estruturas mediadoras clássicas, que acompanham a arte desde tempos
ta com o público, sem passar por galerias de arte, museus, críticos ou historiadores. O salto é
Figura prenhe de contradições, traduzidas em todas suas propostas, Oiticica foi um ar-
valores e construtivista” (Salomão, op. cit.:132), “legenda do artista-inventor; aquele que cava
varetto, 2000:16) e ainda “caracterizava-se como artista-pensador. Isso não significa afastar a
sensibilidade, mas tão somente lembrar que saber as regras do jogo era essencial para esse ar-
tista” (Justino, op. cit.:4). Nos espaços/quadros/objetos/idéias criados por Oiticica, arte e coti-
7 A respeito do conceito de anti-arte, Schenberg (1973:89) diz que “desde a época do dadaísmo vem assumindo
importância a chamada anti-arte. Podemos considerar a anti-arte como um alargamento do campo da arte no sen-
tido tradicional. Ela procura essencialmente eliminar o afastamento entre a arte e as vivências tidas como não ar-
tísticas pela estética do passado”.
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diano se fundem, criando um jogo com o participante e distanciando sua obra da chamada
vanguarda, muito próxima ao sistema: “Não faço ‘vestimenta de vanguarda’, como muitos,
para esconder idéias conservadoras: não me calo, também, esperando um ‘reconhecimento fu-
Para Oiticica, “o exame vivenciado pela experiência direta é uma didática superior à
obediência passiva e cega” (Salomão, op. cit..:22). Oiticica foi um artista que não travou diá-
logos com o sistema de arte vigente, vivendo toda sua vida com recursos de sua família, de
bolsas de estudo8 e de traduções que realizava. Considerava que os críticos de arte brasileiros
não possuíam uma visão realmente crítica sobre o que estava acontecendo. A este respeito, em
[…] não vou expor em galeria alguma em S. Paulo, como vem sendo noticia-
do em jornais do Rio – S. Paulo, segundo soube; em primeiro lugar: não sei
desde quando “exponho em galerias”; as experiências que fiz foram bem li-
mitadas, quanto a exposições e promoções: uma no Rio, em 66 (G-4); as ex-
periências no MAM e na Rua (Apocalipopótese, em 68, Tropicália, em abril
de 67); Internacionais: uma retrospectiva na Whitechapel em Londres (69),
que foi uma experiência ambiental (sensorial) limite; e em 70, praticamente
1/3 da exposição Information, no Museu de Arte Moderna de New York, de-
dicado a mim (ninhos). (Oiticica, 1971).
Aveso à retrospectivas, Oiticica dizia que não iria ficar repetindo ad infinitum as mes-
mas coisas, como um artista acabado e que seu compromisso era somente com o caráter ino-
vador das novas experiências. Tais experiências não tinham nenhuma finalidade comercial,
8 Em 1970 Oiticica ganha o prêmio Guggenhein e passa a residir em Nova Iorque, retornando ao Brasil somente
em 1978.
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nenhuma ligação com a parcela da burguesia interessada em arte. Para ele, “tudo é [era] feito
propositalmente como defesa das instituições que se abrigam no conceito de ‘artes plásticas’ e
1973:148). Entretanto, Oiticica não aderia ao discurso inocente das chamadas esquerdas, ten-
do consciência de que a simples fuga, seja do mercado, seja do sistema de arte ou do capital, é
tão alienante quanto o deslumbramento causado por estes mecanismos. É neste caminho que
Oiticica afirma que a solução é “consumir o consumo como constituinte da linguagem” (Oiti-
cica apud Justino: op. cit.:133). A anti-arte, neste sentido, não é a negação da arte, mas sim
uma oposição ao rotineiro e contra o sistema de arte, pois, de acordo com Justino (op. cit.:9):
no momento em que não existe mais obra, apenas proposta, o objeto desapa-
rece, e com sua ausência não se tem mais contemplação nem comércio de ar-
te. O que o artista chamou de antiarte segue de perto a visão de Mário Pedro-
sa: para ambos, a arte possui uma natureza afetiva que aflora no exercício
experimental da liberdade. O papel do artista passa a ser tão somente o de
auxiliar o coletivo a viver este experimental, sem limites.
– e herói –
“Não sou pela paz; acho-a inútil e fria – como pode haver paz, ou se preten-
der a ela, enquanto houver senhor e escravo!” (Oiticica apud Justino,
Ibid:106)
estes processos uma reafirmação e propagação de nossa condição enquanto colônia, depen-
mar forma durante os anos 1961-1965, quando realiza uma ruptura e estabelece uma nova
possibilidade de linguagem para a artes visuais a partir de seus “penetráveis”, “bólides” e pa-
parangolés – iniciados em 1964 – realizam a junção das experiência anteriores com a questão
do tempo. Este percurso incomum encontra sentido em sua formação, já que o artista foi
pre estiveram presentes em suas reflexões, tendo em vista que não há muito sentido em esta-
belecer uma cronologia do conjunto de sua obra, já que o artista trabalhava com um processo
O próprio Oiticica disse que não há sentido em pensar sua obra em termos do que terá
1.2 Os parangolés
Dessas experiências, as mais pertinentes para o contexto aqui apresentado são, sem
dúvida, os parangolés. Segundo Justino (op. cit.), o poeta Haroldo de Campos define o paran-
golé como sendo uma “asa delta para o êxtase”, na medida em que, mais que um conjunto de
obras, trata-se de um vôo para a liberdade, onde o artista perseguiu a participação livre, es-
pontânea e aberta; o diálogo com a incerteza9, com o indeterminado, em uma estrutura precá-
ria, no sentido da não-completude, a ser construída também pelo receptor e onde o resultado
transcenda, ou até mesmo contradiga, as intenções iniciais do artista. Para Salomão (op. cit.:
17), neste tipo de estrutura “é o processo criativo total que é ativado impedindo o fetichismo
9 Conhecer e pensar, para Morin (2001:59), “não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com
a incerteza”.
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Tal caracterização tem uma relação direta com a configuração de uma linguagem inte-
rativa que contemple os meios digitais. Formalmente e materialmente, a maioria dos parango-
lés apresenta-se como capas para vestir, de tecido ou plástico, servindo de suporte para ele-
golé e desdobrar este ato em uma desprogramação intelectual e corporal, na medida que o pa-
rangolé traz um espaço livre não institucionalizado, aberto a experimentação e fantasia e, por-
tanto, próximo dos aspectos e heranças primitivas, onde o homem encontra o homem, que Oi-
ticica propõe a experimentação de novas sensações. O espaço está disponível para ser cons-
entre Oiticica, o receptor co-autor, elementos visuais, sonoros, gestuais e táteis, o que recria a
do expectador em Oiticica nunca teve a frieza encontrada em outras experiências onde a con-
já que sem o participante não existe obra, se dá no tripé constituído por três categorias bási-
cas, identificadas por Justino (op. cit.): a indeterminação, o transitório e o acaso. É nesse espa-
ço extremamente aberto que o sensório se une ao intelectual para a criação de uma experiên-
cia que não estava, e nem poderia estar, prevista pelo artista. Oiticica posiciona-se como um
10 Cf. Salomão (op. cit.:129), “o primeiro PARANGOLÉ foi calcado na visão de um paria da família humana
que transformava o lixo que catava nas ruas num conglomerado de pertences”. A materialidade dos parangolés,
nasce, portanto, da constatação de uma contingência, nada tendo de decorativo ou polido (Ibid.: 38).
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Figura 1
Luiz Fernando Guimarães veste PARANGOLÉ CAPA 23, M’Why Ke,
Nova Iorque, 1972
(Foto Hélio Oiticica)
33
Figura 2
Romero veste PARANGOLÉ P33 CAPA 26 junto ao World Trade Building em
Manhattan, Nova Iorque, Dezembro de 1972
(Foto Catálogo O q faço é Música)
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Figura 3
Nildo da Mangueira veste PARANGOLÉ P4 CAPA 1 - 1964
(Foto Catálogo O q faço é Música)
35
Figura 4
Jerônimo da Mangueira veste PARANGOLÉ P5 CAPA 2 - 1964
(Foto Catálogo O q faço é Música)
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areia, as folhas. Porém, estes signos são organizados e só adquirem um sentido mais pleno
“com a incorporação do elemento mais rico, o participante, que se torna corpo e obra”
(Ibid.:46).
Aqui, o artista “providencia o espaço, a cartografia, mas cabe ao usuário traçar o seu
percurso […] delega ao fruidor uma parte de sua autoridade, responsabilidade e capacidade
para fazer crescer a obra” (Plaza, op. cit.:25-26). Desta forma, o repertório individual, que se
destas apropriações, os parangolés realizam intercâmbios entre linguagens, para darem origem
a uma nova dimensão semiótica. Para entender esta característica dos parangolés, o texto de
gens. Porém, é importante observar que apesar do aspecto material e tátil das capas, elas não
se constituem como objetos, no sentido mais comum do termo, principalmente no que se refe-
re ao objeto de arte. A capa é muito mais um ponto que emana possibilidades e concentra vir-
tualidades do que uma escultura. Justino (op. cit.:46) muito apropriadamente nomeia os pa-
lugar ao nascimento das possibilidades, mesmo porque o espectador foi abolido, dando lugar
ao participante que, agora, equilibra-se na corda bamba da sensibilidade pura” (Ibid.:46). Oiti-
cica passou da produção de objetos para a invenção e produção de modelos e sistemas, onde
ele “propõe seus modelos como alternativa, seus próprios valores como ética, perseguindo sua
Seria o parangolé uma zona autônoma, livre das amarras que condenam o homem das
cidades contemporâneas, mas que se apropria dos elementos que constituem este mundo insti-
a incorporar a música das massas do Rio de Janeiro – o samba produzido no morro da Man-
gueira – e a dança. A música e a dança são entendidas por Oiticica como elementos que possi-
12 Todo trabalho de Oiticica tem como modelo guia o conceito de “núcleo”, de centro de energia. Suas obras não
se constroem a partir de relações formais. Conforme Brett (1986), o núcleo em Oiticica pode ser “um garrafão
cheio de terra e tijolo moído ou capas que cobrem o corpo […]. Intimamente ligada à idéia do ‘Núcleo’ está a
idéia de proteção, de abrigo, as quais novamente incluem ambas, substâncias e o ser humano, fazendo uma espé-
cie de solidária troca espiritual entre as duas”.
38
artista expôs em 1969 –, por exemplo, ganha autonomia para o expectador na medida em que
este percebe o parangolé como instrumento estético que possibilita trazer ao espaço justamen-
te o que o espaço nega: o uso efetivo do espaço e do tempo – a participação – ao invés da sim-
com as capas. Para Oiticica, o ato de vestir o parangolé já instaura o novo no ambiente e no
sensório, pois a contemplação é abolida a partir do contato físico, do panejamento da capa so-
bre o corpo.
meios digitais, enquanto território livre para exploração, podem aproveitar destas experiências
para a construção de linguagens mais apropriadas para este meio? Alguns confrontamentos
Lévy (2001b) ao conceituar suas reflexões sobre coletivos inteligentes aponta para a
de novas formas de relacionamento humano. Tais meios de comunicação são elementos cha-
ves para a constituição da sociedade da informação que, nas palavras dos educadores espa-
39
nhóis Flecha & Tortajada (2000:22) “é uma realidade econômica e cultural, e não uma abstra-
ção intelectual”.
Se para McLuhan (2002) o meio é a mensagem e Lévy (op. cit.:120) indica que a co-
municação através de canais digitais pode “modificar a antiqüíssima distribuição de cartas an-
afastadas dos coletivos inteligentes”, uma articulação destas idéias indica que uma das mensa-
gens principais embutida nos meios digitais é a desarticulação da arquitetura que predominou
no século XX, onde a emissão de mensagens pela mídia de massa foi um fenômeno separado
da recepção.
processamento é a base do sistema econômico” (Flecha & Torjada, op. cit.:22), com o compu-
tador ocupando o papel de grande “mídia das mídias semióticas” (Santaella, 2003b:20), che-
ga-se a um dos elementos fundamentais para a articulação de uma nova arquitetura que privi-
legie a comunicação e não somente a informação: a interatividade aplicada aos processos di-
gitais de comunicação.
não somente por quem a produz, mas também por seus receptores que agora, teoricamente,
possuem meios técnicos que possibilitam esta assemblagem em tempo real, desestruturando a
– em rede – de mensagens, abrindo brechas13 na relação linear mecanicista que separa produ-
ção e recepção e criando uma nova relação tempo-espaço, já que as mensagens deixam de es-
13 Para Plaza (op. cit.:13), são as brechas – intervalos – que possibilitam a leitura do outro, do heterogêneo. As
brechas são, assim, intervalos dedicados a criação coletiva.
40
tar ligadas necessariamente a um suporte físico e passam a habitar o espaço digital, adquirin-
do um caráter mutante.
dos, todo e qualquer tipo de signo pode ser recebido, estocado, tratado e difundido via compu-
tador”, caracterizando o espaço digital como uma grande rede de transmissão e acesso a estes
signos e estabelecendo uma cisão entre os dados que são simplesmente manipulados digital-
mente, mas continuam habitando suportes físicos que necessitam de instrumentos especializa-
dos para seu acesso e manipulação, e os dados que estão disponíveis digitalmente na rede e
que utilizam o computador como único meio de acesso, manipulação e distribuição. O conhe-
cimento acumulado perde o que restava de sua materialidade e volume, tornando-se invisível,
acordo com as reflexões de Bakhtin14 (2003) no que diz respeito a conceitos lingüísticos, onde
o produtor – falante – e o receptor – ouvinte – não estão mais isolados por um hiato:
Embora o conceito de trabalho em rede seja relativamente recente nos meios digitais –
cada de 1970 –, o conceito é bastante familiar ao homem, já que o cérebro, embora ainda seja
um terreno vasto a ser explorado, opera a partir de uma rede neural, onde conexões não-linea-
res são estabelecidas a cada instante. Segundo Lévy (op. cit.:105), “o funcionamento psíquico
O trabalho digital em rede mostra-se, então, muito mais próximo do ser humano do
que a simples emissão de mensagens de comando pelo computador, onde o usuário pode so-
mente clicar em botões do tipo “aceito”, “sim”, “não” ou “ok”. Este sistema de emissão de
mensagens programadas domina grande parte das produções mediadas por computadores,
tuído por esta programação autoritária, indo de encontro às inquietações de vários setores da
são pré-determinados e fechados. Machado nos diz que, no conceito de trabalho em rede, “se
pode, num sistema considerado, selecionar não apenas vários objetivos, mas também várias
O espaço digital também constitui-se como local matricial, sendo local privilegiado
ção de visões mais contextualizadas, formadas a partir de vários pontos de vista, aproximan-
do-se, também, do discurso da ciência reflexiva, que “dessacraliza inclusive seu próprio con-
ceito, rompendo com a busca de uma verdade absoluta definida unilateralmente ou de forma
definitiva” (Flecha & Tortajada, op. cit.:25). O espaço digital em rede nega a contemplação
como via de fato, sendo um enorme buraco negro que engole e devolve dados, possibilitando
a reversibilidade.
pares, incorporando-os de forma crítica ao seu repertório, constituindo uma espécie de “cani-
balismo digital”, fazendo analogia aos conceitos usados por Ribeiro (1997:47), quando coloca
Oiticica, segundo Justino (op. cit.:87), chamava suas obras de “espaços imantados”,
dem, a organização dos signos, se faz com o receptor. A obra só existe e se configura como
tal com a presença ativa do participante, mesmo que esta atividade se configure pela não-par-
Dessa forma o “espaço imantado” passa a se constituir como lugar, já que o lugar se
15 Aqui existe uma problematização com relação à recepção interativa, já que existe um processo de co-autoria, é
necessário que o receptor seja alguém capacitado para exercer seu livre-arbítrio. Plaza (op. cit.:24) ao ponderar
sobre este aspecto, diz que “o principal problema da leitura, agora transferido para as questões da interatividade,
é o da qualidade da resposta, qualidade da significação, ou seja, qualidade do interpretante. É aqui que reside o
nó da questão, pois todo leitor escolhe e é escolhido. Neste sentido, o leitor interativo deve escolher as melhores
opções que lhe convêm para se manifestar, como leitor criativo ou não”.
44
imagem, do signo que o representa. Portanto, o lugar é marcado pela sua manifestação semió-
tica” (Ferrara, 2002:18). Para Plaza (op. cit.:20), “é possível falar de um lugar de encontros
fundado sobre as comunicações, graças ao qual os processos interativos se tornam uma reali-
digital na medida em que este exerce a função de lugar, já que caracterizam-se processos co-
em rede, o que significa que o outro – o alter – deve ser levado em conta e o roteiro que for-
ma as mensagens deve ser flexível ao ponto de possibilitar a inclusão repertorial dos recepto-
O princípio da interatividade reside neste ponto: deve ser aberta aos receptores a pos-
o emissor não emite mais mensagens, mas constrói um sistema com rotas de
navegação e conexões. A mensagem passa a ser um programa interativo que
se define pela maneira como é consultado, de modo que a mensagem se mo-
difica na medida em que atende às solicitações daquele que manipula o pro-
grama. (Santaella, 2003a:36).
Ou seja, existem espaços para os receptores preencherem, a mensagem não é mais fi-
xa, mas forma-se na mobilidade de jogos que ocorrem simultaneamente, montados com uni-
dades mínimas fornecidas por diversos participantes, trazendo implicações profundas, já que a
interatividade “não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psico-
tes são mutantes, dependem das relações estabelecidas, que podem ser alteradas por qualquer
cit.:86):
Estabelecendo uma aproximação ainda maior com a arte, Machado (2001a:183) traz
Assim, a interatividade revela-se como estratégia e não como simples acaso na consti-
tuição do aparato midiático. O conceito de indeterminação não deve ser confundido com o
cos e não simplesmente frutos de relações causais deterministas. O experimentar acaba por
produção de mensagens abertas, pois “experimentar não é mais preparar algo para um resulta-
do acabado, mas já algo em si: um processar que se junta mais ao comportamento do indiví-
como os parangolés de Oiticica ser tratado como projeto, porém aberto, a favor de novos usos
por parte dos receptores. Nesta perspectiva, a aproximação talvez se identifique ainda mais
com o conceito de probjeto, “em que o conceito de obra acabada é trocado por estruturas ger-
minativas, nas quais a participação do indivíduo é a sua própria criação, quer ocorra de forma
direta, quer através de sua imaginação” (Oiticica apud Justino, Ibid.:104). Para Barbosa
insinua a incerteza e a indeterminação. No caso dos parangolés, este processo ocorre no ato de
A função dos mecanismos interativos passa a ser a desinibição dos repertórios indivi-
duais para, com eles, formar um caldo comunicacional heterogêneo, metamorfoseando os re-
vo.
O espaço digital configura-se como virtualidade na medida em que abre diversas pro-
blemáticas novas e não as atualiza. Um dos grandes problemas abertos pela digitalização diz
47
respeito ao que Oiticica (apud Justino, op. cit..:100) chamou de “difícil tarefa de abrir o parti-
ção dos padrões de comportamento estabelecidos, ao mesmo tempo que incentivem o compar-
tilhamento espontâneo dos repertórios. O receptor deve se sentir instigado a participar da ex-
periência. Os signos devem provocá-lo neste sentido e, ao mesmo tempo, os meios técnicos
que servem como suporte a estes signos precisam oferecer métodos fáceis aos leigos em tec-
nologia para que eles possam partilhar seus saberes de forma transparente. Os projetos intera-
tivos devem servir como pontos de partida para os receptores, sendo que os resultados devem
Tal problemática deságua no que Lévy (2001a) aponta como sendo a banalização do
termo “interativo”. Na falta de uma linguagem própria, que justifique seu discurso, a palavra
“interatividade” acaba sendo utilizada erroneamente para indicar ações distintas que nada têm
a ver com interatividade. Lévy cria um quadro ligando diversos tipos de mensagens, e as rea-
ções por ela criadas, a seus respectivos dispositivos comunicacionais. Este quadro atribui
graus de interatividade para cada tipo de mensagem. O grau mais baixo é formado por mensa-
sagens participativas, desencadeadas através de dispositivos que variam dos videogames com
tratadas digitalmente. Enquanto a grande parte das produções digitais insiste no modo de pro-
dução determinista, cria-se uma crise, que na verdade acaba por constituir-se em território fér-
til para que processos desautomatizantes se desenvolvam. Tal crise “surge pela inexistência
48
de uma única forma de vida e pensamento, porque as tradições têm que se explicar e porque a
informação não é um terreno restrito aos especialistas” (Flecha & Tortajada, op. cit.:25). Co-
mo, então, tentar dar conta das exigências deste novo cenário?
No núcleo do conceito de interatividade está o jogar, o jogo, conceito que também tem
pois, para Huizinga (2004:6), “encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado exis-
tente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens
até a fase da civilização em que agora nos encontramos”. O jogo, portanto, perspassa e ultra-
Considerando o espaço digital como o lugar nuclear do jogo constituinte dos processos
interativos digitais – com suas regras e mecanismos – pode-se perceber que, aproximando-se
das reflexões sobre o conceito trazidas por Gadamer (2003), o jogo digital, por exemplo, exis-
te e desenvolve-se como entidade independente dos jogadores, no caso, dos receptores. O mo-
vimento do jogo, autorizado na dinâmica criada pela existência de um lugar para este jogar,
garante autonomia ao processo. Esta autonomia provê uma independência do jogo com rela-
ção aos jogadores, pois o jogo constitui-se como “atividade ou operação que se exerce ou se
executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo resultado que produz”
No caso específico dos ambientes digitais, tal autonomia pode ainda ser ampliada ou
garantida pela possibilidade dos computadores serem programados com algoritmos que garan-
tam a simulação de inteligências, fato que torna a dinâmica autônoma, já que, em última ins-
tância, o jogo digital em rede pode ser travado somente por estas inteligências, que negociam
Porém, para a interatividade, o ato de jogar torna-se válido quando o receptor assume-
se como jogador, visto que o jogar preenche sua finalidade “quando aquele que joga entra no
jogo” (Gadamer, op. cit.:175), negociando e apostando no espaço digital seu repertório e es-
tando aberto a permeação e contaminação por repertórios advindos de outros jogadores. Para
que este processo seja válido, do ponto de vista da qualidade da troca, é necessário que algu-
mas regras sejam estabelecidas no sentido de garantir qualidade às informações que estão sen-
do jogadas, pois “todos os jogos têm restrições ou regras que delimitam suas possibilidades.
Mesmo em jogos simples e individuais existem tais restrições” (Abbagnano, op. cit.:590). Pa-
ra que o jogo se dê efetivamente, os jogadores devem ver o processo e o ato com seriedade,
com a perspectiva dos fins propostos pelo lugar e pelas regras do jogo, pois jogar é agir de
acordo com as regras, admitidas como regras que adquirem sentido ao impulsionarem a criati-
vidade do jogador. É dessa maneira que o jogo estético proporciona desprendimento e liberda-
quanto elementos interativos, só são vivenciados a partir do momento em que quem os veste
leva a experiência com seriedade e respeito pelo jogo. O papel de descondicionador e de desi-
nibidor repertorial e sonsório dos parangolés somente torna-se efetivo a partir da consciência
de suas regras, que partiram de Oiticica: a proposição, o estatuto de que o ato de jogar com o
parangolé coloca quem o veste como co-autor da obra, em uma nova relação espaço-tempo.
Gadamer (op. cit., 175) diz que “não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é
por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá
transformar aquele que a experimenta”. Segundo Nunes (2000:54-55), é o impulso para o jo-
go, o aspecto lúdico da arte que conjuga o sensível ao inteligível, o material ao espiritual. Por-
tanto a arte constitui-se pelo jogar. O jogo, neste caso, caracteriza-se como jogo estético, que
concilia a matéria, aspecto sensório, com a forma, ato racional, pensamento que molda a ma-
força eminentemente livre, o jogo estético neutraliza tanto o rigor das formas
abstratas, produzidas pelo intelecto, quanto a imediatidade das sensações
passageiras, e, “dando forma à matéria e a realidade à forma”, liberta o ho-
mem do jogo da natureza exterior e das exigências racionais exclusivistas
(Ibid., 55).
Nunes (op. cit.: 56) completa dizendo que “nenhuma necessidade pende sobre a Bele-
za e a Arte a não ser aquela que decorre da liberdade”. Os parangolés embelezam o homem,
no sentido em que estabelecem um jogo lúdico, onde as capas adornam o corpo biológico. É
assim que o jogo do parangolé pode superar a realidade, instaurando o que Nunes (Ibid.:57)
E ainda,
uma proposição onde o sujeito pode “dispor ludicamente da realidade, configurando-a segun-
do os seus estados de ânimo e, por meio dessa atividade, convertendo-a em aparência estéti-
ca” (Nunes, op. cit..:58). Com os parangolés o espectador, consumidor ou contemplador trans-
51
gibilidade, estimulado por objetos, situações e idéias, exercitando o ludismo num misto de es-
colha e abandono” (Favaretto, op. cit.:22). O sujeito é dilatado a partir da experiência com os
parangolés.
mentos digitais, a qualidade do jogo e sua eficiência em tornar o jogador apto a desempenhar
suas tarefas de modo lúdico está diretamente ligada a qualidade conceitual da proposta do jô-
go. Ou seja, não é a inclusão de meros estandartes tecnológicos que torna o meio digital inte-
rativo, mas sim o uso destas tecnologias para a execução de conceitos nucleares para a exis-
tência do jogo. Quem propõe o ambiente digital deve fazê-lo com base em regras claras, mas
não absolutamente rígidas, que permitam níveis taxionômicos de flexibilidade para que exista
ambiente onde não se comunica absolutamente nada, por predomínio único e exclusivo de
técnicas de programação.
do parangolé não necessita, como condição si ne qua non, da capa específica criada por Oiti-
cica. O que persevera aqui não é a execução técnica, mas a idéia, o conceito, de algo que se
constrói junto a quem usa e que este usar atende a determinados conceitos e proposições. As-
sim o conceito da obra perdura enquanto experiência estética – mesmo que no lugar de um pa-
rangolé se utilize uma mera capa de pano –, pois ela tem uma proposta que se sustenta, que
neste caso não é baseada somente na subjetividade de quem a utiliza – não se limita a uma
discussão do tipo “é bonito” ou “eu gosto” – mas está enraizada na própria proposta.
O jogo do parangolé tem autonomia, tem um enredo que lhe garante a sobrevivência,
ao passo que grande parte das críticas feitas a interatividade digital tem razão de ser justamen-
te por condenarem a falta de enredo, de proposta, de regras, de estética nas aplicações tecno-
52
lógicas. Os meios digitais precisam permear-se por propostas que levem em conta o jogador
enquanto ser atuante em um mundo em rápida transformação, que continua sendo físico, ma-
terial, mas que passa a ser representado também por duplos virtuais.
Já que o jogo, segundo Gadamer (op. cit.), tem uma natureza própria, que é indepen-
dente dos jogadores, mas que somente ganha representação através da ação e existência dos
que jogam, é preciso, justamente neste ponto, que a proposta do jogo digital esteja alinhada
com as questões contemporâneas, para que sua representação através do ato de jogar tenha
râneas deste início de século. A experiência extremamente rica dos parangolés não existiria
criação de uma linguagem participativa, como se apoderar destes elementos para a constitui-
ção de uma linguagem mediadora adequada para o espaço digital? Como visto, um item cons-
propor e estimular a multiplicidade de caminhos, é preciso que exista uma intenção inicial de
quem estabeleceu, inaugurou ou criou o espaço. É necessário que haja uma preposição, um
item germinal que dará espaço para o florescimento da construção coletiva. As obras de Oiti-
Não existe a redução ao acaso, que se configuraria pela completa ausência de propósi-
to. O que deve pautar o discurso interativo é um projeto que permita o diálogo com o indeter-
em seu núcleo quanto em sua motivação, aproximando-se do que Flecha & Tortajada
Oiticica, segundo Justino (op. cit.:49) trabalhava precisamente com estes conceitos:
16 Diz respeito às reflexões do filósofo alemão Jürgen Habermas (1929). Habermas foi assistente de Teodoro
Adorno, no Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt até 1959. Depois ensinou filosofia e sociologia em uni-
versidades alemãs até sua aposentadoria em 1994. De acordo com Flecha & Tortajada (op. cit.:29) “Habermas
desenvolve uma teoria da competência comunicativa na qual demonstra que todas as pessoas são capazes de se
comunicar e gerar ações. Todos nós possuímos habilidades comunicativas, entendidas como aquelas que permi-
tem comunicarmo-nos e atuarmos em nosso meio. Além das habilidades acadêmicas e práticas, existem habilida-
des coletivas que buscam coordenar ações por meio do consenso”.
54
métodos possíveis para a interação digital. Partindo da concepção de Oiticica de obra como
“jogo entre artista e participante”, as principais experiências bem sucedidas no campo da inte-
ração digital ocorrem justamente nos jogos de videogame e computador, principalmente nos
últimos, que utilizam o computador e sua capacidade de ligação e trabalho em rede como pla-
ção da história. Os jogos eletrônicos começaram como um hobby de programadores que dedi-
cavam seus momentos livres à criação de jogos. O advento do computador pessoal, no início
tador, e os jogos sempre agradaram muitos programadores, por unirem tecnologia e diversão.
rapidamente, tornando-se um mercado ávido por novos títulos e contribuindo para a prolifera-
brinquedos e jogos constituem o modo mais rápido de fazer com que uma
nova tecnologia se torne popular e lucrativa. A tecnologia dos computadores
17 Console refere-se ao hardware, a parte física do videogame, que compreende o processador e seus circuitos
eletrônicos.
55
não cresceu de modo explosivo até que tivesse sido incorporada a jogos
(Dyson, 2002:90).
Nesse processo de criação de jogos, muitas tecnologias novas foram criadas e aperfei-
çoadas. A inteligência artificial, por exemplo, é uma área que teve um enorme desenvolvi-
mento a partir da criação de jogos mais complexos, em que o computador deve controlar os
oponentes e tomar decisões baseadas em modelos neurais, embora ainda esteja bastante longe
de constituir-se como uma verdadeira inteligência. Esta questão é pertinente a discussão pois,
lidando com a incerteza, os processos interativos não possuem controle efetivo sobre o desen-
rolar do enredo. Portanto, sistemas interativos digitais necessitam de algum tipo de inteligên-
cia, que permita criar uma estratégia em tempo real, baseada na mudança do cenário, analisan-
do as ações do usuário e criando reações baseadas nestes eventos que ocorrem de forma para-
lela. Gilbert Simondon (apud Machado, 2001b:126) faz uma importante e contemporânea co-
locação, que pode ser transportada para o campo da inteligência artificial e da interatividade
digital: se um dispositivo técnico prevê "uma certa margem de indeterminação, ele pode tor-
Atualmente, existem técnicas que permitem que o computador seja programado para
de-se usar um ramo da lógica, chamado "lógica difusa"18 para criar cenários que tentem ante-
ver a possibilidade de vários resultados quando uma, ou mais de uma, condição pertinente não
No presente contexto, a grande colaboração dos jogos foi levar a possibilidade de ex-
periências interativas reais ao grande mercado consumidor, com títulos que unem enredos
cada vez mais elaboradas, a partir de uma proposição, de um ambiente aberto e inacabado,
18 A lógica difusa instrumentaliza a capacidade de capturar informações vagas, em geral descritas em uma lin-
guagem netural e convertê-las para um formato numérico, de fácil manipulação pelos computadores atuais.
56
mas que se constitui como ambiente, que tem determinações básicas que possibilitam o diálo-
aberta, indeterminada, na qual a obra, agora elaborada também pelo participante, transcende
Leão (2002) lança caminhos no sentido de traçar um estudo tipológico dos tipos de jo-
gos, já que nem todos os títulos possuem o mesmo grau de interatividade, pois classificam-se
em diversas categorias, cada uma exigindo tipos de habilidades específicas. Alguns jogos, ba-
Outros títulos possuem roteiros lineares, baseados em histórias fixas, onde o jogador é
conduzido por diversos níveis, devendo tomar decisões que irão impactar a existência de seu
personagem no jogo, porém, sem nenhum enigma intelectual proposto, com a dinâmica do en-
tro plano, onde o racional não necessariamente predomina. Nessa categoria estão os jogos de
corrida, como Mario Kart20, produzido pelo Nintendo, e alguns títulos de aventura, como
cenários e comportamento de itens específicos, como armas –, criando um espaço virtual com
do enredo. Nesta categoria encontram-se jogos de tiro em primeira pessoa, como Quake III
Arena22, da Id Software e a série Unreal Tournament23, produzida pela Epic Games. Essa ca-
19 http://www.square-enix-usa.com/seui/index.htm
20 http://www.nintendo.com/gamemini?gameid=m-Game-0000-652
21 http://www.bungie.net/Games/Oni/
22 http://www.idsoftware.com/games/quake/quake3-arena/
23 http://www.unrealtournament.com/
57
tegoria de jogos costuma exercer um grande fascínio sobre os jogadores, por permitir que,
através do espaço criado pelo jogo, eles possam contar suas próprias histórias e viver expe-
riências únicas. A experiência de um jogador será sempre única, pessoal, repertorial, nunca
será igual a de outro jogador. Este fato pode ser facilmente comprovado em uma simples con-
versa com alguém que acaba de participar de uma partida. O ambiente desses jogos possibilita
Leão (Ibid.: 29-30) traz uma abordagem a respeito da estrutura dos jogos:
Da resolução desses enigmas surge a atmosfera dos jogos. Aqui o conceito de enigma
é utilizado de forma abrangente, não apenas no sentido intelectual, já que os jogos podem pro-
por desafios racionais, motores ou uma mistura das duas modalidades. Essa atmosfera criada
não tendo domínio pleno da tecnologia envolvida, o que também ocorre com os parangolés. O
participante não precisa ser artista para participar da construção da obra. O que precisa existir
é um processo de desinibição para que os repertório individuais venham à tona. Assim, as tec-
nologias interativas revelam-se estruturas de baixa definição, inclusivas, cinestésicas por suas
Hélio Oiticica
59
Conforme traçado anteriormente nos interessa nos parangolés como objetos de estudo,
sua constituição projetual, sua estrutura sígnica enquanto linguagem e o que tais fatores acar-
retam quando são postos à disposição dos receptores em processos de percepção, atribuição
de significados e, neste caso, criação de novas linguagens, e não somente sua atuação enquan-
métodos de reflexão e produção digitais. Para tanto, este capítulo parte da caracterização e
identificação dos parangolés, para depois examinar o que os torna tão poderosos, em termos
tica digital oferece, Oiticica junta em um caldo único a realidade carioca da favela da Man-
gueira, música popular, questões cotidianas e discussões a respeito dos meios de comunicação
Artaud, McLuhan, Kant e Hegel, entre outros. O sistema de pensamento de Oiticica nasce
desta rede complexa de influências. O que nasce disso são obras híbridas, que exploram a
união dos códigos matrizes em busca da aproximação com o que o artista chama de "homem
primitivo", conceito que nasce de sua proximidade com a obra de Nietzsche e que leva Oitici-
ca a percorrer
Para Oiticica,
conceitos racionalizados, mas que formam-se, ao mesmo tempo, a partir de uma sensibilidade
extrema, que floresce de suas observações e críticas sobre os aspectos institucionais que cer-
ceiam o homem moderno, com sua vida cada vez mais condicionada ao sistema de normas
Neste ponto, as propostas de Oiticica podem ser tomadas como projetos de interven-
ção social. Neto do famoso líder anarquista e lingüista José Oiticica e filho de José Oiticica
Filho, fotógrafo, ele vai, além de criticar o sistema vigente, propor novos rumos, novas lin-
guagens, que rompam com o estabelecido. O que interessa para esta análise é a forma como
Oiticica tratou as questões que dizem respeito aos processos comunicacionais. Acreditando
61
que o sistema de produção de mensagens um-todos, com seu determinismo e grande carga de
do homem, o artista inicia uma pesquisa onde discursos interativos passam a ser considerados
derno. É neste contexto que nasce a concepção dos parangolés, verdadeiros lugares de contar,
de narrar.
truídas dos mais diversos materiais – plástico, tecido, saco, resina, pigmento, lona, filó, náilon
– cujo suporte é o corpo do receptor, que confere vida à experiência. Somam-se a esta mate-
revolta” (figura 5), “Estou possuído” (figura 6) ou “Mascote do parangolé” (figura 7). Na
papel fundamental, principalmente o samba. Este processo cria paralelos interessantes com
outras formas de expressão, que também utilizam elementos comuns à experiência dos paran-
golés para que os participantes atinjam estados descondicionados, como é o caso dos cultos
afro-brasileiros, onde o indivíduo crê entrar em contato com entidades sobrenaturais. Porém,
ambições de cada experiência são diversas. É importante que fique clara esta distinção com-
parativa para acentuar que a consciência de linguagem é imprescindível para a criação de es-
Figura 5
Capa 11: Eu incorporo a revolta, 1967
(Foto Revista Art In America)
63
Figura 6
Nildo da Mangueira veste Capa 13: Estou possuído, 1965
(Foto Revista Art In America)
64
Figura 7
Mosquito da Mangueira, sambando com PARANGOLÉ 10 Capa 6, 1965
(Foto Claudio Oiticica)
65
os participantes dos rituais religiosos não tem esse domínio do código, não conseguem criar
Toda a apropriação em Oiticica era conceitual, não visava o mero espetáculo. Em seus
forma simplesmente temática, mas sim estrutural, orgânica, com vistas ao conceito nuclear de
comunidade que existe em tais locais. Fica claro que o interesse de Oiticica em sua busca de
discursos interativos não era a perseguição da acuidade técnica, mas sim a preocupação com o
homem, o retorno da tecnologia a seu lugar histórico: atender demandas humanas e não impor
cas em um tempo-espaço definido, mas que ao mesmo tempo promovem alterações na relação
tempo-espaço coletiva, já que o espaço onde atualiza-se parte do potencial comunicativo dos
zendo respeito às questões que emergem da relação do receptor com a materialidade dos
parangolés, que, por serem uma experiência repertorial individual, e portanto única, o tempo
dos parangolés passa a refletir a percepção de cada receptor, transmutado em roteirista. É nes-
conduz ao que Huizinga (2004) chama de “círculo mágico”, um espaço onde o receptor é se-
duzido pela proposta apresentada, sendo conduzido à um mundo sincrético, composto por
apurada que constitui o sistema lógico, o algoritmo combinatório do parangolé. A capa repre-
senta uma alma desprovida de corpo, um sistema carregado de questões morais, éticas, filosó-
66
corpo a esta alma, e, portanto, a completa, é o receptor, quem veste a capa e deixa-se banhar
na dança do parangolé, em uma espécie de “arquitetura viva em que o homem através de sua
expressão gestual constrói aquela como sistema biológico vivo, verdadeiro tecido celular”
(Clark, 1973:159). Justino (op. cit.:25) ainda afirma que “a obra de Oiticica apaga definitiva-
A proposta fica clara: o que os parangolés permitem é um acesso a uma nova percep-
ção espacial e temporal, onde o receptor pode atuar como bem entender, realizando movimen-
tos, ações, gestos, performaces, ruídos, ou seja, criação de linguagens em espaços desautoma-
O processo de co-autoria encontra um campo enorme a ser explorado, que depende so-
mente do repertório do receptor, que passa a atuar como uma espécie de roteirista. Os paran-
golés abrem o espaço, cabe a este roteirista pós-moderno preenchê-lo com suas cores, ima-
gens, sons e palavras, o que torna impossível distinguir onde começa e onde acaba qual lin-
guagem. Tal divisão não existe, os códigos fundem-se. É desta forma que o hall institucionali-
zado de um prédio, por exemplo, com a predominância quase que absoluta de suas leis pode
Os parangolés por quebrarem a rotina, por romperem uma cadeia sintagmática e ins-
taurarem o paradigma, tornam possível uma maior percepção dos objetos, da vida, abrindo es-
paço no cotidiano mais banal para o surgimento de atos criativos, encarnados por participan-
tes que em determinado tempo-espaço podem jogar livremente com os signos, com os ele-
67
mentos constituintes das mensagens, pois estão sob a esfera de uma concepção projetual que
visa promover a absorção do espaço e do tempo em prol de uma atitude extremamente criati-
va e inclusiva.
“que implica não só movimentos necessariamente ligados segundo leis, mas também uma for-
ça ativa e uma finalidade” (Lalande, 1999:261). Tal sentido de dinâmica coloca-se em conso-
nância com os conceitos aqui propostos, principalmente em relação ao conceito de jogo. O jo-
go, conforme apresentado e já discutido por Gadamer (op. cit.) e outros autores constitui um
deixar claro que o jogo de descondicionamento e inclusão permitido pelos parangolés existe
queira o participante o jogue conscientemente ou não. Tal fato se dá por toda a concepção da
obra ter sido criada visando tais objetivos. Ou seja, os parangolés contém regras que definem
algoritmos de combinação abertos a permeação por repertórios distintos. Implícito a este fato
está a condição de que o receptor tenha um posicionamento crítico com relação a experiência,
ou, nas palavras de Gadamer, que “se coloque no jogo uma seriedade própria, até mesmo sa-
grada” (Idib.:174) para que o ato de co-autoria possa ser efetivo, e não se torne uma mera ale-
goria.
Tais algoritmos agem no sentido de promover certo resgate de uma historicidade, que
gou muito com diversos movimentos que influenciaram seu fazer. Travar um diá-
ção de discursos tão criativos, já que estes se dão a partir da síntese e da combina-
ção de dados de uma forma nova, que ainda não havia sido realizada. Sem uma
a multiplicação do aparato tecnológico à nossa volta pode nos dar a falsa im-
pressão de que estamos experimentando algo novo, quando na verdade nós
podemos não estar experimentando coisa alguma. (Machado, 2001:13);
2004), não há mais sentido em causar rupturas completas com o pensamento e pro-
gro, todas as referências que dão corpo às suas existências, não exaurem-se na en-
tropia de algo que não dialoga com o contexto, com o ambiente, mas sim renovam-
exterior,
• Por fim, o sentido de historicidade autônoma dos próprios parangolés enquanto ob-
jetos que se desprendem de seu propositor e passam a trilhar percursos em que es-
69
ricidade humana.
linguagens que utilizem os canais digitais: Os parangolés, enquanto obras de arte não produ-
zem nostalgia24, pois atualizam-se a cada momento de fruição entre o participante e a capa,
contemplando o que Gadamer (op. cit.:175) diz sobre a experiência da arte enquanto criação
contínua da consciência estética: “[a obra] não é um objeto que se posta frente ao sujeito que
é por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá
transformar aquele que a experimenta”. O programa dos parangolés pode ser dinamizado a
qualquer momento, pois não está preso a uma tendência de mercado. A importância desta au-
tonomia mostra-se quando comparamos tal potencial conceitual com as produções digitais ro-
tuladas como interativas que mostram-se com a única preocupação de atender, sem maiores
Este sentido de historicidade apurado permite que o algoritmo combinatório que move
a experiência seja rico em possibilidades, formando uma lógica complexa, onde reside toda
uma estruturação de obra aberta, de baixa definição. Formalmente, esta estrutura atualiza-se
de maneira sintética e mínima, o que desmistifica o saber de que estruturas complexas só po-
dem ser atualizadas por meio de interfaces também complexas, fato visível nas interfaces de
redutora das possibilidades à somente operações de decisões simples e binárias, é nela que re-
side o motor da experiência interativa, que articula as escolhas sintáticas-semânticas que irão
compor a linguagem híbrida de que estamos tratando. O autor cria o sistema do algoritmo co-
(Arana, 2002).
substância catalisadora é aumentar a velocidade de uma reação, abaixando sua energia de ati-
vação para possibilitar novos caminhos25. O dicionário Houaiss ainda nos traz a seguinte defi-
nição para o verbete “catalisador”: “Diz-se de ou que estimula ou dinamiza <centro circa de
criação artística> <circa de novas idéias>”. Este conceito emprestado da química é interessan-
te para ilustrar a compreensão de como o sistema dos parangolés estimula, dinamiza e abre
formam o algoritmo já estão presentes, mas soltos, aguardando um olhar mais atento, algo que
É aqui que os parangolém entram, atuando como catalisadores e abrindo novos cami-
nhos para estes elementos combinatórios. Um indício de que Oiticica enxergava os parangolés
novas direções, encontra-se em um trecho de um artigo escrito por ele: “(no parangolé) a idéia
por cores, palavras e o próprio ato de vestir cada capa” (apud Justino, op. cit.:53).
Em uma análise simples, seguem alguns dos aspectos que caracterizam algoritmos
combinatórios como os utilizados nos parangolés junto, quando for necessário para termos de
contextualização, com uma comparação com os algoritmos mais utilizados nas produções
digitais:
• De acordo com Oliveira (1998:96), “toda manifestação textual […] guarda tam-
bém em suas entranhas as indicações das ordens sensoriais que levam o texto a
elencada a partir das escolhas feitas pelo enunciador. Ora, tais indicações com-
proponha a ser interativa deve indicar direções, caminhos a serem trilhados, for-
namento das memórias que formam a base de dados do algoritmo e a memória re-
que por este fato, não deve ser totalizante. Sem este resgate o que impera são abs-
trações com relação aos receptores, idealizadas por um aqui e agora carregado de
ções lineares do tipo se – então – caso contrário26 tende a forçar que ao receptor
26 If – then – else
72
elemento sonoro à sua fruição, mesmo que Oiticica tenha realizado a maior parte
dar-se conta de que não poderá explorar o enredo proposto de forma realmente au-
na, op. cit.:141). A autora completa, adiante que esta frustração torna o receptor
“um sujeito de estado, atualizado, mas que não se transforma em sujeito do fazer,
expansão e subversão consciente das regras de seu jogo pelo receptor. Este fato di-
formas sucessivas,
73
• Para Gadamer (op. cit.), o jogo constitui-se, entre outros aspectos, pela consuma-
ção do seu próprio movimento, o que identifica-se nos parangolés como constru-
ção projetiva em espiral, e na constatação de que as regras do jogo podem ser alte-
radas à partir da consciência do jogo pelo jogador. Para quebrar o contrato do jogo
te diferente, por exemplo, de uma estrutura binária onde o caminho já está feito pe-
É pelo dinamismo que pode ser proporcionado pela estrutura mostrada que os paran-
golés tornam-se multiplicadores de linguagens. Através de sua proposta aberta, contando com
mo combinatório, os signos que os parangolés portam e atualizam fundem-se aos criados pela
atuação do receptor, gerando de forma exponencial novas semânticas27. O que entra no siste-
expansão dos parangolés torna-se cada vez mais aberto conforme seu programa vai sendo uti-
quando gira no espaço real encarnado por um corpo pulsante dispara e presentifica camadas e
27 Cf. Ilari & Geraldi (1985), o termo “semântica” abarca as mais diversas compreensões, encontrando, entre se-
us estudiosos, orientações distintas. Porém, os autores indicam que a semântica diz respeito à ciência que estuda
a significação. Por tratar o objeto a ser estudado a partir do ponto de vista de sua significação, é preciso, muitas
vezes, fazer referência à sua forma, ou seja, à sua constituição sintática, já que tratar da forma é “analisar sintati-
camente, e toda análise semântica pressupõe que sejam dadas de antemão informações sintáticas” (Ibid.: 7). Por-
tanto, novos significados, no contexto do texto apresentado, surgem a partir de novas configurações formais,
sintáticas, criadas graças aos rearranjos possibilitados pelo algoritmo aberto dos parangolés.
74
camadas e camadas de sinais”, de modo absolutamente reticular, “tenso e sempre com muitas
Ora, o computador também apresenta, mais do que qualquer outro meio técnico, ca-
aceitar qualquer tipo de input – desde os advindos de processos mecânicos até os captados
através do monitoramento do ambiente – torna-o capaz de processar tais dados e a partir deles
estruturar novas cadeias. Soma-se a esta possibilidade metalingüística uma capacidade de ar-
mazenamento e recuperação de informações rápida e eficiente, que torna-se cada vez maior à
O computador torna-se a mídia das mídias semióticas, pois não estabelece relações de
simples representação estática de dados, mas sim uma relação intersemiótica, onde os dados
de input se unem para criação de novos signos. Um meio técnico que tudo suga, dissolve e
transforma em bits e bytes para criar novas significações. Como lembra Santaella (2003b:20):
Desse modo, o ponto para um uso crítico e metalingüístico do meio técnico não está
sintaxes que possam se aproximar do potencial disponibilizado pelo meio técnico e ampliá-lo
uma perspectiva muito ampla, já que em um mesmo arranjo sintático podem estar investidos
75
inúmeros conteúdos semânticos28. Claro que esta multiplicidade semântica já se realiza nas
linguagens criadas pelo homem há mais tempo, mas o computador por possibilitar a combina-
ção que Santaella descreve – de todas as mídias em uma – pode gerar caminhos muito mais
heterogêneos.
gadores de linguagens para criação de fluxos semânticos pulsantes29. Porém, além das distin-
ções formais e materiais óbvias entre os dois sistemas, a diferença fundamental entre eles está
no plano do conteúdo. Enquanto o uso do computador é encarado, em grande parte das produ-
ções que o habitam, como um meio burocrático que atende à necessidades imediatistas de
Oiticica concebeu o programa dos parangolés como sendo um algoritmo que lida com ques-
interatividade. Para Oiticica, a estética constitui-se como a ética da arte, e não como a doutri-
na do belo.
Foi a partir desta desvinculação com o compromisso do que é tido socialmente como
belo que Oiticica pôde dar vazão em sua obra a conceitos como a precariedade, o indetermi-
nado e a reversibilidade. Esta concepção encontra-se na raiz do que Peirce30 conceituou como
sendo as três ciências normativas que emergem da fenomenologia: a estética, a ética e a lógi-
ca. A estética fornece a fundamentação da ética, que por sua vez é a base da lógica. Assim, se-
A estética visa determinar o que deve ser o ideal último, o bem supremo para
o qual a nossa sensibilidade nos dirige […] Não pode haver nada mais admi-
rável do que encorajar, permitir e agir para que idéias, condutas e sentimen-
tos razoáveis tenham a possibilidade de se realizar.
Todo esforço de Oiticica foi neste sentido. Seu grande foco de trabalho foi o homem,
as questões que afligem e condicionam o homem moderno e como este homem pode se des-
condicionar através da liberdade em seu mais alto grau. Enquanto sistema que atende priorita-
horizonte que não seja somente imediato, os meios técnicos digitais continuam fechados em si
mesmos, realizando a exaltação de suas próprias características, que acabam por entrar em um
sistema entrópico, onde a salvação do homem encontra-se no próximo chip, mais rápido e
portanto com capacidade de executar a demonstração de suas próprias virtudes com mais de-
senvoltura para uma platéia anestesiada, cujo repertório estreita-se cada vez mais na idéia de
Para compreender como de um programa estético pode surgir a livre escolha, que pas-
sa pelo conceito de interatividade aqui adotado, o texto de Santaella (2002:131), com as con-
O problema fundamental da ética está voltado para aquilo que estamos deli-
beradamente preparados para aceitar como afirmação do que queremos fa-
zer, do que temos em mira, do que buscamos. […] É na estética, na sua de-
terminação daquilo que é admirável, que vem a indicação da direção para
onde o empenho ético deve se dirigir, daquilo que deve ser buscado como
ideal. O fim último da ética reside, portanto, na estética. O ideal é estético, a
adoção deliberada do ideal e o empenho para atingí-lo são éticos. A adoção
do ideal e o empenho para realizá-lo, sendo deliberados, dão expressão à
nossa liberdade no seu mais alto grau.
Ora, para a criação deste “algo” passa por um mundo repertorial, e portanto histórico,
que os sistemas digitais devem passar a incorporar. Daí nasce a necessidade de uma busca por
novas estruturas sintáticas que possam presentificar esteticamente a virtualidade dos bits e
bytes. Cabe aos propositores esta busca, que passa pelo embricamento das ciências humanas,
exatas e biológicas, pois nenhuma, em si mesma, pode dar conta de um meio, que abarca de
forma a dissolver em um só arranjo, as três. A qualidade dos parangolés enquanto sistema in-
terativo está no algoritmo combinatório, em seu núcleo conceitual impregnado de valores es-
téticos, diferenciando esta experiência da grande parte das produções interativas digitais, que
não trabalham com conceitos caros para projetos do gênero, como o resgate da historicidade
ou propostas estéticas que não atendam somente a uma demanda imediata dos meios de mas-
sa. A importância de uma consciência histórica inclusiva para todas as esferas da produção di-
gital mostra-se necessária para que as experiências constituam-se de modo prospectivo. Pro-
postas criativas, que ampliem o conjunto estrutural da sintaxe utilizada nos meios digitais pre-
cisam percorrer este processo, pois caso contrário, corre-se o risco de utilizar um meio emer-
gente extremamente potencial para somente produção de sistemas redundantes, vendidos co-
mo paradigmas a receptores cada vez mais condicionados e sem capacidade critica. Este é o
devolverem esta dimensão. A crítica, aqui, não é apocalíptica, no sentido de que as máquinas
irão por elas mesmas contribuir para o aumento da alienação de parcelas significativas da po-
pulação. Constitui-se, sim, em uma tentativa de provocar aberturas à discussões sobre a forma
conceitos precisos é fundamental. As experiências que Oiticica nos deixou são essenciais para
78
Se o processo de sedução causado nos receptores pelo arranjo complexo das imagens,
animações, textos e sons exibidos pelos monitores e aparelhos sonoros dos computadores pu-
der migrar do estado de demo-tapes31 para um estado de consciência crítica que comece a in-
fluenciar a relação do homem com o saber crítico em seus mais diversos níveis, a “asa delta
31 No sentido em que se refere Machado (2001:13): “Muitos trabalhos que circulam atualmente exibindo o rótulo
de vídeo-arte, computer art ou computer music podem, muitas vezes, não passar daquilo que se costuma chamar,
no âmbito industrial, de demo tape, ou seja, um inventário de possibilidades da máquina, para efeito de demons-
tração de suas virtudes”.
79
Hélio Oiticica
80
A noção de que um computador poderia competir com seres humanos ou com outros
computadores em jogos interativos é tão antiga quanto os computadores. De acordo com Rich
Machine), considerada a precursora do computador atual, pensou em criar rotinas para que
seu invento pudesse jogar xadrez e depois em projetar uma máquina que disputasse partidas
do jogo-da-velha. Babbage esteve envolvido com a Máquina Analítica entre 1833 e 1842. Sua
máquina, entretanto, não pode ser construída, por limitações técnicas existentes no século XIX.
a desempenharem as mais diversas funções, de modo simultâneo e com uma velocidade cres-
cente. Entre tais funções está o uso do computador como plataforma de entretenimento, que
Muito já foi dito sobre a história e o desenvolvimento tecnológico dos games, motivo
pelo qual não abordaremos estes tópicos aqui. Também não será realizada a análise de ne-
nhum título específico. A proposta deste capítulo é estabelecer vínculos entre os parangolés e
que dizem respeito aos aspectos narrativos e estéticos das duas experiências.
diante disso, não constituem mundos completamente autônomos da realidade em que o intera-
tor se encontra socialmente. Rüdiger (op. cit.:17) diz que os recursos informáticos não consti-
tuem outro mundo, mas são mediações da sociedade em que vivemos, sendo que
Segundo este ponto de vista, os games não são uma nova realidade, mas sim uma su-
conflitos sociais e políticos de nossa época, antes de encontrarem solução, tendem a ser repro-
duzidos eletronicamente nos espaços digitais, e as “patologias históricas e culturais não são
postas de lado neste contexto, mas redimensionadas, quer falemos de crime e demagogia, quer
falemos de racismo e atividades terroristas” (Ibid.:17); ou seja, “em linhas gerais, a máquina
ainda é vista pelas massas sobretudo na forma do bem de consumo, estando acoplada a imagi-
nários de constrangedor tradicionalismo” (Ibid.:19). Nos games, regidos pela lógica da esco-
vam” (Santaella, 2001:391). A possibilidade, e necessidade, de uma junção entre arte e tecno-
logia fica ainda mais clara quando constatamos que “o artista trabalha na contramão da teleo-
logia tecnológica, no sentido em que ele não a homologa enquanto produtora de mimese do
real, mas na criação de outros referentes” (Plaza, 2003:17). Este exercício de criação referen-
verso do senso comum. Mas será que eles também podem ser exercícios interativos para a li-
sensibilidades? Até que ponto os games podem este tipo de apelo estético? Essas questões são
Os games, gênero bastante híbrido de produto cultural, encontram suporte formal nos
atuais aparelhos tecnológicos digitais, sendo construções simbólicas imersas dentro de um pa-
82
norama cultural bastante amplo e complexo. Segundo Santaella (2003b:31), a cultura32 está
em tudo e, partindo deste princípio, antes de serem produtos tecnológicos, os games e suas es-
truturas são produtos culturais. O jogador, ao iniciar um game, não está envolvido somente
com o mundo fantástico e rico em possibilidades criado pelo jogo, mas está imerso em um
ambiente mais complexo e híbrido, que extrapola o jogo, se transforma constantemente e in-
fluencia o jogador durante sua experiência com o game. O jogador, imerso na cultura, tem se-
us canais perceptivos tomados não somente pelos gráficos, sons e textos emitidos pelo apare-
lho tecnológico, mas também pelas construções semióticas que estão presentes em sua volta,
no ambiente em que ele está inserido, da mesma forma que ao vestir um parangolé, o receptor
se vê dentro de um “espaço intercoporal criado pela obra ao ser desdobrada” (Oiticica, 1965),
que existe dentro de um panorama maior, como um subconjunto de um conjunto maior, pelo
fato dos parangolés serem estruturas ambientais e, portanto, levarem em consideração o ambi-
Deste modo, ao jogar o jogador não aprende somente com o jogo, mas também com o
tura se estende e abarca toda nossa experiência. Os games, portanto, não podem ser isolados
gramação34 de alguns dos games comerciais mais famosos, percebemos que, paradoxalmente,
32 Cf. Santaella (2003b:31), a cultura “é mais do que um fenômeno biológico. Ela inclui todos os elementos do
legado humano maduro que foi adquirido através do seu grupo pela aprendizagem consciente”.
33 Diz Oiticica: “O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de estrutura ambiental, possuindo um nú-
cleo principal: o participador-obra, que se desmembra em participador quando assiste e obra quando assistida
de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra, ao se relacionarem num ambiente deter-
minado (numa exposição, p.ex.) criam um sistema ambiental Parangolé, que por sua vez poderia ser assistido
por outros participantes de fora” (Oiticica, 1965, grifos do autor).
34 Entendemos por programação a formalização “de um conjunto de procedimentos conhecidos, em que parte
dos elementos constitutivos de determinado sistema simbólico, bem como suas regras de articulação são inventa-
83
os tipos de lógicas implantadas nestes sistemas tecnológicos muitas vezes desprezam a expe-
riência cultural do jogador, seu repertório, por se comunicarem de forma rudimentar com este
mundo externo ao sistema tecnológico. Assim, muitos games atuais não acompanham o cres-
cimento perceptivo do jogador e não desenvolvem novas interfaces, novos modos de comuni-
encontrados nos games são destituídos de capacidade criativa, sendo constituídos por regras
logo com o indeterminado, como encontrado nos parangolés, é muito pequeno, visto que o
sistema se fecha em um diálogo que se dá meramente com seu próprio código. Pode-se dizer
que este determinismo surge, em grande parte, da separação entre o meio tecnológico e a cul-
tura, já que é a cultura “que permite a avaliação autoconsciente das possibilidades humanas à
luz de um sistema de valores que reflete as idéias prevalescentes sobre o que a vida humana
Claro que, como visto anteriormente, os sistemas tecnológicos fazem parte do sistema
cultural. Um questionamento a ser feito, portanto, é se quem produz as “caixas pretas” tecno-
lógicas possui tal consciência. Conforme Flusser (2002), o termo “caixa preta” refere-se a
aparatos técnicos sobre os quais seus usuários não possuem conhecimento acerca das opera-
ções realizadas em seus interiores, somente fornecendo dados de input e maravilhando-se com
os resultados obtidos como output. Flusser utilizou como paradigma a fotografia para elaborar
sua teoria. Porém, ela pode ser muito bem utilizada no contexto presente, ao tratarmos dos
games, já que eles continuam sendo caixa pretas para grande parte dos pesquisadores – princi-
palmente para os advindos da área das ciências humanas –, e para seus usuários, os jogadores.
riados, sistematizados e simplificados para serem postos à disposição de um usuário genérico, preferencialmente
leigo” (Machado, 2001b:39).
84
acerca de seu funcionamento interno. Ou ainda podemos dizer que “a civilização contemporâ-
nea apenas superficialmente é cada vez mais tecnológica” (Rüdiger, op.cit:18). Entender o
processo e realizar sua crítica, propondo novos fazeres, é uma maneira de desmistificar a cai-
sistemas.
Neste ponto, é importante frisar a importância da abordagem feita por Oiticica com re-
lação a esta tensão entre o que está determinado e o diálogo com o indeterminado. Oiticica diz
Portanto a própria concepção do sistema lógico existente nos parangolés já está im-
pregnada por componentes que trazem sua própria subversão. O sistema foi construído para
ser subvertido, enquanto que a base lógica dos games é contituída pela manipulação de matri-
gar. Neste caso, todas as possibilidades combinatórias existentes em uma narrativa estão devi-
sável pelo game. Poderíamos afirmar que os parangolés estão livres do processo rígido de
programação que forma a base dos sistemas digitais e que, dessa forma, são mais facilmente
passíveis de subversão. Porém é preciso lembrar que os parangolés possuem uma constituição
35 Matrizes são conjuntos de dados, variáveis ou não, mas claros e distintos, vetorizados e indexados, utilizados
para o armazenamento de informações pertinentes ao jogo. Estes valores são consultados ou alterados conforme
o jogo se desenvolve. Um exemplo de matriz pode ser a relação de armas ou suprimentos que o jogador possui
dentro do game.
85
material, plástica e que, assim, também estariam condicionados a esta materialidade e à carga
significativa que ela traz culturalmente. O que existe nos parangolés que permite sua subver-
são é a proposta de resignificação material e conceitual que eles trazem. Oiticica (Ibid.) assu-
me isso como parte integrante do problema e diz que embora os objetos e materiais possuam
uma carga simbólica instituida, eles também possuem um lado desconhecido, reversível. É
com isso que o artista trabalha no que ele chama de “fundação objetiva da obra”, que estabe-
lece como objetivo da intervenção artística a descoberta deste lado desconhecido dos objetos,
constante que precisa do receptor para se desenvolver, os games processam-se de maneira au-
deste tipo o jogo obedece à lógica do acaso, onde lances individuais são imprevisíveis, pro-
movendo a percepção inicial de que o jogo renova-se sempre. Porém, como foi bem observa-
do por Flusser (op. cit.), este tipo de sistema está condenado ao automatismo, visto que, a lon-
está aberto à aprendizagem de novas possibilidades. O jogo, tido muitas vezes como inteli-
gente, se esgota conforme vai sendo jogado, ao contrário dos parangolés, cujas capacidades de
A concepção que envolve o tipo de programação dos games é dominada pelo espírito
determinista. Conhecendo os dados de partida e os processos a que eles serão submetidos, po-
de-se prever os resultados. Se os dados forem submetidos várias vezes ao mesmo processo,
obter-se-á os mesmos resultados. Flusser (op. cit.:65) diz que, neste tipo de algoritmo, “todas
de vezes, antes que outra se atualize pela primeira vez. Porém, todas as virtualidades nesta ló-
gica se atualizarão. Este tipo de algoritmo não dialoga com a incerteza. Sua certeza linear já
86
está programada, de forma a tornar a experiência estética, para Lyotard (1999), uma atividade
quanto que nos parangolés não há este tipo de controle, sendo eles exercícios para a liberdade.
Vestir o parangolé é muito mais um ato de buscar algo do que ser controlado pela capa. Diz
Oiticica (1965) que o parangolé “não toma o objeto inteiro, acabado, total, mas procura a es-
trutura do objeto, os princípios constitutivos dessa estrutura, tenta a fundação objetiva e não a
dinamização ou desmonte do objeto”. Ao fazer tal proposta, Oiticica visava a abertura de no-
vos rumos na própria sensibilidade contemporânea (Favaretto, op. cit.:34). Por outro lado, o
sistema que controla um game do tipo futebol, por exemplo, detém o conhecimento de todas
as possibilidades de direção que a bola pode tomar no campo virtual, até mesmo quando a bo-
É, inclusive, nestes momentos que o determinismo pode ser considerado maior, já que
(joystick, teclado, mouse ou qualquer outro), processa-as, verifica se estão de acordo com a
programação pré-inscrita no jogo e, então, as executa. O game traz o objeto pronto. Fica claro
que o sistema do game sabe, sempre, os movimentos do interator antes de atualizá-los na tela
do como alguém que deve seguir regras, em Oiticica ele é visto como “suposto realizador de
idéias, exercitando o ludismo num misto de escolha e abandono” (Favaretto, op. cit.:22, grifo
nosso). A palavra abandono aparece destacada por referenciar um vazio a ser preenchido, um
87
espaço lúdico para a inclusão e não para a redutora obediência. Isso constitui uma diferença
apontam para um discurso também pertencente aos games, mas parece que nestes, ao contrá-
rio dos parangolés, não resta nada mais ao jogador que não seja a obediência às regras que se
apresentam na tela do computador. Ao possibilitar a invenção pela arte, Oiticica propõe a in-
venção da própria vida – a intervenção direta na caixa preta –, encarando seus projetos como
cit.:18) diz que este tipo de estrutura marca a condição humana através de um disciplinamento
mados de forma “blocada”. É claro que o problema aqui, para o funcionamento dos games,
não se localiza na existência de regras, já que um conjunto de regras é necessário para a exis-
tência do jogo. A questão se coloca no fato dos algoritmos digitais serem fórmulas para a exe-
Isso significa que todo processo de decisão é tomado por meio de relações do tipo se-
então-caso contrário37. O sistema compara um valor armazenado em sua matriz de dados com
a interação realizada pelo jogador e verifica se ela é válida em seu banco de regras. Caso a in-
teração seja válida a partir desta comparação, ela é executada. Caso contrário, o sistema está
programado para seguir por outro caminho pré-definido ou para não tomar nenhuma decisão.
Depende da forma como o procedimento foi concebido inicialmente. Não há nesta lógica ne-
nhum procedimento que verifique a possibilidade de que a interação “inválida”, apesar de não
constar do banco de regras pré-estabelecido, tenha algum tipo de validade e passe a constituir
natório aberto, catalisador – como descrito no capítulo 2. Um olhar mais atento a estas capaci-
dades algorítmicas dos parangolés ajuda a colocar em crise, inverter ou desviar o caminho
das, mas sim possibilidades de inserir todo e qualquer elemento desejável. É possível praticar
enquanto que nos games a construção está presa ao mundo já elencado pela programação. É
claro que esta estutura é inerente aos sistemas digitais, baseados em uma programação pré-
37 If-then-else
38 Cf. Guimarães (op. cit.:155).
89
Parece, assim, que a interatividade existente nos sistemas digitais pertence a uma outra
categoria quando comparada aos parangolés. Trata-se de uma interatividade que subjaz a um
ceptores a recriação de imaginários. Ora, mas será que os poderosos computadores, mesmo
caracterizados por sua necessidade de programação, não serão capazes de criar propostas tão
poderosas quanto as desencadeadas por simples capas que panejam sobre o corpo? Um cami-
nho para tentar decifrar este enigma pode estar no estudo da forma como as possibilidades de
construcão narrativas são tratadas nos games hoje, contrapondo a figura de Oiticica, como
grande arquiteto e propositor, aos esquemas utilizados no mundo digital. A posição de propo-
sitor transfere para o interator a co-responsabilidade pela construção do discurso e para que
este tipo de relação propositor/interator seja desenvolvida é necessário que o propositor inau-
assim como Oiticica concebeu o núcleo estético dos parangolés, que desencadeia todas as ex-
da generalização, do que Peirce conceituou como sendo legi-signo, abstrações operativas que
Muitos teóricos têm defendido o conceito de “agência” como uma resposta a esta
Portanto, parece que o conceito de agência está mais ligado à reafirmação da suprema-
cia do código, da certeza de funcionamento. A interatividade, como aqui colocada, estaria ma-
Há como que uma violação do seu estar como indivíduo no mundo, diferen-
ciado e ao mesmo tempo coletivo, para o de participar como centro motor,
núcleo, mas não só motor como principalmente simbólico, dentro da estrutu-
ra-obra. É esta obra a verdadeira metamorfose que aí se verifica na inter-re-
lação espectador-obra (ou participador-obra). (Oiticica, 1965, grifos do au-
tor).
Onde está este “núcleo central” nos sistemas digitais? Como veremos, a criação de
propostas para games costuma ser estudada a partir da visão única de quem propõe a narrati-
va, tentando criar cada vez mais formas de controle restritivas sobre o raio de ação do intera-
tor. A este respeito, Murray (op. cit.:191) diz que, do ponto de vista da criação de narrativas
geradas por computador, “o desafio para esses esquemas tão ambiciosos está em fornecer ao
computador conhecimento suficiente sobre os elementos da história, de modo que ele possa
afirmação está diretamente ligada à uma idéia de inteligência artificial algorítmica como sen-
91
o objetivo de assegurar uma coerência narrativa. É preciso repensar esta idéia, a partir de uma
discussão sobre o que é o conceito de inteligência para então tentar aplicá-lo à sistemas tecno-
lógicos.
Podemos dizer que inteligência diz respeito não a uma qualidade própria das condutas
e evoluem” (Dubois, 1990:15). Este conceito pode ser generalizado para qualquer sistema –
tos inteligentes. Esta capacidade é formada por diversas características, que podem ser enten-
didas como constituintes de um prisma de numerosas faces. Passaremos, então, a tratar das fa-
tema não se torna mais inteligente pelo simples aumento da quantidade de informações arma-
zenadas em sua memória. As interfaces que podem ser estabelecidas entre estas informações é
um fator de importância maior. Estas interfaces devem ser reguladas por uma lista, não neces-
sariamente grande, daquilo que Pinker (2005:24) chama de “verdades essenciais”, um conjun-
to de regras que regem o processo de tomada de decisões e que alimentam um algoritmo que
regras que sirva de modelo para estruturas de comportamento é fator imprescindível para a
ligações entre suas verdades essenciais nucleares e fatores provenientes do mundo exterior,
mas.
92
As verdades essenciais, acima citadas, são complexas e difíceis de determinar. Esta di-
ficuldade está, em boa parte, localizada no fato de que sistemas inteligentes devem lidar com
mos a simultaneidade, ou seja, a capacidade do sistema de atuar com uma quantidade signifi-
cativa de fatores ao mesmo tempo, associando-os em cadeias sintáticas reticulares, como uma
Esta implicação significa que, mesmo criando-se um grupo de regras satisfatório, es-
sas regras teriam de agir em conjunto para a criação e resolução de proposições lógicas sensa-
tas; cada elemento envolvido no processo tem de portar um valor semântico que o identifique
e que permita estabelecer relações baseadas no que chamamos de “bom senso”. A complexi-
dade e o número de variáveis envolvidas nessas operações lógicas é grande, mesmo nas ope-
rações mais simples, pois elas envolvem um grande número de conjuntos e subconjuntos sis-
têmicos.
interação presencial com um ser humano, em que a base da interação seja a conversação, deve
“saber” discernir, para que a interação seja efetiva, as diversas expressões faciais produzidas
pelo interator humano, respondendo a cada tipo de expressão com uma atitude adequada. As-
sim, um sorriso cordial produzirá uma reação distinta da produzida por um sorriso sarcástico.
Tal sistema precisa, em uma descrição bastante simples, “saber” avaliar o contexto e o teor da
conversa, identificar, dentro deste contexto, a ocorrência de um sorriso e, diante disso, aces-
sar, em seu subconjunto correspondente, qual tipo de sorriso foi produzido, associando-o ao
contexto em que a situação ocorreu, para então gerar uma resposta. Caso uma situação dessa
natureza já tenha acontecido, o sistema deve recorrer à sua memória para produzir uma res-
posta automática, já internalizada. Porém, diante de uma situação nova, ou no caso de insu-
cesso nos resultados obtidos pela reprodução da resposta internalizada, um sistema inteligente
deve demonstrar capacidade de adaptação, aptidão para encontrar caminhos face a situações
93
zadas devem estar à disposição de métodos de recuperação, seja para uso imediato ou para
De acordo com Dubois (op. cit.:16), “um sistema inteligente é um sistema que está em
continua evolução e que se torna cada vez mais complexo”. Portanto, os sistemas inteligentes
devem estar preparados para apreender os efeitos que uma ação produz, não somente de for-
ma direta, mas indiretamente também. Em seres humanos, a base deste algoritmo é cultural
Trinta (ibid:57), os tipos de sorrisos emitidos em uma conversa por meio de seu programa cul-
tural. A cada cultura correspondem usos diferenciados das expressões faciais. Já em aparelhos
lógicos, que sirvam de modelo para sistemas tecnológicos, é um dos maiores desafios para os
nais humanos, já que a cultura constitui-se por um tecido com alto nível de complexidade,
ve considerar as implicações colaterais de suas ações, mas não de todas, já que o cálculo de
todas as possíveis probabilidades levaria à paralisia qualquer sistema, fosse ele biológico ou
gência necessita, portanto, que seu conjunto de regras permita discernir o que é relevante,
dentro do conjunto de dados conhecido, para a execução e a análise dos efeitos de suas ações.
Esta implicação torna os algoritmos – sejam eles convenções sociais ou computacionais –, ex-
94
ponencialmente mais complexos, pois, embora seja realizada uma filtragem prévia das variá-
veis envolvidas na equação que rege a ação, abre-se espaço para a incerteza. Não podendo
calcular ou prever todos os resultados de suas ações, o sistema inteligente deve estar munido
indeterminado. “Inteligência” requer o contato com o incerto, tendo como parâmetros o uni-
Outro fator primordial, destacado tanto por Pinker (op. cit.) quanto por Dubois (op.
Pinker (op. cit.:72-3), sem uma especificação de objetivos, a idéia de inteligência não teria
sentido. Não se pode identificar um sistema de qualquer tipo – humano ou artificial – como
inteligente sem ter compreendido em que tipo de ação sua inteligência é utilizada. As regras
algorítmicas devem estar a serviço do que move o sistema: a busca de algo e o enfrentamento
dos obstáculos que se colocam entre o ponto de partida e o objetivo a ser alcançado. O algorit-
mo deve utilizar o conjunto de regras de que dispõem para perseguir o objetivo, permutando
as possibilidades relevantes.
tintos, utilizando suas regras racionais de maneiras diferentes, de acordo com a demanda exi-
gida pelo problema a ser enfrentado, efetuando a transposição de uma problematização for-
mulada de uma certa maneira para outra forma, generalizando conceitos (Dubois, op.
contexto em que o objetivo está inserido. Sob o prisma da inteligência, o objetivo pode ser al-
go fixo, mas o caminho que leva a este objetivo pode ser redesenhado indefinidamente, levan-
subconjuntos, em uma estrutura fractal. Pode-se dizer, então, que inteligência é a capacidade
que um sistema possui de alcançar objetivos diante de obstáculos e aprender com esse proces-
A idéia de narrativa está ligada à ação, ao contínuo fazer, construir, que se desenvolve
na junção tempo-espaço. É preciso que um interator, leitor ou ouvinte mobilize energia para
que qualquer forma narrativa se desenvolva. O conceito de narrativa é plural e a idéia de civi-
lização e formação do homem está ligada a narrativa, como algo que se constrói ininterrupta-
mente. Santaella (2001:322) define a narração como “ação que é narrada”, idéia também de-
senvolvida por Aumont (op. cit., 244), que esclarece tratar-se de um conjunto organizado de
significantes, cujos significados constituem uma história que se desenrola no tempo, com du-
Dentre esta gama enorme de possibilidades narrativas, Platão definiu três tipos princi-
– a narrativa mista, que comporta ao mesmo tempo parte verbal e parte mi-
mética. É a narração hoje dominante em literatura, com suas descrições, por
um lado, e seus diálogos “citados”, por outro.
Os games, enquanto gêneros híbridos, apresentam formas narrativas que misturam ele-
mentos lineares, mais próximos à verbalidade, com fragmentos dispersos que vagueiam e se
encontram em estruturas rizomáticas sem pontos de entrada ou de saída definidos. Estes frag-
mentos se encontram mais próximos da linguagem imagética, assim como os parangolés, cuja
manifestação expressiva só se dá pela ação e não pela simples contemplação, sendo esta ação
uma manifestação mais imagética, visual, do que verbal. Santaella (2001:317), entretanto,
aponta para o fato de que a “narrativa é uma ação lingüística, um discurso, do qual participam
são e da recepção. Como pode existir, portanto, uma narrativa interativa, que se construa na
ruptura entre as figuras clássicas do emissor e do receptor? Santaella (Ibid, 320-21) diz que
Neste ponto, deve-se tomar cuidado para não se levar o argumento até a ge-
neralização de que a narratividade está na raiz de todo e qualquer processo
de linguagem […] a narratividade é modalidade precípua do verbal, podendo
estar subjacente também à descrição e à dissertação, e podendo se espraiar
ainda para as outras matrizes, a sonora e a visual. Contudo, estas duas últi-
mas, sonora e visual, têm uma autonomia lógica própria, como matrizes de
linguagem e pensamento que também são e, como tal, a narratividade não
lhes é inerente. Isso reduz a universalidade da narrativa apenas ao reduto do
discurso verbal.
97
sentam substratos verbais, que não são necessariamente dominantes. O que existe nos games
e nos parangolés são hidribizações sofisticadas das matrizes de linguagem que, portanto, esca-
pam da lógica estritamente verbal, marcada pela narrativa que se constrói no binômio emis-
sor/receptor. É esta hibridização que torna possível a interatividade, tanto nos games quanto
nos parangolés. As performances realizadas com os parangolés contém uma origem narrativa,
mas são, na verdade, linguagens verbo-visuais-sonoras, assim como os games. O seguinte tex-
produção de Oiticica – para quem a ação era a pura manifestação expressiva da obra –, estan-
plação no espaço, representa um salto em direção ao receptor. Esta pesquisa levou Oiticica a
formação de espaços ativos e ativantes. O espaço extraquadro ao trazer uma relação entre su-
para Oiticica, o tempo como elemento ativo, duração, implica o fim da repre-
sentação e, com ela, da contemplação. No espaço “representativo”, a tela
funciona como janela; o tempo, aí, é linear, movimento entre figuras. Quan-
do, porém, o plano da tela é ativado, o tempo, como duração, lança-se no di-
namismo das áreas de cor, que agem como focos de energia. Na medida que
o observador é chamado, de alguma forma, a intervir na produção desse di-
namismo, esse tempo ganha “vitalidade” e “significação” (Ibid.:79).
Oiticica abriu e trilhou este caminho, aperfeiçoando-o na nova linguagem híbrida in-
troduzida com os parangolés. Os games também são uma nova linguagem, uma hiper lingua-
gem, que continua em busca de si mesma, que pode trazer novos modos de pensar, de agir e
de sentir. Esta nova linguagem heterogênea traz a possibilidade da abertura de espaços para
preciso que os games se abram ao homem, trilhem também o caminho das inquietações con-
temporâneas. Muitas das abordagens sobre os games encontradas hoje vão em uma direção
acaba por eliminar em grande parte o potencial híbrido de suas linguagens, ou ainda como
É preciso ter em mente que os processos interativos, assim como os encontrados nos
Talvez a forma de contar histórias existente nos games mais recentes e sofisticados es-
teja muito mais próxima do modo de ser das imagens, e não do texto narrativos. Murray
(2001), entretanto, defende a idéia da criação de padrões narrativos para os games. Estes pa-
drões, ou funções, seriam constituídos por pequenos fragmentos dentro de uma narrativa mai-
or que iriam se encadeando para a construção da história do game. O interator ao realizar es-
colhas estaria juntando estes fragmentos em um grande quebra-cabeças. Esta abordagem tem
um grande parentesco com os modos de criação verbal, que geram discursos lineares40, em-
bora, como Santella (2001:322) observa, uma história ao ser narrada pode adquirir configura-
Porém, até mesmo a aproximação feita por Murray (op. cit.) com o cinema parece re-
forçar a idéia de linearidade apresentada nas abordagens sugeridas. A aproximação das carac-
montagem prévia e estática do que é apresentado ao interator. Murray (op. cit.:17) diz que “o
computador parece cada dia mais com a câmera de cinema da década de 1890: uma invenção
40 Murray toma como base para suas concepções os estudos, publicados originalmente em 1928, do formalista
russo Vladimir Propp. A respeito da obra de Propp, Santaella (2001:318) diz que “tradicionalmente, as persona-
gens, os objetos e os incidentes ou motivos eram considerados os elementos mínimos do discurso narrativo. Em
oposição a isso, a partir do exame de uma amostra de cem contos maravilhosos, Propp propôs a função como
unidade mínima. A função é uma ação que não pode ser definida fora do seu lugar no curso da narração. As fun-
ções servem como elementos estáveis, constantes de um relato e independem de como e por quem elas são pre-
enchidas”. Propp identificou trinta e uma funções invariantes para a construção de narrativas, sugerindo que
“histórias satisfatórias podem ser geradas pela substituição e reagrupamento de unidades padronizadas, obede-
cendo-se a regras tão precisas quanto fórmulas matemáticas” (Murray, op. cit:189).
41 Northrop Frye (apud Santaella, 2001:385-6) diz que “A literatura parece ser intermediária entre a música e a
pintura: suas palavras formam ritmos que se aproximam de uma seqüência musical de sons numa de suas frontei-
ras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou hieroglífica na outra. As tentativas de se chegar
tão próximo quanto possível dessas fronteiras formam o corpo principal daquilo que se chama de escrita experi-
mental. Podemos chamar o ritmo da literatura de narrativa, e o padrão, a apreensão mental simultânea da estrutu-
ra verbal, de significado ou significação. Ouvimos e escutamos uma narrativa, mas quando compreendemos o
padrão total de um escritor ‘vemos’ o que ele quer dizer”.
100
veículo, meio, mídia ou dispositivo enunciador como componente mais importante dos pro-
cessos comunicacionais, quando este papel é sempre da linguagem. Neste caso específico, o
estudo dos games, e dos outros arranjos comunicacionais que utilizam o computador como su-
porte, deve pressupor as diferentes linguagens e sistemas sígnicos que se configuram no inte-
rior do computador, levando em consideração a condição deste como veículo híbrido, verda-
O próprio termo “contador de histórias” utilizado por Murray parece preso à idéia de
noridade próprias. O que resta para o interator contar? Quais imagens podem ser criadas em
um mundo possível que já traz suas próprias imagens, sem a possibilidade de intervenção, já
que, ao contrário das histórias contadas em papel, onde o leitor pode fazer anotações e dese-
nhos, são poucos games que permitem que o interator modifique os cenários ou personagens
propostos. Oiticica, por outro lado, não pretendia contar histórias com seus parangolés. Os pa-
rangolés são facilitadores, não condicionadores, para que cada participante possa contar sua
truídos com uma historicidade alheia ao receptor acabam por tirar a beleza existente na expe-
do game pode querer contar uma história própria, utilizando os recursos disponibilizados pelo
computador. Esta é uma argumentação válida, mas para os interesses da pesquisa – a discus-
são de mecanismos interativos – o que isso traz de novo? A discussão neste nível acaba fican-
do presa ao aparato técnico, desvinculando-se, muitas vezes, de uma crítica às linguagens em-
101
pregadas. Parece que esta abordagem acaba por desconsiderar, ou sub-utilizar, características
interessantes encontradas nas possibilidades digitais. Murray (op. cit.:194) diz que
Porém, como bem aponta Santaella (2001:406), um “roteiro multiforme”, mais do que
dar ao autor um controle preciso e direto sobre todos os elementos da história, deve se cons-
temos a impressão de que a estrutura proposta por Murray, onde o autor tem um pseu-
do-controle total sobre a narrativa, solidifica a arquitetura possível nos sistemas digitais, e a
afirmação de que “a resposta está em desenvolver estratégias que dêem ao autor controle dire-
to sobre todos os vários níveis da escolha artística” (Murray, op. cit:194) parece ir de modo
“sistema implícito de unidades e de regras”, conforme detalhado no capítulo 2.2, porém o que
os torna tão interessante e inaugurais é justamente o fato de que eles existem para serem sub-
vertidos, recriados e recontados, e não para atenderem aos desejos narrativos de Oiticica. O
caminho trilhado por Oiticica, mais do que propor construções fechadas e, portanto, acabadas,
se aproximam do que Barthes (op. cit.:21) diz ser um caminho para o estudo das formas narra-
Murray:
42 Barthes aqui chama a atenção para a “história do a hitita postulado por Saussure e descoberto de fato cinqüen-
ta anos mais tarde; em: BENVENISTE: Problèmes de Linguistique générale, Gallimard 1966, p. 35” (op.
cit.:21).
103
qualidade da proposta interativa apresentada. Não parece que o modo verbal de contar históri-
as seja o mais adequado para os games. Os games parecem aproximar-se mais do modo de ser
das imagens, como citado anteriormente. O texto aparenta (re)afirmar a programação do pró-
prio código simbólico que está na base dos games – as linguagens de programação dos com-
putadores. Um pensamento projetual imagético pode tornar mais híbrido, mais arejado, este
código. Não em sua essência sintática, mas nas interações que ele propõe, em sua dimensão
Confome Bellour (1999:214), é difícil conceitar o que são as imagens, pois, apesar de-
las serem onipresentes em um mundo cada vez mais tomado por telas e por painéis publicitá-
rios – o que atesta que nossa percepção do mundo é cada vez mais imagética –, sabemos cada
vez menos o que elas são. Todavia, o que interessa aqui não é a conceituação precisa do que
seja uma imagem, mas sim a identificação de algumas de suas propriedades e a importância
delas para as formas interativas. Assim, de início, podemos dizer que as imagens são basica-
mente sínteses que oferecem traços, cores e outros elementos visuais em simultaneidade,
constituindo-se como linguagem por serem “mediações entre o homem e o mundo” (Flusser,
op.cit:9). Após contemplar a síntese imagética é possível explorá-la aos poucos; só então
emerge novamente a totalidade da imagem (Neiva, 1994:5). Este caráter simultâneo da ima-
multisensória: sons, imagens e textos combinam-se ao mesmo tempo, assim como nos paran-
golés. A possibilidade de intervenção por parte do receptor se dá justamente nas brechas aber-
tas por essa fragmentação, que não é contemplada nos roteiros que se estabelecem através de
A imagem também é aberta, plural por excelência, sendo sua decodificação “uma mis-
tura de erudição e quebra-cabeças, uma espécie de trabalho histórico de dedução, como nos
contos de detetive” (Neiva, op. cit:6). A imagem traz, ao mesmo tempo, o passado, a memó-
da estrutura narrativa proposta em relações uns com os outros. A narrativa textual se processa
por sua sucessão no tempo, multiplicando-se em série. É uma progressão no tempo e espaço.
torno, pois nelas “o vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já
vistos. Assim, o ‘antes’ se torna ‘depois’, e o ‘depois’ se torna o ‘antes’” (Flusser, op. cit.:9).
Os parangolés dinamizam esta característica do discurso imagético, pois é ela que permite ao
que a forma narrativa proposta e desenvolvida por Oiticica traz é justamente esta circularida-
de imagética:
O discurso da imagem é portanto a forma narrativa trazida por Oiticica. Embora ele te-
nha produzido inúmeros textos a respeito de suas experiência, esta concepção imagética fica
muito clara no modo como ele pensava seus projetos, de forma absolutamente visual, com a
105
imagem servindo não como ilustração do texto, mas sim o contrário. Em seus projetos, é o
Com relação à criação de mundos possíveis, tão explorados nos games, as imagens
dispensam semelhanças com o “mundo real”, característica que se torna mais evidente princi-
palmente a partir do discurso imagético que passou a tomar forma no final do século XIX,
quando as imagens passam a ter uma maior autonomia, desencadeada pelos sucessivos movi-
mentos artísticos de vanguarda. Esta autonomia conferiu a elas maior poder de fabulação, já
que as imagens das vanguardas modernas não precisavam somente reproduzir o real. O poder
que as imagens portam para a criação de mundos fantásticos é vasto. Por meio do discurso
imagético, “podemos representar o que inexiste materialmente – por exemplo, dragões, uni-
córnios, fantasmas –, mas que se apresenta como imagem” (Ibid.:11), muito embora a sonori-
dade esteja mais livre da obrigatoriedade de representar um mundo exterior à seu próprio dis-
curso.
É claro que estes mundo fantásticos, onde reinam leis físicas, químicas e perceptivas
diferenciadas, podem ser criados, e o são constantemente, por meio do texto. Porém Foucault
(2002:12) alerta para o fato de que a linguagem verbal e a linguagem imagética são “irredutí-
veis uma à outra: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se
diz”. Não é, portanto, mera transposição de linguagens o que se propõe, mas sim o estudo da
lógica imagética em proveito da criação de propostas interativas. Não se trata também de uma
simples exaltação da imagem em relação ao texto, ou, ainda, da negação do texto, o que seria,
no mínimo, ingênuo, mas sim do estudo de novas possibilidades para a compreensão das es-
truturas narrativas contidas nos games. Neiva (op. cit.:14) elenca algumas propriedades co
fície, bordas, formas e interespaços e pluralidade de coisas que possuem significado. As ima-
gens aproximam-se ainda mais da interatividade por serem conotativas, não sendo “conjuntos
106
Figura 8
Estudo para PARANGOLÉ P6 Capa 4
Homenagem a Lygia Clark, 1965
Coleção Projeto H.O
107
Figura 9
Estudo para PARANGOLÉ Cabeça, Gimme Head
Nova Iorque, 1976
Coleção Projeto H.O
108
de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são ‘denotativas’. Ima-
gens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos ‘conotativos’” (Flusser,
op. cit.:8).
Portanto, as imagens, assim como os games mais sofisticados, são como grandes es-
truturas rizomáticas por onde o olhar vagueia, sem ponto de entrada ou local específico para
dam os olhos a não se apressar, mas sim a descansar por um instante e a se abstrair com elas
no enlevo de sua revelação” (Campbell, 1994:9). Flusser (op. cit.:7) diz que as imagens estão
diretamente ligadas à imaginação, sendo que esta é a “capacidade de fazer e decifrar ima-
gens”.
diversos de leituras, sendo assim inclusivas. A imagem deixa de ser estática mas é, alem dis-
imagem-lugar não se dá somente nos planos, com uma imagem sucedendo a outra, mas tam-
bém na profundidade da própria imagem, que passa a ser explorada, com movimentos de am-
pliação, de retrocesso, de interação com os seus elementos constituintes. De tal maneira que
portas e janelas podem ser abertas ou fechadas e objetos são passíveis de deslocamento. A
imagem-lugar se redesenha conforme o jogo proposto é jogado, e por isso exige que o jogador
seus lugares. Os dispositivos de entrada (mouse, joystick e teclado) quem ligam o jogador aos
games também operam através da lógica do salto, permitindo deslocamentos abruptos que
rompem com o tecido fino da seqüêncialidade linear. Constituem-se, mais do que qualquer
outro tipo de imagem, como frutos da digitalização, já que “nascem da manipulação do com-
putador, que concebe essas imagens: manipulação engenhosa, certamente, mas sobretudo ins-
trumental, corporal, gestual” (Bellour, op. cit.:227), reafirmando o computador como sendo o
grande espaço para os encontros semióticos. São nessas imagens-lugares que se processam os
eventos, passagens de uma imagem à outra, espaços entre-planos que acabam por constituir
formalmente a narrativa dos games. A seqüência rígida de leitura ocidental, da esquerda para
a direita, de cima para baixo, e a racionalidade que ela traz em seu cerne são substituídas por
um processo de montagem em tempo real, como se o jogador fosse um grande editor que,
através de saltos, operasse a montagem de sua história única, que tem seu próprio tempo,
As histórias narradas nos games trazem como um de seus conceitos principais a rever-
enfrentados, podendo com isso modificar os acontecimentos futuros. Em grande parte dos
games é possível salvar na memória do computador pontos específicos do jogo, que podem
110
ser determinador pelo jogador ou pelo algorítmo, de forma que no caso de uma eventual der-
rota ou perda de pontuação ou de vidas no jogo, seja possível ao interator retomar a narrativa
e que pode ser constantemente reconstruído. Este tempo de magia também já havia sido incor-
Como visto nos parangolés, estas propriedades interativas/imagéticas podem ser po-
tencializadoras de um reencontro do homem com ele mesmo, através do jogo estético, ou po-
dem reduzir a ação à uma mera atualização mecânica de possibilidades já elencadas através de
uma programação hermética já pré-inscrita. Esta escolha depende do propositor, já que a ma-
gicidade encontrada na interatividade envolve uma transformação estética, que “deixa de ser
uma atividade interior, uma viagem pelo imaginário e pela reflexão, tal como se dá na pintura,
111
para ser uma articulação de corpos e materiais43. Mas é o participante que articula os elemen-
43 Essa relação corpo e material nos games é encontrada na manipulação dos dispositivos que fazem a mediação
entre o jogador e o jogo, como os joysticks, mouses e teclado.
112
Considerações finais
sensíveis com relação aos efeitos das narrativas propostas. Um processo de hibridização con-
ceitual entre a tecnologia e a arte – aqui representada pelos parangolés – pode indicar novas
impregnado de valores estéticos que buscam o resgate da historicidade individual de cada in-
terator. É importante que os sistemas tecnológicos passem a incorporar estruturas que permi-
vilizatória. Propostas criativas, que ampliem o conjunto estrutural das sintaxes utilizadas nos
sistemas digitais, precisam percorrer este processo, passando a atender mais do que as quês-
Dyson (op. cit.: 40) alerta para o fato de que tecnologias que atendem somente pulsões
mos sistemas potencialmente latentes, como os games, para a mera produção de ciclos redun-
dantes, vendidos como novidades a receptores cada vez mais condicionados e sem capacidade
crítica.
temporaneidade por trazerem esta dimensão. A crítica aos sistemas digitais não é apocalíptica.
Os games não irão, por eles mesmos, contribuir para o aumento da alienação de parcelas sig-
sentou-se aqui uma tentativa de provocar aberturas à discussões sobre os meios utilizados pe-
113
los desenvolvedores para a sedução dos jogadores, através de arranjos complexos de imagens,
animações, textos e sons que não passam, muitas vezes, de demonstrações das capacidades e
virtudes da máquina, onde a salvação do homem encontra-se no próximo chip, mais rápido e
portanto com capacidade de executar a demonstração de suas próprias virtudes com mais de-
senvoltura para uma platéia anestesiada, cujo repertório estreita-se cada vez mais na idéia de
coletividade vendida pela indústria. Oiticica, com seus parangolés, propõe a migração para
um estado de consciência crítica, que descondicione o homem de suas amarras sociais, cultu-
digitais, com a intenção de inserir cada vez mais, estéticamente, o jogador e seu repertório
nestes mecanismos. A apropriação das características conceituais dos parangolés pelos games
dos ambientes digitais possam servir como instrumentos para o descondicionamento do ho-
mem e para sua reinserção de forma crítica na sociedade. É neste sentido que os games preci-
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