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Meditando
com
Krishnamurti
(Krishnamurti Foundation of India)
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A todos os interessados,

Em 1990 trouxe da Índia um livro publicado pela KFI (Krishnamurti Foundation of India),
sob o título "Meditations". É uma compilação de textos de Krishnamurti, que tratam do tema da
meditação, extraídos de 11 diferentes obras suas. Variam de tamanho, desde uma simples linha até
uma página inteira. Para quem está envolvido de algum modo com a prática da meditação, trata-se
de abordagens fundamentais para uma reflexão mais profunda e que poderia embasar melhor futuras
discussões sobre o tema.

O livro foi publicado pela primeira vez em 1980, na Índia, e traz em seu prefácio as palavras
do próprio K que, dessa forma, endossa os seus colaboradores nessa tarefa. Suas palavras:

PREFÁCIO

“O homem, a fim de escapar de seus conflitos, inventou muitas formas de meditação. Estas,
baseadas no desejo, na vontade e no ímpeto para alcançar, implicam em conflito e numa luta para
conseguir. Esse esforço consciente e deliberado está dentro dos limites de uma mente condicionada e
nele não há liberdade. Todo esforço para meditar é a negação da meditação”.
“Meditação é o fim do pensamento. Só então há uma dimensão diferente que está além do
tempo”.

J. Krishnamurti
Março de 1979

Muita paz!

F.Guedes, Om
Belo Horizonte, 04/01/02
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Uma mente meditativa é silenciosa. Não o silêncio que o pensamento pode conceber; não o
silêncio de um anoitecer tranqüilo; mas o silêncio em que o pensamento - com todas as suas
imagens, palavras e percepções - cessou completamente. Essa mente meditativa é a mente religiosa -
de uma religião que não afetada pela igreja, templos ou cânticos.
A mente religiosa é a explosão do amor, amor esse que não conhece separação. Para ele,
longe é perto. Não o um e o múltiplo; mas, ao invés disso, aquele estado de amor em que toda
divisão cessou. Como a beleza, não pode ser medido por palavras. É só a partir desse silêncio que a
mente meditativa age.

***

A meditação é uma das maiores artes da vida - talvez a maior - e, possivelmente, não
podemos aprendê-la de ninguém. Essa é a sua beleza. Não tem técnica e, portanto, não tem
autoridade. Quando você aprende a seu próprio respeito, observando-se, observando como anda,
como come, o que diz, a intriga, o ódio, o ciúme - se está atento a tudo isso em você, sem qualquer
escolha - então, isto é parte da
meditação. Portanto, a meditação pode ter lugar quando se está sentado num ônibus, caminhando
num Bosque repleto de luz e sombra, ouvindo o canto dos pássaros ou contemplando o rosto de sua
mulher ou de seu filho.

***

É curioso quão importante a meditação se torna; não tem princípio nem fim. É como uma
gota de chuva: naquela gota estão contidos todos os riachos, grandes rios, mares e quedas d'água;
aquela gota nutre a terra e o homem; sem ela, a terra seria um deserto. Sem a meditação, o coração
se torna um deserto, uma terra devastada.

***

Meditação é descobrir se o cérebro, com todas as suas atividades e experiências, pode ficar
absolutamente quieto. Não forçado, pois, no momento em que você o força, há dualidade. A
entidade que
diz, "Gostaria de experiências maravilhosas; por isso, preciso forçar o meu cérebro a se aquietar",
jamais o fará. Mas, se você começa a investigar, observar e prestar atenção a todos os movimentos
do pensamento, seus condicionamentos, desígnios, medos e prazeres, a observar como o cérebro
funciona, então verá que o cérebro se torna extraordinariamente quieto; essa quietude não é sono,
mas tremenda atividade que é, por si mesma, tranqüila. Um grande dínamo, que funciona
perfeitamente, dificilmente faz barulho; só quando há atrito, há ruído.

***

Silêncio e amplidão andam juntos. Imensidão do silêncio é imensidão da mente em que já


não existe um centro.

***

Meditação é trabalho árduo. Exige a mais alta forma de disciplina - que não é conformação,
imitação ou obediência - mas disciplina que vem da constante atenção, não só para as coisas externas
à sua volta, mas também as internas. Portanto, a meditação não é uma atividade de isolamento, mas
ação na vida diária que exige cooperação, sensibilidade e inteligência. Sem lançar as bases de uma
vida correta, a meditação se torna uma fuga e, portanto, sem valor. Uma vida correta não é seguir a
moralidade social, mas libertar-se da inveja, da cobiça e da busca de poder - todas gerando
inimizade. A libertação dessas coisas não vem pelo exercício da vontade, mas tomando consciência
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delas pelo autoconhecimento. Sem o conhecimento das atividades do eu, a meditação se torna
estimulação dos sentidos e, portanto, de muito pouco significado.

***

Estar procurando experiências mais amplas, profundas e transcendentais é uma forma de fuga
da verdadeira realidade, "o que é" e que é nós mesmos, a nossa mente condicionada. Por que uma
mente atenta, inteligente e livre deveria ter qualquer "experiência"? Luz é luz; não procura mais luz.

***

A meditação é uma das coisas mais extraordinárias e, se não souber de que se trata, você será
como um cego num mundo de cores brilhantes, sombras e luzes cambiantes. Não é uma questão
intelectual, pois quando o coração penetra a mente, esta passa a ter uma qualidade diferente; ela é ,
então, realmente ilimitada, não só em sua capacidade de pensar e agir com eficiência, mas também
no sentido de
viver num amplo espaço em que você faz parte de tudo. Meditação é o movimento do amor. Não o
amor do um ou do múltiplo. É como água que qualquer um pode beber de um cântaro; seja o cântaro
de ouro ou de barro, a água é inexaurível. E coisa peculiar acontece que nem a droga nem a auto-
hipnose podem produzir: é como se a mente entrasse dentro de si mesma, começando na superfície e
penetrando cada vez mais fundo, até que profundidade e altura tenham perdido o seu significado e
toda forma de medida tenha cessado. Nesse estado há completa paz - não satisfação que vem da
gratificação - mas uma paz que tem ordem, beleza e intensidade. Toda ela pode ser destruída, como
uma flor pode ser destruída; e, contudo, por causa de sua própria vulnerabilidade, torna-se
indestrutível. Essa meditação não se aprende com outrem. Deve-se começar sem nada saber a seu
respeito e prosseguir com simplicidade. O solo em que a mente meditativa pode surgir é a vida
diária, a disputa, a dor e a alegria fugaz. Deve surgir lá, trazendo ordem e daí prosseguir sem parar.
Mas se você está preocupado só em produzir ordem, então essa mesma ordem produzirá sua própria
limitação e a mente tornar-se-á sua prisioneira. Em todo esse movimento, você deve começar de
algum modo pelo outro extremo, da outra margem, e não ficar preocupado com essa margem ou em
como cruzar o rio. Caia n'água sem saber nadar. A beleza da meditação está em você não saber onde
se encontra, para onde se dirige e qual é o fim.

***

Meditação não é algo diferente da vida diária, não é recolher-se a um canto e meditar por dez
minutos e depois encerrá-la e tornar-se um carniceiro - metafórica ou realmente. Meditação é uma
das coisas mais sérias. Pode ser praticada durante todo o dia, no escritório, com a família, quando se
diz a alguém, "Eu te amo", ou quando se está pensando nos filhos. Mas eis que eles são educados
por você para serem soldados, para matar, para serem patriotas, para adorar a bandeira, educando-os
para cair nas armadilhas do mundo moderno.
Observar e perceber sua participação em tudo isso, faz parte da meditação. E quando assim
meditar, você descobrirá uma beleza extraordinária; agirá corretamente a cada momento; e se não
agir corretamente num dado momento, não faz mal: você retomará o reto agir, sem perder tempo
com arrependimentos.
Meditação é parte da vida, não algo diferente dela.

***

Se você se lança à meditação, não haverá meditação. Se você se dispõe a ser bom, a bondade
jamais florescerá. Se você cultivar a humildade, ela deixará de existir. Meditação é a brisa que entra
quando a janela está aberta; mas se você a mantiver aberta, convidando-a deliberadamente a entrar,
ela jamais aparecerá.
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***

Meditação não é um meio para um fim. É ambos, meio e fim.

***

Que coisa extraordinária é a meditação! Se houver qualquer tipo de compulsão e esforço para
imitar, para ajustar o pensamento, então torna-se um fardo desgastante. O silêncio desejado deixa de
iluminar; se se trata de procura de visões e experiências, então conduz a ilusões e auto-hipnose. É só
com o florescer do pensamento e, por conseguinte, com o seu fim, que a meditação adquire
significado; o pensamento só pode florescer em liberdade, não nos padrões cada vez mais amplos do
conhecimento. O conhecimento pode propiciar as mais novas experiências, de maior sensação, mas a
mente que busca experiências de qualquer tipo é imatura. Maturidade é libertação de toda a
experiência; não se acha mais sob qualquer influência para ser ou não ser.
A maturidade na meditação é a libertação da mente do conhecimento, pois ele molda e
controla toda a experiência. A mente que é uma luz para si mesma não precisa de experiência. A
imaturidade é o desejo de maior e mais ampla experiência. Meditação é o vagar através do mundo do
conhecimento, mas dele liberto para penetrar o desconhecido.

***

Temos de descobrir por nós mesmos e não através de quem quer que seja. Tivemos a
autoridade de professores, salvadores e mestres. Se quiser descobrir realmente o que é meditação,
você tem de deixar de lado, completamente, toda e qualquer autoridade.

***

Felicidade e prazer podem ser comprados em qualquer mercado por um preço. Mas Bem-
aventurança, não - para você ou para qualquer outro. Felicidade e prazer estão comprometidos com o
tempo. Só em total liberdade existe Bem-aventurança. Prazer, como felicidade, pode ser buscado e
encontrado, de muitas maneiras. Mas eles vêm e se vão. Bem-aventurança - esse estranho senso de
alegria - não tem motivo.
Possivelmente, não pode ser procurada. Uma vez ocorrida e, dependendo da qualidade de sua
mente, permanece - sem fim e sem causa, algo não mensurável pelo tempo. Meditação não é busca
de prazer ou felicidade.
Ao contrário, é um estado da mente em que não existe conceito ou fórmula, e existe,
portanto, liberdade total. É só a uma tal mente que ocorre essa Bem-aventurança - que não foi
procurada e nem convidada. Uma vez ocorrida, ainda que possa estar vivendo no mundo - com seus
barulhos, prazeres e brutalidade - a mente não será afetada.
Uma vez ocorrida, cessam os conflitos. Mas o fim do conflito não é, necessariamente, a total
liberdade. Meditação é o movimento da mente nessa liberdade. Nesta explosão de alegria, os olhos
tornam-se inocentes, e o amor torna-se então bênção.

***

Não sei se já notaram que quando você presta toda a atenção, há completo silêncio. E, nessa
atenção, não existem fronteiras, nenhum centro, nenhum "eu" para estar consciente ou atento. Essa
atenção, esse silêncio, é um estado de meditação.

***

Dificilmente prestamos atenção ao som de um cachorro latindo, uma criança chorando ou à


risada de alguém que passa. Nós nos separamos de tudo e, uma vez separados, olhamos e ouvimos
tudo o mais. É essa separação que é tão destrutiva, pois nela reside todo conflito e confusão. Se
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prestasse atenção ao som daqueles sinos, em completo silêncio, você viajaria nele - ou melhor, o
som o levaria através de vales e montanhas. Sua beleza só pode ser sentida quando você e o som não
estão separados, quando se é parte dele. Meditação é o fim da separação, não empreendida por
qualquer ação, vontade ou desejo.
Meditação não é uma coisa separada da vida; é-lhe a própria essência, a própria essência da
vida diária. Ouça aqueles sinos, a risada do camponês que passa com a esposa, o som da campainha
da bicicleta da garota passando: é toda a vida, e não apenas um pedaço dela, que a meditação revela.

***

Meditação é ver o que é e ir-lhe além.

***

Percepção sem palavras, isto é, sem pensamento, é um dos fenômenos mais estranhos. É
quando a percepção é muito mais aguda, não apenas com o cérebro, mas com todos os sentidos. Tal
percepção não é fragmentária como a do intelecto e nem uma questão de emoções. Pode ser
chamada de percepção total e faz parte da meditação. Percepção sem percebedor é, na meditação,
comungar com a altura e a profundidade do que é imenso. Essa percepção é inteiramente diferente
de ver um objeto sem um observador, porque na percepção da meditação não há objeto; nem
experiência, portanto. A meditação pode, contudo, ter lugar quando estamos de olhos abertos e
cercados de objetos de todo o tipo. Mas, então, tais objetos não têm valor algum. Nós os vemos, mas
não há processo de reconhecimento, o que significa que não há o experienciar.
Qual o significado de tal meditação? Não há significado, nem utilidade. Mas nessa meditação
há um movimento de grande êxtase que não pode ser confundido com prazer. É o êxtase que dá aos
olhos, ao
cérebro e ao coração a qualidade da simplicidade. Se não vermos a vida como algo totalmente novo,
ela e tornará rotineira, aborrecida e fútil. Por isso a meditação é da maior importância. Ela abre as
portas ao incalculável, ao imensurável.

***

A meditação nunca é do tempo; o tempo não pode produzir mutação; pode produzir
mudanças que exigem novas mudanças, como toda reforma. A meditação que deriva do tempo
sempre compromete, nunca é livre, e sem liberdade continuará a haver escolha e conflito.

***

Temos de alterar a estrutura de nossa sociedade, sua injustiça, sua aterradora moralidade, as
divisões que cria entre o homem e o homem, suas guerras, a absoluta falta de afeição e amor que está
destruindo o mundo. Se sua meditação é tão somente uma questão pessoal, que você desfruta
pessoalmente, então não se trata de meditação. Meditação implica numa mudança radical e completa
da mente e do coração. Isto só se torna possível quando existe esse extraordinário silêncio interior e
somente isso produz a mente religiosa. Essa mente sabe o que é sagrado.

***

Beleza significa sensibilidade - um corpo sensível - o que quer dizer dieta correta, modo de
vida correto. A mente, então, sem saber, tornar-se-á inevitável e naturalmente quieta. Você não pode
aquietar a mente porque você mesmo é o trapalhão - perturbado, ansioso e confuso. Como pode
aquietar a mente? Mas quando entender o que é a quietude, a confusão, o sofrimento e o fim do
sofrimento, quando entender o prazer, então, de tudo isso surgirá uma mente extraordinariamente
calma; você não tem de procurá-la. Deve começar do começo e o primeiro passo é também o último.
E isso é meditação.
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***

Meditar é não se importar com o tempo.

***

Meditação não é uma fuga do mundo; não é uma atividade isolante, fechada em si; mas, ao
contrário, compreensão do mundo e de seus caminhos. O mundo tem pouco a oferecer além de
comida, roupa, abrigo e prazer com sua contrapartida, o sofrimento.
Meditação é afastamento desse mundo; temos de vê-lo de fora, por inteiro. Assim, o mundo
adquire um significado e a beleza dos céus e da terra torna-se constante. Então, o amor não é prazer.
E disto vem toda a ação que não é resultado da tensão, da contradição, da busca de auto-satisfação
ou idéia de poder.

***

Se você assume uma atitude deliberada, uma postura a fim de meditar, então isso se torna um
jogo, uma brincadeira da mente. Se você decide desembaraçar-se da confusão e infelicidade da vida,
então isso se torna um exercício de imaginação... e isso não é meditação. A mente, consciente ou
inconsciente, não pode tomar parte nisso; não deve nem mesmo estar consciente da extensão e
beleza da meditação - e, se estiver, melhor seria sair e comprar um romance para ler.
Na plena atenção da meditação não há conhecimento, reconhecimento e nem lembrança de
algo acontecido. O tempo e o pensamento cessaram completamente, pois são o centro limitador de
sua própria visão.
No momento de luz, o pensamento fenece. O esforço consciente para experienciar e recordar
torna-se a palavra do que já se foi. E a palavra nunca é a coisa real. Nesse momento, que não é do
tempo, o que resta é o imediato; mas o que resta não possui símbolo, não pertence a ninguém, a
nenhum deus.

***

Meditação é descobrir se não existe um campo ainda não contaminado pelo conhecido.

***
Meditação é o florescer da compreensão. A compreensão não se acha dentro das fronteiras do
tempo; o tempo nunca traz a compreensão. A compreensão não é um processo gradual a ser formado
pouco a pouco, cuidadosa e pacientemente. A compreensão se dá agora ou nunca; é um clarão que
destrui e não uma diversão; é esse estilhaçar que tememos e evitamos, consciente ou
inconscientemente. A compreensão pode mudar o curso de nossa vida, a maneira de pensar e agir,
pode ser agradável ou não, mas é certamente um perigo para toda a relação. Mas, sem a
compreensão, o sofrimento continua. O sofrimento só acaba através do autoconhecimento, da
atenção a cada pensamento e sentimento, a cada movimento do consciente e do que se oculta.
Meditação é compreensão do que é consciente, oculto e aberto, e do movimento que jaz além de
todo pensamento e sentimento.
***
Era uma dessas manhãs adoráveis nunca antes vista. O sol surgia e podia-se vê-lo entre o
eucalipto e o pinheiro. Pairava sobre as águas dourado e brilhante, com uma luz que só existe entre
as montanhas e o mar. Era uma manhã clara que deixa nossa respiração em suspenso, cheia daquela
luz estranha que não se vê apenas com os olhos, mas com o coração. E, ao vê-la, os céus se
aproximam da terra e nos perdemos na beleza. Sabe, não se deve meditar em público, ou com
outrem, ou em grupo: deve-se meditar a sós, na quietude da noite ou no silêncio da manhã bem cedo.
Quando meditar a sós, deverá haver solidão. Deve-se estar completamente a sós, sem seguir um
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sistema, método ou palavras repetitivas, sem perseguir pensamentos ou moldá-los de acordo com
os seus desejos.
Esta solidão vem quando a mente se liberta dos pensamentos. Havendo influência do desejo
ou das coisas que a mente persegue no futuro ou no passado, não há solidão. Essa solidão só vem na
imensidão do presente. Aí então, na quietude do recolhimento em que cessa toda comunicação, em
que não há o observador com suas ansiedades, com seus tolos apetites e problemas - só então, na
quietude da solidão, a meditação torna-se algo que não pode ser colocado em palavras. A meditação
é então um eterno movimento.
Não sei se já meditaram antes, se já estiveram a sós, por si mesmos, afastados de todas as
coisas, de toda pessoa, de todo pensamento e busca, se já estiveram completamente sozinhos - não
isolados ou refugiados em algum sonho fantasioso ou visão - mas afastados, de modo a não haver
coisa alguma reconhecível em vocês, nada que se possa tocar com o pensamento ou sentimento, tão
afastados que nessa
total solidão o próprio silêncio se torna a única flor, a única luz, aquela qualidade eterna que não
pode ser medida pelo pensamento.
Somente em tal meditação o amor tem seu ser. Não se dê ao trabalho de tentar exprimi-lo: ele
se exprimirá por si. Não o utilize. Não tente pô-lo em ação: ele agirá e, ao agir não haverá
arrependimento ou contradição, nenhuma infelicidade ou labuta própria do homem.
Portanto, meditem a sós. Percam-se. E não tentem lembrar por onde andaram. Se tentarem
lembrar, então será algo morto. E se se apegarem à sua lembrança, então, nunca mais estarão de
novo a sós. Portanto, meditem na solidão sem fim, na beleza desse amor, nessa inocência, no novo -
então terá lugar a bem-aventurança que não se acaba.
O céu estava muito azul, daquele azul que vem depois da chuva, daquelas chuvas que vêm
depois de muitos meses de seca. Depois da chuva os céus estavam límpidos, os montes regozijantes
e a terra silenciosa. Cada folha tinha sobre si a luz do sol e sentia-se a terra bem próxima. Portanto,
meditem no mais secreto recesso de seu coração e de sua mente, onde nunca estiveram antes.

***

Meditação não é um meio para um fim; não existe um fim, uma chegada; é um movimento
no tempo e fora do tempo. Todo sistema, todo método, vincula o pensamento ao tempo; mas a
atenção sem escolha a todo pensamento e sentimento, compreendendo-lhes os motivos e o
mecanismo, o que lhes permite florescer, é o começo da meditação. A meditação é um movimento
que transcende o tempo, quando o pensamento e sentimento florescem e morrem. Nesse movimento
há êxtase; no vazio total existe amor; e quando há amor, há destruição e criação.

***

Meditação é aquela luz na mente que ilumina o caminho para a ação e, sem essa luz, não há
amor.

***

Meditação nunca é oração. Oração, súplica, nasce da autopiedade. Você reza quando se acha
em dificuldade, quando existe sofrimento; mas quando está feliz, alegre, não há súplica. Essa
autopiedade, tão enraizada no homem, é a origem da separação. Aquilo que é, ou se pensa separado,
sempre procurando identificação com algo não separado, só traz mais divisão e dor. É a partir dessa
confusão que clamamos aos céus, ao nosso marido ou a alguma deidade criada pela mente. Esse
clamor pode encontrar uma resposta, o eco da autopiedade, em sua separação.
A repetição de palavras, de orações, é auto-hipnótica, auto-enclausurante e destrutiva. O
isolamento do pensamento sempre está dentro do campo do conhecido e a resposta à oração vem do
conhecido.
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A meditação está longe disso. Nesse campo o pensamento não pode entrar; não há
separação e, portanto, nenhuma identidade. Meditação é a céu aberto; nela não segredo. Tudo está
exposto, claro; só então ocorre a beleza do amor.

***

Nessa manhã, a qualidade da meditação era o nada, totalmente desprovida se achava de


tempo e espaço; um fato e não uma idéia ou paradoxo de especulações opostas. Encontramos esse
estranho vazio quando a raiz de todos os problemas se desfaz. Essa raiz é o pensamento, pensamento
que divide e retém. Na meditação a mente se esvazia de fato do passado, embora possa usá-lo como
pensamento. Isto prossegue pelo dia afora e à noite o sono é o esvaziar-se do dia que passou, e assim
a mente toca aquilo que não é do tempo.

***

Meditação não é mero controle do corpo e do pensamento, não é um sistema de inspiração e


expiração. O corpo deve estar tranqüilo, saudável e sem tensões; a sensibilidade para sentir deve ser
aguçada e mantida; e a mente, com todo seu tagarelar, perturbações e incertezas, deve chegar a um
fim. Não é pelo organismo que devemos começar, mas pela mente com suas opiniões, preconceitos e
interesse próprio. Quando a mente está saudável, vital e vigorosa, o sentimento crescerá e tornar-se-á
xtremamente sensível. Então o corpo, com sua inteligência natural ainda não corrompida pelo hábito
e pelo gosto, funcionará devidamente.
Portanto, devemos começar pela mente e não pelo corpo, a mente sendo pensamento com sua
expressões variadas. A mera concentração torna estreito, limitado e frágil o pensamento, mas a
concentração vem como uma coisa natural quando tomamos consciência dos caminhos do
pensamento. Essa consciência não vem do pensador que escolhe e descarta, que se apega a alguma
coisa ou a rejeita. Essa consciência não tem escolha e é, ao mesmo tempo, interior e exterior, uma
interação entre os dois aspectos, de modo que a divisão entre ambos chega a um fim.
O pensamento destrói o sentimento - o sentimento sendo amor. O pensamento só pode
oferecer prazer e, na busca do prazer, o amor é posto de lado. O prazer de comer, de beber, tem
continuidade no pensamento, e só controlar ou suprimir esse prazer que o pensamento produziu não
faz sentido; só cria formas diversas de conflito e compulsão.
O pensamento, que é matéria, não pode buscar o que está além do tempo, pois o pensamento
é memória e a experiência nessa memória está morta como as folhas do outono passado.
Ao tomar consciência de tudo isso, vem a atenção, que não é produto da desatenção. A
desatenção é que ditou os hábitos prazerosos do corpo e dissolveu a intensidade do sentimento. A
desatenção não pode se transformar em atenção. A consciência da desatenção é atenção.
A visão de todo esse complexo processo é meditação e só a partir dela vem a ordem nessa
confusão, ordem tão absoluta quanto a matemática, a partir da qual há ação - o fazer imediato.
Ordem não é arranjo, plano e proporção: isso vem mais tarde. A ordem vem de uma mente não
confundida pelas coisas do pensamento. Quando o pensamento silencia, lá está o vazio, que é ordem.

***

Era de fato um rio maravilhoso, largo e profundo, com tantas cidades a suas margens; tão
despretensiosamente livre e, no entanto, nunca abandonado. Toda a vida lá estava a suas margens:
campos verdes, florestas, casas isoladas, a morte, o amor e a destruição; havia pontes largas e
compridas sobre ele, graciosas e úteis. Outros riachos e rios juntavam-se a ele, mas ele era a mãe de
todos eles, grandes e pequenos. Sempre cheio, purificando-se; e, ao anoitecer, era uma bênção olhá-
lo, sob nuvens de cores profundas e em suas águas douradas. Mas o pequeno fio d'água, tão longe
entre aquelas gigantescas rochas, parecendo concentradas em produzi-lo, era o princípio da vida e o
seu fim estava além de suas margens e dos mares.
A meditação era como esse rio, só que sem princípio nem fim; teve início, mas seu fim era
também seu começo. Não tinha uma causa e seu movimento era sua renovação. Sempre nova, jamais
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acumulando para envelhecer; sem raízes no tempo, nunca é poluída. Para meditar, é bom não
forçar ou fazer qualquer esforço, começando por um fio d’água e indo além do tempo e espaço, onde
pensamento e sentimento não podem entrar e onde não há experiência.

***

Meditação é a total liberação de energia.

***

No espaço que o pensamento cria à sua volta não existe amor. Esse espaço divide o homem
do homem e nele reside todo o vir-a-ser, a batalha da vida, a agonia e o medo. A meditação é o fim
desse espaço, o fim do "eu". Então, a relação tem um significado bem diferente, pois, nesse novo
espaço, que não é feito de pensamento, o outro não existe, porque você não existe.
Meditação, então, não é a procura de alguma visão, ainda que santificada pela tradição. Ao
invés disso, é um espaço sem fim onde o pensamento não pode entrar. Para nós, o pequeno espaço
feito pelo pensamento em torno de si, que é o "eu", é extremamente importante, pois isso é tudo o
que a mente conhece, identificando-se com tudo nesse espaço. E o medo de não ser nasce nesse
espaço. Mas em meditação, quando isso for compreendido, a mente poderá entrar numa dimensão do
espaço em que ação é inação.
Não sabemos o que é o amor, pois no espaço criado pelo pensamento ao seu redor, chamado
"eu", o amor torna-se conflito entre o "eu" e o "não-eu". Esse conflito, essa tortura, não é o amor.
O pensamento é a negação do amor e não pode entrar naquele espaço onde o "eu" não existe.
Naquele espaço está a bênção que o homem procura e não pode encontrar. Ele a procura dentro das
fronteiras do pensamento e o pensamento destrui-lhe o êxtase dessa bênção.

***

A crença é tão desnecessária quanto o ideal. Ambos dissipam a energia para acompanhar o
desenrolar do fato que acontece, "o que é". Crenças, como ideais, são fugas do fato e na fuga não há
fim do sofrimento. O fim do sofrimento é a compreensão do fato, momento a momento. Não existe
sistema ou método que nos dê compreensão; só uma consciência, sem escolha, de um fato o fará. A
meditação de acordo com um sistema é evitar o fato daquilo que você é; é muito mais importante
compreender a constante mudança dos fatos a seu próprio respeito do que meditar para achar Deus
ou ter visões, sensações e outras formas de entretenimento.

***

A meditação àquela hora era liberdade, era como entrar num mundo desconhecido de beleza
e quietude, um mundo sem imagem, símbolo ou palavra, sem ondas da memória. O amor era a morte
de cada minuto e cada morte, renovação do amor. Não se tratava de apego, pois não havia raízes;
florescia sem uma causa e era uma chama que destruía pelo fogo todas as fronteiras, as cercas
cuidadosamente construídas pela consciência. Era beleza, além do pensamento e do sentimento; não
podia ser retratada numa tela, posta em palavras ou esculpida em mármore. Meditação era alegria e
com ela vinha uma bênção.

***

O florescer do amor é meditação.

***

Na meditação temos de descobrir se existe um fim para o conhecimento e, portanto,


libertação do conhecido.
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***

Choveu pesado noite e dia e, em sua passagem, a enxurrada precipitava-se rumo ao mar,
tingindo-o de chocolate. Ao andar pela praia, as ondas faziam-se enormes, arrebentando-se com
forças em magnífica curvatura. Ao caminhar contra o vento, sentia-se não haver nada entre você e o
céu, numa celestial abertura. Estar completamente aberto, vulnerável - aos montes, ao mar e aos
homens - é a própria essência da meditação.
Não ter resistência, quaisquer barreiras interiores, estar completa e realmente livre de todo
impulso, compulsão e exigência de menor importância, é caminhar pela vida de braços abertos.
Naquela tarde, ao caminhar sobre a areia molhada, com as gaivotas ao seu redor, sentia-se um
extraordinário senso de ampla liberdade e a grandiosa beleza do amor, não dentro ou fora de você,
mas por toda a parte.
Não percebemos quão importante é estar livre de incômodos prazeres com suas dores, de
modo que a mente fique só. Somente a mente de todo só é aberta. Você sentia tudo isso de repente,
como um vendaval varrendo a terra e você. E lá estava você - desprovido de tudo, vazio - e, no
entanto, escancarado. Sua beleza não residia em palavras e sentimentos, mas parecia estar por toda a
parte - ao seu
redor, dentro de você, sobre as águas e nos montes. Meditação é isso.

***

Meditação não é concentração, que é exclusão, separação, resistência e, portanto, conflito.


Uma mente meditativa pode se concentrar, pois então não há exclusão, resistência; mas uma mente
concentrada não pode meditar.

***

Na compreensão da meditação, há amor, que não é produto de sistemas, hábitos ou


acompanhamento de um método. O amor não pode ser cultivado pelo pensamento. Talvez possa vir
à existência no completo silêncio, silêncio no qual o meditador encontra-se inteiramente ausente; e a
mente só pode silenciar quando compreende seu próprio movimento, como pensamento e
sentimento. Para compreendê-lo, não pode haver condenação no observar. Observá-lo assim é
disciplina, mas um tipo de disciplina fluida, livre, não a disciplina da conformidade.

** *

Naquela manhã, o mar era como um lago ou um rio enorme, sem uma onda, e tão calmo que
podia-se ver os reflexos das estrelas, ainda bem cedinho. A madrugada ainda não havia raiado, de
modo que as estrelas, o reflexo dos penhascos e as luzes distantes da cidade refletiam-se sobre as
águas. E quando o sol surgiu no horizonte sem nuvens, traçou uma rota dourada e era extraordinário
ver a luz da Califórnia enchendo a terra e cada folha e talo de grama.
Ao observar, descia uma grande quietude sobre você. O próprio cérebro ficava muito quieto,
sem qualquer reação ou movimento, e era estranho sentir essa imensa quietude. "Sentir" não é a
palavra. A qualidade desse silêncio, dessa quietude, não é sentida pelo cérebro; está além dele. O
cérebro pode conceber, formular ou fazer planos futuros, mas essa quietude o ultrapassa, além de
toda imaginação ou desejo. Você fica tão quieto que seu corpo se torna parte integrante da terra e de
tudo que faz parte dessa quietude.
E quando a brisa suave vinha das montanhas, agitando as folhas, essa quietude, essa
qualidade extraordinária do silêncio, não era perturbada. A casa ficava entre as montanhas e o mar, a
contemplá-lo.
E quando observava-o tão tranqüilo, você se tornava parte de tudo.
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Era-se tudo, a luz e beleza do amor. Mais uma vez, dizer "você se tornava parte de tudo",
não é correto: a palavra "você" não é adequada porque, na verdade, "você" não estava lá. "Você" não
existia. Só havia aquela quietude, beleza e extraordinário sentido de amor.

***

As palavras "você" e "eu" separam as coisas. Mas nesse estranho silêncio e quietude, não
existe essa divisão. E quando se olhava para fora, espaço e tempo pareciam ter chegado ao fim, e o
espaço que divide não era real. Essa folha, aquele eucalipto e a água azul que brilha não eram
diferentes de você.
A meditação é realmente muito simples. Nós a complicamos. Tecemos uma teia de idéias ao
seu redor - o que é e o que não é. Mas ela não é nada disso. Por ser muito simples, escapa-nos; isso
porque nossas mentes são muito complicadas, desgastadas pelo tempo e nele baseadas.
É essa mente que dita as atividades do coração e aí começa a confusão. Quando se anda sobre
a areia ou se olha pela janela aqueles montes maravilhosos queimados pelo sol do último verão, a
meditação vem naturalmente, com uma facilidade extraordinária. Por que somos seres humanos
torturados, com lágrimas nos olhos e um riso falso nos lábios? Se puder caminhar só entre aqueles
montes, nos bosques ou ao longo das areias brancas da praia, nessa solidão você saberá o que é
meditação.
O êxtase da solidão vem quando já não se teme estar só - não mais fazendo parte do mundo,
nem apegado a nada. Então, como a madrugada dessa manhã, vem silenciosamente e traça uma
trilha dourada através da quietude, que lá estava no princípio, que lá está agora e que lá sempre
estará.

***

Meditação é um movimento no e do desconhecido. Você não está lá, só o movimento. Ou é


muito pequeno ou muito grande para esse movimento. Nada há atrás ou a frente dele. É aquela
energia que o pensamento-matéria não pode tocar. O pensamento é perversão, pois trata-se do
produto de ontem; é apanhado na labuta de séculos e, por isso mesmo, é confuso e nebuloso. Faça o
que quiser, o conhecido não pode alcançar o desconhecido. Meditação é morrer para o conhecido.

***

A meditação de uma mente completamente silenciosa é a bênção que o homem está sempre
procurando. Nesse silêncio, reside toda sua qualidade.

***

Uma vez lançada a base da virtude, que é ordem na relação, vem à existência essa qualidade
do amor e do morrer, que pertence toda ela à vida; então a mente se torna extraordinariamente
quieta, naturalmente silenciosa, não através da supressão, da disciplina e do controle, e este silêncio
é imensamente rico.
Além disso, nenhuma palavra ou descrição é de qualquer valia. Então a mente já não
investiga o absoluto, pois, naquele silêncio reside "o que é". E tudo isto é a bênção da meditação.

***

Depois das chuvas, as montanhas estavam esplêndidas, ainda queimadas do sol de verão;
logo, todo o vale brotaria. Tinha chovido bem pesado e a beleza daquelas montanhas era
indescritível. O céu ainda estava encoberto e no ar havia cheiro de sumagre, salva e eucalipto. Era
esplêndido estar entre as árvores e uma estranha calma apossava-se de você. Diferente do mar à
distância, essas montanhas estavam completamente quietas. Ao observar e olhar ao redor, você tinha
deixado tudo lá embaixo naquela cabana - roupas, pensamentos e um estranho modo de vida. Aqui
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viajava-se com muita leveza, sem pensamentos, sem fardos e com um sentimento de total
esvaziamento e beleza. Os pequenos arbustos verdes logo estariam mais verdes e, dentro de poucas
semanas, teriam um cheiro mais forte. As codornas chamavam e umas poucas alçaram vôo. Sem o
saber, a mente estava num estado de meditação em que o amor florescia. Afinal de contas, só no
terreno da meditação pode brotar essa flor. Era realmente maravilhoso e, estranhamente, isso o
acompanhava durante toda a noite; e, ao acordar, muito antes do nascer do sol, lá estava ainda em
seu coração, com incrível alegria, sem qualquer razão aparente. Lá estava, inebriante e sem causa. E
lá ficaria o dia todo, sem que você pedisse ou a convidasse para ficar.

***

Lá, na varanda perfumada, com a madrugada ainda distante e as árvores silenciosas, a


essência era a beleza. Mas essa essência não é passível de experiência; a experiência tem de cessar,
pois só faz reforçar o conhecido. O conhecido nunca é a essência.
A meditação nunca é a experiência esperada; é não só o fim da experiência, resposta ao
desafio, grande ou pequeno, mas a abertura da porta de um forno, cujo fogo tudo destrói, sem deixar
cinzas ou resíduos. Somos o que restou, sempre a dizer sim a milhares de ontens, uma série contínua
de infindáveis memórias, escolha e desespero. O eu, grande ou pequeno, é o padrão da existência,
com sofrimento sem fim.
Na chama da meditação, finda o pensamento; e, com ele, o sofrimento, pois nenhum dos dois
é amor. Sem amor, não há essência; sem ele, só há cinzas em que baseamos a nossa existência. É do
vazio que surge o amor.

***

Meditação é ação do silêncio.

***

Meditação não tem princípio nem fim; nela não há sucesso ou insucesso, acumulação ou
renúncia; trata-se de um movimento sem finalidade e, portanto, além do tempo e espaço.
Experienciá-la é negá-la, pois o experimentador está limitado pelo tempo e espaço, pela memória e o
reconhecimento. O fundamento da verdadeira meditação é aquela atenção passiva que é completa
libertação da autoridade e da ambição, da inveja e do medo. A meditação nada significa sem essa
liberdade, sem o autoconhecimento; enquanto houver escolha, não haverá autoconhecimento.
Escolha implica em conflito que impede a compreensão do que é. Divagar em alguma fantasia ou
crença romântica não é meditação; o cérebro tem de livrar de todo o mito, ilusão e segurança, e
encarar a sua falsidade. Sem distração, tudo se acha em movimento de meditação. A flor é a forma, o
aroma, a cor e a beleza que é toda ela. Despedace-a, de fato ou verbalmente, e não haverá flor; só a
lembrança do que foi, o que nunca é a flor. Meditação é a flor inteira em sua beleza, definhando e
vivendo.

***

Meditação é estar livre de pensamento e um movimento no êxtase da verdade.

***

Estava muito quieto naquela manhã bem cedo e nem um pássaro ou folha agitava-se. A
meditação, iniciada em profundezas incógnitas, prosseguia com intensidade e extensão crescentes,
moldava o cérebro
em total silêncio, removendo a profundidade do pensamento, desenraizando sentimentos e
esvaziando o cérebro do conhecido e sua sombra. Tratava-se de uma operação sem operador ou
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cirurgião; prosseguia como um cirurgião que operasse um câncer, extirpando todo o tecido
contaminado, por temor de que pudesse se espalhar de novo.
Essa meditação prosseguiu por uma hora pelo relógio. E era meditação sem meditador. O
meditador interfere com suas coisas estúpidas e vaidades, ambições e cobiça. O meditador é o
pensamento, alimentado por esses conflitos e ofensas, e que deve cessar totalmente na meditação.
Eis os fundamentos para a meditação.

***

Meditar é transcender o tempo. O tempo é a distância percorrida pelo pensamento em sua


busca de realização. O percurso é sempre ao longo da velha senda, recoberta com novas vestimentas,
vistas, etc., mas sempre a mesma estrada que leva a parte alguma - exceto à dor a ao sofrimento.
Só quando a mente transcende o tempo é que a verdade deixa de ser uma abstração. Então, a
alegria já não é mais uma idéia derivada do prazer, mas realidade não-verbal.
O esvaziamento da mente do tempo é o silêncio de verdade e vê-lo é fazer, de modo a não
haver divisão entre o ver e o fazer. No intervalo entre o ver e o fazer nasce o conflito, infelicidade e
confusão. E o que não tem tempo é eterno.

***
A madrugada demorava a vir, as estrelas ainda brilhavam e as árvores estavam recolhidas;
nenhum pássaro cantava, nem a corujinha que se agitou durante toda a noite, de árvore em árvore.
Tudo estava quieto, exceto pelo bramido do mar. Havia um cheiro de muitas flores, folhas
apodrecidas e chão úmido; o ar estava muito, muito calmo, e o cheiro por toda a parte. A terra
esperava pela madrugada e o raiar do dia; havia expectativa, paciência e uma estranha quietude. A
meditação prosseguiu com essa quietude, que era amor; não o amor de algo ou alguém, imagem,
símbolo, palavra ou retrato. Era simplesmente amor, sem sentimento. Era algo completo em si, nu,
intenso, sem raiz e direção. O som daquele pássaro ao longe era esse amor, que era direção e
distância e que lá se achava fora do tempo e sem palavras.
Não se tratava de uma emoção que desvanece e é cruel; o símbolo, a palavra podem ser
substituídos, mas a coisa não. Nua, era inteiramente vulnerável e, portanto, indestrutível. Tinha a
inabalável resistência daquela "outra coisa", o incognoscível, que vinha através das árvores e d'além
mar. Meditação era o som daquele pássaro, chamando do vazio, e o bramido do mar de encontro à
praia. O amor só se dá no completo vazio. A madrugada acinzentada lá estava, longe do horizonte, e
as árvores escuras estavam ainda mais intensamente escuras. Na meditação não há repetição, um
hábito continuado; tudo que é conhecido morre e o desconhecido floresce. As estrelas tinham se
desvanecido e as nuvens despertavam com a vinda do sol.

***

Meditação é um estado da mente que olha todas as coisas com total e completa atenção, e não
parcialmente.

***

Meditação é a destruição da segurança e nisto existe grande beleza, não das coisas arranjadas
pelo homem ou pela natureza, mas a que vem do silêncio. Este silêncio é o vazio de onde e para
onde todas as coisas fluem e têm o seu ser. É incognoscível; o intelecto e o sentimento não podem
abrir o caminho para ele; não há caminho para ele e qualquer método que a isso se proponha é
invenção de um cérebro ambicioso. Todos os caminhos e meios do eu calculista devem ser
totalmente destruídos; todo avanço ou retrocesso, a via do tempo, deve chegar a um fim, sem
amanhãs. Meditação é destruição; é um perigo para aqueles que desejam levar uma vida superficial,
fantasiosa e cheia de crendices.

***
15

A morte que a meditação produz é a imortalidade do novo.

***

É a coisa mais maravilhosa, se você dela se aproxima. Poderia entrar nesse assunto, mas a
descrição não é o descrito. Você deve aprender tudo isso observando-se - nenhum livro ou professor
pode lhe ensinar.
Não dependa de quem quer que seja, não se filie a organizações espirituais; temos de
aprender tudo por nós mesmos. E aí a mente descobrirá coisas inacreditáveis. Mas, para isso, não
deve haver fragmentação e, isto sim, imensa estabilidade, rapidez e mobilidade.
Para tal mente não existe tempo e, por isso mesmo, a vida possui um significado bem
diferente.

FIM

Estes escritos foram extraídos das seguintes fontes:

- Diário de Krishnamurti
- O Começo do Aprendizado
- O Despertar da Inteligência
- Além da Violência
- Você é o Mundo
- O Vôo da Águia
- A Questão do Impossível
- A Única Revolução
- Libertação do Conhecido
- Meditações 1969
- Palestras com Estudantes Americanos
1

Coração cheio mente vazia


Não há caminho para a verdade, ela tem que vir até você. A verdade só pode vir até você
quando sua mente e seu coração são simples, limpos, e existe amor em seu coração; não se seu
coração estiver cheio com as coisas da mente. Quando existe amor em seu coração, você não fala
sobre organizar fraternidade; você não fala sobre crença, você não fala sobre divisão ou sobre os
poderes que criam as divisões, você não precisa buscar reconciliação. Então, você é simplesmente
um ser humano sem um rótulo, sem um país. Isto significa que você precisa despir-se de todas
aquelas coisas e deixar a verdade surgir; e ela só pode vir quando a mente está vazia. Então, ela virá
sem ser convidada. Ela virá tão repentinamente como o vento.
Ela vem sem que você a espere, não quando você está observando, querendo. Ela está lá tão
de repente quanto a luz do sol, tão pura quanto a morte; mas para recebê-la o coração deve estar
cheio e a mente vazia. Agora você tem a mente cheia e o coração vazio.

Mudança deliberada não é mudança nenhuma


Na própria ação da mudança individual, certamente o coletivo também mudará. Elas não são
duas coisas separadas uma oposta a outra, o individual e o coletivo, apesar de certos grupos políticos
tentarem separá-las e tentarem forçar o indivíduo a se adaptar ao assim chamado coletivo.
Se nós pudéssemos desembaraçar todo o problema da mudança, como produzir uma
mudança no indivíduo e o que aquela mudança implica, então, talvez, no próprio ato de escutar,
participar na investigação, poderia surgir uma mudança que ocorre sem sua vontade. Para mim, uma
mudança deliberada, uma mudança que é compulsória, baseada em disciplina, em conformidade, não
é mudança nenhuma. Força, influência, alguma nova invenção, propaganda, um temor, um motivo
que o compele a mudar - isto não é mudança nenhuma. E, apesar de que você possa intelectualmente
concordar muito facilmente com isto, eu lhe afirmo que penetrar na natureza real da mudança sem
um motivo é muito extraordinário.

Fora do campo do pensamento


Você mudou suas idéias, mudou seu pensamento, mas o pensamento é sempre condicionado.
Seja o pensamento de Jesus, Buda, X, Y ou Z, ainda é pensamento e, portanto, um pensamento pode
estar em oposição a outro pensamento; e quando há oposição, um conflito entre dois pensamentos, o
resultado é uma continuidade modificada do pensamento. Em outras palavras, a mudança ainda está
dentro do campo do pensamento, e mudança dentro do campo do pensamento não é mudança
nenhuma. Uma idéia ou conjunto de idéias foi meramente substituído por outro. Vendo todo este
processo, é possível largar o pensamento e produzir uma mudança fora do campo do pensamento?
Toda a consciência, certamente, seja ela do passado, do presente, ou do futuro, está dentro do campo
do pensamento, não dentro dele, e a mente só pode ocorrer fora do campo do pensamento, não
dentro dele, e a mente só pode largar o campo quando ela vê as fronteiras, os limites do campo, e
entende que qualquer mudança dentro do campo não é mudança nenhuma. Esta é a meditação real.

A mudança real
Uma mudança só é possível do conhecido para o desconhecido, não do conhecido para o
conhecido. Por favor, reflitam sobre isto comigo. Na mudança do conhecido há autoridade, há uma
visão hierárquica da vida - "você sabem eu não sei. Portanto, eu venero você, eu crio um sistema, eu
sigo um guru, eu sigo você porque você está me dando uma certeza de conduta que irá produzir o
resultado, o sucesso". O sucesso é o conhecido. Eu sei o que é ter sucesso. Isto é o que eu quero.
Assim, nós procedemos do conhecido para o conhecido no qual a autoridade tem que existir - a
autoridade da sanção, a autoridade do líder, garantir o sucesso, o sucesso em meu esforço, na
2
mudança, de modo que eu serei feliz, eu terei o que eu quero. Não é este o motivo que a maioria de
nós tem para mudar? Por favor, observem de fato seu próprio pensar, e vocês verão os caminhos de
sua própria vida e conduta... Quando vocês olham para isto, acham que é mudança? Mudança,
revolução, é algo do conhecido para o desconhecido na qual não há autoridade, na qual pode haver
fracasso total. Mas, se você tem certeza do que você irá alcançar, você terá sucesso, você será feliz,
você terá vida eterna, então, não há problema. Então, você busca o bem conhecido curso de ação,
que é você próprio estando sempre no centro das coisas.

Pode um ser humano mudar?


Já devemos nos ter perguntado, estou bem certo, se de fato mudamos. Eu sei que
circunstâncias exteriores mudam; nós casamos, divorciamos, temos filhos; há a morte, um emprego
melhor, a pressão de novas invenções, e assim por diante. Exteriormente há uma tremenda revolução
em andamento na cibernética e na automação. Já devemos nos ter perguntado se é de fato possível
mudarmos, não em relação aos eventos exteriores, não uma mudança que seja uma mera repetição
ou uma continuidade modificada, e sim uma revolução radical, uma mutação total da mente. Quando
compreendemos, como devemos ter notado dentro de nós mesmos, que de fato não mudamos,
ficamos terrivelmente deprimidos, ou fugimos de nós mesmos. Assim, surge a inevitável questão:
pode de fato haver mudança? Nós retornamos a uma época em que éramos jovens e aquilo retorna
para nós de novo. Há de fato uma mudança nos seres humanos? Você mudou de fato? Talvez tenha
havido uma modificação na periferia, mas profundamente, radicalmente, você mudou? Talvez nós
não queiramos mudar, porque estamos bem confortáveis.
Eu quero mudar. Eu vejo que sou terrivelmente infeliz, deprimido, feio, violento, com um
ocasional lampejo de algo diferente do mero resultado de um motivo; e eu exercito minha vontade
para fazer algo a respeito disto. Eu digo que devo ser diferente, eu devo largar este ou aquele hábito,
eu devo pensar de modo diferente; eu devo agir de um modo diferente, eu devo ser mais isto e
menos aquilo. Fazemos um tremendo esforço e no final ainda é um artigo inferior; deprimidos, feios,
brutais, sem nenhum senso de qualidade. Assim, nós então nos perguntamos se há de fato mudança.
Pode um ser humano mudar?

Transformação sem motivo


Como vou me transformar? Eu vejo a verdade - pelo menos, eu vejo algo nisto - que uma
mudança, uma transformação, deve começar num nível que a mente, tanto a consciente quanto a
inconsciente, não pode alcançar, porque minha consciência como um todo está condicionada. Assim,
o que devo fazer? Eu espero estar tornando claro o problema. Se eu puder colocá-lo de uma maneira
diferente... Pode a mente, tanto a consciente quanto a inconsciente, ser livre da sociedade? -
sociedade sendo toda a educação, a cultura, a norma, os valores, os padrões. Porque se ela não for
livre, então, qualquer mudança que ela tentar produzir dentro daquele estado condicionado ainda
será limitada e, portanto, não será mudança nenhuma.
Assim, posso olhar sem qualquer motivo? Pode minha mente existir sem nenhum incentivo,
sem nenhum motivo para mudar ou não mudar? Porque qualquer motivo é o resultado da reação de
uma cultura particular, nasceu de um condicionamento particular. Assim, pode minha mente ser livre
de uma dada cultura na qual eu fui criado? Esta é realmente uma questão muito importante. Porque
se a mente não for livre da cultura na qual ela foi nutrida, certamente o indivíduo nunca poderá estar
em paz, nunca poderá ter liberdade. Seus deuses e seus mitos, seus símbolos e todos os seus esforços
são limitados, pois eles ainda estão dentro do campo da mente condicionada. Não importa que
esforços ele faz, ou não faz, dentro daquele campo limitado, eles são realmente fúteis no sentido
mais profundo desta palavra. Pode haver uma decoração melhor da prisão, mais luz, mais janelas,
comida melhor, mas ainda é a prisão de uma cultura particular.
The book of Life - Daily Meditations with Krishamurti
3
A verdade é um estado de ser
Assim, não há caminho para a verdade, e não existem duas verdades. A verdade não é do
passado nem do presente, ela é atemporal; e o homem que cita a verdade do Buda, do Shankara, do
Cristo, ou que meramente repete o que eu estou dizendo, não encontrará a verdade, porque repetição
não é a verdade. A repetição é uma mentira. A verdade é um estado de ser que surge quando a mente
- que procura dividir, ser exclusiva, que só pode pensar em termos de resultados, de realização -
findou. Somente então existirá a verdade.
A mente que está se esforçando, disciplinando-se de modo a alcançar um fim, não pode
conhecer a verdade, porque o fim é sua própria projeção, e a busca daquela projeção, não importa
quão nobre, é uma forma de auto-adoração. Tal pessoa está adorando a si próprio, e, portanto, não
pode conhecer a verdade. A verdade só pode ser conhecida quando nós entendemos todo o processo
da mente, ou seja, quando não há luta.

A verdade não tem moradia


A verdade é um fato e um fato só pode ser entendido quando as várias coisas que foram
colocadas entre a mente e o fato são removidas. O fato é sua relação com as propriedades, com sua
esposa, com os seres humanos, com a natureza, com as idéias; enquanto você não entender o fato das
relações, sua busca por Deus meramente aumenta a confusão, porque ela é uma substituição, uma
fuga, e, portanto, não tem significado. Enquanto você dominar sua esposa ou ela o dominar,
enquanto você possuir e for possuído, você não pode conhecer o amor; enquanto você estiver
suprimindo, substituindo, enquanto você for ambicioso, você não pode conhecer a verdade. Só
conhecerá a verdade aquele que não está buscando, que não está lutando, que não está tentando
alcançar um resultado... A verdade não é contínua, ela não tem moradia, ela só pode ser vista de
momento a momento. A verdade é sempre nova, portanto, atemporal. O que foi verdade ontem não é
verdade hoje, o que é verdade hoje não é verdade amanhã. A verdade não tem continuidade. É a
mente que quer tornar a experiência que ela chama verdade contínua, e tal mente não conhecerá a
verdade. A verdade é sempre nova; ela é ver o mesmo sorriso, e ver aquele sorriso de maneira nova;
ver a mesma pessoa, e ver aquela pessoa de maneira nova, ver as mesmas palmeiras oscilantes de
maneira nova, relacionar-se com a vida de maneira nova.

Não há guia para a verdade


Será Deus encontrado através do buscá-lo? Pode você procurar o que não pode ser
conhecido? Para encontrar, você precisa saber o que está procurando. Se você busca para encontrar,
o que você encontrar será uma autoprojeção; será o que você deseja, e a criação do desejo não é a
verdade. Buscar a verdade é negá-la. A verdade não tem moradia fixa, não há caminho, nenhum guia
para ela, e a palavra não é a verdade. A verdade será encontrada numa estrutura particular, num
clima especial, entre certas pessoas? Ela está aqui e não lá? É aquela pessoa o guia para a verdade e
não uma outra? Existe absolutamente um guia? Quando a verdade é buscada, o que é encontrado só
pode ser fruto da ignorância, pois a própria busca nasce da ignorância. Você só pode procurar a
realidade; você deve cessar para a realidade existir.

A verdade é encontrada de momento a momento


A verdade não pode ser acumulada. O que é acumulado está sempre sendo destruído; ele
perde o viço. A verdade não pode nunca perder o viço, porque ela só pode ser encontrada momento a
momento em cada pensamento, em cada gesto, num sorriso, em lágrimas. E se você e eu pudermos
encontrá-la e vivê-la - o próprio viver é encontrá-la - então nós não nos tornaremos propagandistas;
nós seremos seres humanos criativos - não seres perfeitos, mas seres humanos criativos, o que é
amplamente diferente.
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O verdadeiro revolucionário
A verdade não é para aqueles que são respeitáveis, nem para aqueles que desejam auto-
expansão, autopreenchimento. A verdade não é para aqueles que estão buscando segurança,
permanência, pois a permanência que eles buscam é meramente o oposto da impermanência.
Estando presos na rede do tempo, eles buscam aquilo que é permanente, mas a permanência
que eles buscam não é a real, porque o que eles buscam é o produto de seu pensamento. Portanto,
um homem que deseja descobrir a realidade deve parar de buscar - o que não significa que ele deve
se contentar com o que é. Pelo contrário, um homem que está decidido a descobrir a verdade deve
ser interiormente um verdadeiro revolucionário. Ele não pode pertencer a nenhuma classe, a
nenhuma nação, a nenhum grupo ou ideologia, a nenhuma religião organizada; pois a verdade não
está no templo nem na igreja, a verdade não é para ser encontrada nas coisas feitas pela mão ou pela
mente. A verdade só surge quando as coisas da mente e da mão são colocadas de lado, e este colocar
de lado as coisas da mente e da mão não é uma questão de tempo. A verdade vem para aquele que
está livre do tempo, que não está usando o tempo como um meio de auto-expansão. Tempo significa
a memória de ontem, a memória de sua família, de sua raça, de seu caráter particular, da acumulação
de sua experiência que caracteriza o "eu" e o "meu".

Ver a verdade no falso


Você pode concordar superficialmente quando ouve dizer que o nacionalismo, com toda sua
comoção e interesse revestido, conduz à exploração e à colocação do homem contra o homem; mas
realmente libertar sua mente da mesquinhez do nacionalismo é outro assunto. Ser livre, não apenas
do nacionalismo, mas também de todas as conclusões de religiões organizadas e sistemas políticos, é
essencial se a mente quer ser jovem, nova, inocente, isto é, estar num estado de revolução; e somente
uma tal mente pode criar um novo mundo - não os políticos, que estão mortos, não os sacerdotes,
que estão presos em seus próprios sistemas religiosos.
Assim, feliz ou infelizmente para você, você ouviu algo que é verdadeiro; e se você
meramente o ouviu e não está ativamente perturbado de modo que sua mente começa a se libertar de
todas as coisas que a estão tornando estreita e torcida, então, a verdade que você ouviu se tornará um
veneno. Certamente a verdade se torna um veneno se ela é ouvida e não atua na mente, como o
infeccionar de uma ferida.
Mas, descobrir por si próprio o que é verdadeiro e o que é falso, e ver a verdade no falso, é
deixar esta verdade operar e gerar sua própria ação.

O DESCOBRIMENTO DO AMOR
Mas, a beleza pura não pode ser partilhada, porque vós não podeis possuí-la, nem eu
também. Ela não é nenhum objeto de uso pessoal; não é um artigo que vós ou eu possamos possuir e
repartir com o outro. A beleza está simplesmente presente, como o poente, como a montanha, como
o rolar do rio, como a quietude vespertina. Porque a beleza está presente, podeis olhá-la e deleitar-
vos com ela; mas não podeis reparti-la com outra pessoa, que deve achar-se também num profundo
estado de percebimento, ser igualmente sensível, inteligente. Porque a beleza não pode ser
partilhada, porém existe para ser admirada, para a fruirmos. Existe para regalo, deleite, de cada um
de nós.
Assim, quando empregarmos a palavra "compartilhar", ela geralmente que um possui e outro
não possui, que eu tenho uma coisa e outro não a tem. Essa atitude, esse sentimento de divisão
reflete a atitude hierárquica ante a vida: o comandante e o soldado raso; o Papa e o sacerdote
comum; o Cardeal de vestes suntuosas e o simples monge, coberto de um pano preto; o homem que
sabe e o homem que não sabe. É essa atitude que cria a autoridade, a ambição, a luta, que causa
infinitos sofrimentos e atribulações.
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Escutai com toda atenção, porque vamos tratar de algo que não pode ser repartido e, por
conseguinte, não admite co-participação. Deveis compreender verdadeiramente esse mal terrível - se
posso usar tal palavra – da divisão hierárquica da vida, em virtude da qual um sabe e outro não sabe.
A verdade de modo nenhum pode ser dividida em "superior" e "inferior"; por conseguinte, não
admite autoridade, não admite nenhuma atitude hierárquica. A divisão hierárquica da vida é uma
coisa venenosa, aterradora.
Assim, o que nesta manhã vamos fazer não é compartilhar, porém, sim, investigar - vós e eu;
vamos penetrar juntos numa coisa que desconhecemos.
Peço-vos não fiqueis na expectativa do que eu vá ensinar-vos alguma coisa, ou repetir
convosco alguma coisa que não tendes; não espereis de minha parte o esclarecimento ou a liberdade.
Ninguém pode dar-vos liberdade, ninguém pode reparti-la convosco. Mas, quase todos estamos
habituados a essa atitude, segundo a qual uns dão e outros recebem, atitude essa que cria uma
divisão na vida e, por conseguinte, a autoridade com todos os males concomitantes.
Em verdade, não existe seguidor e guia, não há instrutor nem discípulo; e essa é uma coisa
maravilhosa se nós mesmos a compreendemos. Nela há grande beleza, liberdade, o fim do
sofrimento - porquanto significa que devemos trabalhar, investigar, penetrar, destruir tudo o que é
falso e, desse modo, descobrir diretamente.
Do livro "O DESCOBRIMENTO DO AMOR", de Krishnamurti, Ed. Cultrix.

Cortando as raízes da Mediocridade


É sempre difícil manter-me simples e claro. O mundo adora o sucesso, quanto maior, melhor;
quanto maior a audiência, maior o orador; os edifícios colossais, os carros, os aviões, e as pessoas. A
simplicidade se perdeu. As pessoas de sucesso não são as que estão construindo um mundo novo.
Ser um revolucionário real requer uma mudança completa de coração e mente, e tão poucos querem
se libertar. A pessoa corta as raízes superficiais; mas para cortar as profundas raízes que alimentam a
mediocridade, o sucesso, é preciso algo mais que palavras, métodos, compulsões. Parece que esses
revolucionários são poucos, mas eles são os construtores reais - o resto trabalha em vão.
"Cartas a uma jovem amiga", pela editora Terra sem Caminho – página 21

Quando há escuta
Nós estamos conversando como dois amigos, sentados em um bosque, na quietude, pássaros
cantando, a luz atravessando a folhagem e salpicando o chão, um senso de apreciação da beleza, e
quando você escuta dessa maneira, o milagre acontece - quando você escuta.
É como lançar sementes, e se a semente é forte, cheia de vida, saudável, e se o terreno está
preparado adequadamente, ela inevitavelmente cresce.
"Cartas a uma jovem amiga", pela editora Terra sem Caminho – página 77

A compreensão de nossas ânsias e desejos ocultos


Como é estranho o desejo de se exibir, de ser alguém! Invejar é odiar, e a vaidade corrompe.
Como é difícil a simplicidade e a autenticidade! A autenticidade é, em si, uma tarefa das mais
árduas, ao passo que o desejo de se tornar alguém oferece pouca dificuldade.
É muito mais fácil fingir ou representar (personalidade = mascara), mas é extremamente
complexo sermos aquilo que somos; e isso, porque estamos sempre mudando, nunca somos o
mesmo (fluidez psicológica = movimento do desejo = pensamento), e a cada instante revela uma
nova faceta, uma nova dimensão e profundidade. Não podemos ser todas estas coisas ao mesmo
6
tempo, pois cada instante trás consigo algo novo. Portanto, se formos inteligentes, abriremos mão da
pretensão de sermos alguém ou alguma coisa. Podemos estar certos que somos muito sensíveis e eis
um acidente ou um pensamento fugaz nos mostra o contrário; ou, então, podemos considerar-nos
talentosos, cultos, e agudo sento estético e dignos, mas, de repente, ao dobrarmos uma esquina,
percebemos o quanto somos ambiciosos, invejosos, carentes, brutais e ansiosos. Somos tudo isso, de
momento a momento, e, no entanto, desejamos a continuidade e a permanência daquilo que nos
traga lucro e prazer. E enquanto buscamos o lucro e o prazer todas as demais formas do nosso ego
não cessam de exigir preenchimento.
Tornamo-nos assim um campo de batalha onde a ambição, trazendo prazer e dor, sai vitoriosa,
com sua inveja e medo. (...)
Portanto é extremamente difícil sermos o que somos; se estivermos despertos, sabemos o
quanto isso e doloroso e verdadeiro. Ao percebermos este fato, entregamo-nos ao trabalho, a uma
crença, a nossos fantásticos ideais e meditações. Aquelas alturas, já estão velhos e prontos para
morrer, se é que ainda não morremos interiormente. Deixar tudo isso de lado, libertando-nos da
contradição e do eterno sofrimento e renunciar a qualquer forma de preenchimento ou realização
pessoal, é o que de mais natural e inteligente nos cumpre fazer. Mas, para que procedamos assim,
para que deixemos de ser alguém, é preciso desvendar a nossa face oculta, expô-la sem medo, a fim
de a compreendermos. A compreensão de nossas ânsias e desejos ocultos vem da plena consciência
deles, o que é também indispensável perante a morte; desta forma, o puro ato de ver destrói aquela
estrutura psicológica, libertando-nos do sofrimento e do desejo de ser alguém. Não ser alguém não
significa um estado interior negativo; o próprio ato de negarmos aquilo que somos é uma atitude
realmente positiva, e não uma reação, que em verdade é inação; é desta inação que se origina o
sofrimento. Em tal negação reside a própria liberdade. Desta ação positiva nasce incrível energia;
idéias e pensamentos dissipam energia. Idéia é tempo (é ego, é estrutura psicológica), e viver no
tempo é viver na desintegração e no sofrimento.
Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Madrasta 27.11.61 pág. 165/166

O importante é a destruição
O importante é a destruição, não a mudança; esta é apenas uma continuidade modificada do
que foi. Todas as reformas sociais são meras reações, uma continuidade modificada do que sempre
existiu. Essa mudança não destrói as raízes do egocentrismo. A destruição no sentido em que
empregamos a palavra, é sem motivo; é uma ação que não visa objetivos nem resultados. (página 10)
... A destruição é essencial. Não de edifícios e coisas, mas de todos os mecanismos de defesa
psicológica adotada pelo homem, dos seus deuses, de suas crenças, da dependência de cunho
religioso, das experiências, do conhecimento, etc. A criação só é possível quando tudo isso deixar de
existir. Ela surge do estado de liberdade. Ninguém pode ajudar-nos a destruir essas defesas; isso só é
possível através do autoconhecimento. Reformas sociais ou econômicas acarretam mudanças
superficiais de maior ou menor alcance, mas sempre dentro do limitado campo do pensamento. Para
que ocorra a revolução total, o cérebro tem de renunciar à sua intima e secreta estrutura de
autoridade, de inveja, do medo, e assim por diante (que é a mesma estrutura psicológica da
sociedade) (página 11).
Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Madrasta 27.11.61

Não se pode definir o sagrado


Uma pedra no templo, uma imagem na igreja, ou o símbolo, dada disso é sagrado. Eles são
santificados pelo homem, como objetos de adoração, nascida de seus intrincados anseios, temores e
7
aspirações. Tal idolatria, porém, ainda se encontra no campo do pensamento; provém dele, mas no
pensamento nada existe de novo ou santificado. O pensamento pode reunir um emaranhado
de sistemas, dogmas, crenças, imagens e símbolos, porém suas projeções são tão sagradas quanto os
projetos para construção de uma casa, ou o desenho de um novo avião. Tudo isso se acha na área do
pensar e nada existe de sagrado ou místico nesta atividade. O pensamento é matéria e pode ser
transformado em qualquer coisa bela ou feia. Existe, porém, o sagrado que não vem do pensamento,
nem de um sentimento por ele reavivado. Não é reconhecível pelo pensar, nem pode ser por ele
utilizado ou concebido. A palavra ou o símbolo, não pode definir o sagrado. Ele é incomunicável. É
um fato.Um fato para se ver, mas o ato de ver não se processa através da palavra. Quando se
interpreta um fato, ele deixa de ser um fato; torna-se algo inteiramente diferente. O "ver" é da mais
alta importância. Encontra-se fora do tempo-espaço, é imediato e instantâneo. E, o que se vê é
sempre novo. Não existe repetição nem processo gradual do tempo. O sagrado prescinde do
adorador, do observador que sobre ele medita.
Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Roma 28.06.61 pág. 15)

***

AUTOCONHECIMENTO
Em meio a tanta confusão e sofrimento, é essencial encontrar um entendimento criativo de nós
mesmos, pois sem ele nenhum relacionamento é possível. Somente através do pensar correto pode
haver entendimento. Nem líderes, nem um novo conjunto de valores, nem um projeto pode produzir
este entendimento criativo; somente através do nosso próprio esforço correto pode haver
entendimento
correto.
Como é possível então encontrar este entendimento essencial? De onde começaremos a
descobrir o que é real, o que é verdadeiro, confusão e miséria? Não é importante descobrirmos por
nós mesmos como pensar corretamente sobre a guerra e a paz, sobre a condição econômica e social.
sobre nosso relacionamento com os nossos companheiros? Certamente existe uma diferença entre o
pensar correto e o pensamento correto e condicionado. Podemos ser capazes de produzir em nós
mesmos pensamento correto imitativamente, mas tal pensamento não é o pensar correto. O
pensamento correto / condicionado é não-criativo. Mas quando soubermos como pensar
corretamente por nós mesmos - que é ser vivo, dinâmico - então é possível produzir uma cultura
nova e mais feliz.
Gostaria de, durante estas palestras, desenvolver o que me parece ser o processo do pensar
correto, para que cada um de nós seja realmente criativo - e não meramente fechado em uma série de
idéias e preconceitos. Como vamos então começar a descobrir por nós mesmos o que é o pensar
correto? Sem o pensar correto não é possível a felicidade. Sem o pensar correto, nossas ações, nosso
comportamento, nossos afetos, não têm base.
O pensar correto não é para ser descoberto através dos livros, através do assistir a umas poucas
palestras, ou por escutar meramente algumas idéias de pessoas sobre o que é o pensar correto. O
pensar correto é para ser descoberto por nós mesmos através de nós mesmos. O pensar correto vem
com o autoconhecimento. Sem autoconhecimento não existe pensar correto. Sem conhecer-se a si
mesmo, o que você pensa e o que sente não pode ser verdadeiro.
A raiz de todo entendimento encontra-se no entendimento de si mesmo. Se você pode
descobrir quais são as causas de seu pensamento-sentimento, e a partir desta descoberta, saber como
pensar-sentir, então existe o começo do entendimento. Sem conhecer-se a si mesmo, a acumulação
de idéias, a aceitação de crenças e teorias não têm base. Sem conhecer-se a si mesmo, você sempre
será pego na incerteza, dependendo do humor, das circunstâncias. Sem entender-se a si mesmo
completamente, você não pode pensar corretamente. Com certeza isto é óbvio. Se eu não sei quais
são os meus motivos, minhas intenções, meu "background" (fundo), meus pensamentos-sentimentos
particulares, como é que posso concordar ou discordar de outra pessoa? Como posso avaliar ou
estabelecer minha relação com outra pessoa? Como posso descobrir qualquer coisa da vida se não
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conheço a mim mesmo? E conhecer a mim mesmo é uma tarefa enorme, que requer observação
constante, uma vigilância meditativa.
Esta é nossa primeira tarefa, mesmo antes do problema da guerra e da paz, dos conflitos
econômicos e sociais, da morte e da imortalidade. Estas questões vão surgir, elas hão de surgir, mas
na descoberta de nós mesmos, no entendimento de nós mesmos, estas questões serão respondidas
corretamente. Assim, aqueles que são realmente sérios nestas questões devem começar por eles
mesmos, a fim de entender o mundo do qual são uma parte. Sem entender-se a si mesmo você não
pode entender o todo.
O autoconhecimento é o começo da sabedoria. É cultivado pela busca individual de si mesmo.
Não estou colocando o indivíduo em oposição à massa (ao coletivo).
Eles não são antíteses. Você, o indivíduo, é a massa, é o resultado da massa. Se entrar dentro
disto profundamente, você irá descobrir por si mesmo. que você é tanto o coletivo quanto o
individual. É como um córrego que está constantemente fluindo, deixando pequenos redemoinhos, e
a estes redemoinhos chamamos de individualidade, mas eles são o resultado desse constante fluxo de
água. Seus pensamentos-sentimentos, aquelas atividades mentais-emocionais, não são o resultado do
passado, do que chamamos a multiplicidade? Você não tem pensamentos-sentimentos similares aos
do seu vizinho?
Assim, quando falo de indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa, ao coletivo. Ao
contrário, quero remover este antagonismo. Este antagonismo que coloca em oposição a massa e
você, indivíduo, cria confusão e conflito, crueldade e miséria. Mas se pudermos entender como o
indivíduo, você, é parte do todo, não apenas misticamente, mas realmente, então nos libertaremos de
modo feliz e espontâneo, da maior parte do desejo de competir, de ter sucesso, de iludir, de oprimir,
de ser cruel, ou de se tomar um seguidor ou um líder. Então veremos o problema da existência de
modo diferente. E é importante entender isto profundamente. Enquanto nos virmos como indivíduos,
separados do todo, competindo, obstruindo, em oposição, sacrificando o coletivo pelo particular, ou
sacrificando o particular pelo coletivo, todos aqueles problemas que surgem deste conflitante
antagonismo não terão solução feliz e duradoura, pois são o resultado do pensar-sentir incorreto.
Agora, quando falo sobre o indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa.
O que eu sou? Sou um resultado - sou o resultado do passado, de inúmeras camadas do
passado, de uma série de causas-efeitos. E como posso estar em oposição ao todo, ao passado,
quando sou o resultado daquilo tudo? Se eu, que sou a massa (o coletivo), se não entender a mim
mesmo, não apenas entender o que está fora da minha pele, objetivamente, mas subjetivamente,
dentro da pele, como posso entender outra pessoa, o mundo? Entender a si mesmo requer desapego
amável e tolerante. Se você não entender a si mesmo, não entenderá nada mais. Pode ter grandes
ideais, crenças e fórmulas, mas elas não terão realidade. Serão enganos.
Assim, você deve conhecer-se a si mesmo para entender o presente - e através do presente, o
passado. Do presente conhecido, as camadas escondidas do passado são descobertas, e esta
descoberta é libertadora e criativa.
O autoconhecimento requer um estudo objetivo, amável, desapaixonado de nós próprios – nós
próprios sendo o organismo como um todo, nosso corpo, nossos sentimentos, nossos pensamentos.
Eles não estão separados, mas interligados. É somente quando entendemos o organismo como um
todo que podemos ir além – e podemos descobrir coisas mais adiante, maiores, mais vastas. Mas sem
este entendimento primário, sem colocar o alicerce correto para o pensar correto, não podemos
prosseguir para alturas maiores.
Torna-se essencial produzir em cada um de nós a capacidade de descobrir o que é verdadeiro,
pois o que é descoberto é libertador, criativo. Pois o que é descoberto é verdadeiro. Ou seja, se
meramente nos conformarmos a um padrão do que deveríamos ser, ou cedermos a um anseio,
produziremos certos resultados conflitantes, confusos. Mas no processo do nosso estudo de nós
mesmos, estamos numa viagem de autodescoberta, o que traz alegria.
Existe uma certeza no pensar-sentir negativo em vez do pensar-sentir positivo.
De uma maneira positiva supomos o que somos, ou cultivamos positivamente nossas idéias em
relação a outras pessoas, ou em relação a nossas próprias formulações.
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E, portanto, dependemos de autoridade, de circunstâncias, esperando com isto estabelecer uma
série de idéias e ações positivas. Ao passo que se você examina, verá que existe concordância na
negação; existe certeza no pensar negativo, que é a mais alta forma de pensar. Quando você
descobrir a negação verdadeira e a concordância na negação, então poderá construir mais adiante no
positivo.
A descoberta que reside no autoconhecimento é árdua, pois o começo e o fim estão em nós.
Buscar felicidade, amor, esperança fora de nós, leva-nos à ilusão, ao sofrimento; encontrar
felicidade, paz, alegria dentro (de nós) requer autoconhecimento. Somos escravos das pressões
imediatas e exigências do mundo, e somos desviados por tudo isso e dissipamos nossas energias em
tudo isso, e assim temos pouco tempo para estudar a nós mesmos. Estarmos profundamente cientes
de nossos motivos, de nossos desejos de alcançar, de vir-a-ser, exige constante atenção interna. Sem
o entendimento de nós mesmos, mecanismos superficiais de reforma social e econômica, mesmo que
necessários e benéficos, não irão produzir unidade no mundo, mas somente maior confusão e
miséria.
Muitos de nós pensamos que a reforma econômica de uma ou outra forma vai trazer paz ao
mundo; ou que a reforma social, ou uma religião especializada conquistando todas as outras vai
trazer felicidade ao homem. Acredito que haja algo como oitocentas ou mais seitas religiosas neste
país, cada uma competindo, fazendo proselitismo. Vocês pensam que uma religião competitiva vai
trazer paz, unidade e felicidade à humanidade? Pensam que qualquer religião especializada seja o
Hinduísmo, o Budismo ou o Cristianismo, vai trazer paz? Ou devemos colocar de lado todas as
religiões especializadas e descobrir a realidade por nós mesmos? Quando vemos o mundo explodido
por bombas e sentimos os horrores que estão acontecendo nele; quando o mundo está fragmentado
por religiões, nacionalidades, raças e ideologias separadas, qual é a resposta a tudo isso? Não
podemos apenas continuar vivendo uma vida curta e morrendo - e esperar que algum bem, advenha
disso. Nós não podemos deixar isso para os outros – trazer felicidade e paz à humanidade, pois a
humanidade é nós mesmos, cada um de nós.
Aonde se encontra a solução, senão em nós mesmos? Descobrir a resposta real requer
profundo pensamento-sentimento e poucos de nós estão dispostos a resolver essa miséria. Se cada
um de nós considerar esse problema como jorrando de dentro - e não ser meramente conduzido
nessa confusão e miséria pavorosa, então iremos encontrar uma resposta simples e direta.
No estudo e, assim, no entendimento de nós mesmos, virá claridade e ordem. E só pode haver
claridade no autoconhecimento, que nutre o pensar correto. O pensar correto vem antes da ação
correta. Se nos tornarmos conscientes de nós mesmos e assim cultivarmos o autoconhecimento de
onde jorra o pensar correto, então criaremos um espelho em nós que refletirá, sem distorções, todos
os nossos pensamentos-sentimentos. Estar assim autoconscientes é extremamente difícil, já que
nossas mente estão acostumadas a divagar e a estar distraídas. Suas divagações, suas distorções são
de seu próprio interesse, suas próprias criações. No entendimento disto - e não meramente colocando
isto de lado - vem o autoconhecimento e o pensar correto. É apenas por inclusão e não por exclusão,
não por aprovação ou condenação ou comparação, que vem o entendimento.
Palestra de Krishnamurti realizada em Ojai, Califórnia, EUA, 1944. Trad. de Rachel
Fernandes

***

UMA DIMENSÃO DIFERENTE


Temos estado a falar sobre o caos no mundo, a extrema violência, a confusão, não só exterior
mas também interiormente. A violência é resultado do medo, mas já tratamos da questão do medo.
Penso que devíamos agora tratar de algo que poderá ser um pouco estranho para a maioria de vós,
mas que terá de ser considerado, e não meramente rejeitado, afirmando-se que é uma ilusão, uma
fantasia, ou outra coisa qualquer.
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Através da História, o homem -- vendo que a sua existência é muito curta, cheia de acidentes,
dor, morte inevitável -- sempre formulou uma idéia a que chamou Deus. Percebeu, como nós agora,
que a vida é transitória e quis experienciar algo que fosse imenso, supremo; algo não elaborado pela
mente ou pela emoção.
Quis penetrar num mundo completamente diferente, que transcendesse este mundo, -- que
estivesse para além de toda a infelicidade e aflição. E esperava encontrar esse mundo transcendente
através da busca. Devemos investigar este assunto de haver, ou não, uma Realidade -- não importa o
nome que se lhe possa dar -- que seja uma dimensão inteiramente diferente. Para penetrarmos na sua
profundidade, temos naturalmente de perceber que não chega só uma simples compreensão ao nível
verbal -- porque a descrição nunca é o descrito, a palavra nunca é a coisa. Poderemos nós entrar no
mistério -- se é que é um mistério isso a que o homem tem tentado chegar, invocando-o, agarrando-
se a isso, adorando-o, devotando-se a ele?
Sendo a vida aquilo que é -- muito superficial, vazia, tortuosa, sem grande sentido -- tenta-se
inventar um significado, dar-lhe um sentido. Se se tem uma certa habilidade mental, o significado e
o sentido dessa invenção tornam-se bastante complicados. E ao não encontrarmos a beleza, o amor,
ou o sentido da imensidade, isso pode tornar-nos cépticos, descrentes de tudo. É claro que é absurdo
e ilusório, sem significado, inventar uma ideologia, uma fórmula, afirmar que há Deus ou que não
há, quando a vida não tem qualquer significado -- o que é verdade, vivendo nós como vivemos.
Assim, não vamos nós agora inventar-lhe um sentido.
Era bom que pudéssemos fazer esta pesquisa juntos e descobrirmos, por nós próprios, se há,
ou não, uma Realidade que não seja uma mera invenção intelectual ou emocional, uma fuga. O ser
humano, através da História, tem afirmado que há uma Realidade para a qual temos que nos
preparar, pela qual temos de fazer certas coisas (disciplinarmo-nos, resistir a qualquer forma de
tentação, autocontrolar-nos, controlar o sexo, ajustarmo-nos a determinado padrão estabelecido pela
autoridade religiosa, pelos santos, etc.); ou devemos rejeitar o mundo, afastando-nos para um
mosteiro ou para alguma gruta onde possamos meditar, isolando-nos, para estarmos sozinhos e não
termos, assim, tentações.
Vê-se, naturalmente, o absurdo de uma tal luta, e que não temos possibilidade de fugir do
mundo, daquilo que é, do sofrimento, da loucura, e de tudo o que o homem tem descoberto no
campo científico.
Obviamente que temos de pôr de lado todas as teologias e crenças. Se assim procedermos,
então deixa de haver qualquer forma de medo.
Sabendo que a moralidade social não é moral mas imoral, percebemos que temos de ser
extraordinariamente morais porque, afinal, moralidade é apenas criar ordem, tanto dentro como fora
de cada um de nós; mas esta moralidade deve estar na ação, não sendo uma moralidade meramente
baseada em idéias ou conceitos, mas termos uma conduta verdadeiramente moral.
Será possível disciplinarmo-nos sem repressão, sem controle, sem fugas? A raiz da palavra
"disciplina" é "aprender", e não conformarmo-nos nem tornarmo-nos discípulos de alguém; não é
imitar ou reprimir, mas aprender. O próprio ato de aprender exige disciplina – uma disciplina que
não é imposta nem é acomodação a qualquer ideologia, nem é a dura austeridade do monge.
Contudo, sem uma profunda austeridade, a nossa conduta na vida diária apenas leva à desordem.
Podemos ver como é essencial ter completa ordem dentro de nós, tal como a ordem
matemática, que não é relativa, que não é comparativa, nem resulta da influência do meio.
Tem de se estabelecer uma conduta correta, para que a mente esteja em completa ordem.
Uma mente torturada, frustrada, moldada pelo que a rodeia, que se conforma à moral social
estabelecida é, em si própria, confusa; e uma mente confusa não pode descobrir o que é a Verdade.
Para a mente descobrir esse estranho mistério -- se tal coisa existe - - ela precisa de construir as
bases de uma conduta moral, o que não tem nada a ver com a moralidade social, uma conduta sem
medos e, portanto, livre. Só então -- depois de lançada esta base profunda -- a mente poderá
prosseguir no sentido de descobrir o que é meditação, essa qualidade de silêncio, de observação, no
qual o "observador" não existe. Se esta base de conduta correta não está presente na existência de
cada um, na sua ação, então a meditação tem muito pouco significado.
11
No Oriente há muitas escolas, muitos sistemas e métodos de meditação - - incluindo o Zen e
o Yoga -- e que foram trazidos para o Ocidente.
Temos de compreender muito claramente esta idéia de que através de um método, de um
sistema, ou do ajustamento a certo padrão ou tradição, a mente é capaz de descobrir essa Realidade.
Podemos ver como isso é absurdo, seja importado do Oriente ou inventado aqui no Ocidente.
Método implica conformismo, repetição; sugere que alguém alcançou uma certa
"iluminação", que manda: "Faz isto, não faças aquilo". E nós, que estamos ansiosos por atingir essa
Realidade, seguimos, conformamo-nos, obedecemos, praticamos aquilo que nos disseram, dia após
dia, como se fôssemos máquinas. Uma mente embotada e insensível, que não é muito inteligente, é
capaz de praticar um método tempo sem fim; vai-se tornando cada vez mais insensível,
estupidificada. Terá a sua própria "experiência" dentro dos limites do seu próprio condicionamento.
Alguns de vós talvez tenham estado no Oriente e ali estudado meditação. Existe toda uma
tradição por detrás disso. Na Índia, e por todo a Ásia, essa tradição "explodiu" nos tempos mais
antigos. Ainda hoje, ela prende a atenção. Livros sem fim têm sido escritos sobre ela. Mas qualquer
forma de tradição -- trazida do passado --, que é utilizada para se saber se existe uma Grande
Realidade, é obviamente um esforço perdido. A mente tem de estar liberta de toda a espécie de
tradição e preceitos espirituais; caso contrário, ficamos completamente privados de verdadeira
inteligência.
Então, o que é meditação, se ela não é uma meditação tradicional? -- e ela não pode ser
tradicional, ninguém no-la pode ensinar; não podemos seguir um determinado caminho e dizer: "Ao
longo deste caminho, ficarei a saber o que é meditação". Todo o sentido da meditação reside na
mente que se torna completamente quieta; quieta, não apenas no nível consciente, mas também nos
níveis mais profundos, secretos e escondidos da consciência; tão completamente quieta que o
pensamento fica silencioso e não anda a vaguear por todo o lado. Um dos ensinamentos da tradição
relativa à meditação, a abordagem tradicional de que estamos a falar, diz que o pensamento deve ser
controlado; mas isso tem que ser totalmente posto de lado, observando tudo isso de muito perto,
objetivamente e de modo não emocional. A tradição diz que temos de ter um guru, um instrutor, para
nos ajudar a meditar, que nos diga o que temos de fazer. O Ocidente tem a sua própria forma de
tradição, -- prece, contemplação e confissão. Mas em todo o princípio de que alguém sabe e nós não
sabemos, e que esse que sabe nos vai ensinar, nos vai dar a iluminação, nisso está implícita a
autoridade, o mestre, o guru, o salvador, o Filho de Deus, etc. Eles sabem, e nós não; dizem: "Segue
este método, este sistema, pratica-o todos os dias, e eventualmente chegarás "lá" -- se tivermos sorte.
Isto quer dizer, que estamos em luta conosco próprios durante todo o dia, tentando conformarmo-nos
a um padrão, a um sistema, tentando reprimir os nossos desejos, apetites, invejas, ciúmes, ambições.
E assim surge o conflito entre aquilo que somos e o que "deveríamos ser" de acordo com o sistema;
isto significa que há esforço; e a mente que está fazendo esforços nunca poderá estar quieta; através
do esforço a mente nunca pode tornar-se completamente tranqüila.
A tradição também diz que devemos concentrar-nos, para controlarmos o pensamento.
Concentrar-se é meramente resistir, é construir um muro à volta de si mesmo, para proteger uma
focagem sobre uma idéia, um princípio, uma imagem, ou o que quer que seja, excluindo tudo o mais.
A tradição afirma que temos de passar por isso, para encontrarmos aquilo que desejamos. Ela
também diz que não se deve ter relações sexuais, que não devemos olhar para este mundo, tal como
todos os santos, mais ou menos neuróticos, sempre aconselharam. E quando compreendemos (não
meramente ao nível verbal e intelectual, mas de fato) o que está envolvido em tudo isso -- e só
podemos compreendê-lo se não estivermos apegados a isso, e pudermos olhá-lo objetivamente --
então, abandonamo-lo completamente. E precisamos de fazê-lo porque, então, a mente, no próprio
ato de abandonar, se torna livre e, portanto, inteligente, atenta, não susceptível de se deixar prender
em ilusões.
Para meditar, no sentido mais profundo da palavra, temos de ser íntegros, morais. Não se
trata da moralidade de um padrão, de uma prática, ou da ordem social, mas sim da moralidade que
brota naturalmente, inevitavelmente, suavemente, quando começamos a compreender-nos a nós
próprios, quando estamos atentos aos nossos pensamentos e sentimentos, às nossas atividades,
desejos, ambições, etc. -- atentos sem qualquer escolha, observando apenas.
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Dessa observação nasce a ação reta, que não tem nada a ver com conformismo ou com uma
ação de acordo com um ideal. Então, quando isso existe profundamente em nós, com a sua beleza e
austeridade na qual não há nenhuma rigidez -- rigidez só existe quando há esforço -- quando
tivermos observado todos os sistemas, todos os métodos, todas as promessas e olhado para eles
objetivamente, sem gostar ou não- gostar, então podemos recusar tudo isso completamente, para que
a mente fique liberta do passado; então podemos prosseguir na descoberta do que é meditação.
Se não tivermos construído, de fato, os alicerces, podemos entreter-nos com a meditação,
mas isso não tem qualquer significado -- é como aquelas pessoas que vão para o Oriente à procura
de um instrutor que lhes diga como devem sentar-se, como respirar, o que fazer, etc., e que
regressam e escrevem um livro, o que é tudo uma pura insensatez.
Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão. A compreensão só é possível quando há observação sem um centro, o observador. Já
alguma vez observastes, olhastes bem, procurando descobrir o que é compreender? Compreender
não é um processo intelectual, não é uma intuição ou um sentir. Só se pode dizer "compreendo muito
claramente" quando há uma observação nascida de um silêncio total -- só então há verdadeira
compreensão. Quando afirmamos: "Compreendo isto ou aquilo", queremos dizer que a mente escuta,
em silêncio, sem concordar ou discordar; nesse estado escuta-se de uma forma completa -- e só então
há compreensão, e essa compreensão é ação interior. Não há compreender primeiro e só depois ação;
é algo simultâneo, é um só movimento. Assim, meditação – esta palavra está pesadamente carregada
de tradição -- é levar, sem esforço, sem qualquer forma de compulsão, a mente, incluindo o cérebro,
à sua mais alta capacidade, que é inteligência, que é ser extremamente sensível. O cérebro fica
silencioso; esse repositório do passado, que evoluiu durante milhares de anos e que está
incessantemente ativo -- esse cérebro fica tranqüilo. Será mesmo possível para o cérebro, que está
continuamente em reação, respondendo ao mais pequeno estímulo, de acordo com o seu
condicionamento, ficar tranqüilo? Os tradicionalistas dizem que ele pode ser aquietado, através de
uma respiração adequada e praticando "vigilância". Mas, de novo, isto levanta a questão: "Quem é a
entidade que controla, que pratica, que molda o cérebro?" Não será o pensamento, que diz, "Eu sou o
observador e vou controlar o cérebro, parar o pensamento"? O pensamento cria o pensador.
Será possível o cérebro estar completamente quieto? Faz parte da meditação descobrir isso,
em vez de sermos ensinados; ninguém nos pode dizer como fazê-lo. O nosso cérebro -- que está tão
pesadamente condicionado pela cultura, por toda a espécie de experiências, que é resultado de uma
longa evolução -- poderá ele estar tranqüilo? -- porque sem isso, seja o que for que ele veja ou
experiencie será distorcido, será traduzido de acordo com o seu condicionamento.
Que parte tem o sono na meditação, na vida? É uma questão muito interessante; se
investigarmos nós próprios, faremos grandes descobertas. Como dissemos no outro dia, os sonhos
são desnecessários. A mente, o cérebro, precisam de estar completamente despertos durante o dia --
atentos ao que se está a passar tanto dentro como fora de nós, sensíveis às reações interiores, ao que
se passa no exterior, com as suas tensões que provocam reações, atentos aos sinais do inconsciente --
e, no fim do dia, o cérebro precisa de considerar tudo isso. Se assim fizermos quando estivermos a
dormir, estaremos a aprender numa dimensão totalmente diferente; e isso faz parte da meditação.Se
assim não procedermos no fim do dia, o cérebro terá de trabalhar durante a noite, quando estivermos
a dormir, para trazer ordem a si próprio -- o que é óbvio.
Há a construção das bases da conduta, cuja ação é amor. Há o abandonar de todas as
tradições, para que a mente fique inteiramente livre e o cérebro completamente quieto. Se fizermos
isso, veremos que o cérebro é capaz de aquietar-se, não através de qualquer truque ou droga, mas
sim por meio dessa ativa e também passiva atenção que tivermos durante o dia. E se, no fim do dia,
examinarmos cuidadosamente o que aconteceu e assim criarmos ordem, então, durante o sono, o
cérebro está em silêncio, aprendendo, com um movimento diferente.
Assim, todo o corpo, o cérebro, a mente estão calmos, sem qualquer forma de distorção. E se
há, de fato, uma Realidade, só então a mente é capaz de a receber. Essa Imensidade, esse
Inominável, esse Transcendente -- se é que existe -- não pode ser convidado. E só uma mente assim
poderá ver a falsidade ou a verdade dessa Realidade.
13
Podemos perguntar: "Que tem tudo isto a ver com a nossa vida? Tenho de viver todos os
dias, ir para o escritório, lavar pratos, viajar num autocarro barulhento e a abarrotar de pessoas -- o
que tem a meditação a ver com tudo isto?" Mas, meditação e´, afinal, compreender a vida, a vida de
todos os dias, com toda a sua complexidade, aflição, sofrimento, solidão, desespero, medo, inveja,
vontade de se ser famoso, de ter sucesso -- compreender tudo isto é meditação.
Sem essa compreensão, a mera tentativa de um encontro com o mistério é totalmente
infrutífero, sem valor. É como uma vida e uma mente em desordem, a tentar chegar à ordem
matemática. A meditação tem tudo a ver com a vida; não é um mergulho num qualquer estado
emocional e "extático". Há um êxtase que não é prazer e que acontece apenas quando em nós
próprios há essa ordem matemática, que é total. A meditação é uma maneira de viver, todos os dias
-- só então aquilo que é imperecível, que não tem tempo, poderá surgir.
Interlocutor: Quem é esse observador que está consciente das suas próprias reações? Que
energia é usada?
Krishnamurti: Será que já olhamos para alguma coisa sem reação? Será que já olhamos uma
árvore, um rosto de mulher, uma montanha, uma nuvem, ou a luz sobre a água, só observando, sem
traduzir isso em "gosto" ou "não gosto", em prazer ou dor -- observando apenas? Numa tal
observação, quando se está mesmo atento, há algum observador? Fazei isso, não me pergunteis -- se
o fizerdes, descobrireis. Observai as reações, sem as julgar, sem as avaliar ou distorcer, estando
completamente atentos a todas as reações. Nessa atenção, vereis que não há nenhum observador,
nem pensador, nem experienciador.
Agora a segunda questão: para mudarmos alguma coisa em nós, para provocarmos uma
transformação, uma revolução na psique, que energia é precisa? Como se tem essa energia?
Habitualmente, temos energia mas em tensão, em contradição, em conflito; há energia no
confronto entre dois desejos, entre o que tenho de fazer e o que "deveria" fazer -- tudo isto consome
muita energia. Mas se não houver contradição de qualquer espécie, então teremos energia em
abundância.
Olhemos a nossa própria vida, olhemos, de fato, para ela: ela é contraditória; queremos ser
pacíficos, mas odiamos alguém; queremos amar, mas somos ambiciosos. Esta contradição cria
conflito, luta; esta luta é um desperdício de energia. Se não há qualquer contradição, temos imensa
energia para nos transformarmos.
Perguntamos: "Será possível não haver contradição entre "observador" e "observado", entre o
"experienciador" e a "experiência", entre amor e ódio? Será possível viver sem estas dualidades?" É
possível quando há apenas o fato, e nada mais -- o fato de que se odeia, de que se é violento, e não o
seu oposto, como idéia. Quando temos medo, desenvolvemos o oposto, a coragem, que é resistência,
contradição, esforço e tensão. Mas quando percebemos completamente o que é o medo e não
fugimos para o oposto, quando damos a nossa completa atenção ao medo, então não há apenas a sua
cessação, psicologicamente, mas também temos a energia que é precisa para o enfrentar.
Os tradicionalistas dizem: "Devemos ter esta energia, portanto, não tenhamos atividade
sexual, não sejamos mundanos, concentremo-nos, pensemos em Deus, fujamos do mundo, não nos
deixemos tentar" – tudo para se ter esta energia. Mas cada um de nós continua a ser uma criatura
humana, com apetites, ardendo com desejos sexuais, tendo necessidades biológicas, querendo passar
por isso, controlando, forçando, e tudo o mais -- portanto, dissipando energia. Mas se convivermos
com o fato e nada mais; se somos coléricos, compreendamos isso e não pensemos em "como não
sermos coléricos", investiguemos o fato, estejamos com ele, convivamos com ele, dando-lhe total
atenção -- veremos, então, que temos energia em grande quantidade. É esta energia que mantém a
mente lúcida e o coração aberto, havendo, assim, abundância de amor -- em vez de idéias ou de
sentimentalismo.
I.: O que quer dizer com êxtase, pode descrevê-lo? Disse que êxtase não é prazer; amor não é
prazer?
K.: Que é êxtase? Quando olhamos uma nuvem, a luz que a ilumina, há beleza. Beleza é
paixão. Para se reparar na beleza de uma nuvem ou na beleza da luz numa árvore, tem de haver
paixão, intensidade. Nesta intensidade, nesta paixão, não há qualquer sentimento de gostar ou não
gostar. O êxtase não é pessoal; não é teu nem meu, assim como o amor. Quando há prazer, ou é teu
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ou é meu. A mente meditativa tem o seu próprio êxtase -- que não pode ser descrito, nem ser posto
em palavras.
I.: Está a dizer que não há bom nem mau, que todas as reações são boas -- é isso?
K.: Eu não disse isso. Disse: "Observemos as nossas reações, não lhes chamemos boas ou
más". Quando dizemos que são boas ou más, estamos a criar contradição. Cada um de vós já alguma
vez olhou realmente a sua mulher -- desculpai a minha insistência -- sem a imagem que dela tem, a
imagem que foi construindo durante trinta ou mais anos? Cada um tem uma imagem um do outro;
são estas imagens que estão em relação, e não as pessoas. Estas imagens formam-se quando não se
está atento ao relacionamento -- é a desatenção que cria imagens. Poderá cada um de vós olhar a sua
mulher sem condenar, sem julgar, sem dizer que ela está certa ou errada, somente observar, sem a
intromissão de preconceitos? Então, vereis que há uma ação de natureza completamente diferente,
que nasce dessa observação.
Krishnamurti - Paris, Abril 24, 1969

***

A COMPREENSÃO DOS PROBLEMAS


Estamos interessados nos problemas humanos e não em filosofias e crenças. Preocupa-nos o
sofrimento do homem, sofrimento que atinge a maior parte de nós, a ansiedade, o medo, a esperança
e o desespero e a enorme desordem que existe por todo o mundo. Tudo isto nos diz respeito como
seres humanos porque, como tal, somos responsáveis por este caos colossal do mundo, somos
responsáveis pela desordem, pelos tumultos, pela guerra. Como seres humanos a viver neste mundo
em diferentes países e sociedades, somos realmente responsáveis por tudo o que se está a passar.
Penso que não compreendemos como esta responsabilidade é séria. Alguns de nós podem senti-la e
então querem fazer alguma coisa, juntar-se a um grupo particular ou a uma seita ou crença
determinada e dedicar as suas vidas a essa ideologia, a essa ação particular. Mas isso não resolve o
problema, nem anula a nossa responsabilidade.
Temos portanto de preocupar-nos primeiro com a compreensão de qual é o problema e não
com o que fazer; isso vem depois. Geralmente queremos fazer alguma coisa, vincular-nos a uma
determinada corrente de ação, e infelizmente isso conduz a um caos maior, a maior confusão e maior
desumanidade. Penso que temos de olhar para o problema como um todo e não para um dos seus
aspectos particulares, não para um dos deus fragmentos, para todo o problema do viver, o que
implica o emprego, a família, o amor, o sexo, o conflito, a ambição, a compreensão do que é a
morte; e também se existe algo chamado Deus, Verdade, ou qualquer outro nome que se lhe dê.
Temos de compreender a totalidade desta questão. Vai ser essa a nossa dificuldade porque estamos
muito acostumados a agir e a reagir perante um problema determinado e não a compreender que
todos os problemas humanos estão interligados. Assim, provocar uma completa revolução
psicológica parece muito mais importante do que uma revolução de caráter econômico ou social -
derrubar um determinado sistema, quer neste país, quer na França ou na Índia - porque os problemas
são muito mais vastos, muito mais profundos do que meramente tornar-se um ativista, ligar-se a um
grupo particular, ou recolher-se a um mosteiro para meditar, para aprender Zen ou Yoga.
Antes de fazerem perguntas, vamos primeiro olhar o problema. Não se trata de um assunto
que se vem ouvir durante uma hora e depois se esquece. Vamos ocupar-nos de problemas humanos.
Vós e eu teremos de trabalhar intensamente esta tarde. Não estais aqui meramente para colher
algumas idéias com que podeis estar ou não de acordo, nem para tentardes saber o que o orador tem
para dizer. Vereis que ele tem muito pouco para dizer, porque o que vamos fazer todos é examinar
os problemas, sem chegar a juízos definitivos, mas compreendendo esses problemas; e esse mesmo
compreender produzirá a sua ação própria.
Assim, se me permitem sugeri-lo, ouçam atentamente, sem concordar nem discordar, sem
tirar nenhuma conclusão. Ouçam sem pré-juízos, sem idéias preconcebidas, porque durante séculos
temos jogado dessa maneira, com palavras, com idéias, com ideologias, e tudo isso não levou a lado
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nenhum - ainda sofremos, ainda estamos em plena confusão, ainda andamos à procura de uma
felicidade que não seja prazer. Como dissemos, vamos considerar o problema do viver na sua
totalidade e não apenas uma parte dele. Portanto, vejamos em que consistem os nossos problemas,
em vez de como resolvê-los, ou o que fazer a seu respeito, porque no momento em que
compreendemos o problema, essa mesma compreensão traz consigo a sua ação própria; penso que é
muito importante tomar consciência disto.
Geralmente olhamos para os problemas com uma conclusão, com uma suposição; não
estamos livres para ver, para observar o que realmente é. Quando estamos livres para olhar, para
investigar em que consiste o problema, então, desse observar, desse explorar, vem a compreensão. E
essa mesma compreensão é ação, e não uma conclusão levando à ação. Vamos examinar isso e
talvez nos compreendamos uns aos outros à medida que formos avançando. Como sabemos, onde
quer que se vá por esse mundo, os seres humanos são mais ou menos semelhantes. Os costumes, os
comportamentos e padrões exteriores de ação podem ser diferentes, mas psicologicamente,
interiormente, os seus problemas são os mesmos. Por todo o mundo o homem está confuso, esta é a
primeira coisa que se observa. Incerto, inseguro, anda às apalpadelas, a perguntar, a procurar, em
busca de uma saída deste caos. Assim, dirige-se aos yoguis, aos filósofos, aos mestres, aos gurus; em
toda a parte procura uma resposta e é provavelmente por isso que a maior parte de vós está aqui,
porque queremos encontrar uma saída para esta armadilha em que nos vemos prisioneiros, sem
perceber que, como seres humanos, somos nós que a fazemos - é obra nossa e de mais ninguém. A
sociedade em que vivemos é o resultado do nosso estado psicológico. A sociedade é nós próprios -
este mundo não é diferente de nós. Assim como somos assim fazemos o mundo, porque estamos
confusos, porque somos ambiciosos, ávidos, à procura de poder, de posição, de prestígio. Somos
agressivos, desumanos, competitivos, e damos origem a uma sociedade igualmente desumana,
competitiva e violenta. Parece-me pois que a nossa responsabilidade é primeiro compreender-nos a
nós próprios, porque nós somos o mundo. Não se trata de um ponto de vista egocêntrico, limitado,
como se há-de ver, quando começarmos a examinar estas questões. Quando observamos o mundo
atual à nossa volta e em nós mesmos, que problema é que vemos? Será um problema econômico,
racial, brancos e negros uns contra os outros, tal como os comunistas e os capitalistas, uma religião
em oposição a outra religião - é esse o problema? Ou ele é muito mais vasto, muito mais profundo,
um problema psicológico? Com certeza não se trata meramente de uma questão exterior, mas mais
de um problema interior. Como dissemos, o homem é por natureza agressivo, violento, competitivo,
dominador; podeis ver isso em vós mesmos, se vos observardes. E, se me é permitido sugeri-lo, o
que vamos considerar juntos não será uma série de idéias que uma pessoa se dispõe a ouvir. O que o
orador tem para dizer é um fato psicológico que podeis observar em vós próprios. Assim, se
quiserdes, utilizai o orador para vos observardes a vós mesmos. Utilizai-o como um espelho em que
vos vedes sem distorção nenhuma, aprendendo desse modo o que realmente sois. É muito importante
aprender acerca de nós próprios, não segundo algum especialista, mas aprender por uma verdadeira
observação de nós mesmos. E descobriremos, assim, que somos o mundo: os ódios, o nacionalismo,
o sectarismo religioso, o homem que crê em certas coisas e descrê de outras, o homem que tem
medo, e assim por diante. Pela observação do problema aprenderemos acerca de nós próprios. Que
problema então é esse com que se confronta cada um de nós? Será um problema separado,
particular, um problema econômico ou racial, o problema de alguma neurose ou de algum medo
específico, o de crer ou não crer em Deus ou o de pertencer a uma determinada seita - religiosa,
política ou qualquer outra? Será que olhamos o problema da vida como um todo, ou selecionamos
uma determinada questão e a ela dedicamos toda a nossa existência, toda a nossa energia e
pensamento? Consideraremos nós a vida como um todo? A vida inclui os nossos condicionamentos,
produzidos pelas pressões econômicas, pelas crenças e dogmas religiosos, pelas divisões nacionais,
pelos preconceitos de raça, etc. A vida é esta ansiedade, este medo, esta incerteza, esta
tortura, este esforço penoso. A vida inclui também o amor, o prazer, o sexo, a morte, e a pergunta
que sem cessar o homem tem feito: Haverá uma outra Realidade, alguma coisa "para além dos
montes", algo que seja possível encontrar através da meditação? Desde sempre o homem tem feito
esta pergunta e não podemos meramente pô-la de lado, considerando-a sem validade, só porque
apenas estamos interessados em viver o dia-a-dia; queremos saber se há algo eterno, uma Realidade
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intemporal. Tudo isto constitui o problema. Não existe um problema particular. Quando se observa,
vê-se que todos os problemas estão relacionados entre si. Se se compreende completamente um
problema, compreendem-se então todos os problemas. Como seres humanos a olhar para este mapa
da vida, vemos que um dos maiores problemas é o medo.
Não um medo particular, mas o medo: medo de viver, medo de morrer, medo de não ser
capaz de conseguir, medo de fracassar, medo de ser dominado, reprimido, medo da insegurança, da
morte, da solidão, medo de não ser amado. Onde há medo, há agressão. Quando a pessoa tem medo
torna-se ativa, não apenas para fugir do medo, mas porque o medo produz uma atividade agressiva.
Podeis observar isso em vós mesmos, se estiverdes interessados. O medo é um dos maiores
problemas da vida. Como poderemos resolvê-lo? Poderá o homem ficar para sempre livre do medo,
não só a nível consciente, mas também nos níveis ocultos, secretos, da mente? Poderá esse medo ser
resolvido pela análise? Poderemos fazê-lo desaparecer fugindo-lhe? A questão é, portanto: Como é
que uma mente que tem medo de viver, que tem medo do passado, do presente, do futuro, como é
que uma mente assim há de ficar completamente livre do medo? Libertar-se-á dele gradualmente,
pouco a pouco - levará tempo? Se levar tempo - muitos dias, muitos anos - ficar-se-á velho e o medo
lá estará ainda... Assim, como poderá a mente libertar-se do medo, não só do medo físico, mas
também da estrutura do medo na psique, dos medos psicológicos? Compreendem a minha pergunta?
Poderemos dissolver completamente o medo, libertar-nos instantaneamente, ou terá o medo de ser
compreendido gradualmente e resolvido pouco a pouco? Esta é a primeira questão. Poderá a mente,
que está condicionada para pensar que pode resolver o medo pouco a pouco, com o tempo, através
da análise, através da observação introspectiva, ficar livre do medo gradualmente? Esse é o ponto de
vista tradicional. É como aquelas pessoas que, sendo violentas, têm a ideologia da não-violência.
Dizem: "Chegaremos gradualmente a esse estado de não-violência, quando a mente não for
violenta." Mas isso levará tempo, talvez dez anos, talvez a vida inteira, e entretanto é-se violento,
está-se a semear os germes da violência. Tem de haver pois uma maneira - por favor, ouçam isto
com muita atenção - tem de haver uma maneira de acabar de todo com a violência, imediatamente;
sem ser por meio do tempo, sem ser por meio da análise, de outro modo estaremos condenados,
como seres humanos, a ser violentos para o resto da vida. Da mesma maneira, poderemos pôr termo
ao medo de maneira completa? Poderá a mente ficar totalmente liberta do medo? Não no fim da
vida, mas agora? Não sei se já alguma vez fizeram a si próprios esta pergunta. E se a fizeram, talvez
tenham dito "não é possível" ou "não sei como fazê-lo". E, assim, vive-se com o medo, com a
violência e cultiva-se a coragem, ou então o recalcamento, a resistência, a fuga; ou adere-se a uma
ideologia de não-violência.
Mas todas as ideologias são insensatas, porque quando se vai atrás de uma ideologia, de um
ideal, está-se a fugir do que é, e quando se está a fugir, não se pode compreender o que é. Assim, a
primeira
coisa para compreender o medo é não fugir, e isso é dificílimo. Não tentar evadir-se por meio da
análise, que leva tempo, por meio do álcool, do ir à igreja ou de outras espécies de atividades. É o
mesmo, quer a fuga seja por meio de uma droga, da bebida, do sexo ou de "Deus". Será então
possível deixarmos de fugir? É este o primeiro problema na compreensão do que é o medo,e na sua
dissolução, para que se fique inteiramente livre dele. Como sabem, liberdade é algo que a maior
parte de nós não quer. Desejamos libertar-nos de determinada coisa, das necessidades ou das
pressões imediatas, mas ser livre é completamente diferente. Liberdade não é licenciosidade, não é
fazer o que nos apetece - a liberdade exige uma disciplina tremenda, que não é a disciplina do
soldado, ou a disciplina da repressão e do conformismo. A palavra "disciplina", na sua raiz, significa
aprender. E para aprender acerca de alguma coisa - não importa o quê – é preciso disciplina, a
própria aprendizagem é disciplina; não se trata de nos disciplinarmos primeiro e depois
aprendermos. O próprio ato de aprender é disciplina, o que liberta de toda a repressão, de toda a
imitação. Portanto, seremos nós capazes de ficar livres do medo, do qual nasce a violência, do qual
brotam todas estas divisões religiosas e nacionalistas, de "o meu clã" e "o teu clã"? Quem conhece o
medo sabe como ele é terrível. Cobre tudo de escuridão, roubando completamente a lucidez, de tal
modo que a mente com medo não é capaz de compreender o que é a vida nem quais são os
problemas reais. Assim, parece-me que a primeira coisa a fazer é perguntar a nós mesmos se alguém
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pode ficar realmente livre do medo, tanto físico como psicológico. Quando estais perante um perigo
físico, reagis e isso é inteligência; não é medo, de outro modo destruir-vos-eis. Mas quando há
medos psicológicos - medo do amanhã, medo do que se fez, medo do presente - a inteligência não
funciona. Se examinarmos isto psicologicamente, interiormente, veremos por nós mesmos que toda a
nossa estrutura social está baseada no princípio do prazer, porque a maior parte de nós procura
prazer, e onde existe essa procura existe também medo. O medo acompanha o prazer. Isto é bem
evidente, se o examinarmos. Como poderá a mente estar tão completamente livre do medo que seja
capaz de ver tudo com grande lucidez? Vamos investigar se a mente é capaz de se libertar dele, de
maneira total. Percebem a questão? Aceitamos o medo e vivemos com ele, tal como aceitamos a
violência e a guerra, como fazendo parte da vida. Temos tido milhares e milhares de guerras e
estamos constantemente a falar de paz; mas o modo como vivemos a nossa vida diária é guerra,
conflito, um campo de batalha. E aceitamos isso como inevitável. Nunca perguntamos a nós mesmos
se podemos viver uma vida de completa paz, sem qualquer espécie de conflito. Há conflito porque
há contradição em nós. Isto é bem simples. Há em nós diferentes desejos contraditórios, exigências
opostas, e isso traz conflito. Aceitamos todas estas coisas como inevitáveis, como parte da nossa
existência; nunca as pomos em causa.
Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se
existe uma Realidade, um estado intemporal.
Para o descobrir é preciso estar liberto - liberto do medo, da avidez, da ambição, da inveja, da
competição, da desumanidade; só então a mente estará lúcida, sem obstáculos, sem conflito nenhum.
Só uma mente assim é serena e apenas a mente serena pode descobrir se existe o eterno, o
inominável. Mas não se pode chegar a essa serenidade por meio de qualquer prática ou de qualquer
"disciplina".
Essa serenidade só acontece quando se está livre - livre de toda esta ansiedade, medo, ciúme,
violência, desumanidade. Portanto, poderá a mente ser livre - não eventualmente, não daqui a dez ou
cinqüenta anos, mas imediatamente? Se fizerdes esta pergunta a vós próprios, pergunto-me qual será
a vossa resposta. Direis que isso é possível ou não? Se dizeis que é impossível, estais então a
bloquear-vos e não podereis ir mais além; e se dizeis que é possível, isso também tem o seu risco. Só
se pode examinar o possível, se se sabe o que é o impossível - não é verdade? Estamos a pôr a nós
mesmos uma questão tremenda: Poderá a mente condicionada através de séculos, politicamente,
economicamente, pelo clima, pelas igrejas, por várias influências, poderá uma mente assim mudar
imediatamente? Ou precisará de tempo - intermináveis dias de análise, de sondagem, de explicação,
de pesquisa? Um dos nossos condicionamentos é que aceitamos o tempo, um intervalo em que uma
revolução, uma mutação, possa ter lugar. Precisamos de mudar completamente: isso é a maior das
revoluções - não é atirar bombas para nos matarmos uns aos outros. A maior de todas as revoluções
é a mente ser capaz de se transformar a si mesma de modo imediato e de ser inteiramente diferente
amanhã. Talvez se diga que isso não é possível. Se encararmos realmente a questão sem qualquer
fuga e tivermos chegado àquele ponto em que dizemos que é impossível, então descobriremos o que
é possível; mas não podemos pôr essa questão, "o que é possível?", sem compreendermos o que é
impossível. Estamos a comunicar? Perguntamos portanto se a mente que tem medo, que está
condicionada para ser violenta, para ser agressiva, poderá transformar-se imediatamente. E só
podemos fazer essa pergunta - atentem nisto um pouco, por favor – quando compreendemos a
impossibilidade e a inutilidade da análise (psicológica). Essa análise implica aquele que analisa, quer
ele seja um analista profissional, quer seja o próprio a analisar-se. Quando uma pessoa se analise a si
mesma, há várias coisas a considerar.
Primeiro, há que saber se o analisador é diferente da coisa que analisa. Será diferente? Torna-
se evidente, quando observamos, que o analisador é o analisado. Não há diferença entre o analisador
e aquilo que vai analisar. Não reparamos nisso, e portanto começamos a análise. Digo "estou
zangado, sou ciumento", e começo a analisar por que é que sou ciumento, quais são as causas desse
ciúme, dessa cólera, dessa violência, mas o analisador faz parte daquilo que está a analisar. O
observador é o observado, e quando vemos isso, quando compreendemos a inutilidade do que
estamos a fazer, deixamos definitivamente a análise. É muito importante compreender, ver realmente
a verdade disto, mas não verbalmente: a compreensão verbal não é compreensão, é como ouvir uma
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quantidade de palavras e dizer "sim, compreendo as palavras". Mas ver realmente que o analisador,
o observador é o observado é um fato extraordinário, uma realidade tremenda; não há então divisão
entre o analisador e a coisa analisada e portanto não há conflito. O conflito só existe quando o
analisador é diferente da coisa que analisa; nessa divisão há conflito. Estão a acompanhar? Talvez
depois queiram fazer perguntas.
A nossa vida é um conflito, um campo de batalha. Mas uma mente livre não tem conflito, e
estar livre de conflito é observar o fato do "observador", do "analisador", do "pensador". Há medo e
o observador diz: "Tenho medo." Reparem um momento, por favor, e verão a beleza disso - há assim
uma divisão entre o observador e a coisa observada. Então, o observador atua e diz: "Tenho de ser
diferente,
o medo tem de acabar." Procura a causa do medo e assim por diante; mas o observador é o
observado, o analisador é o analisado. Quando ele compreende isto não verbalmente, o fato do medo
sofre uma mudança completa. Reparem, não tem nada de misterioso. Uma pessoa tem medo, é
violenta, dominadora, ou é dominada. Tomemos como exemplo uma coisa muito mais simples. Uma
pessoa sente inveja, ciúme. Será o observador diferente desse sentir a que chama ciúme? Se for
diferente então poderá agir sobre o ciúme e essa ação tornar-se-á um conflito.
Porém, se a entidade que sente ciúme não é diferente do ciúme, que pode ela fazer então?
"Sou ciumento", e enquanto o ciúme for diferente de "mim", estou num estado de conflito, mas se o
ciúme é eu, se não é diferente de mim, então que hei de fazer? Não o aceito e digo: "Sou ciumento."
Isso é um fato. Não o afasto, não fujo dele, não tento reprimi-lo. O que quer que eu faça é ainda uma
forma de ciúme. Que acontece, portanto? A inação é a ação total. A inação em relação ao ciúme, por
parte do observador que é o observado, é o cessar do ciúme. Compreendem? Estamos a comunicar?
Participantes - Sim.
Krishnamurti - Devagar, não digam já "sim". Isto é muito difícil... Mas se realmente se
compreender isto, fica-se livre do ciúme, não mais se será ciumento. É por isso que é muito
importante
compreender a totalidade do conflito, da luta que se está a passar interiormente e que externamente
se exprime como violência. Poderá então a mente estar completamente livre dessa inveja que é o
ciúme?
Só poderá estar livre quando existir a consciência de que o observador é o observado, não havendo
portanto divisão. Compreendem? Reparemos, há conflito no que chamamos relacionamento entre as
pessoas, até entre os mais próximos. Toda a relação tal como existe agora é conflito - não é assim?
Penso que é bastante evidente. As nossas relações uns com os outros, as relações entre os seres
humanos, em todo o mundo, são baseadas numa imagem que construímos acerca de nós mesmos ou
acerca do outro. O marido tem uma imagem da mulher e a mulher tem uma imagem do marido -
uma imagem de prazer, sofrimento, censuras, insultos, domínio, ciúme, irritação, seja o que for.
Gradualmente, através dos anos, foi-se construindo uma imagem do marido ou da mulher. E são
essas duas imagens que estão em relação. Mas relação significa contacto real. Estar em relação quer
dizer estar em contacto com alguma coisa, e não podemos estar em relação com o outro se temos
uma imagem a seu respeito - evidentemente. Será então possível viver sem essa imagem e no entanto
estar em relação? O relacionamento origina conflito porque não estamos em relação; o nosso
relacionamento é entre as imagens. Será então possível a mente estar liberta de toda essa construção
de imagens? Compreendem a pergunta? Vou mostrar-vos como isso é possível. Não o aceiteis
verbalmente mas experimentai-o; vereis então o que realmente significa relacionamento. Estar em
relação é a coisa mais extraordinária. Não há sofrimento, não há conflito. Qual é o maquinismo que
constrói essas imagens, a respeito do nosso vizinho, do presidente, da nossa mulher, de Deus, ou seja
do que for? Qual é a estrutura e a natureza dessa imagem que temos de nós mesmos ou do outro? Se
eu for casado - não o sou - construo uma imagem da minha mulher: o que ela diz, o que faz, o prazer
que me proporciona sexualmente, ou de outra maneira, os medos, o domínio, as discussões, tudo
isso. Gradualmente, dia após dia, construo uma imagem dela e ela constrói uma a meu respeito. Isso
é um fato, não uma suposição; e estou agora a perguntar a mim mesmo se poderei libertar-me destas
imagens. Só se pode estar livre da imagem quando a pessoa, seja o que for que lhe digam - por
irritação, por ciúme, por cólera, quer a insultem, quer a elogiem - está completamente atenta no
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momento de isso ser dito, para ver a verdade que há no elogio, ou no insulto, e ficar liberta dele. Isso
significa que a mente deve estar inteiramente atenta, para que não retenha a experiência particular de
prazer ou de dor que cria a imagem; ou seja, atenta no momento em que (por exemplo) a mulher ou
o marido diz uma coisa agradável ou desagradável. Essa atenção, esse estar consciente sem escolha
dá liberdade para olhar, para ver a verdade ou a falsidade do que está a ser dito; então a mente já não
o registra como memória. Não sei se alguma vez experimentastes isso - provavelmente não. A mente
torna-se extraordinariamente ativa, acordada, sensível. Então o relacionamento, que é na verdade um
dos maiores problemas da vida, tem um sentido completamente diferente. Então, sem a imagem, o
relacionamento é a beleza do amor. Embora muitas vezes se diga "amo-te", o amor está ausente. O
amor é algo inteiramente diferente, o amor não é prazer, o amor não é desejo. Para se compreender o
amor, tem de se compreender o prazer, e o prazer é acompanhado pelo medo, pelo sofrimento - não
se pode ter um sem o outro. Estes são, pois, os nossos problemas. São os problemas de todo o ser
humano, quer ele viva numa sociedade desenvolvida quer numa primitiva. O homem está em grande
provação e sofrimento e a nossa pergunta, o nosso problema, é saber se a mente é capaz de se
transformar a si própria completamente, originando assim uma profunda revolução psicológica - que
é a única revolução. Uma tal revolução é capaz de criar uma sociedade diferente, um relacionamento
diferente, uma outra maneira de viver. Querem fazer algumas perguntas? Como sabem, pôr questões
é das coisas mais difíceis. Há milhares de perguntas que temos de fazer; precisamos de pôr tudo em
causa. Não devemos obedecer, ou aceitar seja o que for, temos de descobrir, de ver a verdade por
nós mesmos e não através de outra pessoa. E para ver a verdade tem de se estar inteiramente livre.
Tem de se pôr a questão correta para se encontrar a resposta correta, porque se se põem questões
erradas, recebem-se inevitavelmente respostas erradas. Portanto, pôr a questão correta é das coisas
mais difíceis - o que não significa que o orador vos esteja a impedir de fazer perguntas. É preciso
fazê-las, com profundeza e grande seriedade, porque a vida é tremendamente séria. Pôr questões
assim significa que a pessoa já está a explorar a sua própria mente e a penetrar muito profundamente
em si mesma.
Portanto, só a mente inteligente, que se conhece a si própria, é capaz de pôr a questão correta,
e nesse perguntar está já a resposta. Temos de reparar nisto com muita seriedade, porque esperamos
sempre que outro nos diga o que havemos de fazer. Queremos sempre acender a nossa candeia na
luz de outrem. Nunca somos uma luz para nós próprios. E para sermos uma luz para nós próprios,
temos de libertar-nos de toda a tradição, de toda a autoridade, incluindo a deste orador, para que a
nossa mente seja capaz de ver, de observar, de aprender. Aprender é das coisas mais difíceis. Assim,
fazer uma pergunta é bastante fácil, mas fazer a pergunta certa é uma coisa totalmente diferente. E
agora, qual é a pergunta?
Krishnamurti - 1ª Conferência na Universidade de Berkeley, Califórnia

Que significa ser livre?


Que significa ser livre? Será liberdade fazer o que vos convém, ir onde vos agrada, pensar o
que vos apetece? De qualquer modo, é isso o que fazeis. Ter independência, simplesmente
significará liberdade? Muitas pessoas no mundo são independentes, mas poucas são livres.
Liberdade implica uma grande inteligência, não é? Assim, ser livre é ser inteligente, mas a
inteligência não vem apenas pelo desejo de ser livre. Ela vem só quando começais a compreender
totalmente o meio que vos rodeia, as influências sociais, religiosas, familiares e tradicionais que vos
estão constantemente pressionando. Mas para compreender as várias influências do meio cultural a
que pertenceis, das crenças e superstições, da tradição à qual vos conformais sem pensar - para as
compreenderdes todas, e vos libertardes delas, é precisa uma visão profunda. Mas geralmente
submeteis-vos a elas porque interiormente estais com medo. Tendes medo de não obter uma boa
posição na vida; tendes medo do que os outros poderão dizer; tendes medo de não seguir a tradição,
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de não fazer a coisa certa. Mas liberdade é, verdadeiramente, um estado de espírito em que não há
medo ou compulsão, nem ansiedade de estar seguro.
Não querem muitos de vós estar em segurança? Não queremos que nos digam que somos
pessoas maravilhosas, que somos encantadores ou que temos uma inteligência extraordinária? Toda
esta espécie de coisas nos dá autoconfiança, um sentimento de importância. Queremos ser pessoas
famosas - mas, no momento em que o desejamos, já não somos livres.
Mas por favor, reparai nisto, porque é a verdadeira chave para a compreensão do problema da
liberdade. Quer neste mundo de poder, posição e autoridade, quer no chamado mundo espiritual,
onde se aspira a ser virtuoso, nobre, santo, no momento em que tendes a ambição de alguma coisa
(embora mais subtil), já não sois livres. Mas o homem ou a mulher que vê o absurdo de tudo isso e
cujo coração está, assim, inocente e portanto não movido pelo desejo ou pela ambição - essa pessoa
é livre. Se compreenderdes a simplicidade disso, vereis também a sua extraordinária beleza e
profundidade.
A função da educação é a de vos ajudar, desde a infância, não a imitar alguém mas a serdes
vós mesmos, a toda a hora. E isto é o mais difícil de fazer: quer sejais, ou não, invejosos ou
ciumentos, ser sempre aquilo que na realidade sois, mas compreendendo-o. Se olhardes para o que
realmente sois e o compreenderdes, então, na própria compreensão há transformação. Assim, a
liberdade reside, não em tentardes tornar-vos algo diferente, nem em fazerdes o que vos apetece,
nem em seguirdes a autoridade de uma tradição, mas em compreender aquilo que sois, momento a
momento.
Não sois educados para isto; a vossa educação encoraja-vos a tornar-vos isto ou aquilo - mas
isso não é a compreensão de vós mesmos. O vosso "eu" é algo muito complexo. Não é apenas a
entidade que vai à escola, que discute, que joga, que tem medo, mas é também algo escondido, além
do que aparece. É feito, não apenas dos pensamentos que tendes, mas também de todas as coisas que
foram postas na vossa mente por outras pessoas, pelos livros, pelos políticos, pelos jornais. E só é
possível compreender tudo isto quando não sois ambicioso, quando não imitais, quando não seguis.
Esta é a única revolução verdadeira, que leva à extraordinária liberdade. Cultivar esta liberdade é a
verdadeira função da educação.
Krishnamurtiin THIS MATTER OF CULTURE

ESCUTAR E APRENDER
Como vamos realizar dez palestras, poderemos considerar os nossos problemas com vagar e
paciência, e inteligentemente. Aos que sentem verdadeiro empenho e não vieram por mera
curiosidade ouvir uma ou duas palestras, é muito importante que compreendam todas as
complicações e problemas que afligem cada ente humano, porquanto, compreendê-los é resolvê-los
e deles libertar-se completamente.
Há certas coisas que devem desde já ficar assentada.
Primeiro, temos de compreender o que é "comunicação", o que esta palavra significa para
cada um de nós, o que implica, qual a estrutura, a natureza da comunicação. Para que dois de nós,
vós e eu, possamos comunicar-nos um com o outro, deve haver não só compreensão verbal do que se
diz, no nível intelectual, mas também, e conseqüentemente, o ato de escutar e de aprender.
Estas duas coisas são, a meu ver, essenciais, para que possamos comunicar-nos uns com os
outros: escutar e aprender.
Em segundo lugar, cada um de nós tem, decerto, o seu fundo de conhecimento, de
preconceito e experiências, e também seus sofrimentos e os inúmeros e complexos problemas
inerentes à vida de relação.
Tal é o nosso conteúdo, e com ele pretendemos escutar.
Afinal de contas, cada um de nós é o resultado de nossa complexa vida cultural - resultado de
toda cultura humana, com a educação e as experiências não só de uns poucos anos, mas de séculos.
Não sei se alguma vez examinastes a maneira como escutais, não importa o quê - uma ave, o
vento entre as folhas, a correnteza das águas; ou como escutais um diálogo que travais com vós
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mesmos, as conversações que tendes em vossas relações com amigos íntimos, vossa mulher ou
marido. Quando tentamos escutar, achamo-lo muito difícil, porque estamos sempre a projetar nossas
opiniões e idéias, nossos preconceitos, nosso fundo, nossas inclinações, nossos impulsos; quando
esse fundo predomina, dificilmente escutamos o que se diz.
Nesse estado nenhum valor existe.
Só se pode escutar e, por conseguinte, aprender, quando nos achamos num estado de atenção,
num estado de silêncio em que todo aquele fundo está em suspenso, quieto; então, parece-me, há
possibilidade de comunicação.
Há várias coisas a considerar.
Se escutais com o fundo ou imagem que formastes a respeito do orador, se o escutais
atribuindo-lhe uma certa autoridade - que o orador, pode ter ou não - então é bem evidente que não
estais escutando. Estais escutando a "projeção" que à vossa frente colocastes, e esta vos impede de
escutar.
Assim, mais uma vez, é impossível a comunicação.
Evidentemente, a verdadeira comunicação ou comunhão só pode verificar-se quando há
silêncio. Quando duas pessoas desejam seriamente compreender uma certa coisa, aplicando por
inteiro a mente, o coração, os nervos, os olhos, os ouvidos, a compreendê-la, então, nessa atenção,
existe um certo silêncio; verifica-se então a verdadeira comunicação, a verdadeira comunhão.
Aí, não há apenas aprender, mas também completa compreensão - e essa compreensão não
difere da ação imediata.
Isto é, quando uma pessoa escuta sem nenhuma intenção, sem nenhuma barreira, deixando de
parte todas as opiniões, conclusões, etc., toda a experiência - então, nesse estado, não só se
compreende se o que se está dizendo é verdadeiro ou falso, mas, ainda, se verdadeiro, há ação
imediata e, se falso, não há ação nenhuma.
Nestes estudos, não só iremos aprender a respeito de nós mesmos - o que é de importância
primária - mas também ver que no próprio processo de aprender há ação. Não se trata de primeiro
aprender e depois agir, porém, antes, o próprio ato de aprender é ação.
Para nós, como atualmente somos, o aprender implica acumulação de idéias - e as idéias são
pensamento racionalizado e cuidadosamente elaborado.
À medida que aprendemos vamos formulando uma estrutura de idéias e, uma vez
estabelecida a fórmula de idéias, ideais ou conclusões, atuamos.
A ação, portanto, está separada da idéia.
Assim é nossa vida: primeiro formulamos e, depois, tratamos de agir em conformidade com o
formulado.
Mas, estamos considerando uma coisa muito diferente, ou seja, que o ato de aprender é ação;
que no próprio processo de aprender, a ação está se verificando e, por conseguinte, não há, conflito
algum.
Acho importante compreender desde já que não estamos formulando nenhuma filosofia,
nenhuma estrutura intelectual de idéias, ou de conceitos teológicos ou puramente racionais.
Interessa-nos promover em nossa vida uma revolução total, sem nenhuma relação com a
estrutura da sociedade, tal como existe. Ao contrário, se não compreendemos a inteira estrutura
psicológica da sociedade de que fazemos parte estrutura que formamos através de séculos, e dela nos
libertamos inteiramente, não haverá revolução, total.
E uma revolução dessa espécie é absolutamente necessária.
Deveis saber do que está ocorrendo no mundo; desse enorme e transbordante
descontentamento que se manifesta de diferentes maneiras - os hippies, os "beatniks", os "provos" da
América - e das guerras que se estão travando, e pelas quais somos responsáveis.
Não são apenas os americanos e os vietnamitas, porém cada um de nós, os responsáveis por
essas guerras monstruosas.
Não estamos empregando superficialmente a palavra "responsáveis".
Nós somos responsáveis, não importa se a guerra está no Oriente Médio, ou no Extremo
Oriente, ou noutra parte qualquer. Há fome, em grande escala, governos ineptos, acumulação de
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armamentos, etc. Observando tudo isso, somos natural e humanamente levados a exigir uma
mudança, uma revolução em nossas maneiras de pensar e de viver.
Quando começará essa revolução?
Os comunistas, os nacionalistas, e todas as autoridades religiosas sempre pensaram que o
indivíduo não tem importância nenhuma, que pode ser persuadido a seguir em qualquer direção.
Embora garantam a libertação para o homem em geral, tudo fazem para impedir essa libertação. As
religiões organizadas de todo o mundo põem "em branco" a mente das pessoas a fim de fazê-las
adaptar-se a determinado padrão a que chamam "idéias e ritos religiosos". Os comunistas, os
capitalistas, os socialistas não se importam em absoluto com o indivíduo, embora tanto falem a
respeito dele; mas, não vejo como possa verificar-se uma revolução radical, A NÃO SER através do
indivíduo.
Pois o ente humano individual é o resultado da experiência, do conhecimento e da conduta
totais do homem; tudo isso está em nós. Somos o depósito de todo passado, da experiência racial,
familiar e individual da vida; somos isso e, a menos que em nossa própria essência haja uma
revolução, uma mutação, não vejo possibilidade de nascer uma sociedade boa.
Falando do indivíduo, não o estamos opondo ou colocando contra a coletividade, a massa, o
todo da humanidade. A menos que sintais assim, o que acabo de dizer se tornará um mero conceito
intelectual. A menos que cada um de nós reconheça o fato central, ou seja, que nós, como indivíduos
humanos, representamos o todo da humanidade, não importa se vivemos no Oriente ou no Ocidente
– não saberemos agir.
Nós, entes humanos, somos totalmente responsáveis pelo estado que se acha o mundo. As
guerras - por elas somos responsáveis, por causa da nossa maneira de viver, pois somos
nacionalistas, alemães, franceses, holandeses, ingleses, americanos, russos; somos católicos,
protestantes, judeus, budistas, pertencemos ao Zen, a esta ou àquela seita, dividindo-nos, disputando,
lutando uns contra os outros.
Nossos deuses, nossas nacionalidades nos dividiram.
Ao perceberdes, não intelectualmente, porém realmente tão realmente como sentis que tendes
fome, que vós e eu, como entes humanos, somos responsáveis por todo este caos, por toda esta
aflição - pois estamos contribuindo para essa situação, dela somos parte – ao percebermos isso, não
emocionalmente, nem intelectualmente, nem sentimentalmente, porém de maneira real, o problema
se tornará então sumamente sério.
Ao tornar-se verdadeiramente sério esse conhecimento, então agireis.
Só quando isso acontecer, quando vos sentirdes inteiramente responsável por esta monstruosa
sociedade, com suas guerras, suas divisões e tantas outras coisas horríveis - brutalidades, ambições,
etc; só quando cada um de nós perceber bem isso poderemos agir. E só se pode agir quando se sabe
que esta estrutura, não só a exterior, mas também a interior, foi reunida peça por peça. Eis porque
devemos conhecer-nos, pois quanto mais uma pessoa se conhece, tanto mais amadurecida está.
Só há falta de maturidade na ignorância de si mesmo.
O que vamos fazer é aprender a respeito de nós mesmos - não de acordo com este que vos
fala, ou de acordo com Freud ou Jung ou um certo analista ou filósofo, porém aprender o que
realmente somos. Se aprendermos a respeito de nós mesmos de acordo com Freud, aprenderemos a
respeito de Freud e não de nós mesmos.
Para aprendermos a respeito de nós mesmos, toda autoridade deve deixar de existir - toda e
qualquer autoridade, a autoridade da igreja, do pároco de nossa freguesia, ou do analista famoso, dos
maiores filósofos, com suas fórmulas intelectuais, etc. etc. A primeira coisa, portanto, que se precisa
compreender, quando nos tornamos sérios e exigimos uma revolução total na estrutura de nossa
própria psique - a primeira coisa que devemos compreender é que não existe autoridade de espécie
alguma.
Isso é dificílimo, porquanto não só existe a autoridade externa, fácil de rejeitar, mas também
a autoridade interna, a autoridade interior da experiência, dos conhecimentos acumulados, das
opiniões, idéias, ideais de cada um que lhe guiam a vida e de acordo com os quais o indivíduo
procura viver. Libertar-se dessa autoridade é dificílima - não só da autoridade que seguimos em
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relação às coisas exteriores, mas também da autoridade de ontem, da experiência de ontem que nos
ensinou alguma coisa; o que ensinou se torna a autoridade de hoje.
Por favor, compreenda isso, sua sutileza, sua dificuldade.
Há não só a autoridade do conhecimento acumulado como tradição, a autoridade das
experiências que nos deixaram sua marca, mas também a autoridade de ontem, tão destrutiva como
a de mil anos. A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade de ontem nem de um
milênio atrás, porque cada um de nós é uma força viva, sempre em movimento, nunca, em repouso,
em perene fluir.
Quando nos olhamos com a autoridade de ontem, o que tem importância é a autoridade e não
o movimento da vida, que somos nós, e por essa razão não compreendemos o movimento, a fluidez,
a beleza e a natureza desse movimento: só compreendemos a autoridade que acumulamos e com a
qual estamos examinando, observando. Libertar-se dessa autoridade é morrer para todas as coisas de
ontem, para que a mente se conserve sempre juvenil, inocente, cheia de vigor e de paixão; só neste
estado uma pessoa observa e aprende.
Essa liberdade já não é então um instrumento que pode ser manejado pela autoridade, a nosso
gosto ou contragosto. Para tanto, requer-se muito percebimento, percebimento real do que se passa
em nosso interior, sem o corrigirmos, sem lhe dizer o que deve ser ou não deve ser; porque, se
corrigis, está estabelecida a autoridade, o censor.
Se sentis disposição, seriedade, se não me estais ouvindo superficialmente ou por mera
curiosidade, penetremos em nós mesmos, passo a passo, sem perder um só movimento. Isso não
significa que o orador vai ser "o analista", porquanto não há analista nem ninguém para ser
analisado; o que há é tão - somente o fato – o que é.
Quando sabemos olhar o que é, o analista deixa de existir, totalmente.
Por conseguinte, nestes estudos vamos entrar em comunhão, não há respeito do que "deveria
ser", ou do "que foi", porém a respeito do que está realmente acontecendo em nós; não sobre como
sobre alterar o fato ou o que ou o que devemos fazer com ele, porém como observar e ver o que
realmente é.
Isso exige intensa energia.
Nós nunca olhamos aquilo que é - nunca olhamos a árvore "tal qual é", as sombras, a
densidade da folhagem "tal com é", totalmente - nunca olhamos a sua beleza. Isso acontece porque
temos conceitos sobre a beleza e temos fórmulas de como devemos olhar a árvore, ou porque
desejamos identificar-nos com ela. Temos primeiramente uma idéia sobre a árvore e depois é que a
vemos.
A idéia, a fórmula, o ideal impede-nos de olhar a árvore tal como é.
As idéias, as fórmulas, os ideais encerram a cultura em que vivemos; essa cultura sou eu, sois
vós, e com essa cultura nós olhamos e, por conseguinte, isso não é olhar, em absoluto.
Ora bem, se estais escutando o que se está dizendo, escutando-o realmente, então a cultura, a
autoridade, desaparecerão de todo e não tereis mais necessidade de lutar contra esse fundo, contra
essa cultura da sociedade em que fostes criados; compreendereis que é isso o que vos está impedindo
de olhar.
Só quando olhais realmente, estais em comunhão, tendes o contato correto, não só com a
árvore, com a nuvem, com a montanha, com a beleza da Terra, mas também estais em contato direto
com a realidade existente em vós mesmo. E quando há contato direto, não há problema de espécie
alguma . Só quando não há contato, quando vós sois o "observador", e a "coisa observada" diferente
de vós, é só então que surge o problema, que há conflitos, aflições, dores e ansiedades.
Durante estes estudos iremos ajudar-nos mutuamente a aprender e, portanto, a estar em
contato com o que realmente é; isso significa que está acabado o "observador" e que olhar, escutar,
compreender, agir, é uma só coisa.
Vamos conversar sobre o que estivemos dizendo ou sobre outro assunto que preferirdes?
Considero muito importante fazer perguntas, fazê-las não só a outrem, mas também a nós mesmos.
Nunca fazemos uma pergunta fundamental e, quando a fazemos, falta-nos tempo, inclinação ou
capacidade para achar a resposta correta.
O perguntar requer muita seriedade.
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Quanto mais profunda a questão, tanto mais difícil achar-lhe a resposta.
Mas, no próprio ato de perguntar, se a pergunta é feita seriamente, encontra-se a resposta.
É necessário fazer perguntas!
INTERROGANTE: Não entendo o que dizeis sobre "ação imediata".
KRISHNAMURTI: Que é ação?
O significado real dessa palavra é "fazer".
A ação implica um presente ativo.
Mas, nossa ação é o resultado dos maneirismos, conhecimentos, experiências, idéias,
fórmulas, de ontem, que se firmaram e estabilizaram, e de acordo com os quais agimos. A lembrança
de ontem, modificada, etc., atua no presente e este cria o futuro. Por conseguinte não há, nessa ação,
um presente ativo; estou atuando em conformidade com uma coisa morta. É claro que necessito da
memória, em certas categorias de atividade técnicas, etc.. Mas o agir de acordo com a memória só
produz ação que nenhuma ação é, porém uma coisa morta; por conseqüência, o amanhã é também
uma coisa morta.
Assim, que se deve fazer?
Preciso aprender a respeito de uma ação que seja totalmente diferente da ação da memória.
Para tal, preciso perceber, não intelectual, verbal ou sentimentalmente, o que realmente sucede. Tive,
por exemplo, uma experiência de cólera ou de prazer, e essa experiência permanece como memória e
minha ação se realiza em conformidade com essa memória. Essa ação oriunda da memória aumenta
a cólera, ou o prazer, e está sempre a acumular o passado; tal ação do passado é virtualmente,
inação. Pode a mente libertar-se dessas "memórias" de ontem e ficar vivendo no presente?
Esta pergunta não requer uma resposta intelectual.
Tampouco pode a mente, que é coisa do tempo, sujeita a uma infinidade de caprichos,
libertar-se das lembranças de ontem, procurando "viver no presente", conforme preceitua uma certa
filosofia que nos diz que não há futuro, que não há passado, que não há esperanças e, por
conseguinte, devemos viver no presente e dele tirar o melhor proveito possível.
Não posso viver no presente, se o presente está ensombrado pelo passado. Para compreender
isso, a mente deve ser capaz de olhar, e só pode olhar quando não há condenação, identificação,
julgamento; olhar - assim como se olha uma árvore, uma nuvem - simplesmente. Antes de poderdes
olhar a estrutura altamente complexa da memória, deveis ser capaz de olhar uma árvore, uma
formiga, ou o movimento do rio.
Olhar - em verdade nunca o fazemos!
É importantíssimo olhar o passado, como memória, e isso não sabemos fazer.
A ação em conformidade com a memória é inação total e, conseqüentemente, não há
revolução alguma.
INTERROGANTE: Pergunto se há contradição entre o dizerdes que o indivíduo é o
"coletivo", resultado do passado, e o dizerdes que não deve haver nenhuma autoridade vinda do
passado.
KRISHNAMURTI: Afinal de contas, essa autoridade do passado, que conferimos a outrem -
o sacerdote, o analista, o chefe militar, ou a esposa ou marido – dessa autoridade eu necessito para
minha própria segurança, minha própria proteção.
Tal autoridade, o homem a vem aceitando há séculos e séculos. Ora, o homem instituiu a
autoridade, deseja a autoridade, porque, quanto mais confuso está, quanto mais infeliz se sente, tanto
mais deseja ter quem lhe diga o que deve fazer. A autoridade de que ele revestiu outra pessoa, ou a
autoridade que em si próprio criou, para guiá-lo, torna-se um empecilho.
Como vedes, é sobremodo complexa esta questão da autoridade e do indivíduo. Para
compreendermos o indivíduo, temos de compreender o "coletivo", pois neste se encontra toda
estrutura da autoridade. Todos andamos em busca de segurança, nesta ou naquela forma. Segurança
em nossos empregos, segurança no ter dinheiro, segurança na continuidade de um certo prazer,
sexual ou outro, e a exigência de segurança total, comum a todos nós.
Essa ânsia de segurança procuramos expressar de diferentes maneiras.
No momento em que existe a exigência de segurança, torna-se necessária a autoridade, é bem
de ver; tal é a estrutura psicológica e cultural de nossa sociedade. Alguma vez indagamos se essa
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segurança que tanto buscamos existe deveras? Temos por certa a sua existência. Sempre buscamos a
segurança através das igrejas, dos líderes políticos, das relações, mas já a achamos alguma vez - já a
achastes?
Alguma vez a encontrastes nas vossas relações?
Existe segurança em alguma relação, alguma igreja, algum governo, salvo a segurança física?
Podeis achar segurança numa crença, em certos dogmas, mas essa segurança é uma simples idéia
que pode ser despedaçada pela lógica, pela dúvida, pelo indagar, pela necessidade de liberdade.
Quando se compreende - não como idéia - que tal coisa, a segurança, a permanência, não existe,
então a autoridade perde toda a sua importância.
INTERROGANTE: Parece-me que dissestes que nós somos responsáveis pelo todo da
sociedade. Não interpretei exatamente o que queríeis dizer. Somos responsáveis pelas guerras, etc?
KRISHNAMURTI: Pensais que não somos responsáveis pelas guerras? Nossa maneira de
vida indica que somos brutais, agressivos, que temos preconceitos violentos, que nos dividimos em
nacionalidades, em grupos religiosos que se odeiam uns aos outros, que nos destruímos mutuamente
nos negócios. Isso tudo só pode expressar-se em guerras, em ódio, está visto. Viver em paz significa
viver pacificamente, todos os dias, não achais?
INTERROGANTE: Eu diria que certas pessoas são mais responsáveis do que outras.
KRISHNAMURTI: Ah! Diz esse senhor que certas pessoas são mais responsáveis por esses
horrores do que vós e eu. Eis aí uma saída cômoda e feliz. Mas, quando vós sois alemão e eu sou
russo, quando sois comunista e eu capitalista, não estamos em luta um com o outro?
Não somos antagonistas?
Quereis que tudo fique como está, sem perturbações, porque tendes algum dinheiro, tendes
um filho, tendes uma casa e pelo amor de Deus não desejais ser perturbado; e tudo quanto vos
perturba vos é odioso. Não sois responsável quando fazeis questão de não serdes perturbado? E
quando dizeis "Minha religião, meu Buda, meu Cristo, meu isto ou aquilo - eis o meu Deus" - desse
Deus fizestes depender tudo, toda a vossa segurança e aflição; não desejais ser perturbado. Se outro
homem pensa diferentemente, o odiais.
Viver pacificamente, em cada dia significa, com efeito, não ter nenhuma nacionalidade,
nenhuma religião, nenhum dogma, nenhuma autoridade.
Paz significa amar, ser bondoso; se não a tendes, sois então responsáveis por toda a confusão
existente.
__
Estudo da 1ª palestra realizada por Krishnamurti em 9 de julho de 1967 em Saanen, Suíça,
págs 7/17 do livro "COMO VIVER NESTE MUNDO" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso

***

O FIM DO SOFRIMENTO E DA DOR


Estudo da palestra de KRISHNAMURTI realizada na Índia, Bombaim em 10/02/1985 –
publicado do K. Bulletin 54 (1988) – e na Carta de Noticias – Janeiro-Dezembro de 1991 pela ICK –
Mensagem no Kportal de Quinta –feira 23 de setembro de 2003 postada por Bardorck/Junior.

Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho.


Ontem estivemos tratando do sofrimento e do findar do sofrimento.
Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão.
Pouquíssimos de nós realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram
profundamente.
Será possível liquidar, de vez, o sofrimento?
Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não muito conscientemente,
mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem acabar. Enquanto o
sofrimento não termina, não pode haver amor.
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O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E
geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, diversão, movimentos religiosos – ou,
então, acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis.
Será que podemos investigar, a fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema
sem fugir dele?
Suponhamos que perca meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando
uma dor imensa, descubra que sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem
suportar a situação e, por isso, fujo dela.
Há inúmeras formas de fuga – religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso
permanecer como que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo
algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um
problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia
preciosa, de fino acabamento?
Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de fugir dela; sua beleza nos
atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o tempo todo. Se, da mesma
forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer de julgamento ou fuga,
ficar com a tristeza, nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos liberta completamente daquilo
que produziu a dor.
Voltaremos a isso depois.
Desejamos também considerar o que é a beleza – NÃO a beleza de uma pessoa NEM de
quadros e estátuas de museus, NEM os mais remotos esforços do homem para transmitir seus
sentimentos através da pedra, da pintura ou de um poema, mas INDAGAR DE NÓS MESMOS o
que é a beleza. Talvez a beleza seja a VERDADE. Talvez seja o AMOR. Sem compreendermos a
natureza e a profundidade dessa coisa extraordinária que é a beleza, JAMAIS chegaremos ao que é
SAGRADO. Examinemos, portanto, a questão da beleza.
O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve contra o céu
azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu elo recorte contra o
céu azul APAGA toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, NÃO HÁ ninguém a
olhar.
Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento egocêntrico do nosso
viver. Certamente que já devem ter notado isso.
Já observaram uma criança com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras, o
que é normal, e então damos um brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o
brinquedo, ela permanece tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também
quando vemos algo extremamente belo – a beleza nos absorve. Significa isso que só há beleza
quando cessa a luta do eu, quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso?
Se não ficamos absorvidos nem impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou
um vale cheio de sombras; se não somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza
sem o ego? Quando o eu está presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o
amor e a beleza estão sempre juntos – não são duas coisas separadas.
Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar.
Sejamos ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos
nós; todos vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos
sempre com medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é
viver, o que é a nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas
energias de muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas.
Pode ser que sejam ricos, muito competentes, que sejam especialistas, um grande cientista ou
um homem de negócios; pode ser que tenham poder, posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso
não foi um desperdício?
Toda essa lida, sofrimento, essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o
homem acumulou, deuses, santos, etc., não será tudo isso um desperdício?
Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a si próprio. Ninguém pode
responder por nós.
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Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá no fim da vida; nós a colocamos o
mais longe possível – depois de muito tempo. Mas, ainda que seja uma longa jornada, temos de
morrer.
E o que é isso a que chamamos viver – ganhar dinheiro, ir ao escritório das nove às cinco? E
com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão, desesperança, depressão. Mas
será que toda essa existência a que chamamos vida, viver essa imensa vicissitude do homem com seu
conflito sem fim, decepção, degradação – será osso viver?
Mas é a isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos
familiarizados, essa é a nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo
que pensamos, acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas.
Estamos apegados à família, ao dinheiro, conhecimentos, às crenças com as quais temos
convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo isso. E a morte vem e diz: Esse é o fim de tudo, meu
velho!
Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos e reunimos
– nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: nada mais
lhe pertence. É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido.
Podemos inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida.
Mas NUNCA indagamos o que nasce na vida seguinte.
A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver do morrer? Por que essa
divisão? Existe essa divisão quando há apego. Podemos viver no mundo moderno com a morte?
Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego enquanto vivemos. Estou
apegado a casa em que vivo – comprei a casa por um bom dinheiro e apego-me ao mobiliário, aos
quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e acaba com tudo. Mas será que
podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no fim de cada dia, eliminando
todo nosso apego?
Isso é o que significa morrer.
Como costumamos separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos
juntos, contudo, a vida e a morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral
em que cessa todo o conhecimento como memória.
Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a
contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a
mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo
conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está
dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certos domínios,
no domínio da atividade física.
Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre do
velho conhecimento?
Pode o cérebro estar livre de funcionar perfeitamente noutra dimensão?
Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam; morram no
fim do dia. E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; - viver e morrer não são
duas coisas diferentes.
Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem escutando com muita
atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade.
E, imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer
para tudo que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças,
temores, ansiedades, infortúnios – será que podemos por fim a tudo isso diariamente?
E aí descobrimos que estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.
Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente,
coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será
que podemos viver assim no mundo de hoje – liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no
futuro, sem esperar por algo melhor, ter portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e
morrendo a cada momento?
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Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há um milhão de anos – o
viver e o morrer.
Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e reagir a ele, dizendo: É, mas eu creio
na reencarnação – pois, nesse caso, termina o diálogo entre nós. Estamos apegados a um mundo de
coisas – ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao dinheiro, às crenças com que temos vivido,
aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí afora.
Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória – não somente a memória dos
conhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o
animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo?
Isso é um fato.
Aí chega a morte e diz: acabou seu apego. E nós tememos tal coisa, tememos ficar
completamente libertos disso tudo.
A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos. Podemos inventar e dizer: Sim, mas
eu continuo na próxima vida. Mas o que é que continua?
Compreendem a pergunta?
Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de continuidade a não ser a da
sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a continuidade das crenças - tudo
que o pensamento criou?
O pensamento é limitado e, assim, cria conflito – já vimos isso. E o eu, o ego, a "persona" é
um complicado feixe de memórias, antigas e recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do
conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto do conhecimento.
O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc. Isso que é
o eu. O eu pode inventar tudo que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do pensamento.
E o pensamento é sempre limitado.
Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler livros nem estudar as filosofias; podem
perceber por si próprios que são um feixe de memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis
porque ficamos atemorizados.
A questão, portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?
Agora devemos também examinar juntos, o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será
desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os
filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade,
sofrimento e tudo mais?
O que é o amor? E sem esse "quê", esse perfume, essa chama, ainda que sejam ricos, tenham
poder, posição, importância, sem amor, serão apenas uma concha vazia. Precisamos, por
conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria guerras? Se
amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando existe
ambição? Por favor, enfrentem tudo isso! Mas não conseguimos porque estamos presos a uma
rotina, à sensação repetida de sexo etc.
O amor nada tem haver, com prazer com sensação.
O amor não provém do pensamento; não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro.
É algo que está completamente fora do cérebro, pois o cérebro, por sua própria natureza, é
instrumento da sensação, das reações nervosas etc.
Quando há sensação, não existe amor.
O amor não É coisa da memória. E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião.
Essa é uma questão muito complexa. Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que
esteja além do mundo físico, além da existência diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado
algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores,
pedras – e os aldeões que vivem longe desta feia e detestável cidade (Bombaim) ainda veneram
pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe alguma coisa sagrada e, então,
chega o sacerdote e diz: Vou-lhe mostrar – é exatamente o que faz o guru.
Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o
culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada
disso; são ateus e se dizem humanitaristas.
29
Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há algo fora do tempo, além do
pensamento.
Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso cérebro, nossa razão, nossa lógica para
averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é possível viver uma vida religiosa neste
mundo moderno.
Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida
religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as
descartamos totalmente – não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou
determinada autoridade que se diz espiritual.
Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes que cometemos: inventar um mediador
entre nós e a verdade.
Quando indagamos o que é religião, nessa própria indagação já estamos vivendo
religiosamente; não no fim dela.
No processo mesmo de olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé,
nessa própria investigação já estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.
Tratando-se de assunto religioso, parece que pede a razão, a lógica, o bom senso.
Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o
homem criou – deuses, salvadores, gurus e toda a sua autoridade; precisamos eliminar,
completamente, tudo isso. Nada disso é religião; é apenas autoridade que alguns poucos assumem.
Nós é que lhes conferimos autoridade.
Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um
déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida,
criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar
essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de
se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que
inventamos deuses,crenças, mitos, filosofias. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e
todo esse circo a que damos o nome de religião.
Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o pensamento que
criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas ponham em
dúvida essa revelação.
Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o bom senso, perceberão como
acumulam superstições - e nada disso, obviamente, é religião.
Será que podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o
cérebro, capaz de viver religiosamente?
Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar nada, sem criar
ilusões, e enfrentar o medo?
O medo psicológico pode desaparecer completamente quando ficamos com ele, sem fugir
dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz sobre o medo, um forte jorro de luz; o
medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já não há mais deuses, já não mais rituais,
pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas que o pensamento inventa nada tem que
ver com religião, pois o pensamento não passa de um processo material resultante da experiência, do
conhecimento e da memória. É o pensamento que inventa todo palavrório e estrutura das religiões
organizadas, que já perderam totalmente a significação.
Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa? Será
que querem fazer isso?
Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião. E haverá alguma coisa que
ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta, mas, se o pensamento inventar que
existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo material.
O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais. O
orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro a
atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem
oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do
tempo e do espaço?
30
Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo imensamente
sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é que já deram o
primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião.
Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar. Assim, o que significa a
meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir do tumulto, ter uma mente
silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica?
E, para ficarem atentos, para manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema,
um método, um processo. Sentam-se de pernas cruzadas e repetem um "mantra" qualquer.
Disseram-me que essa palavra, etimologicamente, significa ponderar, não "vir a ser",
absorver eliminar toda atividade egocêntrica. Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e
continuamos vivendo egocentricamente, egoisticamente, pois "mantra" perdeu o significado.
O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar
conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa – uma mente ou um cérebro tranqüilo, um
estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz: Quero
dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo? Qual é a diferença entre os dois?
Ambos estão buscando alguma coisa. O que a busca de um, classificamos de espiritual e a do
outro, de mundana. Não obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é
meditação; meditação nada tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto
da vontade.
Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo
pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem
isso?
Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de
pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer
perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado –
causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma
espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço?
O orador afirma que há. Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar,
indagar, assim como o orador indagou, duvidou, rejeitou.
Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para examinar isso,
precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que tenta alcançar o
ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é necessário
compreender o som.
Som e silêncio são inseparáveis. Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o
som é a batida do coração; o universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o
firmamento está cheio de som. E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos
o som, o próprio ato de escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som.
A meditação, portanto, não é algo planejado, organizado. A meditação apenas é.
Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os ressentimentos, livre de tudo que já
acumulamos – temores, ansiedades, solidão, desespero, sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e
o primeiro passo é o último passo.
Se derem o primeiro passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro
passo porque não queremos ser livres. Queremos depender – do poder, de pessoas, do meio-
ambiente, de nossa experiência, do conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo.
No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão.
A compaixão tem a sua própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria
verdade. Quando essa inteligência está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar – da
cessação do medo, do findar do sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra,
agir.
Ouvem tudo isso que é verdadeiro, lógico, sensato, racional, mas não agem de acordo com
isso.
Vão para casa e começa tudo de novo – as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim,
perguntamos: Qual a finalidade de tudo isso?
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Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não agimos,
desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando a vida. E
a vida é algo muitíssimo precioso – é a única coisa que temos. E acontece que perdemos também
contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que somos da
natureza.
Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas. Estamos a nos
destruirmos uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida. Quando percebemos toda essa coisa
não apenas intelectualmente nem verbalmente, então vivemos uma vida religiosa.
Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada disso é vida religiosa. A
vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor. Podemos amar uma pessoa,
esposa ou marido, mas aquele amor é para todos os seres humanos, não se destina a uma só pessoa,
não é restritivo.
Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro haverá algo que transcende o
tempo. E aí estará a benção - não nos templos, nas igrejas nem mesquitas. Essa benção estará onde
estivermos.

QUE IREMOS FAZER DAS NOSSAS VIDAS?


Esta tarde gostaria de falar sobre várias coisas relacionadas entre si, exatamente como todos
os problemas humanos estão também relacionados. Não podemos considerar um problema
separadamente e tentar resolvê-lo sozinho; cada problema contém todos os outros problemas, se
soubermos penetrar nele em profundidade e compreensivamente.
Gostaria, em primeiro lugar, de perguntar o que irá acontecer a todos nós, jovens e velhos -
que iremos fazer das nossas vidas? Deixar-nos-emos absorver por esta voragem da respeitabilidade
convencional, com a sua moralidade social e econômica, tornar-nos-emos parte da chamada
"sociedade culta", com todos os seus problemas, a sua confusão e as suas contradições? Ou iremos
fazer da nossa vida uma coisa inteiramente diferente? Este é o problema que está perante a maior
parte das pessoas.
Somos educados, não para compreender a vida como um todo, mas para desempenhar um
papel particular nesta totalidade que é a existência. Estamos pesadamente condicionados desde a
infância para "alcançar" alguma coisa nesta sociedade, para ter sucesso e para nos tornarmos
burgueses completos. O intelectual sensível geralmente revolta-se contra um tal padrão de
existência. Na sua revolta pode fazer várias coisas: ou se torna anti-social e contra a política, toma
drogas e vai atrás de qualquer crença religiosa, estreita e sectária, ou se torna um ativista político, ou
ainda, dá-se inteiramente a alguma religião exótica como o budismo ou o hinduísmo. E tornando-nos
sociólogos, cientistas, artistas, escritores ou, se tivermos capacidade para isso, filósofos, fechamo-
nos num círculo e pensamos ter resolvido o problema. Imaginamos então ter compreendido a
totalidade da existência e ditamos aos outros o que deveria ser a vida, de acordo com a nossa
tendência particular, a nossa idiossincrasia, e segundo o ângulo do nosso conhecimento
especializado.
Quando observamos o que é a vida com a sua enorme complexidade e confusão, não apenas
nas esferas econômicas e social, mas também na esfera psicológica, temos de perguntar-nos - se
somos realmente sérios - que papel vamos ter em tudo isto. Que vou eu fazer como ser humano a
viver neste mundo, e não a fugir para alguma existência de fantasia ou para algum mosteiro?
Ao vermos todos este quadro com toda a clareza, qual vai ser então o nosso comportamento,
o que vamos fazer da nossa vida? Esta questão tem sempre de pôr-se, quer estejamos bem dentro do
sistema quer apenas à beira de entrar nele. Por isso, parece-me, temos inevitavelmente de perguntar:
Qual a finalidade da vida? E como ser humano razoavelmente saudável, do ponto de vista
psicológico, que não é totalmente neurótico, que está vivo e ativo: Que papel terei em tudo isto? Que
papel ou parte me atrai? E se me sinto apenas atraído para um fragmento ou uma secção
determinados, tenho então de ter consciência do perigo de tal atração, porque assim regressamos de
novo à mesma velha divisão, que gera esforço, contradição e guerra.
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Poderei então tomar parte na totalidade da vida e não apenas num segmento dela? Tomar
parte na totalidade da vida não significa obviamente ter um conhecimento completo das ciências -
sociologia, matemática, etc. - da filosofia e assim por diante; isso seria impossível a não ser que se
fosse um gênio.
Poderemos portanto criar psicologicamente, interiormente, um modo de viver totalmente
diferente? Isto significa, como é óbvio, que todas as coisas exteriores nos interessam, mas que a
revolução fundamental, radical, se realiza no campo psicológico.
Que podemos fazer para provocar em nós próprios uma tão profunda mudança? Porque cada
um de nós é a sociedade, é o mundo, é tudo o que está contido no passado. Assim, o problema é:
Como podemos nós, vós e eu, implicar-nos na totalidade da vida e não apenas numa das suas partes?
Este é um dos problemas. Mas há também os problemas da conduta, do comportamento, da retidão,
e o problema do amor - o que é o amor, e o que é a morte.
Quer sejamos novos ou velhos, temos de pôr-nos estas questões, porque elas fazem parte da
vida, fazem parte da nossa existência; e esta tarde temos de examinar juntos, se acharem bem, todos
estes problemas. Vamos aprofundá-los juntos - vós não estais à margem de tudo isto, como se cada
um fosse apenas um espectador, um ouvinte a observar por mera curiosidade e com um interesse
casual. Quer nos agrade quer não, estamos todos implicados nesta pesquisa: O que fazer da nossa
vida? O que é uma conduta reta? O que é o amor - se ele realmente existe? Qual é o sentido desta
coisa extraordinária a que se chama morte, que a maioria das pessoas não quer examinar? Assim, ao
compreendermos isto na sua totalidade, temos então de perguntar qual é a finalidade de toda a
existência.
A vida que elevamos presentemente tem na realidade muito pouco significado - passar
nalguns exames, tirar um curso, encontrar um bom emprego e lutar o resto da vida, até morrer. E
inventar uma explicação para esta desordem completa é igualmente desastroso. Então, o que é que
nos é possível fazer, vendo tudo isto e sabendo que tem de haver uma revolução psicológica
profunda que faça surgir uma ordem diferente, uma sociedade diferente, e ao mesmo tempo não
dependendo de ninguém para nos iluminar ou tornar lúcidos - que é que nos é então possível?
Para descobrirmos o que é possível temos, em primeiro lugar, de descobrir o que é
impossível. Ora, o que é que é impossível ou parece ser impossível? Parece ser impossível para uma
mudança completa que uma revolução psicológica integral tenha lugar imediatamente, quer dizer,
amanhã acordais e estais completamente diferentes, a vossa maneira de olhar, de pensar, de sentir é
tão nova, tão viva, tão apaixonada, tão verdadeira, que não existe mais qualquer sombra de conflito
ou hipocrisia. Diz-se que é impossível porque se aceita ou se está acostumado à idéia da evolução
psicológica, uma mudança gradual que pode levar cinqüenta anos; assim o tempo é necessário, não
só o tempo cronológico, mas o tempo psicológico. Essa é a maneira de pensar que tradicionalmente
se aceita: para mudar, para provocar uma revolução psicológica radical, o tempo é necessário. Se
alguém sugere, como faz agora este orador, que é possível mudar imediatamente, direis que é
impossível, não é verdade? Assim, para vós, isso é impossível; agora, a partir do que sabeis ser
impossível, podeis encontrar o que é possível. Então a possibilidade não é o que era antes: é
completamente diferente. Estamos a entender-nos?
Quando dizemos "isto é possível, aquilo é impossível", a possibilidade é mensurável, mas
quando compreendemos alguma coisa que é impossível, então vemos, em relação ao impossível, o
que é possível; e essa possibilidade é então inteiramente diferente daquilo que era possível antes.
Por favor, escutai cuidadosamente, não compareis isto com o que outro qualquer disse -
observai-o apenas, em vós mesmos, e vereis que acontece uma coisa extraordinária.
Essa possibilidade agora, tal como somos, é muito pequena; é possível ir à Lua, é possível
um homem tornar-se rico, tornar-se professor universitário, ou seja o que for, mas esta possibilidade
é muito trivial. Agora quando sois confrontado com uma questão como esta, que cada um de vós
deve mudar completamente, e portanto tornar-se um ser humano totalmente diferente, estais então
em face do impossível. Quando compreendeis a impossibilidade disso, então, relativamente ao
impossível, descobrireis o que é possível, que é algo inteiramente diferente; portanto uma
possibilidade completamente diferente tem lugar na vossa mente. E é desta possibilidade que
estamos a falar, não da possibilidade trivial.
33
Assim, tendo em mente tudo isto - o impossível, e o possível em relação ao impossível, e
vendo todo este modo de existir, que posso eu fazer? O "impossível" é amar, sem qualquer sombra
de ciúme e ódio.
A maior parte de nós, receio bem, é terrivelmente ciumenta, invejosa e possessiva. Quando se
ama alguém, a namorada, a mulher ou o marido, está-se decidido a "prendê-los" para o resto da vida;
pelo menos tenta-se. E chama-se a isso "amor" - ele é "meu" ou ela é "minha". E quando o "meu"
desvia o olhar ou olha para outra pessoa, ou quando se torna algo independente, então surge a raiva,
o ciúme e a ansiedade, e começa o tormento daquilo a que chama amor.
Que é então amar, sem sombra de tudo isso? Sem dúvida que ireis considerá-lo impossível,
não-humano, de fato sobre-humano - portanto, para vós, é impossível. Se virdes a impossibilidade
disso, descobrireis então o que é possível na relação. Espero estar a ser claro. Este é o primeiro
ponto.
Depois a nossa vida, tal como é agora, é luta, dor, prazer, medo, ansiedade, incerteza,
desespero, guerra, antagonismo - sabeis o que é realmente a nossa existência de todos os dias, a
competição, a destruição, a desordem. Isto é o que de fato acontece, não é o que "deveria ser" ou o
que seria "conveniente": só estamos a tratar de aquilo que é.
Assim, vendo tudo isso, dizemos para nós próprios: "É demasiado terrível, tenho de fugir
disto. Quero uma visão mais ampla, mais profunda, mais extensa. Quero tornar-me mais sensível." E
portanto tomamos drogas.
Esta questão das drogas é muito antiga. Há muitos milhares de anos que se tomam drogas na
Índia. Em certa altura chamavam-lhe "soma", agora é o haxixe, o "pan", o LSD, etc.
As pessoas que tomam haxixe e "pan" tornam-se menos sensíveis; perdem-se no seu perfume
e nas diversas visões que isso produz e acentua. Estas drogas são geralmente tomadas pelos
operários, pelos trabalhadores manuais - aqui não tendes os "intocáveis", como lhes chamam na
Índia. Tomam drogas porque as suas vidas são horrivelmente monótonas; têm falta de alimento e por
isso não têm muita energia. As únicas coisas que têm são o sexo e as drogas.
O homem verdadeiramente religioso, o homem que quer realmente descobrir o que é a
verdade, o que é a vida - não a partir dos livros, não a partir daqueles que no campo religioso
mantêm as pessoas entretidas, não a partir de filósofos que apenas estimulam intelectualmente - um
homem assim não tem nada a ver com drogas, porque sabe perfeitamente que elas deformam a
mente, tornando-a incapaz de descobrir o que é a verdade.
Aqui no mundo ocidental muitas pessoas recorrem à droga. Há aqueles que são sérios e que
as tomaram experimentalmente durante algum tempo; alguns deles têm vindo ver-me. Disseram:
"Tivemos experiências que pareciam - segundo o que temos lido nos livros - ter uma semelhança
com a Realidade Última, ser uma sombra do Real." E porque são pessoas sérias, como também o é o
orador, examinaram este problema aprofundadamente; tiveram finalmente de admitir que essa
experiência tem muita simulação, que não tem nada a ver com a Realidade Última, com toda a
beleza dessa imensidão.
Se a mente não estiver lúcida, cheia de saúde e de energia, não pode estar naquele estado de
meditação religiosa que é absolutamente essencial para descobrir essa Realidade que está para além
de todo o pensamento, para além de todo o desejo. Qualquer forma de dependência psicológica,
qualquer espécie de fuga, através da bebida, através de drogas, numa tentativa para tornar a mente
mais sensível, apenas a entorpece e a deforma. Quando abandonamos tudo isso - o que temos de
fazer se somos realmente sérios - ficamos em face do que é viver interiormente só. Não se está então
dependente de nada, nem de ninguém, de nenhuma droga, de nenhum livro, de nenhuma crença. Só
então a mente não tem medo, só então se pode perguntar qual é a finalidade da vida. E se chegarmos
a esse ponto, faremos a pergunta? A finalidade da vida é viver - não no caos completo e na confusão
a que chamamos vida - mas viver de um modo inteiramente diferente, viver uma vida plena,
completa, e viver dessa maneira hoje. É esse o verdadeiro significado da vida - que não é viver como
um herói, mas viver interiormente de modo completo, sem medo, sem luta, sem toda esta miséria.
Isto só é possível quando soubermos o que é impossível; temos portanto de ver se podemos
mudar imediatamente, por exemplo em relação à cólera, ao ódio, ao ciúme, para que não mais
sejamos ciumentos, o que quer dizer invejosos - sendo a inveja uma comparação entre nós e o outro.
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E é possível mudar tão completamente que a inveja (por exemplo) não possa atingir-nos mais? Só é
possível quando tivermos consciência da inveja sem a divisão entre o observador e o observado, de
tal modo que somos a inveja, somos isso: não nós e a inveja, como alguma coisa separada de nós. E
portanto, quando vemos tudo isso completamente, não há possibilidade de fazer alguma coisa em
relação a isso; e quando existe o estado completo de inveja, no qual não há divisão, nem conflito,
então a inveja não existe mais: é algo totalmente diferente.
Podemos então perguntar: Que é o amor? O amor será prazer? Será desejo? O amor será
produto do pensamento, como são o prazer e o medo? Poderá o amor ser cultivado, poderá vir com o
tempo? E se não sei o que é o amor, serei capaz de o encontrar?
O amor não é, obviamente, sentimentalismo ou emocionalidade, por isso podemos pô-los
imediatamente de lado, porque o sentimentalismo e a emocionalidade são românticos, e o amor não
é romantismo.
O prazer e o medo fazem parte do movimento do pensamento e para a maior parte de nós o
prazer é a coisa mais importante da vida - o prazer sexual e a lembrança dele, o pensamento de ter
tido esse prazer, o pensar nele, tornar a pensar, e desejar tê-lo amanhã - a moralidade social está
baseada no prazer.
Assim, se o prazer não é amor, então o que é amor? Reparai nisto, por favor, porque vós é
que tendes de dar resposta a estas questões, não podeis esperar apenas que o orador ou qualquer
outra pessoa o faça. Trata-se de um problema humano fundamental que tem de ser resolvido por
cada um de nós, não por algum guru ou filósofo que diga "isto é amor", "aquilo não é amor".
Amor não é ciúme, não é inveja, ou será? Estais muito silenciosos! Poderemos amar e ao
mesmo tempo sermos ávidos, ambiciosos, competitivos? Pode-se amar quando se matam não só
animais, mas também outros seres humanos?
Pela negação daquilo que o amor não é - não é ciúme, inveja, ódio, não é a atividade
egocêntrica do "eu" e do "tu", a competição tão cheia de fealdade, e desumanidade e a violência da
vida quotidiana - saberemos o que é amor. Quando pusermos de lado todas estas coisas, não
intelectualmente mas de maneira real, com o nosso coração, a nossa mente, as nossas... ia dizer
entranhas - porque obviamente tudo isto não é amor - então encontraremos o amor. Quando
soubermos o que é o amor, quando tivermos amor, então estaremos livres para fazer o que está certo;
e o que quer que façamos estará certo.
Mas para chegar a este estado, para ter esse sentido da beleza e da compaixão que o amor
traz, tem também de haver a morte do ontem. A morte do ontem significa morrer interiormente para
todas as coisas - para toda a ambição e para tudo o que se tenha acumulado psicologicamente.
Afinal, quando vier a morte, isso é o que de qualquer modo vai acontecer - deixaremos a nossa
família, a nossa casa, os nossos valores, todas as coisas que possuímos. Deixaremos todos os livros,
donde obtemos tantos conhecimentos, assim como os livros que queríamos escrever e não
escrevemos, e os quadros que queríamos pintar. Quando se morre para tudo isso, então a mente está
completamente nova, fresca e inocente. Suponho que vão dizer que é impossível.
Quando se diz que é impossível, começa-se então a inventar teorias: deve haver uma vida
depois da morte. Segundo os Cristãos há a ressurreição, enquanto que toda a Ásia acredita na
reencarnação. Os Hindus afirmam que é impossível morrer para todas as coisas enquanto se tem
vida, saúde e beleza; assim, temendo a morte, dão esperança inventando essa coisa "maravilhosa"
chamada reencarnação, o que significa que a próxima vida é melhor. Contudo, o melhor tem uma
condição: para ser melhor na minha próxima vida, tenho de ser bom nesta, portanto, devo saber
comportar-me. Devo viver de maneira reta; não devo fazer mal a ninguém, não deve haver
ansiedade, nem violência. Mas infelizmente esses crentes na reencarnação não vivem dessa maneira;
pelo contrário, são agressivos, tão cheios de violência como qualquer outro, por isso a sua crença
tem tão pouco valor como os dias de ontem já mortos.
O que é importante é o que se é agora, e não se se acredita ou não acredita, se as experiências
que se têm são psicodélicas ou apenas vulgares. O que importa é viver com retidão, com virtude - sei
que não se gosta desta palavra. Abusou-se terrivelmente destas duas palavras "virtude" e "retidão",
todos os sacerdotes as usam, qualquer moralista ou idealista as emprega. Mas virtude é
completamente diferente de qualquer coisa que seja praticada como sendo virtude, e aí reside a sua
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beleza, se se tenta "praticá-la", deixa de ser virtude. Ela não é do tempo, por isso não pode ser
"praticada", e uma conduta reta não depende do ambiente; a conduta que depende do ambiente
poderá estar correta à sua maneira, mas não é virtude. Virtude é amor; é não ter medo, é viver no
mais alto nível da existência, o que significa morrer interiormente para todas as coisas - morrer para
o passado - para que a mente se torne clara e inocente.
Só uma mente assim pode encontrar aquela imensidão extraordinária que não é invenção da
própria pessoa, nem de algum filósofo ou guru.
Interlocutor - Podia explicar, por favor, a diferença entre pensamento e insight?
Krishnamurti - Por insight entende compreensão? Ver uma coisa com muita clareza, sem
confusão, sem escolha? Quero compreender em que sentido está a usar a palavra insight. É isto?
I - É, sim.
K - O que é pensar? Queira reparar nisto, por favor. Quando lhe faço esta pergunta "o que é
pensar?", que acontece na sua mente?
I - Pensamento.
K - Vamos devagar. Passo a passo, sem nos precipitarmos. Que acontece? Faço-lhe uma
pergunta. Pergunto-lhe onde mora ou como se chama. A sua resposta é imediata, não é verdade?
Porquê?
I - Porque se trata de uma coisa no passado.
K - Não complique a coisa, por favor, olhe-a apenas. Vamos já complicá-la, mas primeiro
olhe só para ela. Pergunto-lhe como se chama, onde vive, o seu endereço, etc. A resposta é imediata,
porque está familiarizado com ela, não tem de pensar. Provavelmente a princípio pensou nisso, mas
foi ensinado desde criança a saber o seu nome. Não há nenhum processo de pensamento envolvido
nisso. Ora, a seguir pergunto-lhe uma coisa um pouco mais difícil e há um espaço de tempo entre a
pergunta e a sua resposta. Que acontece nesse intervalo? Devagar, não me responda, mas descubra-o
para si. Bem, vou fazer-lhe uma pergunta: Qual é a distância daqui até à Lua, ou até Marte, ou até
Nova Iorque? Nesse intervalo que é que acontece?
I - Estou a procurar.
K - Está a procurar, não é assim? A procurar onde?
I - Na minha memória.
K - Está a procurar na memória, isto é, alguém lho disse ou já leu algo sobre isso, portanto
está a procurar no seu "armário". E então consegue a resposta. Para a primeira pergunta houve uma
resposta imediata, mas não está seguro quanto à segunda questão e assim leva mais tempo. Nesse
intervalo está a pensar, a indagar, a investigar e eventualmente encontra a resposta certa, Ora, se lhe
fizerem uma pergunta muito complexa, como "o que é Deus?"...
I1 - Deus é amor.
I2 - Deus é tudo.
I3 - A resposta não se encontra na minha memória.
K - Ora escutem: "Deus é amor", "Deus é tudo"...
I - Deus é o grande agente de mudanças.
K - Etc. Agora observem, vejam bem o que aconteceu. Não disseram: "Não sabemos a
resposta certa." Reparem nisto, por favor. É muito importante. Quando não se sabe, acredita-se!
Vejam o que acontece - o pensamento atraiçoa-nos.
Primeiro uma pergunta familiar, depois uma mais difícil e finalmente uma pergunta à qual
mente responde. Estou condicionado para acreditar em Deus, e portanto tenho uma resposta. E se
fosse Comunista diria: "De que estão a falar? Não sejam patetas, Deus não existe. Isso é uma crença
burguesa, inventada pelos padres!"...
Estamos então a falar do pensamento. Antes de mais, para descobrir se há ou não há Deus - e
temos de o saber, de outro modo não seremos seres humanos completos - para descobrir isso, toda a
crença, isto é, todo o condicionamento produzido pelo pensamento humano que nasça do medo, terá
de deixar de existir.
Compreendemos então o que é o pensamento: é a resposta da memória, que é o nosso
conhecimento acumulado, a nossa experiência e o nosso fundo de condicionamento; quando nos
fazem uma pergunta, são provocadas certas vibrações e respondemos a partir dessa memória. O
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pensamento é isso. Por favor, observai-o em vós próprios. O pensamento é sempre velho,
obviamente, porque responde a partir do passado, e portanto o pensamento nunca pode ser livre.
Não estão a "simpatizar" muito com isso, pois não?... "Liberdade de pensamento"... Mas não
riam, tentando livrar-se disso, olhem-no por favor com muito cuidado! Prestamos culto ao
pensamento, não é verdade? O pensamento é a coisa mais importante na vida, os intelectuais têm por
ele uma verdadeira adoração, mas quando se olha muito de perto para todo o processo de
pensamento, por muito racional que ele seja, por muito lógico, ele é apesar disso a resposta da
memória, que é sempre velha - e assim o pensamento, ele próprio, é velho e nunca pode ser fonte de
liberdade. Mas, por favor, não aceitem o que o orador diz sobre o que quer que seja.
Como estamos a ver então, o pensamento confunde-nos. A vossa pergunta era "qual a
diferença entre pensamento e insight?", que, como vimos, é o mesmo que compreender, ver as coisas
com muita clareza, sem qualquer confusão. Quando se vê uma coisa com muita clareza - estamos a
referir-nos ao aspecto psicológico - então não há escolha; só há escolha quando há confusão.
Dizemos que há "liberdade de escolha", o que de fato significa que há liberdade para estar confuso,
porque se não estivermos confusos, se virmos uma coisa instantaneamente e com muita clareza,
então para que é preciso escolher?
E quando não há escolha, há clareza.
A clareza, o insight ou a compreensão só são possíveis quando o pensamento está suspenso,
quando a mente está tranqüila. Só então se pode ver muito claramente - então podeis dizer que
compreendeis realmente aquilo de que estamos a falar, então há percepção direta, porque a mente
não está confusa.
Confusão implica escolha e a escolha é produto do pensamento. Farei isto ou farei aquilo? O
"eu" e o "não-eu", o "tu" e o "não-tu", "nós" e "eles", etc., tudo isso é resultado do pensamento. E
disto nasce conflito, confusão, e é a partir dessa confusão que escolhemos; escolhemos os nossos
líderes políticos, os nossos gurus, e tantas outras coisas; mas quando há clareza, então há percepção
direta. E, para ser clara, a mente tem de estar completamente silenciosa, completamente tranqüila.
Há então uma verdadeira compreensão e, por isso mesmo, essa compreensão é ação, e não o
contrário.
I - Como é que as pessoas se tornam neuróticas?
K - Como é que sabemos que elas são neurótica? É uma pergunta muito séria, por isso
reparemos bem. Como é que sei que elas são neuróticas? Serei também neurótico por reconhecer que
elas o são?
I - Sim.
K - Não diga que sim tão rapidamente! Vamos olhar bem para isto, vamos escutá-lo. Que
quer dizer neurótico? Ser um pouco estranho, confuso, sem lucidez, ligeiramente desequilibrado? E
infelizmente quase todos somos ligeiramente desequilibrados. Não? Não tem bem a certeza... Não
somos desequilibrados quando somos Cristãos, Hindus, Budistas, Comunistas, etc.? Não somos
neuróticos quando nos fechamos nos nossos problemas, erguendo um muro à nossa volta porque
pensamos que somos muito melhores do que outro qualquer? Não somos desequilibrados quando a
nossa vida está cheia de resistência - o "eu" e "tu", o "nós" e "eles" e todas as outras divisões? Não
somos neuróticos no emprego quando queremos passar à frente do outro?
Como é então que a pessoa se torna neurótica? Será a sociedade que a faz neurótica? Essa é a
explicação mais simples - o meu pai, a minha mãe, o meu vizinho, o governo, o exército, toda a
gente me faz neurótico. São todos responsáveis pelo meu desequilíbrio. E quando vou ao psiquiatra
em busca de ajuda, pobre homem, ele também é neurótico, como eu... Não riam, por favor. É isto
exatamente o que está a acontecer no mundo.
Ora por que é que me torno neurótico? No mundo, tal como existe agora - a sociedade, a
família, os pais, os filhos - não há amor. Pensam que haveria guerras se tivessem amor? Julgam que
haveria governos que consideram perfeitamente certo que as pessoas sejam mortas? Uma sociedade
assim nunca existiria se as mães e os pais amassem realmente os filhos, se quisessem o seu bem, se
olhassem por eles e os ensinassem a ser bondosos, a viver e a amar.
Essas são as pressões e as exigências exteriores que dão origem a esta sociedade neurótica;
há também impulsos e pressões dentro de nós mesmos, a violência inata que herdamos do passado -
37
tudo isso ajuda a criar esta neurose, este desequilíbrio. O fato é portanto este - somos quase todos
ligeiramente desequilibrados, ou mais do que isso, e não adianta culpar seja quem for. O fato é que
psiquicamente não se é equilibrado - mentalmente, sexualmente, de todas as maneiras, estamos
desequilibrados. Mas o importante é a pessoa tomar consciência disso, saber que não é equilibrada,
não "como" tornar-se equilibrada. Uma mente neurótica não pode fazer-se equilibrada, mas se não
tiver chegado ao extremo da neurose, se ainda conservar algum equilíbrio, é capaz de se observar a
si própria. A pessoa pode então estar atenta ao que faz, ao que diz, ao que pensa, à maneira como
anda, como está sentada, como come, observando constantemente, mas sem corrigir.
Se se observar dessa maneira sem qualquer escolha, então, dessa observação profunda surgirá
um ser humano são e equilibrado; então não mais se será neurótico. Uma mente equilibrada é sábia,
e não moldada por juízos e opiniões.
I - Onde é que acaba o pensamento e começa o silêncio?
K - Já alguma vez notou um espaço entre dois pensamentos? Ou está constantemente a
pensar sem intervalo nenhum? Compreende a pergunta?
I - Não.
K - Haverá um intervalo entre dois pensamentos? A pergunta é clara?
I -- É, sim.
K - Ou é a primeira vez que lhe é feita esta pergunta? Quer então saber o que é o silêncio?
Silêncio será o cessar do ruído? Será como a "paz" que existe entre duas guerras? Será o intervalo
entre dois pensamentos? Ou não tem nada a ver com isto?
Se o silêncio for o cessar do pensamento, o cessar do ruído, então será muito fácil suprimir o
ruído, isto é, dado que o ruído é a tagarelice - pára-se de tagarelar. Mas será isso silêncio? Ou o
silêncio é um estado da mente que já não está confusa, que já não tem medo?
Portanto, onde começa o silêncio? Será que começa quando o pensamento acaba? Já tentou
alguma vez acabar o pensamento?
I - Quando a mente muda radicalmente de velocidade, é uma mente tranqüila.
K - Sim, senhor, mas alguma vez tentou parar o pensamento?
I - Como é que se faz?
K - Não sei, mas já tentou? Antes de mais, quem é a entidade que tenta pará-lo?
I - O pensador.
K - É outro pensamento, não é verdade? É o pensamento que tenta parar-se a si próprio, por
isso há uma batalha entre o pensador e o pensamento. Observe este conflito com muito cuidado, por
favor. O pensamento diz: "Devo parar de pensar, porque experimentarei então um estado
maravilhoso. Ou pode ser outro motivo qualquer. E assim tenta-se reprimir o pensamento.
Ora a entidade que tenta reprimir o pensamento faz ainda parte do pensamento, não é
verdade? Um pensamento está a tentar reprimir outro pensamento, e assim á conflito, é uma batalha.
Quando vejo totalmente este ponto, quando o compreendo completamente, quando tenho dele um
insight, no sentido em que aquele senhor usou o termo - então a mente fica em silêncio. É o que
acontece naturalmente, e de maneira fácil, quando a mente está quieta para observar, para olhar, para
ver.
I - Quando a atividade egocêntrica cessa, o que é que motiva a ação?
K - Vejamos primeiro o que acontece quando a atividade egocêntrica cessa - então já não
faremos a pergunta, então veremos a beleza da ação em si mesma e não precisaremos de um motivo,
porque o motivo faz parte da atividade egocêntrica. Quando essa atividade egocêntrica não existe, a
ação não tem motivo algum e é, portanto, verdadeira, reta e livre.
CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, SANTA CRUZ, 1972

***

PERCEPÇÃO
Que ansiedade pomos na resolução dos nossos problemas! Com que insistência buscamos
uma resposta, uma saída, um remédio! Nunca consideramos o problema em si, mas, cheios de
38
agitação e ansiedade, lutamos por encontrar uma solução, a qual é invariavelmente uma projeção de
nós mesmos. Embora o problema tenha sido criado por nós, queremos encontrar uma solução fora
dele. Procurar uma solução fora do problema é evitar o problema - sendo isto o que quase todos nós
queremos. A solução torna-se assim aquilo que é mais significativo, e o problema não. A solução
não está separada do problema; está no problema, e não fora dele; a solução está no problema, não
fora deste. Se pensamos que a solução está desligada do problema principal, criamos problemas
secundários: o problema de como conseguir a solução, de como levá-la a efeito, etc. Visto que a
busca de solução é uma maneira de fugir ao problema, deixamo-nos tomar pelos ideais, convicções,
experiências, que são autoprojeções; adoramos estes ídolos criados por nós, e assim nos tornamos
mais e mais confusos e cansados. Arranjar uma solução é relativamente fácil; compreender um
problema é muito difícil, exigindo-se um outro modo de abordagem, uma abordagem que não
implique nenhum desejo de solução.
Estarmos livres do desejo de uma resposta é essencial para a compreensão do problema. Esta
liberdade facilita toda a atenção, porque através desta a mente não está sujeita a ser distraída por
questões secundárias. Enquanto houver conflito, ou oposição, com o problema, não haverá
compreensão do mesmo; pois este conflito é distração. Só há compreensão quando há comunhão, e
esta é impossível se há resistência ou luta, medo ou aceitação. Temos de estabelecer a relação
correta com o problema: é aqui que começa a compreensão; mas como é possível uma relação
correta com o problema, se só nos interessa livrar-nos dele, encontrando uma solução para ele? A
relação correta significa comunhão, e não pode existir comunhão se há resistência, positiva ou
negativa. O modo de abordagem do problema torna-se assim mais importante do que o próprio
problema; a maneira como consideramos o problema afeta este nos seus contornos. Os meios e o fins
não são diferentes da abordagem. A maneira como enfrentamos decide o destino do problema.
Portanto, o modo como consideramos um problema é da maior importância, porque as nossas
atitudes e preconceitos, os nossos medos e esperanças acabam sempre por colori-lo. Uma percepção
sem escolha, trará o correto relacionamento com o problema. O problema é criado por nós próprios,
portanto tem de haver autoconhecimento. Eu e o problema formamos um todo, e não dois processos
separados. Eu sou o problema.
As atividades do "eu" são terrivelmente monótonas. O "eu" é tédio. Ele é intrinsecamente
enervante, inútil, fútil. Os seus desejos opostos e em conflito, as suas esperanças e frustrações, as
suas realidades e ilusões são escravizantes e vazias. Essas atividades levam-no à sua própria
exaustão. O "eu" está sempre a subir e a cair, sempre a querer alcançar alguma coisa e a sentir-se
frustrado, sempre a ganhar e a perder; e está sempre a querer libertar-se deste cansativo carrossel de
futilidade. Procura fugir através de atividades exteriores, de soluções que dêem prazer, de bebida, de
sexo, de livros, de conhecimentos, de divertimentos, etc. O seu poder de criar ilusões é vasto e
complexo. Essas ilusões são por ele fabricadas e projetadas a partir de si próprio; elas são o ideal, a
idolatria de "mestres" e "salvadores", o futuro como meio de autopromoção, etc. Na tentativa de
fugir da sua própria monotonia, o "eu" procura sensações e excitações interiores e exteriores, as
quais são substitutos para a ausência de eu. Nestes substitutos, ele espera perder-se. Muitas vezes,
sai-se bem, mas o sucesso só serve para lhe aumentar o tédio. Vai buscando substituto após
substituto, com cada um deles a criar problemas, conflitos e sofrimento.
Persegue-se, interiormente e exteriormente, o esquecimento de si mesmo; uns voltam-se para
a religião, outros, para o trabalho e atividades. Mas é impossível esquecer o "eu". O barulho que se
faz interiormente ou exteriormente poderá abafar o "eu", mas este não tarda a surgir, sob forma
diferente, com outra máscara; pois tudo o que se reprime acaba por encontrar um meio de se libertar.
O esquecimento de si mesmo através da bebida ou do sexo, pela devoção ou pelo saber, leva à
dependência; e tudo o que cria dependência, cria problemas. Se para nos libertarmos, se para nos
esquecermos, se para sermos felizes dependemos de bebidas, de "Mestres", os "Mestres" ou as
bebidas tornam-se o nosso problema. A dependência gera a inveja, o medo, o desejo de possuir; e
então o medo e o modo de o dominar transformam-se para nós num terrível problema. Ao buscarmos
a felicidade criamos problemas, e deles ficamos prisioneiros. Encontramos uma certa felicidade no
autoesquecimento do sexo, e por isso servimo-nos do sexo como meio de alcançarmos o que
pretendemos. A felicidade conseguida por intermédio de uma qualquer coisa, tem de gerar
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inevitavelmente conflito, pois deste modo os meios tornam-se muito mais significativos e
importantes do que a própria felicidade. Se a minha felicidade depende daquela cadeira, a cadeira
torna-se importantíssima para mim e tenho de a defender dos outros. Nessa luta, a felicidade que
antes eu achava na beleza da cadeira é esquecida completamente, perde-se, e só me resta a cadeira.
A cadeira, em si, é de pouco valor; mas eu atribui-lhe um valor extraordinário por ser um meio para
a minha felicidade. Assim, o meio torna-se substituto da felicidade.
Quando o meio pelo qual obtenho a minha felicidade é uma pessoa, então o conflito e a
confusão, o antagonismo e a dor são muito maiores. Se as relações estão simplesmente baseadas no
uso, haverá um outro tipo de relação não superficial entre as partes? Se me sirvo de alguém para
conseguir a minha felicidade, estarei de fato em relação? Estar em relação significa estar em
comunhão com outro em diferentes níveis; e existirá essa comunhão quando o outro me serve de
instrumento para a minha felicidade? Nessa utilização do outro, não estarei eu à procura de
isolamento, no qual penso ser feliz? A este isolamento chamo "relacionamento"; mas o que
realmente se passa é que não há nenhuma comunhão neste processo. Só pode existir comunhão
quando não existe medo; e acontece a corrosão do medo e do sofrimento onde há utilização do outro
e dependência psicológica. Como nada pode viver em isolamento, todas as tentativas feitas pela
mente para se isolar, só a levam à frustração e ao sofrimento. Para escapar a este sentimento de
vazio, procuramos encher-nos de ideais, de pessoas, de coisas; e voltamos ao princípio de onde
partimos: à busca de substitutos.
Os problemas existirão sempre onde as atividades do "eu" forem dominantes. Para
percebermos quais são e quais não são as atividades do "eu", é preciso constante vigilância. Essa
vigilância não é atenção disciplinada, mas sim uma percepção extensiva que não escolhe. A atenção
disciplinada dá força ao "eu"; torna-se um substituto e uma dependência. A compreensão, pelo
contrário, não é auto-indutória, nem é resultado de práticas: é a compreensão de todo o conteúdo do
problema, tanto a nível superficial como a nível profundo. A parte superficial tem de ser
compreendida, para que o que está em profundidade se revele; o que está oculto não pode ser trazido
à luz, se a mente superficial não estiver tranqüila. Todo este processo não é verbal, nem é uma
questão de mera experiência. A verbalização indica embotamento da mente; e a experiência, sendo
acumulativa, só pode originar repetição. A percepção não é uma questão de determinação, pois, o
movimento propositado é resistência, o qual leva à exclusividade. Percepção é a observação
silenciosa e sem-escolha do que é; através desta percepção o problema desdobra-se a si mesmo, e
assim passa a ser completamente compreendido.
Um problema jamais pode ser resolvido no seu próprio nível; sendo algo complexo, tem de
ser compreendido no seu processo total. Tentar resolver um problema num só nível, físico ou
psicológico, leva a mais conflito e confusão. Para que um problema se resolva, tem de haver essa
percepção, essa vigilância não interventora que desvenda o processo total.
O amor não é sensação. A sensação faz nascer o pensamento através de palavras e símbolos.
As sensações e o pensamento tomam o lugar do amor, tornam-se substitutos do amor. As sensações
são produtos da mente, do mesmo modo que os apetites sexuais. A mente gera o desejo, a paixão,
através da lembrança, e recebe daí sensações gratificantes. A mente é composta de interesses e
desejos diferentes em conflito, com as suas sensações exclusivas; e há choques quando um ou outro
começa a ser dominante, criando-se assim um problema. As sensações podem ser agradáveis ou
desagradáveis, e a mente segura-se ao que é agradável, o que a torna escrava delas. Esta escravidão
torna-se um problema porque a mente é um depósito de sensações contraditórias. O evitar daquilo
que é doloroso é, do mesmo modo, uma escravidão, com as suas próprias ilusões e problemas. A
mente é a criadora dos problemas e, portanto, não pode resolvê-los. O amor não pertence à mente;
mas quando a mente intervém, há sensação, a que chama "amor". É este amor gerado pela mente que
pode ser pensado, que pode ser vestido e identificado. A mente pode recordar-se ou antecipar
sensações agradáveis, e este processo é apetite, esteja ele em que nível estiver. Dentro do campo da
mente não pode existir amor. A mente é a área do medo e do calculismo, da inveja e da dominação,
da comparação e da negação, e assim o amor não pode acontecer. Os ciúmes, como o sentimento de
orgulho, são produto da mente; eles não têm nada a ver com amor. O amor e o processo mental não
se podem ligar, não podem ser um todo uno. Quando as sensações predominam, não fica espaço para
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o amor, porque as coisas da mente enchem o coração. E assim, o amor torna-se algo desconhecido
que temos de perseguir e adorar; passa a ser um ideal, para ser usado, e os ideais são sempre
projeções do "eu". Então a mente toma conta de tudo, e o amor passa a ser uma palavra, uma
sensação. O amor torna-se comparativo: "Eu amo "mais" e tu amas "menos"." Mas o amor nem é
pessoal nem impessoal; o amor é um estado de ser, no qual a sensação, como pensamento, está
completamente ausente.
Krishnamurti - From COMMENTARIES ON LIVING

***

Podemos ir longe, se começarmos de muito perto. Em geral começamos pelo mais distante,
"o supremo princípio", "o maior ideal", e ficamos perdidos em algum sonho vago do pensamento
imaginativo.
Mas quando partimos de muito perto, do mais perto, que é nós, então o mundo inteiro está
aberto - pois nós somos o mundo.
Temos de começar pelo que é real, pelo que está a acontecer agora, e o agora é sem tempo.

VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO
Toda a forma de conflito é violência - não só o conflito psicológico, interior, mas também o
conflito exterior, nas nossas relações com os outros seres humanos, com a sociedade. O sofrimento
parece-me constituir um dos mais complexos e difíceis problemas; e essa complexidade, justamente,
requer que o encaremos de uma maneira bem simples. Todo o problema complexo, principalmente
um problema humano - e temos tantos! - deve, por certo, ser considerado com muita clareza e
simplicidade, sem nenhum "fundo" ideológico. De outro modo, traduzimos o que vemos em
conformidade com o nosso condicionamento e com as nossas tendências e intenções.
Para compreendermos estes dois problemas - a violência e o sofrimento - tão profundamente
arraigados no nosso ser, não devemos examiná-los de maneira puramente verbal ou intelectual. O
intelecto não resolve problema nenhum. Poderá explanar problemas - e qualquer pessoa inteligente é
capaz disso - mas a explicação, por mais erudita, por mais subtil que seja, não é a realidade. De nada
serve explicar a um homem cheio de fome os excelentes alimentos que existem; isso para ele não
vale nada. Mas, se apreciarmos estas questões não intelectualmente, mas real e totalmente, se nelas
nos empenharmos a fundo e desenredarmos estes dois terríveis problemas que destroem a mente,
talvez então possamos superá-los.
Nós, seres humanos, aceitamos a violência e o sofrimento como uma maneira de viver e, já
que os aceitamos, tentamos fazer com eles o melhor que podemos. Prestamos culto ao sofrimento,
idealizamo-lo e com ele vamos vivendo - como se faz no mundo cristão. No mundo oriental
traduzem-no de outras maneiras, mas também sem lhe encontrar a solução. Como tenho dito,
herdamos essa violência do animal: a nossa agressividade, o nosso espírito de domínio, o desejo de
poder, ânsia de preenchimento. A nossa estrutura cerebral, herdada do animal, é também produto do
animal, é também produto da evolução e não só tem a função de auto-proteger-se, como é também
agressiva, violenta, dominadora, pensando em termos de posição, de prestígio; todos sabemos isso.
O sofrimento, a auto-compaixão, que faz parte desse sofrimento, a solidão, a total
inexpressividade da existência, o tédio, a rotina, despojam a vida de todo o sentido e, por isso,
inventamos-lhe uma finalidade; os intelectuais criam uma finalidade ideológica, de acordo com a
qual procuramos viver. E, não sendo capazes de resolver esses problemas, voltamo-nos para o
passado; para a nossa juventude ou para a cultura tradicional, conforme a raça, o país, etc. Quanto
mais urgente se torna o problema, tanto mais nós fugimos para alguma explicação ideológica vinda
do passado ou relativa ao futuro; e ficamos aprisionados nessa armadilha. Tanto no Oriente como no
Ocidente, se observa a fuga para toda a espécie de entretenimento - o futebol, o cinema, a igreja, etc.
A necessidade de distração, de entretenimento assume todas as formas possíveis: visitar museus,
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conversar interminavelmente sobre música, sobre os últimos livros publicados, ou escrever acerca de
alguma coisa passada e morta, sem valor nenhum.
Ao que parece, há pouca gente verdadeiramente séria. Por palavra "sério" entendo a
capacidade de examinar um problema até ao fim, e resolvê-lo. Resolvê-lo, não de acordo com as
inclinações pessoais ou o temperamento de cada um, ou segundo a pressão do ambiente, mas
deixando tudo isso de parte e investigando até ao fim a verdade relativa a uma dada questão. Essa
seriedade parece bastante rara. Para que possam ser resolvidos estes dois problemas básicos - a
violência e o sofrimento - temos de ter essa seriedade e ainda uma certa capacidade de percebimento,
de atenção, porquanto ninguém pode resolvê-los por nós. Evidentemente, que nem as velhas
religiões, nem organizações bem planeadas e aperfeiçoadas por uma determinada autoridade ou
sacerdote - nada nem ninguém desta categoria pode ajudar-nos; são coisas obviamente sem
significação. Pode observar-se em todo o mundo que a chamada nova geração está atirando aos
ventos todas essas coisas sem sentido - igrejas, deuses, crenças, dogmas, rituais. Para o homem
sensato essas autoridades perderam toda a importância. É claro que não tem sentido dependermos de
qualquer espécie de autoridade quando o mundo se acha em tal estado de confusão e de sofrimento;
principalmente da autoridade organizada num plano religioso, com as respectivas sanções.
Não se pode confiar em ninguém, nem em Salvadores, nem em Mestres - em nenhuma
pessoa, incluindo este que vos fala. E, depois de termos posto de lado totalmente todos os livros,
filosofias, santos, anarquistas, vemo-nos frente a frente conosco mesmos, tais como somos. Não há
filosofia, literatura dogmas, rituais, capazes de pôr fim à violência e ao sofrimento. Precisamos
reconhecer isso, antes de passarmos adiante. Quanto mais sério o indivíduo é, e quanto mais urgente
é o problema, essa própria urgência recusa a autoridade que tão facilmente aceitamos.
Outro problema é: como examinar, como observar a violência e o sofrimento, tal como em
nós existem? Como dissemos, os seres humanos, individualmente, são produto da sociedade, da
cultura em que vivem, e essa sociedade e cultura foram construídas por cada um de nós. A sociedade
é produto dos seres humanos, e nós fazemos parte desse produto; eis a nossa situação. Estamos
aprisionados na armadilha das nossas inclinações, tendências e prazeres pessoais, e tudo isso
constitui a estrutura social. Tendemos a considerar o indivíduo e a sociedade como duas coisas
diferentes e, portanto, pergunta-se: Que valor tem o homem que se transforma, em relação à
estrutura total da sociedade? Tal pergunta parece-me absurda.
Não estamos considerando um dado indivíduo ou uma dada sociedade - francesa, inglesa, ou
outra - mas o problema humano geral. Não estamos considerando o indivíduo em relação com a
sociedade, nem a relação da sociedade, do "coletivo", com o indivíduo; estamos a tratar da totalidade
do problema e não de uma questão particular.
Só podemos compreender uma coisa quando a vemos integralmente, quando lhe vemos toda
a estrutura e a respectiva significação. Não podemos perceber a estrutura total da vida, o seu
movimento completo, se apenas nos preocuparmos com uma parte dela. Só quando vemos o mapa
inteiro, podemos saber onde estamos e escolher o caminho certo. Deste modo, não estamos
interessados na salvação ou libertação individual, mas interessa-nos sim o movimento global da
vida, a compreensão da corrente total da existência; então talvez possamos encarar de maneira
completamente diferente os problemas individuais. É extremamente difícil ver e compreender a
totalidade; isso precisa de atenção. Nada se pode compreender intelectualmente; poderemos ouvir
palavras, dar explicações, descobrir causas, mas isso não é compreensão. Na observação de nós
mesmos, a compreensão só pode verificar-se quando a mente, que inclui o cérebro, está inteiramente
atenta. E uma pessoa não está atenta quando interpreta e traduz conforma o seu próprio fundo.
Devem ter notado que quando a mente está totalmente quieta - sem exigir nada, sem fazer
"barulho", sem fragmentar o problema - quando diante do problema está perfeitamente tranqüila, há,
então, compreensão. Essa compreensão atua, é a força ou energia que nos liberta do problema.
Estamos, pois, empregando a palavra "compreensão" nesse sentido e não no sentido de
compreensão intelectual ou emocional. Ela é propriamente uma negação do "positivo", pois
"positivo" é o "compreender" um problema com um motivo: o propósito de "fazer alguma coisa" em
relação a ele. Em geral quando temos um problema, tendemos a preocupar-nos com ele, a
fragmentá-lo, a analisá-lo, a achar uma fórmula para o resolver. E o pensamento, como se pode
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observar, é sempre reação do "velho"; portanto, nunca é novo e o problema, entretanto, é sempre
novo. Traduzimos o novo, o problema, em termos de pensamento, mas o pensamento é velho e,
portanto, "positivo", no sentido de "fazer alguma coisa" em relação ao problema.
O pensamento é a reação do passado; é memória, experiência, conhecimento acumulado; é
velho e os desafios são sempre novos - se são desafios. Desse fundo de conhecimento, experiência,
memória, procede a reação, na forma de pensamento; o pensamento é sempre do passado e traduz o
desafio ou o problema nesses termos. E o pensamento, como se pode observar, produz, em relação
ao problema, uma reação "positiva", ditada pelo passado.
Vemos, pois, que o pensamento não representa a solução; mas isso não significa que nos
devemos tornar "nebulosos", vagos, distraídos ou mais neuróticos do que já somos. Pelo contrário,
quanto mais atenção prestamos - atenção completa - a uma coisa, qualquer que ela seja, vemos que
nessa atenção não há pensamento algum, não há pensar; não há nenhum "centro" a funcionar como
pensamento. A compreensão acontece sem a reação do "fundo" de pensamento. Compreensão é ação
imediata.
Está mais ou menos claro isso, ou parece abstrato demais? Vejamos: se quero compreender
uma criança, tenho de observá-la, de dar-lhe atenção. Observá-la quando brinca, quando chora,
quando se comporta "mal", quando faz qualquer coisa; observá-la, simplesmente, sem a corrigir.
Preciso de a compreender; portanto, não tenho preconceitos, não tenho padrões de pensamento
relativos ao que é "bom" e ao que é "mau". Observo-a, somente; e, nessa atenção vigilante, começo a
compreender a natureza da sua atividade. É relativamente fácil observar, dessa maneira, a natureza,
uma flor, por exemplo; a natureza não exige muito de nós. Observar uma coisa objetiva é bastante
fácil. Mas observar o que se passa interiormente em nós, observar a nossa violência, o nosso
sofrimento, com clara atenção, já não é tão fácil. Tal observação, tal atenção, exclui totalmente
qualquer espécie de inclinação ou tendência pessoal ou de compulsão por parte da sociedade; é como
observar o movimento de um rio. Quem se senta na margem de um rio pode observar-lhe o fluir e
tudo ver. Mas a pessoa sentada na margem e o movimento do rio são dois entes diferentes; ela
constitui o "observador" e o movimento do rio é a coisa "observada". Já quando está dentro de água -
e não sentada na margem - participa desse movimento e não há nenhum "observador". Do mesmo
modo, observemos a violência e o sofrimento, não como observadores a "observar" uma coisa, mas
sem espaço entre o observador e o observado. Isto faz parte da investigação total, da meditação
sobre a vida.
Como já dissemos, nós os seres humanos somos violentos, e essa violência, herdada do
animal, nunca a investigamos realmente porque temos o conceito da "não violência"; interessa-nos o
conceito e a ideologia da "não violência" - o que "deveria ser", e não o fato, o que realmente é.
Permitam-me sugerir-lhes que não se limitem a ouvir palavras; palavras são palavras e pouco
significam. Semanticamente, podemos penetrar-lhes o significado, mas a palavra não é a coisa, a
explicação não é o fato - o que é. Qualquer um está sujeito a cair na armadilha verbal, e ficar
escutando, infinitamente, só palavras. Palavras são cinzas, não têm sentido profundo. Mas se
ouvirem para além das palavras, se se observarem como realmente são - não agora, porque estão a
ouvir uma palestra, mas "lá fora"; se se observarem, não egocentricamente, não introspectiva ou
analiticamente, mas apenas observando o que efetivamente acontece, descobrirão então,
pessoalmente, não só a violência superficial (a cólera, o desejo de posição, etc.) mas também a
violência profundamente enraizada. Com essa descoberta, o "conceito" da não violência perde toda a
validade; válido é o fato - a violência.
Observe-se o fato da violência no Oriente: na Índia sempre se falou, se pregou, se "praticou"
a não violência; mas, no momento em que se apresenta qualquer desafio, a não violência desaparece
e todos se tornam violentos. Aqui, igualmente, se fala sem cessar de paz; em todas as igrejas se fala
de amor, de bondade, de amar o próximo; entretanto, tivemos as guerras mais terríveis - quinze mil
guerras, ao todo, nos últimos cinco mil anos! E temos de observar como está profundamente
arraigada em nós essa violência - na nossa exigência de preenchimento, na competição e na
constante comparação com outrem, no imitar, no obedecer, no seguir alguém, no ajustar-nos a um
padrão; tudo isto são formas de violência. A nossa libertação em relação a essa violência exige muita
atenção e empenhamento; se não ficamos livres dela, não vejo como possa haver paz no mundo.
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Poderá haver uma suposta paz entre duas guerras, entre dois conflitos; no entanto, essa paz não é a
paz real, íntima, profunda, não contaminada por qualquer ideologia ou qualquer pensamento, não
organizada por qualquer filosofia limitada e sem significação. Se não temos essa paz, como podemos
ter amor, empenhamento, afeição? Ou, se não há essa paz, como se pode criar alguma coisa?
Podemos pintar quadros, compor poemas, escrever livros sobre o passado, etc., mas tudo levará ao
conflito, à escuridão. Para conquistarmos a liberdade, e ficarmos livres da violência - totalmente e
não apenas parcialmente, fragmentariamemte - temos de aprofundar este problema.
Temos de compreender a natureza do prazer; a violência e o prazer estão intimamente
relacionados. Pois, de novo, se nos observarmos, vemos que toda a nossa psicologia se baseia no
prazer - tanto nos prazeres sensoriais, sexo, etc., como no prazer de realizar alguma coisa, no prazer
de alcançar sucesso, de preencher-se, de conquistar posição, prestígio, poder. Mais uma vez, tudo
isso se encontra no animal (numa quinta onde se criam aves pode observar-se esse mesmo
fenômeno). Há prazer tanto no divertir-se como no insultar. Buscar o prazer, a posição, o prestígio, a
fama, é uma forma de violência, pois tem de ser-se agressivo. Neste mundo, se uma pessoa não é
agressiva, é espezinhada pelos outros, empurrada para o lado. Assim, importa perguntar: "Posso
viver sem agressividade e ao mesmo tempo viver no meio social?" É provável que não. Mas, porque
viver na sociedade, isto é, na estrutura psicológica da sociedade? Tem de se viver na estrutura
externa da sociedade - ter uma atividade, vestir-se, ter casa, etc., mas porque viver na estrutura
psicológica da sociedade? Porque aceitar a norma da sociedade que requer que o indivíduo se torne
escritor de sucesso, homem famoso, etc.? Tudo isso faz parte do "princípio do prazer", que se traduz
em violência. Na igreja diz-se: amemos o próximo - e nos negócios "cortamos-lhe o pescoço".
A norma social não tem sentido. Toda a estrutura militar, toda a estrutura baseada no
princípio hierárquico, na autoridade, significa, mais uma vez, domínio e prazer que, por seu turno,
faz parte da violência - da violência básica. A compreensão de tudo isto exige muita observação; não
é questão de capacidade: começa-se a compreender pelo observar. E ver é agir.
É o prazer que buscamos, a todas as horas. Queremos prazer cada vez maior, e o prazer
supremo, naturalmente, é o de "alcançar Deus". Na busca do prazer encontra-se o medo;
transportamos durante a vida essa lúgubre carga do medo. Medo, aflição, pensamento, violência,
agressão - todos se interrelacionam. Por conseguinte, compreendendo-se claramente uma dessas
coisas, compreendem-se as demais.
Podemos arranjar tempo para analisar toda a estrutura emocional e intelectual do nosso ser;
analisá-la passo a passo, como fazem os analistas, na esperança de estabelecer uma relação normal
entre o indivíduo e a sociedade; ou podemos ver que somos violentos e compreender diretamente a
causa dessa violência. Assim sabemos qual é essa causa. Mas ver todas e cada uma das formas de
violência exige tempo; destrinçar a violência, completamente, em todas as suas formas, é um
trabalho de meses, de anos. Esse processo parece-me absurdo. É como um homem ser violento e
tentar ser não violento e, enquanto o está tentando, continuar a semear os germes da violência. A
questão, pois, é se somos capazes de ver instantaneamente a coisa no seu todo, e resolvê-la
imediatamente. É disso que se trata realmente, e não de proceder pouco a pouco, dia após dia, mês
após mês. Essa é uma tarefa terrível, desanimadora, interminável, exigindo uma mente meticulosa,
analítica, capaz de dissecar, de ver cada aspecto e não perder uma só particularidade - pois,
perdendo-se alguma particularidade, o quadro sai todo errado. Isso não só exige tempo, mas encerra
também um conceito que formamos sobre o que é "ser livre da violência". Esse conceito, esse pensar
de que nos servimos para tentarmos libertar-nos da violência, cria, de fato, violência; a violência é
criada pelo pensamento. A questão, pois, é esta: É possível perceber a coisa na sua totalidade,
imediatamente? - não intelectualmente, porque, se ela é formulada como um problema intelectual,
não se encontra nenhuma solução e a pessoa acaba suicidando-se, como o fazem muitos intelectuais
- suicidando-se de fato ou inventando uma teoria, uma crença, um dogma, um conceito e ficando
escravos dele (o que é também uma forma de suicídio), ou voltando às velhas religiões, tornando-se
católico, protestante, hinduísta, adepto do Zen, etc.
A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa na sua totalidade, imediatamente e, com
esse ato de ver, pôr-lhe fim.
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Vemos a totalidade quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria
pessoa, como também para o mundo.
Há guerra exteriormente, e interiormente, há guerra em cada um de nós; é possível
acabarmos com ela imediatamente, "voltarmos-lhe as costas", psicologicamente? Ninguém pode
responder a esta pergunta senão vós mesmos - isto é, quando a ela respondem sem dependerem de
qualquer autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou
ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e uma grande observação - observação,
quando estamos sentados num autocarro, vendo tudo à nossa volta; observação daquilo que está à
nossa frente, a mover-se, a transformar-se; observação, sem motivo algum, de todas as coisas tal
como são. O que é tem muito mais importância do que o que "deveria ser". Como resultado desse
empenhamento, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.
Observar é meditação, e isso não significa que para observarmos tenhamos de meditar.
Observar é extremamente difícil. Observar significa, de fato, apercebermo-nos da interferência do
pensamento; ver como a imagem que temos do que quer que seja, interfere com o ato de olhar.
Porque temos uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o
"orador", e vós, os "ouvintes". Têm, infelizmente, uma imagem relativa ao "orador", mas eu que não
os conheço, nenhuma imagem tenho de vós e, portanto, posso olhá-los. Mas não posso fazê-lo se
digo para mim: vou servir-me destes "ouvintes" para alcançar poder, posição, para os explorar,
tornando-me um homem famoso - sabemos, de resto, de todas as futilidades que os seres humanos
cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferência do nosso fundo. Compreendem?
Todo o nosso ser, que está a "olhar", é o nosso fundo - cristão, francês, intelectual... Pela observação
descobre-se esse fundo; é observá-lo com objetividade, sem escolha, sem qualquer tendência, é uma
grande disciplina - não a absurda disciplina do ajustamento, da imitação.
Essa observação torna a mente extraordinariamente ativa, e muito sensível. Isso, no seu todo,
é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", mas antes, que é quando
observamos que todas estas coisas acontecem. Eis o que significa meditação, e não uma determinada
espécie de "controle do pensamento", assunto de que trataremos mais tarde.
Krishnamurti - From TALKS IN EUROPE, 1967

"Arrastar problemas psicológicos de dia para dia é uma tremenda perda de tempo e de
energia, sendo sinal de desatenção. Uma mente profundamente atenta e empenhada encara o
problema logo que ele surge, observa a sua natureza e resolve-o imediatamente. Arrastar um
problema psicológico não ajuda a resolvê-lo. É um desperdício de energia e um desgaste da mente.
Quando se encaram os problemas à medida que eles surgem, descobre-se então que eles deixam
completamente de existir."
Krishnamurti

OBSERVAR
Saanen, Agosto 7, 1969

É importante, penso eu, compreender a natureza e a beleza da observação, a beleza do ver.


Enquanto a mente estiver, de algum modo, deformada -- por pressões e sentimentos neuróticos, pelo
medo, pelo sofrimento, pela doença, pela ambição, pelo esnobismo e busca de poder --ela não tem
possibilidade de escutar, de observar, de ver. A arte de ver, de escutar, de observar, não é algo a ser
cultivado, não é uma questão de evolução e de crescimento gradual. Quando temos a percepção do
perigo, há ação imediata, há uma resposta instintiva, instantânea, do corpo e da memória. Desde a
infância que somos condicionados de maneira a enfrentar o perigo, para que a mente responda
instantaneamente, caso contrário, há destruição física.
Perguntamos se é possível agir no próprio ato de ver, no qual não há qualquer
condicionamento. Poderá a mente responder livremente, instantaneamente, a qualquer forma de
distorção e, portanto, atuar? Isto é, percepção, ação e expressão são um todo; não estão divididas,
fragmentadas. O próprio ver é agir, que é a expressão desse ver. Quando há a percepção do medo,
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observemo-lo tão intimamente, que esse mesmo observar é libertar-se dele; e isso é ação.
Poderíamos investigar isto, esta manhã? Sinto que isto é muito importante. Talvez fossemos capazes
de penetrar no desconhecido. Mas a mente que está, de algum modo, profundamente condicionada
pelos seus próprios medos, ambições, avidez, desespero, e tudo o mais, não tem possibilidade de
penetrar em algo que exige um ser saudável, mentalmente equilibrado e harmonioso.
Assim, a nossa questão é saber se a mente -- isto é, o ser total -- pode ter consciência de
determinada forma de perversão, de luta, de violência e, ao ver isso, pôr-lhe fim, não gradualmente
mas instantaneamente. Isto significa não permitir que o tempo se intrometa entre percepção e ação.
Quando vemos o perigo, não há intervalo de tempo, acontece logo ação instantânea. Estamos
habituados à idéia de que pouco a pouco atingiremos sabedoria, iluminação, pela observação, pela
prática, dia-após-dia. É a essa idéia que estamos habituados, é esse o padrão da nossa cultura e do
nosso condicionamento. Ora, estamos a dizer que este processo gradual da mente se libertar do medo
ou da violência apenas aumenta o medo e produz mais violência.
Será possível fazer cessar a violência -- não apenas exteriormente mas profundamente, nas
próprias raízes do nosso ser -- fazer cessar a tendência para a agressão, a ânsia de poder? No próprio
ato de ver tudo isso de um modo completo, seremos nós capazes de os extinguir, sem permitir que o
tempo venha interferir? Vamos discutir isto esta manhã? Normalmente, deixamos que o tempo
ocupe o intervalo entre o ver e o agir, o espaço entre o que é e o que "deveria ser".
Existe o desejo de pôr de lado o que é, para alcançar algo ou para nos tornarmos qualquer
coisa. Cada um de nós tem de compreender muito claramente este intervalo de tempo; pensamos em
termos de tempo porque desde pequenos que somos levados a pensar assim: eventualmente,
gradualmente, chegaremos a ser algo. Exteriormente, tecnologicamente, podemos ver que o tempo é
necessário. Não posso tornar-me um carpinteiro, um físico, ou um matemático de grande qualidade,
sem levar muitos anos a preparar-me para isso. Temos de ter lucidez, intuição -- não gosto de usar
esta palavra "intuição" -- para compreender uma questão matemática quando se é muito novo. E
percebemos que, para cultivar a memória que é exigida na aprendizagem de uma nova técnica ou de
uma nova Língua, o tempo é absolutamente necessário. Não posso saber falar Alemão já amanhã,
preciso de muitos meses. Não sei nada de eletrônica, e para aprender isso necessito talvez de alguns
anos. Portanto, não vamos confundir o tempo como elemento necessário para aprender uma técnica,
com o perigo de deixar o tempo interferir com a percepção e a ação.
Interlocutor: Poderíamos falar das crianças, do seu desenvolvimento?
Krishnamurti: A criança tem de desenvolver-se. Tem de aprender muitas coisas. Quando se
diz: "Tens de ser um homem" -- isto é bastante destruidor.
I.: Uma mudança psicológica parcial acontece dentro de nós.
K.: Certamente! Sou, ou fui, colérico, e digo: "Não devo ser colérico", e gradualmente vou
trabalhando para isso, tendo em vista alcançar um estado parcial onde sou um pouco menos colérico,
menos irritável e mais controlado.
I.: Não era isso o que eu queria dizer.
K.: Então o que quer dizer?
I.: Quero dizer qualquer coisa que tivemos e que ultrapassamos. Pode haver de novo
confusão, mas já não é a mesma coisa.
K.: Sim, mas não será ainda a mesma confusão, só que ligeiramente modificada? Há uma
continuidade modificada. Podemos deixar de estar dependentes de alguém, passar pela dor da
dependência e da solidão, e dizer:" Não mais serei dependente". E talvez sejamos capazes de
ultrapassar isso. Assim, dizemos que aconteceu uma certa alteração. A próxima dependência não
será exatamente a mesma que era antes. E de novo repararei nisso e conseguirei pô-la de lado, e
assim por diante.
Mas perguntamos agora se é possível ver toda a natureza da dependência e instantaneamente
ficar livre dela -- não gradualmente -- do mesmo modo que se atuaria imediatamente se estivéssemos
em presença de um perigo. Este assunto é verdadeiramente importante, e devíamos tentar investigá-
lo, não apenas verbalmente mas em profundidade, interiormente.
Reparemos nas implicações disto. Na Ásia acredita-se na reencarnação: isto é, renasceremos
na próxima existência de acordo com o que vivemos nesta. Se vivemos desumanamente,
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agressivamente, destrutivamente, vamos pagar por isso na próxima vida. Não nos tornamos
necessariamente um animal, mas voltamos a ser humanos vivendo uma vida com mais sofrimento e
mais destrutiva, porque anteriormente não vivemos uma vida cheia de beleza. Aqueles que acreditam
nesta idéia da reencarnação, crêem apenas na palavra, e não no seu sentido profundo. Deste modo, o
que fizermos agora tem infinita importância para amanhã -- porque amanhã, que é a próxima vida,
vamos pagar o que fizermos hoje. Portanto, a idéia de se atingir "gradualmente" diferentes formas é
essencialmente a mesma no Oriente e no Ocidente. Há sempre esse elemento tempo, o que é e o que
"deveria ser". Atingir o que "deveria ser" requer tempo, tempo como esforço, concentração, atenção.
Como não somos capazes de atenção ou de concentração, há sempre um esforço constante para
prática da atenção, a qual requer tempo.
Tem de haver um modo totalmente diferente de abordar este problema. Temos de
compreender o que é percepção, que é ao mesmo tempo ver e agir; estes não estão separados, não
estão divididos. Temos igualmente de investigar a questão da ação, do fazer. O que é ação, o que é
fazer?
I.: Como pode um cego agir, se não tem percepção?
K.: Já alguma vez tentou vendar os seus olhos por uma semana? Eu já o fiz, por curiosidade.
Sabe, desenvolvem-se outras formas de sensibilidade, outros sentidos tornam-se muito mais
despertos: quando nos dirigimos para a parede, para a cadeira, ou para a mesa, sentimos antes a
presença delas. Mas aquilo que estamos a falar é de estarmos cegos para nós próprios, interiormente.
Reparamos muito nas coisas exteriores, mas interiormente estamos cegos.
O que é ação? Será ela sempre baseada numa idéia, num princípio, numa crença, numa
conclusão, numa esperança, num desespero? Se temos uma idéia, um ideal, estamos a ajustar-nos a
esse ideal; há um intervalo entre o ideal e a ação. Esse intervalo é tempo. "Serei esse ideal, porque
identificando-me com ele, com o tempo, esse ideal atuará, e não haverá separação entre a ação e o
ideal". O que é que acontece quando há este ideal e a acção que tenta aproximar-se dele? Nesse
intervalo de tempo o que é que acontece?
I.: Uma comparação incessante.
K.: Sim, comparação, e tudo o resto. Se observarmos isso, que ação acontece?
I.: Ignoramos o presente.
K.: E que mais?
I.: Contradição.
K.: É, de fato, contradição --o que leva à hipocrisia. Sou colérico, e o ideal manda: "Não
sejas colérico". Estou a reprimir, a controlar, a conformar-me, a tentar aproximar-me do ideal e,
portanto, estarei sempre em conflito e a iludir-me. O idealista é uma pessoa que se ilude a si próprio.
Também, nesta divisão, há conflito. Há ainda outros fatores que surgem.
I.: Por que não nos é permitido recordar as nossas vidas anteriores? A nossa evolução seria
muito mais fácil.
K.: Seria?
I.: Poderíamos evitar erros.
K.: O que é que quer dizer por vida anterior? Aquilo que viveu ontem, vinte e quatro horas
atrás?
I.: A última encarnação.
K.: Aquilo que se passou há cem anos? Como é que lembrar-se disso tornaria a sua vida mais
fácil?
I.: Poderia compreender melhor.
K.: Por favor, vamos passo a passo -- você teria a memória do que fez ou não fez, daquilo
que sofreu há cem anos atrás, o que é exatamente a mesma coisa que ontem. Ontem fez várias coisas
de que gostou ou de que se arrependeu, que lhe causaram aflição, desespero, sofrimento. Há a
memória de tudo isso. E tem-se a memória de há mil anos, que é essencialmente a mesma coisa que
ontem. Por que chamamos a isso "reencarnação", e não reencarnação de ontem, que renasceu hoje?
Não gostamos disso porque julgamos que somos seres extraordinários, ou que temos tempo para
crescer, para vir a ser, para reencarnar. O que reencarna é aquilo para o qual nunca olhamos -- a
nossa memória. Não há nada de sagrado nisso. A nossa memória de ontem nasce hoje naquilo que
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fazemos; o ontem controla o que fazemos hoje. E um milhar de anos de memórias está em ação
através de ontem e de hoje. Portanto, há uma reencarnação constante do passado. Não vamos pensar
que esta é uma saída hábil para isto, uma explicação. Quando compreendemos a importância da
memória e da sua total futilidade no campo psicológico, então nunca mais nos interessará falar de
reencarnação.
Perguntamos: O que é ação? Será que ela é sempre livre, espontânea, imediata? Ou estará
sempre presa ao tempo, que é pensamento, que é memória?
I.: Observei uma gata a perseguir um rato. Ela não pensa: "É um rato"; imediatamente,
instintivamente, ela apanha-o. Parece-me que também nós temos de atuar espontaneamente.
K.: Não se trata de "temos de" ou "devemos". Penso que não dizemos "devemos" ou "temos
de" quando compreendemos o elemento tempo na sua essência. Estamos a perguntar a nós mesmos,
não verbal ou intelectualmente, mas profundamente, interiormente, o que é ação? Será que a ação
está sempre ligada ao tempo? A ação nascida da memória, do medo, do desespero, está sempre
ligada ao tempo. Haverá uma ação que seja completamente livre e, portanto, sem tempo?
I.: Está a dizer que alguém que vê uma serpente (ou um tigre), age imediatamente. Mas o
número de serpentes cresce com a ação. A vida não é assim tão simples, não há apenas uma serpente
mas duas, e isso torna-se como que um problema matemático. E então surge o tempo.
K.: Diz que vivemos num mundo de tigres e que não nos confrontamos com apenas um mas
sim com dúzias deles em forma humana, sendo eles brutais, violentos, avarentos, ávidos, cada um
perseguindo a sua satisfação particular. E para viver e agir nesse mundo precisamos de tempo para
"matar" tigre após tigre. O tigre sou eu -- está em mim -- há dúzias de tigres dentro de mim. E o
senhor disse que, para nos livrarmos desses tigres, um a um, precisamos de tempo. É precisamente
isso que, completamente, estamos a pôr em questão. Aceita-se que é preciso tempo para
gradualmente se matarem, uma após outra, essas serpentes que estão em "mim". O "eu" é o "tu" -- o
"tu", com os seus tigres, com as suas serpentes -- tudo isso também é o "eu". E perguntamos: "Para
quê matar, um após outro, esses animais que estão em mim, milhares de serpentes, se, quando acabar
de os matar, já estarei morto?"
Haverá então um modo -- por favor, escutem bem, não respondam já, descubram em silêncio
-- de nos vermos livres de todas as serpentes, não gradualmente mas imediatamente? Serei capaz de
ver o perigo de todos os "animais", de todas as contradições que existem em mim, e libertar-me
deles instantaneamente? Se não puder fazê-lo, então não há esperança para mim. Posso fingir de
muitas maneiras, mas se não for capaz de apagar imediatamente tudo isso que está em mim, serei
para sempre um escravo, quer venha a renascer numa próxima vida ou em dez mil vidas. Assim,
tenho de encontrar um modo de agir, de olhar que, no instante da percepção, ponha fim ao "dragão"
particular, ou ao "macaco" que há em "mim".
I.: Então façamo-lo!
K.: Esta questão é realmente muito importante; não se pode dizer apenas "façamo-lo" ou
"não o façamos". Tudo isto requer uma investigação extrema; não me digam que já conseguiram ou
que se deve fazer isto ou aquilo, isso não me interessa -- quero descobrir.
I.: Se eu ao menos pudesse ver isso.
K.: Não, por favor, não diga "se".
I.: Se eu compreendesse uma coisa, deveria pô-lo em palavras, ou deixá-lo ficar em mim?
K.: Por que traduz o que está a ser dito numa linguagem muito simples, para as suas próprias
palavras -- em vez de ver o que está a ser dito? Há muitos "animais" dentro de nós, muitos perigos.
Poderei libertar-me de todos eles com uma só percepção -- vendo-os imediatamente? A senhora
poderá ter feito isso, não ponho em dúvida se o fez ou não; isso seria falta de respeito da minha
parte. Mas estou a perguntar: será que isto é possível?
I.: A ação tem duas partes. A parte interior, a que decide, tem lugar imediatamente. A outra, a
ação para o exterior, precisa de tempo. Decisão significa ação interior. A ponte que liga estes dois
aspectos da ação precisa de tempo. Há aqui um problema de linguagem, de transmissão.
K.: Compreendo, senhor. Há ação exterior, que precisa de tempo; e ação interior, que é
percepção e ação. Como é que esta ação interior, com a sua percepção, decisão e ação imediata, pode
ligar-se à outra ação que precisa de tempo? Está clara a questão?
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Se me permite salientar, penso que não é precisa nenhuma ponte, nenhuma ligação. Vou
mostrar-lhe o que quero dizer. Compreendo muito claramente que para ir daqui para ali leva tempo,
aprender uma Língua exige tempo, fazer algo fisicamente também precisa de tempo. Interiormente,
será mesmo necessário o tempo? Se eu puder entender a natureza do tempo, então vou lidar
corretamente com o elemento tempo no mundo exterior. Portanto, não começo pelo exterior, porque
reconheço que o exterior precisa de tempo. Mas, pergunto a mim próprio se na percepção interior, na
decisão e na ação, tem de haver tempo. Assim, pergunto: "Será mesmo necessária a decisão?" --
decisão que é afinal um instante do tempo, um segundo, um ponto. "Eu decido" quer dizer que há
um elemento de tempo; a decisão baseia-se na vontade e no desejo, e tudo isso é tempo. Assim,
pergunto: "Por que é que a decisão terá de entrar em tudo isto?" Ou fará a decisão parte do meu
condicionamento que diz: "Precisas de tempo"?
Haverá percepção e ação sem decisão? Isto é, tenho consciência do medo, um medo gerado
pelo pensamento, pelas memórias, pelas experiências, um medo de ontem encarnado hoje.
Compreendo toda a natureza, estrutura e essência do medo. E ver isso sem decisão é ação, que é
libertarmo-nos dele. Será isto possível? Não digamos que sim, que eu já consegui, ou que outra
pessoa o conseguiu também -- isso não interessa. Poderá este medo cessar instantaneamente, logo
que surge? Há os medos superficiais, os medos do mundo. O mundo está cheio de "tigres", e esses
tigres, que fazem parte de mim, vão destruir-me; por conseguinte, há uma guerra entre mim -- um
tigre -- e o resto dos tigres.
Há também o medo interior -- estar inseguro, psicologicamente, ter dúvidas -- gerado pelo
pensamento. Este gera prazer, medo -- vejo tudo isso. Vejo o perigo do medo, do mesmo modo que
vejo o perigo de uma serpente, de um precipício, ou de uma corrente de águas profundas -- vejo
completamente o perigo. E o próprio ato de ver é o findar do medo, sem intervalo de um breve
segundo que seja para tomar uma decisão.
I.: Algumas vezes pode-se reconhecer um medo e mesmo assim ele continuar.
K.: Temos de penetrar nisto com muito cuidado. Antes de mais, não quero ver-me livre do
medo. Quero que ele se exprima, quero compreendê-lo, deixá-lo fluir, deixá-lo vir, deixá-lo
"explodir" em mim, etc.. Não sei nada acerca do medo. Só sei é que tenho medo. Agora quero
descobrir até que nível, até que profundidade tenho medo, conscientemente, ou nas próprias raízes,
nos profundos níveis do meu ser -- nas cavernas, nas regiões inexploradas da minha mente. Quero
descobrir. Quero que tudo apareça e fique exposto. E como é que vou fazê-lo? Preciso de fazê-lo --
não gradualmente. O medo tem de sair de dentro de mim, completamente.
I.: Se há milhares de tigres e eu me sento no chão, não os consigo ver. Mas se eu me deslocar
para um planalto posso lidar com eles.
K.: Não diga "se". "Se eu pudesse voar veria toda a beleza da terra". Não posso voar, estou
aqui. Tenho receio que estas questões teóricas não tenham qualquer valor e, aparentemente, não
compreendemos isso. Tenho fome, e estão a alimentar-me com teorias. Aqui está um problema;
reparai nele, por favor, porque todos temos medo, todas as pessoas têm medo, de uma ou de outra
espécie. Há medos profundos, ocultos, e eu estou muito consciente dos medos superficiais, dos
medos do mundo -- desses que nascem de se vir a perder o emprego, a mulher, o filho, etc. Eu sei
isso muito bem. Talvez haja medos em camadas mais profundas do ser humano. Como é que eu,
como é que a mente vais revelar tudo isso instantaneamente? Que dizeis?
I.: Está a dizer que temos de afugentar o animal para bem longe, de uma vez por todas, ou
teremos de lhe dar caça a todo o momento?
K.: Está a sugerir que é possível afastar o animal para longe, para sempre, em vez de o afastar
um dia e deixá-lo regressar no dia seguinte. Isso é o que temos estado a dizer. Não quero andar atrás
do animal todos os dias. Isso é o que as escolas, todos os psicólogos, os "santos", todas as "religiões"
dizem: "Afastem-no pouco a pouco". Isto não tem sentido para mim. Quero descobrir como afastar o
animal para que ele nunca mais volte. E se voltar, sei o que hei de fazer, não vou deixá-lo entrar em
casa.
I.: Agora temos de dar ao animal o seu verdadeiro nome: é pensamento. E quando ele
regressar, sabemos o que fazer com ele.
K.: Não sei o que fazer -- veremos. Sois todos tão ansiosos!
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I.: Esta é a nossa vida -- temos de ter pressa, temos de ser ansiosos.
K.: Queríamos dizer "ansiosos por responder". Claro que temos de ser curiosos. Mas este é
um assunto difícil; não podemos lançar uma série de palavras e jogar com elas. Tudo isto requer
cuidado.
I.: Por que é que nós não temos essa percepção agora mesmo?
K.: É isso que estou a propor.
I.: O que é que acontece se eu olhar para si? Primeiro, fico com uma imagem sua. Olhe para
mim, por favor. A primeira coisa que acontece é a representação visual da minha pessoa, certo? E
depois o que acontece? Acontece pensamento sobre essa representação.
K.: Isso é o que a senhora estava dizendo, exatamente a mesma coisa. O pensamento é o
animal. Fiquemos com esse animal. Não vamos dizer que o animal é pensamento, ou o eu, que é o
medo, a avidez, a inveja, voltando depois a outra descrição dele. Esse animal, dizemos nós, é tudo
isso. E percebemos que não pode ser expulso gradualmente, porque ele voltará sempre sob diferentes
formas. Reparando um pouco, posso dizer: "Como é estúpido tudo isso, esta constante perseguição
do animal -- o seu voltar e, de novo, a sua perseguição. Quero saber se é possível afugentá-lo
completamente, para que não volte mais".
I.: Vejo funções diferentes em mim mesmo, com diferentes velocidades. Se uma função
persegue uma outra, nada acontece. Por exemplo, a emoção e perseguir a idéia. Temos de olhar com
toda as funções.
K.: É a mesma coisa, que agora está a exprimir em palavras diferentes.
I.: Começou a dar uma explicação que foi interrompida. Começou a dizer que não queria ver-
se livre do medo.
K.: Antes de mais, disse que não queria ver-me livre do animal. Não o quero expulsar. Antes
de tomar o chicote ou a luva de veludo, quero saber quem é que vai expulsar. Talvez seja um tigre
ainda maior. E, assim, digo para mim mesmo: "Não quero expulsar nada". Veja a importância disto!
I.: Expulsá-lo poderia ser a eventual sentença de morte da pessoa.
K.: Não, não sei. Vamos devagar. Deixe-me explicar. Disse, antes de afastar o animal, quero
descobrir quem é a entidade que vai afastá-lo. E digo ainda que talvez seja um tigre maior. Se eu
puder ver-me livre de todos os tigres, não serve de nada arranjar um tigre maior para expulsar um
mais pequeno. Assim, digo: "Não quero expulsar nada". Reparemos no que está a acontecer à minha
mente. Não quero expulsar nada, quero sim olhar. Quero observar, quero ter a certeza se um tigre
grande está a empurrar um mais pequeno. Este jogo pode durar para sempre, é o que está a acontecer
por todo o mundo -- a tirania de um determinado país impondo-se a outro país mais pequeno.
Então, agora, estou bem ciente -- por favor acompanhai-me -- de que não devo expulsar
nada. Tenho de desenraizar esta idéia de expulsar, de vencer, de dominar isso. Porque a decisão que
diz "tenho de me livrar desse pequeno tigre" pode transformar o tigre em outro maior. Portanto, tem
de haver a completa cessação de toda a decisão, de todo o impulso para me livrar de alguma coisa,
de expulsar o que quer que seja. E, então, posso olhar. Posso dizer para mim mesmo (no plano
verbal): "Não quero expulsar nada". Por conseguinte, estou liberto do fardo do tempo, que é expulsar
um tigre com outro tigre. Neste expulsar há um intervalo de tempo e, assim, digo: "Não vou fazer
nada, não vou expulsar, não vou agir, não vou decidir, preciso, primeiro, de olhar".
Estou a olhar -- não é o ego que olha, é o cérebro, é a mente que olha. Posso assinalar os
vários tigres, a mãe com as suas crias e o chefe do grupo familiar; posso observar tudo, mas há
coisas mais profundas em mim e também quero que todas fiquem expostas. Será que o vou fazer
através da ação? Zangar-me mais e mais, e depois acalmar, e uma semana depois zangar-me de
novo, e mais uma vez acalmar? Ou haverá uma maneira de olhar todos os tigres, desde o mais
pequeno, desde o recém-nascido ao maior -- todos eles? Poderei olhá-los tão completamente que
possa compreender todo o problema? Se não for capaz disso, então a minha vida continuará na velha
rotina, de uma maneira complicada, pouco inteligente, mesquinha. E é tudo. Se souberam escutar, o
sermão desta manhã acabou.
Lembram-se da história de um mestre que falava aos seus discípulos todas as manhãs? Um
dia, antes de começar a falar, um pequeno pássaro entrou no recinto, pousou no parapeito da janela e
50
começou a cantar. E o mestre deixou-o cantar. Após ter cantado algum tempo, o pássaro foi-se
embora. E o mestre disse para os discípulos: "O sermão desta manhã acabou".
Krishnamurti - Saanen, Agosto 7, 1969

LIBERDADE PELO AUTOCONHECIMENTO


Para quase todos nós, a liberdade é uma idéia e não uma realidade. Quando falamos em
liberdade, desejamos ser livres exteriormente: fazer o que gostamos, viajar, expressar-nos de
diferentes maneiras, pensar o que nos agrada. Esta liberdade exterior torna-se extraordinariamente
importante, em especial nos países onde existe a tirania de uma ditadura. E naqueles países onde a
liberdade exterior é possível, procura-se cada vez mais prazer, cada vez mais bens materiais.
Se queremos investigar profundamente o que significa liberdade, o que significa ser inteira e
interiormente livre -- liberdade interior que se expressa exteriormente na sociedade, no
relacionamento -- precisamos, parece-me, de averiguar se a mente humana, tão condicionada como
está, poderá ser verdadeiramente livre. Ou terá ela de viver e de funcionar sempre dentro das
fronteiras do seu próprio condicionamento, sem haver assim nenhuma possibilidade de ser de fato
livre? Verifica-se que, quando a mente pensa que não há liberdade sobre a Terra -- nem interior nem
exteriormente -- trata de inventar uma liberdade futura, num outro mundo -- uma liberdade no "céu",
etc. .
Deixemos de lado todos os conceitos teóricos, ideológicos, de liberdade, para podermos
investigar se as nossas mentes, as vossas e a minha, poderão ser realmente livres -- livres da
dependência, do medo, da ansiedade, e dos inúmeros problemas que existem, tanto a nível
consciente como nas camadas mais profundas do inconsciente. Será que pode haver completa
liberdade interior, psicológica, para que a mente humana tenha possibilidade de descobrir algo
intemporal, algo não construído pelo pensamento, e que além disso não seja uma fuga às realidades
da vida quotidiana?
Se interiormente, psicologicamente, a mente humana não estiver totalmente livre, não tem
possibilidade de ver o que é verdadeiro, de ver se existe uma realidade não inventada pelo medo, não
moldada pela sociedade ou pela cultura em que vivemos, e que não seja uma fuga à monotonia, ao
tédio, à solidão, ao desespero e à ansiedade de cada dia.
Para descobrirmos se essa liberdade realmente existe, temos de aperceber-nos do nosso
próprio condicionamento, de ter consciência dos problemas, e também da constante superficialidade,
da vacuidade e estreiteza da nossa vida diária. E temos, sobretudo, de ter consciência do medo.
Precisamos de estar atentos a nós mesmos, mas não "instrospectivamente" nem "analiticamente":
temos de ter consciência de nós mesmos como de fato somos, e de ver se é possível estarmos
inteiramente libertos dos fatores que parecem bloquear a nossa mente.
Para uma exploração como a que vamos fazer, tem de haver liberdade, não no fim, mas
exatamente no princípio. Se não estamos interiormente livres, não podemos explorar, investigar,
examinar. Para se observar profundamente tem de haver, não só liberdade, mas também a disciplina
que é necessária à observação -- liberdade e disciplina andam juntas. Não estamos a usar a palavra
"disciplina" no sentido tradicional de ajustar, imitar, reprimir, seguir um padrão estabelecido;
estamos a empregá-la de acordo com o significado da sua raiz, que é aprender.
O aprender e a liberdade andam juntos, trazendo a liberdade a sua disciplina própria, que não
é uma "disciplina" imposta pela mente, para alcançar um certo resultado. Estas duas coisas são
essenciais: liberdade e o ato de aprender. Não podemos aprender a respeito de nós mesmos se não
estamos interiormente livres para nos podermos observar realmente, e não de acordo com algum
padrão, fórmula ou conceito. Essa observação de nós mesmos, tal como somos, essa percepção, esse
ver cria a sua disciplina e o seu aprender próprios; não existe aí conformismo, imitação, repressão ou
controle de qualquer espécie -- e nisso há grande beleza.
As nossas mentes estão condicionadas -- é um fato evidente -- condicionadas por uma
determinada cultura ou sociedade, influenciadas por impressões várias, pelas pressões e pelas
tensões da vida de relação, por fatores econômicos, climáticos e educativos, pelo conformismo
51
religioso, etc. ... As nossas mentes estão treinadas, condicionadas, para aceitar o medo, e para, se
possível, fugir dele, o que lhes rouba a capacidade de compreender a natureza e a estrutura do medo,
e de o eliminar completamente.
Assim, a nossa primeira pergunta é: será que a mente, tão pesadamente carregada, pode
libertar-se por completo, não só do seu condicionamento mas também dos seus medos? Porque é o
medo que nos faz aceitar o condicionamento.
Não fiqueis apenas a ouvir palavras e idéias (que na verdade não têm nenhum valor), mas,
através do ato de escutar -- não só as palavras, mas também para além delas -- cada um de vós pode
ir observando os estados da sua própria mente, não aceitando o medo, não fugindo dele, nem
dizendo: "Tenho de desenvolver a coragem, a resistência", mas estando de fato plenamente
consciente do medo em que está enredado. Podeis assim averiguar se a mente tem de fato
possibilidade de libertar-se.
Se não se está livre do medo, não se pode ver com lucidez e profundidade. E, obviamente,
quando há medo não existe amor.
Pode, então a mente ficar livre do medo? Esta parece-me ser, para qualquer pessoa realmente
séria, uma das questões mais importantes e essenciais que têm de ser postas e resolvidas.
Há medos "físicos" e medos psicológicos: há (por exemplo) o medo "físico" da dor e há o
medo psicológico causado pela lembrança de se ter tido uma dor no passado, e a idéia de que ela
possa repetir-se no futuro; há também o medo da velhice, da morte, o medo da insegurança, o medo
da incerteza do amanhã, o medo de não conseguirmos um grande sucesso, de não atingirmos as
nossas metas -- de não sermos "uma pessoa importante" neste mundo tão feio; o medo da destruição,
o medo da solidão (não se sendo capaz de amar, ou de não se ser amado), etc. -- todos os medos
conscientes e inconscientes. Será que a mente pode libertar-se totalmente deles? Se a mente diz que
não pode, então é ela própria a criar essa impossibilidade, deformando-se a si mesma, tornando-se
incapaz de percepção, de compreensão, incapaz de estar completamente tranqüila, silenciosa. E com
uma mente assim, ficamos como se estivéssemos no escuro, a procurar a luz, sem nunca a encontrar
e, por isso, inventando uma "luz" de palavras, conceitos, teorias.
Como há de a mente, com todo o seu condicionamento, tão oprimida pelo medo, libertar-se
dessa condição? Ou teremos de aceitar o medo como uma coisa inevitável da vida? -- e é o que faz a
maioria de nós, conformando-se com ele. Que fazer? Como há de um ser humano, como vós e eu,
libertar-se deste medo? -- não de um certo medo, mas do medo total, de toda a natureza e estrutura
do medo.
Que é o medo? (Deixai-me sugerir-vos que não aceiteis o que o "orador" está a dizer; ele não
tem qualquer autoridade, não é vosso instrutor nem vosso guru; porque, se o fosse, então seríeis seu
seguidor, e ser seguidor é destruir-se a si próprio e também aquele que se está a seguir. Estamos a
tentar descobrir a verdade a respeito do medo, para que a mente se liberte definitivamente dele,
ficando portanto interiormente livre de toda a dependência psicológica em relação a outrem.
A beleza da liberdade reside em não se deixarem quaisquer marcas. A águia no seu vôo não
deixa rasto algum; mas o trabalho do cientista deixa as suas marcas. Ao examinarmos este problema
da liberdade precisamos não só de uma observação como a da ciência, mas também do vôo da águia,
que não deixa rasto; ambos são necessários. Tem de haver tanto a explicação verbal como a
percepção não verbal -- porque a descrição nunca é a realidade que é descrita; a explicação nunca é,
obviamente, a coisa que é explicada; a palavra nunca é a coisa.
Se tudo isto está bem claro, podemos então prosseguir; e cada um de vós poderá descobrir,
por si mesmo -- e não através do "orador", das suas palavras, idéias ou pensamentos -- se a mente
pode libertar-se completamente do medo. Esta primeira parte não é uma introdução; se cada um não
a escutar e compreender claramente, não será capaz de acompanhar o que se segue.
Para investigar, temos de estar livres para ver, livres de preconceitos, de conclusões, de
conceitos, de idéias, e assim podermos realmente observar em nós mesmos, o que é o medo. E,
quando observamos de muito perto, intimamente, existe algum medo? Mas só podemos observar de
muito perto, intimamente, o que é o medo, quando o "observador" é o observado. Examinaremos
este ponto mais adiante, nestas reuniões .
52
Que é então o medo? Como é que ele surge? Podemos compreender os medos "físicos", que
são óbvios em relação a perigos físicos, perante os quais a reação é instantânea. Estes são facilmente
compreensíveis e não precisamos de os examinar muito. Mas estamos a falar dos medos
psicológicos. Como surgem eles? Qual a sua origem? -- esta é a questão.
Existe o medo de alguma coisa que aconteceu ontem; o medo de algo que pode vir a
acontecer mais tarde, hoje ou amanhã. Há o medo do que já conhecemos e também o medo do
desconhecido, do "amanhã". Cada um pode ver por si mesmo, com muita clareza, que o medo surge
devido à estrutura do pensamento -- pode-se ficar com medo por se pensar no que aconteceu ontem,
ou por se pensar no futuro. O pensamento gera medo, não é assim? Cada um de nós precisa de ver
isto muito claramente; não aceiteis o que o "orador" está a dizer. Cada um precisa de ver com
absoluta clareza se o pensamento é a origem do medo. Por exemplo, pensar numa dor, numa dor
psicológica que se teve há algum tempo, e não desejar a sua repetição, não a querer reviver -- pensar
em tudo isso gera medo. Podemos agora prosseguir? Se não virmos tudo isto muito claramente não
teremos possibilidade de ir mais longe. Quando pensamos num incidente, numa experiência, num
estado, em que ocorreu uma perturbação, um perigo, uma aflição ou uma dor -- esse pensamento faz
nascer o medo. E, tendo estabelecido uma certa segurança psicológica, o pensamento não quer que
essa segurança seja perturbada; qualquer perturbação representa um perigo, e portanto há medo.
O pensamento dá origem ao medo, e também dá origem ao prazer : tivemos uma experiência
feliz; o pensamento ocupa-se com ela, desejando perpetuá-la; quando isso não é possível, há uma
resistência, irritação, desespero e medo. Assim, o pensamento é responsável tanto pelo medo como
pelo prazer -- não é verdade? Não se trata de uma conclusão verbal, nem de uma fórmula para evitar
o medo. De fato, onde há prazer, há dor, e também medo, perpetuados pelo pensamento. O prazer
anda acompanhado pela dor -- os dois são inseparáveis, e é o pensamento que dá origem a ambos. Se
não houvesse nenhum "amanhã", nenhum momento seguinte, para pensarmos nele em termos de
medo ou de prazer, nenhum deles existiria.
Podemos prosseguir a partir daqui? Será que se trata de uma realidade, e não de uma idéia?
Será uma coisa que cada um de vós mesmos descobriu e que é portanto real, de modo que cada um
pode dizer: "Descobri que é o pensamento que gera tanto o prazer como o medo"? Teve-se
satisfação ou prazer sexual; depois pensa-se nisso com as imagens formadas pelo pensamento, e esse
próprio pensar fortalece aquele prazer que reside agora nas imagens do pensamento. E quando isso é
contrariado, há dor ansiedade, medo, ciúme, aborrecimento, irritação, brutalidade. Não estamos,
porém, a dizer que não se deve ter prazer.
A verdadeira e profunda felicidade não é prazer. O êxtase não é criado pelo pensamento; é
algo inteiramente deferente. Só podemos encontrar a felicidade profunda, o êxtase, quando
compreendemos a natureza do pensamento -- que gera o prazer e o medo.
Surge assim a questão: Poder-se-á deter o pensamento? Se o pensamento gera o prazer e o
medo -- porque, como é evidente, onde há prazer há sempre dor -- perguntamos a nós mesmos: Será
possível suspender o pensamento? -- o que não significa que então terminará a sensibilidade à
beleza, a capacidade para a apreciar. Por exemplo, vemos a beleza de uma nuvem ou de uma árvore,
e sentimo-la plenamente, completamente. Mas se, no dia seguinte o pensamento procura ter essa
mesma experiência, esse mesmo encantamento que tivemos ontem ao ver a nuvem, a árvore, a flor, o
belo rosto de alguém, então isso é abrir a porta ao prazer , mas também ao desapontamento, ao
medo, à dor.
Sendo assim, como poderá o pensamento parar? Ou será esta uma pergunta errônea? É uma
pergunta errônea se (em vez de se querer compreender o fato) se deseja experimentar um "êxtase",
uma "felicidade" diferente do prazer. Com o terminar do pensamento, espera-se alcançar algo
"imenso", não produzido pelo prazer e o medo... Que lugar tem o pensamento na vida? -- É esta a
pergunta a fazer, e não "como pôr fim ao pensamento" .
Qual a relação do pensamento com a ação e a inação? Qual a relação do pensamento com a
ação, quando esta é necessária? Por que vem o pensamento à existência, quando (por exemplo)
estamos a sentir plenamente a beleza? -- se ele não viesse interferir, não surgiria o desejo de
transportar isso para "amanhã"... Quando há uma vivência plena da beleza de uma montanha, de um
rosto, de um lençol de água -- por que vem o pensamento desvirtuar essa vivência, e nos faz dizer:
53
"Tenho de repetir este prazer amanhã"? Preciso de averiguar isto. Preciso de descobrir a relação
entre o pensamento e a ação, e de descobrir também se o pensamento precisa de interferir, quando
não há nenhuma necessidade de pensamento. Vejo uma árvore lindíssima, toda despida de folhagem,
recortando-se no céu; é muito belo! -- e isso é quanto basta. Por que há de o pensamento intrometer-
se , e dizer: "Amanhã, tenho de repetir este prazer"?
Mas também vejo que, na ação, o pensamento tem de funcionar. A capacidade de ação é
também capacidade de pensamento. Assim, qual a verdadeira relação entre o pensamento e a ação?
O que geralmente acontece é que a nossa ação é baseada em conceitos, em idéias. Tem-se uma idéia,
um conceito (ou um ideal) do que se "deve" fazer, e o que se faz "deve" aproximar-se desse
conceito, dessa idéia, desse ideal. Há assim uma divisão entre a ação e o conceito, ou o ideal -- o que
"deveria ser"; desta divisão psicológica nasce o conflito. Toda a divisão psicológica gera
inevitavelmente conflito.
Assim, pergunto a mim mesmo: "Qual a relação entre o pensamento e a ação?" Se há divisão
entre a ação e a idéia, então a ação é incompleta. Haverá uma ação diferente? Isto é, haverá uma
ação em que o pensamento , a mente, vê uma coisa instantaneamente e atua de imediato, sem haver
separadamente uma idéia, uma ideologia para ser seguida? Haverá uma ação em que o próprio ver é
agir, em que o próprio pensar é a ação? Vejo que o pensamento gera medo e prazer; vejo que onde
há prazer, há dor e portanto resistência à dor. Vejo isso com toda a clareza; e vê-lo é ação imediata.
Neste ver está incluído o pensamento, a lógica, o raciocínio lúcido; mas o ver é instantâneo, a ação é
instantânea, e há portanto liberdade.
Estamos em comunicação? Estais realmente a ver? Devagar não digais com tanta facilidade
"sim, estamos". Esta questão é bastante difícil. Se estais realmente a ver, esse ver é ação imediata, e
então ao sair daqui, deveis estar livres do medo. Mas podeis dizer: "Sim, estamos", apenas como
uma afirmação de que entendestes verbalmente, intelectualmente -- e isso não é nada. Vós e eu
estamos aqui, esta manhã , a investigar a questão do medo, e podereis sair daqui completamente
livres dele. Isso significa ser um ser humano livre, um ser humano diferente, totalmente
transformado -- não amanhã mas agora. Vemos claramente que o pensamento gera medo e prazer, e
que os valores que geralmente se aceitam -- valores morais, éticos, sociais, religiosos, espirituais --
se baseiam no medo e no prazer. Se percebeis esta verdade (e para perceber temos de estar
extraordinariamente despertos, observando lógica, sã e equilibradamente todos os movimentos do
pensamento) então esse próprio percebimento é ação total e portanto podereis sair daqui
completamente livres do medo. De contrário, direis: "Como é que poderei livrar-me do medo,
amanhã?"
O pensamento tem de funcionar na ação. Precisamos de pensar para voltarmos para casa,
para tomarmos um autocarro ou um combóio, para irmos para o trabalho, etc. O pensamento
funciona então eficientemente, de modo objetivo, impessoal, não emocionalmente. E, quando assim
é, ele tem uma função vital. Mas quando o pensamento, por meio da memória, transporta para o
futuro, a experiência que se teve, essa ação é então incompleta, havendo portanto (como já vimos)
resistência, etc..
Podemos agora passar à questão seguinte. Vamos apresentá-la assim: Qual é a origem do
pensamento, e quem é o pensador? Podemos ver que o pensamento é a reação, a resposta, do
conhecimento e da experiência acumulados como memória, que constituem a base de onde vem a
resposta do pensamento a qualquer desafio; se nos perguntam onde moramos (por exemplo) há uma
resposta imediata.
A memória, a experiência, o conhecimento acumulado constituem o fundo, a base, de onde
surge o pensamento. Portanto, o pensamento nunca é novo; o pensamento é sempre velho; o
pensamento nunca pode ser livre, porque está preso ao passado, e é portanto incapaz de ver qualquer
coisa verdadeiramente nova. Quando nos apercebemos disto muito claramente, a mente torna-se
serena, silenciosa... A vida é um movimento, um constante movimento em relação, e quando o
pensamento procura impedir esse movimento, prendendo-se ao passado, como memória, fica com
medo da vida.
Se vemos tudo isto, se vemos que a liberdade é necessária para se poder examinar com muita
lucidez (e para isso é necessária a disciplina que é aprender, e não a "disciplina" que é repressão e
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imitação); se vemos que a mente está condicionada pela sociedade, pelo passado, e que o
pensamento, nascido do cérebro, é velho e portanto tanto incapaz de compreender algo totalmente
novo, a mente fica complemente quieta, silenciosa, sem ser controlada ou moldada para se aquietar.
Não há nenhum sistema ou método -- não importa se esse sistema vem do Japão, como o
Zen, ou se vem da Índia -- capaz de tornar a mente quieta. A coisa mais estúpida que a mente pode
fazer é "disciplinar-se" para se tornar quieta. Ora, se percebemos tudo isso, se o vemos realmente e
não como algo teórico, então dessa percepção vem uma ação: esse próprio percebimento é a ação
que nos liberta do medo. Assim, no momento em que surge qualquer medo, há dele uma percepção
imediata, e ele termina.
Que é o amor? Para a maioria de nós é prazer e, por conseqüência, medo; é a isso que
chamamos amor. Quando há compreensão do medo e do prazer, que é então o amor? E "quem"
poderá responder a esta pergunta? -- o "orador", o sacerdote, o livro?...
E poderá alguém exterior a nós dizer-nos se temos estado a pesquisar-nos bem, e se podemos
continuar? Ou seremos nós mesmos a descobri-lo? Depois de termos observado, examinado não
analiticamente, toda a estrutura e natureza do prazer, do medo, da dor, descobrimos que o
"observador", o "pensador" faz parte do pensamento. Se não há pensamento não há "pensador", os
dois são inseparáveis; o pensador é o pensamento.
Há beleza e subtileza em perceber isto. E qual é agora a situação da mente que começou a
investigar esta questão do medo? -- compreendeis? Qual é agora o estado da mente depois de ter
penetrado em tudo isto, depois de ter feito esta "viagem"? Será o mesmo de antes? Ela compreendeu
intimamente a natureza daquilo a que se chama pensamento, medo e prazer. Percebeu tudo isso.
Qual é o seu verdadeiro estado agora? É claro que só cada um de vós mesmos pode responder a esta
pergunta. Se cada um penetrou de fato profundamente em tudo isso, verá que o anterior estado da
mente ficou completamente transformado.
Interlocutor: (Inaudível na gravação)
Krishnamurti: Sim, fazer perguntas é muito fácil. Provavelmente, enquanto o "orador" ia
fazendo a pesquisa, alguns de nós estavam a pensar na pergunta que iriam fazer. Interessa-nos mais a
nossa pergunta do que escutar o que se está a dizer. É claro que cada um tem de pôr questões a
respeito de si mesmo, não só aqui como em toda a parte. Fazer a pergunta certa é bem mais
importante do que receber a resposta. A solução de um problema está na compreensão do problema;
a solução não está fora do problema, mas nele mesmo.
Não podemos ver claramente o problema se estamos preocupados com a resposta, com a
solução. Geralmente estamos tão ansiosos por conhecer a solução, que nem olhamos o problema.
Mas temos de olhá-lo com energia, com intensidade, com paixão -- e não com a indolência e a
preguiça que quase todos temos; preferiríamos que outra pessoa o resolvesse para nós... Ninguém
resolverá qualquer dos nossos problemas psicológicos, políticos ou religiosos. Precisamos de ter
muita vitalidade, paixão, intensidade, para olhar, observar o problema. E então, ao observá-lo, com
toda a clareza encontramos nele a solução.
Isto não quer dizer que não devamos fazer perguntas; pelo contrário, precisamos de pôr
questões. Temos de duvidar de tudo o que foi dito por outros, incluindo o "orador".
I.: Haverá perigo de introspecção no olharmos os nossos problemas pessoais?
K.: Por que não há de haver perigo? Há perigo em atravessar uma rua ... Mas, quer dizer que
não devemos olhar porque é "perigoso" fazê-lo? Lembro-me de uma ocasião --se posso contar um
caso-- em que um homem muito rico veio procurar-nos, e disse: "Estou muito seriamente interessado
naquilo que diz, e desejo resolver todos os meus problemas pessoais" (conheceis as coisas absurdas
de que geralmente as pessoas falam). Respondi; "Está bem, vamos examinar isso". E conversamos.
Ele voltou várias vezes mas, depois da segunda semana, disse-me: "Estou a ter sonhos terríveis,
assustadores, nos quais parece que tudo o que me cerca desaparece, todas as coisas se vão"; e
acrescentou: "Isto, provavelmente, é o resultado da minha investigação de mim mesmo, e estou a ver
como ela é perigosa". Depois disso não voltou mais.
Todos desejamos estar a salvo; queremos viver em segurança no nosso pequeno e acanhado
mundo, o mundo da "ordem" estabelecida que é desordem; o mundo das nossas relações
particulares, que não queremos que sejam perturbadas -- relações entre marido e mulher (por
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exemplo), nas quais há tanta possessividade, o que traz sofrimento, desconfiança, medo, e também
perigo -- ciúme, raiva, prepotência.
Há um modo de nos olharmos a nós mesmos sem medo e sem perigo: é olhar-nos sem
condenação nem justificação, olhar simplesmente, sem interpretar, sem julgar, sem avaliar. Para
olharmos assim, a mente tem de estar verdadeiramente empenhada em aprender pela observação do
que realmente é. Que perigo há no fato psicológico, no que é? Os seres humanos são violentos; este
é o fato, o que é; e o perigo que eles criam no mundo é resultado desta violência, é produto do medo.
Que há de perigoso em observar este medo e em tentar eliminá-lo, erradicá-lo completamente, para
podermos criar uma sociedade diferente e diferentes valores?
Há grande beleza no observar, no ver as coisas como são, psicologicamente, interiormente;
isso não significa aceitá-las; nem significa rejeitar o que é, ou esforçar-se por modificá-lo -- a
própria percepção do fato psicológico, do que é, produz a sua mutação. Mas precisamos de saber a
arte de olhar, que não é introspectiva ou analítica; ela consiste simplesmente em observar sem
qualquer escolha.
I.: Será que existe medo espontâneo?
K.: Pode-se chamar a isso medo? Quando sabemos que o fogo queima, ou quando nos vemos
diante de um precipício, será medo evitá-los? Quando vemos um animal perigoso, uma serpente
venenosa, e nos afastamos, isso é medo -- ou é inteligência? Essa inteligência pode ser resultado de
um condicionamento -- porque fomos condicionados em relação aos perigos de um precipício (por
exemplo); se não o fôssemos, poderíamos cair nele, e isso seria o fim... A nossa inteligência leva-nos
a ter cuidado; esta inteligência é medo?
Mas será a inteligência que funciona quando nos dividimos em nacionalidades, em grupos
religiosos? -- quando fazemos essa divisão entre "tu" e eu, entre nós e "eles", isso é inteligência?
Que é que funciona nessa divisão que cria perigo, que separa as pessoas, que causa guerra -- o medo
ou a inteligência? É certamente o medo e não a inteligência.
Por outras palavras, fragmentamo-nos, dividimo-nos a nós mesmos; uma parte de nós atua,
quando necessário, inteligentemente, como ao evitarmos um precipício, ou um autocarro que passa;
mas não somos suficientemente inteligentes para ver os perigos do nacionalismo, os perigos da
divisão entre as pessoas. Sendo assim, uma parte de nós -- uma pequeníssima parte -- é inteligente, e
o resto de nós não é. Onde há fragmentação tem de haver conflito e sofrimento. A própria essência
do conflito é a divisão, a contradição em nós. Essa contradição não pode ser "integrada". Uma das
nossas peculiaridades é pensarmos que devemos "integrar-nos". Não sei o que isso significa
realmente. Quem poderá integrar as duas naturezas divididas, opostas? Porque, afinal o próprio
"integrador" não fará parte dessa divisão? Porém, quando vemos tudo isso, quando nos apercebemos
da divisão, da contradição, sem fazermos nenhuma escolha -- a divisão termina.
I.: Haverá alguma diferença entre o pensamento correto e a ação correta?
K.: Quando estamos a usar a palavra "correto" acerca da relação entre o pensamento e a ação,
essa ação "correta" é incorreta, não é? Porque, ao usar essa palavra "correta", já temos uma idéia do
que é "correto". E quando já temos uma idéia do que é "correto" esse "correto" é incorreto, porque
está baseado nos nossos preconceitos, no nosso condicionamento, nos nossos medos, nas nossas
idiossincrasias, na nossa cultura, na nossa sociedade, nas sanções religiosas, etc. Temos a norma, o
padrão, e esse mesmo padrão é em si próprio incorreto, imoral. A moralidade social é imoral. Estais
de acordo? Se estais, então já rejeitastes a moralidade social -- quer dizer, a avidez, a inveja, a
ambição, o nacionalismo, o culto das classes, etc.. Mas será que a rejeitastes? Quando dizeis: "Sim, a
moralidade social é imoral" -- é isso que sentis, ou trata-se apenas de palavras?... Ser
verdadeiramente moral, virtuoso, bom, é uma das coisas mais belas da vida; e essa moralidade nada
tem a ver com o comportamento da sociedade que nos cerca. O ser humano tem de ser interiormente
livre para ser verdadeiramente bom, e não somos livres se seguimos a moralidade social, de
ambição, competição, culto do sucesso -- todas essas coisas que as igrejas e a sociedade consideram
morais.
I.: Teremos de esperar que isso aconteça ou há alguma disciplina a seguir?
K.: É necessária alguma disciplina para percebermos que o próprio ato de ver é ação?
56
I.: Poderá dizer alguma coisa sobre a mente quieta? Essa mente aquietada é resultado de
disciplina, ou não?
K.: Vejamos: um soldado na parada está imóvel, muito direito, segurando a arma segundo a
regra; é submetido a rigoroso treino, dia após dia; a sua liberdade é completamente destruída.
Mantém-se muito quieto; mas essa "disciplina" é quietude? Ou, quando uma criança está absorvida
num brinquedo, isso é quietude? Tira-se-lhe o brinquedo e ela volta a ser o que é. Assim, será que a
"disciplina" (compreendamos, de uma vez por todas, esta coisa tão simples) poderá criar quietude?
Pode produzir insensibilidade, embotamento, um estado de estagnação, mas poderá tornar a mente
quieta, no sentido de intensamente ativa, mas cheia de quietude?
I.: Que deseja que façamos aqui neste mundo?
K.: É muito simples, senhor: Eu não desejo nada. É a primeira coisa a dizer. A segunda é:
vivei, vivei neste mundo, tão maravilhosamente belo. É o nosso mundo, a terra que temos para nela
vivermos. Mas não sabemos viver: somos seres humanos mesquinhos, separados uns dos outros,
ansiosos, amedrontados. E portanto não vivemos, não estamos realmente em relação, somos seres
humanos isolados, desesperados.
Não sabemos o que significa viver naquele sentido de tranqüila e profunda felicidade. Só
podemos viver assim quando sabemos libertar-nos de todas as coisas absurdas da nossa vida. E essa
libertação só é possível quando reparamos no nosso relacionamento, não só com os seres humanos,
mas também com as idéias, com a natureza, com tudo. Nesse relacionamento podemos descobrir o
que somos, o nosso medo, a nossa ansiedade, o nosso desespero, o nosso isolamento, a nossa total
falta de amor. Estamos cheios de teorias, de palavras, de conhecimento do que outras pessoas
disseram. Mas não sabemos nada a respeito de nós mesmos e, portanto, não sabemos viver.
I.: Como explicar os diferentes níveis de consciência, em relação ao cérebro humano? O
cérebro parece ser uma coisa física. Além disso, a mente parece ter uma parte consciente e uma parte
inconsciente. Como poderemos compreender com clareza, no meio de tantas e diferentes idéias?
K.: Qual a diferença entre a mente e o cérebro -- é esta a questão, não é verdade? O cérebro
físico atual, que é resultado do passado, que é produto da evolução, de muitos milhares de ontens,
com todas as suas memórias, conhecimentos e experiências -- esse cérebro não fará parte da mente
total, a mente em que há um nível consciente e um nível inconsciente? Tanto o físico como o não
físico, o psicológico, não serão um todo? Não somos nós que o dividimos em "consciente" e
"inconsciente", cérebro e não-cérebro? Não poderemos ver tudo isso como uma totalidade, como
algo não separado?
O "inconsciente", difere muito do consciente? Ou não faz, antes, parte da totalidade, sendo
nós que o separamos? Daí surge a questão: Como pode a mente consciente aperceber-se do
inconsciente? Poderá a mente "positiva", operante -- aquela que funciona o dia todo -- observar o
inconsciente?
Não sei se temos tempo de examinar esta questão. Não estais cansados? Não podemos
reduzir esta reunião a um entretenimento, como bem pode acontecer quando estamos sentados numa
sala aprazível e confortável, ouvindo alguém falar. Estamos a tratar de questões muito sérias, e se se
fez o trabalho necessário, tem de se estar cansado. O cérebro não pode receber mais do que até um
certo ponto, e o aprofundar desta questão do consciente e do inconsciente requer uma mente
penetrante e lúcida, capaz de observar. Duvido muito que, no fim de uma hora e meia, se esteja
nessas condições. Portanto, não será melhor se estais de acordo, tratarmos deste assunto na próxima
reunião?
Londres, Março 16, 1969

ENTREVISTA COM KRISHNAMURTI


Sobre a autoridade
Entrevistador - Krishnamurti, diz que todos os nossos problemas derivam de um único
problema: vivemos como nos dizem para viver, somos pessoas de segunda-mão, e durante séculos
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temos estado submetidos a toda a espécie de autoritarismo. Hoje os jovens estão a rebelar-se contra a
autoridade. Pessoalmente, que tem contra a autoridade?
Krishnamurti - "Pessoalmente", penso que nada tenho contra a autoridade, mas por todo o
mundo a autoridade tem mutilado a mente -- não só no aspecto religioso, como no aspecto
psicológico, interior -- porque a autoridade de uma crença (por exemplo), imposta pela religião,
destrói seguramente a descoberta da Realidade. Apoiamo-nos na autoridade porque temos medo de
manter-nos "sós".
E. - Estou um pouco perplexo com isso porque, certamente, a sabedoria acumulada pela
espécie humana não é para ser toda deitada fora, não?
K. - Pois não. Mas que é a sabedoria? Será a mera acumulação de conhecimentos, ou a
sabedoria é algo que apenas nasce quando termina o sofrimento? A sabedoria, a sagacidade, não está
nos livros, nem no conhecimento acumulado da experiência dos outros. Seguramente, a sabedoria
vem-nos no autoconhecimento, na autodescoberta da estrutura total de nós mesmos. Na
compreensão de nós mesmos reside o fim do sofrimento psicológico e também o começo da
sabedoria. Como pode a mente ser sábia quando está prisioneira do sofrimento e do medo? Só
quando o sofrimento psicológico -- que também é medo -- acaba, existe a possibilidade de se ser
sábio.

Sobre o amor

E. - Porque é que todos desejamos tão desesperadamente ser amados?


K. - Porque estamos desesperadamente vazios e isolados.
E. - Mas diz que amar é mais importante do que ser amado.
K. - Sim, com certeza -- o que quer dizer que se tem de compreender esse vazio, essa solidão
que existe em cada um. A mente preocupada consigo mesma, com as suas ambições, a sua avidez, os
seus medos, culpa, sofrimento, não tem capacidade para amar. A mente que em si mesma está
dividida, que vive em fragmentos, obviamente não pode amar. A divisão implica sofrimento, ela é a
raiz do sofrimento -- essa divisão entre "eu" e "tu" e "eles", os "pretos", os "brancos", os "mestiços",
etc. Portanto, onde quer que haja divisão, fragmentação, o amor não pode existir, porque o bem é um
estado em que não há divisão. O próprio mundo é indivisível.
E. - Diz, de fato, que o amor só nasce quando há um abandono total do "eu". Mas como se
consegue abandonar o "eu"?
K. - Esse abandono total só acontece com a compreensão de nós mesmos. O
autoconhecimento é o começo da sabedoria, e, portanto, sabedoria e amor andam juntos. Isto
significa que só há amor quando realmente nos compreendemos a nós mesmos e portanto sabemos,
em nós mesmos, que não há nenhuma fragmentação -- nenhum sentimento de avidez, cólera,
ambição, nenhuma atividade separativa.
E. - Mas, como sabe, temos ainda de viver nesta sociedade, por sinal uma sociedade bastante
doente, e isso tem influência sobre nós; não estamos realmente livres para sermos nós próprios, em
parte por causa da sociedade.
K. - Mas nós somos a sociedade. Construímos a sociedade -- a sociedade é nós, o mundo é
nós. O mundo não é diferente de "mim". Sou resultado do mundo, da religião, do ambiente em que
vivo.
E. - Diz que é o esforço que nos destrói, que a vida é uma série de batalhas e que só é feliz o
homem que não está prisioneiro do esforço. Mas pode-se fazer no mundo algum trabalho sem uma
dose de intenso esforço?
K. - Porque não? Que é o esforço? É uma contradição de energias, não é verdade? Uma
energia opondo-se a outra energia.
E. - Não poderá ser uma atividade constante numa direção?
K. - Se se tratar de uma atividade, de uma coisa que se faz, onde é que está a contradição?
Não há perda de energia, não há conflito. Se vou passear, vou passear. Mas se quero ir passear e
tenho alguma outra coisa para fazer, então começa a contradição, o conflito, o esforço. É por isso
que, para compreender o esforço, temos de descobrir as nossas contradições.
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Sobre a meditação

E. - Que entende por meditação? Esta palavra aparece muitas vezes nos seus livros. Procurei-
a no Dicionário de Oxford antes de vir ter consigo e aí diz-se que meditação significa dedicar-se
muito ao pensamento. Mas não é isso que meditação significa para si.
K. - Tem de se investigar para se saber o que é realmente meditação -- para mim é das coisas
mais importantes.
E. - Será possível explicar melhor o que ela é, se me disser o que ela não é?
K. - Ia justamente sugerir isso. Como sabe, há várias escolas de meditação. Oferecem vários
sistemas e métodos, e dizem que se os praticarmos dias após dia, alcançaremos uma certa forma de
iluminação, uma certa experiência extraordinária... Antes de mais, toda a idéia de sistema, de
método, implica uma repetição mecânica -- e isso não é meditação. Será então possível, não embotar
a mente pela repetição, mas sim estar atento ao movimento do pensar -- sem o reprimir, sem tentar
controlá-lo, mas apenas estar consciente de toda esta atividade do pensamento, da sua constante
tagarelice?
E. - Verbalizamos constantemente os nossos pensamentos, não é verdade?
K. - Exatamente. O pensamento só existe em palavras ou em imagens (de vários tipos). A
meditação exige a mais alta disciplina -- não a disciplina da repressão e do conformismo -- mas a
que surge quando observamos o nosso pensamento. Essa mesma observação tem a sua própria
disciplina, de uma subtileza extraordinária. Isso é absolutamente necessário.
E. - Terá de se dispor de tempo para fazer isso?
K. - Podemos fazê-lo em qualquer altura. Quando se está sentado no carro, pode-se observar,
estar atento a tudo. Ao que está a acontecer à nossa volta e ao que está a acontecer em nós mesmos --
estar consciente de todo o processo, do movimento total. A meditação é na verdade uma forma de
libertar ou de "esvaziar" a mente do que é conhecido. Sem isso não se pode saber o que é o
desconhecido. Para ver, compreender algo novo, completamente novo, a mente tem de estar vazia de
todo o passado. A Verdade, ou Deus, ou seja qual for o nome que lhe dermos, tem de ser algo novo,
e não algo resultante do condicionamento. O Cristão está condicionado por dois mil anos de
propaganda, tal como o Hindú e o Budista. Para eles, portanto, "Deus", ou a "Verdade", é um
resultado da propaganda. Mas isso não é a Verdade. A Verdade é algo que é vivo, todos os dias. Por
isso a mente tem de ser "esvaziada" para poder olhar a Verdade.
E. - É como apagar o quadro, por assim dizer?
K. - Meditação é isso.
E. - E então tem-se aquela total e descontraída percepção da realidade, de "aquilo que é".
K. - De aquilo que é -- está correto. E aquilo que é não é uma coisa estática, mas
extraordinariamente viva. E portanto a mente que está de fato em meditação, a mente meditativa, é
uma mente extremamente silenciosa, silêncio que não é produzido pela supressão do ruído. Não é
oposto do ruído. Acontece quando a mente se compreende completamente a si mesma -- e portanto
não há qualquer movimento, o que significa que as próprias células do cérebro se tornam quietas. E
então, nesse silêncio, tudo acontece. É uma coisa extraordinária, se a observarmos. É esta a autêntica
meditação e não toda essa aceitação imitativa da autoridade, a repetição de palavras e tudo o mais; o
que é absurdo.
E. - Posso então recapitular, para ver se compreendi? A meditação, é, parece-me, o processo
essencial do descondicionamento.
K. - Exatamente.
E. - E se me libertar do peso morto da autoridade, se puser de lado tudo o que me tem sido
dito, nesse momento ficarei só, mas nessa solitude tenho oportunidade de poder compreender o que
realmente sou.
K. - E de compreender também o que é a Verdade, ou Deus, ou a mesma Realidade com
outro nome que se goste de lhe dar.
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Boletim 9, Krishnamurti Foundation, Inglaterra – Entrevista Televisionada pela BBC de
Londres, em 7 de Dezembro de 1970

A Carreira - o que fazer?


( Bombaim, 24 de Fevereiro de 1957 - Sobre o Viver Correto - Edit. Cultrix )

Estudante: Antes de ter ouvido falar do senhor eu estudava com afinco e me preparava para
fazer carreira. Mas tudo agora me parece muito fútil e eu me perdi. Estou confuso, o que devo fazer?
Krishnamurti : Senhor, eu o deixei confuso? Eu o fiz perceber que aquilo que está fazendo é
fútil? Se eu fui a causa da sua confusão, então você não está confuso, pois quando eu me retirar você
voltará à sua confusão anterior ou à sua clareza. Mas se o senhor fala sério, então o que na verdade
ocorreu foi que, ao ouvir o que aqui foi dito ele despertou para suas próprias atividades; ele agora vê
que o que está fazendo, ou seja, estudar para construir uma carreira para o futuro, é bastante vazio,
sem muito significado. Então ele diz: “O que devo fazer?”. Ele está confuso, mas não porque eu o
deixei confuso e, sim, porque, ao ouvir o que foi dito, ele se deu conta da situação do mundo e da
própria condição e relacionamento com o mundo. Ele se deu conta da futilidade disso que se chama
construir uma carreira.
Acredito que isso é o que precisa ser verificado primeiramente: ao ouvir, ao observar, ao
examinar suas próprias atividades, vocês fizeram essa descoberta por vocês mesmos; então, ela é de
vocês, não minha. Se fosse minha, eu a levaria comigo ao partir. Mas isso é algo que não pode ser
carregado por outro porque foi verificado por você. Você observou ao agir, observou a sua própria
vida, e agora você percebe que construir uma carreira para o futuro é bastante fútil.
Na verdade, o que você deve fazer? Você deve prosseguir em seus estudos, não é verdade?
Isso é óbvio, porque você precisa ter algum tipo de profissão, um meio adequado de ganhar a vida.
Compreende? Você precisa ganhar a vida de forma adequada. E o Direito certamente não é um meio
adequado, porque a lei mantém a sociedade tal como está, uma sociedade baseada no consumismo,
na cobiça, na inveja, na autoridade e na exploração, e que portanto está em agitação dentro de si
mesma. Assim, o direito não é profissão para quem está pensando seriamente nas questões de seu
ser; e ele não pode também tornar-se policial ou soldado, pois eles tem como profissão matar, e nisso
não há diferença entre defender e atacar.
Então, se essas três não são profissões adequadas, o que você vai fazer? Você precisa pensar
no assunto, não é verdade? Você precisa descobrir por você mesmo o que você realmente quer fazer,
e não seguir a orientação do seu pai, ou da sua avó, de algum professor ou de quem quer que seja
que lhe diga o que fazer. E o que significa descobrir o que você realmente quer fazer? Significa
descobrir o que você gosta de fazer, não é verdade? Quando você gosta do que está fazendo, você
não tem ambição, nem cobiça, você não está em busca de fama, porque apenas o amor pelo que está
fazendo é totalmente suficiente em si mesmo. Nesse amor não existe frustração porque você não está
mais em busca de satisfação.
Mas, vejam bem, isso requer uma grande dose de pensamento, de investigação, de meditação,
e infelizmente a pressão do mundo é muito grande - o mundo aqui representado pelos seus pais,
pelos seus avós, pela sociedade que o cerca. Todos eles querem que você seja um homem de
sucesso; eles querem que você se encaixe no padrão estabelecido, então eles o educam de forma a se
amoldar. Mas toda a estrutura da sociedade baseia-se no consumismo, na inveja, na auto-afirmação
impiedosa, na atividade agressiva de cada um de nós; e se você olhar e perceber por você mesmo,
realmente e não apenas em teoria, que uma sociedade assim deve inevitavelmente apodrecer a partir
do seu interior, você então descobrirá a sua própria forma de agir fazendo aquilo que gosta de fazer.
Isso pode causar um conflito com a sociedade atual - mas, por que não? Um homem que procura a
verdade, vive em revolta contra a sociedade fundada essencialmente no consumismo, na
respeitabilidade e na busca ambiciosa do poder. Ele não está em conflito com a sociedade; a
sociedade é que está em conflito com ele. A sociedade não pode jamais aceitá-lo. A sociedade pode
apenas fazer dele um santo e adorá-lo - e, assim, destruí-lo.
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Assim, o estudante que está ouvindo ficou confuso. Mas se ele não se livrar dessa confusão -
fugindo para o cinema ou para um templo ou lendo um livro - e verificar qual foi a origem dessa
confusão, se ele encarar essa confusão e, ao fazê-lo, não se amoldar ao padrão da sociedade, então
ele será um verdadeiro homem com sentimento religioso. E esses homens são necessários, pois eles
criarão um novo mundo.

Krishnamurti - Bombaim, 24 de Fevereiro de 1957 - Sobre o Viver Correto - Edit. Cultrix

A mente religiosa-científica
Hoje desejo falar-lhes sobre um assunto bem importante. Ouçam-no com muito cuidado e
poderão mais tarde, se quiserem, discuti-lo com seus professores. Diz respeito ao mundo inteiro e
em todos está despertando certa inquietude. É a questão do espírito religioso e da mente científica.
São duas e diferentes maneiras de encarar os fatos. Estes são os únicos estados mentais de real valor
- o verdadeiro espírito religioso e a verdadeira mente cientifica. Outra qualquer atividade é
destrutiva, causando aflição, confusão e sofrimento.
A mente científica é objetiva. Sua missão é descobrir, perceber. Ver as coisas através de um
microscópio, de um telescópio; tudo tem de ser visto exatamente como é; dessa percepção, a ciência
tira conclusões, constrói teorias. Essa mente move-se de um fato para outro fato. O espírito científico
nada tem que ver com condições individuais, nacionalismo, raça, preconceito. Os cientistas existem
para explorar a matéria, investigar a estrutura da terra, das estrelas. e planetas; descobrir meios para
curar os males do homem, prolongar-lhe a vida, explicar o tempo, tanto o passado como o futuro.
Porém, a mente científica e suas descobertas são usadas. e exploradas pela mente nacionalista, quer
seja da Índia, quer seja da Rússia, da América, etc. De seu turno, os estados e continentes soberanos
utilizam e exploram as descobertas dos cientistas. Há, também, a verdadeira mente religiosa, que não
pertence a nenhum culto, nenhum grupo, nenhuma religião, a nenhuma igreja instituída. A
mentalidade religiosa não é a mentalidade hindu, a mentalidade cristã, a mentalidade budista, a
muçulmana. A pessoa religiosa não pertence a nenhum grupo que se intitule religioso. Ela não
freqüenta igrejas, templos, mesquitas, nem se apega a determinadas crenças e dogmas. A mente
religiosa é completamente só. Ela já compreendeu a falsidade das igrejas, dogmas, crenças tradições.
Não sendo nacionalista nem condicionada pelo ambiente, não tem horizonte nem limites, é
explosiva, nova, fresca, sã. A mente sã, jovem, é extraordinariamente maleável, sutil, não tem
ancora. Somente ela pode descobrir o que se chama "deus", o que é imensurável.
Só é verdadeiro o ser humano quando alia o espírito científico ao autêntico espírito religioso.
Então, os homens criarão um mundo justo não o mundo dos comunistas ou dos capitalistas, dos
brâmanes ou dos católicos romanos. De fato, o verdadeiro brâmane é aquele que não pertence a
nenhum credo religioso, nem tampouco a nenhuma classe, não é detentor de autoridade, e não
mantém posição social. O genuíno brâmane e o novo ente humano, que tem simultaneamente a
mentalidade científica e a mentalidade religiosa, sendo, portanto, harmônico, sem qualquer
contradição interior. Para mim, o objetivo da educação é criar esta nova mentalidade, que é
explosiva e não se adapta a nenhum padrão estabelecido pela sociedade.
É criativa a mente religiosa. Não lhe basta acabar com o passado, tem também de explodir no
presente. Ela, diferentemente da que só interpreta os livros sagrados e a Bíblia, é capaz de perquirir,
bem como criar uma realidade explosiva. Aí não há interpretação nem dogma.
É sobremodo difícil alguém ser religioso e ter uma mente lúcida, objetiva, científica,
intrépida, alheia á própria segurança, aos próprios temores. Não podemos ter uma mente religiosa
sem a compreensão total de nós mesmos - nosso corpo, nosso espírito, nossas emoções; ignorando
como trabalha, e também como o pensamento funciona. Para descobrir e superar tudo isso, torna-se
indispensável encarar o problema com uma mente científica, que é objetiva, clara, sem preconceitos,
que não condena, que observa, que vê. Com essa mentalidade, somos efetivamente um ser humano
culto, um ser humano que conhece a compaixão. Tal ente humano sabe o que é estar vivo.
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Como conseguir tudo isto? Pois urge ajudar o estudante a ter um espírito científico, a pensar
com clareza, precisão, argúcia, assim como auxiliá-lo a descobrir as profundezas de sua mente, a ir
além das palavras, dos diferentes rótulos de hindu, muçulmano, cristão. Será possível ensinar o
estudante a ultrapassar os rótulos, a descobrir por si, a experimentar aquela coisa imensurável, que
nenhum livro contém, á qual nenhum guru tem acesso? Se um colégio como este propiciar essa
educação, constituirá isso um feito grandioso. Vocês todos devem sentir como será importante criar-
se tal escola. É sobre isto que os professores e eu vimos há dias debatendo. Temos conversado
acerca de várias coisas - autoridade, disciplina, métodos de ensino, o que ensinar, o que é ouvir, o
que significa educação, cultura, etc. Apenas prestar atenção à dança, ao canto, á aritmética, as aulas,
não constitui o todo da vida. Também faz parte da vida a pessoa sentar-se tranqüilamente e olhar
para seu interior, ter clara percepção, ver. Cumpre também saber pensar, o que pensar e porque
estamos pensando. Faz parte igualmente da vida olhar os pássaros, observar os aldeões, sua miséria -
qual a contribuição de cada um de nós para essa situação, criada pela sociedade. Tudo isso concerne
á educação.
Krishnamurti - do livro Ensinar e Aprender - Edit. ICK

O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO
Págs. 11/25 do livro "As Ilusões da Mente" - Série Selo de Ouro 1145 - Tradução de Hugo
Veloso da 1ª Palestra em Bombaim, Índia de 07.02.1954– editado pela Ed. Ouro em 1969.

Esta tarde, desejo falar sobre o problema da transformação. Já pensastes a respeito? Se já o


fizestes, deveis ter notado quão difícil é operar uma mudança em nós mesmos. Percebemos em
certos momentos a necessidade de transformação, de um certo ajustamento a vida, uma revolução
radical em nos mesmos, independente de qualquer padrão de pensamento, ou compulsão. Que
observa as numerosas complicações da existência, sente o desejo imenso de efetuar uma revolução
em si próprio. Já deveis – pelo menos os mais ponderados entre vós – ter refletido as esse respeito,
isto é, sobre como efetuar essa transformação, como irá ela influir em nossas relações mútuas ou
com a sociedade. Este problema, bem examinado, é sumariamente complexo e envolve muitas outras
questões, que se agitam não apenas no nível superficial do nosso pensar, mas também
profundamente, no nível inconsciente.

Preliminarmente, porem desejo, recomendar-vos que, ao iniciar eu os estudos do problema,


me escutem com atenção e sem resistência; SE ASSIM FIZERDES, ENTÃO, TALVEZ POSSAIS
ENCONTRAR-VOS NAQUELE ESTADO DE TOTAL REVOLUÇÃO INTERIOR. Afinal, é com
este fim em vista que vos falo, e não para convencer-vos sobre uma determinada forma de
modificação ou dizer-vos que deveis transformar-vos em conformidade com certo padrão; nisso não
há nenhuma possibilidade transformação e, sim, meramente, ajustamento, adaptação a determinado
padrão de ação – e isto não é revolução, não é transformação. Se escutardes, sem resistência de
espécie alguma, estou certo de que vos vereis num estado de revolução, dentro de vos mesmos, não
operada por qualquer compulsão de minha parte, mas de maneira completamente natural.
Permita-me, pois sugerir que escuteis sem resistência (significa isso ausência do ego). Em
geral, nós não escutamos verdadeiramente, pois costumamos escutar com uma intenção, um motivo
um propósito, o que denota esforço. Pelo esforço, não se pode compreender coisa alguma.
Vede bem a importância disso. Para se compreender uma coisa, é necessário escutá-la sem
esforço, sem compulsão, sem resistência, inclinação, opinião ou juízo. Isso é muito difícil, se não
sabemos escutar. O problema não é como efetuar a transformação, pois se sabemos escutar
corretamente, sem resistência sob qualquer forma, a transformação se realizará independentemente
de qualquer ato consciente. Não creio que se possa realizar uma modificação radical mediante ação
consciente ou qualquer espécie de incitamento ou compulsão.
Passarei agora a explicar como a transformação se realiza, INDEPENDENTEMENTE da
"motivação".
Mas para se compreender tal explicação, torna-se necessária uma atitude muito atenta, no
escutar livre de qualquer barreira, restrição, resistência. No momento em que se ouve a palavra
62
"revolta", "transformação" ou "revolução", essa palavra tem um significado preciso – o significado
de dicionário, o significado adequado ao seu especial padrão de pensamento.
Esses padrões de pensamento estão constantemente a interferir naquilo que se está escutando.
A dificuldade, por conseguinte, não vai ser a compreensão do problema, mas, sim, A MANEIRA DE
ESTUDAR O PROBLEMA, A MANEIRA DE ESCUTAR O PROBLEMA. É muito importante
compreender isso antes de se começar a apreciar qualquer problema.
Para produzir-se a compreensão, não há necessidade de resistência ao que se ouve, mas, sim
de seguir-se a corrente de pensamento a que se está dando atenção. Ninguém pode segui-la, se ficar
meramente resistindo, traduzindo, levantando contra ela barreiras de suas próprias idéias. Se formos
capazes de escutar sem resistência, estaremos então pensando juntos, e juntos encontraremos a
mente num estado de transformação, alcançado sem qualquer persuasão, raciocínio ou conclusão
lógica.
Para a maioria dos que estamos cônscios dos acontecimentos mundiais e das coisas que estão
sucedendo neste país (Índia 1959), é clara, parece-me à necessidade de revolução; uma mudança de
atitude, de pensamento, uma revolução de valores, é essencial. É bem óbvia a necessidade de
transformação, para haver paz, para haver o suficiente a alimentar toda a humanidade, para
promover o entendimento entre os homens. A possibilidade de desenvolvimento completo do
homem depende, necessariamente, de uma transformação vital, total. Mas, como efetuarmos essa
transformação, e que implica essa transformação? Há transformação quando a mente, o pensamento,
só procura acomodar-se ao padrão de determinada cultura – hindu, a cristã, a budista – ou ao padrão
de pensamento e ação comunista? Pode esse ajustamento, em qualquer nível que seja, da nossa
existência, operar a transformação? Se nos acomodarmos a um padrão que nos foi imposto ou que
nos mesmo criamos, é obvio que já não há transformação; porque o padrão, o fim, é um resultado do
nosso condicionamento. Se eu, como hinduísta, comunista ou cristão, me modifico de acordo com o
plano segundo fui criado, de acordo com uma idéia, uma determinada maneira de pensar, isso, por
certo, não é transformação, já que está, apenas, obedecendo a uma reação condicionada. E quando
me modifico pelo padrão de um temor, de uma defesa, de uma tradição, isto, evidentemente, não
significa transformação; não é revolução, não é a revolta radical procedente do "que é".
Assim sendo, quando investigo o problema da transformação, não devo investigar COMO a
minha mente está funcionando?
Não devo conhecer o processo total do meu pensamento? Porque se existe algum temor esse
temor me faz modificar-me, não há transformação; o temor projeta um padrão e eu me modifico de
acordo com o padrão esse padrão; tem-se, por conseguinte, um mero ajustamento a determinado
padrão "projetado" pelo temor. Se desejo promover a transformação, não devo examinar as múltiplas
camadas do meu ser, consciente e bem assim o inconsciente? Não devo pesquisar as reações
superficiais dos meus pensamentos e "motivos", e as correntes profundas de onde promana todos os
pensamentos e ações? Se desejo transformar-me, posso ter, um padrão pelo qual me transformarei?
Embora eu esteja a repetir coisa já dita, prestai atenção ao que estou dizendo; senão perdereis
o que está para vir.
Reconheço a necessidade da transformação, em mim mesmo e na sociedade. A sociedade,
são as minhas relações com outros, e nessas relações, a que chamo "a sociedade", faz-se necessária
uma transformação, uma demolição total, uma completa revolução do pensamento. Já que percebo a
importância dessa transformação, pergunto: como pode ser feita? Depende a sua realização de
especulações intelectuais, de conhecimentos da história e de sua interpretação, do conhecimento das
várias questões sociais e métodos de reforma? Todo esse saber é capaz de produzir, a transformação
total de mim mesmo, do meu pensar, de minha atitude, minhas atividades e pensamentos? Assim
sendo, não é necessário – se tenho verdadeiro interesse – que eu investigue esta questão da
transformação? Não devo investigar os móveis que me impelem a transformação, a minha ânsia de
transformação? A ânsia de transformação pode produzir a transformação radical? Essa ânsia pode
ser uma simples reação do meu condicionamento, meu fundo, a impressões várias, de ordem social,
econômica ou cultural.
Pode-se promover a transformação sob compulsão de qualquer espécie?
Ou existe uma transformação não dependente do tempo?
63
Deixa-me expressá-lo da seguinte maneira:
Conhecemos a transformação em relação com o tempo, e o tempo compreende a compulsão a
que nos sujeitam as várias formas de sociedade, cultura, relações, temores, o desejo de ganhar
alguma coisa ou de evitar punição? Tudo isso está na esfera do tempo não é verdade? São funções,
resultados, atividades de uma mente oriunda do tempo. Considerando bem, a mente é resultado do
tempo – do tempo cronológico, de séculos de tradição, séculos de educação, compulsão, temor. A
mente, por conseguinte, é coisa do tempo. Pode a mente, resultado do tempo, operar uma revolução
total e sem relação com o tempo? Se nos modificarmos na esfera do tempo, isto é, se me modifico
porque minha sociedade exige, por perceber a necessidade de fazê-lo sob alguma forma de
compulsão, ou porque tenho medo – e tudo isso, sem dúvida, é resultado dos cálculos da mente –
não pode haver revolução total. Isto é bem evidente não achais? Quando a mente pensa em termos
referente ao tempo, para a transformação, há transformação? Ou só há uma continuidade,
ajustamento a determinado padrão e, por conseqüência, nenhuma transformação?
O problema, pois, é este: Há transformação, há revolução NÃO DEPENDENTE do tempo?
Não é esta a única revolução verdadeira – revolução que não é produto da mente, do pensamento?
Afinal de contas, pensamento é reação da memória, sendo a memória experiência, conhecimento,
acumulação de inumeráveis reações e experiências; tudo isso constitui a mente, o fundo com que a
mente reage; e essa reação é pensamento. O pensamento, portanto é coisa do tempo. Enquanto eu
estiver me transformando dentro do tempo – isto é, de acordo com um padrão qualquer: comunista,
socialista, capitalista, católico, hinduísta, budista, etc – a transformação estará sempre dentro da
esfera do tempo.
Quando a transformação obedece a um padrão por mais amplo que seja estará sempre
compreendida no tempo e, portanto não há realmente transformação, revolução. Prestai atenção a
isto, para o compreenderdes bem.
Não o rejeiteis dizendo: "Puro disparate, que não nos leva a parte alguma."
Mas, escutai-o, ainda que não estejais habituados com esta idéia. Talvez a estejais ouvindo
pela primeira vez. Não a rejeiteis porque, se quiserdes investigá-la profundamente, VEREIS COMO
É EXTRAORDINÁRIO O SEU CONTEÚDO.
A transformação se realiza quando não existe medo, quando não existe "experimentador e
experiência"; é só então que se verifica a revolução que está fora do tempo. Tal revolução, porem,
não é possível, quando estou tentando transformar o "eu", quando estou tentando transformar "o que
é" noutra coisa diferente. Sou o resultado de compulsões e persuasões de toda ordem, sociais e
espirituais, resultado de todo o condicionamento do impulso de aquisição; nisso está baseado o meu
pensar. Desejando livrar-me desse condicionamento do impulso de aquisição, digo, de mim para
mim: "Não devo ter o espírito de aquisição".Devo exercitar-me no "não querer". –Mas tal atividade
está ainda na esfera do tempo, é ainda uma atividade da mente. Percebei bem isso; não digais; "Que
devo fazer para alcançar o "estado sem impulso aquisitivo?". – Isso não é importante. Não é
importante que, se seja "não-aquisitivo". O importante é compreender que a mente que quer fugir de
um estado para outro está sempre funcionando dentro da esfera do tempo e, por esse motivo, não há
revolução, não há transformação. Se fordes realmente capazes de compreender isso, estará então
plantada a semente daquela revolução radical, a qual entrará em ação; não se precisa fazer coisa
alguma.
Se há obstáculo à ação daquela semente, isso se deve a nossa resistência, ao nosso exclusivo
interesse nos resultados imediatos. Assim que percebo a necessidade da transformação, logo quero
saber "como" me transformarei, qual o método que devo seguir, só isso me interessa. O método
implica continuidade da atividade da mente e só é capaz de produzir ação conforme com um padrão
e, portanto, ação temporal, produtiva de sofrimento.
Pode haver ação não dependente do tempo, não dependente da mente, não condicionada
apelo pensamento, que é puramente experiência do conhecimento? Tudo isso está relacionado com o
tempo. Uma tal atividade, por conseguinte jamais produzirá revolução, uma revolução total em
nosso desenvolvimento de entes humanos. O problema, pois é esse: Há possibilidade de revolução,
de transformação fora do tempo? Há possibilidade transformação de sem interferência da mente?
Percebo a importância da transformação. Todas as coisas se transformam, todas as relações se
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transformam, cada dia é um novo dia, se estou morto, completamente, para o "ontem", que já é
"coisa velha"; morto para todas as coisas que aprendi, que adquiri, que experimentei e compreendi,
há então revolução em cada momento que vem, e há transformação. Mas, o morrer para ontem não é
atividade da mente. A mente não pode morrer por força de uma determinação, de evolução de um
ato de vontade. Se a mente reconhece a verdade de que não pode produzir a transformação por
alguma ação da vontade, ou por meio de uma determinada conclusão ou compulsão, - e o que se
produz por essa maneira é apenas uma continuidade, um resultado "modificado" e não uma
revolução radical; se a mente estiver silenciosa, por uns poucos segundos apenas, para apreender a
verdade dessa asserção, vereis, então acontecer uma coisa extraordinária, independentemente de vós
mesmos e da vossa mente. Ocorre então, interiormente, uma transformação, sem nenhuma
interferência da mente, que é pensamento condicionado. É um extraordinário estado mental, esse em
que não existe "experimentador" e não existe "experiência". Daí resulta a revolução total.
Essa revolução total é a ÚNICA COISA que pode trazer a paz ao mundo.
Todos os ajustamentos de caráter nacional, todas as reformas econômicas, de um grupo que
domina outro grupo e liquida todos os demais grupos, tudo isso ha de falhar, porque só pode trazer
maiores sofrimentos e mais guerras. O que trará paz ao mundo, a compreensão, o amor, não é a
razão – pois esta se baseia em reação condicionada – mas só a mente que se compreende de maneira
total e é capaz de achar-se naquele estado eternamente, "atemporalmente" novo. Isso não é uma
impossibilidade uma coisa idealística, fantástica ou mística. Se buscardes realmente esta coisa,
encontrá-la-eis, experimentá-la-íeis diretamente; isso porem exige muita, muita meditação,
investigação persistente, compreensão.
O IMPORTANTE, POIS É COMPREENSÃO DA MENTE, E NÃO O MÉTODO DE
OPERAR A TRANSFORMAÇÃO DE SI MESMO e, conseqüentemente, a transformação do
mundo. O próprio processo de compreensão do problema produz uma transformação,
independentemente de vós mesmos. Eis porque é importante ouvirdes estas palestras sem vos
deixardes persuadir pelo que digo, mas percebendo a verdade contida no que estou dizendo. A
verdade é que traz a revolução, e não a mente sagaz, a mente que calcula. Porque a verdade não
pertence ao tempo, a verdade não pertence à Índia, a Europa, a Rússia, a América; não pertence a
nenhum grupo, nenhuma religião, nenhum mentor, nenhum discípulo. Onde há um mentor, onde há
um seguidor, onde há uma nacionalidade, lá não esta a Verdade.
A VERDADE SÓ PODE SURGIR QUANDO A MENTE COMPREENDEU, E SE ACHA
TRANQÜILA; SÓ ENTÃO PODE MANIFESTAR-SE AQUELA REALIDADE.
Tenho aqui várias perguntas. Antes de dar-lhes resposta, creio importante averiguar se ides
escutar com o propósito de obter uma resposta, ou se ides dar toda a atenção somente ao problema.
Estes são dois estados diferentes. É fácil fazer perguntas, assim como um colegial dispara uma
pergunta e se põe a espera de uma resposta pensando que essa resposta irá resolver todos os
problemas e que o que se precisa fazer é apenas aceitar a resposta ou rebatê-la, como um estudante
muito destro no debate. Só se fica nesse nível quando esta desejando uma resposta, quando se escuta
para se obter uma resposta. Mas, quando o que nos interessa é só o problema e não a resposta, nossa
atitude é então de todo diferente. A primeira dessas duas atitudes é própria do colegial, do individuo
não amadurecido, e resulta de uma educação não inteligente; a outra requer madura investigação.
Assim, depende de vós a maneira de como escutais. Se o fazeis com a atitude de quem busca
uma resposta e os sentis desapontados quando a não obtendes e dizeis – "Ele nunca responde as
perguntas" – não pretendo dar resposta alguma, porquanto a vida não tem resposta. "sim", ou "não".
A vida é uma coisa imensa, vastíssima; tudo corre para ela, como para um mar. É qual um rio
caudaloso que segue seu curso até o mar, levando consigo o bom, o mau, o daninho, o belo, o feio.
Essa totalidade constitui o Oceano, que não é apenas as atividades superficiais, as rugas da
superfície. Investigar o um problema, sem resistência, sem opor barreiras, sem preconceitos, é muito
difícil. Nos temos de investigar o problema e de compreender-lhe os aspectos mais profundos.
Temos, pois, que só há problemas e não soluções ou respostas. A meu ver, se pudermos
compreender verdadeiramente, sentir verdadeiramente que a ida é um problema, que ela não é algo
que se tem de concluir, um refugio onde se encontra perene segurança, nossa atitude, nossas
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atividades e pensamentos serão então totalmente diversos. Estaremos, então aptos a receber todas as
coisas e sermos ao mesmo tempo "como o nada".
Krishnamurti - "O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO". Págs. 11/25 do livro "As
Ilusões da Mente" - Série Selo de Ouro 1145 - Tradução de Hugo Veloso da 1ª Palestra em
Bombaim, Índia de 07.02.1954– editado pela Ed. Ouro em 1969.

COMO IRÃO VOCÊS EDUCAR MEU FILHO OU FILHA?


Gostaria de saber até que ponto penetramos a questão sobre a qual estávamos conversando no
outro dia. Dizíamos, não era, que a maneira do homem de abordar a educação, a vida, qualquer
coisa, tem sido até agora, ao longo de caminhos tradicionais - o bem e o mal, isto deve ser feito e
aquilo não deve ser feito, isto é correto, aquilo é errado. Estávamos tentando ver se havia uma
maneira de abordar a educação, a vida, qualquer coisa, a partir de um ponto de vista diferente, de
uma dimensão totalmente diferente. Não sei até que ponto vocês mesmos investigaram e discutiram
o assunto. O que sentem, ou o que pensam? Como traduzir isso em ação, em ensino? Como nos
encontramos com os estudantes, que são condicionados, que possuem toda sorte de preconceitos,
necessidades, impulsos?
Apenas ouçam, por favor, não me censurem. Nossa responsabilidade não é para com as
crianças, para com os estudantes; nossa responsabilidade é para com o Outro, sobre o qual
conversamos outro dia; e essa responsabilidade traduzimos em ação na nossa própria vida e naquela
da comunidade, da escola. Faz isso algum sentido?
Não traduza essa responsabilidade como sendo para com Deus. O cristão, o hindu, o mundo
tradicional inteiro diz: "seja responsável para com Deus, para com o Supremo, para com o Altíssimo,
para com o Nobilíssimo, para com o Imensurável". E eles traduzem essa responsabilidade nisso. Não
podemos agir usado tais palavras ou símbolos. Agir, penso eu, exigiria que se tivesse lazer em
Brockwood, e não estar ocupado desde o nascer até o pôr do sol. Todos à volta de Krishnamurti
estão ocupados desde à manhã até à noite, fazendo alguma coisa ou outra; não têm lazer para se
sentar, observar, olhar para si mesmo, meditar, estar quietos.
Professor: Você tem de se sentar e observar para fazer isso, Krishnaji?
Krishnamurti: Não, não se sentar, mas ter lazer.
P: Na ação, não está você fazendo isso?
K: Ação é partir daí. Não que você esteja fazendo isso na ação. Vamos agora esclarecer. O
que há de errado com o lazer, ter lazer para observar as árvores, as flores, a si mesmo? Deve-se ter
lazer, observar, estar quieto, não se deve? Não se pode trabalhar, estar ocupado sob estresse desde a
manhã até à noite. Não se deve ter algum tempo para si mesmo? Para muitos, tempo para si mesmo é
meramente indolência, preguiça; nesse retiro definham. Não estou falando de tal perda inútil de
lazer.
O problema é este. Vejo que a tradição não tem mais significado, no sentido em que venho
usando a palavra "tradição". Nesse campo podemos cavar e cavar e cavar e nos tornarmos um pouco
melhores, mas isso não é absolutamente sagrado, nem criador; é algo terrível. Agora quero me
afastar daí. Quero me mudar para uma dimensão na qual a energia, a chama da energia criadora, é
sempre abundante; abundante sempre, esteja eu cansado, entediado, ela está sempre aí. E sou
responsável por isso; minha mente está completamente comprometida com isso; e a responsabilidade
e a chama dela é isso. Vejo à minha volta pessoas ocupadas com a tradição e digo que ao longo
desse caminho você jamais criará uma mente diferente.
Agora, vemos isto como um grupo que irá estar permanentemente em Brockwood, que com
Brockwood está comprometido como sendo sua casa, seu trabalho, sua vida, suas coisas todas?
Porque esta é uma comunidade, com uma escola, um centro educacional, de tipo diferente. Portanto,
estamos todos interessados nisso? O que não significa que eu me retiro, ou que interessado nisso saio
sozinho para um passeio com fim de aí permanecer. Isso tudo é muito estúpido. Mas é minha
responsabilidade para com isso, e não cavar mais fundo ou ampliar o movimento tradicional? Na
trincheira do movimento tradicional, posso ser muito esperto; posso educar crianças a serem mais
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inteligentes, um pouco mais honestas, mais isto e mais aquilo, mas no interior da área tradicional,
que para mim é uma abominação.
Isto está claro para todos? Quero estar bem seguro de que isto está claro, no sentido não-
verbal, de que a energia tradicional é um desperdício de energia. A Outra (energia) não é um
desperdício de energia. Ao contrário, vocês possuem mais e mais de uma dimensão diferente de
energia. E aqui estamos comprometidos com isto, responsáveis por isso; e devemos ter lazer, tempo,
espaço, quietude para descobrir como traduzir isso em ação ao ensinar.
Trago-lhes meu filho ou filha, e quero que ele ou ela torne-se adulto nos caminhos não
tradicionais. Deixo-o sob seus cuidados e torno isto muito claro: caminhos não-tradicionais; não
"faça isto, não faça aquilo", "isto deveria ser, isto não deveria ser"; tudo isso acabou. Digo-lhes isso.
O que farão? Como educarão o menino para ter essa percepção, essa realidade em sua mente e em
seu coração, para ter essa dimensão, a fim de que ela cresça, com uma chama? Agora como podemos
criá-la?
Penso que para compreender isso deve-se ter este tipo de discussão, que significa lazer, que
vocês não podem estar ocupados o dia inteiro desde a manhã até à noite. Precisam sentar-se, discutir,
investigar, e dizer: "veja, o que isso significa?" O que significa isso de abandonar a tradição e
discutir, indagar, ver o que podemos fazer para encontrar ou descobrir essa dimensão?
P: Minha tendência é responder a pergunta a partir dos campos tradicionais A e B. A sendo
bom, amável, generoso, mais polido e B sendo violento, brutal. Penso em ações, razões e objetivos.
K: Sim, isso tudo é tradição. Agora - considerem isso como uma diversão, como se
estivessem praticando um jogo - como chegarão a essa dimensão a essa dimensão ou, possuindo-a, o
que farão, como educarão meu filho ou filha? Quando estão nessa dimensão, é como uma chama. Os
campos tradicionais não são uma chama.
P: Estamos nós operando em A e B agora?
K: É isso o que quero perguntar-lhes. Vocês os abandonaram?
P: Mas se dois ou três nos unirmos ao mesmo tempo, como você colocou, responsáveis pelo
Outro, então o Outro estará presente.
K: Presente, bem exato, responsáveis pelo Outro. E nós nos unimos nisso? Para fazê-lo
devemos ter tempo para sentar, por de lado todas as nossas preocupações, vir juntos, investigar isso
tudo e dizer: "o que é que isso significa?" Penso que a energia criadora surge dessa dimensão, não da
dimensão tradicional. A dimensão tradicional pode criar um quadro, mas o quadro é nada, ou o
pintor é nada. Mas estamos lidando com seres humanos. Somos seres humanos e estamos lidando
uns com os outros; e pode a chama dessa dimensão penetrar no estudante, na criança? Quero que
meu filho possua essa chama quando deixar a escola. Vocês são responsáveis pelo meu filho. Como
trarão esta chama para o interior dessa criança?
Olhem, há um rio para ser atravessado. Estou neste lado do rio. Fiz todas as coisas neste lado
do rio. Durante séculos adorei os deuses do outro lado do rio, que são minhas projeções, e vejo a
inutilidade disso. Assim digo que é a partir desse outro lado que devo operar. Perguntar como chegar
ao outro lado é a abordagem tradicional. A mente deve achar-se na outra margem quando tiver
abandonado toda atividade nesta margem.
P: O problema é que poderíamos desejar estar na outra margem.
K: Isso tudo é um ardil, isso tudo é pueril, construir uma imagem dela, nela ser apanhado, ter
visões, exorcismos. Isso tudo é este lado. Eu quero achar - não eu - achar-me outro nessa outra
margem. E quero que meu filho chegue a essa margem. Isso é educação, não toda esta baboseira.
Agora como isso é possível? Que é que tenho de fazer? Vamos, senhores, ponham sua mente nisso,
ponham suas entranhas nisso. Desculpem!
Que é que tenho de fazer? Tenho um bebê bonito, uma criança muito bonita, rosto bonito,
gentil, calmo. Crianças são adoráveis; e crescem e se transformam em tamanhas monstruosidades.
Quando atingem a puberdade, algo lhes acontece, perdem todo seu encanto. Quero impedir isso.
P: Se você fosse um estudante e eu visse que você estava operando num modo A ou B,
poderia agir para impedi-lo de fazer isso em sendo um espelho, de modo que você veria claramente
o que está fazendo.
67
K: Veja o que acontece. Você está bloqueando. Irá isso resolver? Irá isso produzir em mim
aquela dimensão? Você ainda continua pensando em termos tradicionais - faça isto, não faça aquilo,
isto deve ser, aquilo não deve ser, o que é um bloqueio. Sabe ao menos o pobre sujeito olhar no
espelho?
Senhor, quero achar um caminho totalmente diferente. Há um caminho que não seja através
de um exemplo, de uma autoridade, de imitação, sem sua resistência bloqueando? Esses são todos
caminhos tradicionais. Aplicar, mudar, modificar e ampliar, esse é o caminho tradicional. Tudo isso
implica recompensa e punição. Abandono esse modo de olhar para isso porque vejo que isso não tem
valor.
Agora que é que devo fazer? Quero que o menino possua uma dimensão que jamais será
capturada pela tradição. Quero que ele não tenha quaisquer problemas desde a infância até que
morra. A criança tem problemas quando vem a nós. Ele está condicionado. Quando uso a palavra
"condicionado", ela inclui isso tudo. Se ele cresce nisso, nisso ele é apanhado para o resto da sua
vida. Agora, ele vem a mim, e minha responsabilidade é para com o Outro, e digo que no Outro
(outro estado) não há problema - sexo, bebida, nenhum problema, porque essa inteligência é uma
vitalidade tremenda. É uma chama e essa chama consome todas as coisas.
Assim, ele vem com problemas. Que é que devo fazer para que quando deixar a escola sua
mente jamais criará um problema sobre qualquer coisa? Essa é a maneira de viver - mas não como
uma idéia. Se sou responsável para com essa dimensão, minha responsabilidade se traduz em cuidar
para que o menino nunca tenha um problema. Agora o que é que devo fazer? Como posso ensinar-
lhe isto? Como posso transmitir-lhe isto?
P: Sendo totalmente responsável para com este Outro (outro estado) sobre o qual estivemos
conversando.
K: Eu sou.
P: A questão é, eu sou?
K: Não, olhe, senhor, isto é do nosso interesse. Nas palestras na tenda, quero comunicar
alguma coisa. Muito poucas pessoas apre(e)ndem isso, mas conversam e se vão. É minha
responsabilidade não apenas para com isso, mas também para lhes transmitir. É uma
responsabilidade ali como aqui. Vocês são adultos e aqui vêm para escutar, assim há uma resposta
de vocês, mas a criança não tem uma resposta. Ela não tem esse tipo de mente, ela nem ao menos o
escutará. Ela dirá sim senhor, não senhor, mas está presa à tradição. Certo? Agora, o que tenho de
fazer? Essa é a questão. Não traduza isso. Olhe para o problema. tenho esta menina ou menino,
condicionados, que quer ir ao bar, tomar cerveja, fumar, e tudo o mais. O que tenho de fazer? O que
é que seu cérebro diz, senhor?
P: Estou olhando esta questão se sou diferente da criança.
K: Creio que é. Você é responsável por isso. Você removeu esta margem; não está operando
nesta margem, apenas na outra. E a pobre criança não vê (entende) essa outra margem nem esta. Não
está consciente de qualquer das duas, mas apenas de suas pequenas necessidades. Assim como irá
lidar com isso? Ele quer tornar-se um engenheiro porque seu pai é um pequeno engenheiro - e isso
prossegue continuamente. Que irá fazer?
P: Sem absolutamente me sentir como sendo um exemplo ou tentando buscar oportunidades
para falar ou ter relacionamento, ainda quero ter muito tempo junto da criança ou crianças, o que
significa que tenho de dar muitas oportunidades a isso.
K: Você está dizendo que por estar ali, por estar em contato com a criança, com o estudante,
o mero companheirismo, a simples atenção, olhando um para o outro, o mero senso de proximidade
(familiaridade, intimidade) - não física, você entende - está dizendo que isso é um requisito
primário?
Investigue isso. Apenas investigue isso. Isso é necessário. Você não é tradicional - por favor,
isso é absolutamente importante - você não funciona absolutamente nesta margem; você está ali na
outra margem, numa dimensão diferente. Esta coisa está operando, ardendo em você e o estudante
vem a você. Isso é uma das coisas necessárias. Obviamente. ë isso tradição? Você está ali; há
proximidade, companheirismo. O que significa? O que acontece entre você e o estudante? Você está
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ali com essa chama, ardendo, não apenas despertando ocasionalmente. Ela está ali, sua mente está
ali, seu cérebro está ali. Companheirismo. O que acontece ali?
P: A criança se sente mais segura.
K: Ah! A criança - por favor, apenas escutem - a criança vem a você insegura, condicionada,
querendo tantas coisas, querendo seu amor, querendo seu companheirismo, querendo segurança; ela
quer uma dúzia de coisas. Pergunto o que acontece entre o homem que vive e funciona nessa outra
dimensão e a criança? O que acontece? Vamos!
Estou próximo a você, sentado junto de você e você está vivendo nessa dimensão. O que
acontece entre nós? O que está acontecendo entre nós agora? Somos razoavelmente amigáveis,
pessoas razoavelmente decentes. O que está ocorrendo agora entre nós? Você está funcionando pelas
vias tradicionais agora? Está funcionando, pensando, operando em termos do que fazer? Estamos
falando sobre companheiros. nesse companheirismo entre você e eu agora, você está pensando no
que fazer?
P: Senhor, entre você e eu exatamente agora, se não estou entendendo inteiramente alguma
coisa que está ocorrendo quando você está falando, tudo que passo fazer é apenas receber isso.
K: Senhor, já esteve num bosque onde há absoluto silêncio? Absoluto - há um pequeno
zumbido de cigarras e um pouquinho de ruído, mas um tremendo senso de silêncio. Você esteve ali,
não esteve? Agora você está nessa dimensão, e eu sou seu companheiro. O que foi que aconteceu em
mim? Estou cônscio de um extraordinário senso de alguma coisa, que não tenho sido capaz de tocar.
Estou cônscio de alguma coisa que não sei traduzir em palavras. Não sou capaz de descrevê-la.
Estou cônscio de alguma coisa extraordinária.
Agora, nesse estado não tenho problemas. Não estou condicionado; não estou dizendo: "oh,
meu Deus! minha mulher está fugindo com alguém", ou "desejo dormir com alguém". Nada disso
acontece, estou apenas nisso (nesse estado). Agora porque isso (esse estado) acontece?
P: Bem, estou com alguém em quem as outras atividades não acontecem.
K: Sim, que significa o quê? Você cresceu. Estamos ambos observando alguma coisa dessa
dimensão; estamos ambos cônscios de alguma coisa dessa dimensão. Assim significa que ali
estamos fora; ambos temos um sentimento dela. Isso é razoavelmente simples porque temos
trabalhado nisto durante os três ou cinco últimos dias, ou vários dias, ou vários meses. Mas você tem
uma criança, um estudante, como irá criar esta coisa? Não é um relacionamento, não é um
companheirismo, não é uma amizade, não é minha afeição por você ou meu amor por você, ou
querer ajudar. Tudo isso foi removido. Agora como irá você trazer o estudante a isso (esse estado ou
dimensão) Alguém entende do que estou falando?
Isto acontece entre duas pessoas. Você e eu temos vivido durante os poucos últimos meses
em Brockwood. Discutimos estas coisas de diferentes maneiras. Você se tornou sensível a isto;
pensou sobre isso; você pôs abaixo o seu próprio conhecimento, o próprio treinamento peculiar, seu
próprio ponto de vista. Você se moveu; não teria escutado isto no começo. Teria dito: "que disparate
você está dizendo". Agora você está começando a escutar agora sem vontade até para responder
quando, antes, o teria feito. Enquanto falamos, você também vê logicamente, intelectualmente, que
os campos tradicionais A e B não têm mais valor; assim você já se moveu. Não mais opera nos
campos A e B. Você pode ocasionalmente, mas está fora dessa categoria. Assim você abriu a porta
para alguma coisa.
Coloque isto desse modo. E você e eu nos encontramos. Há um companheirismo sem motivo,
que não tem a sensação de : "oh, meu Deus! ele é meu grande amigo, meu único amigo, devo estar
com ele". Nada disso existe. Assim você já observou, ou chegou a essa dimensão. Por enquanto. por
enquanto, está suficientemente bom. Agora sou a criança, sou o estudante. Como irá você levar o
estudante, levar-me até ela (essa dimensão). Você entendeu minha pergunta?
P: A criança tem de ser levada aonde nada sabe no sentido que pensa que sabe. De que outra
forma o levará a alguma outra coisa? Ela pensa que sabe.
K: Ela pensa que sabe. Há essa criança; fique com ela assim como ela é, não como você quer
que ela seja. ela é isso, o que é, o produto dos pais que brigaram, e assim por diante. Tudo isso está
depositado na pobre criança. E você está nessa outra margem e quer que ele alcance essa outra
margem.
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P: Faça o que está fazendo agora.
K: Nossa questão é diferente, porque somos pessoas assim chamadas amadurecidas, Muito
temos conversado sobre tudo isto. Temos lido, discutido, falado disto ou daquilo, portanto estamos
mais ou menos abertos, mas a criança, o estudante não. E escutem isto - ele vai para casa, volta a
vocês. Provavelmente está aqui durante três anos, e em seguida se foi, foi descartado, assim vocês
têm um período muito curto no qual trabalhar.
Olhem, temos problemas: a criança, o estudante chega condicionado; e há alguma qualidade
de maneira que a mente nunca esteja condicionada? Estou tentando descobrir se há algum
catalisador que despedaça todo o seu condicionamento, não em três anos, mas assim que entrar na
sala. Isso não é tradição. Estou interessado nisso, não em como descondicionar, não me apressar.
Isso é muito aborrecido. Isso demora muito. estou interessado em que no momento que ele se
aproxime de Brockwood, do prédio, da sala, a coisa deve ser rompida. E é minha responsabilidade
criar essa chama, de maneira que nessa chama seu condicionamento é consumido instantaneamente.
Se nego a tradição, isto deve acontecer. Acompanham o que estou dizendo? Sua responsabilidade,
vivendo nessa dimensão, é dinamitar meu condicionamento - não através do tempo, mas no instante
que me aproximo de vocês; quando me junto a vocês alguma coisa acontece.
Aconteceu isto a vocês? Entrando nesta sala, sentados, falando deste mesmo modo, vocês e
eu, rompeu-se o seu condicionamento? Aqui estamos, juntos, sentados. Somos companheiros; não
estou em oposição a vocês, vocês não estão em oposição a mim. estamos juntos falando sobre estas
coisas, e a própria atmosfera, a própria essência disto põe abaixo outras coisas que não sejam ela
mesma.
P: Você sugere que aqui nós rompemos o nosso condicionamento, mas que para fazer isso
deve haver uma chama.
K: Não, não, não. Olhe. Olhe! Antes de mais nada, dissemos que temos sempre estado
funcionando no campo A e B, e isso não criará uma mente nova, uma mente ardente, uma mente que
é realmente excelente no mais elevado grau. E assim digo, está bem, abandono isso; e não quero
mais sentir-lhe o cehiro, tocá-lo, olhar para isso, está acabado; porque isso não fez nada no mundo -
o mundo sendo seres humanos. E eu tenho operado, esta mente tem operado, nesta margem do rio. E
estou dizendo, se ela opera na outra margem, a coisa está acabada. e temos sempre perguntado:
"como é que eu posso cruzar o rio?", o que é tradição - ser transportado por um barqueiro, por um
guru, por um salvador, por um Cristo, por alguma pessoa ou outra para nos levar lá. Isso é
completamente tradicional, estúpido; abandono isso. No próprio abandono disso estou lá. Abandono
total.
E então vou até você e digo: "meu amigo, você é parte deste caso da Comunidade de
Brockwood, salte para esta outra margem, mas não me pergunte como, porque o "como" é de novo
volta à tradição. Não me pergunte o que você tem que fazer, porque se fizer estará de volta
novamente". É por isso que, antes de pedir-lhe para vir para a outra margem eu digo: "você desistiu
completamente da tradição?"
Eu posso discutir isto, ter um diálogo, uma série de discussões e assim por diante, talvez
durante dois ou três meses até que vocês vejam isso, porque quero que saiam disso. Minha paixão é
essa.
E trago meu filho. Ele observou-nos a mim e a minha mulher brigando, batendo um no outro,
toda a estupidez que se segue. E aqui ele vem, e está condicionado. E é sua responsabilidade,
estando nessa outra margem, romper este condicionamento. Não através do tempo, rompa-o
instantaneamente, para que ele diga "sim, eu sei agora, eu entendo, tenho um sentimento de que
quero botar isso tudo fora". No momento em que vocês negam o todo desta margem tradicional não
há mais nada.
Como um pai, não me importo com o que façam, mas tudo que quero é que vocês como um
grupo de professores, comprometidos com isto, transformem meu filho. Naturalmente não quero que
batam nele, mas tendo estabelecido tudo isto, é sua responsabilidade, sua ação criadora. É possível
ingressar na sua comunidade, na sua presença, e por causa dela o condicionamento definhar - por
causa de sua presença, de sua atmosfera, de seu tremendo senso de vida aqui?
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Estou falando sobre ter um grupo de pessoas que são completamente dedicadas,
completamente responsáveis, completamente com aquela chama. Estranhos milagres acontecem.
Porque haveriam vocês todos de estar aqui sentados com este sujeito que nasceu em um reles
cidadezinha? Como isto aconteceu? Isto é um milagre. Certo? E se vocês sentem aquela chama,
terão algo maravilhoso acontecendo.
Agora, enquanto estiver aqui em Brockwood, vou persistir nisto - desculpem - a fim de que
tenhamos lazer para sentar e conversar, investigar isto; e vocês não devem vir com uma mente que
diz: "meu deus! deixei a comida no fogo, preciso sair correndo", ou "tenho de responder aquela
carta". Vocês devem vir todos ao mesmo tempo tendo lazer. Vocês devem vir com a mente sem
tensão, não impelida de um lado para outro, mas quieta.
P: Não importa como estamos, em que margem nos encontramos, ainda temos de operar com
uma certa quantidade de tradição.
K: Claro.
P: Estamos atados a ela.
K: Não, devo abandonar a tradição.
P: Você deve ter um teto sobre sua cabeça.
K: Eu devo abandonar a margem da tradição, então terei um teto ou não, mas a coisa é mudar
para aquela margem. essa é a coisa principal. Então educarei meu filho de maneira totalmente
diferente; a própria ação de ensinar álgebra será o (a)... Você abandonou a margem da tradição? Não
digo que sim nem que não. Minha insistência é: você abandonou? Se abandonou, você está nessa
Outra coisa. Se essa Outra coisa operar, você usará qualquer ferramenta; não canhões, mas usará
álgebra, seja o que for que você ensina, como um meio de transmitir a outra coisa.
P: Não vejo como você faz isso.
K: Essa é a nossa coisa criadora. Eu sou consumido pelo Outro, ardendo com Ele, e tenho um
estudante que deve ser capaz de ler, que deve ser capaz de escrever. Tenho esta criança
condicionada. Como posso, vivendo na outra margem, criar nela (na criança) essa chama, essa
alguma coisa que o ajudará a escrever? Como pode isto acontecer?
Penso que estamos ficando com isto. Se vocês dizem que nenhuma criança de Brockwood
precisa aprender qualquer coisa, apenas estar na nossa presença, estar conosco, não fazer coisa
alguma, não ler, não fazer nada - produziria isso a chama na criança? Digamos, vocês são o grupo, e
têm essa presença, esse outro estado. Estão fervendo com ele, e ele existe em Brockwood. E eu lhes
envio meu filho, sabendo que desejo que tenha essa presença, essa coisa. Algum homem sensato, pai
sensato, lhes envia o filho, enfrentando-o mundo como tal? Mas eles o enviam, e vocês têm de criar
esta coisa nele, fazer esta coisa ferver nele. Se a fervura transborda dele mesmo, dos seus olhos, dos
seus ouvidos, qualquer coisa em que ele puser as mãos florescerá. Entendem o que estou dizendo?
Coloquemos isto de outro modo: podem vocês criar um gênio, o que é a mesma coisa - gênio
não na estúpida tradição, escrever um poema maravilhoso, mas embebedar-se até morrer, não chamo
a isso de criatividade. Não estou falando daquelas pessoas que são chamadas "criativas", e
consideradas gênios. Não as considero absolutamente geniais. Apenas possuem um certo dom e
dominam esse talento até morrer, enquanto o resto é podre.
Desculpem! Agora, na sua presença podem vocês criar essa coisa, um gênio? Gênio sendo o
ser que possui essa chama e o que quer que ele toque, seja matemática, pintura, será dessa coisa, o
que significa que essa coisa é toda sua vida. E isto é simplesmente uma manifestação: pintar,
escrever, é uma manifestação; ele não se importa se faz isso ou não. Se a margem tradicional for
abandonada, interiormente, totalmente, então vocês estarão na outra margem; então essa chama
estará ali. e se todos possuirmos essa chama, criaremos tal coisa com a qual a criança arderá.
Desculpem, continuo repetindo isto. Por que não deveria ela aprender matemática? Aprender
matemática é tradição? Aprender é tradição? Vocês estão aprendendo agora, não estão? Isto é
tradição? Mas se estiverem aprendendo e ainda vivendo no mundo tradicional, transformam esse
aprender em tradição. Isso é tudo.
Conversa com Educadores - Chalet Tannegg, Gstaad, Suíça - Extratos de gravações de
encontros informais de Krishnamurti e administradores de Brockwood durante suas palestras
públicas em Saanen em 1974.
71

A organização se torna mais importante que a busca da


realidade
Pergunta: Você foi anunciado pela Sociedade Teosófica como sendo o Messias e o Instrutor
do Mundo. Por que você saiu da Sociedade Teosófica e renunciou ao papel de Messias?
Krishnamurti: Vamos examinar a questão das Organizações. Existe uma história bem
engraçada que conta que o diabo e um amigo estavam passeando quando viram, a sua frente, um
homem abaixar-se e pegar algo brilhante do chão. Ele olhou para aquilo com deleite, colocou-o no
bolso e continuou caminhando. O amigo perguntou: "O que aquele homem achou que o transformou
tanto?" O diabo respondeu: "Eu sei, ele encontrou a verdade." "Por Deus!"- exclamou seu amigo:
"Isto deve ser um mau negócio para você!". "De jeito nenhum"- o diabo respondeu com um sorriso
malicioso: "Vou ajudá-lo a organizá-la, você vai ver só!"
Pode a verdade ser organizada? Você pode encontrar a verdade através de uma organização?
Para encontrar a verdade, você não deve ir além e acima de todas as organizações? Afinal de contas,
por que todas as organizações espirituais existem? Elas estão baseadas em diferentes crenças, não?
Você acredita em uma coisa e o outro acredita nisso também e em volta dessa crença vocês formam
uma organização, e qual é o resultado? Crenças e organizações estão sempre separando as pessoas,
excluindo umas das outras; você é um hindu e eu sou um mulçumano, você é um cristão e eu sou um
budista. Crenças, ao longo de toda História, atuaram como uma barreira entre os seres humanos, e
qualquer organização, baseada em crença, deve inevitavelmente produzir guerra entre os seres
humanos; e isso tem acontecido vezes sem conta. Nós falamos de fraternidade, mas se você tem uma
crença diferente da minha, estou pronto para cortar sua cabeça; nós temos visto isso acontecer
inúmeras vezes.
As organizações são necessárias? Você entende que não estou falando das organizações
formadas para conveniência mútua dos seres humanos na sua existência cotidiana, como Correios,
etc. Estou falando das organizações psicológicas e das chamadas organizações espirituais.
Elas são necessárias? Elas existem na suposição que irão ajudar o ser humano a encontrar a
verdade, ou Deus, ou seja lá o que você queira. Elas são um meio de propaganda, para converter o
outro, para aumentar o número de adeptos, etc; você quer falar para os outros o que você pensa, ou o
que você aprendeu, o que parece ser verdadeiro para você. E a verdade pode ser propagada? O que é
verdade para alguém, quando propagado, certamente deixa de ser verdade para o outro. Não?
Certamente, a realidade, Deus ou seja lá o nome que você der a isso, não é para ser propagado. Cada
um deve experimentar por si mesmo e essa experiência não pode ser organizada; no momento que é
organizada, propagada, ela cessa de ser verdade, ela se torna uma mentira, portanto, um
impedimento à realidade, porque, afinal de contas, o real, o imensurável, não pode ser formulado,
não pode ser colocado em palavras, o desconhecido não pode ser medido pelo conhecido, pela
palavra, e quando você o mede, ele cessa de ser verdade, deixa de ser real e, portanto, é uma mentira
– e somente uma mentira é que pode ser propagada. E organizações, que supostamente estão
baseadas na busca da verdade, fundadas para a busca do real, tornam-se instrumentos dos
propagandistas, e assim elas deixam de ter qualquer significado; não apenas a organização que está
em questão, mas todas as organizações espirituais, elas se tornam meios de
exploração. Elas adquirem propriedades e a propriedade se torna tremendamente importante; passam
a procurar mais membros e começa todo aquele negócio; as pessoas não vão encontrar a verdade
porque a organização se torna mais importante que a busca da realidade. E nenhuma verdade pode
ser encontrada através de qualquer organização porque a verdade vem quando existe liberdade, e
liberdade não pode existir quando existe crença, pois crença é apenas o desejo de segurança, e a
pessoa que está presa na sua necessidade de segurança nunca pode descobrir a verdade.
Agora, a respeito do papel de messias, é muito simples. Eu nunca neguei isso e não penso
que tenha grande importância se eu neguei ou não. O que é importante para você é se o que eu digo é
verdade. Assim, não se prenda ao rótulo, não dê importância ao nome. Se eu sou o instrutor do
mundo ou messias, ou qualquer outro, é certamente sem importância. Se o nome se tornou
72
importante, então você vai deixar escapar a verdade do que estou dizendo, porque você irá julgar
pelo rótulo, e o rótulo é inconsistente. Alguém vai dizer que eu sou o messias, e outro vai dizer que
não sou, e onde você fica? Fica na mesma confusão e na mesma miséria, no mesmo conflito.
Assim,certamente a questão tem muito pouco significado. Sinto muito desperdiçar seu tempo com
essa questão. Se eu sou ou não o messias é de muito pouca importância. Mas o que é importante, se
você é realmente sério, é descobrir se o que digo é verdade, e você só pode descobrir se o que eu
digo é verdade, examinando-o, e estando agora atento ao que estou dizendo e descobrindo se o que
estou dizendo pode ter efeito na sua vida diária. O que estou dizendo não é tão difícil de entender. O
intelectual irá achar muito difícil porque sua mente está distorcida, e o devoto também irá achar
extremamente difícil, mas a pessoa que está realmente procurando irá entender por causa da sua
simplicidade. E o que estou dizendo não pode ser posto em poucas palavras e não vou tentar dizê-lo
em poucas palavras. As várias palestras que eu tenho dado e minhas respostas às perguntas irão
revelar isso, se você está interessado no que estou dizendo.
Pergunta feita a Krishnamurti em Madras em 7/12/1947

***

Recuso-me a ser sua muleta


Torno a dizer que não tenho discípulos.
Se compreenderem a Verdade e não seguirem indivíduos verão que cada um de vocês é um
discípulo da Verdade. A Verdade não dá esperança; ela dá compreensão. Não há compreensão no
culto à personalidade.
Continuo a afirmar que todas as cerimônias são desnecessárias para o crescimento espiritual.
Se quiseres procurar a Verdade, precisam sair, ir para bem longe das limitações da mente e do
coração humanos e lá descobri-la - e esta Verdade está dentro de vocês.
Não é mais simples ter a própria vida como meta do que ter mediadores, gurus, que
inevitavelmente diminuirão a Verdade e, portanto, a trairão?
Digo que a Libertação pode ser alcançada em qualquer estágio da evolução pelo homem que
compreende, e que adorar estágios, como vocês fazem, não é essencial.
Não repitam minhas palavras como vindas de uma autoridade. Recuso-me a ser sua muleta.
Não permitirei que me carreguem em uma gaiola para a sua adoração. Quando levamos o ar fresco
da montanha e o prendemos numa pequena sala, o frescor do ar desaparece e resta apenas a
estagnação.
Jamais disse que Deus não existe. Disse que Deus só existe manifestado em nós. Mas não
usarei a palavra Deus. Prefiro chamar-lhe Vida.
...É claro que não existe nem o bem nem o mal. O bem é o que vocês não receiam; o mal é o
que temem. Portanto, se destruírem o medo, estarão espiritualmente realizados. Quando estiverem
apaixonados pela vida e colocarem este amor acima de qualquer coisa e julgarem por esse amor e
não por seu temor, então esta estagnação que chamam de moralidade desaparecerá.
Amigos, não se preocupem com quem eu sou...nunca saberão... Vocês pensam que a Verdade
tem alguma relação com aquilo que pensam que eu sou? Vocês não estão preocupados com a
Verdade, mas com o vaso que contém a Verdade... Bebam a água se estiver limpa: eu lhes digo que
tenho esta água limpa; tenho o bálsamo que purifica, que cura enormemente, e vocês me perguntam:
quem é você? Eu sou todas as coisas porque sou a Vida."
Ele encerrou a Convenção com as palavras:
"Milhares de pessoas têm vindo a estes acampamentos, o que não fariam no mundo se todos
compreendessem! Poderiam mudar amanhã a face da terra".
Extrato de palestra proferida no acampamento de Omnem em 1928 - VIDA E MORTE DE
KRISHNAMURTI - Mary Lutyens - Ed. Teosófica – 1996
73

***
A verdadeira irmandade
Pergunta: Você realmente falou a sério quando sugeriu semana passada que a pessoa deveria
se retirar do mundo quando estivesse próxima dos quarenta e cinco anos?
Krishnamurti: Eu sugeri isso seriamente. Quase todos nós, até que a morte nos alcance,
estamos tão enredados nas coisas do mundo, que raramente temos tempo para investigar
profundamente, para descobrir o real. Para retirar-se do mundo é necessária uma mudança completa
no sistema educacional e econômico, não é? Se você se retira, se aposenta, você vai estar
despreparado, perdido, sozinho, sem saber o que fazer consigo mesmo. Você não saberia como
pensar. Você provavelmente formaria novos agrupamentos, organizações com novas crenças,
emblemas e rótulos, e de novo estaria ativo externamente, promovendo reformas que irão precisar de
reformas subseqüentes. Mas isso não é o que eu quis dizer. Para se retirar do mundo você precisa
estar preparado: pelo tipo correto de ocupação, através de criar o tipo certo de meio-ambiente,
através de estabelecer o governo correto, a educação correta, e assim por diante. Se você vem sendo
assim preparado, então se retirar das coisas do mundo em qualquer idade não é anormal, e sim a
seqüência natural; você se retira para fluir na profunda e pura atenção, você se retira não para o
isolamento, mas para descobrir o real, para ajudar a transformar esse governo e sociedade que estão
sempre coagulados e conflitantes.
Tudo isso iria envolver uma forma de educação completamente diferente, uma mudança
drástica na nossa ordem social e econômica. Esse grupo de pessoas estaria completamente
dissociado da autoridade, da política, de todas essas causas que produzem guerra e antagonismo
entre os homens. Uma pedra pode direcionar o curso de um rio; assim um pequeno número de
pessoas pode direcionar o curso de uma cultura. Certamente qualquer coisa grande é feita desta
maneira.
Você provavelmente dirá que a maioria de nós não pode se retirar, se aposentar, por mais que
quiséssemos. Naturalmente a maior parte não pode, mas alguns de vocês podem. Viver sozinho ou
em um pequeno grupo requer uma grande inteligência. Mas se você realmente viu que vale a pena,
você faz com que isso aconteça, não como um maravilhoso ato de renúncia, mas como uma coisa
natural e inteligente para um homem sério fazer. Como que é de uma importância extraordinária que
houvesse pelo menos alguns de nós que não pertencessem a nenhuma raça ou grupo particular, nem
a nenhuma religião ou sociedade!
Eles irão criar a verdadeira irmandade entre os homens, pois eles estariam buscando a
verdade. Para estar livre de riquezas exteriores, deve haver uma percepção da pobreza interior - o
que traz riquezas
indizíveis. A corrente da cultura pode mudar o seu curso através de umas poucas pessoas despertas.
Estas não são pessoas especiais, incomuns, mas você e eu.
Krishnamurti, Ojai, 11/07/44; palestra 5, questão 2 - Extraído do site Terra Sem Caminho
1

A DISCIPLINA NÃO EGOCÊNTRICA

Quando a religião se torna universal, deixa de ser religião. Se religião é questão de crença, de
conversão, de pertencer a um grupo que defende certas idéias, já não existe então a semente
religiosa. Porque religião é algo que precisa ser compreendido por cada indivíduo no “processo” do
viver, nas atividades da vida diária e, por conseguinte, nenhuma relação tem com o educar a
mente para funcionar segundo determinado padrão de pensamento.
Assim, parece-me muito importante compreender a função de um indivíduo numa sociedade
que é puramente o mecanismo de um sistema de idéias e na qual o que se chama moral é simples
questão de manter-se dentro de determinado padrão de conduta.
Mas, virtude não é seguir um padrão; é a ação da mente que compreende sua relação
com outra.
Se sou moral apenas no sentido social, essa moralidade, embora conveniente do ponto de
vista social, nada tem que ver com a Religião. Ora, por certo, para descobrirmos o que é a verdade,
o que é a realidade ou deus, devemos estar livres da moralidade social, porque a moralidade
social conduz à respeitabilidade, ao conformismo; e, é óbvio, a mente que apenas se ajusta a
um padrão ético ou moral, nunca descobrirá o verdadeiro.
A virtude é que, realmente, põe a mente em ordem; e nosso problema é como criar a virtude,
sem “cultivar virtude”. Se eu a cultivo, ela deixa de ser virtude; entretanto, sem a virtude não existe
ordem. É, de fato, um disciplinar da mente sem nenhum objetivo em mira – algo semelhante ao
arrumar um quarto. A virtude não é um fim em si. Ela apenas torna a mente clara, livre, não
contaminada pela sociedade.
O problema, portanto, é este: como pode a mente, nosso ser inteiro, tornar-se de pronto
virtuosa, e não pelo seguir o “processo” de se fazer virtuosa? Porque a luta para se tornar
virtuosa, só pode reforçar a limitação, a atividade egocêntrica da mente. Isso me parece bem
claro, isto é, ao procurar ser virtuoso estou em verdade realçando a atividade do meu próprio
egotismo e isso, por conseguinte, já não é virtude.
A virtude liberta a mente, e a mente não está livre enquanto não há virtude. Mas a
chamada virtude em que quase todos nós baseamos nossa conduta é pura conveniência social; e a
sociedade, radicada que está na aquisição, na compulsão, no egotismo, nenhuma possibilidade tem
de compreender a virtude de ser e não vir a ser.
Se não compreendemos o que é ser virtuoso, nunca estará a mente livre para investigar,
descobrir a realidade. A virtude é essencial como conduta, comportamento; mas o
comportamento baseado na compulsão, no conformismo, no medo, já não é ação de uma mente
virtuosa.
Assim, cumpre averiguar o que é ser virtuoso, sem cultivo da Virtude. As duas coisas seguem
direções completamente diversas.
O homem que cultiva a virtude está sempre a pensar em si mesmo; só se preocupa com
seu próprio progresso, seu melhoramento pessoal, e isso e ainda atividade do “ego”, do “eu”; e
essa atividade, evidentemente, nada tem em comum com a virtude, que é um “estado de Ser” e
não de “vir a ser”.
Ora, como pode a mente, cujo condicionamento social e moral sempre foi o de cultivar a
virtude, servindo-se do tempo como o meio de se tornar virtuosa – como pode a mente libertar-se
desse estado de “vir a ser” e permanecer num “estado de virtude?” Não sei se já alguma vez
pensastes no problema desta maneira.
Para compreendê-lo, talvez seja necessário descobrirmos o que significa disciplinar a mente.
A maioria de nós se serve da disciplina a fim de conseguir um resultado. Se sinto cólera digo que
não devo sentir cólera e, assim, me disciplino, controlo, reprimo, domino a minha cólera – e isso
significa que me estou ajustando a um padrão ideológico. Assim estamos acostumados: uma luta
constante para ajustarmos “o que somos” ao que pensamos “que deveríamos ser”.
2
A fim e nos tornarmos o que deveríamos ser, submetemo-nos a certas práticas, disciplinas,
dia após dia, mês após mês, do começo ao fim do ano, na esperança de alcançar um estado que
consideramos correto.
Há, assim, na disciplina, não apenas repressão, mas também conformismo, o estreitar
da mente para ajustá-la a um certo padrão. Por favor, senhores, compreendei que, não estou
condenando a disciplina.
Estamos examinando todo processo envolvido na conduta que se baseia na disciplina.
Se posso compreender o atual processo de disciplina, processo que a maioria de nós conhece,
e perceber a respectiva falsidade ou verdade, terei então um “senso de disciplina” completamente
diferente, ou seja uma disciplina sem nenhuma relação com o medo; e esse “senso” da disciplina é
essencial.
Mas a disciplina que praticamos se baseia no temor e no ajustamento, na luta para “vir a ser” algo
mediante a substituição, identificação ou sublimação. Tudo isso está implicado na pratica da
disciplina por parte e uma mente que se vê em confusão, e tal disciplinamento, é óbvio, baseado no
medo, nenhuma relação tem com a realidade.
Se me disciplino porque meu vizinho, ou a sociedade, ou o sacerdote, ou um certo livro
sagrado me diz ser essa a ação correta, então essa disciplina é sem maturidade, é infantil,
nenhuma significação tem, e toda conduta baseada em tal padrão só leva à respeitabilidade,
que nada tem que ver com a realidade.
Ora, se compreendo que o mero ajustar-se a um padrão, por medo, não é disciplina, que é então
disciplina? A mente deve funcionar livre de desordem, livre de confusão; e virtude sem dúvida, é
por em ordem a mente, de modo que ela possa voar em linha reta, e não tortuosamente, sem as
distorções de suas próprias ambições, invejas e desejos.
Mas, para “voar em linha reta”, ela necessita de uma disciplina não relacionada com a
disciplina do conformismo, da sublimação ou repressão, isto é, uma disciplina isenta de esforço
– esforço para “vir a ser algo”.
E como tornar existente essa disciplina sem volição, ação da vontade?
Pois, afinal de contas a vontade é a culminação do desejo. É possível a mente ser
disciplinada, sem vir à existência a entidade que deseja a disciplina? Entendeis?
Este me parece um ponto importante e permiti-me sugerir que escuteis, não com o antagonismo
próprio da mente que funciona pela velha disciplina e, portanto, rejeita a outra, mas, sim, com o
intuito de descobrir o que é essa outra disciplina. A disciplina comum, embora possa parecer nobre,
baseia-se essencialmente no temor; e nossa investigação visa a descobrir se existe uma disciplina
não-baseada no medo, não-proveniente da ação volitiva.
Pode-se ver que a ação da vontade produz de fato um certo resultado. Se desejo algo muito
ardentemente, se o persigo pacientemente, tê-lo-ei. Mas isso implica o funcionamento da vontade, e
a vontade é essencialmente um “processo” de resistência, e a mente cuja disciplina é puramente
processo de resistência não pode de modo nenhum compreender outra espécie de disciplina. Assim,
como poderá a mente individual, vossa mente e a minha, alcançar o “estado de disciplina” sem
disciplinar-se? Afinal de contas, a virtude – que significa “ser virtuoso”, e não “vir a ser
virtuoso” – é um estado de disciplina sem base egocêntrica.
E como pode a mente libertar-se da atividade egocêntrica, a que agora chama disciplina?
Essa disciplina pode produzir certos resultados, que poderão ser nobres ou ignóbeis; mas a
atividade egocêntrica; em qualquer forma que seja, com sua vontade, com seus temores, nunca pode
ser virtuosa. E é possível minha mente libertar-se de toda atividade egocêntrica sem se disciplinar?
Este é, na conduta, no comportamento, o problema real.
Quando emprego as palavras “minha mente”, isso é naturalmente uma maneira de dizer; não
se trata de minha mente, trata da mente. Ora, essa mente, até onde posso ver, funciona tão-só como
atividade egocêntrica; quer meditando em deus, quer buscando satisfação sexual, praticando o ideal
da “não-violência”, lançando-se a reformas sociais – sua atividade, é essencialmente egocêntrica,
isto é, confinada na esfera do tempo, no campo de seu próprio pensamento.
É possível a mente libertar-se dessa atividade egocêntrica, sem compulsão sem a disciplina
de ajustamento a padrão?
Por que se faz esta pergunta?
3
Quase todos nós nos disciplinamos no sentido comum. Se somos invejosos, dizemos que não
devemos ser invejosos, que devemos ser rigorosos com nós mesmos. Se não compreendemos,
dizemos: “se eu progredir por meio da disciplina, no fim compreenderei”.
Nunca duvidamos desse processo de disciplina em si.
Ora, pelo duvidar, pelo investigar, vereis que a disciplina a nenhum valor tem, a não ser
socialmente, e de modo nenhum pode conduzir à realidade.
Realidade só pode ser compreendidas com o completo “abandono”, e não podeis
abandonar-vos enquanto existir qualquer forma de atividade egocêntrica.
Não se pode ser austero quando se cultiva a austeridade, porque então a mente está em
busca de resultado. Há uma austeridade de espécie diferente, que nenhuma relação tem com o
abandonar uma coisa a fim de alcançar outra coisa, e que nunca será conhecida enquanto a mente
estiver forçando, controlando, reprimindo a si própria. A austeridade da repressão produz de fato
um sentimento de poder, de domínio de si mesmo, e nisso se encontra grande prazer, grande
vitalidade que, entretanto, não nós leva na direção da realidade.
Pelo contrário, isso, puramente, uma perpetuação da atividade egocêntrica, “apartada do
mundo”. É como possuir todos os tesouros do mundo seguindo por um caminho diferente.
Assim, será possível a mente ser austera se existe a entidade que procura ser austera?
Senhores, isto não é algo metafísico, místico ou vago.
Se realmente seguirdes, ou investigardes, olhardes na direção que estou apontando,
descobrireis, por vós mesmos, como resultado dessa investigação, que surgirá uma disciplina que
nada tem em comum com a atividade egocêntrica que busca um resultado.
A disciplina a que estais habituados é de todo em todo falsa; poderá ter valor no sentido
social, mas nenhuma relação tem com a investigação da realidade; assim, que cumpre fazer?
Quando a mente busca, não pelo desejo de resultado, mas pela simples necessidade de
buscar, porque percebeu a falsidade do que estava fazendo – então, esse próprio processo de
investigação é disciplina que nenhuma relação tem com auto-aperfeiçoamento. Eu estou
investigando; e, para investigar, deve a mente total estar “não-contaminada”, livre de todas as
pressões.
A mente que está agrilhoada à preocupação, à ambição, à avidez, à paixão, é evidentemente
incapaz de investigar.
A verdade é para ser achada, e não para se crer, e para achá-la a mente deve ser livre.
No momento em que percebo a verdade disso, minha mente se está libertando do falso, e, por
conseguinte, existe a verdadeira disciplina; não há nenhuma “entidade que disciplina”, e o próprio
percebimento do que é falso faz a mente compreender a verdadeira disciplina.
A virtude, pois, é essencial para se compreender a realidade, e virtude não é respeitabilidade.
Ser virtuoso, sem procurar tornar-se virtuoso, exige extraordinária investigação, lúcido pensar, e não
tendes nenhuma possibilidade de pensar lucidamente, se há qualquer forma de medo.
Por conseguinte, impende compreender a violência sem tentar tornar-se “não violento”.
Descobrireis, então, que existe uma disciplina não-relacionada com a disciplina da
moralidade social; uma disciplina que é essencial, porquanto torna a mente capaz de seguir com
incomum velocidade o célere movimento da verdade.
Se desejais observar o vôo de uma ave, deveis prestar-lhe toda a atenção, e essa própria
atenção é disciplina.
A “realidade” dos livros, dos sacerdotes, da sociedade, nenhuma realidade é; é mera
propaganda e, portanto, não-verdadeira. Se Desejais compreender a realidade, deve vossa mente
ser capaz de extraordinária lucidez, silencio, velocidade; e não é lúcida, não é silenciosa, não é veloz
a mente agrilhoada a qualquer forma de disciplina, paralisada pela moralidade social.
Ao compreenderdes isso, vereis que existe uma disciplina, uma austeridade não resultante de
atividade egocêntrica; e essa disciplina é que é essencial, para que a mente possa seguir o rápido
movimento da verdade.
Para a maioria de nós a dificuldade é que tivemos uma certa e agradável experiência, e
nos disciplinamos porque desejamos que essa experiência continue. Tive um momento lúcido,
feliz, de percepção de algo inefável, e isso me deixou forte impressão na mente; e, porque
desejo repeti-lo, controlo-me, pratico a virtude, etc.
4
Trata-se de uma forma de inveja, não achais? A inveja gera a disciplina, mas isso não é a
liberdade.
Ora, a mente que busca a realidade encontra, nessa busca um “processo” de disciplina em que
não há experimentar por parte do “experimentador”. Para que o “experimentador” não tenha
experiências, requer-se extraordinária lucidez, espantosa firmeza de pensamento, de compreensão; e
dessa compreensão da totalidade da mente, que é autoconhecimento, provém uma disciplina, uma
conduta, um comportamento produtivo daquela austeridade tão essencial ao “abandono” de si
mesmo. Com esse “abandono”, produto da austeridade, encontra-se a beleza. Só a mente que de
todo se abandona é realmente austera, e ela é que pode compreender a verdade, a realidade.
Pergunta: o pensamento é a semente que contém começo e o fim – a totalidade do tempo.
Esta semente se robustece e germina na escuridão da mente. Que ação é possível para consumir esta
semente?
Krishnamurti: só há uma ação: a ação do silêncio. Mas, antes de qualquer coisa, espero
tenhais compreendido a pergunta. Diz o interrogante que a semente do pensamento, ou seja, a
totalidade tempo, amadurece no “ventre escuro da mente’’, e pergunta como pode esta semente do
pensamento, este resultado do tempo, este produto do passado, ser completamente consumido – não
por meio de um “processo”, não por meio de um método ou sistema, pois isso implica tempo, e
desse modo nos vemos de volta à escuridão em que ocorre a germinação e a continuidade do
pensamento.
A questão, pois, é esta: como pode o pensamento, que é a totalidade do tempo, terminar?
Ora, antes de proceder a este descobrimento, tenho de investigar o que é pensar, não achais? E com
esta pergunta apresentei a mim mesmo um “desafio” – e a “reação” a esse “desafio” é de acordo com
minha memória.
Quando digo “que é pensar?” Se põe em movimento o mecanismo da memória – a memória
de minhas experiências, de meus conhecimentos, de tudo o que aprendi ou tudo o que me disseram a
respeito do pensar.
Minha mente, pois, está a “cavar” na memória, procurando uma resposta à pergunta – ao
“desafio”. Esse “cavar” na memória, em busca da resposta, e a comunicação verbal dessa resposta, é
o que chamamos “pensar”, o qual, é processo de tempo.
Espero me esteja fazendo claro, pois é realmente importante compreender isso. É só quando
compreendemos o processo do nosso próprio pensar que se pode descobrir o que significa ter uma
mente de todo tranqüila. Para que a mente esteja tranqüila, há necessidade de energia completa,
energia que não se dissipe; que seja total, na qual haja a vitalidade de todo nosso ser. Para termos
essa energia total que silencia a mente, precisamos, investigar o que é pensar; e vemos que pensar é
reação da memória, sendo isto bastante simples.
Se vos pergunto onde morais, respondeis prontamente, porque se trata de uma coisa com que
estais familiarizado. Se vos faço uma pergunta mais complicada, hesitais, há um intervalo entre
minha pergunta e vossa resposta; nesse intervalo a mente está pensando, perscrutando a memória. Se
vos faço pergunta mais complicada ainda, o intervalo é mais longo.
A mente está buscando, tateando para encontrar a resposta; e se não encontra a resposta, diz:
“não sei”. Mas, quando diz “não sei”, encontra-se num “estado de “desejar saber” e, por
conseguinte, está ainda prisioneira do processo de pensar.
Estamos vendo, pois, o que é pensar. A pergunta que põe a mente em movimento pode ser
simples ou muito complexa, mas é sempre o mecanismo da memória que responde, reage, quer seja
a memória de passado extremamente recente, quer seja do passado de ontem, ou do passado de há
um século.
Vê-se, pois, que o “processo” de pensar é reação da memória.
E é este processo de pensar que diz: “devo disciplinar-me, devo libertar-me do medo, da avidez, da
inveja, preciso encontrar Deus”; é esse processo de pensar que tem a crença em deus ou que diz “não
há deus”; mas ele está ainda compreendido na esfera do tempo, porquanto o pensamento é ele
próprio, a totalidade do tempo. Agora para um homem que deseja encontrar a realidade ou a
compreensão que lhe revelará a realidade, para esse homem o pensamento deve cessar –
pensamento no sentido de totalidade do tempo. E como pode cessar o pensamento? – mas não por
meio de qualquer espécie de exercício, disciplina, controle, repressão, pois tudo isso está na esfera
5
do pensamento, e, por conseguinte, no âmbito do tempo. A mente diz: “preciso investigar algo que
não seja do tempo”, é essa mente – processo de pensamento, processo de tempo – que deve cessar.
Não achais?
Espero não estejais simplesmente ouvindo minhas palavras, porquanto palavras são cinzas,
nenhuma significação tem, a não ser no nível verbal; mas, se fordes capazes de investigar a
significação que se acha além das palavras, compreendereis então a extraordinária beleza e
profundeza, no tempo não há virtude, no tempo só se encontra a germinação e amadurecimento do
pensamento – do pensamento sempre condicionado, do pensamento que nunca pode ser livre. Não
existe “pensamento livre”: isso é puro disparate.
Pensar é unicamente “pensar”, e se perceberdes o verdadeiro significado do pensar, nunca
mais falareis de “livre pensamento”. Por conseguinte, perguntamos: é possível ao pensamento, que é
o resultado do passado, a totalidade do tempo, cessar de imediato? Digo que só é possível quando a
mente está por inteiro tranqüila. Se perguntais: “como poderá a mente ficar completamente
tranqüila?” - Esse “como” é uma exigência de método e, dessa maneira, estais de novo
aprisionados no tempo. Mas existe um “como” que não está em relação com o tempo, pois não é
exigência de método. Compreendeis o que estou dizendo senhores?
Podeis perguntar “como” – significando: “ensinai-me o método que, com o tempo, porá fim
ao pensar” – e esse “como” constitui meramente a continuação do pensamento, com o qual esperais
alcançar um estado (psicológico) em que não há pensar – o que é uma óbvia impossibilidade.
Mas se percebeis a falsidade desse processo, então o “como” tem significado inteiramente
diferente.
Peço-vos prestar atenção a isto, pois, se o compreenderdes, sabereis de pronto, por vós
mesmos, o que é “ter uma mente serena”; ninguém vo-lo precisará ensinar e não necessitareis de
nenhum guru.
O “como” que implica método supõe tempo e, por conseguinte, continuação do pensamento,
que é condicionado e no qual não há liberdade. Não tem esse “como” validade alguma ao investigar-
se o que é a verdade, porque, para se investigar o que é a verdade, necessita-se de liberdade – de
estar livre do pensamento.
Ora, no momento em que se percebe que o “como” que exige método é meramente a
continuação do tempo, que acontece à mente?
Espero que estejais observando vossa mente, e não simplesmente ouvindo minhas palavras.
Que acontece à vossa mente ao perceberdes que o “como” que exige método não é o caminho
certo para se libertar a mente?
Resta-vos um “como” que é investigação não é verdade? E para investigar, temos de começar
no mais completo silencio, visto que nada sabemos. Entendeis? A mente que está investigando não
contem acumulação, sua investigação não é “aditiva”, não há nela acumulação de conhecimento.
Entendeis, senhores?
Se estou investigando o que é o amor, não posso dizer que o amor é espiritual, divino, efeito
de karma etc., pois isso é simplesmente um “processo” de pensar nunca descobrirei o que é o amor
por meio do pensar, porquanto o pensamento é condicionado, é pensamento é resultado do tempo.
O pensamento “projeta” idéias sobre o amor, mas o que ele projeta não é amor.
Para investigar o que é o amor, a mente deve estar livre de informações, idéias, pensamentos.
Ao perceber esta verdade, minha mente se torna tranqüila; não tenho de perguntar como torná-la
tranqüila. O importante é a correta investigação, isto é: investigar de modo que a mente esteja livre
do conhecimento acumulado, através da experiência, pelo “experimentador”.
O pensamento, que é a totalidade do tempo, germina nos escuros recessos da mente, porque a
mente resultou do tempo, de muitos milhares de dias passados. A mera continuação do pensamento,
por mais nobre, mais erudito, mas venerável que seja, se verifica na esfera do tempo, e essa mente é
incapaz de descobri o que se acha além de seus próprios limites.
O relevante, pois, é que a mente – resultado do tempo – comece a investigar a si mesma, em
vez de especular a respeito do estado mental, que é livre do tempo.
Só quando começa a investigar a si própria que a mente se torna cônscia de seus próprios
processos e do significado de seu pensar.
6
Só podeis estar total e imediatamente cônscios de todos os obscuros recantos da mente, onde
o pensamento funciona, se percebeis que o pensamento nunca conduzirá a mente a liberdade.
Se bem compreenderdes isso, vereis que a mente se tornará sobremodo tranqüila, não apenas
a mente consciente, mas também a mente inconsciente, com toda a sua herança racial, seus motivos,
dogmas e ocultos temores.
Mas só se verifica essa tranqüilidade total da mente quando há a tremenda energia do
autoconhecimento. É o autoconhecimento que trás essa energia, e não vossa abstinência do sexo, do
álcool, disto ou daquilo – pois isso, também, é uma atividade egocêntrica. Essa energia e essencial e
só pode manifestar-se em toda a sua intensidade, plenitude e vitalidade quando há conhecimento
próprio. Mas o autoconhecimento não é “cumulativo”; é o descobrimento do quê sois, momento a
momento.
A mente está então tranqüila, e nessa tranqüilidade há grande beleza, da qual nada sabeis. Há
nela um espantoso movimento que destrói a germinação da mente. Esse silêncio tem uma atividade
própria, seu modo próprio de atuar sobre a sociedade, e ele produzirá ação, não importa qual seja o
padrão social em apreço.
Mas a mente que apenas se empenha na reforma social, no produzir a igualdade pela
legislação, etc., nunca conhecerá essa outra ação que opera sobre a totalidade.
Eis porque tanto importa compreendermos. Graças a essa compreensão, há o verdadeiro
“abandono” – passividade – e só então se apresenta esse extraordinário sentimento de silencio.
Não sei se já alguma vez experimentastes, de manhã cedo, estar sentados calmamente, com a
mente inativa, observando o céu sereno, as refulgentes estrelas, as árvores, os pássaros.
Experimentai-o uma vez, não para meditardes – que é atividade egocêntrica do meditador, – mas por
mero divertimento.
Vereis então que há um silêncio que nenhuma relação tem com o conhecimento. Não é o fim
do barulho, ou o oposto do barulho. É um silêncio que é, em verdade, o movimento criador de todas
as coisas, o começo de tudo. Mas nunca o encontrareis se não tiverdes esse conhecimento próprio.
Essa compreensão é o começo da liberdade.
Conferência de Krishnamurti, em Bombaim, Índia em 17.02.1957 págs. 143/152 do livro
“o homem livre” – Cultrix – 1976 – tradução de Hugo Veloso – destaques, parênteses e nova
disposição gráfica, foram colocados por ocasião do estudo.

VIVER A ARTE DE VIVER


Nesta manhã pretendo examinar um assunto um tanto complicado.
Poderá parecer difícil, porém é bastante simples.
O importante não é fazermos alguma coisa, não é perguntar-nos o que se pode fazer em
relação a certa coisa, porém o importante é o ato de escutar.
Toda comunicação, mesmo no nível verbal, está no simples escutar, e não em tentarmos
descobrir o que o orador está dizendo, em fazermos um enorme esforço para compreender o
problema de que se está tratando.
Escutar é uma arte, e se puder escutar com atenção isenta de esforço, sem a determinação de
escutar, sem a atenção que visa a um fim, porém assim como se escuta o rio a correr, então o próprio
ato de escutar é, em si, uma ação total. Nossa mente é tão complexa, tão contraditórios e ocultos são
nossos motivos e intenções, que perdemos toda a simplicidade.
O escutar requer uma mente muito simples - não uma mente desequilibrada, porém uma
mente muito clara, como um lago de águas tão límpidas e tranqüilas que se possa ver o seu fundo,
com todos os seixos e os peixes e as ervas e tudo o que vive sob a água.
Se uma pessoa é capaz de observar e de escutar, não precisa fazer mais nada.
Não terá de exercer o raciocínio, não necessitará de nenhuma convicção ou fé, nem de fazer
esforços para ser séria: só terá de ver a existência como um todo, ver o céu todo inteiro e não através
de uma janela, através de uma mente especializada que olha para o céu com seus conhecimentos
científicos.
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A mente especializada não pode ver a totalidade, não pode perceber o todo da vida - amor,
morte, ódios, guerras, impulso aquisitivo, batalha constante, interior e exterior, ambição, poder -
como um vazio total, um movimento total. Se pudéssemos ver dessa maneira, escutar o movimento
da vida, todas as relações teriam uma significação inteiramente diferente, e a existência uma
diferente profundeza.
Por que razão olhais a vida em fragmentos?
Peço-vos não responder ou procurar resposta.
Disso se encarregará o orador, o mais detalhadamente possível.
O que tendes de fazer nesta manhã, se posso sugeri-lo, é só ficar escutando durante quarenta
ou quarenta e cinco minutos, se tendes o interesse, a seriedade, a intenção, a vitalidade, a energia que
isso requer.
Escutai; depois, se o desejardes, tereis a bondade de fazer perguntas e examinaremos mais
um pouco a matéria. Mas, permiti-me sugerir que escuteis sem esforço, e com agrado. Esta é uma
linda manhã: as montanhas muito claras, o prado todo rutilante, cada árvore, cada ser vivo cheio de
vida e beleza.
Para se ver tudo isso, não deve haver ponto de vista especializado, fragmentário. Por que
razão olhamos a vida aos fragmentos? Porque fracionamos a vida, a vasta corrente da existência, em
seções, em séries classificadas de fragmentos?
Porque dividimos o mundo físico em nacionalidades, em dogmas, em mundos diferentes -
mundo político, religioso, social, econômico? Nossas relações estão divididas. O marido, a mulher, o
filho, a família, o grupo, a comunidade, as nações - todos funcionam separadamente.
Porque temos divisões como amor e ciúme, deus e demônio, bom e mau?
Tudo é fracionário, e nossa própria mente e corações estão divididos, fragmentados; por
causa dessa fragmentação nunca vemos o todo, embora tentemos, de todas as maneiras, juntar esses
fragmentos num todo. Mas não podemos integrá-los. Não se pode integrar o preto e o branco, o ódio
e o amor, ou a bondade e o ciúme. Visto não ser possível essa integração, necessitamos de uma
maneira inteiramente nova de abeirar-nos do problema. Para se compreender ou observar a vida
como um todo não-fragmentado, não deve haver nenhum centro, nenhum eu, como observador,
como experimentador.
O observador, o nacionalista, o homem que crê ou que não crê, o comunista - cada um desses
tem o seu centro, de grau e profundidade diferentes, inteligente ou não, embotado e estúpido ou
altamente intelectual, muito ilustrado ou muito ignorante. Enquanto existir tal centro, haverá
fragmentação: vida e morte, amor e ódio, etc.
Peço-vos escutar, sem perguntar como vos libertareis do centro.
Não podeis livrar-vos dele.
Como podeis livrar-vos do todo da vida? Não o podeis!
Quanto mais vos esforçardes para vos libertar do centro, tanto mais forte ele se tornará.
Vemos ocorrer essa fragmentação e sabemos também, pela observação, pelo claro pensar,
porque a fazemos.
Somos condicionados desde a infância para pensarmos de uma certa maneira.
O matemático, os cientistas, se devotaram a certas especialidades, e tudo mais lhes é
secundário. Dividiram, fragmentaram a vida.
A vida é contradição enquanto não percebemos por nós mesmos, o seu todo, a totalidade dos
entes humanos, a totalidade do mundo, assim como vemos estas montanhas, estes rios e vales.
Enquanto a mente estiver fragmentada, fracionada, especializada, enquanto algum homem
disser: "esta é a direção que tenho de seguir", ou "este e o caminho de meu preenchimento, de meu
"vir a ser", o caminho que seguirei" - haverá aflições e mais sofrimentos.
Cada um de nós tem esse centro, de onde olha, julga, avalia e faz tremendos esforços. A vida
está fragmentada e essa fragmentação, causada pelo centro, é o tempo
Se olhamos o todo da existência, sem esse centro, o tempo desaparece.
Um milagre!
O tempo (psicológico) é uma das coisas mais complexas que temos de compreender.
É relativamente fácil compreendê-lo intelectualmente, mas, para perceber o seu significado,
compreender a natureza do tempo (psicológico), a importância o tempo (psicológico), não só temos
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de compreender o tempo cronológico, marcado pelo relógio que trazemos no bolso ou no pulso, mas
temos também de compreender e de observar o fator psicológico que cria o tempo (psicológico)
como ontem, hoje e amanhã.
O tempo é um movimento, uma totalidade, e se o fracionamos em ontem, hoje e amanhã,
ficamos-lhe escravizados. Criamos então teorias: gradualismo, ou o "imediato", o "agora".
Pela teoria gradualista, os entes humanos se tornarão gradualmente mais benevolentes, mais
bondosos, mais isto e mais aquilo. Percebemos a total futilidade da esperança (vir a ser) de uma vida
futura, sendo o futuro amanhã, de contarmos com um ganho que se verificará daqui a alguns meses,
anos ou séculos.
Isso, mais uma vez, é fragmentação do tempo. Nessa rede estamos presos e, por conseguinte,
não compreendemos o extraordinário movimento do tempo não fragmentado.
Na realidade, só existe o tempo marcado pelo relógio, e nenhum outro.
Aquele trem passa por aqui precisamente a esta hora, todos os dias, e se desejais tomá-lo
deveis estar na estação na hora da sua partida. De contrário, o perdereis. O tempo cronológico tem
de ser observado rigorosamente. A observância do tempo marcado pelo relógio não é uma
fragmentação como a daquele outro tempo. O tempo não cronológico (psicológico) é invenção da
memória, da experiência, ou do centro, que diz: "eu serei".
Existe a questão da morte, questão que preferimos adiar, evitar, afastar de nós.
O pensamento é a causa da fragmentação do tempo, o qual, salvo o tempo cronológico, não
tem existência real.
Não compreendemos aquele extraordinário movimento do tempo em que não há
fragmentação, porque estamos sempre pensando no que fomos, no que somos, no que seremos.
Isso é fragmentação do tempo psicológico, e a tal respeito nada podeis fazer, senão escutar.
Não podeis dizer: "livrar-me-ei do tempo, para viver no presente, porque só o presente é
importante".
Que significa realmente "o presente"?
Ele é apenas um resultado do passado; mas existe um presente real quando não há
fragmentação do tempo.
Espero que possais ver a beleza disso.
O tempo tem para nós desmedida importância - não o tempo cronológico, a hora de ir para o
escritório, de tomar o trem, o ônibus, de ir a um encontro marcado. Tudo isso são trivialidades, que
temos de observar. Mas, o que tem importância é o tempo psicológico (o que criamos), que
dividimos em ontem, hoje e amanhã.
Estamos sempre vivendo no passado. O "agora" é o passado, porque esse "agora" é a
continuação da memória, o reconhecimento do que foi e não pode ser alterado, e o que está
acontecendo no momento presente.
Ou vivemos engolfados nas recordações da juventude, na lembrança de coisas passadas, ou
vivemos na imagem do amanhã. Levamos uma vida de gradual declínio, gradual definhamento. Com
a aproximação da senilidade, as células cerebrais se vão tornando mais e mais fracas e perdem, por
fim, toda a energia, vitalidade e força. Esta é que é a grande tristeza. Ao envelhecermos a memória
desaparece e tornado-nos caducos, meros repetidores do passado. É assim que estamos vivendo;
embora muito ativos, somos senis.
No presente, no momento da ação, estamos sempre vivendo no passado, com sua influência,
suas pressões e tensões, sua vitalidade.
Todo o saber que, com enorme esforço, adquirimos e armazenamos através do tempo, é do
passado. O saber nunca é do presente.
Com esse saber (psicológico) do passado atuamos, e a essa ação é que chamamos "o
presente". Tal ação está sempre a causar declínio. Estamos atuando "dentro" da imagem, do símbolo,
da idéia do passado; tal é a fragmentação da vida. Inventamos filosofias, teorias do presente:
"vivamos só no presente e tiremos dele todo o proveito possível". "Nada mais importa".
Esse "viver no presente" é desespero, porque o tempo que foi dividido em passado, presente,
e futuro só produz desespero. Conhecendo o desespero, dizemos: "não importa; tratemos de viver no
agora no presente, porque tudo mais é sem significação. Toda ação, toda vida, toda existência, toda
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relação, tudo enfim resulta necessariamente na divisão do tempo e, por conseguinte, no desespero,
no declínio, na aflição".
Tendes a bondade de escutar, porque a esse respeito não podemos fazer coisa nenhuma.
Tal é a beleza daquilo que ocorrerá se ficarmos apenas escutando. Isso não significa que se
tenha de aceitar o que se diz; não há nada que aceitar nem que rejeitar. É estúpido dizer-se: "estou
vivendo no presente". Isso não significa nada. Igualmente estúpido é dizer: "nego o passado".
Podemos negar o passado, mas somos o resultado dele.
Todo nosso funcionamento vem do passado.
Nossas crenças, nossos dogmas, nossos símbolos, a norma que nos esforçamos para seguir,
qualquer que ela seja, tudo é resultado do passado, o qual é o tempo.
Dividimos o tempo em passado, presente e futuro. Isso naturalmente gera medo, medo da
vida que está fora do tempo, e medo do movimento do tempo não fracionado em ontem, hoje e
amanhã.
Esse movimento do tempo só pode ser percebido totalmente, quando não há fragmentação,
quando não há nenhum centro, de onde olhamos a vida.
A beleza não é "do tempo"; o que tem relação com o tempo é sua expressão fragmentária,
conforme a percebemos no tempo. A beleza, como o amor, não pode ser dividida em ontem, hoje e
amanhã. Se a dividimos, apresentam-se todos os problemas inerentes àquela relação que chamamos
"amor" - ciúme, inveja, domínio, sentido de posse. Quando a beleza não é resultado da fragmentação
do tempo, então a pintura, a música e todas as modernas falácias e artifícios perdem toda a
significação.
Tudo o que é expressão do tempo, do período, do moderno estado de revolta, nega a beleza.
A beleza não pode ser traduzida em termos de tempo. Ela só pode ser compreendida, vivida,
conhecida, no silêncio total. Não podemos ver a beleza da montanha e do claro céu azul quando a
mente está a tagarelar interminavelmente, quando ocupada com problemas. Só se pode ver aquela
beleza no silêncio total, e esse silêncio não se alcança por meio do tempo, pelo dizermos: "amanhã
estarei em silêncio; praticarei os necessários métodos", e outras infantilidades que tais.
O silêncio só se manifesta em sua totalidade, profundeza e beleza, tão logo cessa a
fragmentação do tempo. A mente silenciosa é uma mente livre do tempo, e em virtude desse silêncio
ela pode agir. Ela é silenciosa, porque "sem tempo".
Está sempre no presente, sempre no "agora".
Como não é possível atuar positivamente por meio da "vontade" para quebrar a sujeição ao
tempo, nada se pode fazer.
É necessário compreender realmente que nada se pode fazer.
Isso não significa que a pessoa tenha de se tornar preguiçosa, negligente, de levar uma vida
estúpida e sem significação. Vê-se a totalidade da vida, a extraordinária complexidade da existência,
e percebe-se que nada se pode fazer. Que podemos fazer a respeito daquele barulho? Podemos
resistir-lhe ou podemos ficar a escutá-lo, a "acompanhá-lo".
Se percebemos que, nem positivamente nem de outra maneira podemos fazer alguma coisa a
respeito da vida fragmentária que levamos, essa vida de contradição a que estão condenados os entes
humanos; se percebemos esse fato realmente, e não intelectual, racional ou verbalmente; se
compreendemos totalmente que não temos possibilidade de fazer coisa alguma a respeito de nossa
vida, com seus sofrimentos, prazeres, alegrias, aflições, ambições, competição, sua busca de poder e
de posição e todos os fragmentos em que está dividida a nossa existência, então o tempo como
ontem, com todas as suas lembranças, experiências e conhecimentos termina totalmente.
Dessa terminação do tempo nasce a beleza - que não é as coisas que vemos, nem a montanha,
nem o quadro, nem o regato, tudo isso são fragmentos - porém a beleza que nasce sem ter sido
buscada, nem premeditada. Só surge essa beleza quando o tempo não existe, ou quando o tempo não
está fracionado. Dessa beleza vem o silencio.
A mente que não está em silêncio e o coração que não está tranqüilo vivem no conflito e na
aflição. O que quer que façamos, ela trará sempre aflições, para nós e para outros.
A beleza surge, com ela nos encontramos insabida e misteriosamente, quando estamos a
escutar sem esforço, tranqüilamente, sem estarmos sendo hipnotizados por quem nos fala. Esse
encontro poderá durar só um segundo, um minuto, poderá durar um dia, um século, mas não
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importa. Quando queremos apoderar-nos dela, quando dizemos: "tenho de retê-la toda a vida", já
estamos fragmentados; recomeça a contradição, a irritação, o ciúme, etc.
Para se ver a totalidade da existência, o tempo como presente, passado e futuro deve
terminar.
Podemos agora palestrar, investigar, não como alcançar essa extraordinária beleza, porém
como ver, como observar o quanto está fragmentada, fracionada a nossa vida?
Se percebemos os fragmentos e percebemos que nada podemos fazer, que não há
possibilidade de integrá-los, visto que toda ação é fragmentária enquanto existe um centro, e esse
centro é o resultado da fragmentação do tempo - se pudermos observar esse fato, abrir-nos a ele,
então será possível encontrarmos algo não criado pelo tempo - tempo como ontem, hoje e amanhã.
O tempo se detém, então.
O tempo constituído de fragmentos termina.
Se pudermos nesta manhã ver realmente as nossas vidas e como as fracionamos e
fragmentamos, talvez então suceda alguma coisa - não nascida do inconsciente, porque este não
existe.
Só há consciência, que dividimos em consciente e inconsciente. É dessa divisão que nascem
todas as fragmentações e as respectivas aflições.
Interrogante: vedes todas as coisas como beleza?
Krishnamurti: que quererá dizer o interrogante?
Pode-se achar belo o assassínio de uma pessoa, a guerra, um incêndio, o sofrimento, a lama
da estrada, o esqualor da pobreza? Por que fazeis esta pergunta? É por que desejais ver tudo como
beleza - as provocações e disputas entre marido e mulher, a cólera, o ciúme? Quereis ver tudo isso
como beleza, para terdes uma imagem para cultuar, uma espécie de extravagância mística? Senhor,
deveis ver as coisas como são, os fatos como fatos, e não ter opiniões a respeito dos fatos. Deveis
ver realmente, sem dissimulação, a fealdade, a brutalidade, as coisas horrorosas que estão sucedendo
no mundo. Todas as igrejas com seus dogmas, cruzes e signos são irreais. São símbolos, e o símbolo
nunca é o real. Quando reconheço que o símbolo não é real, perde ele então toda a significação.
Respondi a vossa pergunta, senhor?
Interrogante: sim, com restrições.
Krishnamurti: restrição de quê? Senhor, compreendestes o que eu disse? A mente que já não
pensa em termos de ontem, hoje ou amanhã, a mente que não está fragmentada, racionada, saberá o
que é a beleza. Então não se pergunta: "pensais que a vida é toda de beleza?". Primeiro descobri por
vós mesmo porque vossa mente está fragmentada, porque vossa vida se acha especializada, como
marido, etc. Enquanto investigais isso, fazei perguntas. Mas começai, primeiramente, a investigar,
para então fazerdes perguntas verdadeiramente importantes.
Interrogante: o que perturba a maioria de nós é o fato de serem as palavras tão superficiais.
As palavras que empregamos não têm significação. Se falamos a respeito de certas coisas, usamos de
certa, expressões; as palavras brotam espontaneamente.
Krishnamurti: é exato isso? "minha esposa" ou "meu marido" são palavras, mas têm enorme
significação, não achais? Há gente disposta a matar por causa das palavras "meu deus" ou "eu sou
comunista". Uma idéia é apenas palavra racionalizada, palavra organizada, e por ela estamos prontos
a matar e a embrutecer-nos, destruir-nos. Não digais, senhor, que as palavras têm muito pouca
significação. Se compreendemos que a palavra, o símbolo, a expressão não é o fato, assim como a
palavra "árvore" não é a árvore, então já não estamos enredados nas palavras. Nosso pensar, nossas
mentes estão cheias de palavras, condicionadas por palavras como "sou inglês, sou francês". As
palavras têm para nós extraordinária importância. Podemos chamá-la "superficial", mas uma
palavra, uma expressão, um símbolo tem muita significação. Mas, quando sabemos que a palavra, o
símbolo, a expressão não tem significação real, que só o fato a tem, então as palavras e expressões
de que usamos não nos cativam a mente. Senhor, fez-se uma tentativa de investigar a questão da
propaganda. Criou-se uma comissão que logo começou a trabalhar. Sabeis quem sustou essa
tentativa? A igreja, os militares, os homens de negócios!
Interrogante: numa pequena aldeia vive uma serpente venenosa. Uma mãe está em prantos
porque essa serpente lhe mordeu o filhinho e ele morreu. Posso matar a serpente, ou deixá-la em paz.
Que devo fazer? "
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Krishnamurti: que fazeis num caso destes? Ficais esperando uma oportunidade de vir aqui,
para saber o que deveis fazer? Ou fazeis alguma coisa imediatamente, no local? Vós agis! Se sois
insensível, indiferente, nada fazeis; mas, se o fato vos comove, fazeis, com efeito, alguma coisa,
imediatamente. Senhor, todas as nossas ações se baseiam na idéia de que devemos prestar bons
serviços, ser bons, de que isto é justo e aquilo é injusto. Toda ação está condicionada por uma idéia,
por nossa pátria, nossa civilização, e pela alimentação que tomamos. Tudo isso condiciona as nossas
ações, porque elas se baseiam em idéias. Quando percebermos que a ação que se ajusta a uma idéia
não é ação, rejeitaremos todas as idéias e saberemos o que é ação. É interessante observar como
temos fracionado a ação: virtuosa, imoral, justa, verdadeira, nobre, ignóbil, ação nacional, ação
conforme com a igreja. Se compreendemos o nenhum valor de tais ações, então agimos. Não
perguntamos como agir, o que fazer; agimos, e esse ato é, naquele momento, a mais bela das ações.

Krishnamurti em Saanen - Suíça, 26.07.1966 - págs. 83/91 do livro “O Mistério da


Compreensão” - Cultrix 1972 - tradução de Hugo Veloso - parênteses e nova disposição gráfica
foram colocados por ocasião do estudo.

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti

MUDANÇA E MUTAÇÃO
Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação. A mera mudança não conduz a parte
alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente adaptável, muito hábil no ajustar-se aos
diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias formas de pressão interior e exterior; mas a
mutação requer um estado mental muito diferente.
Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da
vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema

aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma
mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas
também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores,
a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.
Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas,
ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da
mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito
profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das
relações humanas?
Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse
processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.
A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança
todo movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção,
visando uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás
de si um motivo. Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um
motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou
o nível do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.
Isso me parece bastante claro.
Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas
atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou
indiretamente
influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente
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direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião organizada
mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença,
condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica
dentro dos limites "modificados" dessa crença.
Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou
interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um
certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma
ideologia, ou a determinada forma de crença em deus.
Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.
Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia, e
nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas
descobertas na física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à
lua, etc. Etc. Em certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem
informados; e essa espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às
novas pressões que ela cria.
Mas, basta isso? Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de
mudança. Entretanto, sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical
– mudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a
necessidade de mutação na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de
macacos muito hábeis e dotados de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes
humanos.
Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer?
Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz
mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais,
irão crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma
mente nova, fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma
mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.
Não sei se me estou expressando claramente.
Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-
la - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em
movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança
produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada. É uma "continuidade
modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e
também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução
psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é
planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por conseguinte, não constitui
mudança nenhuma.
Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema
de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio,
fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou
igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total
inutilidade, porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve
orientar o viver, o existir, o funcionar.
Assim, que fazer?
Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro. Se faço um esforço para mudar, esse
esforço tem motivo, significando isso que o desejo inicia o movimento em certa direção. Aí está em
ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples
modificação - não é uma mudança real, absolutamente.
Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem
esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo,
da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito preestabelecido.
Assim sendo, que fazer?
Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no
sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de
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anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em
aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode
essa entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga
sem nenhum esforço?
Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos.
Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes
indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até
o fim e liquidar de uma vez.
Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é
uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o
tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o
tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.
Compreendeis?
Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça
humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O
pensamento não pode resolver este problema. Venho exercendo o pensamento há milhares e
milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha
inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência.
Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstancia alguma,
alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso
contar com o pensamento, com o tempo, para operar a mutação, a mudança radical. Não pode haver
exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.
Que me resta, então?
Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem
vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se
servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo,
pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como
vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.
Que fazer, pois?
Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de
atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança,
não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.
Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa?
A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa
como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão
intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa
apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então
enorme importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a
importância, sendo então simples meio de comunicação.
Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da
vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical
transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum
instrumento tem com que iniciar a ação.
Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também
estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante
compreender o que entendemos por comunhão.
Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e
sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com
as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.
O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou
completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele
estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.
Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse
estado.
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Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode
ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador
emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve
permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore -
se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de
sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.
Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o
que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.
Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento
iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por
conseguinte, que, não -verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.
Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é
algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.
Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já
observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo
comunista ou pelo mais reacionário conservador.
Vedes quanto tudo isso é fútil.
Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos
numa certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como
matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada
pela igreja que instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente,
rejeitar tudo isso, mas, inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão,
inglês, alemão, italiano, francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos,
familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima,
mais profunda ainda é sua influência.
Ora, como eliminar tudo isso?
Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o
inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação,
exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se
pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há
sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso
representa uma dualidade, fonte de conflito.
Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.
Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha
mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando.
Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que
analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte,
rejeito completamente o processo analítico.
Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o
fardo do inconsciente estou fora da análise.
Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele
próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o
inconsciente é de muito pouca importância.
Percebeis? Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais,
sua perene tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o
consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade. O pensamento tem seu
lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo
fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando percebo que é o pensamento
que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.
O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.
Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa
verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum,
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atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda
a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.
Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila,
silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical
transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse
percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.
A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente
nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade
há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a
revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.
Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo
de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.
Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?
Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,
porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as
raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a
função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?
Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.
Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por
meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos
abstenhamos de nele intervir. Então, estamos também em comunhão com o fato.Mas, se interpretais
o fato de uma maneira e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem
entre nós.
Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de
comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do
pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.
Vou examinar isso, se me permitis.
Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio". Se nenhum desafio houvesse,
vós não pensareis. O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a
pergunta "respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de
pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem
familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há
intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.
Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico
rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia
entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito?... Ah! Sei. . . " - e, então,
respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço de tempo, durante o qual a
memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou "desafiado",
minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a
cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não sei, mas vou verificar"; e, não
encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a
informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse intervalo muito mais longo, o
"processo de pensamento" está em função.
Essas três fases são-nos muito familiares.
Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras,
e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.
Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me
dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.
Com efeito, eu não sei.
Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à
procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado
livre de todas as coisas que a mente tem conhecido. E é só nesse estado que o novo pode ser
compreendido - sendo o novo o supremo, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado,
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cessou todo o processo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há
experimentador nem coisa experimentada.
Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.
Palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do livro "A
MENTE SEM MEDO" – ICK 1965 – tradução de Hugo Veloso – Destaques, parênteses e nova
disposição gráfica fora colocados por ocasião do estudo.

QUE ESTAMOS BUSCANDO?


PERGUNTA: Quanto mais vos ouço mais sinto a verdade dos antigos ensinos. É verdade que
nunca lestes ensinamentos do Bhagavadgita, Cristo, Teosofia ou de outro qualquer?
KRISHNAMURTI: Responderei em primeiro lugar à segunda parte da pergunta, e depois à
primeira parte. "É verdade que nunca os lestes?".
Não, senhor nunca os li. Que mal há nisso? Estais surpresos? Escandalizado? Mas porque lê-
los? Porque desejais os livros dos outros, quando tendes o vosso próprio livro? Qual a razão de
desejardes ler a Bíblia ou Cristo? Sem dúvida, porque desejais confirmação, porque desejais
conformar-vos. Eis porque a maioria das pessoas lê: querem ver confirmada sua crença ou sua
opinião, para terem segurança, abrigo, certeza. Podemos descobrir alguma coisa, abrigados na
certeza? Claro que não. Um homem que está certo, psicologicamente, é incapaz de descobrir.
Então, porque ledes? Podeis ler por simples divertimento, ou com o fim de acumular fatos; ou ledes,
também, para adquirir o que chamais sabedoria, e pensais ter compreendido todas as coisas porque
podeis citar Cristo; pensais que, citando Cristo, possuís o inteiro significado da vida. O homem que
cita, não pensa, porque repete o que outro disse. Senhores, se não tivésseis livro algum, nem
Bhagavadgita, nem Cristo, que faríeis? Teríeis de empreender sós a viagem para o desconhecido,
aventurar-vos sozinhos. Quando descobris alguma coisa, o que descobris vos pertence; não
necessitais então de livro algum. Não li o Bhagavadgita, nem nenhum livro de religião, psicologia,
ou filosofia, mas descobri algo, e esse descobrimento só é possível quando somos livres, e não
mediante repetição. Esse descobrimento é muito mais grandioso do que a experiência alheia,
porque descobrimento não é repetição, não é cópia.
Passo agora à primeira parte da pergunta. Senhor, porque comparais? Qual é o processo da
comparação? Porque dizeis "O que falais tem semelhança com Cristo?" Se tem, ou não, semelhança,
isso nada importa. A verdade não pode ser sempre a mesma, ela é sempre nova. Se conservar a
mesma, não é a verdade, porque a verdade é viva, de momento a momento, não pode ser hoje o
que ontem foi. Mas, porque comparais? Não é porque quereis sentir-vos seguro, sentir que não
tendes necessidade de pensar, pois o que digo é o que Cristo disse? Lestes Cristo, e pensais que
compreendestes; assim, comparais e vos pondes à vontade, e isso se pode fazer num instante e sem
esforço. Na realidade, nada compreendestes, e é por isso que comparais. Quando comparais, não
há compreensão. Para compreender, devemos olhar diretamente a coisa que se nos apresenta, e a
mente que compara é preguiçosa, desperdiçada; vive na segurança, e está fechada na satisfação. Em
tais condições, não pode a mente compreender a verdade. A verdade é uma coisa viva, não estática, e
uma coisa viva é incomparável; não se pode comparar com o passado ou o futuro. A verdade é
incomparável, de instante em instante, e para quem tenta compará-la, pesá-la, julgá-la, não existe
verdade alguma. Para essa pessoa só há propaganda, repetição; e repetição é mentira, não é verdade.
Repetis porque não estais"experimentando", e o homem que está experimentando nunca repete,
porque a verdade não pode ser repetida. Não podemos repetir a verdade, mas tão somente a nossa
conclusão, nosso juízo a respeito dela. Por conseguinte, a mente que compara, que diz: "O que estais
dizendo é exatamente o que disse Cristo", essa mente deseja continuidade e, portanto, esta
paralisada, morta.
Senhor, não existe canção em vosso coração, se vos limitais a repetir uma canção e, por
conseguinte, seguir o cantor. O que importa não é se eu li livros sagrados, ou se o que digo é
comparável ao que disse Cristo, Bhagavadgita, ou Sankara: o importante é saber porque repetis,
porque comparais. Compreendei a razão por que comparais, e compreendereis a vós mesmo.
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Compreender-vos importa mais do que a compreensão de Cristo, porque o que sois tem mais
relevância do que Cristo ou qualquer ideologia. É só através de vós mesmo que descobris a
verdade. Vós sois o descobridor da verdade, e não a Bíblia, nem o Bhagavadgita, que nada
significam, servindo apenas como um meio de vos hipnotizardes, tal como ler os jornais. Assim,
a mente capaz de receber a verdade não compara, porque a verdade é incomparável. Para recebê-la,
a mente precisa estar só, e ela não está só quando sob a influência de Cristo ou Buda. Por
conseguinte, toda influência, todo condicionamento deve desaparecer. Só nesse estado, em que o
conhecimento cessou de todo, existe um findar e, conseqüentemente, a solidão da verdade.
PERGUNTA: Afirmais que nunca lestes um só livro, mas isso é verdade? Não sabeis que
declarações inconsistentes como esta causam irritação? Parece que conheceis a terminologia mais
moderna da política, da economia, da psicologia, e das ciências; quereis dar a entender que obtendes
estas informações por meio de faculdades sobre-humanas?
KRISHNAMURTI: Senhor, quer vos agrade sabê-lo, quer não agrade, o fato é que nunca li
um único livro religioso, nem livros sobre psicologia ou ciência; e fato é também que quando jovem
não fiz nenhum curso rigoroso de filosofia ou psicologia. Por alguma razão, sempre senti
relutância em lê-los - enfadavam-me e esta é que é a verdade. Naturalmente, conheço grande
número de pessoas de todas as condições - cientistas, filósofos, psicanalistas, religiosos, etc. - que
vêm discorrer comigo; e, vez por outra, leio alguns semanários sobre política e assuntos mundiais.
Isso é tudo o que possuo em matéria de cultura geral. Ora, porque vos irrita isso? Não é porque
lestes tanta coisa, e vossa ignorância vos é mostrada por um homem que não leu nada? Senhor,
vós ledes para vos tomardes sábio? Sapiência é sabedoria? A sabedoria não é coisa inteiramente
diversa da sapiência? Mas aqui temos dois problemas: um deles é o de saber porque sentis irritação,
e o outro o de como eu obtenho a matéria das minhas palestras. Vamos, pois, em primeiro lugar
indagar os motivos por que sentis irritação.
Não é importante descobrir a causa da irritação? Vós ledes jornais, revistas, livros sagrados,
os comentários sobre filosofia, psicologia e ciência, continuais lendo, lendo sempre. Porque ledes,
porque conservais a vossa mente de contínuo ocupada? E porque vos ressentis quando alguém
que nada leu vos chama a atenção para alguma coisa? Será porque vos sente frustrado e tendes
antipatia e aborrecimento para com todo aquele que, mostra uma atitude diferente perante a vida?
Qual é o "processo" do vosso ressentimento? Por certo, é importante verificar se a sabedoria, a
compreensão é dada pelos livros; e por que razão lê, porque encheis a mente de conhecimentos, de
coisas ditas por fulano ou sicrano? Não indica isso uma mente preguiçosa, uma mente não
inquiridora? Não denota, também, uma mente incapaz de investigar, de experimentar
diretamente? Uma mente em tais condições está vivendo da experiência alheia e se sente
satisfeita, está dormindo, está embotada; e a mente que está cheia de tagarelice, de
conhecimentos, pode estar receptiva para a sabedoria?
O segundo problema é este: embora eu faça conferências, não li livro algum; e vós perguntais
- "Quereis dar a entender que obtendes estas informações por meio de faculdades sobre- humanas?".
Ora, quando uma pessoa nada lê, precisa ela saber como escutar, precisa ver e compreender mais
claramente, observar com mais sensibilidade e penetração, não é assim? Tem de estar muito mais
sutilmente atenta para tudo o que a cerca, não só para as pessoas que encontra, as pessoas que vêm
visitá-la, mas também para as que viajam no mesmo bonde e no mesmo táxi, as que passam na rua.
Tem de observar tudo mais claramente, mais penetrantemente; mas, se sua mente está atulhada de
conhecimentos, isso é impossível. Quando vivemos com plenitude, com atenção integral, há a
experiência direta, não temos autoridades nem sanções; e, além disso, para que precisamos de
outras pessoas, quando o tesouro está todo inteiro em nós mesmos? Afinal de contas, coletiva e
individualmente, somos o resultado do total de toda a humanidade - não é verdade? Somos o
resultado total de todos os pais e de todas as mães; e se conhecemos a maneira de perscrutar-nos,
não necessitamos de ler um só livro sobre religião, filosofia, ou psicologia, porque o livro somos
nós mesmos. Tereis, talvez, de ler para adquirir conhecimentos científicos, aprender matemática,
etc: mas isso pode ficar guardado nas bibliotecas. Porque atulhar a mente de fatos, quando temos
conosco um tesouro a exigir o máximo de atenção, o máximo de vigilância? Aí é que está a essência
da questão. Embora tenhamos contatos com pessoas de todos os tipos, de todos os graus de erudição,
é a compreensão própria que traz o conhecimento infinito, a infinita sabedoria.
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Senhores, estou certo de que nos tempos antigos, quando não se publicavam livros,
quando não havia seguidores, instrutores e gurus, houve descobridores originais, que nunca
tinham lido um livro. Porque não havia Bhagavad Gita, nem Bíblia, nem livro de espécie alguma,
tinham eles de descobrir por si mesmos, não é assim? Como procediam? Eles, claro, não tinham
sanções, não citavam estupidamente a autoridade de um indivíduo. Investigavam a verdade
individualmente, encontravam-na nos santuários de suas próprias mentes e corações. Sem
dúvida, também nós podemos descobrir a verdade diretamente no santuário de nosso mundo interior.
Mas descobrir, perceber o que é, sem condenação nem justificação, é sobremodo difícil. A mente é
mero processo do passado a servir-se do presente como de uma passagem para o futuro; e como
pode a mente nessas condições perceber o que é? Para perceber o que é, tem a mente de estar
livre de toda aquisição, de toda acumulação - mas este é outro problema. Estamos agora
procurando compreender o problema de porque lemos, e porque sentimos irritação contra os que não
lêem. Será possível àquele que leu muito, que acumulou grande soma de conhecimentos, estar
livre para ver, escutar, e ouvir? Ora bem, de nada vale ressentir-nos: isso é insensato, é pura perda
de tempo; mas todos nós nos comprazemos em atividades que nada significam e, positivamente,
senhoras e senhores, se desejamos descobrir o que é a sabedoria, tendes em vós mesmos a chave e
também a porta que se deve abrir. O autoconhecimento é o começo da sabedoria; mas o
autoconhecimento começa pertinho de nós, ele não se acha num certo nível Átmico supremo,
pois isso não passa de mera invenção de uma mente engenhosa, em busca de segurança. O
autoconhecimento está refletido em vossas relações com vossa esposa, vossos filhos, vosso vizinho,
vosso patrão, vossa propriedade, com as árvores, com o mundo. Para irmos longe precisamos
começar com o que está mais perto. Mas, em geral, não gostamos de começar com o que está
próximo, porque a nossa própria fealdade nos faz medo; por isso, imaginamos algo maravilhoso e
distante, e dele fazemos nosso alvo, nosso lema, o padrão que temos de seguir. Porque não temos
vontade de ver e compreender o que somos, momento por momento, fazemos da nossa vida uma
contradição, um tormento, uma desordem total. Senhor, a verdade está aqui, e não distante; a
felicidade está no descobrimento do que é, e isso é virtude.
Krishnamurti - QUE ESTAMOS BUSCANDO? - EDITORA CULTRIX - JCM.

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti

PÉROLAS DA REVOLUÇÃO PSICOLOGICA – I


Meditação não é um escape do mundo; não é atividade egocêntrica, isolante; porém, antes,
a compreensão do mundo e de seus costumes. Pouco tem o mundo para oferecer além de alimento,
roupa, morada, prazer e suas aflições.
A meditação é um movimento para fora (do campo psicologico) deste mundo, pois temos
de estar totalmente fora dele. Então, o mundo tem significado e a beleza do céu e da terra é
constante. Então, o amor não é prazer. Daí nasce uma ação que não é resultado de tensão, de
contradição; da busca de autopreenchimento ou da arrogância do poder.
“deixemos de lado, se este que lhe fala é um indiano criado nesta tradição, condicionado
por esta cultura, se ele é uma síntese desse antigo ensinamento. Em primeiro lugar, ele não é
hindu, isto é, não pertence a esta nação ou à comunidade dos brâmanes, embora nela nascido.
Rejeita toda essa tradição de que está revestido. Nega que seu ensinamento seja a continuação dos
ensinamentos antigos. Não leu nenhum dos livros sagrados da índia ou do ocidente porque eles são
desnecessários ao homem que está atento ao que acontece no mundo - o comportamento dos seres
humanos, com suas intermináveis teorias, com a propaganda aceita de dois ou cinco mil anos, que se
tornou a tradição, a verdade, a revelação.
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Para esse homem - que total e completamente rejeita aceitar a palavra, o símbolo e seu
condicionamento -, para ele a verdade não é uma coisa de segunda mão. Se o tivesse escutado
realmente, senhor, desde o começo ele tem dito que qualquer aceitação da autoridade é a negação
mesma da verdade, e tem insistido que devemos ficar fora de toda cultura, tradição e moralidade
social. Se o tivesse escutado, então não diria que ele é um indiano ou que está continuando a tradição
antiga, traduzida em linguagem moderna. Ele rejeita totalmente o passado, seus instrutores, seus
intérpretes, suas teorias e fórmulas.
A verdade nunca está no passado. A verdade do passado são cinzas da memória; a memória
pertence ao tempo, e, nas cinzas mortas de ontem, não existe verdade.
A verdade é uma coisa viva, não contida na esfera do tempo!
E, assim, tendo colocado tudo isso de lado, podemos agora considerar a questão central.
Certamente, senhor, a própria asserção dessa crença é uma teoria inventada por uma mente
imaginativa - seja shankara, seja o moderno e acadêmico teólogo. Pode-se experimentar uma teoria e
dizer que assim é; mas isso é ser como um homem criado e condicionado no mundo católico e que
tem visões de cristo. Tais visões, é óbvio, são a projeção de seu próprio condicionamento, e os que
foram criados na tradição de krishna têm experiências e visões oriundas de sua cultura. Assim, a
experiência não prova nada. Reconhecer a visão como sendo de krishna ou de cristo é o resultado de
conhecimento condicionado; tal visão, portanto, não é real, em absoluto, porém uma fantasia, um
mito fortalecido pela experiência e totalmente nulo.
Por que você quer mesmo uma teoria e por que precisa de alguma crença?
Essa constante asserção de crença é sinal de medo - medo da vida de cada dia, medo do
sofrimento, medo da morte e da total falta de significação da vida. Vendo tudo isso, você inventa
uma teoria e, quanto mais ardilosa e erudita essa teoria, mais peso tem. E, após dois ou dez mil anos
de propaganda, ela se torna, invariável e tolamente, "a verdade".
Mas, se você não prega nenhum dogma, então se vê frente a frente com o que realmente é. O
que é - é pensamento, prazer, sofrimento e o medo da morte. Quando você compreende a estrutura
de seu viver diário - com sua competição, avidez, ambição e busca do poder - então verá não só o
absurdo das teorias, salvadores e gurus, mas também poderá encontrar o fim do sofrimento, o fim de
toda a estrutura construída pelo pensamento.
O aprofundamento e compreensão dessa estrutura é meditação.
Então você verá que o mundo não é uma ilusão, mas uma terrível realidade que o homem,
nas relações com seus semelhantes, construiu. Isso é que se precisa compreender e não essas teorias
extraídas da. Vedanta, com os rituais e toda a parafernália da religião organizada. Quando o homem,
sem nenhum motivo, é livre do medo, da inveja ou do sofrimento, só então a mente está
naturalmente em paz e tranqüila. Pode, então, não só ver a verdade na vida diária, de momento a
momento, mas também ir além de toda a percepção; por conseguinte, existe o findar do observador e
da coisa observada, cessa a dualidade.
Mas, além de tudo isso, e sem relação com essa luta, essa vaidade e esse desespero, existe - e
isto não é uma teoria - uma corrente sem começo nem fim; um movimento imensurável que a mente
jamais pode apreender.
Ouvindo isto, obviamente você vai fazer uma teoria disso e, se gostar dessa nova teoria, irá
propagá-la. Mas o que você propaga não é a verdade. A verdade se apresenta somente quando você
está livre da dor, da ansiedade e da agressividade que ora enchem o seu coração e mente.
Quando se percebe tudo isto e se chega àquela bênção chamada amor, então você saberá a
verdade do que foi dito.”
O importante na meditação é a qualidade da mente e do coração. Não é o que você alcança
ou diz alcançar, mas a qualidade da mente que é inocente e vulnerável. Pela negação encontra-se o
estado positivo. (negar todos os conhecimentos aceitando-os apenas como informativos e cultura,
sem que permita que integrem o ego) juntar experiência ou nela viver, nega a pureza da meditação.
A meditação não é um meio que leva a um fim. Ela é meio e fim. Mediante a experiência, a mente
nunca se tornará inocente. A negação da experiência (aceita-la no seu devido lugar) é que faz nascer
o estado positivo da inocência, que não pode ser cultivado pelo pensamento.
O pensamento nunca é inocente.
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A meditação é o findar do pensamento, mas não por parte do meditador, pois o meditador é a
meditação. Se não existe meditação, então você é como um homem cego num mundo cheio de
beleza, de luz c de cor.
Caminhe pela praia e deixe essa qualidade meditativa vir a você. Se ela não vier, não a
busque. O que se busca se tornará a memória do que foi e, o que foi, é a morte do que é. Ou, ao
caminhar pelas colinas, deixe que tudo lhe fale da beleza e da dor da vida, de modo que você
desperte para o seu próprio sofrimento e o seu terminar. A meditação é a raiz, a planta, a flor e o
fruto. São as palavras que separam o fruto, a flor, a planta e a raiz. Nessa separação, a ação não cria
bondade; virtude é a percepção total.
Não se pode encontrar deus; não há caminho para ele.
O homem inventou muitos caminhos, muitas religiões, muitas crenças, salvadores e
instrutores, que ele pensa que o ajudarão a encontrar a felicidade duradoura. O lamentável da busca é
que ela conduz a uma certa fantasia mental, uma certa visão que a mente projetou e mediu pelas
coisas conhecidas.
O amor que ele busca é destruído por sua maneira de vida. Não se pode ter uma arma em
urna mão e deus na outra. Deus apenas é um símbolo, uma palavra que, cora efeito, perdeu sua
significação, porque as igrejas e os lugares de devoção a destruíram. Naturalmente, se você não
acredita em deus, você é igual ao crente; ambos sofrem e passam pelo sofrimento de urna vida curta
e vã; e as amarguras de cada dia tornam a vida uma coisa sem significação.
A realidade não se encontra no fim da corrente do pensamento, e o coração vazio se enche
com as palavras do pensamento. Tornamo-nos muito espertos, inventando novas filosofias, e depois
existe a amargura do fracasso delas. Inventamos teorias de como alcançar a realidade final, e o
devoto vai ao templo e se perde no meio das imaginações de sua própria mente. O monge e o santo
não encontram aquela realidade, porque ambos pertencem a uma tradição, a uma cultura que os
aceita como santos e monges.
Meditação não é a repetição da palavra, nem o experimentar de uma visão, nem o cultivo do
silêncio. A conta do rosário e a palavra podem de fato aquietar a mente tagarela, mas isso é uma
forma de auto-hipnose. Você poderia igualmente tomar uma droga.
Meditação não significa envolver-se num padrão de pensamento, no encantamento do prazer.
A meditação não tem começo e, portanto, não tem fim. Se você diz: "começarei hoje a controlar os
meus pensamentos, sentando tranqüilamente em postura meditativa, respirando ritmadamente" -
nesse caso você é apanhado pelos artifícios com os quais uma pessoa engana a si própria. Meditação
não é uma questão de estar absorvido em alguma idéia ou imagem grandiosa: isso só dá urna
aquietação momentânea, como uma criança absorvida por um brinquedo fica quieta por um certo
tempo.
Mas, tão logo o brinquedo deixa de ser interessante, recomeçam a inquietação e as
travessuras. Meditação não é seguir um caminho invisível, que conduz a uma bem-aventurança
imaginária. A mente meditativa está vendo - observando, escutando, sem a palavra, sem comentário,
sem opinião -, atenta ao movimento da vida em todas as suas relações, do começo ao fim do dia. E a
noite, quando todo o organismo está em repouso, a mente meditativa não tem sonhos, porque esteve
desperta todo o dia. Só os indolentes tem sonhos; só os semi-adormecidos é que precisam ser
advertidos dos seus próprios estados. Mas enquanto a mente vê, escuta o movimento da vida - o
externo e o interno -, a essa mente vem um silêncio não construído pelo pensamento.
Não é um silêncio que o observador possa experimentar. Se ele o experimenta e reconhece,
isso já não é mais silêncio. O silêncio da mente meditativa não se encontra entre os limites do
reconhecimento, porque é um silêncio sem fronteiras. Existe apenas silêncio - no qual cessa o espaço
da divisão.
Meditação é a revelação do novo!
(a presença do sempre vivo movimento da eternidade, sem mácula do passado!)
O novo está além e acima do passado, repetitivo - e a meditação é o fim dessa repetição. A
morte que a meditação traz é a imortalidade do novo. O novo não se acha na área do pensamento, e a
meditação é o silêncio do pensamento.
21
Meditação não é uma conquista, nem é o capturar de uma visão, nem excitação da sensação.
É como o rio, que não é para ser domado, correndo rapidamente e transbordando suas margens. É
música sem som; não pode ser domesticada nem utilizada.
É o silêncio no qual o observador deixou de existir desde o começo.
O silêncio tem muitas qualidades!
Há o silêncio entre dois barulhos, o silêncio entre duas notas e o silêncio que se estende no
intervalo entre dois pensamentos. Há aquele silêncio peculiar, sereno, penetrante, que chega com o
anoitecer no campo; há o silêncio por entre o qual se ouve o latido de um cão ao longe ou o apito de
um trem a galgar um aclive forte; o silêncio em uma casa quando todos foram dormir, e sua peculiar
intensidade quando você desperta no meio da noite e ouve a coruja piando no vale; e existe aquele
silencio antes da resposta do companheiro ela coruja. Há o silêncio da casa velha e abandonada, e o
silêncio de uma montanha; o silêncio entre dois seres humanos quando viram a mesma coisa,
sentiram a mesma coisa e agiram.
Se você se dispõe a meditar, não será meditação.
Se você se dispõe a ser bom, a bondade jamais florescerá. Se você cultiva a humildade, ela
deixa de existir. A meditação é como a brisa, que entra quando deixamos a janela aberta; mas se,
deliberadamente, a conservarmos aberta, e deliberadamente a convidamos para entrar, ela nunca
aparecerá. A meditação não é um caminho do pensamento, porque o pensamento é astuto, com
infinitas possibilidades de enganar a si próprio, e, assim, ele se perde da meditação.
Como o amor, a meditação não pode ser buscada!
O pensamento não pode conceber nem formular para si mesmo a natureza do espaço (onde
ele inexista, energia, vida pura atemporal e real). Seja lá o que ele formule, tem em si mesmo a
limitação de suas próprias fronteiras. Não é o espaço onde ocorre a meditação. O pensamento tem
sempre um horizonte. A mente meditativa não tem horizonte. A mente não pode passar do limitado
ao imenso, nem pode transformar o limitado em ilimitado.
Um tem que cessar para que o outro exista!
Meditação é o abrir a porta para uma vastidão que não se pode imaginar ou especular a
respeito.
O pensamento é o centro em torno do qual existe o espaço da idéia, e esse espaço pode ser
expandido através de novas idéias. Mas essa expansão por qualquer forma de estimulação não é a
vastidão na qual não existe centro. A meditação é o entendimento desse centro e assim, vai além
dele. O silencio e a vastidão vão juntos. A imensidão do silencio é a imensidão da mente em que não
existe um centro. A percepção desse espaço e silencio não é do pensamento. O pensamento só pode
perceber sua própria projeção, e o reconhecimento disso é a sua própria fronteira.
A meditação é um trabalho árduo!
Exige a disciplina em sua forma mais elevada - não conformismo, não imitação, não
obediência -, a disciplina oriunda da percepção constante, não só das coisas que nos cercam,
externamente, mas também interiormente. Assim, a meditação não é uma atividade de isolamento,
mas, sim, ação na vida diária, que exige cooperação, sensibilidade e inteligência. Se não se lançam
as bases de uma vida íntegra, a meditação se torna uma fuga e, portanto, completamente sem valor.
Uma vida íntegra não é o seguir da moralidade social, mas a libertação da inveja, da avidez e da
busca de poder - tudo que gera inimizade.
A libertação dessas coisas não vem através da ação da vontade, mas, sim, ao serem
percebidas no autoconhecimento. Sem conhecer as atividades do eu, a meditação se torna excitação
dos sentidos e, por conseguinte, muito pouco significativa.
Krishnamurti - págs. 9/44 do livro “A ÚNICA REVOLUÇÃO” Ed. Terra Sem Caminho
– 2001

MENTE RELIGIOSA
Nesta tarde desejo falar a respeito da mente religiosa. Mas, antes de começar, cumpre
assinalar, pois considero isso importante — a necessidade da negação do pensamento. Nós nunca
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negamos, só sabemos dizer “sim”. Aceitamos as coisas segundo as nossas tendências e
idiossincrasias. Quando negamos, essa negação é uma reação e, por conseguinte, não é negação
nenhuma.
Desejo fazer algumas considerações sobre a negação, pois importa compreender isso para nos
habilitarmos a investigar e compreender, por nós mesmos, o que é a mente religiosa. Nós nunca
negamos. Se vos tendes observado com atenção e seriedade, tereis visto que sempre encontramos
um caminho fácil, sempre aceitamos a solução mais fácil. Aceitamos a tradição e varias
influências culturais, econômicas e sociais. Nunca reagimos a elas; ou, se o fazemos, reagimos pela
força e nunca com boa-vontade e compreensão. Por conseguinte, nossa negação é sempre eivada de
medo. Ela sempre se produz mediante uma dada forma de aceitação, a qual nos oferece uma
esperança. Nunca é uma negação em que não se sabe o que acontecerá; é uma negação com
aceitação de um futuro bem regulado e ordenado.
Escutai o que estou dizendo, porquanto, quando falarmos a respeito da mente religiosa,
iremos negar toda a estrutura da religião, tal como a conhecemos, negá-la totalmente porque é de
todo falsa, porque nenhuma significação tem. E, para compreenderdes o que iremos dizer mais
adiante, deveis, se me permitis salientá-lo, compreender profundamente esse ato de negação.
Podeis ser forçados a negar; certas circunstâncias podem obrigar -vos ou compelir-vos a dizer
“não”. Circunstâncias tais como falta de dinheiro, uma tribulação qualquer, podem forçar-vos a dizer
“não”. Mas o dizer “não”, com clareza, sem motivo algum, sem nenhum desejo de recompensa ou
medo de punição; dizer “não” deliberadamente, a algo a que destes vossa atenção completamente,
incondicionalmente; dizer “não”, depois de terdes pensado no problema do princípio ao fim,
seriamente — isso é questão muito diferente. Dizer “não” seriamente significa examinar um
problema até o fim, não romanticamente, não emocionalmente, não de acordo com vossa
particular idiossincrasia de vaidade, de prazer ou desejo, examiná-lo até o fim, pondo de parte
nossas fantasias pessoais, vossos mitos, gostos e desgostos. “Ir até o fim” de um pensamento, de
uma idéia, de um sentimento é ser sério.
Desejo nesta tarde examinar a questão da religião, porque, a meu ver, se pudermos sair deste
pavilhão com uma mente clara, forte, religiosa, estaremos aptos a resolver os nossos problemas.
Religião é algo que inclui tudo, nada exclui. A mente religiosa não tem nacionalidade, nem
provincianismo. Não pertence a nenhum grupo organizado. Não é o resultado de dez mil ou dois
mil anos de propaganda. Nenhum dogma tem, nenhuma crença. Ë uma mente que se move de fato
para fato; mente que compreende o pensamento em sua totalidade — não apenas o pensamento
óbvio, superficial, o pensamento “educado”, mas também o pensamento “não educado”, o
pensamento e os motivos inconscientes e profundos. Quando a mente investiga a totalidade de
alguma coisa, quando, por meio dessa investigação, reconhecer o que é falso, e o nega porque é
falso, então essa total negação produz uma mente de nova qualidade, uma mente religiosa,
revolucionária. Mas a religião, para a maioria de nós, é não só a mera palavra, o símbolo, senão
também o resultado de nosso condicionamento. Vós sois cristãos porque desde pequenino vos
dizem que sois cristãos e vos inculcam todas as superstições, crenças, dogmas e tradições do
cristianismo; e todos vós aceitastes o que vos foi ensinado, O mesmo se pode dizer do muçulmano,
do hindu, etc. Assim como o comunista aceita, desde pequeno, a não existência de Deus, assim
também vós aceitais a existência de Deus.
Não há muita diferença entre vós e aquele que nega Deus; pois o que ambos pensais
emana de uma mente condicionada. Notai, por favor, que não vos estou atacando; portanto, não ha
necessidade de vos defenderdes, de resistirdes. Nós estamos tratando de fatos; e seria completa falta
de sensatez resistir a um fato, isso nenhuma significação teria. O mundo se encontra num caos de tal
ordem que, mesmo que deliberadamente empreendêsseis torná-lo ainda mais caótico, não o conse-
guiremos nem com a ajuda dos políticos. E é necessária urna mente bem penetrante, clara, decidida,
sadia, para resolver essas condições caóticas. Creio que uma mente dessas só virá à existência
mediante o percebimento religioso.
Tende a bondade de acompanhar as operações de vossa própria mente — não a
palavra, não o orador, com ele concordando ou dele discordando. Se observardes o vosso
próprio condicionamento — não porque eu vos mando fazê-lo, mas porque ele é um fato — se
olhardes esse fato, esse condicionamento, podeis então tratar de dissolvê-lo. Mas, em primeiro lugar,
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deveis estar cônscio do fato de que vossa mente está condicionada. Quando ela diz que é cristã, está
condicionada, moldada pelo passado, por uma secular cultura; ela resulta de um processo histórico-
mitológico. As religiões que professais originam-se das experiências de outras pessoas. Vossa
religião não constitui experiência pessoal, direta; ela é o que aprendestes em algum livro, com
algum instrutor, ou algum filósofo; não é coisa que vós mesmo experimentais. Só quando vossa
mente está toda descondicionada, podeis experimentar ou descobrir se há algo real ou não.
Mas se, antes de descondicionar a vossa mente, vos dizeis religioso, vos dizeis hinduísta,
muçulmano, budista ou cristão — isso nada significa, absolutamente. É puro “romantismo”,
explorado pelo líder religioso, por um grupo organizado, político ou religioso, que têm nisso
seu próprio interesse. Tudo isso são fatos, quer gosteis, quer não gosteis. Apenas estou
descrevendo tais fatos. Essas divisões em grupos religiosos que crêem nisto e naquilo, que aceitam
este dogma e negam aquele, andando de prisão em prisão, de templo em templo, praticando
intermináveis ritos — nada disso constitui a mente religiosa; trata-se, tão só, de uma mente
tradicional, dominada pelo medo. E, por certo, a mente com temor nunca descobrirá se há ou
se não há algo além da palavra, além dos “limites mentais”. Escutai não só o que o orador está
dizendo, mas também as operações de vossa própria mente. Ao empregar a palavra “escutai”, não
vos estou dando uma ordem. Emprego-a com um significado especial. Escutar é uma arte, porque
nós nunca escutamos. Escutamos indiferentemente, com nossos pensamentos noutra parte.
Escutamos com condenação ou comparação. Escutamos com certos gostos e aversões. Escutamos
para concordar ou discordar. Escutamos, comparando o que ouvimos com o que já sabemos. Por
isso, há sempre distração; jamais existe o ato de escutar. E valeria bem a pena escutardes sem
nenhuma dessas distrações do pensamento, de modo que esse próprio ato de escutar constitua uma
quebra daquela condição.
Quando me utilizo à palavra “religião”, acodem-vos à mente imagens de toda espécie, todas
as espécies de símbolos. O cristão tem seus próprios símbolos, dogmas e crença. O hinduísta, o
muçulmano, todos aqueles que se dizem religiosos têm sua maneira peculiar de raciocinar, conforme
sua idiossincrasia, sua tradição; por essa razão, nunca podem raciocinar claramente sobre esta
questão. Eles são, em primeiro lugar, hinduístas ou muçulmanos; e depois é que começam a
investigar. Assim, para se descobrir se há ou se não há alguma coisa transcendente ao
pensamento, algo não mensurável pela mente, esta deve, primeiro, estar livre. Outra
peculiaridade das pessoas religiosas é o serem totalmente ilógicas. Psicologicamente, carecem
de sanidade. Aceitam sem investigar: e sua investigação é motivada pelo medo, pelo desejo de
segurança, que lhes impede o pensar: tornam-se “românticas”, porque tal lhes apraz.
Entregam-se a devoções, pois isso lhes dá um sentimento de alegria, de felicidade. Mas essa não é a
mente religiosa; é uma mente cheia de fantasias, uma mente sem realidade.
Se observardes vossa própria mente, vereis como está ela abarrotada e sobrecarregada
de crença; e considerais necessária a crença. Utilizais a crença como uma hipótese — e isso é
puro contra-senso. Quando um homem investiga, não começa com uma hipótese; sua mente é livre.
Não se sente atraído por nenhum dogma, não está dominado por nenhum temor. Primeiro nega
tudo isso e, depois, começa a investigar. Mas vós nunca negais, por várias razões. Nunca
negais, porque isso seria “desrespeitável” numa sociedade respeitável — embora, na
verdade, essa sociedade esteja apodrecida. Não negais, por medo de perder vosso emprego ou
posição. Não negais, por causa de vossa família: tendes de casar vossa filha, vosso filho, tendes de
fazer isto ou aquilo. Por conseguinte, consciente ou inconscientemente, estais sujeitos ao medo, ao
dogma, a tradição em que fostes educado. Isso também é um fato: não é fantasia minha. É um fato
psicológico de todos os dias.
Assim, a mente que está sujeita a uma crença, a um dogma, por mais antigo ou por mais
moderno que seja, essa mente é incapaz de produzir um mundo de ordem, um mundo sadio. Ela
é incapaz de estar livre do sofrimento, do conflito. Por certo, só a mente livre de conflito, livre
de problemas. livre de sofrimento, está apta a investigar e descobrir. E vós tendes de descobrir,
porquanto esta é a única saída de toda a aflição e confusão que criamos neste mundo: a saída não se
encontra ingressando-se em grupos incontáveis, ou retornando-se à antiga tradição, já morta,
ou seguindo-se um novo guia ou líder. Não sei se não tendes observado que, quando seguis
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alguém, destruístes vosso próprio pensar, perdestes vossa própria independência, perdestes vossa
liberdade, não só exteriormente, mas também, e principalmente, interiormente.
Assim, sempre que há o seguir, sempre que há o líder, em matéria realmente espiritual, tem
de haver necessariamente confusão, porque existe, aí, uma contradição psicológica entre nossos
profundos impulsos e compulsões e as exigências do líder e bem assim nossas próprias exigências,
relativas ao que pensamos que devemos fazer; e essa contradição leva a conflito; e onde há conflito
há esforço; e, havendo esforço, há deformação. A mente religiosa não tem conflito. Ela não segue
ninguém.
A mente religiosa não segue nenhuma autoridade. Autoridade implica limitação,
autoridade implica ajustamento. E há ajustamento porque desejais êxito, desejais realizar algo; e,
por conseguinte, há medo. Se não dissolverdes o medo completamente, comum podereis realizar a
investigação, como podereis empreender o descobrimento? Essas não são perguntas retóricas. Se
tiver medo, vejo-me obrigado a buscar conforto, abrigo, segurança, no que quer que seja,
porque o temor ordena; mas a sanidade e a clareza não ordenam. O temor ordena o
ajustamento, ordena-me imitar, ordena-me seguir alguém, na esperança de encontrar
conforto. A mente religiosa não obedece à autoridade de espécie alguma; e isso nos é muito
difícil de aceitar, porque fomos educados sob a autoridade. O Gita, os Upanishads, a Bíblia, o
Corão e todos os demais livros chamados “sagrados” tomaram o lugar de nosso próprio pensar,
de nosso próprio sofrer; dão-nos conforto na ilusão; não são, afinal, reais. Vós fazeis deles
realidades, porque neles, nas palavras mortas de outros, encontrais conforto, na autoridade de
outrem encontrais luz. Podeis ver quanto isso é realmente absurdo, se o examinardes; e, no
entanto, sois tidos por pessoas educadas, sãs, racionais!
No tocante a questões religiosas, somos completamente irracionais, insanos e tudo isso
constitui as muralhas de nosso condicionamento. Aí tendes mais um fato, um inegável fato
psicológico. Vós freqüentais o templo, vós ledes o Gita, a Bíblia, o Corão e murmurais um
amontoado de palavras que perderam toda a sua significação. Isso não constitui, de modo
nenhum, uma mente religiosa. Esse ler, esse repetir torna a mente embotada, insensível. Há
contradição entre o viver diário e aquilo que pensamos ser real. Não há o viver de uma vida
religiosa. Divorciastes a vida da religião, divorciastes a ética da religião. E vivendo nessa dualidade,
nessa contradição, nessa divisão, a mente está criando o mundo atual; traz cada vez mais caos ao
mundo. Estamos vendo tudo isso. Sempre que há confusão, sempre que há aflição, as pessoas se
voltam para a autoridade, para a tirania não só politicamente, mas também religiosamente. Gurus,
líderes, idéias, crenças, dogmas multiplicam-se e florescem, porque nunca nos penetramos a
fundo para descobrirmos o que é verdadeiro.
O começo da mente religiosa é o autoconhecimento — não o conhecimento do Ser Supremo;
isso é puro contra-senso. Como pode uma mente medíocre, estreita, nacionalista, gerada pelo medo,
pela compulsão, pela imitação, pela autoridade — como pode essa mente descobrir o que é o Ser
Supremo? A busca do Ser Supremo é uma fuga; é puro e autêntico “romantismo”. O fato é: vós
tendes, primeiramente, de compreender a vós mesmo. Como pode meu pensamento resultante do
medo investigar? Como pode um pensamento oriundo da contradição, do sofrimento, da dor, da
ambição, da inveja, pode pesquisar o “impesquisável”? Não pode, obviamente,mas é isso o que
sempre estamos fazendo.
Assim, o começardes a compreender-vos tais como sois é o começo da sabedoria. E,
também, o começo da meditação é perceber, sem deformação, o fato representado pelo que sois e
não pelo que pensais que deverieis ser. Quando pensais como geralmente fazeis — que sois o
Supremo Ser, que em vós existe uma entidade espiritual, essa idéia é inteiramente o resultado de
vosso condicionamento passado. Deveis estar cônscio do fato e não aceitar a idéia de que sois o
Supremo Ser. Essa idéia nenhuma significação tem. O verdadeiramente significativo é o fato
representado por aquilo que sois cada dia, e não aquilo que deveríeis ser. Outrossim, a idéia, a
ideação, o ideal é um “artigo” de mitologia; nada significa. O fato é que tem significação. O fato de
que sois invejoso tem importância, e não a idéia de que deveríeis achar-vos num estado de “não
inveja”.
Outra peculiaridade da mente religiosa é o estar livre de idéias, livre de ideais. Todos vós sois
idealistas isto é, sempre vos preocupais com o que deveríeis ser e não com o que sois. Mas a
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mente religiosa só está interessada no fato, e se move com o fato. O cientista se interessa pelo fato.
Ele investiga a matéria, investiga a vida, sob a forma de matéria, em seu laboratório. Investiga-a sob
o seu microscópio. Ele não tem medo; move-se de fato para fato e desenvolve o seu saber; e esse
saber ajuda-o a levar mais longe suas investigações, sempre num determinado plano, limitado
e restrito, que é a ciência.
Mas nós estamos interessados na totalidade da vida, e não na ciência apenas; não estamos
interessados apenas em edificações, mas também no ódio, na ambição, nas disputas, naquilo que
somos — enfim, na totalidade da vida. A ciência não abarca a totalidade da vida, mas a mente
religiosa abarca-a. A mente religiosa não está interessada na parcela. Ela se interessa pelo
inteiro desenvolvimento do homem; está interessada na entidade total do homem —isto é, o
movimento exterior da vida é o mesmo movimento interior. O movimento exterior é como a maré
vazante; e o movimento interior e como a maré enchente; mas é a mesma maré que vai e veio. — Se
os dois movimentos — o interior e o exterior — estão divorciados, estão separados, tendes então
conflito, tendes aflição.
As pessoas chamadas “religiosas” dividiram a vida em “exterior e interior”. Não a olham
como um processo unitário. Evitando o “exterior” recolhendo-se a um mosteiro ou vestindo o manto
do sannyasi. Negam o mundo exterior; mas não negam o mundo da tradição, o do
conhecimento, o de seu condicionamento. Separam os dois mundos e, por isso, há contradição.
Mas a mente religiosa não os separa. Para a mente religiosa o movimento exterior da vida e o
movimento interior da vida formam um movimento unitário, como o movimento da maré que vai e
volta.
Tende a bondade de escutar tudo isso, sem aceitar nem negar. Eu não vos estou atacando;
portanto, não tendes necessidade de procurar refúgio ou de resistir. Tampouco estou fazendo
propaganda. Estou apenas apontando algo. Podeis aceitá-lo, se quiserdes. Podeis vê-lo, ou rejeitá-lo;
mas antes, ainda que intelectual ou verbalmente olhai-o. Podeis não desejar percorrer todo o
caminho até o fim. Mas ao menos, podeis olhá-lo verbalmente, intelectualmente, investigá-lo; e, com
essa compreensão intelectual, que absolutamente não é a compreensão completa, talvez possais ver a
sua inteira significação.
O conhecimento de vós mesmo é o início da meditação. O conhecerdes a vós mesmo,
psicologicamente, tal como sois, é o começo da mente religiosa. Mas não podeis conhecer-vos se
negais o que vedes, se procurais interpretar o que vedes. Segui isto, por favor. Se negais
psicologicamente o que vedes em vós mesmo, ou se desejais transformá-lo noutra coisa, neste caso
não estais compreendendo o fato de o que é. Se sois vaidoso e procurais modificar essa qualidade
com o cultivo da humildade, há então contradição. Se sois vaidoso e procurais cultivar o ideal da
humildade, há contradição entre as duas coisas; e essa contradição embota a mente, produz conflito.
Tendes de olhar o fato de que sois vaidoso; tendes de vê-lo em sua inteireza, sem introduzirdes um
ideal contraditório. Mas, para verdes que sois vaidoso, não podeis dizer “Não devo ser vaidoso”. Isso
é bastante simples e óbvio, porque, para poderdes ver uma coisa, deveis aplicar-lhe vossa total
atenção. Ao dizerdes que não deveis ser vaidoso, vossa mente se afastou do fato, e esse afastamento
do fato cria um problema; não é o fato que o cria. O fato jamais cria problema. Só o evitar o fato, o
fugir ao fato, o tentar modificá-lo, o tentar ajustá-lo ao ideal isso é que cria o problema; o fato nunca
o cria.
Assim, quando vos observardes com toda a clareza, quando estiverdes cônscio, sem escolha,
de cada pensamento, de cada sentimento, descobrireis então algo, ou seja: que há um pensador e há o
pensamento; que há um experimentador, um observador, e há a experiência, a coisa observada. Isso
é um fato, não? Há um censor, uma entidade que julga, que avalia, que pensa, que observa; e há a
coisa observada.
Por favor, investigai vossa própria mente; não estais aqui para ouvir minhas palavras. As
palavras nada significam. Enquanto falo, observai vossa própria mente a funcionar. Assim, ir-vos-
eis daqui com a mente clara, penetrante e sã.
Há, pois, pensador e pensamento. Há divisão entre pensador e pensamento, sendo que o
pensador procura dominar o pensamento, alterar o pensamento, modificar o pensamento,
controlá-lo, forçá-lo, procura imitar, etc. A divisão entre pensador e pensamento cria conflito,
porque o pensador é sempre o censor, a entidade que julga, que avalia. Essa entidade é uma
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entidade condicionada, porquanto se tornou existente como uma reação ao pensamento, o
qual, por sua vez, é meramente reação do condicionamento, da memória. Estais
compreendendo, senhores? Isso é uma coisa muito simples e que vós mesmos podeis descobrir.
O pensamento é a reação da memória. Pergunto-vos uma coisa, e vós respondeis de acordo
com vossa memória. O intervalo entre a pergunta e a resposta é tempo; e durante esse tempo refletis
e, depois, dais a resposta. Se estais familiarizado com a resposta, esta é imediata; e se a pergunta é
muito complicada, precisais de mais tempo, de uma demora, de uma distância maior entre a resposta
e a pergunta. Durante essa demora, vossa memória está reagindo e, depois, respondeis. O
pensamento, pois, é a “resposta” da memória, da associação com o passado. Há, pois, pensamento e
há pensador; o pensador é condicionado, e seu pensamento também se torna condicionado.
Quando há separação entre o pensador e o pensamento, há contradição; e, enquanto houver
essa separação entre o pensador e o pensamento, haverá infindável conflito. Pode-se afastar essa
contradição, esse conflito, significando isso que não há pensador como entidade central atuante
porém apenas pensamento? Esta é uma questão muito complexa. Deveis descobrir por vós mesmo
tudo o que este problema implica.
Pode-se ver que, quando há separação entre o pensador e o pensamento, tem de haver
contradição. E contradição implica conflito; e o conflito embota a mente, torna-a estúpida,
insensível. O conflito, de qualquer espécie que seja — conflito entre vossa esposa e vós, entre vós e
a sociedade, entre vós e vosso patrão, entre vós e outro qualquer embota a mente. Se deseja
compreender o conflito central, é necessário investigar esta questão (e não simplesmente aceitá-la)
— se há, primeiro, o pensador e, depois, o pensamento. Se dizeis que assim é, estais de volta à vossa
tradição, ao vosso condicionamento. Tendes de investigar, pelo vosso pensamento, como vossa
memória reage. Enquanto essa memória — que é condicionada por cada movimento de pensamento,
cada influência reage, tem de haver conflito e aflição.
Se examinardes isso bem profundamente, descobrireis por vós mesmo que a ação baseada
numa idéia, que é pensamento, gera discórdia, porque quereis moldar a ação de acordo com a idéia.
Descobrireis, pois, depois de vos terdes penetrado a fundo, que ação não e idéia. Há ação sem
motivo. E só a mente religiosa, que olhou para si própria, que profundamente se investigou, só essa
mente pode atuar sem idéia, sem motivo, porquanto ela não tem nenhum centro, nenhuma entidade
que, como pensador, dirige a ação. Essa ação não é caótica.
Assim, o autoconhecimento, o aprenderdes acerca de vós mesmo todos os dias, produz
— psicologicamente, interiormente — uma mente nova — porque negastes a mente velha.
Com o autoconhecimento, negastes por inteiro o vosso condicionamento. O condicionamento
mental só pode ser de todo negado quando a mente está cônscia de suas próprias operações —
como funciona, como pensa, o que diz, quais são os seus motivos.
Há, aqui, outro fator para considerar. Pensamos que o libertar a mente do
condicionamento é um processo gradual, que requer tempo. Por favor, segui o que estou
dizendo. Pensamos que serão precisos muitos dias ou muitos anos para descondicionar nossa
mente condicionada, significando isso que teremos de fazê-lo gradualmente, dia por dia. Que
implica isso? Implica, por certo, aquisição de conhecimento a fim de dissipar o
condicionamento — em vez de aprender, adquirir. A mente que está adquirindo jamais
aprende. Mas a mente que se serve do conhecimento a fim de “chegar”, de ter êxito, de
alcançar um sentimento de libertação — essa mente necessita do tempo. Essa mente diz:
“Preciso de tempo para libertar-me de meu condicionamento’ — entendendo-se com isso que
ela vai adquirir conhecimentos e, à medida que se ampliarem os seus conhecimentos, ela se
tornará cada vez mais livre. Isso é de todo em todo falso.
Através do tempo, pela multiplicação de muitos “amanhãs”, não há libertação. Só há
libertação na negação da coisa que se vê diretamente. A pessoa reage prontamente ao ver uma
serpente venenosa; não há pensamento, porém ação imediata. Essa ação é resultado do medo e do
conhecimento que adquiriu a respeito da serpente. Essa aquisição exige tempo. Há, pois, um modo
de perceber mediante o conhecimento, que requer tempo. Há também uma qualidade de
percebimento que não requer tempo. Eu estou falando sobre a mente que vê “fora do tempo”, que vê
sem pensamento, pois a mente resulta de muitos dias passados, a mente origina-se do tempo. Isso
também é um fato. Não estamos tratando de uma suposição, de uma teoria. Vossa mente deriva de
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numerosos dias passados, vossa mente é o resultado do passado. E, se não estamos totalmente livres
do passado, não é possível termos uma mente nova, uma mente religiosa. Ora, o ver esse passado
totalmente, completamente, o vê-lo imediatamente, significa quebrar de pronto o passado.
Mas, não podeis quebrar incontinenti o passado se vossa mente está sob o controle do
conhecimento, que diz: “Acumularei conhecimentos gradualmente e, no fito, quebrarei o
condicionamento”. A mente deve ver o condicionamento imediatamente. Por exemplo, se vedes
quanto é absurdo o nacionalismo, se “vedes” o veneno do nacionalismo, se vedes isso e o
compreendeis completamente — e isso é possível, se prestais toda a vossa atenção então, no mesmo
instante em que o compreendeis, estais livre do nacionalismo; o nacionalismo nunca mais vos
interessará. Mas, nos não percebemos a natureza venenosa do nacionalismo porque ele é geralmente
sancionado, porque vos sentis reunidos em torno de uma bandeira - coisa muito absurda.
Tendes um sentimento de unidade, um sentimento de coesão em torno de nada, pois a
bandeira é meramente uma idéia, um símbolo, sem nenhuma realidade, que os políticos e outros
gostam de explorar. Mas, se virdes esse fato — e podeis vê-lo dando-lhe toda a vossa atenção. sem
procurar justificá-lo, dizendo que podeis perder vosso emprego, etc. — quando dais inteira atenção
ao fato do nacionalismo, ele se ira para sempre. Atenção é a total negação do passado, total
negação da separação entre o pensador e o pensamento.
A mente religiosa, pois, é aquela que não tem crença, que não tem dogma, que não tem
medo, que absolutamente não segue autoridade de espécie alguma. Ela é a luz de si própria.
Essa mente, porque é livre, pode ir muito longe. Mas essa liberdade tem de começar bem de
perto, isto é, ela se encontra em vós mesmo, no compreender-vos; podereis, assim, ir muito
longe.
Descobrireis então, por vós próprios, aquela extraordinária serenidade mental — que
não é uma idéia, porém um fato autêntico. A mente de todo tranqüila, sem distração alguma, — a
mente plácida e não a mente romântica — mas a mente que não foi gerada pelo conflito, ou pela
contradição, ou pela aflição - só ela pode estar completamente quieta e, por conseguinte, totalmente
viva, sensível; só essa mente pode receber o Imensurável.
Palestra de Krishnamurti - 4 de fevereiro de 1962 - Nova Deli- Índia - JCM

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti

FAMÍLIA, CASAMENTO, FILHOS; RELAÇÕES, “EU” E AMOR.


Pergunta: A família é o arcabouço do nosso amor e nossa avidez, do nosso egoísmo e nossa
divisão. Que lugar tem ela em nossa vida?
K.: - A vida é uma coisa viva, dinâmica, ativa, não podemos encerrá-la num arcabouço. São
os intelectuais que põem a vida num molde. Em primeiro lugar, temos o fato de nossas relações com
os outros, uma esposa, um marido ou um filho -as relações a que chamamos família.
Pois bem, que é isso a que chamamos família? Trata-se, obviamente, de uma relação de
intimidade, de comunhão.
Ora, em vossa família, em vossas relações com vossa esposa, vosso marido, há comunhão?
Relação significa comunhão sem temor, liberdade de mútua compreensão, de comunhão direta.
Estais em comunhão com vossa esposa? Talvez estejais, fisicamente, mas isso não é relação. Vós e
vossa esposa viveis em lados opostos de uma muralha de isolamento. Tendes os vossos alvos e
ambições próprias, e ela os seus. Ora, se existem relações reais entre duas pessoas, o que significa
que existe comunhão entre elas, o que isso implica é de extraordinária significação.Porque então não
há isolamento, há amor, e não responsabilidade ou dever. Um homem que ama, porém, não fala de
responsabilidade - ele ama. Por isso partilha com alguém a sua alegria, a sua tristeza, o seu dinheiro.
28
Então, senhores, não é isso o que está acontecendo? Em nossas famílias o que há é
isolamento, e não comunhão; logo, não há amor. Amor e sexo são duas coisas diferentes. Se
tivésseis interesse pelo próximo, se estivésseis em real comunhão com vossa esposa, com vosso
marido, o mundo não estaria nesta desgraça.
Como, então, quebrar esse isolamento? Para quebrarmos esse isolamento, precisamos estar
cônscios dele. Tomai nota da maneira como trata a vossa esposa, vosso marido, vossos filhos, notem
a insensibilidade, a brutalidade, as asserções tradicionais, a falsa educação. E por não saberdes amar
vossa esposa, vosso marido, não sabeis amar a Deus.
Pergunta: - O casamento é necessidade ou luxo?
K.: - Examinemos:
Por que nos casamos? Em primeiro lugar, por força da necessidade biológica, do impulso
sexual, que a sociedade legaliza. A sociedade deseja proteger a prole. Casamo-nos também por
exigência psicológica. Preciso de um companheiro ou companheira, alguém que eu possua, e
domine, e chame“meu” ou “minha”.
Aqui o sistema matrimonial faz da mulher uma escrava, para ser protegida, dominada,
governada, possuída. A mulher é uma coisa que se possui; assim como possuo bens, possuo minha
mulher. Possuo-a sexualmente e a domino exteriormente. Psicologicamente, a posse me dá conforto,
me dá segurança: minha propriedade, minha esposa, meus filhos.
Tratamos seres humanos como tratamos as coisas materiais, sem consideração. E vós bem
conheceis as coisas da vida, os horrores, as agonias, os sofrimentos dos que são casados e não se
amam. Como pode haver amor quando há instinto de posse?
Como, na maioria, vivemos tão concentrados, tão absortos em nossas atividades comerciais,
em ganhar dinheiro, como somos impiedosos no comércio e cruéis no mundo, como é possível ter
amor por alguém no lar? No entanto, é o que quereis fazer, e por isso não tendes amor.
O casamento também é uma forma de perpetuação do “eu”. Desejo continuidade, através dos
meus filhos. Por conseguinte, os filhos se tornam muito importantes, não por eles próprios, mas por
causa de minha continuidade - meu nome, minha classe, minha casta. Assim, para compreender
todos esses processos humanos, que é extremamente complexo e sutil, requer-se inteligência.
Inteligência é também amor, e não apenas intelecto; e não podemos ter amor se, por um lado,
procedemos cruelmente em nossos negócios, na vida cotidiana, e por outro lado procuramos ser
ternos, meigos e bondosos. Não podeis fazer as duas coisas.
Só quando há amor, compaixão - que é inteligência, a forma mais elevada de inteligência - é
que pode ser resolvido este problema. No momento em que nos considerarmos uns aos outros como
seres humanos, como indivíduos, não como algo para ser possuído, teremos então a possibilidade de
compreender e de transcender esse conflito existente entre dois cônjuges.
Pergunta.:- Não sois contrário ao matrimonio como instituição?
K.: A família é um processo de identificação particularista; e quando a sociedade está
baseada nessa idéia da família como uma unidade exclusiva, em oposição a outras, uma tal
sociedade há de produzir a violência.
Usamos a família como um meio de segurança para nós mesmos. Essa exclusão é chamada
“amor”, e nesse chamado estado de família ou de matrimônio existe realmente amor? Não estamos
considerando o ideal do que ela deveria ser, mas tal como a conhecemos.
Entendeis por “família” vossa esposa e vossos filhos. É uma unidade nessa unidade sois vós
quem tem importância - não a vossa esposa, nem os vossos filhos ou a sociedade, mas somente vós,
que estais em busca de segurança, de nome, de posição, de poder, tanto na família como fora dela.
Dominais as vossas esposa, e ela vos são subserviente; vós ganhais e gastais o dinheiro, ela é
vossa cozinheira e a progenitor dos vossos filhos. Criais, assim, a família, que é uma unidade
exclusiva. Por conseguinte não pode haver reforma do coletivo enquanto vós, como indivíduo,
fordes exclusivista e buscardes o auto-isolamento em cada uma de vossas ações, limitando o vosso
interesse a vós mesmos.
Ora, esse processo de exclusão não é, por certo; amor. O amor não é criação da mente. O
amor não é pessoal. O amor é algo que não pode ser compreendido enquanto existir o pensamento
que é exclusivista. O pensamento, que é a reação da mente, nunca pode compreender o que é amor; o
pensamento é invariavelmente exclusivista, separatista.
29
A família, como a conhecemos, é exclusivista, é um processo de engrandecimento do “eu”,
que é resultado do pensamento.
Dizemos que amamos a verdade, a esposa, o esposo, os filhos; mas essa palavra está rodeada
pelo fumo do ciúme, da inveja, da opressão, da dominação.
A solução reside, não na legislação, mas na vossa própria compreensão do problema; e o
problema só é compreendido, e, por conseguinte desaparece, quando há o verdadeiro amor. Quando
as coisas da mente não enchem o coração, a ambição individual não predomina, só então conhecereis
o amor.
Que tem o casamento a ver com isto? Fazeis do casamento um embaraço, em vez de um
auxílio; tende-o como um cativeiro. No fim de tudo ele é um processo de assimilação de experiência,
não um cativeiro que vos force. Sei que ele vos aprisiona na maioria dos casos, porque não sabeis
como utilizar, como assimilar a experiência dele. Tratai todos que vos rodeiam como amigos, por
intermédio de quem e com quem cresceis.
Pergunta:- Por que tem a mulher a propensão de se deixar dominar pelo homem?
K.: - Ora, quando o marido domina, a mulher gosta disso e considera-o afeição; e quando a
esposa governa o marido, ele também gosta disso. Porque? Denota isso que a dominação
proporciona um certo sentimento de maior proximidade, nas relações.
Temeis a indiferença por parte de vossa esposa ou de vosso marido.
E esse domínio dá um sentimento de relação, esse domínio gera o ciúme: se não me
dominais, é porque estais com os olhos noutra pessoa. Senhor, o homem que ama não é ciumento. O
ciúme é coisa do cérebro, mas o amor não pertence ao cérebro; e onde há amor não há domínio.
Quando amais alguém, não sois dominantes, sois parte dessa pessoa. Não há separação, mas
completa integração. É o cérebro que separa, e cria o problema da dominação.
Pergunta: - Qual ao os deveres de uma esposa?
K.: Neste país (índia), o marido é o patrão; ele é a lei, o senhor, porque economicamente
dominante, e é ele quem diz quais são os deveres de uma esposa. Podemos considerar o problema do
ponto de vista do marido ou da esposa.
Se considerarmos o problema da esposa, vemos que, porque não é livre, economicamente, a
sua educação é limitada; e a sociedade lhe impôs regras e modos de conduta estabelecidos por
homens. Portanto, ela aceita o que se convencionou chamar direitos do marido; e como este é quem
domina, por ser economicamente livre e ter capacidade para gastar dinheiro, quem dita a lei é ele.
Quando o marido exige os seus direitos e quer uma esposa “cumpridora de seus deveres, a
relação entre os dois não passa evidentemente de mero contrato mercantil”.
Enquanto as relações estiverem baseadas em contrato, em dinheiro, em posse, autoridade ou
dominação, elas serão, forçosamente, uma questão de direitos e deveres. É evidente a extrema
complexidade das relações, quando elas resultam de um contrato, em que se estipula o que é correto,
o que é incorreto e o que é o dever.
Mas não haverá uma outra maneira de considerar este problema? Isto é, quando há amor, não
há nenhum dever. Quando amais vossa esposa, vós lhe dais participação em tudo - na vossa
propriedade, nas vossas tribulações, vossas ansiedades e vossas alegrias. Não a dominais: não sois o
homem e ela a mulher, para ser usada e posta de parte, uma espécie de máquina procriadora.
Só o homem que não tem amor no coração fala em direitos e deveres, e neste país
direitos e deveres tomaram o lugar do amor. Vossa esposa não tem participação em vossa
responsabilidade, porque considera a mulher menos importante do que vós, como uma coisa para ser
guardada e usada sexualmente, segundo vossa conveniência, quando o apetite o exigir.
Sem amor, não percebo a utilidade de se ter filhos. Sem amor criamos filhos feios,
imaturos, incapazes de pensar; porque nunca se lhes deu afeição, porque só serviram de
brinquedo e de divertimento, e para conservar o vosso nome.
Para que venha a existir uma nova sociedade, uma nova civilização, não deve evidentemente
haver dominação nem por parte do homem nem por parte da mulher. A dominação existe em
virtude da pobreza interior.
Certamente, só o sentimento afetuoso, o calor do amor, pode implantar uma nova condição,
uma nova civilização. O cultivo do coração não é um processo da mente. A mente não pode cultivar
o coração; mas, quando é compreendido o processo da mente, surge então o amor.
30
Pergunta: O casamento é necessário para as mulheres?
K.: Não sei por que será mais necessário para as mulheres do que o é para os homens. Vamos
tentar compreender o problema do matrimônio, o qual implica relações de sexo, amor, camaradagem
e comunhão. Evidentemente, não havendo amor, torna-se o matrimônio uma ignomínia. Torna-se,
puramente, um meio de satisfação.
E só existe amor quando o ego está ausente. Ao considerar o matrimônio, se ele é
necessário ou não, é preciso primeiro compreender o amor. O amor é casto, e sem amor não podeis
ser castos; pode um indivíduo ser celibatário, mas isso não significa que seja casto, puro, se não
houver amor.
E, visto como à maioria das mulheres é negado o amor, buscam elas o preenchimento nas
coisas ou nos filhos. Destarte, as coisas e os filhos assumem toda a importância para as mulheres,
enquanto o homem busca o preenchimento no trabalho e nas atividades. E por esta razão dou valor
às coisas, às relações, às idéias. Atribui-lhes um valor superior ao que tem.
Podeis ter filhos, mas não existe amor, porque vós e vossa esposa estais isolados. Estais
escondidos atrás de uma parede por vos mesmos edificada, e para haver essa comunhão é necessário
que haja o amor. Quando há amor, há castidade, pureza, incorruptibilidade.
É só para os poucos que amam, que as relações matrimoniais têm significado; então, elas são
inquebrantáveis, não representam mero hábito ou conveniência, nem estão baseadas na necessidade
biológica, na necessidade sexual.
Nesse amor, que é incondicional, as identidades se fundem. Para que haja a fusão de duas
entidades separadas, tendes de conhecer a vós mesmo, e ela a si mesma. Isso significa amar.
Só há castidade quando há amor. Quando existe o amor, não existe o problema do sexo;
senhor, isso significa que tereis de submeter vosso coração e vossa mente a uma intensa busca,
da qual resultará uma transformação em vosso interior. O amor é casto; e quando existe o amor
então o sexo já não é um problema e tem significação inteiramente diversa.
Krishnamurti

Nossa cotidiana existência


Antes de começarmos a falar sobre assuntos sérios, precisamos estabelecer a correta relação
entre este orador e vós.
Com as palavras "correta relação", refiro-me à comunhão. Entre nós deve estabelecer-se essa
comunhão. Releva não só compreender o significado das palavras, mas também descobrir o que
atrás delas se esconde, perceber que a palavra não é a coisa.
A palavra, o símbolo, não é a realidade.
Temos de penetrá-la e ultrapassá-la a fim de descobrir, por nós mesmos, a realidade, o fato.
Só se torna possível à comunhão quando ambas partes não estão apenas compreendendo o
significado da palavra, mas também percebendo o que ela está indicando, a substancia atrás dela
existente.
Vamos falar a respeito de nossa existência diária.
A menos que estabeleçamos para nós mesmos uma correta maneira de viver, em meio ao
atual estado de caos e confusão, não importa o que estejamos buscando, nossos intentos serão
frustrados; porque a realidade se encontra em nossa vida de cada dia, e não numa certa, coisa
misteriosa que supomos existir além do fato de nossa existência diária.
Se não compreendemos o inteiro significado de nossa vida diária, com todos os seus
conflitos, e angústias, e confusão, a terrível desordem em que estamos mergulhados, se não
compreendemos tudo isso, claramente, todos os esforços que fizermos para "ir além" serão meras
fugas; e quanto mais fugirmos da realidade, tanto mais confusa e caótica ela se tornará.
O que nesta tarde vamos considerar, juntos, não é algo que se acha "além", porém, sim, como
compreender o presente e se há possibilidade de ficarmos totalmente livres de nossos sofrimentos,
aflições, confusão e angustia.
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Depois de esclarecermos esse ponto - se o conseguirmos – estaremos então, talvez, aptos a
investigar se existe, ou não, uma realidade que não seja apenas uma idéia, uma crença, um conceito.
O que vamos fazer juntos é examinar a nossa vida de cada dia.
Para examinar, para olhar e perceber claramente as coisas precisamos ser livres.
É esse o primeiro requisito, se desejamos seriamente examinar o presente estado de nossa
existência e de nossa conduta.
Essa liberdade é necessária ao exame e à percepção.
Devemos estar livres para escutar o que se nos diz, e devemos estar livres para olhar. Do
contrário, nada percebemos. O que escutarmos será, sem significação, se não formos capazes de
escutar totalmente, completamente.
Para investigar, examinar, sondar, penetrar, necessita-se de liberdade para escutar e liberdade
para perceber. Todos nós desejamos paz, pois percebemos que, sem paz, não é possível o
florescimento da bondade.
Nenhum movimento pode haver, não oriundo da confusão, da nossa própria aflição.
Para fruirmos a paz, deve haver liberdade.
É a respeito destas duas coisas que vamos palestrar: a paz e a liberdade.
Dizendo "palestrar", entendo exatamente isto. Não ides ficar aqui apenas a escutar o que se
está dizendo. Vamos empreender juntos uma viagem, vamos participar, comungar e, por
conseguinte, trata-se de um trabalho que temos de fazer juntos, vós e eu. Não estais aqui apenas para
escutar o que se diz, concordando ou discordando, intelectualmente, ou admitindo certos conceitos,
idéias e fórmulas. Isso não leva a parte alguma, mas, se pudermos cooperar, explorar juntos, não
verbal nem intelectualmente, porém realmente, penso que, então, uma reunião como esta será
frutuosa.
Mas, se o que nos interessa são apenas definições, e fórmulas, e argumentos, nesse caso
receio que não sairemos do lugar em que agora nos encontramos.
Desejo fazer-vos ver que, em todas estas palestras, a cooperação será necessária. Não vamos
considerar ideais, nem o que é certo e o que é errado. Não vamos tentar descobrir ou formular novos
conceitos. Estamos já fartos de conceitos e ideais, porquanto não alteraram nossa existência.
O que nos interessa é uma revolução total na consciência, não num determinado setor, porém
na totalidade da consciência. Aí é que se faz necessária uma revolução total. O problema não é
externo, não se trata de criar uma sociedade melhor. O problema é uma crise que se está verificando
na consciência e, se não sou capaz de enfrentar totalmente esta crise - não como cientista, como
pessoa religiosa, como homem de negócios, como poeta ou artista, porém como ente humano total -
não se realizará uma revolução radical. O que mais nos interessa é ver se será possível tal revolução,
para que possamos encontrar uma diferente maneira de viver. Será essa a nossa preocupação, nestas
palestras.
Quando empregamos a palavra "libertação", não entendemos "revolta" ou "reação"; revolta e
reação não é libertação. A libertação de alguma coisa não é liberdade, porém reação. A liberdade não
depende de reação ou de revolta. Ela existe por si e para si. Não é produto de nenhum motivo ou
ideal.
Se não há liberdade, não podemos ter paz.
Pela palavra "paz", não entendo aquele estado interior ou exterior em que nos vemos "entre
dois muros", ou entre duas incertezas ou, duas confusões. A paz, tal como a liberdade, não é uma
coisa que podemos procurar ou achar. Só pode haver paz quando vivemos pacificamente, não como
indivíduos, porém como entes humanos. Penso que há diferença entre o indivíduo e o ente humano.
O indivíduo é a entidade "local", o londrino, o inglês, o alemão ou o russo. Esse é o
indivíduo, a "entidade local", condicionada pelo seu ambiente, porém o ente humano é o homem, o
homem total, quer viva na Inglaterra, quer na Índia ou noutra parte.
Compreendendo o homem, compreenderemos o indivíduo, e não vice-versa.
O que nos interessa é a liberdade e a paz para os entes humanos. Se o indivíduo meramente
se revolta contra o ambiente, isso não significa necessariamente que ele se libertará ou encontrará a
paz. Só pode haver paz, quando existe uma maneira de vida pacífica, quando o homem não está
dividido em nacionalidades, grupos religiosos, a cultivar certas formulas e conceitos.
São essas as coisas que destroem a paz.
32
Os conceitos religiosos organizados negam a paz. Observando-se o que está sucedendo no
mundo, vê-se que ele está dividido em áreas políticas, administrativas, nacionalistas. Vós sois inglês,
eu sou russo ou alemão. Política e economicamente, cada um têm seu particular condicionamento.
Estamos também divididos por nossas crenças e dogmas. Aqui, credes numa determinada fórmula
religiosa, e a Ásia inteira crê noutro conjunto de fórmulas.
Há conflito e, por certo, para termos paz, precisamos estar libertos do condicionamento
religioso. Isso é extremamente difícil, porque, enquanto racionalmente, exterior e superficialmente,
podemos negar certos conceitos e fórmulas religiosas, inconscientemente, no fundo, levamos uma
pesada carga de condicionamento. Precisamos libertar-nos de todo condicionamento, para podermos
ter paz. Sem paz, não podemos florescer exterior e interiormente. Estaremos sempre a encontrar
frustrações e haverá sempre reação, revolta. O que nos interessa é a total revolução humana.
Como se realizará ela?
Se alguma vez já refletimos a esse respeito, como respondemos a esta pergunta?
Como puderam os entes humanos viver dois milhões e mais de anos, a seguir sempre o
mesmo padrão, interiormente? Embora tenha havido exteriormente enormes mudanças,
interiormente somos mais ou menos o que sempre fomos: ávidos, invejosos, ambiciosos,
competidores, impiedosos, cruéis, egocêntricos, sempre a batalhar pela conquista de posição e de
prestígio.
Isso vem ocorrendo há milhares de anos, e o homem tem sofrido. O sofrimento sempre foi
sua sina. Ele teme a vida e a morte. Porque tem medo, inventa fugas, deuses e diversões de todo o
gênero. Dessa maneira temos vivido, e a aceitamos como a norma da vida, o caminho da vida.
Todos estamos vendo isso; notamo-lo muito bem. Vendo tudo isso suceder, não só exterior,
mas também interiormente, perguntamos se é possível uma mudança radical e, se é, como poderá
verificá-se.
Cada um é produto do país em que nasceu. As influências religiosas, sociais, econômicas e
climáticas, a alimentação, os trajos, tudo tem influenciado a sua mente. Somos vítimas da ansiedade,
do medo, do desespero, de múltiplas frustrações, e nos vemos ameaçados de cair num estado
neurótico – se já não caímos. O viver nos parece inteiramente sem significação, só nos oferecendo
tédio, frivolidade, morte, sofrimento infindo, conflito interior e exterior.
Em vista de tudo isso, há possibilidade de uma mudança completa?
Se dizemos que não há tal possibilidade - como de fato se diz – então não há saída desta
situação. No momento em que dizemos que não é possível aquela mudança, fechamos todos os
caminhos.
Para descobrirmos se ela é possível, temos de investigar, e para investigar necessitamos de
liberdade, para perceber o fato real - não a idéia do medo, porém o fato, e isso é muito difícil.
A palavra "medo" não é o medo.
Temos de compreender a palavra e dela libertar-nos, a fim de enfrentarmos o fato - o medo.
Analogamente, é-nos possível mudar tão radicalmente que nossa maneira de vida, nossa
"perspectiva da vida" se torne completamente diferente? Essa é uma dimensão inteiramente nova.
Vamos investigar isso.
E, se é possível a mudança, como poderá verificar-se? Em primeiro lugar, devemos
compreender o que significa "olhar", "perceber", "ver".
Para se ver claramente uma coisa, não deve haver interferência do pensamento, da palavra, da
idéia.
Quando olhamos ou, percebemos uma árvore, uma flor, podemos olhá-la com os nossos
conhecimentos botânicos, e nesse caso não estamos olhando realmente a árvore; estamos olhando
através de palavras, através de nossos conhecimentos e experiência; nossa experiência nos impede
de olhar diretamente. Não sei se já experimentastes olhar diretamente para uma árvore, livre da
palavra, da imagem por esta criada, e sem tendência para julgar ou avaliar.
Não se pode olhar realmente de oura maneira, e esse modo de olhar não é um estado de
abstração, porém de intensa atenção.
Observar, ver - essa é a coisa principal; ver o que realmente somos e não o que achamos que
deveríamos ser; observar nossa avidez, inveja, ambição, ansiedade, medo, tais como existem
realmente, e sem interpretação, nem julgamento.
33
Nesse estado de observação não há esforço algum.
Isso temos de compreender isso claramente, porque estamos condicionados para fazer
esforço. Tudo o que fazemos envolve esforço, luta. Se desejo mudar, se, por exemplo, desejo deixar
de fumar, tenho de lutar, de forçar-me, de manter minha resolução e, assim, talvez eu acabe
deixando de fumar, mas minha energia se terá esgotado nessa batalha.
Pode-se abandonar alguma coisa sem esforço?
O fumar é uma coisa muito trivial.
Abandonar o prazer, em todas suas formas, porque o prazer sempre produz dor, eis um
problema extremamente complexo, que iremos considerar numa destas palestras.
O que no momento nos interessa é isto: se temos possibilidade de abandonar alguma coisa,
de agir sem esforço.
Porque paz é isso, não achais?
A paz alcançada por meio de uma batalha interior não é paz, porém exaustão, pois a paz de
modo nenhum pode ser um, resultado de esforço. Só vem quando há compreensão. Esta é uma
palavra um pouco difícil. Compreensão não significa "compreensão intelectual". Quando dizemos
que compreendemos uma coisa, entendemos em geral uma apreensão intelectual, conceitual. Só
pode verificar-se a percepção, quando há atenção total. A atenção total só é possível quando "nos
damos" completamente. A mente, o corpo, os nervos, todo o nosso ser fica então sobremodo ativo.
Só então há compreensão. Temos de compreender nossa vida de entes humanos. Para nós, a vida é
uma caótica contradição. Não a estamos descrevendo sentimental, emocionalmente ou noutro
sentido qualquer, porém tão-só em sua realidade. Vemo-nos confusos, aflitos, ansiosos, aterrados,
desesperados. Está sempre a inquietar-nos esse medo e sofrimento. Tal é a nossa vida, e, no final de
tudo e inevitavelmente, a morte. Só isso sabemos. Podemos imaginar coisas, ter muitos ideais,
fórmulas e fugas, mas, quanto mais fugimos, tanto maior a contradição, tanto mais profundo o
conflito.
Podemos observar nossa vida, tal como é realmente e não como deveria ser?
Os ideais são de todo em todo fúteis. Nenhuma significação tem. São como o ideal dos que
crêem na não-violência e, na realidade, são violentos. Isso é um fato. Os entes humanos são
violentos. Demonstram-no suas palavras, seus gestos, seus atos e sentimentos. Cultivaram o ideal de
"não ser violento" - que representa um estado de paz, de ausência da violência. Há o fato e o que
"deveria ser".
Entre "o que é" e o "desejável", entre o fato e a idéia, a utopia, "o que deveria ser", acha-se o
intervalo de tempo.
No esforço para alcançar "o que deveria ser", estamos sempre a semear a violência. O ideal é
uma maneira hipócrita de olhar a vida. Não há, decerto, nenhuma necessidade de ideal, se sabemos
olhar o fato e dele libertar-nos. Porque não sabemos olhar os fatos e libertar-nos deles, pensamos que
com um ideal os resolveremos. Em verdade, o ideal, a utopia é uma fuga da realidade. Sabendo-se
olhar a violência, talvez se torne possível uma ação de espécie diferente.
Consideremos um pouco mais este ponto.
Sou violento e percebo que qualquer forma de fuga à realidade, ao fato de que sou violento,
toda e qualquer fuga, bebida, ideal, etc. - diminui a energia de que necessito para olhar o fato.
Preciso dessa energia para olhar, para manter-me completamente atento. Isso também é um fato
simples. Se desejais olhar qualquer coisa que seja, necessitais de muita energia. Se só estais
incompletamente atento, porque tendes ideais que não devíeis ter, então estais dissipando vossa
energia e, por conseguinte, sois incapaz de olhar. Olhar é uma operação que requer toda a vossa
atenção. Só se pode olhar quando não se está querendo alcançar nenhum ideal, nem desejando alterar
o que é.
Só aparece o desejo de alterar "o que é", quando o fato é desagradável.
Quando agradável, não desejamos alterá-lo. Nossa preocupação é perseguir o ideal e evitar a
dor. Nosso maior interesse é o prazer e não a violência ou a não-violência, a bondade, etc.
Queremos prazer, e para alcançá-lo estamos dispostos a tudo.
Enquanto estivermos a olhar o fato com a intenção de alterá-lo, não teremos possibilidade de
alterá-lo, por quanto nosso principal interesse é modificar, para termos prazer - ainda que seja um
prazer muito nobre.
34
Devemos perceber isso muito claramente, porque os nossos valores morais, éticos e
religiosos estão todos baseados no prazer.
Eis o fato verdadeiro.
Não é um fato imaginário, como veremos, se nos sondarmos muito profundamente e
olharmos todos os valores que estabelecemos.
Quando existe esse princípio do prazer, tem de haver inevitavelmente dor.
Olhamos a violência com o fim de transformá-la num prazer e passarmos deste a um prazer
maior; por isso, somos incapazes de alterar o fato de que somos violentos. Consideramos a vida com
a mira no prazer.
No fundo, os entes humanos são violentos, por várias razões.
Uma das razões fundamentais é que todas as suas atividades se concentram em perpetuar o
eu, o ego. A atividade egocêntrica é uma das causas da violência. Por outro lado, a fim de realizar
uma revolução radical, tenho de compreender o princípio do prazer. Amo os meus deuses; isso me
proporciona enorme satisfação.
Amais os vossos deuses, vossas fórmulas, vossa nacionalidade, vossa bandeira. O mesmo
faço eu. Tudo isso se baseia no prazer. Posso dar-lhe diferentes nomes, mas não importa; o fato é
este. Ora, é possível considerarmos a violência, sem procurarmos transformá-la em prazer; posso
observar simplesmente o fato de que sou violento?
Temos de compreender o que significa "olhar" e "escutar".
Escutar é uma das coisas mais difíceis, porque costumamos interpretar tudo o que ouvimos e,
depois, concordar ou discordar. A mente, o cérebro está em incessante atividade, sempre a ouvir,
refutando ou aceitando, negando ou seguindo o que se diz. Para podermos escutar realmente,
precisamos estar absolutamente quietos; do contrário, não podemos escutar. O que geralmente
acontece é que nunca escutamos o que se nos diz, nunca escutamos uma ave ou o ciciar da brisa
entre as folhas.
Nunca escutamos realmente.
Já traduzimos tudo em palavras, imagens, e olhamos as coisas com essas imagens, palavras,
experiências, conhecimentos. Afinal, escutar o vosso amigo, escutar vossa esposa ou marido, é uma
das coisas mais difíceis que há, porque tendes uma imagem já formada de vosso amigo, de vossa
esposa, e esta tem sua imagem de vós. A relação existente é entre duas imagens, e são essas imagens
que falam uma à outra - sendo as imagens lembranças, experiências, mágoas, etc.
Nunca há o verdadeiro ato de escutar.
Para escutar, temos de estar livres da imagem. Do mesmo modo, para vermos as coisas, não
deve haver a interferência de nenhuma imagem. Podemos então olhar a violência, descobrir se a
palavra está criando o sentimento ou se o sentimento da violência é independente da palavra, já que
a palavra não é a coisa.
Embora o cérebro se ache ativo, olha num estado de negação, porque a "imagem que olha"
deixou de existir.
Cada um de nós tem uma imagem de si própria e imagens do "outro". Não estais a olhar-me
realmente. Estais olhando para a imagem que tendes de mim, tal como tendes imagens de vossa
esposa ou marido, de vossos filhos, de vossa pátria. Nossas relações - assim chamadas - são entre
essas imagens. Quando queremos escutar ou olhar, as imagens interferem. Imagens de ofensas, de
coisas ditas, lembranças, experiências acumuladas, tudo isso interfere e, por conseguinte, não se
pode olhar, nem pode haver verdadeiras relações entre duas pessoas. Só pode estabelecer-se um
estado de relação entre pessoas quando não existe imagem alguma.
Quando podemos olhar a violência, sem a respeito dela termos uma imagem, qual o estado da
mente ou do cérebro que está a olhar? Se nenhuma imagem tendes de vossa esposa, e ela nenhuma
imagem tem de vós, nenhuma - absolutamente, qual o estada da vossa mente e da dela, de vosso
cérebro e do dela?
Que se está passando?
Nenhuma imagem tendes de vós mesmo, como inglês. Não vos qualificais de cristão ou
hinduísta, de marido ou esposa. Não há imagem de espécie alguma.
Para nos libertarmos da imagem, temos de investigar muito profundamente a questão da
formação das imagens e, uma vez feito esse exame, com o máximo de escrúpulo e atenção, o cérebro
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não fica "em branco", num estado de entorpecimento. Ao contrário, torna-se sumamente ativo,
porém não estará em atividade o "formador de imagens".
Com essa atenção pode-se olhar. É relativamente fácil olhar a árvore, a flor, um pássaro, mas
olhar dessa mesma maneira para dentro de nós mesmos, olhar a nossa violência, nossos prazeres e
dores, isso é outra questão. Só se pode olhar e escutar, quando a mente, o cérebro está totalmente
quieto. Do contrário, nada se pode ver. Só é possível à mudança, a revolução total, quando olhamos
com essa atenção, atenção em que não existe mais o processo formador de imagens do prazer ou dos
valores do prazer. Isso é que é ser livre.
Liberdade significa, decerto capacidade de olhar, de observar, porque ver é agir.
Pode-se perceber tudo o que a violência implica, tanto historicamente como na atualidade.
Sabemos o que ela significa. Dizem-me que já houve quinze mil guerras nos últimos 5.500 anos -
quase três guerras por ano! Podem não se estar travando guerras aqui, entretanto elas continuam a
ser travada no mundo. Apesar das religiões, apesar de toda a bondade existente, aceitamos a guerra
como norma da vida. O homem aceitou a violência como norma da vida. Os políticos, as pessoas
religiosas, todos falam a respeito da paz. Não podemos ter paz, se não vivemos pacificamente. Para
vivermos pacificamente, não deve existir violência. Esta questão exige a mais ampla investigação e
exame.
A transformação, a revolução radical na consciência, só se tornará possível quando formos
capazes de observar, de ver, de escutar, e quando soubermos que o observar e ver é agir. É possível
extinguir a violência dentro de nós imediatamente, instantaneamente, e não em termos de tempo?
Tão condicionados nos achamos, que dizemos: "gradualmente me libertarei da violência". Estamos
acostumados com a gradualidade, a evolução, mas é possível extinguir instantaneamente a violência
existente em nós mesmos?
Digo que podemos terminar a violência imediatamente, quando somos capazes de observar
esse fato completamente, com atenção total, em que não exista nenhuma espécie de imagem.
Isso é como uma pessoa tornar-se consciente de um precipício, de um perigo.
A menos que seja neurótica, desequilibrada, a pessoa se afastará do perigo; a ação é
imediata.Perceber, ver realmente o perigo é estar livre de imagens. Pode-se então olhar com absoluta
serenidade, em completo silêncio. Verificar-se-á, então, uma total mutação do fato.
Uma revolução em toda a psique do homem não é realizável por meio da vontade, que é
desejo, determinação, por meio de um plano de vida conducente à paz.
Ela só é possível quando o cérebro pode estar quieto e ao mesmo tempo ativo, para observar
sem criar imagens de acordo com sua experiência, conhecimentos e prazer.
A paz é essencial, porque só na paz pode o indivíduo florescer em bondade e beleza.
Essa possibilidade só existe quando somos capazes de escutar o todo da existência, com
todas as suas agitações, aflições, confusão e angústias - escutá-lo, simplesmente, sem nenhum desejo
de alterá-lo.
O próprio ato de escutar é a ação que operará a revolução.

Estudo da 1ª palestra de Krishnamurti em Londres em 26 de abril de 1966 págs. 7 a 17 do


livro "Encontro com o Eterno" – 1974 – tradução de Hugo Veloso - Nova disposição gráfica
colocada por ocasião do estudo.

Mudança e mutação
Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação.
A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente
adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias
formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental muito diferente.
Nesta manhã desejo salientar a diferença entre estas duas coisas.
Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da
vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema
aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma
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mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas
também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores,
a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.
Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas,
ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da
mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito
profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das
relações humanas?
Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse
processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.
A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo
movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando
uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um
motivo.
Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo
bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou o nível
do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.
Isso me parece bastante claro.
Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas
atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou
indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los
em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião
organizada mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença,
condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos
limites "modificados" dessa crença.
Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou
interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um
certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma
ideologia, ou a determinada forma de crença em deus. Tudo isso implica uma certa mudança,
consciente ou inconscientemente produzida.
Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia, e nessa
suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na
física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à lua, etc. Etc. Em
certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem informados; e essa
espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela
cria.
Mas, basta isso?
Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de mudança. Entretanto,
sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical – mudança não
produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação
na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos muito hábeis e dotados
de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes humanos.
Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer?
Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz
mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão
crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova,
fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não
produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.
Não sei se me estou expressando claramente.
Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-
ia - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em
movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança
produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada.
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É uma "continuidade modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está
ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma
revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele
tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por
conseguinte, não constitui mudança nenhuma.
Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema
de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio,
fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou
igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade,
porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve orientar o viver, o existir,
o funcionar.
Assim, que fazer?
Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro.
Se faço um esforço para mudar, esse esforço tem motivo, significando isso que o desejo
inicia o movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer
mudança que seja produzida é uma simples modificação - não é uma mudança real, absolutamente.
Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço.
Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em
conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito reestabelecido.
Assim sendo, que fazer?
Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no
sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos
vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições,
desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode essa
entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga sem
nenhum esforço?
Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos.
Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes
indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até
o fim e liquidar de uma vez.
Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é
uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o
tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o
tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.
Compreendeis?
Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça
humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O
pensamento não pode resolver este problema.
Venho exercendo o pensamento há milhares e milhares de anos e, no entanto, não mudei.
Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo
enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o
pensamento não pode, em circunstancia alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o
pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a
mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o
pensamento orientar a mudança.
Que me resta, então?
Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem
vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se
servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo,
pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como
vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.
Que fazer, pois?
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Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de
atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança,
não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.
Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa?
A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa
como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão
intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa
apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então enorme
importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a importância, sendo
então simples meio de comunicação.
Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da
vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical
transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum
instrumento tem com que iniciar a ação.
Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também
estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante
compreender o que entendemos por comunhão.
Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e
sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com
as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.
O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou
completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele
estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.
Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse
estado.
Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode
ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador
emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve
permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore -
se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de
sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.
Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o
que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.
Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento
iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por
conseguinte, que, não - verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.
Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é
algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.
Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já
observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo
comunista ou pelo mais reacionário conservador.
Vedes quanto tudo isso é fútil.
Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos numa
certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático,
como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada pela igreja que
instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas,
inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão, inglês, alemão, italiano,
francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da
raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima, mais profunda ainda é sua influência.
Ora, como eliminar tudo isso?
Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o
inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação,
exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se
pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há
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sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso
representa uma dualidade, fonte de conflito.
Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.
Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha
mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando.
Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que
analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte,
rejeito completamente o processo analítico.
Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o
fardo do inconsciente estou fora da análise.
Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele
próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o
inconsciente é de muito pouca importância.
Percebeis?
Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais, sua perene
tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o consciente, só se
torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade.
O pensamento tem seu lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o
pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando
percebo que é o pensamento que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.
O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.
Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa
verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum,
atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda
a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.
Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila,
silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical
transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse
percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.
A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente
nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade
há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a
revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.
Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo
de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.
Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?
Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,
porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as
raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a
função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?
Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.
Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por
meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos
abstenhamos de nele intervir.
Então, estamos também em comunhão com o fato. Mas, se interpretais o fato de uma maneira
e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.
Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de
comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do
pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.
Vou examinar isso, se me permitis.
Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio".
Se nenhum desafio houvesse, vós não pensareis.
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O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta
"respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de
pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem
familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há
intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.
Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico
rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia
entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito? ...
Ah! Sei. . . " - e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço
de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta.
Assim, quando sou "desafiado", minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum
tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não
sei, mas vou verificar"; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo
para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse
intervalo muito mais longo, o "processo de pensamento" está em função. Essas três fases são-nos
muito familiares.
Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras,
e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.
Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me
dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.
Com efeito, eu não sei.
Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à
procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado
livre de todas as coisas que a mente tem conhecido.
E é só nesse estado que o novo pode ser compreendido - sendo o novo o supremo, ou
qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o processo do pensamento; não há
observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada.
Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.
Estudo da 4ª palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do
livro "A mente sem Medo" – Ick 1965 – tradução de Hugo Veloso – Nova disposição gráfica
colocada por ocasião do estudo.

Dependência psicológica
Estivemos falando sobre a importância de nos libertarmos totalmente da estrutura psicológica
da sociedade, isto é, de ficarmos completamente fora da sociedade. Para compreendermos os
problemas da estrutura social de que fazemos parte e também para deles nos livrar-mos,
necessitamos de considerável energia, vigor e vitalidade.
Quanto melhor percebermos quão complexa é a sociedade, tanto mais óbvia se torna a
complexidade do indivíduo que nela vive. O indivíduo é parte integrante da sociedade que ele
próprio criou, sua estrutura psicológica é essencialmente a dessa sociedade.
Compreender os problemas de cada um de nós é compreender os problema das relações
dentro da sociedade. Pois só temos um único problema: o problema das relações dentro dessa
estrutura social, psicológica.
Para a compreensão e libertação do problema das relações, necessita-se de abundante
energia, não só energia física e intelectual, mas também uma energia não "motivada" ou dependente
de estímulos psicológicos ou de drogas de qualquer espécie. Para se ter essa energia, é necessário
compreender primeiramente a maneira como dissipamos energia.
Entraremos neste assunto passo a passo, e peço-vos compreender que o orador é apenas um
espelho: está a expressar o que supõe ser o problema da cada um de nós; assim sendo, o ouvinte não
fica apenas a ouvir uma série de palavras e idéias, porém está realmente escutando e observando a si
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próprio, não segundo o que o orador ou outra pessoa formula, porém, antes, observando o seu
verdadeiro estado de confusão, de falta de energia, de aflição, de total desesperança, etc.
Se dependemos de algum estímulo para a obtenção da energia necessária, esse mesmo
estimulo embota a mente, torna-a insensível, sem penetração. Uma pessoa pode tomar a droga
chamada lsd ou outras e, temporariamente, achar energia suficiente para ver as coisas com muita
clareza, mas terá de reverter ao estado anterior e tornar-se cada vez mais dependente dessa droga.
Todo estímulo quer por parte da igreja, quer da bebida ou droga, quer do orador, criará
inevitavelmente uma dependência que impede o indivíduo de ter a energia vital necessária para ver
claramente e por si próprio.
Toda espécie de dependência a algum estímulo reduz a agilidade e a vitalidade da mente.
Por infelicidade, todos nós dependemos de alguma coisa: de uma relação, da leitura de um livro
intelectual, ou de certas idéias e ideologias por nós formuladas; ou dependemos da solidão, do
isolamento, da rejeição, da resistência.
Tudo isso, obviamente, perverte e dissipa a energia.
Temos de perceber de que é que estamos dependendo. Cumpre descobrir por que razão
dependemos de alguma coisa, psicologicamente; não aludo à dependência tecnológica ou à
dependência em que estamos do entregador do leite ... Mas, psicologicamente, porque é que
dependemos, o que supõe a dependência?
Esta é uma pergunta essencial, quando se quer investigar a dissipação, a deterioração e a
perversão da energia - dessa energia de que temos vital necessidade para compreendermos nossos
inúmeros problemas.
De que é que tanto dependemos: de uma pessoa (Jesus, Buda), um livro, uma igreja, um
sacerdote, uma ideologia, uma bebida ou droga? Quais são os esteios que sustentam cada um de nós,
sutilmente ou de maneira muito óbvia?
Por que dependemos, e o descobrimento da causa da dependência, liberta a mente dessa
dependência?
Entendeis essa pergunta?
Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos mostre as causas de vossa
dependência, porém, investigando-as juntos, as descobriremos; será um descobrimento feito por vós
e que, como tal, vos dará vitalidade.
Descobrimos por nós mesmos que dependemos de alguma coisa, por exemplo, de um
auditório, para nos estimular e dele, portanto, necessitamos. Quando se dirige a palavra a um grande
grupo de pessoas, pode-se adquirir uma certa espécie de energia e fica-se, portanto, na dependência
desses ouvintes, de sua concordância ou discordância, para se obter aquela energia. Quanto maior a
discordância, tanto maior se torna a batalha e tanto mais vitalidade se adquire; mas, se o auditório
concorda, não se obtém a mesma energia.
Dependemos - porquê?
E perguntamos a nós mesmos se, descobrindo a causa de nossa dependência, nos
libertaremos dessa dependência?
Acompanhai-me, por favor, com vagar.
Uma pessoa descobre que necessita de ouvintes porque é muito estimulante falar a outras
pessoas; porque necessita desse estimulo? Porque, interiormente, essa pessoa é superficial,
interiormente nada tem, não há nenhuma fonte de energia, sempre cheia, abundante, vital, em
movimento, viva. Interiormente é paupérrima e descobriu que essa é a causa de sua dependência.
Pode o descobrimento da causa nos livrar de continuarmos dependentes, ou esse
descobrimento é meramente intelectual, mero descobrimento de uma fórmula? Se, se trata de uma
investigação intelectual e se foi o intelecto que descobriu a causa da dependência da mente, por meio
de racionalização, de análise, pode esse descobrimento libertar a mente da dependência?
Não pode, evidentemente.
O mero descobrimento intelectual da causa não liberta a mente da sua dependência daquilo
que lhe dá estímulo, assim como a mera aceitação intelectual de uma idéia ou a aquiescência
emocional a uma ideologia não pode libertá-la.
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A mente se liberta da dependência quando vê, em seu todo, essa estrutura do estímulo e
dependência e vê que o mero descobrimento intelectual da causa da dependência não liberta a mente
da dependência.
O ver a inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e perceber como essa
dependência torna a mente estúpida, embotada, inerte, só esse percebimento liberta a mente.
Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um detalhe?
Essa é uma pergunta muito importante que nos devemos fazer, porque nós vemos as coisas
em fragmentos e pensamos em fragmentos; todo o nosso pensar é fragmentário.
Temos, pois, de investigar o que significa ver totalmente.
Perguntamos se nossa mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado
fragmentariamente, como nacionalista, individualista, como coletividade, como católico, alemão,
russo, francês, ou como indivíduo aprisionado numa sociedade tecnológica, funcionando numa
especialidade, etc. – tudo dividido em fragmentos, como o bem oposto ao mal, o ódio ao amor, a
ansiedade à liberdade.
Nossa mente pensa sempre num estado de dualidade, de comparação, de competição, e essa
mente, que funciona em fragmentos, não pode ver o todo. Se uma pessoa é hinduísta e olha o mundo
por essa estreita janela, crendo em certos dogmas, ritos, tradições, educada que foi numa certa
cultura, etc., evidentemente não pode perceber o todo da humanidade.
Assim, para se ver alguma coisa totalmente, seja uma árvore, seja uma relação ou atividade
que temos, a mente deve estar livre de toda a fragmentação, porquanto a origem da fragmentação é
justamente aquele centro de onde estamos olhando. O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é
católico, protestante, comunista, socialista, chefe de família, é o centro de onde se está olhando.
Assim, enquanto estamos a olhar a vida de um certo ponto de vista, ou de uma dada
experiência a que estamos apegados, que constitui nosso fundo, nosso "eu", não podemos ver a
totalidade.
A questão, pois, não é de como nos libertarmos da fragmentação.
Invariavelmente, uma pessoa perguntaria: "como posso eu, que funciono em fragmentos,
deixar de funcionar em fragmentos?".
Mas, essa é uma pergunta errônea.
Percebe essa pessoa que depende psicologicamente de muitas coisas e descobriu
intelectualmente, verbalmente e por meio de análise, a causa dessa dependência; esse mesmo
descobrimento é fragmentário, por ser um processo intelectual, verbal, analítico; e isso significa que
tudo que o pensamento descobre é inevitavelmente fragmentário.
Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere, porque então
não se vê verbalmente nem intelectualmente, porém realmente, como eu vejo o fato que é este
microfone - sem agrado nem desagrado; ele existe.
Vemos então a realidade, isto é, que somos dependentes e não desejamos libertar-nos dessa
dependência ou de sua causa. Observamos, e fazemo-lo sem termos um centro, sem termos nenhuma
estrutura de pensamento. Quando há observação dessa espécie, vê-se o quadro inteiro e não um
simples fragmento dele; e quando a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.
Acabamos de descobrir duas coisas.
A primeira, que há dissipação de energia quando há fragmentação. Pelo observar, pelo
"escutar" a estrutura total da dependência, descobriu-se que toda atividade da mente que trabalha e
funciona em fragmentos - como hinduísta, comunista, católico, ou como analista que analisa - é
essencialmente a atividade de uma mente dissipada, de uma mente que desperdiça energia.
A segunda coisa foi que esse descobrimento dá-nos energia para enfrentar todos os
fragmentos que forem surgindo e, conseqüentemente, observando-os à medida que surgem, eles vão
sendo dissolvidos.
Descobriu-se a própria origem da dissipação de energia e que toda fragmentação, divisão,
conflito, pois divisão significa conflito e é desperdício de energia. Todavia, pode-se pensar que não
há desperdício de energia no imitar e aceitar a autoridade, no depender do sacerdote, dos rituais, do
dogma, do partido, de uma ideologia, porque então a pessoa aceita e segue.
Mas o seguir e o aceitar uma ideologia, seja boa, seja má, sagrada ou não sagrada, representa
uma atividade fragmentária e, por conseguinte, causa conflito. O conflito surgirá, inevitavelmente,
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porque haverá separação entre "o que é" e "o que deveria ser", e esse conflito é uma dissipação de
energia.
Pode-se ver a verdade aí contida?
Mais uma vez, não se trata de "como me libertar do conflito?" - se fazemos a nós mesmos a
pergunta "como possa libertar-me do conflito?", criamos outro problema e, por conseguinte,
aumentamos o conflito. Mas se, ao contrário, vemos - tal como vemos o microfone – clara e
diretamente, pode-se então compreender a verdade essencial de uma vida inteiramente sem conflito.
Mas, senhores, digamo-lo de maneira diferente. Estamos sempre a comparar "o que somos"
com "o que deveríamos ser". Esse "deveria ser" é uma projeção do que pensamos deveria ser.
Comparamo-nos com nosso vizinho, com a riqueza que ele tem e nós não temos.
Comparamos-nos com os que são mais brilhantes, mais intelectuais, mais afetuosos, mais bondosos,
mais famosos, mais isto e mais aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas, e
essa medição que em cada um de nós se verifica, a medição de nós mesmos com alguma coisa, é
uma das principais causas do conflito. Nela, há competição, comparação com isso e aquilo, e
ficamos envolvidos nesse conflito.
Ora, porque existe comparação?
Fazei a vós mesmo essa pergunta. Porque vos comparais com outrem? Naturalmente, um dos
ardis da propaganda comercial é fazer-vos crer que não sois "o que deveríeis ser", etc. Isso começa
desde os mais verdes anos de nossa vida - ser tão arguto como outrem, nos exames, etc.
Porque nos comparamos, psicologicamente?
Verificai-o.
Se não comparo, "que sou eu?" eu ficaria embotado, vazio, estúpido - ficaria sendo o que
sou.
Se não me comparo com outrem, fico sendo o que sou. Mas, pela comparação, espero
evolver, desenvolver-me, tornar-me mais inteligente, mais belo, mais isto e mais aquilo.
Isso acontecerá?
O fato é que "eu sou o que sou" e, pela comparação, estou fragmentando esse fato, a
realidade, e isso é um desperdício de energia; mas, ao contrário, o não comparar, porém ser
realmente o que sou, é ter a extraordinária energia de que necessito para olhar. Quando sois capaz de
olhar sem comparação, estais fora de toda comparação, o que não indica uma mente estagnada,
contentada; pelo contrário!
Estamos vendo, pois, em essência, como a mente desperdiça energia e como essa energia é
necessária para compreendermos a totalidade da vida e não apenas os seus fragmentos.
Ela é como um vasto campo todo florido. Se aqui estivestes antes, notastes como, antes de
ser ceifado o feno, havia milhares de variegadas flores? Mas, em geral, escolhemos só um dado
canto do campo e nesse canto ficamos a olhar uma só flor; não olhamos o campo inteiro. Damos
importância a uma só flor e, com dar importância a essa única flor, rejeitamos o resto. É o que
fazemos quando atribuímos importância à imagem que temos de nós mesmos; rejeitamos então todas
as outras imagens e, por conseguinte, ficamos em conflito com cada uma delas.
Assim, como dissemos, é necessária a energia, energia "sem motivo", sem direção. Para tê-la,
devemos ser interiormente pobres, não ser ricos das coisas que a sociedade, que nós formamos.
Como, em maioria, somos ricos das coisas da sociedade, não existe pobreza em nós. O que a
sociedade formou em nós, o que em nós mesmos formamos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme,
ansiedade - disso somos riquíssimos.
Para compreender tudo isso, precisamos de uma extraordinária vitalidade, tanto física como
psicológica. A pobreza é uma das coisas mais estranhas da vida; as várias religiões de todo o mundo
têm pregado a pobreza - pobreza, castidade, etc. A pobreza do monge que veste um hábito muda de
nome, recolhe-se a uma cela, abre a bíblia e fica a lê-la interminavelmente; esse homem é reputado
pobre.
O mesmo se faz, de diferentes maneiras, no oriente, e isso é considerado pobreza. O voto de
castidade, o possuir só uma tanga, só uma túnica, só tomar uma refeição por dia - todos nós
respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, aqueles que tomaram o manto da pobreza continuam
ricos das coisas da sociedade, interiormente, psicologicamente, uma vez que estão ainda em busca de
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posição, de prestígio; pertencem à categoria do "religioso", e esse tipo é uma das divisões da cultura
social.
Isso não é pobreza; pobreza é estar-se completamente livre da sociedade, embora se possuam
algumas roupas e se tomem algumas refeições diárias. Torna-se a pobreza uma coisa maravilhosa e
bela, quando a mente esta livre da estrutura psicológica da sociedade, porque então já não há
conflito, não há buscar, indagar, desejar – não há nada.
Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida inteiramente livre de
conflito. Essa vida é uma benção que não se encontra em nenhuma igreja ou templo.
Interrogante: não é um paradoxo dizerdes que o pensamento sempre funciona em fragmentos
e que, para se perceber que o pensamento funciona em fragmentos, necessita-se de energia? Isso não
é um círculo vicioso?
Krishnamurti: necessito de energia para olhar, mas esse olhar se torna fragmentário e, por
conseguinte, dissipa energia; assim sendo, que se deve fazer? Vede, senhor, eu necessito de energia
física, necessito de energia intelectual, necessito de energia emocional, apaixonada, para
compreender qualquer coisa - uma energia inquebrantável.
Mas sei que estou dissipando essa energia na fragmentação; a todas as horas o estou fazendo.
Digo então: "que devo fazer? Tenho necessidade dessa energia para resolver imediatamente os
problemas da vida; no entanto, estou a dissipá-la continuamente, não tomando alimentos adequados,
pensando nisso e naquilo, com meu hinduísmo, meus preconceitos, minhas ambições, inveja, avidez,
etc. Ora, posso fazer alguma coisa em tal estado?".
Escutai primeiramente essa pergunta, muito atentamente, não a rejeiteis nem aceiteis.
Dissipo energia e tenho necessidade de energia; quer dizer, acho-me num estado de
contradição e essa mesma contradição é outro desperdício de energia. Percebo, pois, que tudo o que
faço em tal estado é desperdício de energia. A mente que está confusa, por mais que se esforce, em
qualquer nível, continuará confusa. Não se pense que, vivendo-se de acordo com "um momento de
clareza", a confusão se dissipará. Se o tento gera-se novo conflito e, por conseguinte, fomenta-se a
confusão.
Percebo que toda ação nascida da confusão produz ou leva a mais confusão; compreendi que
toda ação da mente confusa só conduz a maior confusão. Vejo isso muito claramente, vejo-o como
uma coisa extremamente perigosa - como quando se percebe um grande perigo; vejo-o com a mesma
clareza.
Que sucede então?
Não atuo mais nessas condições de confusão.
Essa inação total é ação completa.
Consideremos a questão de maneira diferente.
Percebo que a guerra, em qualquer forma, matar o próximo de um avião a grande altura ou
com um fuzil a pequena distância; ou uma batalha entre minha mulher e mim, uma batalha
comercial, um conflito interior, em mim - é sempre guerra.
Posso não matar realmente um vietnamita ou americano, mas, enquanto a minha vida for um
campo de batalha, estarei contribuindo para a guerra.
Vejo esse fato.
Vejo-o -primeiro, como a maioria de nós foi exercitada para vê-lo: intelectualmente, isto é,
fragmentariamente. E vejo que, se empreendo qualquer ação nesse estado fragmentário, tal ação só
contribuirá para fomentar a guerra, o conflito. Tenho, pois, de descobrir um estado em que não haja
conflito de espécie alguma - um estado mental inacessível ao conflito. Devo, antes de tudo mais,
descobrir se tal estado existe, pois pode ser que se trate de um estado puramente teórico, ideológico,
imaginário e, portanto, sem valor.
Mas, eu tenho de descobri-lo, e para o descobrir não devo aceitar a idéia de que tal estado
existe.
Ora, existe esse estado?
Só posso verificá-lo se compreendo a natureza do conflito, totalmente - o conflito que é a
dualidade, "o bom" e o "mau", o que não significa que não haja "bom" e "mau", e o conflito entre o
amor e o ciúme. Devo olhá-lo sem julgar, sem comparar-olhar simplesmente.
Começo a aprender a olhar, e não a atuar.
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Aprendo a olhar esse complexo campo da vida, sem aceitar nem rejeitar, comparar, condenar,
justificar; a olhar assim como olho uma árvore. Só posso olhar realmente uma árvore, quando não há
observador, isto é, quando não se torna existente o processo fragmentário do pensamento. Olho,
pois, esse vasto campo de batalha da vida, o qual suponho constituir a maneira natural de viver, esse
campo onde tenho de lutar contra meu próximo, contra minha mulher; onde tenho de lutar, quer
dizer, comparar, julgar, condenar, ameaçar, odiar.
Olho para essa situação que aceitei, para essa vida que sou eu - e posso então olhar para, mim
mesmo, assim como sou, sem nenhuma comparação, condenação, julgamento?
Se posso, já estou fora da sociedade, porque a sociedade pensa sempre segundo as noções de
grande e pequeno, poderoso e fraco, belo e feio, etc. De um golpe, compreendi todo o processo
da fragmentação e, por conseguinte, não pertenço a nenhuma igreja, nenhum grupo, nenhuma
religião, nenhuma nacionalidade, nenhum partido.
Interrogante: as reações e os sentimentos são influenciados pelo que pensamos, e quando se
apresenta um sentimento moderado, este não atinge as relações e se, enquanto o olhamos, nenhuma
ação empreendemos a seu respeito, o sentimento parece dissipar-se; mas, quando se apresenta uma
emoção forte, antagônica, esta atinge realmente as relações, e se também a olhamos sem nada fazer,
ela não parece dissipar-se; continua existente.
Krishnamurti: reagir é perfeitamente natural, não? Se me espetais com um alfinete, eu tenho
de "reagir", a não ser que esteja paralisado ou morto. Reagir ao prazer e à dor é natural; são
as duas unicas coisas a que tenho de reagir. O prazer, quero que continue; a dor, desejo afastá-la. A
reação é inevitável, natural, mas porque dividi-la sempre em prazer e dor? Eu "reajo" e, depois, que
sucede? Entra em cena o pensamento.
Interrogante: mas antes disso, se reagis violentamente ...
Krishnamurti: um momento, senhor, eu reajo violentamente; vós me espetais um alfinete e eu
atuo violentamente - bato-vos ou fujo de vós, que é também violência: ambos os atos são violentos.
Só depois, um segundo após, me torno hostil, quando o pensamento entra em cena e ordena-me que
faça alguma coisa. Observai isso, senhor, bem de perto, e vereis por vós mesmo. Vós me picais com
um alfinete, eu reajo; porque o antagonismo?
Interrogante: porque me estais perturbando.
Krishnamurti: a vida está perturbando cada um de nós a todos os momentos.
Interrogante: e por isso resistimos.
Krishnamurti: descobri agora, senhor, porque resistis. Investigai isso.
Interrogante: é a própria natureza...
Krishnamurti: ... Que nos manda proteger-nos fisicamente. Eu tenho de proteger-me
fisicamente. Ora, porque levamos essa necessidade de proteção aos estados psicológicos?
Interrogante: porque não gostamos de ser jogados para um lado e para o outro,
psicologicamente. Eu quero ser livre; não gosto de restrições.
Krishnamurti: e estais sendo restringido?
Interrogante: estou, naturalmente, e resisto a isso.
Krishnamurti: não, senhor, não me estais seguindo, isso não está bem claro. Fisicamente, há
necessidade de proteção porque, de contrário, eu não poderia viver. Mas, porque é que a mente
transfere esse desejo de proteção para o plano psicológico? Porquê?
Interrogante: por causa da reação autoprotetória. Reparai que isso não devia ser assim.
Krishnamurti: não, não - não digais "devia" ou "não devia". O fato é que, psicologicamente,
desejamos proteger-nos, defender-nos, resistir; porque?
Interrogante: quando ele se apresenta é um fato, e quando olhamos para esse fato...
Krishnamurti: antes de olhardes o fato, senhor, descobri porque desejais protege-vos
psicologicamente.
Interrogante: isso é inerente à nossa natureza.
Krishnamurti: não há nada "inerente". Examinai bem isso, senhor, e vereis. Porque desejo
proteger-me psicologicamente?
Interrogante: porque o meu eu tem certas características, e esta é uma delas. Por conseguinte,
quereis dizer que tenho de libertar-me do eu. Mas isso não é possível.
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Krishnamurti: não estou falando a respeito de libertar-nos. De coisa alguma. Porque desejo
proteger-me psicologicamente? Só desejo proteger-me psicologicamente quando não me conheço.
Quanto melhor me conheço, tanto menos desejo proteger-me, porque eu sou nada; um feixe de
palavras e de memórias. Estou protegendo uma coisa que não existe, que é uma mera idéia, um
conceito; estou a proteger isso, a resistir, a defender, a disputar com todo o mundo, para conservá-lo.
Entretanto, quanto mais conheço, melhor, no momento em que conheço a inteira estrutura dessa
coisa, não há mais nada para proteger.
Não se trata de concordardes comigo, senhor; fazei isso.
Interrogante: por conseguinte, essas reações fortes continuarão até que vejamos a nós
mesmos.
Krishnamurti: e se gostardes de continuar com elas, continuareis.
Interrogante: oh, sim; mas, se delas não gostamos, temos de resistir-lhes. Isso não está certo.
Krishnamurti: vede, a resistência, a defesa, o ataque, tudo isso são maneiras de manter uma
certa coisa que consideramos importante, um certo estado que desejamos proteger.
Interrogante: essa é apenas uma parte da questão.
Krishnamurti: uma grande parte.
Interrogante: existe aí uma questão de relação.
Krishnamurti: está bem; como quiserdes: uma questão de relação.
Interrogante: ora, eu não desejo comportar-me de maneira tal que minhas relações se tornem
rudes, ainda que eu tenha o sentimento de rudeza. Portanto, tenho de intervir, de interferir.
Krishnamurti: em primeiro lugar, temos de compreender o que é relação, antes de protegê-la.
Que é nossa relação? Se sou casado, se tenho um marido, uma esposa, filhos, qual a minha relação
com essas outras pessoas? Não teoricamente, porém realmente, qual a minha verdadeira relação com
minha mulher ou meu marido? Tenho de fato alguma relação?
Interrogante: conviveis um com o outro, decerto.
Krishnamurti: naturalmente, vivo com minha mulher.
Interrogante: e por vezes vossas relações são amigáveis, e...
Krishnamurti: atenção, senhor, atenção! Examinai bem isso! Eu vivo com minha esposa. Os
apetites sexuais que tinha em jovem, foram-se - mais ou menos, pois ainda os tenho ocasionalmente.
-- mas, que sucede? Durante o período de convivência com minha esposa, criei uma forma de
resistência, de domínio ou de aquiescência -- não quero ser importunado por ela, não quero que grite
comigo, e isso continua a acontecer. Formei, em mim mesmo, uma imagem a respeito dela, e ela
formou uma imagem a meu respeito.
Ora, essas duas imagens é que estão em relação - e não eu com ela.
Portanto, não há relação direta. Vejo isso ocorrer durante toda a minha vida - a criação da
imagem e a defesa dessa imagem - e percebo que, enquanto tenho essa imagem de minha esposa,
tem de haver contradição; embora eu esteja em relação com ela, como minha esposa, está
continuamente a travar-se uma batalha, e, se deseja viver sem batalhas, devo primeiramente libertar-
me de todas as imagens.
Ora, é possível não criar, nem por um instante, uma imagem dela?
O que quer que ela faça se grita comigo, se briga comigo, se me importuna - é possível nunca
formar imagem alguma? Isso significa que devo ter uma mente tão viva, tão alertada, que nada que
ela a esposa, diga possa enraizar-se. Se não sois capaz disso, então, naturalmente, tereis a relação das
imagens, que permanecerão em perene batalha entre si.
Interrogante: não estamos atacando o mesmo ponto; pois, no escritório ou com pessoas a
quem estamos ligados, pode suceder alguma coisa a que reagimos com um sentimento violento. Ora
bem, o fato é que, se não estou vigilante, esse sentimento...
Krishnamurti: descobri então porque não estais vigilante.
Interrogante: mas, no ínterim...
Krishnamurti: não há "ínterim".
Interrogante: eu não desejo brigar com o escritório.
Krishnamurti: então, não brigueis com o escritório.
Interrogante: é o que quero dizer. Preciso evitá-lo.
47
Krishnamurti: pois o evitai. Mas, muito mais importante é descobrirdes porque não estais
desperto, vigilante. Se puderdes responder a esta pergunta, então todas as outras serão respondidas.
Mas, desejais que sejam respondidas as perguntas periféricas, sem cuidardes do ponto fundamental,
que é: estar vigilante, observar a vós mesmo.
Segundo interrogante: como sabemos que existe um mundo exterior, como sabemos que
existe a essência daquilo que constitui o mundo exterior? Talvez o mundo exterior seja maya.
Krishnamurti: ora, creio que a palavra maya significa, em sânscrito, "medir". Enquanto a
mente tiver a capacidade de medir criará ilusão, naturalmente. Por isso se disse que, uma vez que a
mente não possui outra capacidade senão a de medir, tudo o que ela mede é ilusório.
Essa é uma filosofia existente na índia - que o mundo é todo maya, ilusão. E assim, dizem
que temos de suportá-lo, esquecê-lo; que as doenças, as ofensas, o mundo, as disputas, tudo é só
ilusão. Mas, com efeito, se dizemos a um homem faminto que o mundo é maya, ilusão, isso não tem
para ele nenhuma significação.
Uma pessoa que sofre de câncer, que sente dor - o falar-lhe em ilusão nada significa. O que
importa não é se o mundo existe ou não existe, se é ilusório ou não, porém o fato é que aí está o
mundo, ai estais vós e aqui estou eu, a batalharmos um com o outro; aí estão os vietnamitas a serem
mortos por isto ou por aquilo.
Isso são fatos, e para compreender fatos devemos estar em contato com eles, quer dizer,
devemos olhá-los sem nenhuma interferência do pensamento, na forma.de preconceito, dogma,
crença, nacionalidade.

Estudo da 2ª palestra realizada por Krishnamurti em 11 de julho de 1967 em Saanen, Suíça, págs
18/32 do livro "Como Viver Neste Mundo" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso – a nova disposição
gráfica foram colocados por ocasião do estudo.

Krishnamurti no Brasil
Amigos,

Jornais e revistas deram curso a tantos conceitos errôneos e mal-entendidos relativamente a


minha pessoa, que julgo seria melhor dar uma explicação que venha esclarecer o caso. As pessoas,
geralmente, desejam ser salvas por outrem ou, então, por meio de algum milagre ou mediante idéias
filosóficas; e receio que muitos aqui venham enfraquecidos desse desejo e na esperança de que, por
simplesmente me ouvirem, irão encontrar solução imediata para os seus múltiplos problemas. Nem a
solução dos seus problemas, nem a sua pretensa salvação lhes pode ser outorgada por intermédio de
outra pessoa ou mesmo por qualquer sistema de filosofia. O entendimento da verdade ou da vida,
obtém-se pelo nosso próprio discernimento, pela nossa própria perseverança e clareza de
pensamento. Pelo fato de nós, em grande maioria, termos demasiada preguiça de pensar por nós
mesmos, vamos, cegamente, aceitando e seguindo pessoas ou idéias, que se tornam para nós meios
de evasão, em tempos de conflito e sofrimento. Antes de tudo, desejo declarar que não pertenço a
sociedade alguma. Não sou teosofista nem missionário teosófico e nem tampouco aqui vim para vos
converter a qualquer forma especificada de crença. Acredito não ser possível seguir a alguém ou
aderir a determinada crença e, ao mesmo tempo, possuir a capacidade de pensar com clareza. Eis
porque a maioria dos partidos, das sociedades, das seitas e das corporações religiosas se tornam
meios de exploração. Tampouco sou portador de uma filosofia oriental, concitando-vos a que a
aceiteis. Quando falo na Índia, dizem-me ali que anuncio uma filosofia do ocidente; e quando venho
para países ocidentais, dizem que trago um misticismo oriental que não é prático e que, portanto, é
inútil para o mundo das ações. Se, porém, realmente refletirdes, haveis de ver que para o pensamento
não há nacionalidades, nem tampouco se acha ele restrito a qualquer país, clima ou povo. Portanto
peço-vos que não considereis o que vos vou dizer como o resultado de um determinado preconceito
racial, de uma especificada idiossincrasia ou peculiaridade. O que vos tenho a dizer é atual, efetivo
no sentido de poder ser aplicado á vida atual do homem, e não, em absoluto, coisa teórica, baseada
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em certas teorias ou crenças, porém sim baseada, se me é permitido personalizar, em minha própria
experiência. É praticável e aplicável ao homem.
Agora, o pleno significado do que vos vou dizer, somente pode ser compreendido por meio
da experiência e, portanto, da ação. À maioria de nós outros agrada a discussão sobre questões
filosóficas que não se relacionam com as nossas ações diárias; ao passo que, aquilo de que vos falo
não é uma filosofia nem um sistema de pensamento, e seu profundo significado somente pode ser
compreendido por meio da experiência e, conseqüentemente, da ação. O que vos digo não é uma
teoria ou crença intelectual para ser meramente discutida, para servir de motivo a controvérsias; é
coisa que exige reflexão demorada; e, para descobrir a sua utilidade prática, a verdade que contém, o
de que se necessita é ação e não debate intelectual. Não é um sistema para ser guardado de memória
nem um conjunto de conclusões a ser aprendido e automaticamente executado. Deve ser
criticamente compreendido. Critica, porém, é coisa diferente de oposição. Se realmente fordes
críticos, não vos oporeis pura e simplesmente, mas haveis de vos esforçar para averiguar se o que eu
digo tem mérito intrínseco em si mesmo. Isso exige clareza de pensar de vossa parte, de modo a vos
ser possível passar além da ilusão das palavras, não permitindo que os vossos preconceitos, sejam
eles econômicos ou religiosos, vos impeçam de pensar fundamentalmente. Isto é, tendes que pensar
a partir, do começo, pensar simples e diretamente. Todos nós havemos sido educados com muitos
preconceitos, muitas idéias preconcebidas, fomos criados por entre tradições que corrompem,
limitados pelo ambiente, e, por isso, está o nosso pensamento, continuamente, sendo torcido e
pervertido, impedindo, destarte, a simplicidade da ação. Tomai, por exemplo, a questão da guerra.
Sabeis que muita gente discute sobre se a guerra é um bem ou um mal. Certamente, não pode haver
duas maneiras de encarar este assunto. A guerra é, fundamentalmente, um mal, seja defensiva ou
ofensiva. Ora, para pensarmos, desde o principio, a respeito deste assunto, tem a mente que estar
inteiramente liberta da moléstia do nacionalismo. Somos impedidos de pensar fundamental, direta e
simplesmente, em virtude dos preconceitos que têm sido explorados, durante idades, sob a forma de
patriotismo, com todo o seu séquito de coisas absurdas. Por muitos séculos, pois, havemos, criado
hábitos, tradições, preconceitos que impedem o individuo de pensar de maneira integral,
fundamental, acerca dos vitais assuntos humanos. Ora, para compreender os múltiplos problemas da
vida, com todas as suas variedades de sofrimento, temos que, por nós próprios, descobrir seus
motivos e causas fundamentais, com seus implícitos resultados e efeitos. Porque, se não estivermos
plenamente conscientes das nossas ações e das suas causas e respectivos efeitos, nós exploraremos e
seremos explorados, tornar-nos-emos escravos de sistemas, vindo as nossas ações a tornar-se apenas
mecânicas e automáticas. Enquanto não pudermos, conscientemente, libertar as nossas ações de seu
efeito limitador, por meio da compreensão do significado de suas causas, a não ser que,
conscientemente, rompamos com as velhas formas de pensamento que em nosso derredor havemos
construído, não nos será possível ultrapassar as inúmeras ilusões que nos rodeiam e havemos criado,
nas quais estamos embaraçados. Cada qual tem que perguntar, a si próprio, o que está buscando, a
fim de averiguar se está meramente deixando-se arrastar pelas circunstâncias e condições ambientes,
sendo, portanto, irresponsável e irrefletido. Aqueles dentre vós que realmente se acharem
descontentes, aqueles que forem críticos, devem já ter perguntado a si próprios o que é que cada
individuo anda procurando. Procurais conforto, segurança, ou procurais a compreensão da vida?
Muitas pessoas dirão que estão buscando a verdade. Se, porém, analisarem a natureza; de suas
aspirações, de sua busca, verificarão que, realmente, estão á procura de conforto, de segurança, de
uma evasão do conflito, do sofrimento. Ora, se andais á procura de conforto, de segurança, essas
coisas terão que se basear na aquisição, portanto, na exploração e na crueldade. E, se disserdes que
estais buscando a verdade, tornar-vos-eis prisioneiros da ilusão; pois que a verdade não é coisa em
cujo encalço se corra, não pode ser buscada, tem que ser ela um acontecimento. Isto é, o seu êxtase é
somente perceptível quando a mente está, por completo, despojada de todas as ilusões que haja
criado em virtude da busca de sua própria segurança e conforto. Só então terá lugar o alvorecer
daquilo que é a verdade. Expressando isto mesmo em outros termos: temos que, a nós próprios,
interrogar no sentido de saber em que é que toda a nossa vida, todo o nosso pensamento e toda a
nossa ação se baseiam. Se pudermos responder a esta pergunta de modo completo e verdadeiro,
então, por nós mesmos, averiguaremos quem é o criador das ilusões, o criador dessas supostas
realidades, das quais nos havemos tornado prisioneiros. Se, realmente, refletirdes, sobre isto,
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verificareis que toda a vossa vida está baseada na consecução da segurança, da salvação e do
conforto individual. Desta busca de segurança, naturalmente, nasce o medo. Ao buscar conforto, ao
tentar evadir-se da luta, do conflito e da tristeza, a mente tem de criar varias vias de fuga, e essas
vias tornam-se as nossas ilusões. Portanto, o medo, que é a resultante da busca individual da
segurança, é também o criador das ilusões. Este medo arrasta-vos de uma para outra seita religiosa,
de uma filosofia para a outra, de um para outro instrutor, até encontrardes a segurança e o conforto
que desejais. A isto chamais busca da verdade e da felicidade. Ora, conforto e segurança são coisas
que não existem; existe somente a clareza de pensar, que produz a compreensão da causa
fundamental do sofrimento, a qual, unicamente, pode libertar o homem. Nessa libertação reside a
beatitude - do presente. E digo-vos que existe uma eterna realidade, a qual só pode ser descoberta
quando a mente está liberta de todas as ilusões. Portanto, acautelai-vos contra a pessoa que vos dá
conforto, pois nela tem que haver exploração; essa pessoa cria uma armadilha na qual ficais colhidos
como o peixe na rede. Na busca do conforto e da segurança, a vida chegou a ser dividida em vida
religiosa ou espiritual e vida econômica ou material. A segurança material encontra-se por meio da
posse de bens que proporcionam o poder; e é em virtude desse poder que esperais alcançar a
felicidade. Para, atingir esta segurança material, este poder, tem que haver exploração, a exploração
do vosso próximo mediante um sistema deliberadamente estabelecido, que se tem tornado hediondo
pelas suas múltiplas crueldades. Esta busca de segurança individual em que se acha incluída também
a nossa família, criou as distinções de classe, os ódios de raça, o nacionalismo; coisas essas que,
eventualmente, terminam em guerras. E há um fato curioso que podeis verificar se sobre ele
refletirdes: a religião, a quem competia a condenação da guerra, ajuda a promovê-la. Os sacerdotes,
que se teriam como sendo os educadores do povo, animam todas as espécies de absurdos criados
pelo nacionalismo, e que cegam o povo em momentos de ódio nacional. Naturalmente, pois, criais
um sistema, baseado no conforto e na segurança individual a que chamais religião. Vós é que haveis
criado as religiões que são formas cristalizadas do pensamento e que têm por fim assegurar a
imortalidade pessoal. Em uma de minhas próximas palestras, hei de abordar de novo esta questão da
imortalidade. Assim, pois, em virtude da busca de segurança individual, movidos pelo desejo da
continuidade do ser individual, haveis criado uma religião que vos explora por meio do clericalismo,
por meio das cerimônias, por meio dos pretensos ideais. O sistema a que chamais religião, e que foi,
originariamente, criado em virtude do vosso apelo por segurança, tornou-se tão poderoso, tão
realista, que mui poucos são os que se libertam do seu peso, do fardo esmagador da tradição e, da
autoridade. O ponto inicial de partida para uma verdadeira critica, reside na perquirição dos valores
que a religião, em nosso redor, estabeleceu. Ora, todos nós estamos encerrados neste âmbito; e
enquanto estivermos escravos de um ambiente e de valores não pesquisados, não postos em dúvida,
sejam passados ou presentes, têm eles que perverter a integridade das ações. Esta perversão é a causa
do conflito entre o indivíduo que busca a segurança, e a coletividade; entre o individuo e o continuo
movimento da experiência. E do mesmo modo por que, individualmente, havemos criado este
sistema de exploração e de esmagadora limitação, temos também que, individual e conscientemente,
derrubá-lo por meio da compreensão relativa ao alicerce dessa construção, e não pelo mero criar de
novos conjuntos de valores que nada mais serão que novas séries de evasões. E assim,
verdadeiramente, começaremos a penetrar o significado real do viver. Sustento que existe uma
realidade, dá-lhe embora o nome que quiserdes, a qual somente poderá ser compreendida e vivida
quando a mente e o coração houverem penetrado a ilusão dos falsos valores e deles se tiverem
libertado. Somente então existirá o eterno.

Krishnamurti
Primeira palestra no Rio de Janeiro (excerto) - 13 de Abril de 1935.
Do Livro "Palestras no Brasil".

O FINDAR DO SOFRIMENTO – O QUE É RELIGIÃO


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Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho. Ontem estivemos tratando do sofrimento e
do findar do sofrimento. Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão. Pouquíssimos de nós
realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram profundamente. Será possível
liquidar, de vez, o sofrimento? Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não
muito conscientemente, mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem
acabar. Enquanto o sofrimento não termina, não pode haver amor.
O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E
geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, movimentos religiosos - ou, então,
acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis. Será que podemos investigar, a
fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema sem fugir dele? Suponhamos que perca
meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando uma dor imensa, descubra que
sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem suportar a situação e, por isso,
fujo dela. Há inúmeras formas de fuga - religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso
permanecer com o que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo
algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um
problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia
preciosa, de fino acabamento? Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de
fugir dela; sua beleza nos atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o
tempo todo. Se, da mesma forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer
de julgamento ou fuga, ficar com a tristeza... nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos
liberta completamente daquilo que produziu a dor. Voltaremos a isso depois.
Desejamos também considerar o que é a beleza - não a beleza de uma pessoa nem de quadros e
estátuas de museus, nem os mais remotos esforços do homem para transmitir seus sentimentos
através da pedra, da pintura ou de um poema, mas indagar a nós mesmos o que é a beleza. Talvez a
beleza seja a verdade. Talvez seja o amor. Sem compreendermos a natureza e a profundidade dessa
coisa extraordinária que é a beleza, jamais chegaremos ao que é sagrado. Examinemos, portanto, a
questão da beleza. O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve
contra o céu azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu belo
recorte contra o céu azul apaga toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, não há
"ninguém" a olhar. Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento
egocêntrico do nosso viver. Certamente que já devem ter notado isso. Já observaram uma criança
com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras (o que é normal), e então damos um
brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o brinquedo, ela permanece
tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também quando vemos algo
extremamente belo - a beleza nos absorve? Significa isso que só há beleza quando cessa a luta do eu,
quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso? Se não ficamos absorvidos nem
impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou um vale cheio de sombras; se não
somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza sem o ego? Quando o eu está
presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o amor e a beleza estão sempre
juntos - não são duas coisas separadas.
Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar. Sejamos
ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos nós; todos
vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos sempre com
medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é o viver, o que é a
nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas energias de
muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas. Pode ser que sejam ricos, muito competentes,
que sejam especialistas, um grande cientista ou um homem de negócios; pode ser que tenham poder,
posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso não foi um desperdício? Toda essa lida, sofrimento,
essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o homem acumulou (deuses, santos, etc.),
não será tudo isso um desperdício? Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a
si próprio. Ninguém pode responder por nós. Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá
no fim da vida; nós a colocamos o mais longe possível - depois de muito tempo. Mas, ainda que seja
uma longa jornada, temos de morrer. E o que é isso a que chamamos viver - ganhar dinheiro, ir ao
escritório das nove às cinco? E com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão,
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desesperança, depressão. Mas será que toda essa existência a que chamamos vida, viver (essa imensa
vicissitude do homem com seu conflito sem fim, decepção, degradação) - será isso viver? Mas é a
isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos familiarizados, essa é a
nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo que pensamos,
acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas. Estamos apegados à família, ao dinheiro,
aos conhecimentos, às crenças com as quais temos convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo
isso. E a morte vem e diz: "Esse é o fim de tudo, meu velho".
Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos, reunimos -
nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: "Nada mais
lhe pertence." É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido. Podemos
inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida. Mas nunca indagamos o que
nasce na vida seguinte. O que renasce é um feixe de memórias.
A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver (que é conflito e tudo o mais)
do morrer? Por que essa divisão? Existe essa divisão quando há apego? Podemos viver no mundo
moderno com a morte? Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego (e isso é a
morte) enquanto vivemos. Estou apegado à casa em que vivo - comprei a casa por um bom dinheiro
e apego-me ao mobiliário, aos quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e
acaba com tudo. Mas será que podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no
fim de cada dia, eliminando todo nosso apego? Isso é o que significa morrer. Como costumamos
separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos juntos, contudo, a vida e a
morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral em que cessa todo
conhecimento como memória.
Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a
contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a
mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo
conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está
dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certo domínio, no
domínio da atividade física. Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário
mas estar livre do velho conhecimento? Pode o cérebro estar livre para funcionar perfeitamente
noutra dimensão? Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam;
morram no fim do dia. E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; viver e morrer
não são duas coisas diferentes. Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem
escutando com muita atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade. E,
imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer para tudo
que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças, temores,
ansiedades, infortúnios - será que podemos pôr fim a tudo isso diariamente? E aí descobrimos que
estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.
Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente,
coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será
que podemos viver assim no mundo de hoje - liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no
futuro, sem esperar por algo "melhor", ter, portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e
morrendo a cada momento? Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há
um milhão de anos - o viver e o morrer. Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e não
reagir a ele, dizendo: "É, mas eu creio na reencarnação" - pois, nesse caso, termina o diálogo entre
nós. Estamos apegados a um mundo de coisas - ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao
dinheiro, às crenças com que temos vivido, aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí
afora. Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória - não somente a memória dos
conhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o
animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo?
Isso é um fato. Aí chega a morte e diz: "Acabou o seu apego." E nós tememos tal coisa, tememos
ficar completamente libertos disso tudo. A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos.
Podemos inventar e dizer: "Sim, mas eu continuo na próxima vida." Mas o que é que continua?
Compreendem a pergunta? Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de
continuidade a não ser a da sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a
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continuidade das crenças - tudo que o pensamento criou? O pensamento é limitado e, assim, cria
conflito - já vimos isso. E o eu, o ego, a persona é um complicado feixe de memórias, antigas e
recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto
do conhecimento. O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc.
Isso é que é o eu. O eu pode inventar que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do
pensamento. E o pensamento é sempre limitado. Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler
livros nem estudar as filosofias; podem perceber claramente por si próprios que são um feixe de
memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis porque ficamos atemorizados. A questão,
portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?
Agora devemos também examinar juntos o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será
desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os
filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade,
sofrimento e tudo mais? O que é o amor? E sem esse quê, esse perfume, essa chama (ainda que
sejam ricos, tenham poder, posição, importância) sem amor, serão apenas uma concha vazia.
Precisamos, por conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria
guerras? Se amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando
existe ambição? Por favor, enfrentem tudo isso. Mas não conseguimos porque estamos presos a uma
rotina, à sensação repetida de sexo etc.
O amor nada tem que ver com prazer, com sensação. O amor não provém do pensamento;
não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro. É algo que está completamente fora do cérebro, pois
o cérebro, por sua própria natureza, é instrumento da sensação, das reações nervosas etc. Quando há
sensação, não existe amor. O amor não é coisa da memória.
E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião. Essa é uma questão muito complexa.
Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que esteja além do mundo físico, além da existência
diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o
trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores, pedras - e os aldeões que vivem longe desta feia e
detestável cidade ainda veneram pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe
alguma coisa sagrada e, então, chega o sacerdote e diz: "Vou-lhe mostrar" - é exatamente o que faz o
guru. Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o
culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada
disso; são ateus e se dizem hamanitaristas. Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há
algo fora do tempo, além do pensamento. Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso
cérebro, nossa razão, nossa lógica para averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é
possível viver uma vida religiosa neste mundo moderno.
Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida
religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as
descartamos totalmente - não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou
determinada autoridade que se diz espiritual. Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes
que cometemos: inventar um mediador entre nós e a verdade. Quando indagamos o que é religião,
nessa própria indagação já estamos vivendo religiosamente; não no fim dela. No processo mesmo de
olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé, nessa própria investigação já
estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.
Tratando-se de assunto religioso, parece que perdem a razão, a lógica, o bom senso.
Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o homem
criou - deuses, salvadores, gurus e toda sua autoridade; precisamos eliminar, completamente, tudo
isso. Nada disso é religião; é apenas a autoridade que alguns poucos assumem. Nós é que lhes
conferimos autoridade.
Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um
déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida,
criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar
essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de
se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que
inventamos deuses. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e todo esse circo a que damos
o nome de religião. Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o
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pensamento que criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas
ponham em dúvida essa revelação. Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o
bom senso, perceberão como acumulam superstições - e nada disso, obviamente, é religião. Será que
podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o cérebro, capaz de
viver religiosamente? Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar
nada, sem criar ilusões, e enfrentar o medo? O medo psicológico pode desaparecer completamente
quando ficamos com ele, sem fugir dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz
sobre o medo, um forte jorro de luz; o medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já
não há mais deuses, já não mais rituais, pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas
que o pensamento inventa nada têm que ver com religião, pois o pensamento não passa de um
processo material resultante da experiência, do conhecimento e da memória. É o pensamento que
inventa todo o palavrório e estrutura das religiões organizadas, que já perderam totalmente a
significação. Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa?
Será que querem fazer isso? Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião.
E haverá alguma coisa que ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta
mas, se o pensamento inventar que existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo
material. O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais.
O orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro
a atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem
oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do
tempo e do espaço? Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo
imensamente sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é
que já deram o primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião.
Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar.
Assim, o que significa a meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir
do tumulto, ter uma mente silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica? E, para ficarem atentos, para
manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema, um método, um processo. Sentam-se
de pernas cruzadas e repetem um mantra qualquer. Disseram-me que essa palavra,
etimologicamente, significa "ponderar", "não vir a ser", "absorver", "eliminar toda atividade
egocêntrica". Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e continuamos vivendo egocentricamente,
egoisticamente, pois mantra perdeu o significado.
O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar
conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa - uma mente ou um cérebro tranqüilo, um
estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz "Quero
dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo?" Qual é a diferença entre os dois? Ambos estão buscando
alguma coisa. Só que a busca de um classificamos de espiritual e a do outro, de mundana. Não
obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é meditação; meditação nada
tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto da vontade.
Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo
pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem
isso? Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de
pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer
perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado -
causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma
espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço? O orador afirma que há.
Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar, indagar, assim como o orador
indagou, duvidou, rejeitou. Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para
examinar isso, precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que
tenta alcançar o ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é
necessário compreender o som. Som e silêncio são inseparáveis.
Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o som é a batida do coração; o
universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o firmamento está cheio de som.
E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos o som, o próprio ato de
escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som. A meditação, portanto, não é algo planejado,
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organizado. A meditação apenas é. Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os
ressentimentos, livre de tudo que já acumulamos - temores, ansiedades, solidão, desespero,
sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e o primeiro passo é o último passo. Se derem o primeiro
passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro passo porque não queremos
ser livres. Queremos depender - do poder, de pessoas, do meio-ambiente, de nossa experiência, do
conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo.
No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão. A compaixão tem sua
própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria verdade. Quando essa inteligência
está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar - da cessação do medo, do findar do
sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra, agir. Ouvem tudo isso (que é
verdadeiro, lógico, sensato, racional) mas não agem de acordo com isso. Vão para casa e começa
tudo de novo - as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim, perguntamos: qual é a finalidade
de tudo isso? Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não
agimos, desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando
a vida. E a vida é algo muitíssimo precioso - é a única coisa que temos. E acontece que perdemos
também contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que
somos da natureza. Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas.
Estamos a nos destruir uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida.
Quando percebemos toda essa coisa não apenas intelectualmente nem verbalmente, então
vivemos uma vida religiosa. Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada
disso é vida religiosa. A vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor.
Podemos amar uma pessoa (esposa ou marido), mas aquele amor é para todos os seres humanos, não
se destina a uma só pessoa, não é restritivo. Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro
haverá algo que transcende o tempo. E aí estará a bênção - não nos templos, nas igrejas nem
mesquitas. Essa bênção estará onde estivermos.

Krishnamurti. Bombaim. 10/02/1985. K. F. Bulletin 54 (1988) –


Carta de Notícias. Janeiro-Dezembro 1991. ICK.

A Essência da Maturidade
A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa em seu todo imediatamente, e com esse
ato de ver pôr-lhe fim.
Vê-se de maneira total, quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria
pessoa, mas também para o mundo. Há guerra, externamente, e há guerra internamente, dentro de
cada um de nós; é possível acabarmos com ela de imediato, voltarmos-lhe as costas,
psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmo - isto é, quando a ela
respondeis sem dependerdes de nenhuma autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou
emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e
séria observação - observação, quando estais sentado num ônibus, de tudo o que vos cerca;
observação daquilo que está diante de vós mesmo, a mover-se, a transformar-se; observação, sem
motivo algum, de todas as coisas tais como são. O que é tem muito mais importância do que o que
deveria ser. Como resultado desse zelo, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.

INTERROGANTE: Do que dizeis, devo entender que temos de meditar, mas nossa mente é
impedida de fazê-lo porque está sempre passando automaticamente de um pensamento para outro, de
modo que não podemos observar o que se passa ao redor de nós? Significa isso que, em primeiro
lugar, devemos observar o que se passa em nossa mente?
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KRISHNAMURTI: "Para observar, temos de meditar" - eu não disse isso. Observar é
meditação, e isso não significa que para observar temos de meditar. Observar é uma das coisas mais
difíceis que há. Observar, por exemplo, uma árvore, é dificílimo, porque temos idéias, imagens
relativas à árvore e essas idéias - conhecimentos botânicos, etc. - nos impedem de olhar a árvore.
Observar vossa esposa ou marido é mais difícil ainda, porque também tendes uma imagem relativa a
vossa esposa e ela tem uma imagem a vosso respeito, e a relação existente é entre essas duas
imagens. É o que em geral se chama "relações": dois conjuntos de lembranças, de imagens, com
relação entre si. Vede quanto isto é absurdo. As relações que em geral temos são uma coisa morta.
Observar significa, com efeito, estar cônscio da interferência do pensamento; perceber como a
imagem que tendes da árvore, da pessoa, do que quer que seja, intervém no ato de olhar. Observai
como vos esqueceis do objeto que estais olhando - a árvore, a pessoa; e vede porque o pensamento
interfere, porque tendes uma imagem de tal pessoa. Porque tendes uma imagem de quem quer que
seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o orador, e vós, os ouvintes. Vós tendes unia imagem
relativa ao orador, infelizmente; mas eu, porque não vos conheço, nenhuma imagem tenho de vós e,
por conseguinte, posso olhar-vos. Mas não posso olhar-vos se digo de mim para comigo: vou servir-
me destes ouvintes para alcançar poder, posição, para explorá-los, tomar-me um homem famoso -
sabeis do resto - de todas as futilidades que os entes humanos cultivam. Assim, observar significa:
observar sem a interferência de nosso fundo. Entendeis? Todo o nosso ser, que está a olhar, é o
nosso fundo - cristão, francês, intelectual. Pela observação, descobre-se esse fundo; e observá-lo sem
nenhuma escolha, nenhuma inclinação, é uma disciplina tremenda - não a absurda disciplina de
ajustamento, de imitação. Essa observação torna a mente sobremodo ativa, sobremodo sensível. Isso,
em seu todo, é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", porém, antes,
que é quando observamos, que todas essas coisas sucedem. Isso, em seu todo, é meditação, e não um
certo método de controle do pensamento, assunto de que trataremos noutra ocasião.

INTERROGANTE: Podeis explicar, com precisão, como se relacionam o prazer e o medo?

KRISHNAMURTI: Medo - Já estiveste alguma vez em contato direto com o medo? Já


estiveste alguma vez diretamente em contato com alguma coisa, uma árvore, uma flor, um ente
humano; diretamente, e não através da imagem? Quando olhais uma árvore, no parque, há sempre o
observador e a coisa observada: vós estais a observar a árvore, e há um espaço entre o observador e a
coisa observada. Estar em contato direto (podeis tocar a árvore, mas isso não é contato, nem o é o
identificar-vos com a árvore; não se trata disso, que é uma outra espécie de ginástica mental) - estar
em contato direto é coisa de todo diferente, é não ter espaço algum. É o que se verifica quando se
tomam certas drogas - L.S.D., etc. - o espaço desaparece. Mas essa é uma experiência inteiramente
diferente, pois aquele espaço volta, obrigando a pessoa a repetir a droga, etc., e o resultado é que ela
fica a deteriorar-se, a cansar-se cada vez mais da droga e a obter efeitos cada vez menores. Mas,
quando a pessoa é capaz de observar sem o observador, quer dizer, sem o fundo, sem conceitos
ideológicos, sem a memória, o espaço desaparece então totalmente, entre as pessoas, e nesse estado
talvez não haja medo, porém uma coisa chamada (podemos servir-nos da palavra "verbalmente")
amor. Teremos de considerar a questão do medo noutra ocasião.

INTERROGANTE: Parece-me que até a nossa presença aqui é uma espécie de paradoxo,
porquanto significa que estamos insatisfeitos. Isto é, eu - insatisfeito com a vida, pois vejo que nela
há violência - desejando compreender essa coisa que me causa insatisfação.

KRISHNAMURTI: Não, senhor, não há entes humanos separados da violência. Quando sinto
cólera, não é uma certa coisa ou pessoa que está encolerizada dentro de mim; sou eu que estou
encolerizado. Não há nenhum "eu" separado da cólera. Perceber o fato real expresso por essa
asserção, isto é, que eu sou a violência; percebê-lo deveras e não intelectual ou teoricamente, é pôr
fim à separação entre mim e a violência, a cólera. Mas isso exige enorme atenção e muito trabalho.

INTERROGANTE: Faríeis distinção entre prazer, ódio e violência?


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KRISHNAMURTI: Senhor, penso que a questão do prazer não é tão fácil de compreender.
Cumpre examinar o problema, e não simplesmente negar o prazer. Não sentis prazer quando comeis
ou quando dais um passeio, ou ao olhardes uma árvore, uma bela mulher, um homem belo, ou o que
quer que seja? É preciso examinar de maneira completa esta questão do prazer. A vida é complexa,
não? A vida é sumamente complexa, e o prazer é uma coisa complexa. Os chamados monges, os
religiosos, têm dito que não devemos ter prazer; abrem a Bíblia ou o Gita, ficam a ler perpetuamente
esse livro e nunca olham a vida. Mas, para compreender o prazer, temos de compreender o desejo, o
deleite, a memória - a conservação das experiências que proporcionaram prazer, tanto no nível
consciente como no chamado subconsciente.
Como disse, a vida é um problema complexo, e não podemos esquecer a sua complexidade
dizendo: "Não quero olhá-la." Temos de olhá-la pela maneira mais simples, sem nenhuma fórmula,
nenhuma ideologia, nenhuma escolha - só simples observação. Esta é provavelmente a primeira vez
que alguns de vós estão ouvindo estas palestras, e o que se está dizendo poderá parecer-lhes grego
ou chinês, mas enquanto vamos considerando e examinando estas questões, começaremos talvez a
compreendê-las melhor.
Importa fazer perguntas; não só agora, porém sempre. É necessário duvidar, e nunca aceitar
coisa alguma. Releva fazer uma pergunta, e talvez mais ainda fazer a pergunta correta. Fazer a
pergunta correta implica que a pessoa deve estar perfeitamente cônscia dos problemas da vida - não
em termos de "gostar" e "não gostar", porém o campo inteiro da vida. Fazer tal pergunta denota
grande humildade, não a humildade da vaidade, mas a humildade daquele que deseja saber. Ao
fazermos a nós mesmos a pergunta correta, como resultado de profunda e inteligente investigação,
então, visto que é correta, a pergunta contém sua própria resposta. Não precisamos perguntar a
ninguém: já temos a resposta.

16 de abril de 1967.

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