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Meditando
com
Krishnamurti
(Krishnamurti Foundation of India)
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A todos os interessados,
Em 1990 trouxe da Índia um livro publicado pela KFI (Krishnamurti Foundation of India),
sob o título "Meditations". É uma compilação de textos de Krishnamurti, que tratam do tema da
meditação, extraídos de 11 diferentes obras suas. Variam de tamanho, desde uma simples linha até
uma página inteira. Para quem está envolvido de algum modo com a prática da meditação, trata-se
de abordagens fundamentais para uma reflexão mais profunda e que poderia embasar melhor futuras
discussões sobre o tema.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1980, na Índia, e traz em seu prefácio as palavras
do próprio K que, dessa forma, endossa os seus colaboradores nessa tarefa. Suas palavras:
PREFÁCIO
“O homem, a fim de escapar de seus conflitos, inventou muitas formas de meditação. Estas,
baseadas no desejo, na vontade e no ímpeto para alcançar, implicam em conflito e numa luta para
conseguir. Esse esforço consciente e deliberado está dentro dos limites de uma mente condicionada e
nele não há liberdade. Todo esforço para meditar é a negação da meditação”.
“Meditação é o fim do pensamento. Só então há uma dimensão diferente que está além do
tempo”.
J. Krishnamurti
Março de 1979
Muita paz!
F.Guedes, Om
Belo Horizonte, 04/01/02
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Uma mente meditativa é silenciosa. Não o silêncio que o pensamento pode conceber; não o
silêncio de um anoitecer tranqüilo; mas o silêncio em que o pensamento - com todas as suas
imagens, palavras e percepções - cessou completamente. Essa mente meditativa é a mente religiosa -
de uma religião que não afetada pela igreja, templos ou cânticos.
A mente religiosa é a explosão do amor, amor esse que não conhece separação. Para ele,
longe é perto. Não o um e o múltiplo; mas, ao invés disso, aquele estado de amor em que toda
divisão cessou. Como a beleza, não pode ser medido por palavras. É só a partir desse silêncio que a
mente meditativa age.
***
A meditação é uma das maiores artes da vida - talvez a maior - e, possivelmente, não
podemos aprendê-la de ninguém. Essa é a sua beleza. Não tem técnica e, portanto, não tem
autoridade. Quando você aprende a seu próprio respeito, observando-se, observando como anda,
como come, o que diz, a intriga, o ódio, o ciúme - se está atento a tudo isso em você, sem qualquer
escolha - então, isto é parte da
meditação. Portanto, a meditação pode ter lugar quando se está sentado num ônibus, caminhando
num Bosque repleto de luz e sombra, ouvindo o canto dos pássaros ou contemplando o rosto de sua
mulher ou de seu filho.
***
É curioso quão importante a meditação se torna; não tem princípio nem fim. É como uma
gota de chuva: naquela gota estão contidos todos os riachos, grandes rios, mares e quedas d'água;
aquela gota nutre a terra e o homem; sem ela, a terra seria um deserto. Sem a meditação, o coração
se torna um deserto, uma terra devastada.
***
Meditação é descobrir se o cérebro, com todas as suas atividades e experiências, pode ficar
absolutamente quieto. Não forçado, pois, no momento em que você o força, há dualidade. A
entidade que
diz, "Gostaria de experiências maravilhosas; por isso, preciso forçar o meu cérebro a se aquietar",
jamais o fará. Mas, se você começa a investigar, observar e prestar atenção a todos os movimentos
do pensamento, seus condicionamentos, desígnios, medos e prazeres, a observar como o cérebro
funciona, então verá que o cérebro se torna extraordinariamente quieto; essa quietude não é sono,
mas tremenda atividade que é, por si mesma, tranqüila. Um grande dínamo, que funciona
perfeitamente, dificilmente faz barulho; só quando há atrito, há ruído.
***
***
Meditação é trabalho árduo. Exige a mais alta forma de disciplina - que não é conformação,
imitação ou obediência - mas disciplina que vem da constante atenção, não só para as coisas externas
à sua volta, mas também as internas. Portanto, a meditação não é uma atividade de isolamento, mas
ação na vida diária que exige cooperação, sensibilidade e inteligência. Sem lançar as bases de uma
vida correta, a meditação se torna uma fuga e, portanto, sem valor. Uma vida correta não é seguir a
moralidade social, mas libertar-se da inveja, da cobiça e da busca de poder - todas gerando
inimizade. A libertação dessas coisas não vem pelo exercício da vontade, mas tomando consciência
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delas pelo autoconhecimento. Sem o conhecimento das atividades do eu, a meditação se torna
estimulação dos sentidos e, portanto, de muito pouco significado.
***
Estar procurando experiências mais amplas, profundas e transcendentais é uma forma de fuga
da verdadeira realidade, "o que é" e que é nós mesmos, a nossa mente condicionada. Por que uma
mente atenta, inteligente e livre deveria ter qualquer "experiência"? Luz é luz; não procura mais luz.
***
A meditação é uma das coisas mais extraordinárias e, se não souber de que se trata, você será
como um cego num mundo de cores brilhantes, sombras e luzes cambiantes. Não é uma questão
intelectual, pois quando o coração penetra a mente, esta passa a ter uma qualidade diferente; ela é ,
então, realmente ilimitada, não só em sua capacidade de pensar e agir com eficiência, mas também
no sentido de
viver num amplo espaço em que você faz parte de tudo. Meditação é o movimento do amor. Não o
amor do um ou do múltiplo. É como água que qualquer um pode beber de um cântaro; seja o cântaro
de ouro ou de barro, a água é inexaurível. E coisa peculiar acontece que nem a droga nem a auto-
hipnose podem produzir: é como se a mente entrasse dentro de si mesma, começando na superfície e
penetrando cada vez mais fundo, até que profundidade e altura tenham perdido o seu significado e
toda forma de medida tenha cessado. Nesse estado há completa paz - não satisfação que vem da
gratificação - mas uma paz que tem ordem, beleza e intensidade. Toda ela pode ser destruída, como
uma flor pode ser destruída; e, contudo, por causa de sua própria vulnerabilidade, torna-se
indestrutível. Essa meditação não se aprende com outrem. Deve-se começar sem nada saber a seu
respeito e prosseguir com simplicidade. O solo em que a mente meditativa pode surgir é a vida
diária, a disputa, a dor e a alegria fugaz. Deve surgir lá, trazendo ordem e daí prosseguir sem parar.
Mas se você está preocupado só em produzir ordem, então essa mesma ordem produzirá sua própria
limitação e a mente tornar-se-á sua prisioneira. Em todo esse movimento, você deve começar de
algum modo pelo outro extremo, da outra margem, e não ficar preocupado com essa margem ou em
como cruzar o rio. Caia n'água sem saber nadar. A beleza da meditação está em você não saber onde
se encontra, para onde se dirige e qual é o fim.
***
Meditação não é algo diferente da vida diária, não é recolher-se a um canto e meditar por dez
minutos e depois encerrá-la e tornar-se um carniceiro - metafórica ou realmente. Meditação é uma
das coisas mais sérias. Pode ser praticada durante todo o dia, no escritório, com a família, quando se
diz a alguém, "Eu te amo", ou quando se está pensando nos filhos. Mas eis que eles são educados
por você para serem soldados, para matar, para serem patriotas, para adorar a bandeira, educando-os
para cair nas armadilhas do mundo moderno.
Observar e perceber sua participação em tudo isso, faz parte da meditação. E quando assim
meditar, você descobrirá uma beleza extraordinária; agirá corretamente a cada momento; e se não
agir corretamente num dado momento, não faz mal: você retomará o reto agir, sem perder tempo
com arrependimentos.
Meditação é parte da vida, não algo diferente dela.
***
Se você se lança à meditação, não haverá meditação. Se você se dispõe a ser bom, a bondade
jamais florescerá. Se você cultivar a humildade, ela deixará de existir. Meditação é a brisa que entra
quando a janela está aberta; mas se você a mantiver aberta, convidando-a deliberadamente a entrar,
ela jamais aparecerá.
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***
***
Que coisa extraordinária é a meditação! Se houver qualquer tipo de compulsão e esforço para
imitar, para ajustar o pensamento, então torna-se um fardo desgastante. O silêncio desejado deixa de
iluminar; se se trata de procura de visões e experiências, então conduz a ilusões e auto-hipnose. É só
com o florescer do pensamento e, por conseguinte, com o seu fim, que a meditação adquire
significado; o pensamento só pode florescer em liberdade, não nos padrões cada vez mais amplos do
conhecimento. O conhecimento pode propiciar as mais novas experiências, de maior sensação, mas a
mente que busca experiências de qualquer tipo é imatura. Maturidade é libertação de toda a
experiência; não se acha mais sob qualquer influência para ser ou não ser.
A maturidade na meditação é a libertação da mente do conhecimento, pois ele molda e
controla toda a experiência. A mente que é uma luz para si mesma não precisa de experiência. A
imaturidade é o desejo de maior e mais ampla experiência. Meditação é o vagar através do mundo do
conhecimento, mas dele liberto para penetrar o desconhecido.
***
Temos de descobrir por nós mesmos e não através de quem quer que seja. Tivemos a
autoridade de professores, salvadores e mestres. Se quiser descobrir realmente o que é meditação,
você tem de deixar de lado, completamente, toda e qualquer autoridade.
***
Felicidade e prazer podem ser comprados em qualquer mercado por um preço. Mas Bem-
aventurança, não - para você ou para qualquer outro. Felicidade e prazer estão comprometidos com o
tempo. Só em total liberdade existe Bem-aventurança. Prazer, como felicidade, pode ser buscado e
encontrado, de muitas maneiras. Mas eles vêm e se vão. Bem-aventurança - esse estranho senso de
alegria - não tem motivo.
Possivelmente, não pode ser procurada. Uma vez ocorrida e, dependendo da qualidade de sua
mente, permanece - sem fim e sem causa, algo não mensurável pelo tempo. Meditação não é busca
de prazer ou felicidade.
Ao contrário, é um estado da mente em que não existe conceito ou fórmula, e existe,
portanto, liberdade total. É só a uma tal mente que ocorre essa Bem-aventurança - que não foi
procurada e nem convidada. Uma vez ocorrida, ainda que possa estar vivendo no mundo - com seus
barulhos, prazeres e brutalidade - a mente não será afetada.
Uma vez ocorrida, cessam os conflitos. Mas o fim do conflito não é, necessariamente, a total
liberdade. Meditação é o movimento da mente nessa liberdade. Nesta explosão de alegria, os olhos
tornam-se inocentes, e o amor torna-se então bênção.
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Não sei se já notaram que quando você presta toda a atenção, há completo silêncio. E, nessa
atenção, não existem fronteiras, nenhum centro, nenhum "eu" para estar consciente ou atento. Essa
atenção, esse silêncio, é um estado de meditação.
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***
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Percepção sem palavras, isto é, sem pensamento, é um dos fenômenos mais estranhos. É
quando a percepção é muito mais aguda, não apenas com o cérebro, mas com todos os sentidos. Tal
percepção não é fragmentária como a do intelecto e nem uma questão de emoções. Pode ser
chamada de percepção total e faz parte da meditação. Percepção sem percebedor é, na meditação,
comungar com a altura e a profundidade do que é imenso. Essa percepção é inteiramente diferente
de ver um objeto sem um observador, porque na percepção da meditação não há objeto; nem
experiência, portanto. A meditação pode, contudo, ter lugar quando estamos de olhos abertos e
cercados de objetos de todo o tipo. Mas, então, tais objetos não têm valor algum. Nós os vemos, mas
não há processo de reconhecimento, o que significa que não há o experienciar.
Qual o significado de tal meditação? Não há significado, nem utilidade. Mas nessa meditação
há um movimento de grande êxtase que não pode ser confundido com prazer. É o êxtase que dá aos
olhos, ao
cérebro e ao coração a qualidade da simplicidade. Se não vermos a vida como algo totalmente novo,
ela e tornará rotineira, aborrecida e fútil. Por isso a meditação é da maior importância. Ela abre as
portas ao incalculável, ao imensurável.
***
A meditação nunca é do tempo; o tempo não pode produzir mutação; pode produzir
mudanças que exigem novas mudanças, como toda reforma. A meditação que deriva do tempo
sempre compromete, nunca é livre, e sem liberdade continuará a haver escolha e conflito.
***
Temos de alterar a estrutura de nossa sociedade, sua injustiça, sua aterradora moralidade, as
divisões que cria entre o homem e o homem, suas guerras, a absoluta falta de afeição e amor que está
destruindo o mundo. Se sua meditação é tão somente uma questão pessoal, que você desfruta
pessoalmente, então não se trata de meditação. Meditação implica numa mudança radical e completa
da mente e do coração. Isto só se torna possível quando existe esse extraordinário silêncio interior e
somente isso produz a mente religiosa. Essa mente sabe o que é sagrado.
***
Beleza significa sensibilidade - um corpo sensível - o que quer dizer dieta correta, modo de
vida correto. A mente, então, sem saber, tornar-se-á inevitável e naturalmente quieta. Você não pode
aquietar a mente porque você mesmo é o trapalhão - perturbado, ansioso e confuso. Como pode
aquietar a mente? Mas quando entender o que é a quietude, a confusão, o sofrimento e o fim do
sofrimento, quando entender o prazer, então, de tudo isso surgirá uma mente extraordinariamente
calma; você não tem de procurá-la. Deve começar do começo e o primeiro passo é também o último.
E isso é meditação.
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***
***
Meditação não é uma fuga do mundo; não é uma atividade isolante, fechada em si; mas, ao
contrário, compreensão do mundo e de seus caminhos. O mundo tem pouco a oferecer além de
comida, roupa, abrigo e prazer com sua contrapartida, o sofrimento.
Meditação é afastamento desse mundo; temos de vê-lo de fora, por inteiro. Assim, o mundo
adquire um significado e a beleza dos céus e da terra torna-se constante. Então, o amor não é prazer.
E disto vem toda a ação que não é resultado da tensão, da contradição, da busca de auto-satisfação
ou idéia de poder.
***
Se você assume uma atitude deliberada, uma postura a fim de meditar, então isso se torna um
jogo, uma brincadeira da mente. Se você decide desembaraçar-se da confusão e infelicidade da vida,
então isso se torna um exercício de imaginação... e isso não é meditação. A mente, consciente ou
inconsciente, não pode tomar parte nisso; não deve nem mesmo estar consciente da extensão e
beleza da meditação - e, se estiver, melhor seria sair e comprar um romance para ler.
Na plena atenção da meditação não há conhecimento, reconhecimento e nem lembrança de
algo acontecido. O tempo e o pensamento cessaram completamente, pois são o centro limitador de
sua própria visão.
No momento de luz, o pensamento fenece. O esforço consciente para experienciar e recordar
torna-se a palavra do que já se foi. E a palavra nunca é a coisa real. Nesse momento, que não é do
tempo, o que resta é o imediato; mas o que resta não possui símbolo, não pertence a ninguém, a
nenhum deus.
***
Meditação é descobrir se não existe um campo ainda não contaminado pelo conhecido.
***
Meditação é o florescer da compreensão. A compreensão não se acha dentro das fronteiras do
tempo; o tempo nunca traz a compreensão. A compreensão não é um processo gradual a ser formado
pouco a pouco, cuidadosa e pacientemente. A compreensão se dá agora ou nunca; é um clarão que
destrui e não uma diversão; é esse estilhaçar que tememos e evitamos, consciente ou
inconscientemente. A compreensão pode mudar o curso de nossa vida, a maneira de pensar e agir,
pode ser agradável ou não, mas é certamente um perigo para toda a relação. Mas, sem a
compreensão, o sofrimento continua. O sofrimento só acaba através do autoconhecimento, da
atenção a cada pensamento e sentimento, a cada movimento do consciente e do que se oculta.
Meditação é compreensão do que é consciente, oculto e aberto, e do movimento que jaz além de
todo pensamento e sentimento.
***
Era uma dessas manhãs adoráveis nunca antes vista. O sol surgia e podia-se vê-lo entre o
eucalipto e o pinheiro. Pairava sobre as águas dourado e brilhante, com uma luz que só existe entre
as montanhas e o mar. Era uma manhã clara que deixa nossa respiração em suspenso, cheia daquela
luz estranha que não se vê apenas com os olhos, mas com o coração. E, ao vê-la, os céus se
aproximam da terra e nos perdemos na beleza. Sabe, não se deve meditar em público, ou com
outrem, ou em grupo: deve-se meditar a sós, na quietude da noite ou no silêncio da manhã bem cedo.
Quando meditar a sós, deverá haver solidão. Deve-se estar completamente a sós, sem seguir um
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sistema, método ou palavras repetitivas, sem perseguir pensamentos ou moldá-los de acordo com
os seus desejos.
Esta solidão vem quando a mente se liberta dos pensamentos. Havendo influência do desejo
ou das coisas que a mente persegue no futuro ou no passado, não há solidão. Essa solidão só vem na
imensidão do presente. Aí então, na quietude do recolhimento em que cessa toda comunicação, em
que não há o observador com suas ansiedades, com seus tolos apetites e problemas - só então, na
quietude da solidão, a meditação torna-se algo que não pode ser colocado em palavras. A meditação
é então um eterno movimento.
Não sei se já meditaram antes, se já estiveram a sós, por si mesmos, afastados de todas as
coisas, de toda pessoa, de todo pensamento e busca, se já estiveram completamente sozinhos - não
isolados ou refugiados em algum sonho fantasioso ou visão - mas afastados, de modo a não haver
coisa alguma reconhecível em vocês, nada que se possa tocar com o pensamento ou sentimento, tão
afastados que nessa
total solidão o próprio silêncio se torna a única flor, a única luz, aquela qualidade eterna que não
pode ser medida pelo pensamento.
Somente em tal meditação o amor tem seu ser. Não se dê ao trabalho de tentar exprimi-lo: ele
se exprimirá por si. Não o utilize. Não tente pô-lo em ação: ele agirá e, ao agir não haverá
arrependimento ou contradição, nenhuma infelicidade ou labuta própria do homem.
Portanto, meditem a sós. Percam-se. E não tentem lembrar por onde andaram. Se tentarem
lembrar, então será algo morto. E se se apegarem à sua lembrança, então, nunca mais estarão de
novo a sós. Portanto, meditem na solidão sem fim, na beleza desse amor, nessa inocência, no novo -
então terá lugar a bem-aventurança que não se acaba.
O céu estava muito azul, daquele azul que vem depois da chuva, daquelas chuvas que vêm
depois de muitos meses de seca. Depois da chuva os céus estavam límpidos, os montes regozijantes
e a terra silenciosa. Cada folha tinha sobre si a luz do sol e sentia-se a terra bem próxima. Portanto,
meditem no mais secreto recesso de seu coração e de sua mente, onde nunca estiveram antes.
***
Meditação não é um meio para um fim; não existe um fim, uma chegada; é um movimento
no tempo e fora do tempo. Todo sistema, todo método, vincula o pensamento ao tempo; mas a
atenção sem escolha a todo pensamento e sentimento, compreendendo-lhes os motivos e o
mecanismo, o que lhes permite florescer, é o começo da meditação. A meditação é um movimento
que transcende o tempo, quando o pensamento e sentimento florescem e morrem. Nesse movimento
há êxtase; no vazio total existe amor; e quando há amor, há destruição e criação.
***
Meditação é aquela luz na mente que ilumina o caminho para a ação e, sem essa luz, não há
amor.
***
Meditação nunca é oração. Oração, súplica, nasce da autopiedade. Você reza quando se acha
em dificuldade, quando existe sofrimento; mas quando está feliz, alegre, não há súplica. Essa
autopiedade, tão enraizada no homem, é a origem da separação. Aquilo que é, ou se pensa separado,
sempre procurando identificação com algo não separado, só traz mais divisão e dor. É a partir dessa
confusão que clamamos aos céus, ao nosso marido ou a alguma deidade criada pela mente. Esse
clamor pode encontrar uma resposta, o eco da autopiedade, em sua separação.
A repetição de palavras, de orações, é auto-hipnótica, auto-enclausurante e destrutiva. O
isolamento do pensamento sempre está dentro do campo do conhecido e a resposta à oração vem do
conhecido.
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A meditação está longe disso. Nesse campo o pensamento não pode entrar; não há
separação e, portanto, nenhuma identidade. Meditação é a céu aberto; nela não segredo. Tudo está
exposto, claro; só então ocorre a beleza do amor.
***
***
***
Era de fato um rio maravilhoso, largo e profundo, com tantas cidades a suas margens; tão
despretensiosamente livre e, no entanto, nunca abandonado. Toda a vida lá estava a suas margens:
campos verdes, florestas, casas isoladas, a morte, o amor e a destruição; havia pontes largas e
compridas sobre ele, graciosas e úteis. Outros riachos e rios juntavam-se a ele, mas ele era a mãe de
todos eles, grandes e pequenos. Sempre cheio, purificando-se; e, ao anoitecer, era uma bênção olhá-
lo, sob nuvens de cores profundas e em suas águas douradas. Mas o pequeno fio d'água, tão longe
entre aquelas gigantescas rochas, parecendo concentradas em produzi-lo, era o princípio da vida e o
seu fim estava além de suas margens e dos mares.
A meditação era como esse rio, só que sem princípio nem fim; teve início, mas seu fim era
também seu começo. Não tinha uma causa e seu movimento era sua renovação. Sempre nova, jamais
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acumulando para envelhecer; sem raízes no tempo, nunca é poluída. Para meditar, é bom não
forçar ou fazer qualquer esforço, começando por um fio d’água e indo além do tempo e espaço, onde
pensamento e sentimento não podem entrar e onde não há experiência.
***
***
No espaço que o pensamento cria à sua volta não existe amor. Esse espaço divide o homem
do homem e nele reside todo o vir-a-ser, a batalha da vida, a agonia e o medo. A meditação é o fim
desse espaço, o fim do "eu". Então, a relação tem um significado bem diferente, pois, nesse novo
espaço, que não é feito de pensamento, o outro não existe, porque você não existe.
Meditação, então, não é a procura de alguma visão, ainda que santificada pela tradição. Ao
invés disso, é um espaço sem fim onde o pensamento não pode entrar. Para nós, o pequeno espaço
feito pelo pensamento em torno de si, que é o "eu", é extremamente importante, pois isso é tudo o
que a mente conhece, identificando-se com tudo nesse espaço. E o medo de não ser nasce nesse
espaço. Mas em meditação, quando isso for compreendido, a mente poderá entrar numa dimensão do
espaço em que ação é inação.
Não sabemos o que é o amor, pois no espaço criado pelo pensamento ao seu redor, chamado
"eu", o amor torna-se conflito entre o "eu" e o "não-eu". Esse conflito, essa tortura, não é o amor.
O pensamento é a negação do amor e não pode entrar naquele espaço onde o "eu" não existe.
Naquele espaço está a bênção que o homem procura e não pode encontrar. Ele a procura dentro das
fronteiras do pensamento e o pensamento destrui-lhe o êxtase dessa bênção.
***
A crença é tão desnecessária quanto o ideal. Ambos dissipam a energia para acompanhar o
desenrolar do fato que acontece, "o que é". Crenças, como ideais, são fugas do fato e na fuga não há
fim do sofrimento. O fim do sofrimento é a compreensão do fato, momento a momento. Não existe
sistema ou método que nos dê compreensão; só uma consciência, sem escolha, de um fato o fará. A
meditação de acordo com um sistema é evitar o fato daquilo que você é; é muito mais importante
compreender a constante mudança dos fatos a seu próprio respeito do que meditar para achar Deus
ou ter visões, sensações e outras formas de entretenimento.
***
A meditação àquela hora era liberdade, era como entrar num mundo desconhecido de beleza
e quietude, um mundo sem imagem, símbolo ou palavra, sem ondas da memória. O amor era a morte
de cada minuto e cada morte, renovação do amor. Não se tratava de apego, pois não havia raízes;
florescia sem uma causa e era uma chama que destruía pelo fogo todas as fronteiras, as cercas
cuidadosamente construídas pela consciência. Era beleza, além do pensamento e do sentimento; não
podia ser retratada numa tela, posta em palavras ou esculpida em mármore. Meditação era alegria e
com ela vinha uma bênção.
***
***
***
Choveu pesado noite e dia e, em sua passagem, a enxurrada precipitava-se rumo ao mar,
tingindo-o de chocolate. Ao andar pela praia, as ondas faziam-se enormes, arrebentando-se com
forças em magnífica curvatura. Ao caminhar contra o vento, sentia-se não haver nada entre você e o
céu, numa celestial abertura. Estar completamente aberto, vulnerável - aos montes, ao mar e aos
homens - é a própria essência da meditação.
Não ter resistência, quaisquer barreiras interiores, estar completa e realmente livre de todo
impulso, compulsão e exigência de menor importância, é caminhar pela vida de braços abertos.
Naquela tarde, ao caminhar sobre a areia molhada, com as gaivotas ao seu redor, sentia-se um
extraordinário senso de ampla liberdade e a grandiosa beleza do amor, não dentro ou fora de você,
mas por toda a parte.
Não percebemos quão importante é estar livre de incômodos prazeres com suas dores, de
modo que a mente fique só. Somente a mente de todo só é aberta. Você sentia tudo isso de repente,
como um vendaval varrendo a terra e você. E lá estava você - desprovido de tudo, vazio - e, no
entanto, escancarado. Sua beleza não residia em palavras e sentimentos, mas parecia estar por toda a
parte - ao seu
redor, dentro de você, sobre as águas e nos montes. Meditação é isso.
***
***
** *
Naquela manhã, o mar era como um lago ou um rio enorme, sem uma onda, e tão calmo que
podia-se ver os reflexos das estrelas, ainda bem cedinho. A madrugada ainda não havia raiado, de
modo que as estrelas, o reflexo dos penhascos e as luzes distantes da cidade refletiam-se sobre as
águas. E quando o sol surgiu no horizonte sem nuvens, traçou uma rota dourada e era extraordinário
ver a luz da Califórnia enchendo a terra e cada folha e talo de grama.
Ao observar, descia uma grande quietude sobre você. O próprio cérebro ficava muito quieto,
sem qualquer reação ou movimento, e era estranho sentir essa imensa quietude. "Sentir" não é a
palavra. A qualidade desse silêncio, dessa quietude, não é sentida pelo cérebro; está além dele. O
cérebro pode conceber, formular ou fazer planos futuros, mas essa quietude o ultrapassa, além de
toda imaginação ou desejo. Você fica tão quieto que seu corpo se torna parte integrante da terra e de
tudo que faz parte dessa quietude.
E quando a brisa suave vinha das montanhas, agitando as folhas, essa quietude, essa
qualidade extraordinária do silêncio, não era perturbada. A casa ficava entre as montanhas e o mar, a
contemplá-lo.
E quando observava-o tão tranqüilo, você se tornava parte de tudo.
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Era-se tudo, a luz e beleza do amor. Mais uma vez, dizer "você se tornava parte de tudo",
não é correto: a palavra "você" não é adequada porque, na verdade, "você" não estava lá. "Você" não
existia. Só havia aquela quietude, beleza e extraordinário sentido de amor.
***
As palavras "você" e "eu" separam as coisas. Mas nesse estranho silêncio e quietude, não
existe essa divisão. E quando se olhava para fora, espaço e tempo pareciam ter chegado ao fim, e o
espaço que divide não era real. Essa folha, aquele eucalipto e a água azul que brilha não eram
diferentes de você.
A meditação é realmente muito simples. Nós a complicamos. Tecemos uma teia de idéias ao
seu redor - o que é e o que não é. Mas ela não é nada disso. Por ser muito simples, escapa-nos; isso
porque nossas mentes são muito complicadas, desgastadas pelo tempo e nele baseadas.
É essa mente que dita as atividades do coração e aí começa a confusão. Quando se anda sobre
a areia ou se olha pela janela aqueles montes maravilhosos queimados pelo sol do último verão, a
meditação vem naturalmente, com uma facilidade extraordinária. Por que somos seres humanos
torturados, com lágrimas nos olhos e um riso falso nos lábios? Se puder caminhar só entre aqueles
montes, nos bosques ou ao longo das areias brancas da praia, nessa solidão você saberá o que é
meditação.
O êxtase da solidão vem quando já não se teme estar só - não mais fazendo parte do mundo,
nem apegado a nada. Então, como a madrugada dessa manhã, vem silenciosamente e traça uma
trilha dourada através da quietude, que lá estava no princípio, que lá está agora e que lá sempre
estará.
***
***
A meditação de uma mente completamente silenciosa é a bênção que o homem está sempre
procurando. Nesse silêncio, reside toda sua qualidade.
***
Uma vez lançada a base da virtude, que é ordem na relação, vem à existência essa qualidade
do amor e do morrer, que pertence toda ela à vida; então a mente se torna extraordinariamente
quieta, naturalmente silenciosa, não através da supressão, da disciplina e do controle, e este silêncio
é imensamente rico.
Além disso, nenhuma palavra ou descrição é de qualquer valia. Então a mente já não
investiga o absoluto, pois, naquele silêncio reside "o que é". E tudo isto é a bênção da meditação.
***
Depois das chuvas, as montanhas estavam esplêndidas, ainda queimadas do sol de verão;
logo, todo o vale brotaria. Tinha chovido bem pesado e a beleza daquelas montanhas era
indescritível. O céu ainda estava encoberto e no ar havia cheiro de sumagre, salva e eucalipto. Era
esplêndido estar entre as árvores e uma estranha calma apossava-se de você. Diferente do mar à
distância, essas montanhas estavam completamente quietas. Ao observar e olhar ao redor, você tinha
deixado tudo lá embaixo naquela cabana - roupas, pensamentos e um estranho modo de vida. Aqui
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viajava-se com muita leveza, sem pensamentos, sem fardos e com um sentimento de total
esvaziamento e beleza. Os pequenos arbustos verdes logo estariam mais verdes e, dentro de poucas
semanas, teriam um cheiro mais forte. As codornas chamavam e umas poucas alçaram vôo. Sem o
saber, a mente estava num estado de meditação em que o amor florescia. Afinal de contas, só no
terreno da meditação pode brotar essa flor. Era realmente maravilhoso e, estranhamente, isso o
acompanhava durante toda a noite; e, ao acordar, muito antes do nascer do sol, lá estava ainda em
seu coração, com incrível alegria, sem qualquer razão aparente. Lá estava, inebriante e sem causa. E
lá ficaria o dia todo, sem que você pedisse ou a convidasse para ficar.
***
***
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Meditação não tem princípio nem fim; nela não há sucesso ou insucesso, acumulação ou
renúncia; trata-se de um movimento sem finalidade e, portanto, além do tempo e espaço.
Experienciá-la é negá-la, pois o experimentador está limitado pelo tempo e espaço, pela memória e o
reconhecimento. O fundamento da verdadeira meditação é aquela atenção passiva que é completa
libertação da autoridade e da ambição, da inveja e do medo. A meditação nada significa sem essa
liberdade, sem o autoconhecimento; enquanto houver escolha, não haverá autoconhecimento.
Escolha implica em conflito que impede a compreensão do que é. Divagar em alguma fantasia ou
crença romântica não é meditação; o cérebro tem de livrar de todo o mito, ilusão e segurança, e
encarar a sua falsidade. Sem distração, tudo se acha em movimento de meditação. A flor é a forma, o
aroma, a cor e a beleza que é toda ela. Despedace-a, de fato ou verbalmente, e não haverá flor; só a
lembrança do que foi, o que nunca é a flor. Meditação é a flor inteira em sua beleza, definhando e
vivendo.
***
***
Estava muito quieto naquela manhã bem cedo e nem um pássaro ou folha agitava-se. A
meditação, iniciada em profundezas incógnitas, prosseguia com intensidade e extensão crescentes,
moldava o cérebro
em total silêncio, removendo a profundidade do pensamento, desenraizando sentimentos e
esvaziando o cérebro do conhecido e sua sombra. Tratava-se de uma operação sem operador ou
14
cirurgião; prosseguia como um cirurgião que operasse um câncer, extirpando todo o tecido
contaminado, por temor de que pudesse se espalhar de novo.
Essa meditação prosseguiu por uma hora pelo relógio. E era meditação sem meditador. O
meditador interfere com suas coisas estúpidas e vaidades, ambições e cobiça. O meditador é o
pensamento, alimentado por esses conflitos e ofensas, e que deve cessar totalmente na meditação.
Eis os fundamentos para a meditação.
***
***
A madrugada demorava a vir, as estrelas ainda brilhavam e as árvores estavam recolhidas;
nenhum pássaro cantava, nem a corujinha que se agitou durante toda a noite, de árvore em árvore.
Tudo estava quieto, exceto pelo bramido do mar. Havia um cheiro de muitas flores, folhas
apodrecidas e chão úmido; o ar estava muito, muito calmo, e o cheiro por toda a parte. A terra
esperava pela madrugada e o raiar do dia; havia expectativa, paciência e uma estranha quietude. A
meditação prosseguiu com essa quietude, que era amor; não o amor de algo ou alguém, imagem,
símbolo, palavra ou retrato. Era simplesmente amor, sem sentimento. Era algo completo em si, nu,
intenso, sem raiz e direção. O som daquele pássaro ao longe era esse amor, que era direção e
distância e que lá se achava fora do tempo e sem palavras.
Não se tratava de uma emoção que desvanece e é cruel; o símbolo, a palavra podem ser
substituídos, mas a coisa não. Nua, era inteiramente vulnerável e, portanto, indestrutível. Tinha a
inabalável resistência daquela "outra coisa", o incognoscível, que vinha através das árvores e d'além
mar. Meditação era o som daquele pássaro, chamando do vazio, e o bramido do mar de encontro à
praia. O amor só se dá no completo vazio. A madrugada acinzentada lá estava, longe do horizonte, e
as árvores escuras estavam ainda mais intensamente escuras. Na meditação não há repetição, um
hábito continuado; tudo que é conhecido morre e o desconhecido floresce. As estrelas tinham se
desvanecido e as nuvens despertavam com a vinda do sol.
***
Meditação é um estado da mente que olha todas as coisas com total e completa atenção, e não
parcialmente.
***
Meditação é a destruição da segurança e nisto existe grande beleza, não das coisas arranjadas
pelo homem ou pela natureza, mas a que vem do silêncio. Este silêncio é o vazio de onde e para
onde todas as coisas fluem e têm o seu ser. É incognoscível; o intelecto e o sentimento não podem
abrir o caminho para ele; não há caminho para ele e qualquer método que a isso se proponha é
invenção de um cérebro ambicioso. Todos os caminhos e meios do eu calculista devem ser
totalmente destruídos; todo avanço ou retrocesso, a via do tempo, deve chegar a um fim, sem
amanhãs. Meditação é destruição; é um perigo para aqueles que desejam levar uma vida superficial,
fantasiosa e cheia de crendices.
***
15
***
É a coisa mais maravilhosa, se você dela se aproxima. Poderia entrar nesse assunto, mas a
descrição não é o descrito. Você deve aprender tudo isso observando-se - nenhum livro ou professor
pode lhe ensinar.
Não dependa de quem quer que seja, não se filie a organizações espirituais; temos de
aprender tudo por nós mesmos. E aí a mente descobrirá coisas inacreditáveis. Mas, para isso, não
deve haver fragmentação e, isto sim, imensa estabilidade, rapidez e mobilidade.
Para tal mente não existe tempo e, por isso mesmo, a vida possui um significado bem
diferente.
FIM
- Diário de Krishnamurti
- O Começo do Aprendizado
- O Despertar da Inteligência
- Além da Violência
- Você é o Mundo
- O Vôo da Águia
- A Questão do Impossível
- A Única Revolução
- Libertação do Conhecido
- Meditações 1969
- Palestras com Estudantes Americanos
1
A mudança real
Uma mudança só é possível do conhecido para o desconhecido, não do conhecido para o
conhecido. Por favor, reflitam sobre isto comigo. Na mudança do conhecido há autoridade, há uma
visão hierárquica da vida - "você sabem eu não sei. Portanto, eu venero você, eu crio um sistema, eu
sigo um guru, eu sigo você porque você está me dando uma certeza de conduta que irá produzir o
resultado, o sucesso". O sucesso é o conhecido. Eu sei o que é ter sucesso. Isto é o que eu quero.
Assim, nós procedemos do conhecido para o conhecido no qual a autoridade tem que existir - a
autoridade da sanção, a autoridade do líder, garantir o sucesso, o sucesso em meu esforço, na
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mudança, de modo que eu serei feliz, eu terei o que eu quero. Não é este o motivo que a maioria de
nós tem para mudar? Por favor, observem de fato seu próprio pensar, e vocês verão os caminhos de
sua própria vida e conduta... Quando vocês olham para isto, acham que é mudança? Mudança,
revolução, é algo do conhecido para o desconhecido na qual não há autoridade, na qual pode haver
fracasso total. Mas, se você tem certeza do que você irá alcançar, você terá sucesso, você será feliz,
você terá vida eterna, então, não há problema. Então, você busca o bem conhecido curso de ação,
que é você próprio estando sempre no centro das coisas.
O DESCOBRIMENTO DO AMOR
Mas, a beleza pura não pode ser partilhada, porque vós não podeis possuí-la, nem eu
também. Ela não é nenhum objeto de uso pessoal; não é um artigo que vós ou eu possamos possuir e
repartir com o outro. A beleza está simplesmente presente, como o poente, como a montanha, como
o rolar do rio, como a quietude vespertina. Porque a beleza está presente, podeis olhá-la e deleitar-
vos com ela; mas não podeis reparti-la com outra pessoa, que deve achar-se também num profundo
estado de percebimento, ser igualmente sensível, inteligente. Porque a beleza não pode ser
partilhada, porém existe para ser admirada, para a fruirmos. Existe para regalo, deleite, de cada um
de nós.
Assim, quando empregarmos a palavra "compartilhar", ela geralmente que um possui e outro
não possui, que eu tenho uma coisa e outro não a tem. Essa atitude, esse sentimento de divisão
reflete a atitude hierárquica ante a vida: o comandante e o soldado raso; o Papa e o sacerdote
comum; o Cardeal de vestes suntuosas e o simples monge, coberto de um pano preto; o homem que
sabe e o homem que não sabe. É essa atitude que cria a autoridade, a ambição, a luta, que causa
infinitos sofrimentos e atribulações.
5
Escutai com toda atenção, porque vamos tratar de algo que não pode ser repartido e, por
conseguinte, não admite co-participação. Deveis compreender verdadeiramente esse mal terrível - se
posso usar tal palavra – da divisão hierárquica da vida, em virtude da qual um sabe e outro não sabe.
A verdade de modo nenhum pode ser dividida em "superior" e "inferior"; por conseguinte, não
admite autoridade, não admite nenhuma atitude hierárquica. A divisão hierárquica da vida é uma
coisa venenosa, aterradora.
Assim, o que nesta manhã vamos fazer não é compartilhar, porém, sim, investigar - vós e eu;
vamos penetrar juntos numa coisa que desconhecemos.
Peço-vos não fiqueis na expectativa do que eu vá ensinar-vos alguma coisa, ou repetir
convosco alguma coisa que não tendes; não espereis de minha parte o esclarecimento ou a liberdade.
Ninguém pode dar-vos liberdade, ninguém pode reparti-la convosco. Mas, quase todos estamos
habituados a essa atitude, segundo a qual uns dão e outros recebem, atitude essa que cria uma
divisão na vida e, por conseguinte, a autoridade com todos os males concomitantes.
Em verdade, não existe seguidor e guia, não há instrutor nem discípulo; e essa é uma coisa
maravilhosa se nós mesmos a compreendemos. Nela há grande beleza, liberdade, o fim do
sofrimento - porquanto significa que devemos trabalhar, investigar, penetrar, destruir tudo o que é
falso e, desse modo, descobrir diretamente.
Do livro "O DESCOBRIMENTO DO AMOR", de Krishnamurti, Ed. Cultrix.
Quando há escuta
Nós estamos conversando como dois amigos, sentados em um bosque, na quietude, pássaros
cantando, a luz atravessando a folhagem e salpicando o chão, um senso de apreciação da beleza, e
quando você escuta dessa maneira, o milagre acontece - quando você escuta.
É como lançar sementes, e se a semente é forte, cheia de vida, saudável, e se o terreno está
preparado adequadamente, ela inevitavelmente cresce.
"Cartas a uma jovem amiga", pela editora Terra sem Caminho – página 77
O importante é a destruição
O importante é a destruição, não a mudança; esta é apenas uma continuidade modificada do
que foi. Todas as reformas sociais são meras reações, uma continuidade modificada do que sempre
existiu. Essa mudança não destrói as raízes do egocentrismo. A destruição no sentido em que
empregamos a palavra, é sem motivo; é uma ação que não visa objetivos nem resultados. (página 10)
... A destruição é essencial. Não de edifícios e coisas, mas de todos os mecanismos de defesa
psicológica adotada pelo homem, dos seus deuses, de suas crenças, da dependência de cunho
religioso, das experiências, do conhecimento, etc. A criação só é possível quando tudo isso deixar de
existir. Ela surge do estado de liberdade. Ninguém pode ajudar-nos a destruir essas defesas; isso só é
possível através do autoconhecimento. Reformas sociais ou econômicas acarretam mudanças
superficiais de maior ou menor alcance, mas sempre dentro do limitado campo do pensamento. Para
que ocorra a revolução total, o cérebro tem de renunciar à sua intima e secreta estrutura de
autoridade, de inveja, do medo, e assim por diante (que é a mesma estrutura psicológica da
sociedade) (página 11).
Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Madrasta 27.11.61
***
AUTOCONHECIMENTO
Em meio a tanta confusão e sofrimento, é essencial encontrar um entendimento criativo de nós
mesmos, pois sem ele nenhum relacionamento é possível. Somente através do pensar correto pode
haver entendimento. Nem líderes, nem um novo conjunto de valores, nem um projeto pode produzir
este entendimento criativo; somente através do nosso próprio esforço correto pode haver
entendimento
correto.
Como é possível então encontrar este entendimento essencial? De onde começaremos a
descobrir o que é real, o que é verdadeiro, confusão e miséria? Não é importante descobrirmos por
nós mesmos como pensar corretamente sobre a guerra e a paz, sobre a condição econômica e social.
sobre nosso relacionamento com os nossos companheiros? Certamente existe uma diferença entre o
pensar correto e o pensamento correto e condicionado. Podemos ser capazes de produzir em nós
mesmos pensamento correto imitativamente, mas tal pensamento não é o pensar correto. O
pensamento correto / condicionado é não-criativo. Mas quando soubermos como pensar
corretamente por nós mesmos - que é ser vivo, dinâmico - então é possível produzir uma cultura
nova e mais feliz.
Gostaria de, durante estas palestras, desenvolver o que me parece ser o processo do pensar
correto, para que cada um de nós seja realmente criativo - e não meramente fechado em uma série de
idéias e preconceitos. Como vamos então começar a descobrir por nós mesmos o que é o pensar
correto? Sem o pensar correto não é possível a felicidade. Sem o pensar correto, nossas ações, nosso
comportamento, nossos afetos, não têm base.
O pensar correto não é para ser descoberto através dos livros, através do assistir a umas poucas
palestras, ou por escutar meramente algumas idéias de pessoas sobre o que é o pensar correto. O
pensar correto é para ser descoberto por nós mesmos através de nós mesmos. O pensar correto vem
com o autoconhecimento. Sem autoconhecimento não existe pensar correto. Sem conhecer-se a si
mesmo, o que você pensa e o que sente não pode ser verdadeiro.
A raiz de todo entendimento encontra-se no entendimento de si mesmo. Se você pode
descobrir quais são as causas de seu pensamento-sentimento, e a partir desta descoberta, saber como
pensar-sentir, então existe o começo do entendimento. Sem conhecer-se a si mesmo, a acumulação
de idéias, a aceitação de crenças e teorias não têm base. Sem conhecer-se a si mesmo, você sempre
será pego na incerteza, dependendo do humor, das circunstâncias. Sem entender-se a si mesmo
completamente, você não pode pensar corretamente. Com certeza isto é óbvio. Se eu não sei quais
são os meus motivos, minhas intenções, meu "background" (fundo), meus pensamentos-sentimentos
particulares, como é que posso concordar ou discordar de outra pessoa? Como posso avaliar ou
estabelecer minha relação com outra pessoa? Como posso descobrir qualquer coisa da vida se não
8
conheço a mim mesmo? E conhecer a mim mesmo é uma tarefa enorme, que requer observação
constante, uma vigilância meditativa.
Esta é nossa primeira tarefa, mesmo antes do problema da guerra e da paz, dos conflitos
econômicos e sociais, da morte e da imortalidade. Estas questões vão surgir, elas hão de surgir, mas
na descoberta de nós mesmos, no entendimento de nós mesmos, estas questões serão respondidas
corretamente. Assim, aqueles que são realmente sérios nestas questões devem começar por eles
mesmos, a fim de entender o mundo do qual são uma parte. Sem entender-se a si mesmo você não
pode entender o todo.
O autoconhecimento é o começo da sabedoria. É cultivado pela busca individual de si mesmo.
Não estou colocando o indivíduo em oposição à massa (ao coletivo).
Eles não são antíteses. Você, o indivíduo, é a massa, é o resultado da massa. Se entrar dentro
disto profundamente, você irá descobrir por si mesmo. que você é tanto o coletivo quanto o
individual. É como um córrego que está constantemente fluindo, deixando pequenos redemoinhos, e
a estes redemoinhos chamamos de individualidade, mas eles são o resultado desse constante fluxo de
água. Seus pensamentos-sentimentos, aquelas atividades mentais-emocionais, não são o resultado do
passado, do que chamamos a multiplicidade? Você não tem pensamentos-sentimentos similares aos
do seu vizinho?
Assim, quando falo de indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa, ao coletivo. Ao
contrário, quero remover este antagonismo. Este antagonismo que coloca em oposição a massa e
você, indivíduo, cria confusão e conflito, crueldade e miséria. Mas se pudermos entender como o
indivíduo, você, é parte do todo, não apenas misticamente, mas realmente, então nos libertaremos de
modo feliz e espontâneo, da maior parte do desejo de competir, de ter sucesso, de iludir, de oprimir,
de ser cruel, ou de se tomar um seguidor ou um líder. Então veremos o problema da existência de
modo diferente. E é importante entender isto profundamente. Enquanto nos virmos como indivíduos,
separados do todo, competindo, obstruindo, em oposição, sacrificando o coletivo pelo particular, ou
sacrificando o particular pelo coletivo, todos aqueles problemas que surgem deste conflitante
antagonismo não terão solução feliz e duradoura, pois são o resultado do pensar-sentir incorreto.
Agora, quando falo sobre o indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa.
O que eu sou? Sou um resultado - sou o resultado do passado, de inúmeras camadas do
passado, de uma série de causas-efeitos. E como posso estar em oposição ao todo, ao passado,
quando sou o resultado daquilo tudo? Se eu, que sou a massa (o coletivo), se não entender a mim
mesmo, não apenas entender o que está fora da minha pele, objetivamente, mas subjetivamente,
dentro da pele, como posso entender outra pessoa, o mundo? Entender a si mesmo requer desapego
amável e tolerante. Se você não entender a si mesmo, não entenderá nada mais. Pode ter grandes
ideais, crenças e fórmulas, mas elas não terão realidade. Serão enganos.
Assim, você deve conhecer-se a si mesmo para entender o presente - e através do presente, o
passado. Do presente conhecido, as camadas escondidas do passado são descobertas, e esta
descoberta é libertadora e criativa.
O autoconhecimento requer um estudo objetivo, amável, desapaixonado de nós próprios – nós
próprios sendo o organismo como um todo, nosso corpo, nossos sentimentos, nossos pensamentos.
Eles não estão separados, mas interligados. É somente quando entendemos o organismo como um
todo que podemos ir além – e podemos descobrir coisas mais adiante, maiores, mais vastas. Mas sem
este entendimento primário, sem colocar o alicerce correto para o pensar correto, não podemos
prosseguir para alturas maiores.
Torna-se essencial produzir em cada um de nós a capacidade de descobrir o que é verdadeiro,
pois o que é descoberto é libertador, criativo. Pois o que é descoberto é verdadeiro. Ou seja, se
meramente nos conformarmos a um padrão do que deveríamos ser, ou cedermos a um anseio,
produziremos certos resultados conflitantes, confusos. Mas no processo do nosso estudo de nós
mesmos, estamos numa viagem de autodescoberta, o que traz alegria.
Existe uma certeza no pensar-sentir negativo em vez do pensar-sentir positivo.
De uma maneira positiva supomos o que somos, ou cultivamos positivamente nossas idéias em
relação a outras pessoas, ou em relação a nossas próprias formulações.
9
E, portanto, dependemos de autoridade, de circunstâncias, esperando com isto estabelecer uma
série de idéias e ações positivas. Ao passo que se você examina, verá que existe concordância na
negação; existe certeza no pensar negativo, que é a mais alta forma de pensar. Quando você
descobrir a negação verdadeira e a concordância na negação, então poderá construir mais adiante no
positivo.
A descoberta que reside no autoconhecimento é árdua, pois o começo e o fim estão em nós.
Buscar felicidade, amor, esperança fora de nós, leva-nos à ilusão, ao sofrimento; encontrar
felicidade, paz, alegria dentro (de nós) requer autoconhecimento. Somos escravos das pressões
imediatas e exigências do mundo, e somos desviados por tudo isso e dissipamos nossas energias em
tudo isso, e assim temos pouco tempo para estudar a nós mesmos. Estarmos profundamente cientes
de nossos motivos, de nossos desejos de alcançar, de vir-a-ser, exige constante atenção interna. Sem
o entendimento de nós mesmos, mecanismos superficiais de reforma social e econômica, mesmo que
necessários e benéficos, não irão produzir unidade no mundo, mas somente maior confusão e
miséria.
Muitos de nós pensamos que a reforma econômica de uma ou outra forma vai trazer paz ao
mundo; ou que a reforma social, ou uma religião especializada conquistando todas as outras vai
trazer felicidade ao homem. Acredito que haja algo como oitocentas ou mais seitas religiosas neste
país, cada uma competindo, fazendo proselitismo. Vocês pensam que uma religião competitiva vai
trazer paz, unidade e felicidade à humanidade? Pensam que qualquer religião especializada seja o
Hinduísmo, o Budismo ou o Cristianismo, vai trazer paz? Ou devemos colocar de lado todas as
religiões especializadas e descobrir a realidade por nós mesmos? Quando vemos o mundo explodido
por bombas e sentimos os horrores que estão acontecendo nele; quando o mundo está fragmentado
por religiões, nacionalidades, raças e ideologias separadas, qual é a resposta a tudo isso? Não
podemos apenas continuar vivendo uma vida curta e morrendo - e esperar que algum bem, advenha
disso. Nós não podemos deixar isso para os outros – trazer felicidade e paz à humanidade, pois a
humanidade é nós mesmos, cada um de nós.
Aonde se encontra a solução, senão em nós mesmos? Descobrir a resposta real requer
profundo pensamento-sentimento e poucos de nós estão dispostos a resolver essa miséria. Se cada
um de nós considerar esse problema como jorrando de dentro - e não ser meramente conduzido
nessa confusão e miséria pavorosa, então iremos encontrar uma resposta simples e direta.
No estudo e, assim, no entendimento de nós mesmos, virá claridade e ordem. E só pode haver
claridade no autoconhecimento, que nutre o pensar correto. O pensar correto vem antes da ação
correta. Se nos tornarmos conscientes de nós mesmos e assim cultivarmos o autoconhecimento de
onde jorra o pensar correto, então criaremos um espelho em nós que refletirá, sem distorções, todos
os nossos pensamentos-sentimentos. Estar assim autoconscientes é extremamente difícil, já que
nossas mente estão acostumadas a divagar e a estar distraídas. Suas divagações, suas distorções são
de seu próprio interesse, suas próprias criações. No entendimento disto - e não meramente colocando
isto de lado - vem o autoconhecimento e o pensar correto. É apenas por inclusão e não por exclusão,
não por aprovação ou condenação ou comparação, que vem o entendimento.
Palestra de Krishnamurti realizada em Ojai, Califórnia, EUA, 1944. Trad. de Rachel
Fernandes
***
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ESCUTAR E APRENDER
Como vamos realizar dez palestras, poderemos considerar os nossos problemas com vagar e
paciência, e inteligentemente. Aos que sentem verdadeiro empenho e não vieram por mera
curiosidade ouvir uma ou duas palestras, é muito importante que compreendam todas as
complicações e problemas que afligem cada ente humano, porquanto, compreendê-los é resolvê-los
e deles libertar-se completamente.
Há certas coisas que devem desde já ficar assentada.
Primeiro, temos de compreender o que é "comunicação", o que esta palavra significa para
cada um de nós, o que implica, qual a estrutura, a natureza da comunicação. Para que dois de nós,
vós e eu, possamos comunicar-nos um com o outro, deve haver não só compreensão verbal do que se
diz, no nível intelectual, mas também, e conseqüentemente, o ato de escutar e de aprender.
Estas duas coisas são, a meu ver, essenciais, para que possamos comunicar-nos uns com os
outros: escutar e aprender.
Em segundo lugar, cada um de nós tem, decerto, o seu fundo de conhecimento, de
preconceito e experiências, e também seus sofrimentos e os inúmeros e complexos problemas
inerentes à vida de relação.
Tal é o nosso conteúdo, e com ele pretendemos escutar.
Afinal de contas, cada um de nós é o resultado de nossa complexa vida cultural - resultado de
toda cultura humana, com a educação e as experiências não só de uns poucos anos, mas de séculos.
Não sei se alguma vez examinastes a maneira como escutais, não importa o quê - uma ave, o
vento entre as folhas, a correnteza das águas; ou como escutais um diálogo que travais com vós
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mesmos, as conversações que tendes em vossas relações com amigos íntimos, vossa mulher ou
marido. Quando tentamos escutar, achamo-lo muito difícil, porque estamos sempre a projetar nossas
opiniões e idéias, nossos preconceitos, nosso fundo, nossas inclinações, nossos impulsos; quando
esse fundo predomina, dificilmente escutamos o que se diz.
Nesse estado nenhum valor existe.
Só se pode escutar e, por conseguinte, aprender, quando nos achamos num estado de atenção,
num estado de silêncio em que todo aquele fundo está em suspenso, quieto; então, parece-me, há
possibilidade de comunicação.
Há várias coisas a considerar.
Se escutais com o fundo ou imagem que formastes a respeito do orador, se o escutais
atribuindo-lhe uma certa autoridade - que o orador, pode ter ou não - então é bem evidente que não
estais escutando. Estais escutando a "projeção" que à vossa frente colocastes, e esta vos impede de
escutar.
Assim, mais uma vez, é impossível a comunicação.
Evidentemente, a verdadeira comunicação ou comunhão só pode verificar-se quando há
silêncio. Quando duas pessoas desejam seriamente compreender uma certa coisa, aplicando por
inteiro a mente, o coração, os nervos, os olhos, os ouvidos, a compreendê-la, então, nessa atenção,
existe um certo silêncio; verifica-se então a verdadeira comunicação, a verdadeira comunhão.
Aí, não há apenas aprender, mas também completa compreensão - e essa compreensão não
difere da ação imediata.
Isto é, quando uma pessoa escuta sem nenhuma intenção, sem nenhuma barreira, deixando de
parte todas as opiniões, conclusões, etc., toda a experiência - então, nesse estado, não só se
compreende se o que se está dizendo é verdadeiro ou falso, mas, ainda, se verdadeiro, há ação
imediata e, se falso, não há ação nenhuma.
Nestes estudos, não só iremos aprender a respeito de nós mesmos - o que é de importância
primária - mas também ver que no próprio processo de aprender há ação. Não se trata de primeiro
aprender e depois agir, porém, antes, o próprio ato de aprender é ação.
Para nós, como atualmente somos, o aprender implica acumulação de idéias - e as idéias são
pensamento racionalizado e cuidadosamente elaborado.
À medida que aprendemos vamos formulando uma estrutura de idéias e, uma vez
estabelecida a fórmula de idéias, ideais ou conclusões, atuamos.
A ação, portanto, está separada da idéia.
Assim é nossa vida: primeiro formulamos e, depois, tratamos de agir em conformidade com o
formulado.
Mas, estamos considerando uma coisa muito diferente, ou seja, que o ato de aprender é ação;
que no próprio processo de aprender, a ação está se verificando e, por conseguinte, não há, conflito
algum.
Acho importante compreender desde já que não estamos formulando nenhuma filosofia,
nenhuma estrutura intelectual de idéias, ou de conceitos teológicos ou puramente racionais.
Interessa-nos promover em nossa vida uma revolução total, sem nenhuma relação com a
estrutura da sociedade, tal como existe. Ao contrário, se não compreendemos a inteira estrutura
psicológica da sociedade de que fazemos parte estrutura que formamos através de séculos, e dela nos
libertamos inteiramente, não haverá revolução, total.
E uma revolução dessa espécie é absolutamente necessária.
Deveis saber do que está ocorrendo no mundo; desse enorme e transbordante
descontentamento que se manifesta de diferentes maneiras - os hippies, os "beatniks", os "provos" da
América - e das guerras que se estão travando, e pelas quais somos responsáveis.
Não são apenas os americanos e os vietnamitas, porém cada um de nós, os responsáveis por
essas guerras monstruosas.
Não estamos empregando superficialmente a palavra "responsáveis".
Nós somos responsáveis, não importa se a guerra está no Oriente Médio, ou no Extremo
Oriente, ou noutra parte qualquer. Há fome, em grande escala, governos ineptos, acumulação de
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armamentos, etc. Observando tudo isso, somos natural e humanamente levados a exigir uma
mudança, uma revolução em nossas maneiras de pensar e de viver.
Quando começará essa revolução?
Os comunistas, os nacionalistas, e todas as autoridades religiosas sempre pensaram que o
indivíduo não tem importância nenhuma, que pode ser persuadido a seguir em qualquer direção.
Embora garantam a libertação para o homem em geral, tudo fazem para impedir essa libertação. As
religiões organizadas de todo o mundo põem "em branco" a mente das pessoas a fim de fazê-las
adaptar-se a determinado padrão a que chamam "idéias e ritos religiosos". Os comunistas, os
capitalistas, os socialistas não se importam em absoluto com o indivíduo, embora tanto falem a
respeito dele; mas, não vejo como possa verificar-se uma revolução radical, A NÃO SER através do
indivíduo.
Pois o ente humano individual é o resultado da experiência, do conhecimento e da conduta
totais do homem; tudo isso está em nós. Somos o depósito de todo passado, da experiência racial,
familiar e individual da vida; somos isso e, a menos que em nossa própria essência haja uma
revolução, uma mutação, não vejo possibilidade de nascer uma sociedade boa.
Falando do indivíduo, não o estamos opondo ou colocando contra a coletividade, a massa, o
todo da humanidade. A menos que sintais assim, o que acabo de dizer se tornará um mero conceito
intelectual. A menos que cada um de nós reconheça o fato central, ou seja, que nós, como indivíduos
humanos, representamos o todo da humanidade, não importa se vivemos no Oriente ou no Ocidente
– não saberemos agir.
Nós, entes humanos, somos totalmente responsáveis pelo estado que se acha o mundo. As
guerras - por elas somos responsáveis, por causa da nossa maneira de viver, pois somos
nacionalistas, alemães, franceses, holandeses, ingleses, americanos, russos; somos católicos,
protestantes, judeus, budistas, pertencemos ao Zen, a esta ou àquela seita, dividindo-nos, disputando,
lutando uns contra os outros.
Nossos deuses, nossas nacionalidades nos dividiram.
Ao perceberdes, não intelectualmente, porém realmente tão realmente como sentis que tendes
fome, que vós e eu, como entes humanos, somos responsáveis por todo este caos, por toda esta
aflição - pois estamos contribuindo para essa situação, dela somos parte – ao percebermos isso, não
emocionalmente, nem intelectualmente, nem sentimentalmente, porém de maneira real, o problema
se tornará então sumamente sério.
Ao tornar-se verdadeiramente sério esse conhecimento, então agireis.
Só quando isso acontecer, quando vos sentirdes inteiramente responsável por esta monstruosa
sociedade, com suas guerras, suas divisões e tantas outras coisas horríveis - brutalidades, ambições,
etc; só quando cada um de nós perceber bem isso poderemos agir. E só se pode agir quando se sabe
que esta estrutura, não só a exterior, mas também a interior, foi reunida peça por peça. Eis porque
devemos conhecer-nos, pois quanto mais uma pessoa se conhece, tanto mais amadurecida está.
Só há falta de maturidade na ignorância de si mesmo.
O que vamos fazer é aprender a respeito de nós mesmos - não de acordo com este que vos
fala, ou de acordo com Freud ou Jung ou um certo analista ou filósofo, porém aprender o que
realmente somos. Se aprendermos a respeito de nós mesmos de acordo com Freud, aprenderemos a
respeito de Freud e não de nós mesmos.
Para aprendermos a respeito de nós mesmos, toda autoridade deve deixar de existir - toda e
qualquer autoridade, a autoridade da igreja, do pároco de nossa freguesia, ou do analista famoso, dos
maiores filósofos, com suas fórmulas intelectuais, etc. etc. A primeira coisa, portanto, que se precisa
compreender, quando nos tornamos sérios e exigimos uma revolução total na estrutura de nossa
própria psique - a primeira coisa que devemos compreender é que não existe autoridade de espécie
alguma.
Isso é dificílimo, porquanto não só existe a autoridade externa, fácil de rejeitar, mas também
a autoridade interna, a autoridade interior da experiência, dos conhecimentos acumulados, das
opiniões, idéias, ideais de cada um que lhe guiam a vida e de acordo com os quais o indivíduo
procura viver. Libertar-se dessa autoridade é dificílima - não só da autoridade que seguimos em
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relação às coisas exteriores, mas também da autoridade de ontem, da experiência de ontem que nos
ensinou alguma coisa; o que ensinou se torna a autoridade de hoje.
Por favor, compreenda isso, sua sutileza, sua dificuldade.
Há não só a autoridade do conhecimento acumulado como tradição, a autoridade das
experiências que nos deixaram sua marca, mas também a autoridade de ontem, tão destrutiva como
a de mil anos. A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade de ontem nem de um
milênio atrás, porque cada um de nós é uma força viva, sempre em movimento, nunca, em repouso,
em perene fluir.
Quando nos olhamos com a autoridade de ontem, o que tem importância é a autoridade e não
o movimento da vida, que somos nós, e por essa razão não compreendemos o movimento, a fluidez,
a beleza e a natureza desse movimento: só compreendemos a autoridade que acumulamos e com a
qual estamos examinando, observando. Libertar-se dessa autoridade é morrer para todas as coisas de
ontem, para que a mente se conserve sempre juvenil, inocente, cheia de vigor e de paixão; só neste
estado uma pessoa observa e aprende.
Essa liberdade já não é então um instrumento que pode ser manejado pela autoridade, a nosso
gosto ou contragosto. Para tanto, requer-se muito percebimento, percebimento real do que se passa
em nosso interior, sem o corrigirmos, sem lhe dizer o que deve ser ou não deve ser; porque, se
corrigis, está estabelecida a autoridade, o censor.
Se sentis disposição, seriedade, se não me estais ouvindo superficialmente ou por mera
curiosidade, penetremos em nós mesmos, passo a passo, sem perder um só movimento. Isso não
significa que o orador vai ser "o analista", porquanto não há analista nem ninguém para ser
analisado; o que há é tão - somente o fato – o que é.
Quando sabemos olhar o que é, o analista deixa de existir, totalmente.
Por conseguinte, nestes estudos vamos entrar em comunhão, não há respeito do que "deveria
ser", ou do "que foi", porém a respeito do que está realmente acontecendo em nós; não sobre como
sobre alterar o fato ou o que ou o que devemos fazer com ele, porém como observar e ver o que
realmente é.
Isso exige intensa energia.
Nós nunca olhamos aquilo que é - nunca olhamos a árvore "tal qual é", as sombras, a
densidade da folhagem "tal com é", totalmente - nunca olhamos a sua beleza. Isso acontece porque
temos conceitos sobre a beleza e temos fórmulas de como devemos olhar a árvore, ou porque
desejamos identificar-nos com ela. Temos primeiramente uma idéia sobre a árvore e depois é que a
vemos.
A idéia, a fórmula, o ideal impede-nos de olhar a árvore tal como é.
As idéias, as fórmulas, os ideais encerram a cultura em que vivemos; essa cultura sou eu, sois
vós, e com essa cultura nós olhamos e, por conseguinte, isso não é olhar, em absoluto.
Ora bem, se estais escutando o que se está dizendo, escutando-o realmente, então a cultura, a
autoridade, desaparecerão de todo e não tereis mais necessidade de lutar contra esse fundo, contra
essa cultura da sociedade em que fostes criados; compreendereis que é isso o que vos está impedindo
de olhar.
Só quando olhais realmente, estais em comunhão, tendes o contato correto, não só com a
árvore, com a nuvem, com a montanha, com a beleza da Terra, mas também estais em contato direto
com a realidade existente em vós mesmo. E quando há contato direto, não há problema de espécie
alguma . Só quando não há contato, quando vós sois o "observador", e a "coisa observada" diferente
de vós, é só então que surge o problema, que há conflitos, aflições, dores e ansiedades.
Durante estes estudos iremos ajudar-nos mutuamente a aprender e, portanto, a estar em
contato com o que realmente é; isso significa que está acabado o "observador" e que olhar, escutar,
compreender, agir, é uma só coisa.
Vamos conversar sobre o que estivemos dizendo ou sobre outro assunto que preferirdes?
Considero muito importante fazer perguntas, fazê-las não só a outrem, mas também a nós mesmos.
Nunca fazemos uma pergunta fundamental e, quando a fazemos, falta-nos tempo, inclinação ou
capacidade para achar a resposta correta.
O perguntar requer muita seriedade.
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Quanto mais profunda a questão, tanto mais difícil achar-lhe a resposta.
Mas, no próprio ato de perguntar, se a pergunta é feita seriamente, encontra-se a resposta.
É necessário fazer perguntas!
INTERROGANTE: Não entendo o que dizeis sobre "ação imediata".
KRISHNAMURTI: Que é ação?
O significado real dessa palavra é "fazer".
A ação implica um presente ativo.
Mas, nossa ação é o resultado dos maneirismos, conhecimentos, experiências, idéias,
fórmulas, de ontem, que se firmaram e estabilizaram, e de acordo com os quais agimos. A lembrança
de ontem, modificada, etc., atua no presente e este cria o futuro. Por conseguinte não há, nessa ação,
um presente ativo; estou atuando em conformidade com uma coisa morta. É claro que necessito da
memória, em certas categorias de atividade técnicas, etc.. Mas o agir de acordo com a memória só
produz ação que nenhuma ação é, porém uma coisa morta; por conseqüência, o amanhã é também
uma coisa morta.
Assim, que se deve fazer?
Preciso aprender a respeito de uma ação que seja totalmente diferente da ação da memória.
Para tal, preciso perceber, não intelectual, verbal ou sentimentalmente, o que realmente sucede. Tive,
por exemplo, uma experiência de cólera ou de prazer, e essa experiência permanece como memória e
minha ação se realiza em conformidade com essa memória. Essa ação oriunda da memória aumenta
a cólera, ou o prazer, e está sempre a acumular o passado; tal ação do passado é virtualmente,
inação. Pode a mente libertar-se dessas "memórias" de ontem e ficar vivendo no presente?
Esta pergunta não requer uma resposta intelectual.
Tampouco pode a mente, que é coisa do tempo, sujeita a uma infinidade de caprichos,
libertar-se das lembranças de ontem, procurando "viver no presente", conforme preceitua uma certa
filosofia que nos diz que não há futuro, que não há passado, que não há esperanças e, por
conseguinte, devemos viver no presente e dele tirar o melhor proveito possível.
Não posso viver no presente, se o presente está ensombrado pelo passado. Para compreender
isso, a mente deve ser capaz de olhar, e só pode olhar quando não há condenação, identificação,
julgamento; olhar - assim como se olha uma árvore, uma nuvem - simplesmente. Antes de poderdes
olhar a estrutura altamente complexa da memória, deveis ser capaz de olhar uma árvore, uma
formiga, ou o movimento do rio.
Olhar - em verdade nunca o fazemos!
É importantíssimo olhar o passado, como memória, e isso não sabemos fazer.
A ação em conformidade com a memória é inação total e, conseqüentemente, não há
revolução alguma.
INTERROGANTE: Pergunto se há contradição entre o dizerdes que o indivíduo é o
"coletivo", resultado do passado, e o dizerdes que não deve haver nenhuma autoridade vinda do
passado.
KRISHNAMURTI: Afinal de contas, essa autoridade do passado, que conferimos a outrem -
o sacerdote, o analista, o chefe militar, ou a esposa ou marido – dessa autoridade eu necessito para
minha própria segurança, minha própria proteção.
Tal autoridade, o homem a vem aceitando há séculos e séculos. Ora, o homem instituiu a
autoridade, deseja a autoridade, porque, quanto mais confuso está, quanto mais infeliz se sente, tanto
mais deseja ter quem lhe diga o que deve fazer. A autoridade de que ele revestiu outra pessoa, ou a
autoridade que em si próprio criou, para guiá-lo, torna-se um empecilho.
Como vedes, é sobremodo complexa esta questão da autoridade e do indivíduo. Para
compreendermos o indivíduo, temos de compreender o "coletivo", pois neste se encontra toda
estrutura da autoridade. Todos andamos em busca de segurança, nesta ou naquela forma. Segurança
em nossos empregos, segurança no ter dinheiro, segurança na continuidade de um certo prazer,
sexual ou outro, e a exigência de segurança total, comum a todos nós.
Essa ânsia de segurança procuramos expressar de diferentes maneiras.
No momento em que existe a exigência de segurança, torna-se necessária a autoridade, é bem
de ver; tal é a estrutura psicológica e cultural de nossa sociedade. Alguma vez indagamos se essa
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segurança que tanto buscamos existe deveras? Temos por certa a sua existência. Sempre buscamos a
segurança através das igrejas, dos líderes políticos, das relações, mas já a achamos alguma vez - já a
achastes?
Alguma vez a encontrastes nas vossas relações?
Existe segurança em alguma relação, alguma igreja, algum governo, salvo a segurança física?
Podeis achar segurança numa crença, em certos dogmas, mas essa segurança é uma simples idéia
que pode ser despedaçada pela lógica, pela dúvida, pelo indagar, pela necessidade de liberdade.
Quando se compreende - não como idéia - que tal coisa, a segurança, a permanência, não existe,
então a autoridade perde toda a sua importância.
INTERROGANTE: Parece-me que dissestes que nós somos responsáveis pelo todo da
sociedade. Não interpretei exatamente o que queríeis dizer. Somos responsáveis pelas guerras, etc?
KRISHNAMURTI: Pensais que não somos responsáveis pelas guerras? Nossa maneira de
vida indica que somos brutais, agressivos, que temos preconceitos violentos, que nos dividimos em
nacionalidades, em grupos religiosos que se odeiam uns aos outros, que nos destruímos mutuamente
nos negócios. Isso tudo só pode expressar-se em guerras, em ódio, está visto. Viver em paz significa
viver pacificamente, todos os dias, não achais?
INTERROGANTE: Eu diria que certas pessoas são mais responsáveis do que outras.
KRISHNAMURTI: Ah! Diz esse senhor que certas pessoas são mais responsáveis por esses
horrores do que vós e eu. Eis aí uma saída cômoda e feliz. Mas, quando vós sois alemão e eu sou
russo, quando sois comunista e eu capitalista, não estamos em luta um com o outro?
Não somos antagonistas?
Quereis que tudo fique como está, sem perturbações, porque tendes algum dinheiro, tendes
um filho, tendes uma casa e pelo amor de Deus não desejais ser perturbado; e tudo quanto vos
perturba vos é odioso. Não sois responsável quando fazeis questão de não serdes perturbado? E
quando dizeis "Minha religião, meu Buda, meu Cristo, meu isto ou aquilo - eis o meu Deus" - desse
Deus fizestes depender tudo, toda a vossa segurança e aflição; não desejais ser perturbado. Se outro
homem pensa diferentemente, o odiais.
Viver pacificamente, em cada dia significa, com efeito, não ter nenhuma nacionalidade,
nenhuma religião, nenhum dogma, nenhuma autoridade.
Paz significa amar, ser bondoso; se não a tendes, sois então responsáveis por toda a confusão
existente.
__
Estudo da 1ª palestra realizada por Krishnamurti em 9 de julho de 1967 em Saanen, Suíça,
págs 7/17 do livro "COMO VIVER NESTE MUNDO" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso
***
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PERCEPÇÃO
Que ansiedade pomos na resolução dos nossos problemas! Com que insistência buscamos
uma resposta, uma saída, um remédio! Nunca consideramos o problema em si, mas, cheios de
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agitação e ansiedade, lutamos por encontrar uma solução, a qual é invariavelmente uma projeção de
nós mesmos. Embora o problema tenha sido criado por nós, queremos encontrar uma solução fora
dele. Procurar uma solução fora do problema é evitar o problema - sendo isto o que quase todos nós
queremos. A solução torna-se assim aquilo que é mais significativo, e o problema não. A solução
não está separada do problema; está no problema, e não fora dele; a solução está no problema, não
fora deste. Se pensamos que a solução está desligada do problema principal, criamos problemas
secundários: o problema de como conseguir a solução, de como levá-la a efeito, etc. Visto que a
busca de solução é uma maneira de fugir ao problema, deixamo-nos tomar pelos ideais, convicções,
experiências, que são autoprojeções; adoramos estes ídolos criados por nós, e assim nos tornamos
mais e mais confusos e cansados. Arranjar uma solução é relativamente fácil; compreender um
problema é muito difícil, exigindo-se um outro modo de abordagem, uma abordagem que não
implique nenhum desejo de solução.
Estarmos livres do desejo de uma resposta é essencial para a compreensão do problema. Esta
liberdade facilita toda a atenção, porque através desta a mente não está sujeita a ser distraída por
questões secundárias. Enquanto houver conflito, ou oposição, com o problema, não haverá
compreensão do mesmo; pois este conflito é distração. Só há compreensão quando há comunhão, e
esta é impossível se há resistência ou luta, medo ou aceitação. Temos de estabelecer a relação
correta com o problema: é aqui que começa a compreensão; mas como é possível uma relação
correta com o problema, se só nos interessa livrar-nos dele, encontrando uma solução para ele? A
relação correta significa comunhão, e não pode existir comunhão se há resistência, positiva ou
negativa. O modo de abordagem do problema torna-se assim mais importante do que o próprio
problema; a maneira como consideramos o problema afeta este nos seus contornos. Os meios e o fins
não são diferentes da abordagem. A maneira como enfrentamos decide o destino do problema.
Portanto, o modo como consideramos um problema é da maior importância, porque as nossas
atitudes e preconceitos, os nossos medos e esperanças acabam sempre por colori-lo. Uma percepção
sem escolha, trará o correto relacionamento com o problema. O problema é criado por nós próprios,
portanto tem de haver autoconhecimento. Eu e o problema formamos um todo, e não dois processos
separados. Eu sou o problema.
As atividades do "eu" são terrivelmente monótonas. O "eu" é tédio. Ele é intrinsecamente
enervante, inútil, fútil. Os seus desejos opostos e em conflito, as suas esperanças e frustrações, as
suas realidades e ilusões são escravizantes e vazias. Essas atividades levam-no à sua própria
exaustão. O "eu" está sempre a subir e a cair, sempre a querer alcançar alguma coisa e a sentir-se
frustrado, sempre a ganhar e a perder; e está sempre a querer libertar-se deste cansativo carrossel de
futilidade. Procura fugir através de atividades exteriores, de soluções que dêem prazer, de bebida, de
sexo, de livros, de conhecimentos, de divertimentos, etc. O seu poder de criar ilusões é vasto e
complexo. Essas ilusões são por ele fabricadas e projetadas a partir de si próprio; elas são o ideal, a
idolatria de "mestres" e "salvadores", o futuro como meio de autopromoção, etc. Na tentativa de
fugir da sua própria monotonia, o "eu" procura sensações e excitações interiores e exteriores, as
quais são substitutos para a ausência de eu. Nestes substitutos, ele espera perder-se. Muitas vezes,
sai-se bem, mas o sucesso só serve para lhe aumentar o tédio. Vai buscando substituto após
substituto, com cada um deles a criar problemas, conflitos e sofrimento.
Persegue-se, interiormente e exteriormente, o esquecimento de si mesmo; uns voltam-se para
a religião, outros, para o trabalho e atividades. Mas é impossível esquecer o "eu". O barulho que se
faz interiormente ou exteriormente poderá abafar o "eu", mas este não tarda a surgir, sob forma
diferente, com outra máscara; pois tudo o que se reprime acaba por encontrar um meio de se libertar.
O esquecimento de si mesmo através da bebida ou do sexo, pela devoção ou pelo saber, leva à
dependência; e tudo o que cria dependência, cria problemas. Se para nos libertarmos, se para nos
esquecermos, se para sermos felizes dependemos de bebidas, de "Mestres", os "Mestres" ou as
bebidas tornam-se o nosso problema. A dependência gera a inveja, o medo, o desejo de possuir; e
então o medo e o modo de o dominar transformam-se para nós num terrível problema. Ao buscarmos
a felicidade criamos problemas, e deles ficamos prisioneiros. Encontramos uma certa felicidade no
autoesquecimento do sexo, e por isso servimo-nos do sexo como meio de alcançarmos o que
pretendemos. A felicidade conseguida por intermédio de uma qualquer coisa, tem de gerar
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inevitavelmente conflito, pois deste modo os meios tornam-se muito mais significativos e
importantes do que a própria felicidade. Se a minha felicidade depende daquela cadeira, a cadeira
torna-se importantíssima para mim e tenho de a defender dos outros. Nessa luta, a felicidade que
antes eu achava na beleza da cadeira é esquecida completamente, perde-se, e só me resta a cadeira.
A cadeira, em si, é de pouco valor; mas eu atribui-lhe um valor extraordinário por ser um meio para
a minha felicidade. Assim, o meio torna-se substituto da felicidade.
Quando o meio pelo qual obtenho a minha felicidade é uma pessoa, então o conflito e a
confusão, o antagonismo e a dor são muito maiores. Se as relações estão simplesmente baseadas no
uso, haverá um outro tipo de relação não superficial entre as partes? Se me sirvo de alguém para
conseguir a minha felicidade, estarei de fato em relação? Estar em relação significa estar em
comunhão com outro em diferentes níveis; e existirá essa comunhão quando o outro me serve de
instrumento para a minha felicidade? Nessa utilização do outro, não estarei eu à procura de
isolamento, no qual penso ser feliz? A este isolamento chamo "relacionamento"; mas o que
realmente se passa é que não há nenhuma comunhão neste processo. Só pode existir comunhão
quando não existe medo; e acontece a corrosão do medo e do sofrimento onde há utilização do outro
e dependência psicológica. Como nada pode viver em isolamento, todas as tentativas feitas pela
mente para se isolar, só a levam à frustração e ao sofrimento. Para escapar a este sentimento de
vazio, procuramos encher-nos de ideais, de pessoas, de coisas; e voltamos ao princípio de onde
partimos: à busca de substitutos.
Os problemas existirão sempre onde as atividades do "eu" forem dominantes. Para
percebermos quais são e quais não são as atividades do "eu", é preciso constante vigilância. Essa
vigilância não é atenção disciplinada, mas sim uma percepção extensiva que não escolhe. A atenção
disciplinada dá força ao "eu"; torna-se um substituto e uma dependência. A compreensão, pelo
contrário, não é auto-indutória, nem é resultado de práticas: é a compreensão de todo o conteúdo do
problema, tanto a nível superficial como a nível profundo. A parte superficial tem de ser
compreendida, para que o que está em profundidade se revele; o que está oculto não pode ser trazido
à luz, se a mente superficial não estiver tranqüila. Todo este processo não é verbal, nem é uma
questão de mera experiência. A verbalização indica embotamento da mente; e a experiência, sendo
acumulativa, só pode originar repetição. A percepção não é uma questão de determinação, pois, o
movimento propositado é resistência, o qual leva à exclusividade. Percepção é a observação
silenciosa e sem-escolha do que é; através desta percepção o problema desdobra-se a si mesmo, e
assim passa a ser completamente compreendido.
Um problema jamais pode ser resolvido no seu próprio nível; sendo algo complexo, tem de
ser compreendido no seu processo total. Tentar resolver um problema num só nível, físico ou
psicológico, leva a mais conflito e confusão. Para que um problema se resolva, tem de haver essa
percepção, essa vigilância não interventora que desvenda o processo total.
O amor não é sensação. A sensação faz nascer o pensamento através de palavras e símbolos.
As sensações e o pensamento tomam o lugar do amor, tornam-se substitutos do amor. As sensações
são produtos da mente, do mesmo modo que os apetites sexuais. A mente gera o desejo, a paixão,
através da lembrança, e recebe daí sensações gratificantes. A mente é composta de interesses e
desejos diferentes em conflito, com as suas sensações exclusivas; e há choques quando um ou outro
começa a ser dominante, criando-se assim um problema. As sensações podem ser agradáveis ou
desagradáveis, e a mente segura-se ao que é agradável, o que a torna escrava delas. Esta escravidão
torna-se um problema porque a mente é um depósito de sensações contraditórias. O evitar daquilo
que é doloroso é, do mesmo modo, uma escravidão, com as suas próprias ilusões e problemas. A
mente é a criadora dos problemas e, portanto, não pode resolvê-los. O amor não pertence à mente;
mas quando a mente intervém, há sensação, a que chama "amor". É este amor gerado pela mente que
pode ser pensado, que pode ser vestido e identificado. A mente pode recordar-se ou antecipar
sensações agradáveis, e este processo é apetite, esteja ele em que nível estiver. Dentro do campo da
mente não pode existir amor. A mente é a área do medo e do calculismo, da inveja e da dominação,
da comparação e da negação, e assim o amor não pode acontecer. Os ciúmes, como o sentimento de
orgulho, são produto da mente; eles não têm nada a ver com amor. O amor e o processo mental não
se podem ligar, não podem ser um todo uno. Quando as sensações predominam, não fica espaço para
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o amor, porque as coisas da mente enchem o coração. E assim, o amor torna-se algo desconhecido
que temos de perseguir e adorar; passa a ser um ideal, para ser usado, e os ideais são sempre
projeções do "eu". Então a mente toma conta de tudo, e o amor passa a ser uma palavra, uma
sensação. O amor torna-se comparativo: "Eu amo "mais" e tu amas "menos"." Mas o amor nem é
pessoal nem impessoal; o amor é um estado de ser, no qual a sensação, como pensamento, está
completamente ausente.
Krishnamurti - From COMMENTARIES ON LIVING
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Podemos ir longe, se começarmos de muito perto. Em geral começamos pelo mais distante,
"o supremo princípio", "o maior ideal", e ficamos perdidos em algum sonho vago do pensamento
imaginativo.
Mas quando partimos de muito perto, do mais perto, que é nós, então o mundo inteiro está
aberto - pois nós somos o mundo.
Temos de começar pelo que é real, pelo que está a acontecer agora, e o agora é sem tempo.
VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO
Toda a forma de conflito é violência - não só o conflito psicológico, interior, mas também o
conflito exterior, nas nossas relações com os outros seres humanos, com a sociedade. O sofrimento
parece-me constituir um dos mais complexos e difíceis problemas; e essa complexidade, justamente,
requer que o encaremos de uma maneira bem simples. Todo o problema complexo, principalmente
um problema humano - e temos tantos! - deve, por certo, ser considerado com muita clareza e
simplicidade, sem nenhum "fundo" ideológico. De outro modo, traduzimos o que vemos em
conformidade com o nosso condicionamento e com as nossas tendências e intenções.
Para compreendermos estes dois problemas - a violência e o sofrimento - tão profundamente
arraigados no nosso ser, não devemos examiná-los de maneira puramente verbal ou intelectual. O
intelecto não resolve problema nenhum. Poderá explanar problemas - e qualquer pessoa inteligente é
capaz disso - mas a explicação, por mais erudita, por mais subtil que seja, não é a realidade. De nada
serve explicar a um homem cheio de fome os excelentes alimentos que existem; isso para ele não
vale nada. Mas, se apreciarmos estas questões não intelectualmente, mas real e totalmente, se nelas
nos empenharmos a fundo e desenredarmos estes dois terríveis problemas que destroem a mente,
talvez então possamos superá-los.
Nós, seres humanos, aceitamos a violência e o sofrimento como uma maneira de viver e, já
que os aceitamos, tentamos fazer com eles o melhor que podemos. Prestamos culto ao sofrimento,
idealizamo-lo e com ele vamos vivendo - como se faz no mundo cristão. No mundo oriental
traduzem-no de outras maneiras, mas também sem lhe encontrar a solução. Como tenho dito,
herdamos essa violência do animal: a nossa agressividade, o nosso espírito de domínio, o desejo de
poder, ânsia de preenchimento. A nossa estrutura cerebral, herdada do animal, é também produto do
animal, é também produto da evolução e não só tem a função de auto-proteger-se, como é também
agressiva, violenta, dominadora, pensando em termos de posição, de prestígio; todos sabemos isso.
O sofrimento, a auto-compaixão, que faz parte desse sofrimento, a solidão, a total
inexpressividade da existência, o tédio, a rotina, despojam a vida de todo o sentido e, por isso,
inventamos-lhe uma finalidade; os intelectuais criam uma finalidade ideológica, de acordo com a
qual procuramos viver. E, não sendo capazes de resolver esses problemas, voltamo-nos para o
passado; para a nossa juventude ou para a cultura tradicional, conforme a raça, o país, etc. Quanto
mais urgente se torna o problema, tanto mais nós fugimos para alguma explicação ideológica vinda
do passado ou relativa ao futuro; e ficamos aprisionados nessa armadilha. Tanto no Oriente como no
Ocidente, se observa a fuga para toda a espécie de entretenimento - o futebol, o cinema, a igreja, etc.
A necessidade de distração, de entretenimento assume todas as formas possíveis: visitar museus,
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conversar interminavelmente sobre música, sobre os últimos livros publicados, ou escrever acerca de
alguma coisa passada e morta, sem valor nenhum.
Ao que parece, há pouca gente verdadeiramente séria. Por palavra "sério" entendo a
capacidade de examinar um problema até ao fim, e resolvê-lo. Resolvê-lo, não de acordo com as
inclinações pessoais ou o temperamento de cada um, ou segundo a pressão do ambiente, mas
deixando tudo isso de parte e investigando até ao fim a verdade relativa a uma dada questão. Essa
seriedade parece bastante rara. Para que possam ser resolvidos estes dois problemas básicos - a
violência e o sofrimento - temos de ter essa seriedade e ainda uma certa capacidade de percebimento,
de atenção, porquanto ninguém pode resolvê-los por nós. Evidentemente, que nem as velhas
religiões, nem organizações bem planeadas e aperfeiçoadas por uma determinada autoridade ou
sacerdote - nada nem ninguém desta categoria pode ajudar-nos; são coisas obviamente sem
significação. Pode observar-se em todo o mundo que a chamada nova geração está atirando aos
ventos todas essas coisas sem sentido - igrejas, deuses, crenças, dogmas, rituais. Para o homem
sensato essas autoridades perderam toda a importância. É claro que não tem sentido dependermos de
qualquer espécie de autoridade quando o mundo se acha em tal estado de confusão e de sofrimento;
principalmente da autoridade organizada num plano religioso, com as respectivas sanções.
Não se pode confiar em ninguém, nem em Salvadores, nem em Mestres - em nenhuma
pessoa, incluindo este que vos fala. E, depois de termos posto de lado totalmente todos os livros,
filosofias, santos, anarquistas, vemo-nos frente a frente conosco mesmos, tais como somos. Não há
filosofia, literatura dogmas, rituais, capazes de pôr fim à violência e ao sofrimento. Precisamos
reconhecer isso, antes de passarmos adiante. Quanto mais sério o indivíduo é, e quanto mais urgente
é o problema, essa própria urgência recusa a autoridade que tão facilmente aceitamos.
Outro problema é: como examinar, como observar a violência e o sofrimento, tal como em
nós existem? Como dissemos, os seres humanos, individualmente, são produto da sociedade, da
cultura em que vivem, e essa sociedade e cultura foram construídas por cada um de nós. A sociedade
é produto dos seres humanos, e nós fazemos parte desse produto; eis a nossa situação. Estamos
aprisionados na armadilha das nossas inclinações, tendências e prazeres pessoais, e tudo isso
constitui a estrutura social. Tendemos a considerar o indivíduo e a sociedade como duas coisas
diferentes e, portanto, pergunta-se: Que valor tem o homem que se transforma, em relação à
estrutura total da sociedade? Tal pergunta parece-me absurda.
Não estamos considerando um dado indivíduo ou uma dada sociedade - francesa, inglesa, ou
outra - mas o problema humano geral. Não estamos considerando o indivíduo em relação com a
sociedade, nem a relação da sociedade, do "coletivo", com o indivíduo; estamos a tratar da totalidade
do problema e não de uma questão particular.
Só podemos compreender uma coisa quando a vemos integralmente, quando lhe vemos toda
a estrutura e a respectiva significação. Não podemos perceber a estrutura total da vida, o seu
movimento completo, se apenas nos preocuparmos com uma parte dela. Só quando vemos o mapa
inteiro, podemos saber onde estamos e escolher o caminho certo. Deste modo, não estamos
interessados na salvação ou libertação individual, mas interessa-nos sim o movimento global da
vida, a compreensão da corrente total da existência; então talvez possamos encarar de maneira
completamente diferente os problemas individuais. É extremamente difícil ver e compreender a
totalidade; isso precisa de atenção. Nada se pode compreender intelectualmente; poderemos ouvir
palavras, dar explicações, descobrir causas, mas isso não é compreensão. Na observação de nós
mesmos, a compreensão só pode verificar-se quando a mente, que inclui o cérebro, está inteiramente
atenta. E uma pessoa não está atenta quando interpreta e traduz conforma o seu próprio fundo.
Devem ter notado que quando a mente está totalmente quieta - sem exigir nada, sem fazer
"barulho", sem fragmentar o problema - quando diante do problema está perfeitamente tranqüila, há,
então, compreensão. Essa compreensão atua, é a força ou energia que nos liberta do problema.
Estamos, pois, empregando a palavra "compreensão" nesse sentido e não no sentido de
compreensão intelectual ou emocional. Ela é propriamente uma negação do "positivo", pois
"positivo" é o "compreender" um problema com um motivo: o propósito de "fazer alguma coisa" em
relação a ele. Em geral quando temos um problema, tendemos a preocupar-nos com ele, a
fragmentá-lo, a analisá-lo, a achar uma fórmula para o resolver. E o pensamento, como se pode
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observar, é sempre reação do "velho"; portanto, nunca é novo e o problema, entretanto, é sempre
novo. Traduzimos o novo, o problema, em termos de pensamento, mas o pensamento é velho e,
portanto, "positivo", no sentido de "fazer alguma coisa" em relação ao problema.
O pensamento é a reação do passado; é memória, experiência, conhecimento acumulado; é
velho e os desafios são sempre novos - se são desafios. Desse fundo de conhecimento, experiência,
memória, procede a reação, na forma de pensamento; o pensamento é sempre do passado e traduz o
desafio ou o problema nesses termos. E o pensamento, como se pode observar, produz, em relação
ao problema, uma reação "positiva", ditada pelo passado.
Vemos, pois, que o pensamento não representa a solução; mas isso não significa que nos
devemos tornar "nebulosos", vagos, distraídos ou mais neuróticos do que já somos. Pelo contrário,
quanto mais atenção prestamos - atenção completa - a uma coisa, qualquer que ela seja, vemos que
nessa atenção não há pensamento algum, não há pensar; não há nenhum "centro" a funcionar como
pensamento. A compreensão acontece sem a reação do "fundo" de pensamento. Compreensão é ação
imediata.
Está mais ou menos claro isso, ou parece abstrato demais? Vejamos: se quero compreender
uma criança, tenho de observá-la, de dar-lhe atenção. Observá-la quando brinca, quando chora,
quando se comporta "mal", quando faz qualquer coisa; observá-la, simplesmente, sem a corrigir.
Preciso de a compreender; portanto, não tenho preconceitos, não tenho padrões de pensamento
relativos ao que é "bom" e ao que é "mau". Observo-a, somente; e, nessa atenção vigilante, começo a
compreender a natureza da sua atividade. É relativamente fácil observar, dessa maneira, a natureza,
uma flor, por exemplo; a natureza não exige muito de nós. Observar uma coisa objetiva é bastante
fácil. Mas observar o que se passa interiormente em nós, observar a nossa violência, o nosso
sofrimento, com clara atenção, já não é tão fácil. Tal observação, tal atenção, exclui totalmente
qualquer espécie de inclinação ou tendência pessoal ou de compulsão por parte da sociedade; é como
observar o movimento de um rio. Quem se senta na margem de um rio pode observar-lhe o fluir e
tudo ver. Mas a pessoa sentada na margem e o movimento do rio são dois entes diferentes; ela
constitui o "observador" e o movimento do rio é a coisa "observada". Já quando está dentro de água -
e não sentada na margem - participa desse movimento e não há nenhum "observador". Do mesmo
modo, observemos a violência e o sofrimento, não como observadores a "observar" uma coisa, mas
sem espaço entre o observador e o observado. Isto faz parte da investigação total, da meditação
sobre a vida.
Como já dissemos, nós os seres humanos somos violentos, e essa violência, herdada do
animal, nunca a investigamos realmente porque temos o conceito da "não violência"; interessa-nos o
conceito e a ideologia da "não violência" - o que "deveria ser", e não o fato, o que realmente é.
Permitam-me sugerir-lhes que não se limitem a ouvir palavras; palavras são palavras e pouco
significam. Semanticamente, podemos penetrar-lhes o significado, mas a palavra não é a coisa, a
explicação não é o fato - o que é. Qualquer um está sujeito a cair na armadilha verbal, e ficar
escutando, infinitamente, só palavras. Palavras são cinzas, não têm sentido profundo. Mas se
ouvirem para além das palavras, se se observarem como realmente são - não agora, porque estão a
ouvir uma palestra, mas "lá fora"; se se observarem, não egocentricamente, não introspectiva ou
analiticamente, mas apenas observando o que efetivamente acontece, descobrirão então,
pessoalmente, não só a violência superficial (a cólera, o desejo de posição, etc.) mas também a
violência profundamente enraizada. Com essa descoberta, o "conceito" da não violência perde toda a
validade; válido é o fato - a violência.
Observe-se o fato da violência no Oriente: na Índia sempre se falou, se pregou, se "praticou"
a não violência; mas, no momento em que se apresenta qualquer desafio, a não violência desaparece
e todos se tornam violentos. Aqui, igualmente, se fala sem cessar de paz; em todas as igrejas se fala
de amor, de bondade, de amar o próximo; entretanto, tivemos as guerras mais terríveis - quinze mil
guerras, ao todo, nos últimos cinco mil anos! E temos de observar como está profundamente
arraigada em nós essa violência - na nossa exigência de preenchimento, na competição e na
constante comparação com outrem, no imitar, no obedecer, no seguir alguém, no ajustar-nos a um
padrão; tudo isto são formas de violência. A nossa libertação em relação a essa violência exige muita
atenção e empenhamento; se não ficamos livres dela, não vejo como possa haver paz no mundo.
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Poderá haver uma suposta paz entre duas guerras, entre dois conflitos; no entanto, essa paz não é a
paz real, íntima, profunda, não contaminada por qualquer ideologia ou qualquer pensamento, não
organizada por qualquer filosofia limitada e sem significação. Se não temos essa paz, como podemos
ter amor, empenhamento, afeição? Ou, se não há essa paz, como se pode criar alguma coisa?
Podemos pintar quadros, compor poemas, escrever livros sobre o passado, etc., mas tudo levará ao
conflito, à escuridão. Para conquistarmos a liberdade, e ficarmos livres da violência - totalmente e
não apenas parcialmente, fragmentariamemte - temos de aprofundar este problema.
Temos de compreender a natureza do prazer; a violência e o prazer estão intimamente
relacionados. Pois, de novo, se nos observarmos, vemos que toda a nossa psicologia se baseia no
prazer - tanto nos prazeres sensoriais, sexo, etc., como no prazer de realizar alguma coisa, no prazer
de alcançar sucesso, de preencher-se, de conquistar posição, prestígio, poder. Mais uma vez, tudo
isso se encontra no animal (numa quinta onde se criam aves pode observar-se esse mesmo
fenômeno). Há prazer tanto no divertir-se como no insultar. Buscar o prazer, a posição, o prestígio, a
fama, é uma forma de violência, pois tem de ser-se agressivo. Neste mundo, se uma pessoa não é
agressiva, é espezinhada pelos outros, empurrada para o lado. Assim, importa perguntar: "Posso
viver sem agressividade e ao mesmo tempo viver no meio social?" É provável que não. Mas, porque
viver na sociedade, isto é, na estrutura psicológica da sociedade? Tem de se viver na estrutura
externa da sociedade - ter uma atividade, vestir-se, ter casa, etc., mas porque viver na estrutura
psicológica da sociedade? Porque aceitar a norma da sociedade que requer que o indivíduo se torne
escritor de sucesso, homem famoso, etc.? Tudo isso faz parte do "princípio do prazer", que se traduz
em violência. Na igreja diz-se: amemos o próximo - e nos negócios "cortamos-lhe o pescoço".
A norma social não tem sentido. Toda a estrutura militar, toda a estrutura baseada no
princípio hierárquico, na autoridade, significa, mais uma vez, domínio e prazer que, por seu turno,
faz parte da violência - da violência básica. A compreensão de tudo isto exige muita observação; não
é questão de capacidade: começa-se a compreender pelo observar. E ver é agir.
É o prazer que buscamos, a todas as horas. Queremos prazer cada vez maior, e o prazer
supremo, naturalmente, é o de "alcançar Deus". Na busca do prazer encontra-se o medo;
transportamos durante a vida essa lúgubre carga do medo. Medo, aflição, pensamento, violência,
agressão - todos se interrelacionam. Por conseguinte, compreendendo-se claramente uma dessas
coisas, compreendem-se as demais.
Podemos arranjar tempo para analisar toda a estrutura emocional e intelectual do nosso ser;
analisá-la passo a passo, como fazem os analistas, na esperança de estabelecer uma relação normal
entre o indivíduo e a sociedade; ou podemos ver que somos violentos e compreender diretamente a
causa dessa violência. Assim sabemos qual é essa causa. Mas ver todas e cada uma das formas de
violência exige tempo; destrinçar a violência, completamente, em todas as suas formas, é um
trabalho de meses, de anos. Esse processo parece-me absurdo. É como um homem ser violento e
tentar ser não violento e, enquanto o está tentando, continuar a semear os germes da violência. A
questão, pois, é se somos capazes de ver instantaneamente a coisa no seu todo, e resolvê-la
imediatamente. É disso que se trata realmente, e não de proceder pouco a pouco, dia após dia, mês
após mês. Essa é uma tarefa terrível, desanimadora, interminável, exigindo uma mente meticulosa,
analítica, capaz de dissecar, de ver cada aspecto e não perder uma só particularidade - pois,
perdendo-se alguma particularidade, o quadro sai todo errado. Isso não só exige tempo, mas encerra
também um conceito que formamos sobre o que é "ser livre da violência". Esse conceito, esse pensar
de que nos servimos para tentarmos libertar-nos da violência, cria, de fato, violência; a violência é
criada pelo pensamento. A questão, pois, é esta: É possível perceber a coisa na sua totalidade,
imediatamente? - não intelectualmente, porque, se ela é formulada como um problema intelectual,
não se encontra nenhuma solução e a pessoa acaba suicidando-se, como o fazem muitos intelectuais
- suicidando-se de fato ou inventando uma teoria, uma crença, um dogma, um conceito e ficando
escravos dele (o que é também uma forma de suicídio), ou voltando às velhas religiões, tornando-se
católico, protestante, hinduísta, adepto do Zen, etc.
A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa na sua totalidade, imediatamente e, com
esse ato de ver, pôr-lhe fim.
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Vemos a totalidade quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria
pessoa, como também para o mundo.
Há guerra exteriormente, e interiormente, há guerra em cada um de nós; é possível
acabarmos com ela imediatamente, "voltarmos-lhe as costas", psicologicamente? Ninguém pode
responder a esta pergunta senão vós mesmos - isto é, quando a ela respondem sem dependerem de
qualquer autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou
ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e uma grande observação - observação,
quando estamos sentados num autocarro, vendo tudo à nossa volta; observação daquilo que está à
nossa frente, a mover-se, a transformar-se; observação, sem motivo algum, de todas as coisas tal
como são. O que é tem muito mais importância do que o que "deveria ser". Como resultado desse
empenhamento, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.
Observar é meditação, e isso não significa que para observarmos tenhamos de meditar.
Observar é extremamente difícil. Observar significa, de fato, apercebermo-nos da interferência do
pensamento; ver como a imagem que temos do que quer que seja, interfere com o ato de olhar.
Porque temos uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o
"orador", e vós, os "ouvintes". Têm, infelizmente, uma imagem relativa ao "orador", mas eu que não
os conheço, nenhuma imagem tenho de vós e, portanto, posso olhá-los. Mas não posso fazê-lo se
digo para mim: vou servir-me destes "ouvintes" para alcançar poder, posição, para os explorar,
tornando-me um homem famoso - sabemos, de resto, de todas as futilidades que os seres humanos
cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferência do nosso fundo. Compreendem?
Todo o nosso ser, que está a "olhar", é o nosso fundo - cristão, francês, intelectual... Pela observação
descobre-se esse fundo; é observá-lo com objetividade, sem escolha, sem qualquer tendência, é uma
grande disciplina - não a absurda disciplina do ajustamento, da imitação.
Essa observação torna a mente extraordinariamente ativa, e muito sensível. Isso, no seu todo,
é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", mas antes, que é quando
observamos que todas estas coisas acontecem. Eis o que significa meditação, e não uma determinada
espécie de "controle do pensamento", assunto de que trataremos mais tarde.
Krishnamurti - From TALKS IN EUROPE, 1967
"Arrastar problemas psicológicos de dia para dia é uma tremenda perda de tempo e de
energia, sendo sinal de desatenção. Uma mente profundamente atenta e empenhada encara o
problema logo que ele surge, observa a sua natureza e resolve-o imediatamente. Arrastar um
problema psicológico não ajuda a resolvê-lo. É um desperdício de energia e um desgaste da mente.
Quando se encaram os problemas à medida que eles surgem, descobre-se então que eles deixam
completamente de existir."
Krishnamurti
OBSERVAR
Saanen, Agosto 7, 1969
Sobre o amor
Sobre a meditação
E. - Que entende por meditação? Esta palavra aparece muitas vezes nos seus livros. Procurei-
a no Dicionário de Oxford antes de vir ter consigo e aí diz-se que meditação significa dedicar-se
muito ao pensamento. Mas não é isso que meditação significa para si.
K. - Tem de se investigar para se saber o que é realmente meditação -- para mim é das coisas
mais importantes.
E. - Será possível explicar melhor o que ela é, se me disser o que ela não é?
K. - Ia justamente sugerir isso. Como sabe, há várias escolas de meditação. Oferecem vários
sistemas e métodos, e dizem que se os praticarmos dias após dia, alcançaremos uma certa forma de
iluminação, uma certa experiência extraordinária... Antes de mais, toda a idéia de sistema, de
método, implica uma repetição mecânica -- e isso não é meditação. Será então possível, não embotar
a mente pela repetição, mas sim estar atento ao movimento do pensar -- sem o reprimir, sem tentar
controlá-lo, mas apenas estar consciente de toda esta atividade do pensamento, da sua constante
tagarelice?
E. - Verbalizamos constantemente os nossos pensamentos, não é verdade?
K. - Exatamente. O pensamento só existe em palavras ou em imagens (de vários tipos). A
meditação exige a mais alta disciplina -- não a disciplina da repressão e do conformismo -- mas a
que surge quando observamos o nosso pensamento. Essa mesma observação tem a sua própria
disciplina, de uma subtileza extraordinária. Isso é absolutamente necessário.
E. - Terá de se dispor de tempo para fazer isso?
K. - Podemos fazê-lo em qualquer altura. Quando se está sentado no carro, pode-se observar,
estar atento a tudo. Ao que está a acontecer à nossa volta e ao que está a acontecer em nós mesmos --
estar consciente de todo o processo, do movimento total. A meditação é na verdade uma forma de
libertar ou de "esvaziar" a mente do que é conhecido. Sem isso não se pode saber o que é o
desconhecido. Para ver, compreender algo novo, completamente novo, a mente tem de estar vazia de
todo o passado. A Verdade, ou Deus, ou seja qual for o nome que lhe dermos, tem de ser algo novo,
e não algo resultante do condicionamento. O Cristão está condicionado por dois mil anos de
propaganda, tal como o Hindú e o Budista. Para eles, portanto, "Deus", ou a "Verdade", é um
resultado da propaganda. Mas isso não é a Verdade. A Verdade é algo que é vivo, todos os dias. Por
isso a mente tem de ser "esvaziada" para poder olhar a Verdade.
E. - É como apagar o quadro, por assim dizer?
K. - Meditação é isso.
E. - E então tem-se aquela total e descontraída percepção da realidade, de "aquilo que é".
K. - De aquilo que é -- está correto. E aquilo que é não é uma coisa estática, mas
extraordinariamente viva. E portanto a mente que está de fato em meditação, a mente meditativa, é
uma mente extremamente silenciosa, silêncio que não é produzido pela supressão do ruído. Não é
oposto do ruído. Acontece quando a mente se compreende completamente a si mesma -- e portanto
não há qualquer movimento, o que significa que as próprias células do cérebro se tornam quietas. E
então, nesse silêncio, tudo acontece. É uma coisa extraordinária, se a observarmos. É esta a autêntica
meditação e não toda essa aceitação imitativa da autoridade, a repetição de palavras e tudo o mais; o
que é absurdo.
E. - Posso então recapitular, para ver se compreendi? A meditação, é, parece-me, o processo
essencial do descondicionamento.
K. - Exatamente.
E. - E se me libertar do peso morto da autoridade, se puser de lado tudo o que me tem sido
dito, nesse momento ficarei só, mas nessa solitude tenho oportunidade de poder compreender o que
realmente sou.
K. - E de compreender também o que é a Verdade, ou Deus, ou a mesma Realidade com
outro nome que se goste de lhe dar.
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Boletim 9, Krishnamurti Foundation, Inglaterra – Entrevista Televisionada pela BBC de
Londres, em 7 de Dezembro de 1970
Estudante: Antes de ter ouvido falar do senhor eu estudava com afinco e me preparava para
fazer carreira. Mas tudo agora me parece muito fútil e eu me perdi. Estou confuso, o que devo fazer?
Krishnamurti : Senhor, eu o deixei confuso? Eu o fiz perceber que aquilo que está fazendo é
fútil? Se eu fui a causa da sua confusão, então você não está confuso, pois quando eu me retirar você
voltará à sua confusão anterior ou à sua clareza. Mas se o senhor fala sério, então o que na verdade
ocorreu foi que, ao ouvir o que aqui foi dito ele despertou para suas próprias atividades; ele agora vê
que o que está fazendo, ou seja, estudar para construir uma carreira para o futuro, é bastante vazio,
sem muito significado. Então ele diz: “O que devo fazer?”. Ele está confuso, mas não porque eu o
deixei confuso e, sim, porque, ao ouvir o que foi dito, ele se deu conta da situação do mundo e da
própria condição e relacionamento com o mundo. Ele se deu conta da futilidade disso que se chama
construir uma carreira.
Acredito que isso é o que precisa ser verificado primeiramente: ao ouvir, ao observar, ao
examinar suas próprias atividades, vocês fizeram essa descoberta por vocês mesmos; então, ela é de
vocês, não minha. Se fosse minha, eu a levaria comigo ao partir. Mas isso é algo que não pode ser
carregado por outro porque foi verificado por você. Você observou ao agir, observou a sua própria
vida, e agora você percebe que construir uma carreira para o futuro é bastante fútil.
Na verdade, o que você deve fazer? Você deve prosseguir em seus estudos, não é verdade?
Isso é óbvio, porque você precisa ter algum tipo de profissão, um meio adequado de ganhar a vida.
Compreende? Você precisa ganhar a vida de forma adequada. E o Direito certamente não é um meio
adequado, porque a lei mantém a sociedade tal como está, uma sociedade baseada no consumismo,
na cobiça, na inveja, na autoridade e na exploração, e que portanto está em agitação dentro de si
mesma. Assim, o direito não é profissão para quem está pensando seriamente nas questões de seu
ser; e ele não pode também tornar-se policial ou soldado, pois eles tem como profissão matar, e nisso
não há diferença entre defender e atacar.
Então, se essas três não são profissões adequadas, o que você vai fazer? Você precisa pensar
no assunto, não é verdade? Você precisa descobrir por você mesmo o que você realmente quer fazer,
e não seguir a orientação do seu pai, ou da sua avó, de algum professor ou de quem quer que seja
que lhe diga o que fazer. E o que significa descobrir o que você realmente quer fazer? Significa
descobrir o que você gosta de fazer, não é verdade? Quando você gosta do que está fazendo, você
não tem ambição, nem cobiça, você não está em busca de fama, porque apenas o amor pelo que está
fazendo é totalmente suficiente em si mesmo. Nesse amor não existe frustração porque você não está
mais em busca de satisfação.
Mas, vejam bem, isso requer uma grande dose de pensamento, de investigação, de meditação,
e infelizmente a pressão do mundo é muito grande - o mundo aqui representado pelos seus pais,
pelos seus avós, pela sociedade que o cerca. Todos eles querem que você seja um homem de
sucesso; eles querem que você se encaixe no padrão estabelecido, então eles o educam de forma a se
amoldar. Mas toda a estrutura da sociedade baseia-se no consumismo, na inveja, na auto-afirmação
impiedosa, na atividade agressiva de cada um de nós; e se você olhar e perceber por você mesmo,
realmente e não apenas em teoria, que uma sociedade assim deve inevitavelmente apodrecer a partir
do seu interior, você então descobrirá a sua própria forma de agir fazendo aquilo que gosta de fazer.
Isso pode causar um conflito com a sociedade atual - mas, por que não? Um homem que procura a
verdade, vive em revolta contra a sociedade fundada essencialmente no consumismo, na
respeitabilidade e na busca ambiciosa do poder. Ele não está em conflito com a sociedade; a
sociedade é que está em conflito com ele. A sociedade não pode jamais aceitá-lo. A sociedade pode
apenas fazer dele um santo e adorá-lo - e, assim, destruí-lo.
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Assim, o estudante que está ouvindo ficou confuso. Mas se ele não se livrar dessa confusão -
fugindo para o cinema ou para um templo ou lendo um livro - e verificar qual foi a origem dessa
confusão, se ele encarar essa confusão e, ao fazê-lo, não se amoldar ao padrão da sociedade, então
ele será um verdadeiro homem com sentimento religioso. E esses homens são necessários, pois eles
criarão um novo mundo.
A mente religiosa-científica
Hoje desejo falar-lhes sobre um assunto bem importante. Ouçam-no com muito cuidado e
poderão mais tarde, se quiserem, discuti-lo com seus professores. Diz respeito ao mundo inteiro e
em todos está despertando certa inquietude. É a questão do espírito religioso e da mente científica.
São duas e diferentes maneiras de encarar os fatos. Estes são os únicos estados mentais de real valor
- o verdadeiro espírito religioso e a verdadeira mente cientifica. Outra qualquer atividade é
destrutiva, causando aflição, confusão e sofrimento.
A mente científica é objetiva. Sua missão é descobrir, perceber. Ver as coisas através de um
microscópio, de um telescópio; tudo tem de ser visto exatamente como é; dessa percepção, a ciência
tira conclusões, constrói teorias. Essa mente move-se de um fato para outro fato. O espírito científico
nada tem que ver com condições individuais, nacionalismo, raça, preconceito. Os cientistas existem
para explorar a matéria, investigar a estrutura da terra, das estrelas. e planetas; descobrir meios para
curar os males do homem, prolongar-lhe a vida, explicar o tempo, tanto o passado como o futuro.
Porém, a mente científica e suas descobertas são usadas. e exploradas pela mente nacionalista, quer
seja da Índia, quer seja da Rússia, da América, etc. De seu turno, os estados e continentes soberanos
utilizam e exploram as descobertas dos cientistas. Há, também, a verdadeira mente religiosa, que não
pertence a nenhum culto, nenhum grupo, nenhuma religião, a nenhuma igreja instituída. A
mentalidade religiosa não é a mentalidade hindu, a mentalidade cristã, a mentalidade budista, a
muçulmana. A pessoa religiosa não pertence a nenhum grupo que se intitule religioso. Ela não
freqüenta igrejas, templos, mesquitas, nem se apega a determinadas crenças e dogmas. A mente
religiosa é completamente só. Ela já compreendeu a falsidade das igrejas, dogmas, crenças tradições.
Não sendo nacionalista nem condicionada pelo ambiente, não tem horizonte nem limites, é
explosiva, nova, fresca, sã. A mente sã, jovem, é extraordinariamente maleável, sutil, não tem
ancora. Somente ela pode descobrir o que se chama "deus", o que é imensurável.
Só é verdadeiro o ser humano quando alia o espírito científico ao autêntico espírito religioso.
Então, os homens criarão um mundo justo não o mundo dos comunistas ou dos capitalistas, dos
brâmanes ou dos católicos romanos. De fato, o verdadeiro brâmane é aquele que não pertence a
nenhum credo religioso, nem tampouco a nenhuma classe, não é detentor de autoridade, e não
mantém posição social. O genuíno brâmane e o novo ente humano, que tem simultaneamente a
mentalidade científica e a mentalidade religiosa, sendo, portanto, harmônico, sem qualquer
contradição interior. Para mim, o objetivo da educação é criar esta nova mentalidade, que é
explosiva e não se adapta a nenhum padrão estabelecido pela sociedade.
É criativa a mente religiosa. Não lhe basta acabar com o passado, tem também de explodir no
presente. Ela, diferentemente da que só interpreta os livros sagrados e a Bíblia, é capaz de perquirir,
bem como criar uma realidade explosiva. Aí não há interpretação nem dogma.
É sobremodo difícil alguém ser religioso e ter uma mente lúcida, objetiva, científica,
intrépida, alheia á própria segurança, aos próprios temores. Não podemos ter uma mente religiosa
sem a compreensão total de nós mesmos - nosso corpo, nosso espírito, nossas emoções; ignorando
como trabalha, e também como o pensamento funciona. Para descobrir e superar tudo isso, torna-se
indispensável encarar o problema com uma mente científica, que é objetiva, clara, sem preconceitos,
que não condena, que observa, que vê. Com essa mentalidade, somos efetivamente um ser humano
culto, um ser humano que conhece a compaixão. Tal ente humano sabe o que é estar vivo.
61
Como conseguir tudo isto? Pois urge ajudar o estudante a ter um espírito científico, a pensar
com clareza, precisão, argúcia, assim como auxiliá-lo a descobrir as profundezas de sua mente, a ir
além das palavras, dos diferentes rótulos de hindu, muçulmano, cristão. Será possível ensinar o
estudante a ultrapassar os rótulos, a descobrir por si, a experimentar aquela coisa imensurável, que
nenhum livro contém, á qual nenhum guru tem acesso? Se um colégio como este propiciar essa
educação, constituirá isso um feito grandioso. Vocês todos devem sentir como será importante criar-
se tal escola. É sobre isto que os professores e eu vimos há dias debatendo. Temos conversado
acerca de várias coisas - autoridade, disciplina, métodos de ensino, o que ensinar, o que é ouvir, o
que significa educação, cultura, etc. Apenas prestar atenção à dança, ao canto, á aritmética, as aulas,
não constitui o todo da vida. Também faz parte da vida a pessoa sentar-se tranqüilamente e olhar
para seu interior, ter clara percepção, ver. Cumpre também saber pensar, o que pensar e porque
estamos pensando. Faz parte igualmente da vida olhar os pássaros, observar os aldeões, sua miséria -
qual a contribuição de cada um de nós para essa situação, criada pela sociedade. Tudo isso concerne
á educação.
Krishnamurti - do livro Ensinar e Aprender - Edit. ICK
O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO
Págs. 11/25 do livro "As Ilusões da Mente" - Série Selo de Ouro 1145 - Tradução de Hugo
Veloso da 1ª Palestra em Bombaim, Índia de 07.02.1954– editado pela Ed. Ouro em 1969.
***
***
A verdadeira irmandade
Pergunta: Você realmente falou a sério quando sugeriu semana passada que a pessoa deveria
se retirar do mundo quando estivesse próxima dos quarenta e cinco anos?
Krishnamurti: Eu sugeri isso seriamente. Quase todos nós, até que a morte nos alcance,
estamos tão enredados nas coisas do mundo, que raramente temos tempo para investigar
profundamente, para descobrir o real. Para retirar-se do mundo é necessária uma mudança completa
no sistema educacional e econômico, não é? Se você se retira, se aposenta, você vai estar
despreparado, perdido, sozinho, sem saber o que fazer consigo mesmo. Você não saberia como
pensar. Você provavelmente formaria novos agrupamentos, organizações com novas crenças,
emblemas e rótulos, e de novo estaria ativo externamente, promovendo reformas que irão precisar de
reformas subseqüentes. Mas isso não é o que eu quis dizer. Para se retirar do mundo você precisa
estar preparado: pelo tipo correto de ocupação, através de criar o tipo certo de meio-ambiente,
através de estabelecer o governo correto, a educação correta, e assim por diante. Se você vem sendo
assim preparado, então se retirar das coisas do mundo em qualquer idade não é anormal, e sim a
seqüência natural; você se retira para fluir na profunda e pura atenção, você se retira não para o
isolamento, mas para descobrir o real, para ajudar a transformar esse governo e sociedade que estão
sempre coagulados e conflitantes.
Tudo isso iria envolver uma forma de educação completamente diferente, uma mudança
drástica na nossa ordem social e econômica. Esse grupo de pessoas estaria completamente
dissociado da autoridade, da política, de todas essas causas que produzem guerra e antagonismo
entre os homens. Uma pedra pode direcionar o curso de um rio; assim um pequeno número de
pessoas pode direcionar o curso de uma cultura. Certamente qualquer coisa grande é feita desta
maneira.
Você provavelmente dirá que a maioria de nós não pode se retirar, se aposentar, por mais que
quiséssemos. Naturalmente a maior parte não pode, mas alguns de vocês podem. Viver sozinho ou
em um pequeno grupo requer uma grande inteligência. Mas se você realmente viu que vale a pena,
você faz com que isso aconteça, não como um maravilhoso ato de renúncia, mas como uma coisa
natural e inteligente para um homem sério fazer. Como que é de uma importância extraordinária que
houvesse pelo menos alguns de nós que não pertencessem a nenhuma raça ou grupo particular, nem
a nenhuma religião ou sociedade!
Eles irão criar a verdadeira irmandade entre os homens, pois eles estariam buscando a
verdade. Para estar livre de riquezas exteriores, deve haver uma percepção da pobreza interior - o
que traz riquezas
indizíveis. A corrente da cultura pode mudar o seu curso através de umas poucas pessoas despertas.
Estas não são pessoas especiais, incomuns, mas você e eu.
Krishnamurti, Ojai, 11/07/44; palestra 5, questão 2 - Extraído do site Terra Sem Caminho
1
Quando a religião se torna universal, deixa de ser religião. Se religião é questão de crença, de
conversão, de pertencer a um grupo que defende certas idéias, já não existe então a semente
religiosa. Porque religião é algo que precisa ser compreendido por cada indivíduo no “processo” do
viver, nas atividades da vida diária e, por conseguinte, nenhuma relação tem com o educar a
mente para funcionar segundo determinado padrão de pensamento.
Assim, parece-me muito importante compreender a função de um indivíduo numa sociedade
que é puramente o mecanismo de um sistema de idéias e na qual o que se chama moral é simples
questão de manter-se dentro de determinado padrão de conduta.
Mas, virtude não é seguir um padrão; é a ação da mente que compreende sua relação
com outra.
Se sou moral apenas no sentido social, essa moralidade, embora conveniente do ponto de
vista social, nada tem que ver com a Religião. Ora, por certo, para descobrirmos o que é a verdade,
o que é a realidade ou deus, devemos estar livres da moralidade social, porque a moralidade
social conduz à respeitabilidade, ao conformismo; e, é óbvio, a mente que apenas se ajusta a
um padrão ético ou moral, nunca descobrirá o verdadeiro.
A virtude é que, realmente, põe a mente em ordem; e nosso problema é como criar a virtude,
sem “cultivar virtude”. Se eu a cultivo, ela deixa de ser virtude; entretanto, sem a virtude não existe
ordem. É, de fato, um disciplinar da mente sem nenhum objetivo em mira – algo semelhante ao
arrumar um quarto. A virtude não é um fim em si. Ela apenas torna a mente clara, livre, não
contaminada pela sociedade.
O problema, portanto, é este: como pode a mente, nosso ser inteiro, tornar-se de pronto
virtuosa, e não pelo seguir o “processo” de se fazer virtuosa? Porque a luta para se tornar
virtuosa, só pode reforçar a limitação, a atividade egocêntrica da mente. Isso me parece bem
claro, isto é, ao procurar ser virtuoso estou em verdade realçando a atividade do meu próprio
egotismo e isso, por conseguinte, já não é virtude.
A virtude liberta a mente, e a mente não está livre enquanto não há virtude. Mas a
chamada virtude em que quase todos nós baseamos nossa conduta é pura conveniência social; e a
sociedade, radicada que está na aquisição, na compulsão, no egotismo, nenhuma possibilidade tem
de compreender a virtude de ser e não vir a ser.
Se não compreendemos o que é ser virtuoso, nunca estará a mente livre para investigar,
descobrir a realidade. A virtude é essencial como conduta, comportamento; mas o
comportamento baseado na compulsão, no conformismo, no medo, já não é ação de uma mente
virtuosa.
Assim, cumpre averiguar o que é ser virtuoso, sem cultivo da Virtude. As duas coisas seguem
direções completamente diversas.
O homem que cultiva a virtude está sempre a pensar em si mesmo; só se preocupa com
seu próprio progresso, seu melhoramento pessoal, e isso e ainda atividade do “ego”, do “eu”; e
essa atividade, evidentemente, nada tem em comum com a virtude, que é um “estado de Ser” e
não de “vir a ser”.
Ora, como pode a mente, cujo condicionamento social e moral sempre foi o de cultivar a
virtude, servindo-se do tempo como o meio de se tornar virtuosa – como pode a mente libertar-se
desse estado de “vir a ser” e permanecer num “estado de virtude?” Não sei se já alguma vez
pensastes no problema desta maneira.
Para compreendê-lo, talvez seja necessário descobrirmos o que significa disciplinar a mente.
A maioria de nós se serve da disciplina a fim de conseguir um resultado. Se sinto cólera digo que
não devo sentir cólera e, assim, me disciplino, controlo, reprimo, domino a minha cólera – e isso
significa que me estou ajustando a um padrão ideológico. Assim estamos acostumados: uma luta
constante para ajustarmos “o que somos” ao que pensamos “que deveríamos ser”.
2
A fim e nos tornarmos o que deveríamos ser, submetemo-nos a certas práticas, disciplinas,
dia após dia, mês após mês, do começo ao fim do ano, na esperança de alcançar um estado que
consideramos correto.
Há, assim, na disciplina, não apenas repressão, mas também conformismo, o estreitar
da mente para ajustá-la a um certo padrão. Por favor, senhores, compreendei que, não estou
condenando a disciplina.
Estamos examinando todo processo envolvido na conduta que se baseia na disciplina.
Se posso compreender o atual processo de disciplina, processo que a maioria de nós conhece,
e perceber a respectiva falsidade ou verdade, terei então um “senso de disciplina” completamente
diferente, ou seja uma disciplina sem nenhuma relação com o medo; e esse “senso” da disciplina é
essencial.
Mas a disciplina que praticamos se baseia no temor e no ajustamento, na luta para “vir a ser” algo
mediante a substituição, identificação ou sublimação. Tudo isso está implicado na pratica da
disciplina por parte e uma mente que se vê em confusão, e tal disciplinamento, é óbvio, baseado no
medo, nenhuma relação tem com a realidade.
Se me disciplino porque meu vizinho, ou a sociedade, ou o sacerdote, ou um certo livro
sagrado me diz ser essa a ação correta, então essa disciplina é sem maturidade, é infantil,
nenhuma significação tem, e toda conduta baseada em tal padrão só leva à respeitabilidade,
que nada tem que ver com a realidade.
Ora, se compreendo que o mero ajustar-se a um padrão, por medo, não é disciplina, que é então
disciplina? A mente deve funcionar livre de desordem, livre de confusão; e virtude sem dúvida, é
por em ordem a mente, de modo que ela possa voar em linha reta, e não tortuosamente, sem as
distorções de suas próprias ambições, invejas e desejos.
Mas, para “voar em linha reta”, ela necessita de uma disciplina não relacionada com a
disciplina do conformismo, da sublimação ou repressão, isto é, uma disciplina isenta de esforço
– esforço para “vir a ser algo”.
E como tornar existente essa disciplina sem volição, ação da vontade?
Pois, afinal de contas a vontade é a culminação do desejo. É possível a mente ser
disciplinada, sem vir à existência a entidade que deseja a disciplina? Entendeis?
Este me parece um ponto importante e permiti-me sugerir que escuteis, não com o antagonismo
próprio da mente que funciona pela velha disciplina e, portanto, rejeita a outra, mas, sim, com o
intuito de descobrir o que é essa outra disciplina. A disciplina comum, embora possa parecer nobre,
baseia-se essencialmente no temor; e nossa investigação visa a descobrir se existe uma disciplina
não-baseada no medo, não-proveniente da ação volitiva.
Pode-se ver que a ação da vontade produz de fato um certo resultado. Se desejo algo muito
ardentemente, se o persigo pacientemente, tê-lo-ei. Mas isso implica o funcionamento da vontade, e
a vontade é essencialmente um “processo” de resistência, e a mente cuja disciplina é puramente
processo de resistência não pode de modo nenhum compreender outra espécie de disciplina. Assim,
como poderá a mente individual, vossa mente e a minha, alcançar o “estado de disciplina” sem
disciplinar-se? Afinal de contas, a virtude – que significa “ser virtuoso”, e não “vir a ser
virtuoso” – é um estado de disciplina sem base egocêntrica.
E como pode a mente libertar-se da atividade egocêntrica, a que agora chama disciplina?
Essa disciplina pode produzir certos resultados, que poderão ser nobres ou ignóbeis; mas a
atividade egocêntrica; em qualquer forma que seja, com sua vontade, com seus temores, nunca pode
ser virtuosa. E é possível minha mente libertar-se de toda atividade egocêntrica sem se disciplinar?
Este é, na conduta, no comportamento, o problema real.
Quando emprego as palavras “minha mente”, isso é naturalmente uma maneira de dizer; não
se trata de minha mente, trata da mente. Ora, essa mente, até onde posso ver, funciona tão-só como
atividade egocêntrica; quer meditando em deus, quer buscando satisfação sexual, praticando o ideal
da “não-violência”, lançando-se a reformas sociais – sua atividade, é essencialmente egocêntrica,
isto é, confinada na esfera do tempo, no campo de seu próprio pensamento.
É possível a mente libertar-se dessa atividade egocêntrica, sem compulsão sem a disciplina
de ajustamento a padrão?
Por que se faz esta pergunta?
3
Quase todos nós nos disciplinamos no sentido comum. Se somos invejosos, dizemos que não
devemos ser invejosos, que devemos ser rigorosos com nós mesmos. Se não compreendemos,
dizemos: “se eu progredir por meio da disciplina, no fim compreenderei”.
Nunca duvidamos desse processo de disciplina em si.
Ora, pelo duvidar, pelo investigar, vereis que a disciplina a nenhum valor tem, a não ser
socialmente, e de modo nenhum pode conduzir à realidade.
Realidade só pode ser compreendidas com o completo “abandono”, e não podeis
abandonar-vos enquanto existir qualquer forma de atividade egocêntrica.
Não se pode ser austero quando se cultiva a austeridade, porque então a mente está em
busca de resultado. Há uma austeridade de espécie diferente, que nenhuma relação tem com o
abandonar uma coisa a fim de alcançar outra coisa, e que nunca será conhecida enquanto a mente
estiver forçando, controlando, reprimindo a si própria. A austeridade da repressão produz de fato
um sentimento de poder, de domínio de si mesmo, e nisso se encontra grande prazer, grande
vitalidade que, entretanto, não nós leva na direção da realidade.
Pelo contrário, isso, puramente, uma perpetuação da atividade egocêntrica, “apartada do
mundo”. É como possuir todos os tesouros do mundo seguindo por um caminho diferente.
Assim, será possível a mente ser austera se existe a entidade que procura ser austera?
Senhores, isto não é algo metafísico, místico ou vago.
Se realmente seguirdes, ou investigardes, olhardes na direção que estou apontando,
descobrireis, por vós mesmos, como resultado dessa investigação, que surgirá uma disciplina que
nada tem em comum com a atividade egocêntrica que busca um resultado.
A disciplina a que estais habituados é de todo em todo falsa; poderá ter valor no sentido
social, mas nenhuma relação tem com a investigação da realidade; assim, que cumpre fazer?
Quando a mente busca, não pelo desejo de resultado, mas pela simples necessidade de
buscar, porque percebeu a falsidade do que estava fazendo – então, esse próprio processo de
investigação é disciplina que nenhuma relação tem com auto-aperfeiçoamento. Eu estou
investigando; e, para investigar, deve a mente total estar “não-contaminada”, livre de todas as
pressões.
A mente que está agrilhoada à preocupação, à ambição, à avidez, à paixão, é evidentemente
incapaz de investigar.
A verdade é para ser achada, e não para se crer, e para achá-la a mente deve ser livre.
No momento em que percebo a verdade disso, minha mente se está libertando do falso, e, por
conseguinte, existe a verdadeira disciplina; não há nenhuma “entidade que disciplina”, e o próprio
percebimento do que é falso faz a mente compreender a verdadeira disciplina.
A virtude, pois, é essencial para se compreender a realidade, e virtude não é respeitabilidade.
Ser virtuoso, sem procurar tornar-se virtuoso, exige extraordinária investigação, lúcido pensar, e não
tendes nenhuma possibilidade de pensar lucidamente, se há qualquer forma de medo.
Por conseguinte, impende compreender a violência sem tentar tornar-se “não violento”.
Descobrireis, então, que existe uma disciplina não-relacionada com a disciplina da
moralidade social; uma disciplina que é essencial, porquanto torna a mente capaz de seguir com
incomum velocidade o célere movimento da verdade.
Se desejais observar o vôo de uma ave, deveis prestar-lhe toda a atenção, e essa própria
atenção é disciplina.
A “realidade” dos livros, dos sacerdotes, da sociedade, nenhuma realidade é; é mera
propaganda e, portanto, não-verdadeira. Se Desejais compreender a realidade, deve vossa mente
ser capaz de extraordinária lucidez, silencio, velocidade; e não é lúcida, não é silenciosa, não é veloz
a mente agrilhoada a qualquer forma de disciplina, paralisada pela moralidade social.
Ao compreenderdes isso, vereis que existe uma disciplina, uma austeridade não resultante de
atividade egocêntrica; e essa disciplina é que é essencial, para que a mente possa seguir o rápido
movimento da verdade.
Para a maioria de nós a dificuldade é que tivemos uma certa e agradável experiência, e
nos disciplinamos porque desejamos que essa experiência continue. Tive um momento lúcido,
feliz, de percepção de algo inefável, e isso me deixou forte impressão na mente; e, porque
desejo repeti-lo, controlo-me, pratico a virtude, etc.
4
Trata-se de uma forma de inveja, não achais? A inveja gera a disciplina, mas isso não é a
liberdade.
Ora, a mente que busca a realidade encontra, nessa busca um “processo” de disciplina em que
não há experimentar por parte do “experimentador”. Para que o “experimentador” não tenha
experiências, requer-se extraordinária lucidez, espantosa firmeza de pensamento, de compreensão; e
dessa compreensão da totalidade da mente, que é autoconhecimento, provém uma disciplina, uma
conduta, um comportamento produtivo daquela austeridade tão essencial ao “abandono” de si
mesmo. Com esse “abandono”, produto da austeridade, encontra-se a beleza. Só a mente que de
todo se abandona é realmente austera, e ela é que pode compreender a verdade, a realidade.
Pergunta: o pensamento é a semente que contém começo e o fim – a totalidade do tempo.
Esta semente se robustece e germina na escuridão da mente. Que ação é possível para consumir esta
semente?
Krishnamurti: só há uma ação: a ação do silêncio. Mas, antes de qualquer coisa, espero
tenhais compreendido a pergunta. Diz o interrogante que a semente do pensamento, ou seja, a
totalidade tempo, amadurece no “ventre escuro da mente’’, e pergunta como pode esta semente do
pensamento, este resultado do tempo, este produto do passado, ser completamente consumido – não
por meio de um “processo”, não por meio de um método ou sistema, pois isso implica tempo, e
desse modo nos vemos de volta à escuridão em que ocorre a germinação e a continuidade do
pensamento.
A questão, pois, é esta: como pode o pensamento, que é a totalidade do tempo, terminar?
Ora, antes de proceder a este descobrimento, tenho de investigar o que é pensar, não achais? E com
esta pergunta apresentei a mim mesmo um “desafio” – e a “reação” a esse “desafio” é de acordo com
minha memória.
Quando digo “que é pensar?” Se põe em movimento o mecanismo da memória – a memória
de minhas experiências, de meus conhecimentos, de tudo o que aprendi ou tudo o que me disseram a
respeito do pensar.
Minha mente, pois, está a “cavar” na memória, procurando uma resposta à pergunta – ao
“desafio”. Esse “cavar” na memória, em busca da resposta, e a comunicação verbal dessa resposta, é
o que chamamos “pensar”, o qual, é processo de tempo.
Espero me esteja fazendo claro, pois é realmente importante compreender isso. É só quando
compreendemos o processo do nosso próprio pensar que se pode descobrir o que significa ter uma
mente de todo tranqüila. Para que a mente esteja tranqüila, há necessidade de energia completa,
energia que não se dissipe; que seja total, na qual haja a vitalidade de todo nosso ser. Para termos
essa energia total que silencia a mente, precisamos, investigar o que é pensar; e vemos que pensar é
reação da memória, sendo isto bastante simples.
Se vos pergunto onde morais, respondeis prontamente, porque se trata de uma coisa com que
estais familiarizado. Se vos faço uma pergunta mais complicada, hesitais, há um intervalo entre
minha pergunta e vossa resposta; nesse intervalo a mente está pensando, perscrutando a memória. Se
vos faço pergunta mais complicada ainda, o intervalo é mais longo.
A mente está buscando, tateando para encontrar a resposta; e se não encontra a resposta, diz:
“não sei”. Mas, quando diz “não sei”, encontra-se num “estado de “desejar saber” e, por
conseguinte, está ainda prisioneira do processo de pensar.
Estamos vendo, pois, o que é pensar. A pergunta que põe a mente em movimento pode ser
simples ou muito complexa, mas é sempre o mecanismo da memória que responde, reage, quer seja
a memória de passado extremamente recente, quer seja do passado de ontem, ou do passado de há
um século.
Vê-se, pois, que o “processo” de pensar é reação da memória.
E é este processo de pensar que diz: “devo disciplinar-me, devo libertar-me do medo, da avidez, da
inveja, preciso encontrar Deus”; é esse processo de pensar que tem a crença em deus ou que diz “não
há deus”; mas ele está ainda compreendido na esfera do tempo, porquanto o pensamento é ele
próprio, a totalidade do tempo. Agora para um homem que deseja encontrar a realidade ou a
compreensão que lhe revelará a realidade, para esse homem o pensamento deve cessar –
pensamento no sentido de totalidade do tempo. E como pode cessar o pensamento? – mas não por
meio de qualquer espécie de exercício, disciplina, controle, repressão, pois tudo isso está na esfera
5
do pensamento, e, por conseguinte, no âmbito do tempo. A mente diz: “preciso investigar algo que
não seja do tempo”, é essa mente – processo de pensamento, processo de tempo – que deve cessar.
Não achais?
Espero não estejais simplesmente ouvindo minhas palavras, porquanto palavras são cinzas,
nenhuma significação tem, a não ser no nível verbal; mas, se fordes capazes de investigar a
significação que se acha além das palavras, compreendereis então a extraordinária beleza e
profundeza, no tempo não há virtude, no tempo só se encontra a germinação e amadurecimento do
pensamento – do pensamento sempre condicionado, do pensamento que nunca pode ser livre. Não
existe “pensamento livre”: isso é puro disparate.
Pensar é unicamente “pensar”, e se perceberdes o verdadeiro significado do pensar, nunca
mais falareis de “livre pensamento”. Por conseguinte, perguntamos: é possível ao pensamento, que é
o resultado do passado, a totalidade do tempo, cessar de imediato? Digo que só é possível quando a
mente está por inteiro tranqüila. Se perguntais: “como poderá a mente ficar completamente
tranqüila?” - Esse “como” é uma exigência de método e, dessa maneira, estais de novo
aprisionados no tempo. Mas existe um “como” que não está em relação com o tempo, pois não é
exigência de método. Compreendeis o que estou dizendo senhores?
Podeis perguntar “como” – significando: “ensinai-me o método que, com o tempo, porá fim
ao pensar” – e esse “como” constitui meramente a continuação do pensamento, com o qual esperais
alcançar um estado (psicológico) em que não há pensar – o que é uma óbvia impossibilidade.
Mas se percebeis a falsidade desse processo, então o “como” tem significado inteiramente
diferente.
Peço-vos prestar atenção a isto, pois, se o compreenderdes, sabereis de pronto, por vós
mesmos, o que é “ter uma mente serena”; ninguém vo-lo precisará ensinar e não necessitareis de
nenhum guru.
O “como” que implica método supõe tempo e, por conseguinte, continuação do pensamento,
que é condicionado e no qual não há liberdade. Não tem esse “como” validade alguma ao investigar-
se o que é a verdade, porque, para se investigar o que é a verdade, necessita-se de liberdade – de
estar livre do pensamento.
Ora, no momento em que se percebe que o “como” que exige método é meramente a
continuação do tempo, que acontece à mente?
Espero que estejais observando vossa mente, e não simplesmente ouvindo minhas palavras.
Que acontece à vossa mente ao perceberdes que o “como” que exige método não é o caminho
certo para se libertar a mente?
Resta-vos um “como” que é investigação não é verdade? E para investigar, temos de começar
no mais completo silencio, visto que nada sabemos. Entendeis? A mente que está investigando não
contem acumulação, sua investigação não é “aditiva”, não há nela acumulação de conhecimento.
Entendeis, senhores?
Se estou investigando o que é o amor, não posso dizer que o amor é espiritual, divino, efeito
de karma etc., pois isso é simplesmente um “processo” de pensar nunca descobrirei o que é o amor
por meio do pensar, porquanto o pensamento é condicionado, é pensamento é resultado do tempo.
O pensamento “projeta” idéias sobre o amor, mas o que ele projeta não é amor.
Para investigar o que é o amor, a mente deve estar livre de informações, idéias, pensamentos.
Ao perceber esta verdade, minha mente se torna tranqüila; não tenho de perguntar como torná-la
tranqüila. O importante é a correta investigação, isto é: investigar de modo que a mente esteja livre
do conhecimento acumulado, através da experiência, pelo “experimentador”.
O pensamento, que é a totalidade do tempo, germina nos escuros recessos da mente, porque a
mente resultou do tempo, de muitos milhares de dias passados. A mera continuação do pensamento,
por mais nobre, mais erudito, mas venerável que seja, se verifica na esfera do tempo, e essa mente é
incapaz de descobri o que se acha além de seus próprios limites.
O relevante, pois, é que a mente – resultado do tempo – comece a investigar a si mesma, em
vez de especular a respeito do estado mental, que é livre do tempo.
Só quando começa a investigar a si própria que a mente se torna cônscia de seus próprios
processos e do significado de seu pensar.
6
Só podeis estar total e imediatamente cônscios de todos os obscuros recantos da mente, onde
o pensamento funciona, se percebeis que o pensamento nunca conduzirá a mente a liberdade.
Se bem compreenderdes isso, vereis que a mente se tornará sobremodo tranqüila, não apenas
a mente consciente, mas também a mente inconsciente, com toda a sua herança racial, seus motivos,
dogmas e ocultos temores.
Mas só se verifica essa tranqüilidade total da mente quando há a tremenda energia do
autoconhecimento. É o autoconhecimento que trás essa energia, e não vossa abstinência do sexo, do
álcool, disto ou daquilo – pois isso, também, é uma atividade egocêntrica. Essa energia e essencial e
só pode manifestar-se em toda a sua intensidade, plenitude e vitalidade quando há conhecimento
próprio. Mas o autoconhecimento não é “cumulativo”; é o descobrimento do quê sois, momento a
momento.
A mente está então tranqüila, e nessa tranqüilidade há grande beleza, da qual nada sabeis. Há
nela um espantoso movimento que destrói a germinação da mente. Esse silêncio tem uma atividade
própria, seu modo próprio de atuar sobre a sociedade, e ele produzirá ação, não importa qual seja o
padrão social em apreço.
Mas a mente que apenas se empenha na reforma social, no produzir a igualdade pela
legislação, etc., nunca conhecerá essa outra ação que opera sobre a totalidade.
Eis porque tanto importa compreendermos. Graças a essa compreensão, há o verdadeiro
“abandono” – passividade – e só então se apresenta esse extraordinário sentimento de silencio.
Não sei se já alguma vez experimentastes, de manhã cedo, estar sentados calmamente, com a
mente inativa, observando o céu sereno, as refulgentes estrelas, as árvores, os pássaros.
Experimentai-o uma vez, não para meditardes – que é atividade egocêntrica do meditador, – mas por
mero divertimento.
Vereis então que há um silêncio que nenhuma relação tem com o conhecimento. Não é o fim
do barulho, ou o oposto do barulho. É um silêncio que é, em verdade, o movimento criador de todas
as coisas, o começo de tudo. Mas nunca o encontrareis se não tiverdes esse conhecimento próprio.
Essa compreensão é o começo da liberdade.
Conferência de Krishnamurti, em Bombaim, Índia em 17.02.1957 págs. 143/152 do livro
“o homem livre” – Cultrix – 1976 – tradução de Hugo Veloso – destaques, parênteses e nova
disposição gráfica, foram colocados por ocasião do estudo.
Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti
MUDANÇA E MUTAÇÃO
Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação. A mera mudança não conduz a parte
alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente adaptável, muito hábil no ajustar-se aos
diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias formas de pressão interior e exterior; mas a
mutação requer um estado mental muito diferente.
Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da
vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema
aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma
mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas
também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores,
a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.
Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas,
ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da
mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito
profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das
relações humanas?
Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse
processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.
A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança
todo movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção,
visando uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás
de si um motivo. Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um
motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou
o nível do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.
Isso me parece bastante claro.
Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas
atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou
indiretamente
influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente
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direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião organizada
mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença,
condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica
dentro dos limites "modificados" dessa crença.
Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou
interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um
certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma
ideologia, ou a determinada forma de crença em deus.
Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.
Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia, e
nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas
descobertas na física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à
lua, etc. Etc. Em certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem
informados; e essa espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às
novas pressões que ela cria.
Mas, basta isso? Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de
mudança. Entretanto, sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical
– mudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a
necessidade de mutação na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de
macacos muito hábeis e dotados de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes
humanos.
Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer?
Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz
mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais,
irão crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma
mente nova, fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma
mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.
Não sei se me estou expressando claramente.
Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-
la - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em
movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança
produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada. É uma "continuidade
modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e
também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução
psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é
planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por conseguinte, não constitui
mudança nenhuma.
Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema
de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio,
fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou
igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total
inutilidade, porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve
orientar o viver, o existir, o funcionar.
Assim, que fazer?
Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro. Se faço um esforço para mudar, esse
esforço tem motivo, significando isso que o desejo inicia o movimento em certa direção. Aí está em
ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples
modificação - não é uma mudança real, absolutamente.
Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem
esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo,
da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito preestabelecido.
Assim sendo, que fazer?
Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no
sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de
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anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em
aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode
essa entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga
sem nenhum esforço?
Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos.
Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes
indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até
o fim e liquidar de uma vez.
Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é
uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o
tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o
tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.
Compreendeis?
Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça
humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O
pensamento não pode resolver este problema. Venho exercendo o pensamento há milhares e
milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha
inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência.
Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstancia alguma,
alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso
contar com o pensamento, com o tempo, para operar a mutação, a mudança radical. Não pode haver
exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.
Que me resta, então?
Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem
vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se
servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo,
pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como
vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.
Que fazer, pois?
Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de
atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança,
não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.
Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa?
A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa
como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão
intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa
apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então
enorme importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a
importância, sendo então simples meio de comunicação.
Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da
vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical
transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum
instrumento tem com que iniciar a ação.
Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também
estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante
compreender o que entendemos por comunhão.
Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e
sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com
as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.
O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou
completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele
estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.
Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse
estado.
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Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode
ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador
emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve
permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore -
se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de
sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.
Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o
que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.
Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento
iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por
conseguinte, que, não -verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.
Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é
algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.
Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já
observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo
comunista ou pelo mais reacionário conservador.
Vedes quanto tudo isso é fútil.
Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos
numa certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como
matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada
pela igreja que instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente,
rejeitar tudo isso, mas, inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão,
inglês, alemão, italiano, francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos,
familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima,
mais profunda ainda é sua influência.
Ora, como eliminar tudo isso?
Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o
inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação,
exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se
pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há
sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso
representa uma dualidade, fonte de conflito.
Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.
Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha
mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando.
Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que
analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte,
rejeito completamente o processo analítico.
Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o
fardo do inconsciente estou fora da análise.
Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele
próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o
inconsciente é de muito pouca importância.
Percebeis? Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais,
sua perene tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o
consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade. O pensamento tem seu
lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo
fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando percebo que é o pensamento
que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.
O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.
Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa
verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum,
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atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda
a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.
Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila,
silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical
transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse
percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.
A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente
nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade
há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a
revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.
Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo
de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.
Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?
Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,
porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as
raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a
função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?
Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.
Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por
meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos
abstenhamos de nele intervir. Então, estamos também em comunhão com o fato.Mas, se interpretais
o fato de uma maneira e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem
entre nós.
Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de
comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do
pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.
Vou examinar isso, se me permitis.
Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio". Se nenhum desafio houvesse,
vós não pensareis. O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a
pergunta "respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de
pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem
familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há
intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.
Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico
rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia
entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito?... Ah! Sei. . . " - e, então,
respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço de tempo, durante o qual a
memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou "desafiado",
minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a
cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não sei, mas vou verificar"; e, não
encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a
informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse intervalo muito mais longo, o
"processo de pensamento" está em função.
Essas três fases são-nos muito familiares.
Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras,
e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.
Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me
dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.
Com efeito, eu não sei.
Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à
procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado
livre de todas as coisas que a mente tem conhecido. E é só nesse estado que o novo pode ser
compreendido - sendo o novo o supremo, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado,
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cessou todo o processo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há
experimentador nem coisa experimentada.
Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.
Palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do livro "A
MENTE SEM MEDO" – ICK 1965 – tradução de Hugo Veloso – Destaques, parênteses e nova
disposição gráfica fora colocados por ocasião do estudo.
Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti
MENTE RELIGIOSA
Nesta tarde desejo falar a respeito da mente religiosa. Mas, antes de começar, cumpre
assinalar, pois considero isso importante — a necessidade da negação do pensamento. Nós nunca
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negamos, só sabemos dizer “sim”. Aceitamos as coisas segundo as nossas tendências e
idiossincrasias. Quando negamos, essa negação é uma reação e, por conseguinte, não é negação
nenhuma.
Desejo fazer algumas considerações sobre a negação, pois importa compreender isso para nos
habilitarmos a investigar e compreender, por nós mesmos, o que é a mente religiosa. Nós nunca
negamos. Se vos tendes observado com atenção e seriedade, tereis visto que sempre encontramos
um caminho fácil, sempre aceitamos a solução mais fácil. Aceitamos a tradição e varias
influências culturais, econômicas e sociais. Nunca reagimos a elas; ou, se o fazemos, reagimos pela
força e nunca com boa-vontade e compreensão. Por conseguinte, nossa negação é sempre eivada de
medo. Ela sempre se produz mediante uma dada forma de aceitação, a qual nos oferece uma
esperança. Nunca é uma negação em que não se sabe o que acontecerá; é uma negação com
aceitação de um futuro bem regulado e ordenado.
Escutai o que estou dizendo, porquanto, quando falarmos a respeito da mente religiosa,
iremos negar toda a estrutura da religião, tal como a conhecemos, negá-la totalmente porque é de
todo falsa, porque nenhuma significação tem. E, para compreenderdes o que iremos dizer mais
adiante, deveis, se me permitis salientá-lo, compreender profundamente esse ato de negação.
Podeis ser forçados a negar; certas circunstâncias podem obrigar -vos ou compelir-vos a dizer
“não”. Circunstâncias tais como falta de dinheiro, uma tribulação qualquer, podem forçar-vos a dizer
“não”. Mas o dizer “não”, com clareza, sem motivo algum, sem nenhum desejo de recompensa ou
medo de punição; dizer “não” deliberadamente, a algo a que destes vossa atenção completamente,
incondicionalmente; dizer “não”, depois de terdes pensado no problema do princípio ao fim,
seriamente — isso é questão muito diferente. Dizer “não” seriamente significa examinar um
problema até o fim, não romanticamente, não emocionalmente, não de acordo com vossa
particular idiossincrasia de vaidade, de prazer ou desejo, examiná-lo até o fim, pondo de parte
nossas fantasias pessoais, vossos mitos, gostos e desgostos. “Ir até o fim” de um pensamento, de
uma idéia, de um sentimento é ser sério.
Desejo nesta tarde examinar a questão da religião, porque, a meu ver, se pudermos sair deste
pavilhão com uma mente clara, forte, religiosa, estaremos aptos a resolver os nossos problemas.
Religião é algo que inclui tudo, nada exclui. A mente religiosa não tem nacionalidade, nem
provincianismo. Não pertence a nenhum grupo organizado. Não é o resultado de dez mil ou dois
mil anos de propaganda. Nenhum dogma tem, nenhuma crença. Ë uma mente que se move de fato
para fato; mente que compreende o pensamento em sua totalidade — não apenas o pensamento
óbvio, superficial, o pensamento “educado”, mas também o pensamento “não educado”, o
pensamento e os motivos inconscientes e profundos. Quando a mente investiga a totalidade de
alguma coisa, quando, por meio dessa investigação, reconhecer o que é falso, e o nega porque é
falso, então essa total negação produz uma mente de nova qualidade, uma mente religiosa,
revolucionária. Mas a religião, para a maioria de nós, é não só a mera palavra, o símbolo, senão
também o resultado de nosso condicionamento. Vós sois cristãos porque desde pequenino vos
dizem que sois cristãos e vos inculcam todas as superstições, crenças, dogmas e tradições do
cristianismo; e todos vós aceitastes o que vos foi ensinado, O mesmo se pode dizer do muçulmano,
do hindu, etc. Assim como o comunista aceita, desde pequeno, a não existência de Deus, assim
também vós aceitais a existência de Deus.
Não há muita diferença entre vós e aquele que nega Deus; pois o que ambos pensais
emana de uma mente condicionada. Notai, por favor, que não vos estou atacando; portanto, não ha
necessidade de vos defenderdes, de resistirdes. Nós estamos tratando de fatos; e seria completa falta
de sensatez resistir a um fato, isso nenhuma significação teria. O mundo se encontra num caos de tal
ordem que, mesmo que deliberadamente empreendêsseis torná-lo ainda mais caótico, não o conse-
guiremos nem com a ajuda dos políticos. E é necessária urna mente bem penetrante, clara, decidida,
sadia, para resolver essas condições caóticas. Creio que uma mente dessas só virá à existência
mediante o percebimento religioso.
Tende a bondade de acompanhar as operações de vossa própria mente — não a
palavra, não o orador, com ele concordando ou dele discordando. Se observardes o vosso
próprio condicionamento — não porque eu vos mando fazê-lo, mas porque ele é um fato — se
olhardes esse fato, esse condicionamento, podeis então tratar de dissolvê-lo. Mas, em primeiro lugar,
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deveis estar cônscio do fato de que vossa mente está condicionada. Quando ela diz que é cristã, está
condicionada, moldada pelo passado, por uma secular cultura; ela resulta de um processo histórico-
mitológico. As religiões que professais originam-se das experiências de outras pessoas. Vossa
religião não constitui experiência pessoal, direta; ela é o que aprendestes em algum livro, com
algum instrutor, ou algum filósofo; não é coisa que vós mesmo experimentais. Só quando vossa
mente está toda descondicionada, podeis experimentar ou descobrir se há algo real ou não.
Mas se, antes de descondicionar a vossa mente, vos dizeis religioso, vos dizeis hinduísta,
muçulmano, budista ou cristão — isso nada significa, absolutamente. É puro “romantismo”,
explorado pelo líder religioso, por um grupo organizado, político ou religioso, que têm nisso
seu próprio interesse. Tudo isso são fatos, quer gosteis, quer não gosteis. Apenas estou
descrevendo tais fatos. Essas divisões em grupos religiosos que crêem nisto e naquilo, que aceitam
este dogma e negam aquele, andando de prisão em prisão, de templo em templo, praticando
intermináveis ritos — nada disso constitui a mente religiosa; trata-se, tão só, de uma mente
tradicional, dominada pelo medo. E, por certo, a mente com temor nunca descobrirá se há ou
se não há algo além da palavra, além dos “limites mentais”. Escutai não só o que o orador está
dizendo, mas também as operações de vossa própria mente. Ao empregar a palavra “escutai”, não
vos estou dando uma ordem. Emprego-a com um significado especial. Escutar é uma arte, porque
nós nunca escutamos. Escutamos indiferentemente, com nossos pensamentos noutra parte.
Escutamos com condenação ou comparação. Escutamos com certos gostos e aversões. Escutamos
para concordar ou discordar. Escutamos, comparando o que ouvimos com o que já sabemos. Por
isso, há sempre distração; jamais existe o ato de escutar. E valeria bem a pena escutardes sem
nenhuma dessas distrações do pensamento, de modo que esse próprio ato de escutar constitua uma
quebra daquela condição.
Quando me utilizo à palavra “religião”, acodem-vos à mente imagens de toda espécie, todas
as espécies de símbolos. O cristão tem seus próprios símbolos, dogmas e crença. O hinduísta, o
muçulmano, todos aqueles que se dizem religiosos têm sua maneira peculiar de raciocinar, conforme
sua idiossincrasia, sua tradição; por essa razão, nunca podem raciocinar claramente sobre esta
questão. Eles são, em primeiro lugar, hinduístas ou muçulmanos; e depois é que começam a
investigar. Assim, para se descobrir se há ou se não há alguma coisa transcendente ao
pensamento, algo não mensurável pela mente, esta deve, primeiro, estar livre. Outra
peculiaridade das pessoas religiosas é o serem totalmente ilógicas. Psicologicamente, carecem
de sanidade. Aceitam sem investigar: e sua investigação é motivada pelo medo, pelo desejo de
segurança, que lhes impede o pensar: tornam-se “românticas”, porque tal lhes apraz.
Entregam-se a devoções, pois isso lhes dá um sentimento de alegria, de felicidade. Mas essa não é a
mente religiosa; é uma mente cheia de fantasias, uma mente sem realidade.
Se observardes vossa própria mente, vereis como está ela abarrotada e sobrecarregada
de crença; e considerais necessária a crença. Utilizais a crença como uma hipótese — e isso é
puro contra-senso. Quando um homem investiga, não começa com uma hipótese; sua mente é livre.
Não se sente atraído por nenhum dogma, não está dominado por nenhum temor. Primeiro nega
tudo isso e, depois, começa a investigar. Mas vós nunca negais, por várias razões. Nunca
negais, porque isso seria “desrespeitável” numa sociedade respeitável — embora, na
verdade, essa sociedade esteja apodrecida. Não negais, por medo de perder vosso emprego ou
posição. Não negais, por causa de vossa família: tendes de casar vossa filha, vosso filho, tendes de
fazer isto ou aquilo. Por conseguinte, consciente ou inconscientemente, estais sujeitos ao medo, ao
dogma, a tradição em que fostes educado. Isso também é um fato: não é fantasia minha. É um fato
psicológico de todos os dias.
Assim, a mente que está sujeita a uma crença, a um dogma, por mais antigo ou por mais
moderno que seja, essa mente é incapaz de produzir um mundo de ordem, um mundo sadio. Ela
é incapaz de estar livre do sofrimento, do conflito. Por certo, só a mente livre de conflito, livre
de problemas. livre de sofrimento, está apta a investigar e descobrir. E vós tendes de descobrir,
porquanto esta é a única saída de toda a aflição e confusão que criamos neste mundo: a saída não se
encontra ingressando-se em grupos incontáveis, ou retornando-se à antiga tradição, já morta,
ou seguindo-se um novo guia ou líder. Não sei se não tendes observado que, quando seguis
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alguém, destruístes vosso próprio pensar, perdestes vossa própria independência, perdestes vossa
liberdade, não só exteriormente, mas também, e principalmente, interiormente.
Assim, sempre que há o seguir, sempre que há o líder, em matéria realmente espiritual, tem
de haver necessariamente confusão, porque existe, aí, uma contradição psicológica entre nossos
profundos impulsos e compulsões e as exigências do líder e bem assim nossas próprias exigências,
relativas ao que pensamos que devemos fazer; e essa contradição leva a conflito; e onde há conflito
há esforço; e, havendo esforço, há deformação. A mente religiosa não tem conflito. Ela não segue
ninguém.
A mente religiosa não segue nenhuma autoridade. Autoridade implica limitação,
autoridade implica ajustamento. E há ajustamento porque desejais êxito, desejais realizar algo; e,
por conseguinte, há medo. Se não dissolverdes o medo completamente, comum podereis realizar a
investigação, como podereis empreender o descobrimento? Essas não são perguntas retóricas. Se
tiver medo, vejo-me obrigado a buscar conforto, abrigo, segurança, no que quer que seja,
porque o temor ordena; mas a sanidade e a clareza não ordenam. O temor ordena o
ajustamento, ordena-me imitar, ordena-me seguir alguém, na esperança de encontrar
conforto. A mente religiosa não obedece à autoridade de espécie alguma; e isso nos é muito
difícil de aceitar, porque fomos educados sob a autoridade. O Gita, os Upanishads, a Bíblia, o
Corão e todos os demais livros chamados “sagrados” tomaram o lugar de nosso próprio pensar,
de nosso próprio sofrer; dão-nos conforto na ilusão; não são, afinal, reais. Vós fazeis deles
realidades, porque neles, nas palavras mortas de outros, encontrais conforto, na autoridade de
outrem encontrais luz. Podeis ver quanto isso é realmente absurdo, se o examinardes; e, no
entanto, sois tidos por pessoas educadas, sãs, racionais!
No tocante a questões religiosas, somos completamente irracionais, insanos e tudo isso
constitui as muralhas de nosso condicionamento. Aí tendes mais um fato, um inegável fato
psicológico. Vós freqüentais o templo, vós ledes o Gita, a Bíblia, o Corão e murmurais um
amontoado de palavras que perderam toda a sua significação. Isso não constitui, de modo
nenhum, uma mente religiosa. Esse ler, esse repetir torna a mente embotada, insensível. Há
contradição entre o viver diário e aquilo que pensamos ser real. Não há o viver de uma vida
religiosa. Divorciastes a vida da religião, divorciastes a ética da religião. E vivendo nessa dualidade,
nessa contradição, nessa divisão, a mente está criando o mundo atual; traz cada vez mais caos ao
mundo. Estamos vendo tudo isso. Sempre que há confusão, sempre que há aflição, as pessoas se
voltam para a autoridade, para a tirania não só politicamente, mas também religiosamente. Gurus,
líderes, idéias, crenças, dogmas multiplicam-se e florescem, porque nunca nos penetramos a
fundo para descobrirmos o que é verdadeiro.
O começo da mente religiosa é o autoconhecimento — não o conhecimento do Ser Supremo;
isso é puro contra-senso. Como pode uma mente medíocre, estreita, nacionalista, gerada pelo medo,
pela compulsão, pela imitação, pela autoridade — como pode essa mente descobrir o que é o Ser
Supremo? A busca do Ser Supremo é uma fuga; é puro e autêntico “romantismo”. O fato é: vós
tendes, primeiramente, de compreender a vós mesmo. Como pode meu pensamento resultante do
medo investigar? Como pode um pensamento oriundo da contradição, do sofrimento, da dor, da
ambição, da inveja, pode pesquisar o “impesquisável”? Não pode, obviamente,mas é isso o que
sempre estamos fazendo.
Assim, o começardes a compreender-vos tais como sois é o começo da sabedoria. E,
também, o começo da meditação é perceber, sem deformação, o fato representado pelo que sois e
não pelo que pensais que deverieis ser. Quando pensais como geralmente fazeis — que sois o
Supremo Ser, que em vós existe uma entidade espiritual, essa idéia é inteiramente o resultado de
vosso condicionamento passado. Deveis estar cônscio do fato e não aceitar a idéia de que sois o
Supremo Ser. Essa idéia nenhuma significação tem. O verdadeiramente significativo é o fato
representado por aquilo que sois cada dia, e não aquilo que deveríeis ser. Outrossim, a idéia, a
ideação, o ideal é um “artigo” de mitologia; nada significa. O fato é que tem significação. O fato de
que sois invejoso tem importância, e não a idéia de que deveríeis achar-vos num estado de “não
inveja”.
Outra peculiaridade da mente religiosa é o estar livre de idéias, livre de ideais. Todos vós sois
idealistas isto é, sempre vos preocupais com o que deveríeis ser e não com o que sois. Mas a
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mente religiosa só está interessada no fato, e se move com o fato. O cientista se interessa pelo fato.
Ele investiga a matéria, investiga a vida, sob a forma de matéria, em seu laboratório. Investiga-a sob
o seu microscópio. Ele não tem medo; move-se de fato para fato e desenvolve o seu saber; e esse
saber ajuda-o a levar mais longe suas investigações, sempre num determinado plano, limitado
e restrito, que é a ciência.
Mas nós estamos interessados na totalidade da vida, e não na ciência apenas; não estamos
interessados apenas em edificações, mas também no ódio, na ambição, nas disputas, naquilo que
somos — enfim, na totalidade da vida. A ciência não abarca a totalidade da vida, mas a mente
religiosa abarca-a. A mente religiosa não está interessada na parcela. Ela se interessa pelo
inteiro desenvolvimento do homem; está interessada na entidade total do homem —isto é, o
movimento exterior da vida é o mesmo movimento interior. O movimento exterior é como a maré
vazante; e o movimento interior e como a maré enchente; mas é a mesma maré que vai e veio. — Se
os dois movimentos — o interior e o exterior — estão divorciados, estão separados, tendes então
conflito, tendes aflição.
As pessoas chamadas “religiosas” dividiram a vida em “exterior e interior”. Não a olham
como um processo unitário. Evitando o “exterior” recolhendo-se a um mosteiro ou vestindo o manto
do sannyasi. Negam o mundo exterior; mas não negam o mundo da tradição, o do
conhecimento, o de seu condicionamento. Separam os dois mundos e, por isso, há contradição.
Mas a mente religiosa não os separa. Para a mente religiosa o movimento exterior da vida e o
movimento interior da vida formam um movimento unitário, como o movimento da maré que vai e
volta.
Tende a bondade de escutar tudo isso, sem aceitar nem negar. Eu não vos estou atacando;
portanto, não tendes necessidade de procurar refúgio ou de resistir. Tampouco estou fazendo
propaganda. Estou apenas apontando algo. Podeis aceitá-lo, se quiserdes. Podeis vê-lo, ou rejeitá-lo;
mas antes, ainda que intelectual ou verbalmente olhai-o. Podeis não desejar percorrer todo o
caminho até o fim. Mas ao menos, podeis olhá-lo verbalmente, intelectualmente, investigá-lo; e, com
essa compreensão intelectual, que absolutamente não é a compreensão completa, talvez possais ver a
sua inteira significação.
O conhecimento de vós mesmo é o início da meditação. O conhecerdes a vós mesmo,
psicologicamente, tal como sois, é o começo da mente religiosa. Mas não podeis conhecer-vos se
negais o que vedes, se procurais interpretar o que vedes. Segui isto, por favor. Se negais
psicologicamente o que vedes em vós mesmo, ou se desejais transformá-lo noutra coisa, neste caso
não estais compreendendo o fato de o que é. Se sois vaidoso e procurais modificar essa qualidade
com o cultivo da humildade, há então contradição. Se sois vaidoso e procurais cultivar o ideal da
humildade, há contradição entre as duas coisas; e essa contradição embota a mente, produz conflito.
Tendes de olhar o fato de que sois vaidoso; tendes de vê-lo em sua inteireza, sem introduzirdes um
ideal contraditório. Mas, para verdes que sois vaidoso, não podeis dizer “Não devo ser vaidoso”. Isso
é bastante simples e óbvio, porque, para poderdes ver uma coisa, deveis aplicar-lhe vossa total
atenção. Ao dizerdes que não deveis ser vaidoso, vossa mente se afastou do fato, e esse afastamento
do fato cria um problema; não é o fato que o cria. O fato jamais cria problema. Só o evitar o fato, o
fugir ao fato, o tentar modificá-lo, o tentar ajustá-lo ao ideal isso é que cria o problema; o fato nunca
o cria.
Assim, quando vos observardes com toda a clareza, quando estiverdes cônscio, sem escolha,
de cada pensamento, de cada sentimento, descobrireis então algo, ou seja: que há um pensador e há o
pensamento; que há um experimentador, um observador, e há a experiência, a coisa observada. Isso
é um fato, não? Há um censor, uma entidade que julga, que avalia, que pensa, que observa; e há a
coisa observada.
Por favor, investigai vossa própria mente; não estais aqui para ouvir minhas palavras. As
palavras nada significam. Enquanto falo, observai vossa própria mente a funcionar. Assim, ir-vos-
eis daqui com a mente clara, penetrante e sã.
Há, pois, pensador e pensamento. Há divisão entre pensador e pensamento, sendo que o
pensador procura dominar o pensamento, alterar o pensamento, modificar o pensamento,
controlá-lo, forçá-lo, procura imitar, etc. A divisão entre pensador e pensamento cria conflito,
porque o pensador é sempre o censor, a entidade que julga, que avalia. Essa entidade é uma
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entidade condicionada, porquanto se tornou existente como uma reação ao pensamento, o
qual, por sua vez, é meramente reação do condicionamento, da memória. Estais
compreendendo, senhores? Isso é uma coisa muito simples e que vós mesmos podeis descobrir.
O pensamento é a reação da memória. Pergunto-vos uma coisa, e vós respondeis de acordo
com vossa memória. O intervalo entre a pergunta e a resposta é tempo; e durante esse tempo refletis
e, depois, dais a resposta. Se estais familiarizado com a resposta, esta é imediata; e se a pergunta é
muito complicada, precisais de mais tempo, de uma demora, de uma distância maior entre a resposta
e a pergunta. Durante essa demora, vossa memória está reagindo e, depois, respondeis. O
pensamento, pois, é a “resposta” da memória, da associação com o passado. Há, pois, pensamento e
há pensador; o pensador é condicionado, e seu pensamento também se torna condicionado.
Quando há separação entre o pensador e o pensamento, há contradição; e, enquanto houver
essa separação entre o pensador e o pensamento, haverá infindável conflito. Pode-se afastar essa
contradição, esse conflito, significando isso que não há pensador como entidade central atuante
porém apenas pensamento? Esta é uma questão muito complexa. Deveis descobrir por vós mesmo
tudo o que este problema implica.
Pode-se ver que, quando há separação entre o pensador e o pensamento, tem de haver
contradição. E contradição implica conflito; e o conflito embota a mente, torna-a estúpida,
insensível. O conflito, de qualquer espécie que seja — conflito entre vossa esposa e vós, entre vós e
a sociedade, entre vós e vosso patrão, entre vós e outro qualquer embota a mente. Se deseja
compreender o conflito central, é necessário investigar esta questão (e não simplesmente aceitá-la)
— se há, primeiro, o pensador e, depois, o pensamento. Se dizeis que assim é, estais de volta à vossa
tradição, ao vosso condicionamento. Tendes de investigar, pelo vosso pensamento, como vossa
memória reage. Enquanto essa memória — que é condicionada por cada movimento de pensamento,
cada influência reage, tem de haver conflito e aflição.
Se examinardes isso bem profundamente, descobrireis por vós mesmo que a ação baseada
numa idéia, que é pensamento, gera discórdia, porque quereis moldar a ação de acordo com a idéia.
Descobrireis, pois, depois de vos terdes penetrado a fundo, que ação não e idéia. Há ação sem
motivo. E só a mente religiosa, que olhou para si própria, que profundamente se investigou, só essa
mente pode atuar sem idéia, sem motivo, porquanto ela não tem nenhum centro, nenhuma entidade
que, como pensador, dirige a ação. Essa ação não é caótica.
Assim, o autoconhecimento, o aprenderdes acerca de vós mesmo todos os dias, produz
— psicologicamente, interiormente — uma mente nova — porque negastes a mente velha.
Com o autoconhecimento, negastes por inteiro o vosso condicionamento. O condicionamento
mental só pode ser de todo negado quando a mente está cônscia de suas próprias operações —
como funciona, como pensa, o que diz, quais são os seus motivos.
Há, aqui, outro fator para considerar. Pensamos que o libertar a mente do
condicionamento é um processo gradual, que requer tempo. Por favor, segui o que estou
dizendo. Pensamos que serão precisos muitos dias ou muitos anos para descondicionar nossa
mente condicionada, significando isso que teremos de fazê-lo gradualmente, dia por dia. Que
implica isso? Implica, por certo, aquisição de conhecimento a fim de dissipar o
condicionamento — em vez de aprender, adquirir. A mente que está adquirindo jamais
aprende. Mas a mente que se serve do conhecimento a fim de “chegar”, de ter êxito, de
alcançar um sentimento de libertação — essa mente necessita do tempo. Essa mente diz:
“Preciso de tempo para libertar-me de meu condicionamento’ — entendendo-se com isso que
ela vai adquirir conhecimentos e, à medida que se ampliarem os seus conhecimentos, ela se
tornará cada vez mais livre. Isso é de todo em todo falso.
Através do tempo, pela multiplicação de muitos “amanhãs”, não há libertação. Só há
libertação na negação da coisa que se vê diretamente. A pessoa reage prontamente ao ver uma
serpente venenosa; não há pensamento, porém ação imediata. Essa ação é resultado do medo e do
conhecimento que adquiriu a respeito da serpente. Essa aquisição exige tempo. Há, pois, um modo
de perceber mediante o conhecimento, que requer tempo. Há também uma qualidade de
percebimento que não requer tempo. Eu estou falando sobre a mente que vê “fora do tempo”, que vê
sem pensamento, pois a mente resulta de muitos dias passados, a mente origina-se do tempo. Isso
também é um fato. Não estamos tratando de uma suposição, de uma teoria. Vossa mente deriva de
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numerosos dias passados, vossa mente é o resultado do passado. E, se não estamos totalmente livres
do passado, não é possível termos uma mente nova, uma mente religiosa. Ora, o ver esse passado
totalmente, completamente, o vê-lo imediatamente, significa quebrar de pronto o passado.
Mas, não podeis quebrar incontinenti o passado se vossa mente está sob o controle do
conhecimento, que diz: “Acumularei conhecimentos gradualmente e, no fito, quebrarei o
condicionamento”. A mente deve ver o condicionamento imediatamente. Por exemplo, se vedes
quanto é absurdo o nacionalismo, se “vedes” o veneno do nacionalismo, se vedes isso e o
compreendeis completamente — e isso é possível, se prestais toda a vossa atenção então, no mesmo
instante em que o compreendeis, estais livre do nacionalismo; o nacionalismo nunca mais vos
interessará. Mas, nos não percebemos a natureza venenosa do nacionalismo porque ele é geralmente
sancionado, porque vos sentis reunidos em torno de uma bandeira - coisa muito absurda.
Tendes um sentimento de unidade, um sentimento de coesão em torno de nada, pois a
bandeira é meramente uma idéia, um símbolo, sem nenhuma realidade, que os políticos e outros
gostam de explorar. Mas, se virdes esse fato — e podeis vê-lo dando-lhe toda a vossa atenção. sem
procurar justificá-lo, dizendo que podeis perder vosso emprego, etc. — quando dais inteira atenção
ao fato do nacionalismo, ele se ira para sempre. Atenção é a total negação do passado, total
negação da separação entre o pensador e o pensamento.
A mente religiosa, pois, é aquela que não tem crença, que não tem dogma, que não tem
medo, que absolutamente não segue autoridade de espécie alguma. Ela é a luz de si própria.
Essa mente, porque é livre, pode ir muito longe. Mas essa liberdade tem de começar bem de
perto, isto é, ela se encontra em vós mesmo, no compreender-vos; podereis, assim, ir muito
longe.
Descobrireis então, por vós próprios, aquela extraordinária serenidade mental — que
não é uma idéia, porém um fato autêntico. A mente de todo tranqüila, sem distração alguma, — a
mente plácida e não a mente romântica — mas a mente que não foi gerada pelo conflito, ou pela
contradição, ou pela aflição - só ela pode estar completamente quieta e, por conseguinte, totalmente
viva, sensível; só essa mente pode receber o Imensurável.
Palestra de Krishnamurti - 4 de fevereiro de 1962 - Nova Deli- Índia - JCM
Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas
compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para
sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.
Krisnamurti
Mudança e mutação
Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação.
A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente
adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias
formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental muito diferente.
Nesta manhã desejo salientar a diferença entre estas duas coisas.
Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da
vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema
aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma
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mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas
também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores,
a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.
Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas,
ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da
mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito
profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das
relações humanas?
Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse
processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.
A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo
movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando
uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um
motivo.
Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo
bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou o nível
do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.
Isso me parece bastante claro.
Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas
atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou
indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los
em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião
organizada mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença,
condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos
limites "modificados" dessa crença.
Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou
interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um
certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma
ideologia, ou a determinada forma de crença em deus. Tudo isso implica uma certa mudança,
consciente ou inconscientemente produzida.
Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia, e nessa
suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na
física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à lua, etc. Etc. Em
certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem informados; e essa
espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela
cria.
Mas, basta isso?
Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de mudança. Entretanto,
sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical – mudança não
produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação
na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos muito hábeis e dotados
de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes humanos.
Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer?
Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz
mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão
crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova,
fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não
produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.
Não sei se me estou expressando claramente.
Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-
ia - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em
movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança
produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada.
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É uma "continuidade modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está
ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma
revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele
tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por
conseguinte, não constitui mudança nenhuma.
Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema
de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio,
fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou
igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade,
porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve orientar o viver, o existir,
o funcionar.
Assim, que fazer?
Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro.
Se faço um esforço para mudar, esse esforço tem motivo, significando isso que o desejo
inicia o movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer
mudança que seja produzida é uma simples modificação - não é uma mudança real, absolutamente.
Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço.
Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em
conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito reestabelecido.
Assim sendo, que fazer?
Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no
sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos
vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições,
desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode essa
entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga sem
nenhum esforço?
Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos.
Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes
indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até
o fim e liquidar de uma vez.
Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é
uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o
tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o
tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.
Compreendeis?
Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça
humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O
pensamento não pode resolver este problema.
Venho exercendo o pensamento há milhares e milhares de anos e, no entanto, não mudei.
Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo
enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o
pensamento não pode, em circunstancia alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o
pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a
mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o
pensamento orientar a mudança.
Que me resta, então?
Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem
vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se
servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo,
pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como
vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.
Que fazer, pois?
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Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de
atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança,
não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.
Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa?
A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa
como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão
intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa
apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então enorme
importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a importância, sendo
então simples meio de comunicação.
Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da
vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical
transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum
instrumento tem com que iniciar a ação.
Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também
estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante
compreender o que entendemos por comunhão.
Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e
sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com
as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.
O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou
completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele
estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.
Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse
estado.
Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode
ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador
emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve
permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore -
se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de
sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.
Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o
que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.
Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento
iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por
conseguinte, que, não - verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.
Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é
algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.
Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já
observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo
comunista ou pelo mais reacionário conservador.
Vedes quanto tudo isso é fútil.
Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos numa
certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático,
como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada pela igreja que
instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas,
inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão, inglês, alemão, italiano,
francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da
raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima, mais profunda ainda é sua influência.
Ora, como eliminar tudo isso?
Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o
inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação,
exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se
pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há
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sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso
representa uma dualidade, fonte de conflito.
Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.
Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha
mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando.
Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que
analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte,
rejeito completamente o processo analítico.
Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o
fardo do inconsciente estou fora da análise.
Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele
próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o
inconsciente é de muito pouca importância.
Percebeis?
Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais, sua perene
tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o consciente, só se
torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade.
O pensamento tem seu lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o
pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando
percebo que é o pensamento que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.
O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.
Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa
verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum,
atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda
a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.
Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila,
silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical
transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse
percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.
A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente
nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade
há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a
revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.
Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo
de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.
Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?
Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,
porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as
raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a
função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?
Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.
Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por
meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos
abstenhamos de nele intervir.
Então, estamos também em comunhão com o fato. Mas, se interpretais o fato de uma maneira
e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.
Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de
comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do
pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.
Vou examinar isso, se me permitis.
Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio".
Se nenhum desafio houvesse, vós não pensareis.
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O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta
"respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de
pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem
familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há
intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.
Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico
rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia
entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito? ...
Ah! Sei. . . " - e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço
de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta.
Assim, quando sou "desafiado", minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum
tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não
sei, mas vou verificar"; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo
para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse
intervalo muito mais longo, o "processo de pensamento" está em função. Essas três fases são-nos
muito familiares.
Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras,
e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.
Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me
dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.
Com efeito, eu não sei.
Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à
procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado
livre de todas as coisas que a mente tem conhecido.
E é só nesse estado que o novo pode ser compreendido - sendo o novo o supremo, ou
qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o processo do pensamento; não há
observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada.
Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.
Estudo da 4ª palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do
livro "A mente sem Medo" – Ick 1965 – tradução de Hugo Veloso – Nova disposição gráfica
colocada por ocasião do estudo.
Dependência psicológica
Estivemos falando sobre a importância de nos libertarmos totalmente da estrutura psicológica
da sociedade, isto é, de ficarmos completamente fora da sociedade. Para compreendermos os
problemas da estrutura social de que fazemos parte e também para deles nos livrar-mos,
necessitamos de considerável energia, vigor e vitalidade.
Quanto melhor percebermos quão complexa é a sociedade, tanto mais óbvia se torna a
complexidade do indivíduo que nela vive. O indivíduo é parte integrante da sociedade que ele
próprio criou, sua estrutura psicológica é essencialmente a dessa sociedade.
Compreender os problemas de cada um de nós é compreender os problema das relações
dentro da sociedade. Pois só temos um único problema: o problema das relações dentro dessa
estrutura social, psicológica.
Para a compreensão e libertação do problema das relações, necessita-se de abundante
energia, não só energia física e intelectual, mas também uma energia não "motivada" ou dependente
de estímulos psicológicos ou de drogas de qualquer espécie. Para se ter essa energia, é necessário
compreender primeiramente a maneira como dissipamos energia.
Entraremos neste assunto passo a passo, e peço-vos compreender que o orador é apenas um
espelho: está a expressar o que supõe ser o problema da cada um de nós; assim sendo, o ouvinte não
fica apenas a ouvir uma série de palavras e idéias, porém está realmente escutando e observando a si
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próprio, não segundo o que o orador ou outra pessoa formula, porém, antes, observando o seu
verdadeiro estado de confusão, de falta de energia, de aflição, de total desesperança, etc.
Se dependemos de algum estímulo para a obtenção da energia necessária, esse mesmo
estimulo embota a mente, torna-a insensível, sem penetração. Uma pessoa pode tomar a droga
chamada lsd ou outras e, temporariamente, achar energia suficiente para ver as coisas com muita
clareza, mas terá de reverter ao estado anterior e tornar-se cada vez mais dependente dessa droga.
Todo estímulo quer por parte da igreja, quer da bebida ou droga, quer do orador, criará
inevitavelmente uma dependência que impede o indivíduo de ter a energia vital necessária para ver
claramente e por si próprio.
Toda espécie de dependência a algum estímulo reduz a agilidade e a vitalidade da mente.
Por infelicidade, todos nós dependemos de alguma coisa: de uma relação, da leitura de um livro
intelectual, ou de certas idéias e ideologias por nós formuladas; ou dependemos da solidão, do
isolamento, da rejeição, da resistência.
Tudo isso, obviamente, perverte e dissipa a energia.
Temos de perceber de que é que estamos dependendo. Cumpre descobrir por que razão
dependemos de alguma coisa, psicologicamente; não aludo à dependência tecnológica ou à
dependência em que estamos do entregador do leite ... Mas, psicologicamente, porque é que
dependemos, o que supõe a dependência?
Esta é uma pergunta essencial, quando se quer investigar a dissipação, a deterioração e a
perversão da energia - dessa energia de que temos vital necessidade para compreendermos nossos
inúmeros problemas.
De que é que tanto dependemos: de uma pessoa (Jesus, Buda), um livro, uma igreja, um
sacerdote, uma ideologia, uma bebida ou droga? Quais são os esteios que sustentam cada um de nós,
sutilmente ou de maneira muito óbvia?
Por que dependemos, e o descobrimento da causa da dependência, liberta a mente dessa
dependência?
Entendeis essa pergunta?
Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos mostre as causas de vossa
dependência, porém, investigando-as juntos, as descobriremos; será um descobrimento feito por vós
e que, como tal, vos dará vitalidade.
Descobrimos por nós mesmos que dependemos de alguma coisa, por exemplo, de um
auditório, para nos estimular e dele, portanto, necessitamos. Quando se dirige a palavra a um grande
grupo de pessoas, pode-se adquirir uma certa espécie de energia e fica-se, portanto, na dependência
desses ouvintes, de sua concordância ou discordância, para se obter aquela energia. Quanto maior a
discordância, tanto maior se torna a batalha e tanto mais vitalidade se adquire; mas, se o auditório
concorda, não se obtém a mesma energia.
Dependemos - porquê?
E perguntamos a nós mesmos se, descobrindo a causa de nossa dependência, nos
libertaremos dessa dependência?
Acompanhai-me, por favor, com vagar.
Uma pessoa descobre que necessita de ouvintes porque é muito estimulante falar a outras
pessoas; porque necessita desse estimulo? Porque, interiormente, essa pessoa é superficial,
interiormente nada tem, não há nenhuma fonte de energia, sempre cheia, abundante, vital, em
movimento, viva. Interiormente é paupérrima e descobriu que essa é a causa de sua dependência.
Pode o descobrimento da causa nos livrar de continuarmos dependentes, ou esse
descobrimento é meramente intelectual, mero descobrimento de uma fórmula? Se, se trata de uma
investigação intelectual e se foi o intelecto que descobriu a causa da dependência da mente, por meio
de racionalização, de análise, pode esse descobrimento libertar a mente da dependência?
Não pode, evidentemente.
O mero descobrimento intelectual da causa não liberta a mente da sua dependência daquilo
que lhe dá estímulo, assim como a mera aceitação intelectual de uma idéia ou a aquiescência
emocional a uma ideologia não pode libertá-la.
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A mente se liberta da dependência quando vê, em seu todo, essa estrutura do estímulo e
dependência e vê que o mero descobrimento intelectual da causa da dependência não liberta a mente
da dependência.
O ver a inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e perceber como essa
dependência torna a mente estúpida, embotada, inerte, só esse percebimento liberta a mente.
Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um detalhe?
Essa é uma pergunta muito importante que nos devemos fazer, porque nós vemos as coisas
em fragmentos e pensamos em fragmentos; todo o nosso pensar é fragmentário.
Temos, pois, de investigar o que significa ver totalmente.
Perguntamos se nossa mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado
fragmentariamente, como nacionalista, individualista, como coletividade, como católico, alemão,
russo, francês, ou como indivíduo aprisionado numa sociedade tecnológica, funcionando numa
especialidade, etc. – tudo dividido em fragmentos, como o bem oposto ao mal, o ódio ao amor, a
ansiedade à liberdade.
Nossa mente pensa sempre num estado de dualidade, de comparação, de competição, e essa
mente, que funciona em fragmentos, não pode ver o todo. Se uma pessoa é hinduísta e olha o mundo
por essa estreita janela, crendo em certos dogmas, ritos, tradições, educada que foi numa certa
cultura, etc., evidentemente não pode perceber o todo da humanidade.
Assim, para se ver alguma coisa totalmente, seja uma árvore, seja uma relação ou atividade
que temos, a mente deve estar livre de toda a fragmentação, porquanto a origem da fragmentação é
justamente aquele centro de onde estamos olhando. O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é
católico, protestante, comunista, socialista, chefe de família, é o centro de onde se está olhando.
Assim, enquanto estamos a olhar a vida de um certo ponto de vista, ou de uma dada
experiência a que estamos apegados, que constitui nosso fundo, nosso "eu", não podemos ver a
totalidade.
A questão, pois, não é de como nos libertarmos da fragmentação.
Invariavelmente, uma pessoa perguntaria: "como posso eu, que funciono em fragmentos,
deixar de funcionar em fragmentos?".
Mas, essa é uma pergunta errônea.
Percebe essa pessoa que depende psicologicamente de muitas coisas e descobriu
intelectualmente, verbalmente e por meio de análise, a causa dessa dependência; esse mesmo
descobrimento é fragmentário, por ser um processo intelectual, verbal, analítico; e isso significa que
tudo que o pensamento descobre é inevitavelmente fragmentário.
Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere, porque então
não se vê verbalmente nem intelectualmente, porém realmente, como eu vejo o fato que é este
microfone - sem agrado nem desagrado; ele existe.
Vemos então a realidade, isto é, que somos dependentes e não desejamos libertar-nos dessa
dependência ou de sua causa. Observamos, e fazemo-lo sem termos um centro, sem termos nenhuma
estrutura de pensamento. Quando há observação dessa espécie, vê-se o quadro inteiro e não um
simples fragmento dele; e quando a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.
Acabamos de descobrir duas coisas.
A primeira, que há dissipação de energia quando há fragmentação. Pelo observar, pelo
"escutar" a estrutura total da dependência, descobriu-se que toda atividade da mente que trabalha e
funciona em fragmentos - como hinduísta, comunista, católico, ou como analista que analisa - é
essencialmente a atividade de uma mente dissipada, de uma mente que desperdiça energia.
A segunda coisa foi que esse descobrimento dá-nos energia para enfrentar todos os
fragmentos que forem surgindo e, conseqüentemente, observando-os à medida que surgem, eles vão
sendo dissolvidos.
Descobriu-se a própria origem da dissipação de energia e que toda fragmentação, divisão,
conflito, pois divisão significa conflito e é desperdício de energia. Todavia, pode-se pensar que não
há desperdício de energia no imitar e aceitar a autoridade, no depender do sacerdote, dos rituais, do
dogma, do partido, de uma ideologia, porque então a pessoa aceita e segue.
Mas o seguir e o aceitar uma ideologia, seja boa, seja má, sagrada ou não sagrada, representa
uma atividade fragmentária e, por conseguinte, causa conflito. O conflito surgirá, inevitavelmente,
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porque haverá separação entre "o que é" e "o que deveria ser", e esse conflito é uma dissipação de
energia.
Pode-se ver a verdade aí contida?
Mais uma vez, não se trata de "como me libertar do conflito?" - se fazemos a nós mesmos a
pergunta "como possa libertar-me do conflito?", criamos outro problema e, por conseguinte,
aumentamos o conflito. Mas se, ao contrário, vemos - tal como vemos o microfone – clara e
diretamente, pode-se então compreender a verdade essencial de uma vida inteiramente sem conflito.
Mas, senhores, digamo-lo de maneira diferente. Estamos sempre a comparar "o que somos"
com "o que deveríamos ser". Esse "deveria ser" é uma projeção do que pensamos deveria ser.
Comparamo-nos com nosso vizinho, com a riqueza que ele tem e nós não temos.
Comparamos-nos com os que são mais brilhantes, mais intelectuais, mais afetuosos, mais bondosos,
mais famosos, mais isto e mais aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas, e
essa medição que em cada um de nós se verifica, a medição de nós mesmos com alguma coisa, é
uma das principais causas do conflito. Nela, há competição, comparação com isso e aquilo, e
ficamos envolvidos nesse conflito.
Ora, porque existe comparação?
Fazei a vós mesmo essa pergunta. Porque vos comparais com outrem? Naturalmente, um dos
ardis da propaganda comercial é fazer-vos crer que não sois "o que deveríeis ser", etc. Isso começa
desde os mais verdes anos de nossa vida - ser tão arguto como outrem, nos exames, etc.
Porque nos comparamos, psicologicamente?
Verificai-o.
Se não comparo, "que sou eu?" eu ficaria embotado, vazio, estúpido - ficaria sendo o que
sou.
Se não me comparo com outrem, fico sendo o que sou. Mas, pela comparação, espero
evolver, desenvolver-me, tornar-me mais inteligente, mais belo, mais isto e mais aquilo.
Isso acontecerá?
O fato é que "eu sou o que sou" e, pela comparação, estou fragmentando esse fato, a
realidade, e isso é um desperdício de energia; mas, ao contrário, o não comparar, porém ser
realmente o que sou, é ter a extraordinária energia de que necessito para olhar. Quando sois capaz de
olhar sem comparação, estais fora de toda comparação, o que não indica uma mente estagnada,
contentada; pelo contrário!
Estamos vendo, pois, em essência, como a mente desperdiça energia e como essa energia é
necessária para compreendermos a totalidade da vida e não apenas os seus fragmentos.
Ela é como um vasto campo todo florido. Se aqui estivestes antes, notastes como, antes de
ser ceifado o feno, havia milhares de variegadas flores? Mas, em geral, escolhemos só um dado
canto do campo e nesse canto ficamos a olhar uma só flor; não olhamos o campo inteiro. Damos
importância a uma só flor e, com dar importância a essa única flor, rejeitamos o resto. É o que
fazemos quando atribuímos importância à imagem que temos de nós mesmos; rejeitamos então todas
as outras imagens e, por conseguinte, ficamos em conflito com cada uma delas.
Assim, como dissemos, é necessária a energia, energia "sem motivo", sem direção. Para tê-la,
devemos ser interiormente pobres, não ser ricos das coisas que a sociedade, que nós formamos.
Como, em maioria, somos ricos das coisas da sociedade, não existe pobreza em nós. O que a
sociedade formou em nós, o que em nós mesmos formamos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme,
ansiedade - disso somos riquíssimos.
Para compreender tudo isso, precisamos de uma extraordinária vitalidade, tanto física como
psicológica. A pobreza é uma das coisas mais estranhas da vida; as várias religiões de todo o mundo
têm pregado a pobreza - pobreza, castidade, etc. A pobreza do monge que veste um hábito muda de
nome, recolhe-se a uma cela, abre a bíblia e fica a lê-la interminavelmente; esse homem é reputado
pobre.
O mesmo se faz, de diferentes maneiras, no oriente, e isso é considerado pobreza. O voto de
castidade, o possuir só uma tanga, só uma túnica, só tomar uma refeição por dia - todos nós
respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, aqueles que tomaram o manto da pobreza continuam
ricos das coisas da sociedade, interiormente, psicologicamente, uma vez que estão ainda em busca de
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posição, de prestígio; pertencem à categoria do "religioso", e esse tipo é uma das divisões da cultura
social.
Isso não é pobreza; pobreza é estar-se completamente livre da sociedade, embora se possuam
algumas roupas e se tomem algumas refeições diárias. Torna-se a pobreza uma coisa maravilhosa e
bela, quando a mente esta livre da estrutura psicológica da sociedade, porque então já não há
conflito, não há buscar, indagar, desejar – não há nada.
Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida inteiramente livre de
conflito. Essa vida é uma benção que não se encontra em nenhuma igreja ou templo.
Interrogante: não é um paradoxo dizerdes que o pensamento sempre funciona em fragmentos
e que, para se perceber que o pensamento funciona em fragmentos, necessita-se de energia? Isso não
é um círculo vicioso?
Krishnamurti: necessito de energia para olhar, mas esse olhar se torna fragmentário e, por
conseguinte, dissipa energia; assim sendo, que se deve fazer? Vede, senhor, eu necessito de energia
física, necessito de energia intelectual, necessito de energia emocional, apaixonada, para
compreender qualquer coisa - uma energia inquebrantável.
Mas sei que estou dissipando essa energia na fragmentação; a todas as horas o estou fazendo.
Digo então: "que devo fazer? Tenho necessidade dessa energia para resolver imediatamente os
problemas da vida; no entanto, estou a dissipá-la continuamente, não tomando alimentos adequados,
pensando nisso e naquilo, com meu hinduísmo, meus preconceitos, minhas ambições, inveja, avidez,
etc. Ora, posso fazer alguma coisa em tal estado?".
Escutai primeiramente essa pergunta, muito atentamente, não a rejeiteis nem aceiteis.
Dissipo energia e tenho necessidade de energia; quer dizer, acho-me num estado de
contradição e essa mesma contradição é outro desperdício de energia. Percebo, pois, que tudo o que
faço em tal estado é desperdício de energia. A mente que está confusa, por mais que se esforce, em
qualquer nível, continuará confusa. Não se pense que, vivendo-se de acordo com "um momento de
clareza", a confusão se dissipará. Se o tento gera-se novo conflito e, por conseguinte, fomenta-se a
confusão.
Percebo que toda ação nascida da confusão produz ou leva a mais confusão; compreendi que
toda ação da mente confusa só conduz a maior confusão. Vejo isso muito claramente, vejo-o como
uma coisa extremamente perigosa - como quando se percebe um grande perigo; vejo-o com a mesma
clareza.
Que sucede então?
Não atuo mais nessas condições de confusão.
Essa inação total é ação completa.
Consideremos a questão de maneira diferente.
Percebo que a guerra, em qualquer forma, matar o próximo de um avião a grande altura ou
com um fuzil a pequena distância; ou uma batalha entre minha mulher e mim, uma batalha
comercial, um conflito interior, em mim - é sempre guerra.
Posso não matar realmente um vietnamita ou americano, mas, enquanto a minha vida for um
campo de batalha, estarei contribuindo para a guerra.
Vejo esse fato.
Vejo-o -primeiro, como a maioria de nós foi exercitada para vê-lo: intelectualmente, isto é,
fragmentariamente. E vejo que, se empreendo qualquer ação nesse estado fragmentário, tal ação só
contribuirá para fomentar a guerra, o conflito. Tenho, pois, de descobrir um estado em que não haja
conflito de espécie alguma - um estado mental inacessível ao conflito. Devo, antes de tudo mais,
descobrir se tal estado existe, pois pode ser que se trate de um estado puramente teórico, ideológico,
imaginário e, portanto, sem valor.
Mas, eu tenho de descobri-lo, e para o descobrir não devo aceitar a idéia de que tal estado
existe.
Ora, existe esse estado?
Só posso verificá-lo se compreendo a natureza do conflito, totalmente - o conflito que é a
dualidade, "o bom" e o "mau", o que não significa que não haja "bom" e "mau", e o conflito entre o
amor e o ciúme. Devo olhá-lo sem julgar, sem comparar-olhar simplesmente.
Começo a aprender a olhar, e não a atuar.
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Aprendo a olhar esse complexo campo da vida, sem aceitar nem rejeitar, comparar, condenar,
justificar; a olhar assim como olho uma árvore. Só posso olhar realmente uma árvore, quando não há
observador, isto é, quando não se torna existente o processo fragmentário do pensamento. Olho,
pois, esse vasto campo de batalha da vida, o qual suponho constituir a maneira natural de viver, esse
campo onde tenho de lutar contra meu próximo, contra minha mulher; onde tenho de lutar, quer
dizer, comparar, julgar, condenar, ameaçar, odiar.
Olho para essa situação que aceitei, para essa vida que sou eu - e posso então olhar para, mim
mesmo, assim como sou, sem nenhuma comparação, condenação, julgamento?
Se posso, já estou fora da sociedade, porque a sociedade pensa sempre segundo as noções de
grande e pequeno, poderoso e fraco, belo e feio, etc. De um golpe, compreendi todo o processo
da fragmentação e, por conseguinte, não pertenço a nenhuma igreja, nenhum grupo, nenhuma
religião, nenhuma nacionalidade, nenhum partido.
Interrogante: as reações e os sentimentos são influenciados pelo que pensamos, e quando se
apresenta um sentimento moderado, este não atinge as relações e se, enquanto o olhamos, nenhuma
ação empreendemos a seu respeito, o sentimento parece dissipar-se; mas, quando se apresenta uma
emoção forte, antagônica, esta atinge realmente as relações, e se também a olhamos sem nada fazer,
ela não parece dissipar-se; continua existente.
Krishnamurti: reagir é perfeitamente natural, não? Se me espetais com um alfinete, eu tenho
de "reagir", a não ser que esteja paralisado ou morto. Reagir ao prazer e à dor é natural; são
as duas unicas coisas a que tenho de reagir. O prazer, quero que continue; a dor, desejo afastá-la. A
reação é inevitável, natural, mas porque dividi-la sempre em prazer e dor? Eu "reajo" e, depois, que
sucede? Entra em cena o pensamento.
Interrogante: mas antes disso, se reagis violentamente ...
Krishnamurti: um momento, senhor, eu reajo violentamente; vós me espetais um alfinete e eu
atuo violentamente - bato-vos ou fujo de vós, que é também violência: ambos os atos são violentos.
Só depois, um segundo após, me torno hostil, quando o pensamento entra em cena e ordena-me que
faça alguma coisa. Observai isso, senhor, bem de perto, e vereis por vós mesmo. Vós me picais com
um alfinete, eu reajo; porque o antagonismo?
Interrogante: porque me estais perturbando.
Krishnamurti: a vida está perturbando cada um de nós a todos os momentos.
Interrogante: e por isso resistimos.
Krishnamurti: descobri agora, senhor, porque resistis. Investigai isso.
Interrogante: é a própria natureza...
Krishnamurti: ... Que nos manda proteger-nos fisicamente. Eu tenho de proteger-me
fisicamente. Ora, porque levamos essa necessidade de proteção aos estados psicológicos?
Interrogante: porque não gostamos de ser jogados para um lado e para o outro,
psicologicamente. Eu quero ser livre; não gosto de restrições.
Krishnamurti: e estais sendo restringido?
Interrogante: estou, naturalmente, e resisto a isso.
Krishnamurti: não, senhor, não me estais seguindo, isso não está bem claro. Fisicamente, há
necessidade de proteção porque, de contrário, eu não poderia viver. Mas, porque é que a mente
transfere esse desejo de proteção para o plano psicológico? Porquê?
Interrogante: por causa da reação autoprotetória. Reparai que isso não devia ser assim.
Krishnamurti: não, não - não digais "devia" ou "não devia". O fato é que, psicologicamente,
desejamos proteger-nos, defender-nos, resistir; porque?
Interrogante: quando ele se apresenta é um fato, e quando olhamos para esse fato...
Krishnamurti: antes de olhardes o fato, senhor, descobri porque desejais protege-vos
psicologicamente.
Interrogante: isso é inerente à nossa natureza.
Krishnamurti: não há nada "inerente". Examinai bem isso, senhor, e vereis. Porque desejo
proteger-me psicologicamente?
Interrogante: porque o meu eu tem certas características, e esta é uma delas. Por conseguinte,
quereis dizer que tenho de libertar-me do eu. Mas isso não é possível.
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Krishnamurti: não estou falando a respeito de libertar-nos. De coisa alguma. Porque desejo
proteger-me psicologicamente? Só desejo proteger-me psicologicamente quando não me conheço.
Quanto melhor me conheço, tanto menos desejo proteger-me, porque eu sou nada; um feixe de
palavras e de memórias. Estou protegendo uma coisa que não existe, que é uma mera idéia, um
conceito; estou a proteger isso, a resistir, a defender, a disputar com todo o mundo, para conservá-lo.
Entretanto, quanto mais conheço, melhor, no momento em que conheço a inteira estrutura dessa
coisa, não há mais nada para proteger.
Não se trata de concordardes comigo, senhor; fazei isso.
Interrogante: por conseguinte, essas reações fortes continuarão até que vejamos a nós
mesmos.
Krishnamurti: e se gostardes de continuar com elas, continuareis.
Interrogante: oh, sim; mas, se delas não gostamos, temos de resistir-lhes. Isso não está certo.
Krishnamurti: vede, a resistência, a defesa, o ataque, tudo isso são maneiras de manter uma
certa coisa que consideramos importante, um certo estado que desejamos proteger.
Interrogante: essa é apenas uma parte da questão.
Krishnamurti: uma grande parte.
Interrogante: existe aí uma questão de relação.
Krishnamurti: está bem; como quiserdes: uma questão de relação.
Interrogante: ora, eu não desejo comportar-me de maneira tal que minhas relações se tornem
rudes, ainda que eu tenha o sentimento de rudeza. Portanto, tenho de intervir, de interferir.
Krishnamurti: em primeiro lugar, temos de compreender o que é relação, antes de protegê-la.
Que é nossa relação? Se sou casado, se tenho um marido, uma esposa, filhos, qual a minha relação
com essas outras pessoas? Não teoricamente, porém realmente, qual a minha verdadeira relação com
minha mulher ou meu marido? Tenho de fato alguma relação?
Interrogante: conviveis um com o outro, decerto.
Krishnamurti: naturalmente, vivo com minha mulher.
Interrogante: e por vezes vossas relações são amigáveis, e...
Krishnamurti: atenção, senhor, atenção! Examinai bem isso! Eu vivo com minha esposa. Os
apetites sexuais que tinha em jovem, foram-se - mais ou menos, pois ainda os tenho ocasionalmente.
-- mas, que sucede? Durante o período de convivência com minha esposa, criei uma forma de
resistência, de domínio ou de aquiescência -- não quero ser importunado por ela, não quero que grite
comigo, e isso continua a acontecer. Formei, em mim mesmo, uma imagem a respeito dela, e ela
formou uma imagem a meu respeito.
Ora, essas duas imagens é que estão em relação - e não eu com ela.
Portanto, não há relação direta. Vejo isso ocorrer durante toda a minha vida - a criação da
imagem e a defesa dessa imagem - e percebo que, enquanto tenho essa imagem de minha esposa,
tem de haver contradição; embora eu esteja em relação com ela, como minha esposa, está
continuamente a travar-se uma batalha, e, se deseja viver sem batalhas, devo primeiramente libertar-
me de todas as imagens.
Ora, é possível não criar, nem por um instante, uma imagem dela?
O que quer que ela faça se grita comigo, se briga comigo, se me importuna - é possível nunca
formar imagem alguma? Isso significa que devo ter uma mente tão viva, tão alertada, que nada que
ela a esposa, diga possa enraizar-se. Se não sois capaz disso, então, naturalmente, tereis a relação das
imagens, que permanecerão em perene batalha entre si.
Interrogante: não estamos atacando o mesmo ponto; pois, no escritório ou com pessoas a
quem estamos ligados, pode suceder alguma coisa a que reagimos com um sentimento violento. Ora
bem, o fato é que, se não estou vigilante, esse sentimento...
Krishnamurti: descobri então porque não estais vigilante.
Interrogante: mas, no ínterim...
Krishnamurti: não há "ínterim".
Interrogante: eu não desejo brigar com o escritório.
Krishnamurti: então, não brigueis com o escritório.
Interrogante: é o que quero dizer. Preciso evitá-lo.
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Krishnamurti: pois o evitai. Mas, muito mais importante é descobrirdes porque não estais
desperto, vigilante. Se puderdes responder a esta pergunta, então todas as outras serão respondidas.
Mas, desejais que sejam respondidas as perguntas periféricas, sem cuidardes do ponto fundamental,
que é: estar vigilante, observar a vós mesmo.
Segundo interrogante: como sabemos que existe um mundo exterior, como sabemos que
existe a essência daquilo que constitui o mundo exterior? Talvez o mundo exterior seja maya.
Krishnamurti: ora, creio que a palavra maya significa, em sânscrito, "medir". Enquanto a
mente tiver a capacidade de medir criará ilusão, naturalmente. Por isso se disse que, uma vez que a
mente não possui outra capacidade senão a de medir, tudo o que ela mede é ilusório.
Essa é uma filosofia existente na índia - que o mundo é todo maya, ilusão. E assim, dizem
que temos de suportá-lo, esquecê-lo; que as doenças, as ofensas, o mundo, as disputas, tudo é só
ilusão. Mas, com efeito, se dizemos a um homem faminto que o mundo é maya, ilusão, isso não tem
para ele nenhuma significação.
Uma pessoa que sofre de câncer, que sente dor - o falar-lhe em ilusão nada significa. O que
importa não é se o mundo existe ou não existe, se é ilusório ou não, porém o fato é que aí está o
mundo, ai estais vós e aqui estou eu, a batalharmos um com o outro; aí estão os vietnamitas a serem
mortos por isto ou por aquilo.
Isso são fatos, e para compreender fatos devemos estar em contato com eles, quer dizer,
devemos olhá-los sem nenhuma interferência do pensamento, na forma.de preconceito, dogma,
crença, nacionalidade.
Estudo da 2ª palestra realizada por Krishnamurti em 11 de julho de 1967 em Saanen, Suíça, págs
18/32 do livro "Como Viver Neste Mundo" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso – a nova disposição
gráfica foram colocados por ocasião do estudo.
Krishnamurti no Brasil
Amigos,
Krishnamurti
Primeira palestra no Rio de Janeiro (excerto) - 13 de Abril de 1935.
Do Livro "Palestras no Brasil".
A Essência da Maturidade
A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa em seu todo imediatamente, e com esse
ato de ver pôr-lhe fim.
Vê-se de maneira total, quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria
pessoa, mas também para o mundo. Há guerra, externamente, e há guerra internamente, dentro de
cada um de nós; é possível acabarmos com ela de imediato, voltarmos-lhe as costas,
psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmo - isto é, quando a ela
respondeis sem dependerdes de nenhuma autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou
emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e
séria observação - observação, quando estais sentado num ônibus, de tudo o que vos cerca;
observação daquilo que está diante de vós mesmo, a mover-se, a transformar-se; observação, sem
motivo algum, de todas as coisas tais como são. O que é tem muito mais importância do que o que
deveria ser. Como resultado desse zelo, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.
INTERROGANTE: Do que dizeis, devo entender que temos de meditar, mas nossa mente é
impedida de fazê-lo porque está sempre passando automaticamente de um pensamento para outro, de
modo que não podemos observar o que se passa ao redor de nós? Significa isso que, em primeiro
lugar, devemos observar o que se passa em nossa mente?
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KRISHNAMURTI: "Para observar, temos de meditar" - eu não disse isso. Observar é
meditação, e isso não significa que para observar temos de meditar. Observar é uma das coisas mais
difíceis que há. Observar, por exemplo, uma árvore, é dificílimo, porque temos idéias, imagens
relativas à árvore e essas idéias - conhecimentos botânicos, etc. - nos impedem de olhar a árvore.
Observar vossa esposa ou marido é mais difícil ainda, porque também tendes uma imagem relativa a
vossa esposa e ela tem uma imagem a vosso respeito, e a relação existente é entre essas duas
imagens. É o que em geral se chama "relações": dois conjuntos de lembranças, de imagens, com
relação entre si. Vede quanto isto é absurdo. As relações que em geral temos são uma coisa morta.
Observar significa, com efeito, estar cônscio da interferência do pensamento; perceber como a
imagem que tendes da árvore, da pessoa, do que quer que seja, intervém no ato de olhar. Observai
como vos esqueceis do objeto que estais olhando - a árvore, a pessoa; e vede porque o pensamento
interfere, porque tendes uma imagem de tal pessoa. Porque tendes uma imagem de quem quer que
seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o orador, e vós, os ouvintes. Vós tendes unia imagem
relativa ao orador, infelizmente; mas eu, porque não vos conheço, nenhuma imagem tenho de vós e,
por conseguinte, posso olhar-vos. Mas não posso olhar-vos se digo de mim para comigo: vou servir-
me destes ouvintes para alcançar poder, posição, para explorá-los, tomar-me um homem famoso -
sabeis do resto - de todas as futilidades que os entes humanos cultivam. Assim, observar significa:
observar sem a interferência de nosso fundo. Entendeis? Todo o nosso ser, que está a olhar, é o
nosso fundo - cristão, francês, intelectual. Pela observação, descobre-se esse fundo; e observá-lo sem
nenhuma escolha, nenhuma inclinação, é uma disciplina tremenda - não a absurda disciplina de
ajustamento, de imitação. Essa observação torna a mente sobremodo ativa, sobremodo sensível. Isso,
em seu todo, é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", porém, antes,
que é quando observamos, que todas essas coisas sucedem. Isso, em seu todo, é meditação, e não um
certo método de controle do pensamento, assunto de que trataremos noutra ocasião.
INTERROGANTE: Parece-me que até a nossa presença aqui é uma espécie de paradoxo,
porquanto significa que estamos insatisfeitos. Isto é, eu - insatisfeito com a vida, pois vejo que nela
há violência - desejando compreender essa coisa que me causa insatisfação.
KRISHNAMURTI: Não, senhor, não há entes humanos separados da violência. Quando sinto
cólera, não é uma certa coisa ou pessoa que está encolerizada dentro de mim; sou eu que estou
encolerizado. Não há nenhum "eu" separado da cólera. Perceber o fato real expresso por essa
asserção, isto é, que eu sou a violência; percebê-lo deveras e não intelectual ou teoricamente, é pôr
fim à separação entre mim e a violência, a cólera. Mas isso exige enorme atenção e muito trabalho.
16 de abril de 1967.