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A RENASCENÇA PORTUGUESA

Tensões e Divergências
A RENASCENÇA PORTUGUESA
Tensões e Divergências

Coordenação
Paulo Borges
Bruno Béu de Carvalho

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


6

FICHA TÉCNICA

TÍTULO: A RENSACENÇA PORTUGUESA. TENSÕES E DIVERGÊNCIAS


COORDENAÇÃO: Paulo Borges, Bruno Béu de Carvalho

COLECÇÃO: ACTA 23
EDITOR: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa – 2014
Este livro ou partes dele não poderão ser reproduzidos sob qualquer forma, mesmo electrónica, sem
explícita autorização do Editor.
CAPA: Arranjo gráfico de fotografias de Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, António Sérgio,
Fernando Pessoa, José Marinho, Raul Leal, Raul Proença, Sant'Anna Dionísio e Delfim Santos.

APOIO:

Impressão e acabamento: Minhografe, Lda – Braga


Depósito Legal n.º
ISBN: 978-989-8553-41-6
ÍNDICE

Paulo Borges e Bruno Béu de Carvalho


APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 9

Paulo Borges
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA”.
TEIXEIRA DE PASCOAES E FERNANDO PESSOA ......................................... 11

António Braz Teixeira


A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL ......................... 49

António Cândido Franco


TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E
RENASCENÇA UNIVERSAL .......................................................................... 61

Pinharanda Gomes
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE
LEONARDO COIMBRA ................................................................................. 75

Romana Valente Pinho


ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA
DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO ................................................................ 107

João Príncipe
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A
PRIMEIRA REPÚBLICA ............................................................................... 127
8 ÍNDICE

Samuel Dimas
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O
TEÍSMO DA RAZÃO MISTÉRICA À LUZ DA METAFÍSICA CRIACIONISTA
DE LEONARDO COIMBRA .......................................................................... 165

Duarte Braga
O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912: TERMÓMETRO DAS TENSÕES
NA RENASCENÇA PORTUGUESA ............................................................... 197

Daniel Duarte
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE: DOIS
OU TRÊS TIPOS DE VERDADES, DE LITERATURAS E DE PERÍODOS
CIVILIZACIONAIS ....................................................................................... 207
APRESENTAÇÃO

O Grupo de Investigação de Pensamento Português do Centro


de Filosofia da Universidade de Lisboa participou nas comemorações
do Centenário do movimento da Renascença Portuguesa, em 2012, com a
realização do Colóquio Internacional A “Renascença Portuguesa”. Tensões
e Divergências, que teve lugar em 9 e 10 de Janeiro de 2013 na Facul-
dade de Letras da Universidade de Lisboa. No decurso desse evento
alguns dos organizadores acalentaram a ideia de se publicar, não as
actas do Colóquio, mas um volume de estudos sobre o tema, ideal-
mente mais desenvolvidos do que as comunicações então apresen-
tadas. Daí resultou o presente livro.
O objectivo geral é o mesmo do Colóquio: repensar o sentido
do movimento sócio-cultural da “Renascença Portuguesa” à luz
das tensões e divergências doutrinais que desde o início nele se mani-
festaram e que a nosso ver se revelaram como o seu aspecto mais
fecundo e dinâmico. Com efeito, o confronto de visões distintas entre
figuras como Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando
Pessoa, António Sérgio e Raul Proença – dentro e fora das páginas do
órgão do movimento, a revista A Águia, e desde o plano estético-
-filosófico ao sócio-político – suscitou cisões tão importantes como as
que deram origem ao Orpheu e à Seara Nova, configurando uma contro-
vérsia entre tradição e modernidade, cultura e política, nacionalismo e
universalismo, bem como sobre o sentido de Portugal e da sua
reforma, que perdura até aos nossos dias. Neste sentido, o movimento
da “Renascença Portuguesa” é sem dúvida a matriz de algumas das
principais tendências e correntes culturais e sócio-políticas desenvol-
vidas ao longo do século XX e que se prolongam no nosso século, com
maior ou menor brilho e originalidade. Mais do que recair nos
lugares-comuns da celebração unilateral do passado, importa assim
perspectivar a “Renascença Portuguesa” à luz das suas tensões e polé-
10 PAULO BORGES / BRUNO BÉU DE CARVALHO

micas constitutivas, quer porque permitem conhecer melhor o movi-


mento e o nosso passado, quer porque nos reconduzem a uma mais
ampla compreensão do nosso presente e das possibilidades de futuro
nele inscritas.
No presente volume o leitor encontra alguns estudos mais
focados na própria Renascença Portuguesa, seja sobre a ideia de “Renas-
cença” que a seu respeito desenvolvem Teixeira de Pascoaes e Fernando
Pessoa, sobre a pluralidade do movimento, sobre a articulação entre
renascimento português e universal em Teixeira de Pascoaes ou sobre
o Inquérito Literário de 1912 como expressão das tensões no seio do
movimento. Outros que mais incidem sobre figuras centrais da Renas-
cença Portuguesa, como é o caso de Leonardo Coimbra – cujo criacio-
nismo é o ponto de partida para analisar a tensão entre panteísmo e
teísmo, bem como as suas diferentes interpretações por quatro discí-
pulos principais –, António Sérgio – estudado na unidade do seu pen-
samento e em algumas das suas principais polémicas – ou Fernando
Pessoa, investigado a partir da sua inicial colaboração n’A Águia e da
sua relação com o pensamento nietzschiano, cuja influência se fez
sentir em muitos dos renascentistas.

Reúnem-se, nesta obra, várias gerações de investigadores e


hermeneutas do pensamento português, desde nomes já consagrados
até jovens continuadores do seu trabalho. Esperamos que ela possa
contribuir para um conhecimento mais aprofundado de um fenómeno
sócio-cultural que, visto à luz da sua diversidade tensional e diver-
gente, continua a ser da maior relevância e actualidade.

Paulo Borges
Bruno Béu de Carvalho
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA”.
TEIXEIRA DE PASCOAES E FERNANDO PESSOA

Paulo Borges
UNIVERSIDADE DE LISBOA

O movimento sócio-cultural da “Renascença Portuguesa”,


surgido em 1912 e que teve na revista A Águia o seu principal órgão de
expressão 1 , é sem dúvida a matriz das principais tendências e
correntes culturais e sócio-políticas desenvolvidas ao longo do século
XX e que se prolongam no nosso século. Esta sua fecundidade matricial
reside precisamente na pluralidade destas tendências e correntes, que

1A génese do ideário da Renascença Portuguesa, através do percurso dos seus


"principais orientadores e colaboradores", deve procurar-se em publicações como A
Vida, Semana Azul, Nova Seara, Nova Silva e A Águia (1ª série). Cf., para o contexto
histórico-político e cultural do movimento portuense, com abundante material
documental, Paulo SAMUEL, A Renascença Portuguesa – um perfil documental, Porto,
Fundação Engº António de Almeida,1990 e Alfredo Ribeiro dos SANTOS, A
Renascença Portuguesa – um movimento cultural portuense, Porto, Fundação Engº António
de Almeida, 1990. Cf. ainda António QUADROS, A Ideia de Portugal na Literatura
Portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa, Fundação Lusíada, 1989, pp. 71-84;
Pinharanda GOMES, A "Renascença Portuguesa" – Teixeira Rêgo, Lisboa, ICALP, 1984,
pp. 17-26; "Renascença Portuguesa", Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Publi-
cações Dom Quixote, 1987, pp. 204-207; Id., "A tensão doutrinal na génese da
"Renascença Portuguesa"", Nova Renascença, vol.VII, nº 27/28, (Porto,
Julho/Dezembro de 1987), pp. 277-290; Fernando GUIMARÃES, A Poética do
Saudosismo, Lisboa, Presença, 1988, pp.7-20.
12 PAULO BORGES

desde cedo se manifestou sob a forma de tensões e divergências2. Se


num sentido, mais imediato e exterior, pode parecer que estas tensões
e divergências comprometeram o propósito e eficácia do movimento,
que era dar um sentido doutrinal à revolução republicana do 5 de
Outubro de 1910 e promover um renascimento nacional (a República
não deixou de surgir envolta numa aura messiânica3), invertendo o
sentimento geral e de longa data de uma decadência do país (bem
marcado em Antero4 e Oliveira Martins5, entre outros), por outro
lado, num sentido mais fundo e menos aparente, na frustração e
fracasso desses intuitos do movimento residiu afinal a sua maior
fecundidade e impacto. Com efeito, foi a impossibilidade da unani-
midade do movimento, o rasgar da máscara de unidade que encobria
a originária diversidade de ideias, preocupações e motivos, que se
manifestou sob a forma das referidas tensões e divergências e que
levou ao surgimento das importantes cisões protagonizadas por
Fernando Pessoa, Raul Proença e António Sérgio, entre outros, dando
origem a novas publicações e movimentos de ideias e de intervenção
sócio-cultural tão importantes como o Orpheu, a Seara Nova e todos os
outros que na sua sequência, com maior ou menor brilho e origi-
nalidade, têm surgido até aos dias de hoje.
Este fenómeno não é novo e repete-se frequentemente noutras
nações e culturas, permitindo-nos sustentar a teoria geral de que o
verdadeiro destino e triunfo de um qualquer movimento com
finalidades limitadas é na verdade o seu fracasso, no sentido de ser a

2 Cf. Pinharanda GOMES, “A tensão doutrinal na génese da «Renascença


Portuguesa»”, Nova Renascença, VII (Porto, 1987), pp.277-290.
3 Cf. Joaquim Domingues, “A Visão Messiânica do Advento da República”, Revista

Portuguesa de Filosofia, 46 (Braga,1990), pp. 479-512.


4 Cf. Antero de QUENTAL, “Causas da decadência dos povos peninsulares nos

últimos três séculos”, in Prosas Sócio-Políticas, publicadas e apresentadas por Joel


Serrão, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, pp. 255-296.
5 Cf. o final da sua História de Portugal, embora sob o signo da interrogação aberta à

possibilidade de uma renascença: “Continuará ainda a decomposição nacional […]?


Ou presenciamos um fenómeno de obscura reconstituição, e sob a nossa indecisa
fisionomia nacional, sob a nossa mudez patriótica, sob a desesperança que por toda
a parte ri ou geme, crepitará latente e ignota a chama de um pensamento indefinido
ainda?” – Oliveira MARTINS, História de Portugal, Lisboa, Guimarães Editores, 1987,
p. 435.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 13

natural frustração e contradição dos seus objectivos iniciais, pelo


confronto dos seus limites constitutivos com a constitutiva ilimitação
de possibilidades da vida e do real, que lhe provoca a metamorfose em
algo de imprevisto, menos condicionado por esses limites e objectivos
e mais abrangente, ou o suscitar, pela inevitável reacção contra as suas
posições mais firmes e cristalizadas, outras tendências e movimentos
orientados noutras direcções e exploradores de outros rumos, com a
diversidade daí resultante e a ampliação e enriquecimento da expe-
riência humana, mental e cultural. Aqui, como sempre, se verifica a
verdade do ensinamento evangélico e universal de que só morrendo a
semente germina, floresce e frutifica: “Em verdade, em verdade, vos
digo: / Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, / permanecerá
só; / mas se morrer, / produzirá muito fruto” (João, 12:24). Neste
sentido, a morte do movimento da “Renascença Portuguesa” e de A Águia, pela
frustração dos seus objectivos iniciais e por gerar as reacções criadoras
do Orpheu e da Seara Nova, foi na verdade o seu verdadeiro renascimento, nessa
dialéctica não-hegeliana, sem termo de solução superador e definitivo,
em que toda a tese se prolonga nas múltiplas antíteses que gera, em
que todas as posições, pelos seus inerentes limites, desencadeiam
contraposições que constituem outras posições que, pelos mesmos
limites, suscitam novas contraposições, no processo aberto e infinito
que parece caracterizar o dinamismo insolúvel de tudo o que é ine-
rente à experiência humana, dominada pela dualidade e pela con-
tradição, mas também pela busca de superação dessa dualidade e
contradição numa maior integração, abrangência e universalidade,
nos mais diversos planos, espiritual, mental, cultural, social e polí-
tico (como nitidamente acontece, como veremos, com a recriação
pessoana do mitoprojecto do Quinto Império).
Contemplando a história do mundo humano, cremos que isto se
aplica a todos os movimentos, a curto, médio ou longo prazo, sejam
espirituais, culturais, sociais ou políticos, que não visem desde o início
superar-se continuamente a si mesmos em algo de mais universal que
os transcenda e integre. Nada que tenha propósitos parciais e limi-
tados triunfa, suscitando sempre o seu oposto, não permanecendo o
mesmo e transmudando-se no seu outro. E isso constitui, no avesso da
derrota de tais movimentos, o triunfo, para além das intenções sub-
jacentes a qualquer movimento ou iniciativa humana, da suprema lei
14 PAULO BORGES

da metamorfose que é inerente ao modo natural de ser das coisas, à


natureza profunda, impermanente e interdependente, de todos os
fenómenos, que procede à erosão natural de tudo o que se fecha sobre
si, pretendendo encerrar-se em limites que se não abram em limiares.
Na verdade, o simples facto de se falar, primeiro em Renascença
Lusitana6 e depois em Renascença Portuguesa7, nos dois primeiros mani-
festos redigidos por Teixeira de Pascoaes, constata e consagra o
declínio, a morte e a metamorfose renovadora de uma suposta iden-
tidade substancial, que assim revela a ficção da sua existência como
uma id-entidade, ou seja, como uma entidade dotada de uma essência
intrínseca, neste caso étnica, cultural ou política, que permanecesse
igual a si mesma ao longo do tempo e da variação dos aconteci-
mentos. Falar de Renascença Portuguesa é consagrar a falibilidade de uma
visão identitária das culturas e das nações, neste caso de Portugal, pois
um Portugal-essência não poderia jamais declinar, morrer e renascer
noutra forma que, como veremos, ao arrepio das leituras comuns do
projecto de Teixeira de Pascoaes e de Fernando Pessoa, não é tanto a
do ressurgimento nacional, mas a da superação de Portugal numa
instância mais universal, em que o grão de trigo da nacionalidade
morre germinando na alteridade de um estado de consciência mais
global, já trans-nacional.
Antes de analisarmos a ideia de Renascença nas propostas de
Pascoaes e Pessoa, notemos todavia que a compreensão do sentido
profundo do movimento da Renascença Portuguesa não pode lograr-se
reduzindo-a apenas, como quase sempre se tem feito, à esfera da
cultura e da história nacionais, exigindo considerar um âmbito mais
vasto, que contextualize e ilumine os seus contornos mais específicos.
A questão da Renascença Portuguesa é indissociável do sentimento de
um estado crepuscular da nação, em que se assiste à metamorfose em
que uma velha e conhecida forma definha, se desagrega e morre sem
que surja claramente ainda aquilo de novo a que todavia já se
pressente que está a dar lugar, como se Portugal fosse o casulo-

6 Cf. Teixeira de PASCOAES, “Ao Povo Português. A «Renascença Lusitana»”, in


A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos), compilação, introdução, fixação do texto
e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, pp. 31-33.
7 Cf. Id., “Renascença”, in Ibid., pp. 35-37.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 15

-“nevoeiro” que ainda vela a lenta e dolorosa transmutação da lagarta


em borboleta, cuja “Hora” ainda não soa, como no poema final da
Mensagem pessoana8. Todavia, em Pascoaes, esse sentimento de meta-
morfose crepuscular exorbita o domínio restrito da vida nacional para
abranger a natureza de tudo quanto existe, a mente, o mundo e o
próprio Deus. Como lapidarmente escreve no poema “A Sombra do
Passado”:

O dia é noite ainda, e o nosso espírito


Um brando lusco-fusco amanhecente…
E o mundo negro caos, matéria informe,
E o próprio Deus é ainda adolescente… 9

Nada é, tudo devém. Nada está delimitado em formas e


contornos nítidos e tudo flui num processo de metamorfose. Nada é,
não há entes, tudo transita entre ser e não-ser, não-ser e ser, tudo
entre-é numa indecisão entre a noite e o dia. Apesar de Pascoaes
conciliar esta visão com uma outra, em que a “Vida” flui e reflui,
renascendo sempre em ciclos de manifestação e reabsorção 10 , o
poema anterior não deixa de sugerir aquilo que, segundo François
Jullien, o pensamento europeu, de matriz ontológico-essencialista,
centrado na categoria de ser, tem precisamente mais dificuldade de
pensar, sendo pelo contrário a intuição central do pensamento chinês:
a transição subjacente a toda a trans-formação, essa passagem, sempre
silenciosa e inaparente, de uma forma a outra, que se dá no “entre-
-formas”, indicada pelo dinamismo do trans, que se processa nesse
espaço sempre aberto do “entre-dois”, sugerido pelo binómio chinês

8 “Ó Portugal, hoje és nevoeiro… // É a Hora!” – Fernando PESSOA, Mensagem


(edição clonada do original da Biblioteca Nacional de Portugal), Lisboa, Guimarães
Editores, 2009, p. 96.
9 Teixeira de PASCOAES, “A Sombra do Passado”, As Sombras, in As Sombras /

Senhora da Noite / Marânus, Obras Completas, III, introdução e aparato crítico por
Jacinto do Prado Coelho, Amadora, Livraria Bertrand, s. d., 2ª edição, p. 31.
10 Como no poema em que, uma vez extinta a “Vida”, quando todas as suas formas

“se fundirem na dorida, / Eterna Essência que animara o mundo”, se anuncia que
ela ressurgirá, simbolizada em Pã, num “novo Génesis glorioso” – Id., “A Sombra de
Pã”, in Ibid., p. 81.
16 PAULO BORGES

bian-tong, “modificação-continuação”11. Neste sentido, pode-se dizer


que, num pensamento alheio à noção bíblica de criação12, o processo
do mundo é um constante renascer, não desta ou daquela forma
específica, sempre mutável e transitória, mas do próprio processo na
sua abertura metamórfica, ilimitada e indefinida.
A ideia da morte e do renascimento é um dos mais arcaicos e
recorrentes temas das várias culturas, pois procede de algo extre-
mamente íntimo à experiência humana. Encontramo-lo nas iniciações
tradicionais, que visam a mutação “do regime existencial” do sujeito,
tornando-o “um outro” 13 , tal como o encontramos na experiência
psicológica e espiritual profunda da humanidade contemporânea14,
apesar de ser filha de uma modernidade que aparentemente recusou e
aboliu as tradições e instituições iniciáticas no plano social15. Podemos
dizer que a fórmula lapidar da experiência da morte e do renasci-
mento iniciático é o “Stirb und werde!” (“Morre e devém!”) de
Goethe, no final de “Selige Sehnsucht”:

Und so lang du das nicht hast,


Dieses: Stirb und Werde!
Bist du nur ein trüber Gast
Auf der dunklen Erde16.

11 François JULLIEN, Les transformations silencieuses, Paris, Bernard Grasset, 2009,


pp. 25-35.
12 Cf. Id., Procés ou Création. Une introduction à la pensée des lettrés chinois. Essai de

problématique interculturelle, Paris, Éditions du Seuil, 1989, pp.75-93.


13 Cf. Mircea ELIADE, Initiation, rites, sociétés secrètes. Naissances mystiques, Paris,

Gallimard, 1996, p.12; Stanislav GROF, A Psicologia do Futuro. Lições da Investigação


Moderna sobre a Consciência, Porto, Via Óptima, 2007, pp.26-28.
14 Cf. Stanislav GROF, A Psicologia do Futuro. Lições da Investigação Moderna sobre a

Consciência, pp. 155-196.


15 Cf. Mircea ELIADE, Initiation, rites, sociétés secrètes. Naissances mystiques, p.11.
16 “E enquanto não entenderes / Isto: – Morre e devém! –, / Serás só turvo conviva

/ Nas trevas da terra-mãe” – GOETHE, “Selige Sehnsucht”, tradução de Paulo


Quintela in Paulo QUINTELA, Obras Completas, II, Traduções, I, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, p.112. Cf. Paulo BORGES, Folia. Mistério de uma Noite de
Pentecostes, Lisboa, Esquilo, 2007.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 17

Na cultura ocidental a matriz directa da ideia de renascença reside


na palavra grega palingenesis, o nascer de novo ou re-nascer. Com muitas
ocorrências no pensamento estóico, destacamos esta passagem de
Marco Aurélio, onde a ideia está implícita:

Todos os seres que vês, tu os vês enquanto a natureza


que governa o universo não os mudar e não fizer da sua subs-
tância outros seres e, de novo, da substância desses, outros
ainda, a fim de que o mundo se rejuvenesça sempre17.

Esta visão acompanha a do “mundo” como um “único vivente”,


com uma mesma “substância” e “alma”, onde “tudo concorre a tudo
o que nasce” e todas as coisas “estão tecidas e enroladas em con-
junto”18. O imperador-filósofo exorta a que se contemple a “ligação”
e “relação” de “todas as coisas no mundo”, “pois todas as coisas estão
de algum modo entrelaçadas entre si, e, por aí, todas são amigas umas
das outras”, sendo cada uma “a continuação da outra”, pela sólidarie-
dade ontológica assegurada pelo “movimento de tensão” no “acordo”
e “unidade” da “substância” única19.
Nesta visão, próxima de Heraclito, do pensamento chinês e em
geral da noção oriental de interdependência20, pode-se dizer que todas
as coisas re-nascem continuamente umas das outras, no mais amplo
quadro de um processo do mundo em mutação contínua e sempre
renascente.
Já em Mateus, 19:28, Cristo é citado em grego usando-se a
palavra palingenesia para designar a renovação escatológica de todas as
“coisas” no Juízo Final. O renascimento universal parece ser aqui
remetido para um futuro vertical, que todavia se pode antecipar na
experiência espiritual profunda, como na visão do “céu novo” e da
“nova terra” (Apocalipse, 21:1), na ressurreição em vida a que convida o

17 Marco AURÉLIO, Pensées, VII, 25, in Les Stoïciens, textos traduzidos por Émile
Bréhier, editados sob a direcção de Pierre Maxime Schuhl, Paris, Gallimard, 1987,
p.1193.
18 Ibid., IV, 40, p.1166.
19 Ibid., VI, 38, p.1185.
20 Cf. Paulo BORGES, “O que há nesta simples folha de papel?”, CAIS, nº180

(Lisboa, Janeiro-Fevereiro de 2013), pp.46-47.


18 PAULO BORGES

Evangelho de Filipe21 ou no apocalipse da consciência que mostra a


cada instante todas as coisas novas, como no Evangelho de Tomé, onde,
interrogado sobre o dia do advento do “novo mundo”, Jesus
responde: “O que vós esperais ansiosamente já veio, mas vós não o
reconheceis” 22 . Trata-se, no fundo, e muito simplesmente, de
reconhecer o que está presente, a cada instante, imediatamente:
“Reconhece o que está à tua frente e isso que te está oculto se te
tornará manifesto”23.
Se a palingenesia pode designar assim o renascimento espiritual,
o qual pode ocorrer a cada instante, também foi associada à metem-
psicose da tradição pitagórica, entendida como o renascimento da
mesma alma num corpo diferente. Assim o entende Robert Burton,
que no século XVII escreve: “Os pitagóricos defendem a metem-
psicose e a palingenesia, que as almas passam de um corpo para
outro”24. Também Schopenhauer usou a expressão, mas desvincu-
lando-a da “metempsicose”, como mais condizente com a sua dou-
trina dos “renascimentos perpétuos” ou “sonhos de vida” da vontade
imperecível até se aperfeiçoar pelo conhecimento negando-se e supri-
mindo-se a si mesma25.
Se a palavra em biologia equivale a recapitulação – a fase no
desenvolvimento de um organismo na qual a sua forma e estrutura
passam pelas mudanças sofridas na evolução da espécie –, o seu uso
também derivou para a esfera política. Josefo designou como Palin-
genesia a restauração nacional judaica e a expressão “ultranaciona-
lismo palingenético” foi também usada, por Roger Griffin, para referir
a ideia fascista e nacional-socialista do renascimento de um Estado ou
Império à imagem do seu modelo fundador, como na pretensão da

21 The Gospel of Philip, in The Nag Hammadi Library, edição de James M. Robinson,
traduzida e introduzida por membros do The Coptic Gnostic Library Project of the
Institute for Antiquity and Christianity, Nova Iorque, HarperSanFrancisco, 1994, 3ª
edição revista, pp.144-149.
22 The Gospel of Thomas, 51, in Ibid., p.132.
23 Ibid., 5, p.126.
24 Robert BURTON, Anatomy of Melancholy, 1628.
25 Cf. Arthur SCHOPENHAUER, Le Monde comme Volonté et comme Représentation,

tradução francesa de A. Burdeau, nova edição revista e corrigida por Richard Roos,
Paris, PUF, 1989, 12ª edição, pp.1251-1252.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 19

Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler a serem, respectivamente,


a segunda incarnação do Império Romano e a terceira incarnação do
Sacro Império Romano, após a segunda ter sido a do Império alemão
de Bismarck26.
A ideia de Renascença, num sentido espiritual e cultural,
marca vários períodos de crise e transição na história da civilização
ocidental, com destaque para o Renascimento italiano, entendido
como o da cultura clássica após o declínio medieval, e para o Roman-
tismo, onde Friedrich Schlegel assumiu na descoberta da língua e da
cultura indiana um factor de Renascimento da cultura ocidental27, o
que se prolongou, por via de Schopenhauer, até Richard Wagner e
aos wagnerianos do Círculo de Bayreuth até ao progressivo desapa-
recimento, com a aproximação do nacional-socialismo, de artigos
sobre a Índia das Bayreuther Blätter28.
Foi também o Romantismo que transpôs para a vida das
nações, concebidas como organismos vitais, dotados de uma alma,
espírito ou génio – Volksgeist –, a noção de um renascimento após o
declínio, entendido agora em termos mais substanciais e menos inter-
dependentes. E é com o neoromantismo de Teixeira de Pascoaes e do
movimento da Renascença Portuguesa que a ideia de renascimento da
nação se destaca programaticamente na cultura portuguesa, numa
original síntese de sentido espiritual, biológico e político que, segundo
José Marinho, foi a génese da “mais profunda transmutação na vida
espiritual portuguesa desde o Renascimento”29. Não podemos mostrar
aqui toda a génese da ideia em autores como Teófilo Braga, Antero de
Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno, mas
notamos ser em Pascoaes que se opera uma profunda transmutação do
impulso profético-messiânico e quinto-imperial da cultura portuguesa,

26 Roger GRIFFIN, The Nature of Fascism, Palgrave Macmillan, 1991.


27 Friedrich SCHLEGEL, Über die Sprache und Weisheit der Indier, 1808. Cf. Raymond
SCHWAB, La Renaissance Orientale, AMS Press, 1977.
28 Cf. Hildegard CHÂTELLIER, “L’Orient des wagnériens”, in AAVV, L’Inde

Inspiratrice. Réception de l’Inde en France et Allemagne (XIXe et XXe siècles), estudos reunidos
por Michel Hulin e Christine Maillard, prefácio de Gérard Fussman, Presses
Universitaites de Strasbourg, 1996, pp.129-143.
29 José MARINHO, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo,

Porto, Lello & Irmão, 1976, pp.224-225.


20 PAULO BORGES

para a instauração do Reino de Deus na terra, culminante no Padre


António Vieira e ressurgente em Fernando Pessoa e Agostinho da Silva,
num impulso poético, saudoso e neoreligioso para a geração/revelação de
um Novo Deus30.
Com efeito, a intuição maior de Pascoaes, que deriva da poesia
para os ensaios e atravessa toda a obra, é a de que Deus ou o indife-
renciado primordial integra uma pulsão autonegadora que relativa-
mente o desintegra, multiplica e fragmenta na constituição do mundo,
limitando-o em todos os entes e seres, com a inerente experiência da dor
cósmica e individual e o recurso de uma saudade igualmente cósmica e
individual, que impregna todas as formas de existência e vida e as
comove para a reintegração consciente da instância primordial, pois
expressa nelas o seu vínculo à, e pré-existência na, ilesa e imanifestada
integridade do princípio. A pulsão autonegadora da divindade pri-
mordial é muitas vezes identificada, numa versão heterodoxa e neo-
gnóstica da tradição judaico-cristã, com o Deus criador bíblico, o qual é
um deus menor que, criando para se evadir do insuportável confronto
com a treva abissal do incriado e imanifestado, acaba por se mortificar
na criação do mundo, sepultando-se na constituição dos entes e seres,
com a dor que suscita o arrependimento por haver criado e a luta
interna que o converte num Deus redentor, que visa corrigir a obra
imperfeita da criação31. Este processo tem uma dimensão cósmica e
acede à plena autoconsciência na humanidade, sendo a natureza e cada
homem matrizes do nascimento desse novo Deus redentor, narrado no
Marânus e no Regresso ao Paraíso, figura da consciência saudosa no vínculo
com e recurso para o incriado, inalienável natureza primeira de todas as
coisas. A saudade é assim primeiro que tudo divina e cósmica e só depois
humana. Esta saudade, divina, cósmica e humana, é a própria vida do
incondicionado em manifestação, na tensão para renascer em todo e
cada ser da morte relativa nas formas do mundo e reintegrar a sua
natureza imanifestada, sendo este o sentido mais fundo da Renascença de

30 Cf. Paulo BORGES, “A «Renascença Portuguesa» no neoromantismo de


Teixeira de Pascoaes. Poesia, filosofia e nacionalidade: a nova religião e o novo
Deus”, Pensamento Atlântico. Estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, pp.159-195.
31 Cf. Id., Princípio e Manifestação. Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes,

I e II, Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008.


A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 21

que fala Pascoaes. Renascer é inerente à constituição saudosa de todas as


coisas, na inseparabilidade entre permanecerem no princípio, dele
procederem e a ele retornarem, concebendo o poeta português uma
versão heterodoxa da circularidade neoplatónica entre manência, pro-
cessão e conversão32. Antes de pensar a Renascença Portuguesa, e como
seu fundamento metafísico e ontocosmológico, Pascoaes pensa uma
palingenesia universal, que é o renascer da divindade imanifestada em todas
as coisas e seres entendido como o renascer de todas as coisas e seres na
divindade imanifestada.
A experiência das dores de parto desse renascer é a saudade,
radicalmente universal enquanto “sentimento cósmico” que se huma-
niza e revela diferenciadamente em múltiplas culturas particulares,
desde os “Mistérios de Elêusis”33 e as “lacrimae rerum” de Virgílio34 até à
marcante epifania na designação desse sentimento popular e anónimo a
que dão voz os Cancioneiros e os poetas galaico-portugueses, a simpatia
cósmica que Pascoaes baptiza em 1919 de “Saudosismo ou Panteísmo
saudoso”35, mas que diz também viajar pelos poetas e filósofos românticos
franceses, ingleses e alemães36 até aportar ao próprio Pascoaes e aos
poetas saudosistas. O saudosismo já era assumido em 1913 como uma
forma inédita de “panteísmo”, enquanto “alma da Raça”, pretendendo
mesmo Pascoaes que os portugueses são “o único povo panteísta”.
Também o designa como um original “Animismo saudosista”, no qual

32 “Every effect remains in its cause, proceeds from it, and reverts upon it” –
PROCLUS, The Elements of Theology, prop. 35, texto revisto com tradução,
introdução e comentário por E. R. Dodds, Oxford, Clarendon Press, 1992, p.39.
33 Cf. Teixeira de PASCOAES, Arte de Ser Português, Lisboa, Edições Roger Delraux,

1978, p.130.
34 Cf. Id., “Da Saudade” [1952], in A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos),

pp.233-234.
35 Cf. Id., Os Poetas Lusíadas [1919], Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, p.177. Cf. tb. Ibid.,

pp.169 e 176.
36 “Acabamos de estudar as formas que a Saudade adquiriu desde Virgílio a Frei

Agostinho da Cruz; desde o seu nascimento em Roma até à sua divinização na


Arrábida. Seria curioso observar também as suas viagens lá por fora, pela França de
Rousseau, Victor Hugo e Renan; pela Inglaterra de Shelley, Keats, Wordsworth, etc;
pela Alemanha de Novalis e dos Filósofos panteístas…” – Ibid., p.183.
22 PAULO BORGES

“as Cousas estão animadas da nossa própria vida”37. À originalidade e


maior autenticidade do panteísmo lusitano, que pretende não ser mera-
mente pensado filosoficamente por alguns homens, mas vivido pelo
povo, corresponderia uma igual originalidade e autenticidade da Renas-
cença lusitana, vivida instintiva e colectivamente e não meramente
criada por alguns artistas, como seria o caso da Renascença italiana38.
Apesar desta exagerada tentativa de exaltar a excelência colectiva da
singularidade nacional, a saudade lusitana não deixa de ser a forma
particular pela qual a alma pátria sente a ânsia universal de perfeição, a
qual por sua vez radica nas cósmicas dores de parto do novo Deus. É
por isso que Pascoaes a assume, desde o primeiro manifesto da então
“Renascença Lusitana”, como “matéria duma nova religião” de matriz lusi-
tana, na medida em que a Saudade universal equivale a uma “Virgem
Mãe” que, “sobre a terra santa portuguesa”, conceberá um “novo Deus
menino”39 cujo nascimento se narra no Marânus em termos que confi-
guram um novo Natal e uma nova Revelação que, se por um lado se
decalcam do imaginário cristão, por outro visam uma clara alternativa
superadora do cristianismo, onde, para lá da comunhão e transfiguração
panteístas, só a Saudade sobreviverá à evanescência de todas as coisas,
humanos e mundo, permanecendo para sempre num misterioso vínculo
ao Eterno de onde procede: “O homem, o próprio mundo passará, /
Mas a Saudade é irmã da Eternidade”40. Definindo religião como “a
ansiedade poética das almas para a perfeição moral, para a beleza
eterna, para o mistério da Vida”, Pascoaes insiste que a alma pátria
sente essa ansiedade de modo original, como se manifestaria na cultura
popular, na obra de alguns poetas e artistas e sobretudo na sua suprema
“criação sentimental”, a saudade lusitano-portuguesa, avatar da Sau-
dade universal41. De notar que o renascimento nacional, promovido por
essa força neoreligiosa, pretende uma redenção integral do ser humano,

37 Cf. Id., O génio português na sua expressão filosófica, poética e religiosa, in A Saudade e o
Saudosismo (dispersos e opúsculos) [1913], p.77.
38 Cf. Ibid., pp.77-78; cf. também Arte de Ser Português, p.130.
39 Cf. Id., Marânus, in As Sombras / Senhora da Noite / Marânus, Obras Completas, III,

pp.218-219.
40 Cf. Ibid., p.303.
41 Cf. Id., “Ao Povo Português. A «Renascença Lusitana»” [1911], in A Saudade e o

Saudosismo, p.32.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 23

que vise a harmonia espiritual, pela “Arte”, e a harmonia física, pela


“Higiene”, a qual passa pela ginástica e pela “guerra ao álcool”,
“tabaco” e “alimentação carnívora”42, temas onde se nota uma curiosa
convergência com o florescente movimento naturista e vegetariano do
início do século e nomeadamente com Ângelo Jorge, autor da narrativa
utópica Irmânia, de 191243, ou com o médico Amílcar de Sousa, autor de
uma outra utopia, Redenção, em 192344. Defendendo “a educação da
alma e a do corpo”, Pascoaes também designa a “cultura física” como a
“moral de Pã”45.
Tudo isto se esclarece no primeiro manifesto da Renascença
Portuguesa a ser divulgado, onde Pascoaes assume que, se por um lado o
sentido do movimento e do seu órgão, a revista A Águia, no presente
“momento genésico e caótico da nossa Pátria”, é “criar um novo
Portugal” ou “ressuscitar a Pátria Portuguesa” do “túmulo” da deca-
dência “física e moral”, por outro enfatiza que “Renascença” não “signi-
fica simples “regresso ao passado”, pois “Renascer é regressar às fontes
originárias da vida, mas para criar uma nova vida”. “O Passado”, acres-
centa, “é indestrutível; é o abismo, a treva onde o homem mergulha as
raízes do seu ser, para dar à nova luz do futuro a sua flor espiritual”46.
Recordando uma distinção de José Marinho, este “Passado” é incon-
fundível com o “pretérito”, designando antes a eterna presença-ausência
de uma Origem vertical e sempre instante, a caósmica e pré-consciente
matriz do ser onde todas as possibilidades permanecem sempre em
aberto, disponíveis para ser actualizadas como fonte de um futuro não
condicionado pelas tendências causais do passado e do presente. Se esta
matriz original da vida a que importa regressar, para a assumir como
fonte de uma renovada inscrição no mundo, é por um lado a de uma
“alma portuguesa” que para Pascoaes remonta a antes da nacionali-
dade, à “confusão de povos heterogéneos” que remotamente “dispu-

42 Cf. Ibid., p.33.


43 Cf. Ângelo JORGE, Irmânia [1912], edição de José Eduardo Reis, Vila Nova de
Famalicão, Quasi, 2004.
44 Cf. Amílcar de SOUSA, Redenção [1923], edição de José Eduardo Reis, Porto,

Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa / Edições Afrontamento, 2011.


45 Cf. Teixeira de PASCOAES, “A Era Lusíada (Duas Conferências)” [1914], in

Ibid., p.172.
46 Cf. Id., “Renascença”, in Ibid., p.35.
24 PAULO BORGES

taram a posse da Ibéria”47, esta alma é a da própria “Saudade” como o


“sangue espiritual da Raça” que, já desde Viriato, e na sua essência
profunda, para além da superficialidade do “gosto amargo de infelizes”
garrettiano, é o “sentimento-ideia” onde divinamente se unificam todos
os contrários: “corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu”48.
Reassumir essa “alma (ante-)portuguesa” é pois assumir a tensão
criadora inerente à divina unidualidade do real nessa “Saudade revelada”
(revelada como saudade) que o poeta afirma ser afinal a “razão da nossa
Renascença” porque, sublinhamos, “é a própria Renascença original e
criadora”. É só mediante essa assunção que Portugal renascerá para
criar “a sua nova Civilização”, uma vez que a sua “alma” “encerra em si
um novo sentido da Vida, um novo canto, um novo Verbo, e, portanto,
uma nova Acção”49.
Note-se que, apesar da problemática tendência de Pascoaes para
nacionalizar a vida universal, a essência da dita “alma portuguesa”, a
saudade, é na verdade a essência de tudo o que existe, o movimento
renascente de todas as coisas. Pascoaes confirma isso, já no final da vida,
ao escrever que a divina “Saudade […] é a nossa alma e a do mundo”50.
É por isso que, em 1914, afirma a “Saudade” como “o próprio Verbo
divino oculto na alma lusíada”, o que segundo ele faz do “Saudosismo” a
“figura original e una” das “duas imagens religiosas que presidiram até
hoje às grandes civilizações do mundo”, a espiritualidade original que
antecede e transcende o paganismo e o cristianismo51. É por estes mo-
tivos que, lido em profundidade e para além do intuito mais imediato de
promover o renascimento nacional e a “arte de ser português” – título
do livro onde não deixa de se reconhecer que a “Saudade”, enquanto
“alma pátria, significa […], em génio popular, a eterna Renascença, a
eterna aspiração humana”, celebrada já nos “Mistérios de Elêusis”52 –,
Pascoaes coloca esse ressurgimento da nação dependente de algo bem
mais profundo e decisivo, não menor do que o reassumir da divina Vida
original, anterior às grandes religiões do mundo, tal qual se processa

47 Cf. Ibid., p.36.


48 Cf. Ibid.
49 Cf. Ibid., p.37.
50 Cf. Id., “Da Saudade”, in Ibid., p.231.
51 Cf. Id., A Era Lusíada (Duas Conferências) [1914], in Ibid., p.168.
52 Cf. Id., Arte de Ser Português, pp.129-130.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 25

nessa harmonia tensional que é a “Saudade”, própria da “índole musical


do Ser” 53 enquanto unidade e devir dinâmico de opostos –
tristeza/alegria, desejo/lembrança, luz/sombra, vida/morte – que,
recordando o pensamento chinês e Heraclito, unifica “tudo quanto
existe” como “a própria alma universal” e, para além dessa dimensão
“definida e revelada”, se prolonga ainda numa outra, “misteriosa,
transcendente, inatingível, que constitui a mais alta Divindade do seu
ser”54. É por isso que conclui o opúsculo de 1913 sobre O génio por-
tuguês… considerando que o seu trabalho se dedica às “inteligências
sérias que gostam de descer ao fundo dos acontecimentos humanos, a
fim de lhes surpreender a íntima energia transcendente que os deter-
mina”, considerando que “a vida humana esconde, na sua frivolidade
exterior, no seu vestuário social e político, a infinita Seriedade, o divino
Drama da Alma” e da “Matéria” a libertarem-se da “Morte”, “a miste-
riosa Tragédia da Redenção”. Neste mesmo sentido, apela:

Estudemos o homem transcendente, o além homem, que o


Português encerra.
Estudemos o Português do Cosmos oculto no português do
extremo ocidental da Ibéria55.

Nunca será demais sublinhar ser deste estudo e desta assunção, em


cada português, da dimensão universal e trans-humana do ser humano
que depende, para Pascoaes, o renascimento de uma nação que perdeu
o rumo, que padece de uma “doença […] moral” e de “falta de alma,
sobretudo nas suas classes superiores e dirigentes”56. Mas, contraria-
mente aos antigos e novos leitores superficiais de Pascoaes e da sua
proposta, sejam seguidores ou opositores, o renascimento de Portugal e
da sua alma, segundo o visionário do Marão, não virá do patriotismo ou
nacionalismo voluntaristas, sempre reféns da autoafirmação de uma
particularidade como possuidora de um valor primacial ou absoluto,
mas sim do universalismo concreto que eleve cada português, e por

53 Cf. Id., “Da Saudade”, in A Saudade e o Saudosismo, p.231.


54 Cf. Id., O Espírito Lusitano ou o Saudosismo [1912], in Ibid., p.47.
55 Cf. Id., O génio português na sua expressão filosófica, poética e religiosa, in A Saudade e o

Saudosismo (dispersos e opúsculos) [1913], pp.94-95.


56 Cf. Id., Ibid., p.95.
26 PAULO BORGES

consequência Portugal, ao superior exercício das suas melhores poten-


cialidades, pelo qual participe no dinamismo eternamente renascente da
Vida universal e fraternamente se inscreva na comunidade planetária de
todos os viventes.

Quanto a Fernando Pessoa, notamos que os seus significativos


ensaios sobre a “nova Poesia Portuguesa” publicados em 1912 na
revista A Águia, dirigida por Pascoaes, visam claramente prosseguir o
programa renascentista do poeta do Marão e dos seus seguidores, criti-
cando embora os “misticismos de pensamento e de expressão” e
procurando dar ao novo movimento poético-literário e artístico aquilo
que lhe faltaria, uma clara “consciência de si” e do que representa, bem
como do “que pretende e a que tende” a “alma nacional” que nele se
considera expressa, tornando logicamente compreensível “o valor e a
significação” do movimento na perspectiva da razão sociológica 57 .
Pessoa explora a hipótese de que a literatura mostre o “estado de vitali-
dade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época”,
permitindo “prever ou concluir o que espera o país em que essa
literatura é actual”58. Ao fazê-lo pensa obviamente em Portugal e na lite-
ratura portuguesa contemporânea, sendo desde já importante destacar
que a sua noção de “vitalidade” é eminentemente espiritual, cultural e
intelectual:

Por vitalidade de uma nação, não se pode entender nem


a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas
secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se
entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de
criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas
novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a
que pertence59.

57 Cf. Fernando PESSOA, Obras, II, organização, introduções e notas de António


Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, p.1145-1146.
58 Cf. Ibid., pp.1146-1147.
59 Cf. Ibid., p.1147.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 27

Pessoa considera que as três grandes características da “moderna


poesia portuguesa” – ser um movimento literário nacional, com ideias,
sentimentos e modos de expressão próprios, conter “individualidades de
vincado valor” e surgir num período de decadência social e política –,
por analogia com o que sucedeu na relação entre literatura e sociedade
em Inglaterra e França – em que o renascimento literário precedeu um
período de renascimento e apogeu social –, anunciam “o princípio de
uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas
criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha”. Do mesmo
modo que em Inglaterra e França movimentos literários com caracte-
rísticas análogas precederam o aparecimento de Shakespeare e Vítor
Hugo e um ressurgimento político, assim também a nova poesia portu-
guesa anuncia “para muito breve” o aparecimento do “Grande Poeta”
que superará Camões, o “Supra-Camões”, bem como “uma renascença
extraordinária, um ressurgimento assombroso” de Portugal. A razão
sociológica coincidiria assim com as “intuições proféticas do poeta
Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro
glorioso que espera a Pátria Portuguesa”, obtidas pela “fé” e “intuição
dos místicos”60. Note-se que, se Fernando Pessoa pretende mostrar o
fundamento racional do renascentismo de Pascoaes, fá-lo deslocando-o
subtilmente do saudosismo deste e dos seus seguidores para o advento de
um “Grande Poeta”-Messias, um “Supra-Camões” que virá preceder o
ressurgimento nacional e onde é fortemente provável que o poeta
lisboeta se esteja a auto-profetizar, mostrando uma consciência precoce
do alcance da sua missão e génio poéticos, intimamente relacionados
com o renascimento de Portugal e sua apoteose no Quinto Império,
reinterpretado a partir do profetismo e messianismo tradicionais. Seja
como for, Pessoa faz disso uma verdadeira convocatória (supra-
-)nacional, antecipando já em 1912, ao exortar a “que nenhuma das
nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o Supra-Portugal de
amanhã”61, o programa também trans-nacional e trans-patriótico de
Pascoaes, quando em 1913, como vimos, escreve:

60 Cf. Ibid., pp.1152-1153, 1167, 1178 e 1193.


61 Cf. Ibid., p.1154.
28 PAULO BORGES

Estudemos o homem transcendente, o além homem, que o


Português encerra.
Estudemos o Português do Cosmos oculto no português do
extremo ocidental da Ibéria62.

Considerando Antero de Quental como o “precursor” da nova


corrente literária63, Pessoa vê “o encontrar em tudo um além” como a maior
singularidade da “nova poesia portuguesa”64 constelada em Pascoaes e
nos saudosistas, o que lhe confere um sentido metafísico e neoreligioso65.
Continuando o mesmo raciocínio anterior, por analogia com a relação
entre o aparecimento de movimentos literários originais e os períodos de
apogeu “das nações maximamente criadoras de civilização”, Pessoa
considera que, constatando-se que “a Alma Portuguesa está criando,
através da sua actual Poesia, um novo conceito emocional – e portanto
colectivo e nacional – do Universo e da Vida”, e sendo “esse conceito
[…] aquele que na linha evolutiva da alma europeia representa um
novo estádio criador”, terá já tido início “a dilatação da alma europeia
que representará uma Nova Renascença”, ainda que por agora apenas
no país, Portugal, “donde essa Nova Renascença raiará para o que na
Europa estiver acordado para a receber”66.
O novo conceito “do Universo e da Vida” presente na poesia
portuguesa, de Antero aos mais novos, é o “transcendentalismo panteísta”, no
qual “a matéria é espiritual e o espírito material” e onde coincidem a
“materialização do espírito” e a “espiritualização da matéria” 67, no
contexto de um ilusionismo manifestativo, pois “matéria e espírito são
manifestações irreais de Deus”, “o Transcendente manifestando-se como
a ilusão, o sonho de si próprio”68. A originalidade poético-filosófica do
novo movimento literário, baptizado como “Nova Renascença”, reside
em conceber a “Realidade” como “fusão de Natureza e Alma”, o que

62 Cf. Teixeira de PASCOAES, O génio português na sua expressão filosófica, poética e


religiosa, in A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos) [1913], pp.94-95.
63 Cf. Fernando PESSOA, Obras, II, p.1158.
64 Cf. Ibid., p.1176.
65 Cf. Ibid., pp.1179-1180.
66 Cf. Ibid., p.1182.
67 Cf. Ibid., pp.1189 e 1192.
68 Cf. Ibid., p.1188.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 29

Pessoa considera resultante de “uma fusão do psiquismo da Renascença com o


psiquismo do Romantismo”, o que iniciaria “um novo estádio na linha
evolutiva da civilização em que Portugal está integrado”, a “europeia
ocidental”69. Com uma vertente estética e outra metafísica, é no “trans-
cendentalismo panteísta” que a “alma da Raça”, no início do seu
“despertar”, primeiro se revela em termos espirituais, por via da lite-
ratura. Cabe agora, segundo Pessoa, antever, embora ainda longin-
quamente, qual será a sua decorrente “criação social”, ou, como escreve,
o que dará “o transcendentalismo panteísta posto em tendência social”.
Sendo um sistema que implica uma “fusão” de “opostos”, a “nova
fórmula social” dele decorrente deve proceder a essa mesma “fusão”.
Daí que o raciocínio profetize que “a futura criação social da Raça por-
tuguesa será qualquer coisa que seja ao mesmo tempo religiosa e
política, ao mesmo tempo democrática e aristocrática, ao mesmo tempo
ligada à actual fórmula da civilização e a outra coisa nova”. Daqui
decorreria, para Pessoa, que ela deveria “distar do cristianismo, e espe-
cialmente do catolicismo, em matéria religiosa; da democracia moderna,
em todas as suas formas, em matéria política; do comercialismo e mate-
rialismo radicais na vida moderna, em matéria civilizacional geral”70.
É esta assunção de todas as implicações, também sociais e neo-
civilizacionais, do “transcendentalismo panteísta” que Pessoa vê como a
partida colectiva em demanda de uma “Índia nova” e de um novo
Descobrimento, que todavia é sempre fundamentalmente espiritual,
cumprindo a um nível superior o mero e material “antearremedo” que
teriam sido as Descobertas histórico-geográficas:

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia


nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas
«daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e
supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e
carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente71.

69 Cf. Ibid., pp.1199-1203.


70 Cf. Ibid., pp.1193-1194. Cf. Paulo BORGES, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação
universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando
Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010, pp.89-97.
71 Cf. Ibid., p.1194-1195.
30 PAULO BORGES

É notável constatar que os ensaios de 1912, que simulta-


neamente fundamentam e reinterpretam o ideário renascentista de
Pascoaes, contêm em germe o essencial de tudo o que Pessoa pensará ao
longo da vida acerca do sentido e da vocação universais e universalistas
de Portugal. Para o poeta e pensador “a Pátria Portuguesa, como
qualquer pátria, é apenas um meio de criar uma civilização”, havendo
que “fazer tudo, portanto, para criar uma Pátria Portuguesa criadora
de civilização”72. Conhecer o fim civilizacional a que melhor corres-
ponde o seu psiquismo e colocar-se ao seu serviço é a primordial
tarefa ética de uma nação:

[…] é o primeiro dever de uma nação constituída – tanto


em relação a si-própria, como em relação aos seus deveres para
com a civilização a que pertence, e a humanidade em geral [,]
determinar a que função civilizacional melhor se adapta a feição
natural do seu psiquismo colectivo, ou, em outros termos, fazer as
suas classes políticas perguntar às suas classes filosóficas: «Para
que existo eu como nação? Que fim existo para servir na história
da civilização e do mundo (humanidade e civilzação)?»73.

É fundamental constatar que a resposta que Pessoa dá a estas


questões é a da vocação e sentido de Portugal ser a de constituir um
foco de irradiação de uma nova civilização, assente num novo para-
digma, transcendente e inclusivo de todas as antinomias e cosmovisões
anteriores, designado em 1912 como “transcendentalismo panteísta”74
e metamorfoseado em 1923 no “Quinto Império”, entendido como
“sermos tudo” ou “Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade

72 Cf. Id., Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, recolha de textos de Maria
Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão,
Lisboa, Ática, 1979, p.126.
73 Ibid., p.230.
74 Sobre o “transcendentalismo panteísta” vejam-se as múltiplas referências nos

ensaios de 1912 do jovem Pessoa sobre a “nova Poesia Portuguesa” como germe de
uma nova religião e de uma nova civilização – cf. Id., Obras, II, pp.1145-1203.
Cf. Paulo BORGES, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís
de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva,
pp. 89-97.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 31

não pode estar em faltar ainda alguma cousa!”. Na verdade, em


resposta a uma pergunta sobre “o futuro da raça portuguesa”, Pessoa
torna claro que esse paradigma é o da totalidade e que a sua visão do
sentido de Portugal é o de convergir para a superação da Portuga-
lidade numa visão-experiência do mundo que transcenda toda a par-
cialidade e limitação identitária pessoal e psicológica, nacional e
religiosa – “Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma
só personalidade, de uma só nação, de uma só fé?” – num estado
pleno, integral e universal de consciência, holístico, que naturalmente
se pode e deve considerar a vocação suprema de todos os humanos e a
todos igualmente acessível.
Pese a ambígua e problemática tendência de algum Pessoa para
nacionalizar este impulso para o total e o universal, como se apenas os
portugueses ou os portugueses mais do que outros povos fossem
movidos por ele75, o que é um facto é que, nesta perspectiva, o que é
nacional é o impulso para o não ser, para transcender a nacionalidade

75 Leia-se toda a resposta anteriormente citada:


“– O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
– O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito
já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de
Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a
estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português
verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora
dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os
paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguêsmente no Paganismo Superior?
Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos!
Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os
Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são
europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a
verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo
Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses
todos são verdade” – Fernando PESSOA, entrevista dada a António Alves Martins,
Revista Portuguesa, nºs 23-24 (Lisboa, 13.10.1923), in Obras, III, introduções, orga-
nização, biobibliografia e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão –
Editores, 1986, pp.703-704. Cf. também, na mesma entrevista: “Arte portuguesa
será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia
antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só
duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro – receberam dos deuses a
concessão de serem não só elas mas também todas as outras” – Ibid., p.702.
32 PAULO BORGES

integrando-a numa esfera superior de consciência, pertença e


participação. Pessoa assume aliás claramente a qualidade cosmopolita,
não-nacional e não-portuguesa do “verdadeiro português”, procla-
mando que “o nacionalismo é antiportuguês”76. Daí defendermos que
o patriotismo pessoano, afim ao que encontramos no seu maior conti-
nuador a este respeito, Agostinho da Silva77, melhor se designará
como aquilo a que chamamos patriotismo trans-patriótico e universalista78.
É esse um dos aspectos da mensagem da Mensagem, a do espírito
(mens) profundo que a tudo move e agita, gentes e coisas (ag(itat)
(mol)em) 79 , cada ser humano, Portugal, demais povos, nações e o
mundo, para que morram e ressuscitem, ou seja, se transmutem e
metamorfoseiem, num patamar superior do ser e da consciência. No
que respeita a Portugal, trata-se de operar a morte de “Portugal” –
como instituição e fenómeno histórico-cultural chegado ao esgota-

76 Na mesma entrevista declara: “O povo português é, essencialmente, cosmopolita.


Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo”; “Estamos tão
desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua
totalidade eles-próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos
nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se”; “E como o nacionalismo é anti-
português […]” – Ibid., pp.700-702.
77 Como exemplo disto, defendido em muitos outros lugares, Agostinho da Silva

termina um curto texto, também intitulado “Mensagem” e publicado no primeiro


número da revista Nova Renascença, com a afirmação “só então Portugal, por já não
ser, será”, referindo-se ao cumprimento da nação na sua própria autosuperação
num estado global, não-dual e universal de consciência – Agostinho da SILVA,
“Mensagem”, Dispersos, introdução de Fernando Cristóvão, apresentação e
organização de Paulo Borges, Lisboa, ICALP, 1989, p.697.
78 Cf. Paulo BORGES, “Da ideia de pátria ao sentido de Portugal e da Comunidade

Lusófona” e “Por um patriotismo trans-patriótico e universalista”, in Uma Visão


Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira,
Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, pp.219-234.
79 Cf. o documento anagramático existente no espólio de Pessoa, reproduzido em

Fernando Pessoa – O último ano, Lisboa, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1985 [E3, 17-51,
peça n.º 18 «Anagrama [de] Mensagem»], p. 34. Tem a seguinte descriptagem a
fonte do título Mensagem: «MENS AG|ITAT MOL|EM, primeiro segmento do
v. 727 do Canto VI da Eneida de Virgílio: “mens agitat molem et magno se corpora
miscet”»]. Cf. José Augusto SEABRA e Maria Aliete GALHOZ, “Nota Filológica
Preliminar”, em Fernando PESSOA, Mensagem/Poemas Esotéricos, edição crítica
coordenada por José Augusto Seabra, Madrid, Archivos/Fundação Eng. A. Almeida,
1997, pp. XLI-XLIII.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 33

mento de um fim de ciclo, conforme já proclamado por Miguel Real80


– no advento desse “supra-Portugal de amanhã”81 designado como
Quinto Império, ainda de acordo com a linguagem da tradição pro-
fético-messiânica judaico-cristã, europeia e portuguesa a que Pessoa
recorre, mas que nada tem a ver com um poder imperial político-reli-
gioso, designando antes uma nova idade e atmosfera da consciência e
do mundo, sob o signo de um novo paradigma civilizacional holístico,
em termos espirituais e culturais, que reúna, preserve e sintetize a um
nível superior o melhor e mais característico das culturas e civilizações
planetárias.
Na verdade o Quinto Império tem em Fernando Pessoa vários
níveis de leitura, significado e sentido, desde o espiritual, enquanto
estado mais integrado, pleno, universal e desperto da consciência indi-
vidual e colectiva, até à sua manifestação num novo paradigma
cultural, civilizacional e trans-religioso que sintetiza e transcende o
essencial dos modelos e figuras histórico-civilizacionais anteriores82,
claramente identificados no final do poema “Quinto Império” na
Mensagem:

Grecia, Roma, Christandade,


Europa – os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?83.

Se na interpretação do sonho de Nabucodonosor pelo profeta


Daniel (Daniel, 2, 31-45), que ecoa em Luís de Camões e no Padre
António Vieira, esses impérios são ainda o assírio, o persa, o grego e o
romano, na nova interpretação pessoana passam a ser o grego, o

80 Cf. Miguel REAL, A Morte de Portugal, Porto, Campo das Letras, 2007, e ainda a
“Apresentação” de Id., Nova Teoria do Mal, Alfragide, Publicações Dom Quixote,
2011, pp.11-24.
81 Cf. Fernando PESSOA, Obras, II, p.1154.
82 Sobre os vários sentidos do Quinto Império, cf. Id., Sebastianismo e Quinto Império,

edição, introdução e notas de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, Lisboa, Ática/Babel,


2011, pp.171-239.
83 Cf. Id., Mensagem, p.76.
34 PAULO BORGES

romano, o cristão e o inglês (ou europeu), pois, ao contrário da


teologia política judaica e cristã da história que este tema inspirou, em
Pessoa os quatro impérios já não são apenas ou fundamentalmente
políticos, territoriais ou “materiais”, mas antes culturais-civilizacionais
e, em última instância, espirituais, sendo essa a perspectiva do que diz
ser o “esquema português”, idêntico à versão da Mensagem: Grécia,
Roma, Cristandade, Europa e, por fim, Portugal (Quinto Império) 84.
A “ideia de império” é para o nosso autor “sincrética”, impli-
cando um resumo de “várias coisas”, uma concentração de “várias
influências”, “uma síntese e não uma simples extensão força”. O
império grego sintetiza “todos os conhecimentos” e “experiência dos
antigos impérios preculturais”; o romano sintetiza “toda a experiência
e cultura gregas” e funde em si todos os demais “povos formadores
[…] da nossa civilização”; o cristão funde a “extensão” do império
romano com a “cultura” do grego e agrega-lhe os vários elementos
orientais, entre os quais o hebraico; o inglês, que aqui substitui o euro-
peu, opera uma “nova espécie de síntese”, “fundindo a cultura grega,
[…] a extensão e “imperium” dos romanos e a moral cristã e esten-
dendo isso a “toda a terra”. Quanto ao Quinto Império, fundirá esses
quatro impérios “com tudo quanto esteja fora deles, formando […] o
primeiro império verdadeiramente mundial, ou universal”. Isto seria
confirmado pela “sociologia da nossa civilização”, formada por
“quatro elementos”: “cultura grega”, “ordem romana”, “moral cristã”
e “individualismo inglês”. Faltando “acrescentar-lhe o espírito de uni-
versalidade, que deve necessariamente surgir do carácter policon-
tinental da actual civilização”, e constatando-se que “até agora não
tem havido senão civilização europeia”, a sua “universalização […] é
forçosamente o mister do Quinto Império”85.
Que universalização? – devemos perguntar. A mundialização da
própria civilização europeia ocidental, no sentido da planetarização
neo-imperial do seu paradigma, como hoje acontece na chamada

84 Cf. Fernando PESSOA, prefácio a Augusto Ferreira Gomes, Quinto Império, in


Obras, III, pp.711-712. Cf. também Id., Sebastianismo e Quinto Império, p.181.
85 Cf. Id., Obras, III, pp.641-642 e também p.706; Id., Sebastianismo e Quinto Império,

pp.204-207.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 35

globalização técnico-económico-mediática86, ou a mundialização do


próprio “espírito de universalidade” que desde o início a move – ou
que necessariamente resulta da sua actual expressão pluricontinental –,
levando a que o seu actual paradigma, resultante da síntese dos
elementos civilizacionais anteriores, se abra a uma síntese superior e
mais universal, na qual se deva integrar e subsumir? Pessoa deixa
claro ser a segunda hipótese, até porque a mundialização da civilzação
europeia é para si já um facto consumado, como se constata nas
páginas dedicadas ao Sensacionismo. Única arte “propria” e “repre-
sentativa” da sua “epocha”, o Sensacionismo seria “uma arte synthese
de nações e de ephocas e de artes”, pois, numa consciência precoce da
actual “globalização” eurocêntrica, o pensador considera que “a nossa
ephoca é typicamente, a grande epocha do internacionalismo”, na
qual “aquillo a que se chama civilização agora, pela primeira vez
abrange todo o mundo, de norte a sul, de leste a oeste”, na qual
“todos os paizes, mais materialmente do que nunca, e pela primeira
vez intellectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a
Asia, a America, a Africa e a Oceania são a Europa, e existem todos
na Europa”, sendo a Europa “a fons et origo d’este typo civilzacional,
a região civilizada que dá o typo e a direcção a todo o mundo”87.
O Quinto Império deve pois transformar o espírito ainda
eurocêntrico da actual globalização num universalismo autêntico, que
deverá ter uma matriz espiritual, acerca da qual Pessoa antevê várias
possibilidades. Definindo “Imperio” como um “dominio” que pode
ser “material”, “intellectual” ou “espiritual”, e havendo várias possibi-
lidades de interpretação do Quinto Império em função de cada um
destes níveis de leitura88, é óbvio que predomina a sua interpretação
num registo intelectual, cultural ou claramente “Espiritual”, pois todo
o “Império” que o não for “é uma Morte de pé, um Cadáver man-
dando”. Nele se reunirão numa totalidade andrógina o feminino e o

86 Cf. Serge LATOUCHE, L’Occidentalisation du Monde. Essai sur la signification, la portée


et les limites de l’uniformisation planétaire (1989), Paris, La Découverte, 2005.
87 Cf. Fernando PESSOA, Sensacionismo e outros textos, Edição Crítica de Fernando

Pessoa, X, Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa nacional – Casa da


Moeda, 2009, pp.75-76.
88 Cf. Id., Sebastianismo e Quinto Império, pp.187-188,
36 PAULO BORGES

masculino 89 e as “duas forças” desde há muito separadas, mas


também desde há muito em vias de conjunção: “o lado esquerdo da
sabedoria – ou seja a ciência, o raciocínio, a especulação intelectual; e
o seu lado direito – ou seja o conhecimento oculto, a intuição, a espe-
culação mística e cabalística”90. Destacamos que este acontecimento
interior, esta integração e plenificação da consciência e das faculdades
humanas, é o fundamento essencial de um Império que, em termos da
sua manifestação externa, será simultaneamente “de cultura”, da
“língua”, “de poetas” e “universal”, pela “paz” que, segundo as profe-
cias do Bandarra, comentadas por Pessoa, estabelecerá “em todo o
mundo”91: “Tirara toda a Erronia, / Fara Paz em todo mundo”,
escreve Bandarra do rei Encoberto92, que em Pessoa é esse D. Sebas-
tião-Outro, transfigurado e latente em todos os homens, que incarna o
estado quinto-imperial de consciência.
Pessoa considera “provável” que o “império universal, ou quinto
império”, tenha um “carácter religioso” e pondera qual a religião que
lhe servirá de matriz, por possuir o mesmo “carácter sincrético” do
Quinto Império, o qual, continuando e culminando o processo dos
anteriores sincretismos, “há-de incluir e sintetizar os quatro que o
precederam, pois assim foi cada um deles incluindo, e sintetizando os
que vieram antes dele” 93 , num movimento simultaneamente de
abolição, transcensão e integração a um nível superior que recorda a
Aufhebung hegeliana. Discutindo as várias possibilidades, conclui num
dos textos que, consoante os escritos proféticos que interpreta, essa
religião será ainda o cristianismo, mas não o “católico”, por este se
haver tornado “incapaz de um sincretismo novo”. Não rejeita todavia
que surja “uma religião nova” e que o cristianismo se extinga, porém
89 “Criemos um Imperialismo andrógino, reunidor das qualidades masculinas e
femininas: imperialismo que seja cheio de todas as subtilezas do domínio feminino e
de todas as forças e estruturações do domínio masculino. Realizemos Apolo espiri-
tualmente” – Id., Obras, III, p.682.
90 Cf. Ibid., p.647.
91 Cf. Ibid., pp.647 e 726-729. Cf. também Pessoa Inédito, coordenação de Teresa Rita

Lopes, Lisboa, Livros Horizonte, 1993, pp.233-237 e 240.


92 Dom Ioam de CASTRO, Paraphrase et Concordançia de Alguas Propheçias de Bandarra,

çapateiro de Trancoso, reprodução fac-similada da edição de 1603, s. l., Edições Lopes


da Silva, 1942, p.122.
93 Cf. Fernando PESSOA, Obras, III, pp.642-643.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 37

já fora e para além do ciclo e “esquema” civilizacional dos “cinco


impérios”, que aqui diz não ser eterno, “visto que nada o é neste
mundo”. A “morte do cristianismo” seria “aquilo a que os profetas do
nosso esquema chamam o «fim do mundo» ou o «juízo final», dada a
confusão que ordinariamente se estabelece no espírito do profeta entre
o fim do que ele considera o mundo com o fim do próprio mundo”94.
Seja como for, a nova religião ou espiritualidade quinto-imperial
superará as diferenças e conflitos religiosos, ainda de acordo com as
profecias do sapateiro de Trancoso: “A «paz» que o Bandarra diz que
haverá em todo o Mundo, será a paz de não haver diferenças reli-
giosas, a de «um só deus será conhecido»”95. Pessoa não se detém
todavia nesta visão, explorando outras versões do sincretismo quinto-
-imperial, como a do “Paganismo Superior” ou “Politeísmo Supre-
mo”96 ou ainda a do “buddhismo esoterico”97, adiante referidas.
A visão pessoana do Quinto Império surge intimamente ligada
com a sua visão do sentido, vocação e destino de Portugal, cuja
aptidão para ser mediador da realização de tal Império e “civilização
espiritual” é a razão fundamental do seu anunciado renascimento e
assume vários aspectos. Um é a pequenez da nação onde “nenhuma
tentativa de absorção territorial”, como aconteceu com a Alemanha,
pode “desvirtuar e desviar do seu destino espiritual o original impe-
rialismo psíquico”, pensado ainda aqui como “aspiração vital” ao
domínio, porém de sentido espiritual98. A par disso, Pessoa considera
que a “índole” dos portugueses os “prepara para aquela fraternidade
universal que a teosofia anteprega” e que é a “doutrina social íntima
dos Rosa-Cruz”99. Todavia, como esclarece na notável entrevista já
citada, o maior potencial que vocaciona os portugueses para essa mais
ampla universalidade, integradora e superadora de todos os parciais
paradigmas anteriores, é o seu cosmopolitismo, a sua não reclusão
numa identidade determinada e fixa, num mesmo que deixe fora de si

94 Cf. Ibid., pp.642-646.


95 Ibid., p.647.
96 Cf. Id., entrevista dada a António Alves Martins, Revista Portuguesa, nºs 23/24

(Lisboa, 13.10.1923), in Ibid., pp.703-704. Cf. também p.683.


97 cf. Id., Sebastianismo e Quinto Império, p.210.
98 Cf. Fernando PESSOA, Obras, III, p.682.
99 Cf. Ibid., p.729.
38 PAULO BORGES

todo o outro. É isso que, não como uma missão ou destino externa-
mente conferidos, mas como uma virtualidade interna, os dota da
capacidade plástica de ser tudo: “O povo português é essencialmente
cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi
sempre tudo”100. Daí a definição de “arte portuguesa” como “uma
arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar
o estrangeiro”, como “aquela em que a Europa – entendendo por
Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e
se reconheça sem se lembrar do espelho”. Na problemática e já refe-
rida tendência para por vezes nacionalizar o universalismo, ao
considerar que “só duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro –
receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também
todas as outras”, Pessoa considera também que “ser português no
sentido decente da palavra é ser europeu sem a má-criação da nacio-
nalidade” (note-se que “Europa” significa aqui “universo inteiro”).
Nesta perspectiva, “o nacionalismo é antiportuguês”101 e a desnacio-
nalização, que é para “os outros povos” – completamente “eles-pró-
prios”, ou seja, totalmente confinados numa dada identidade – um
“perder-se”, é “para nós, que não somos nacionais, […] o encontrar-
-se”. Nesse sentido, interrogado sobre se estaríamos “em face de uma
renascença espiritual”, Pessoa responde que “estamos tão desnacio-
nalizados que devemos estar renascendo” e que “extraviámo-nos a tal
ponto que devemos estar no bom caminho”102.
O culminar desta visão expressa-se na pergunta e resposta finais,
que agora destacamos:

– O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa ?


– O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não
calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas
trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus.
Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode
viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de

100 Cf. entrevista dada a António Alves Martins, Revista Portuguesa, nºs 23/24 (Lisboa,
13.10.1923), in Ibid., p.700.
101 Cf. Ibid., p.702.
102 Cf. Ibid., p.701.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 39

uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver


a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver
todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os
paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguêsmente no
Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um
único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o
Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os
Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os
europeus que não são europeus porque não são portugueses.
Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode
estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo
Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os
deuses, só os deuses todos são verdade.103

Esta resposta é um notável resumo de vários aspectos funda-


mentais do pensamento pessoano. Para além de confirmar que assume
Portugal como a quinta-essência do cosmopolitismo e universalismo
europeus, como se pode surpreender no primeiro poema da Mensagem,
onde Portugal é o “rosto” de uma Europa que “fita” o “Occidente”
oceânico, limiar da sua própria transcensão e símbolo destinal de uma
ignota alteridade104, o poeta-pensador retoma a ideia de uma nova
Descoberta a fazer, agora o “Céu” como ontem o “Mar”, numa cres-
cente desterritorialização, desmaterialização e subtilização do ele-
mento e domínio a desvendar. Além disso, reassume o projecto sensa-
cionista de ser/sentir tudo de todas as maneiras como inerente ao
impulso heteronímico e holístico, trans-pessoal, trans-nacional, trans-
-religioso e universalizante da nação. Finalmente, esclarece o sentido
espiritual do Quinto Império como essa síntese trans-religiosa que
incorpora e transcende todas as formas de manifestação do divino, do
infinito ou do absoluto que são “todos os deuses”, por saber que,
enquanto tais – enquanto suas re-velações para o e pelo ser humano,
necessariamente condicionadas pelos limites da percepção humana –,

103Cf. Ibid., pp.703-704.


104Cf. Paulo BORGES, “Portugal, Europa e universalidade ou Quinto Império em
Fernando Pessoa”, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de
Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva,
pp.89-166.
40 PAULO BORGES

tanto o desvelam quanto o ocultam e, assim, todas são igualmente


verdadeiras e mentirosas, residindo a maior aproximação possível à
verdade na igual e simultânea aceitação de todas as formas parciais e
relativas da sua manifestação, sem excluir nem privilegiar nenhuma
delas. O que retoma a visão ilusionista do mundo e do divino presente
desde 1912 no “transcendentalismo panteísta” e recorrente no pensa-
mento pessoano105. Agostinho da Silva, na sua visão da mesma voca-
ção portuguesa para um universal trans-nacional e um ecumenismo
trans-religioso, agora sob o signo do Espírito Santo, não deixará de ser
um constante comentador e continuador desta vertente da visão
pessoana, alargando-a a uma integração de agnósticos e ateus106.
Como outros elementos para a compreensão do Quinto Império,
que em Fernando Pessoa é o fruto supremo, já trans-nacional, do renas-
cimento português, ou o “Supra-Portugal de amanhã”107, registe-se
outra passagem onde esclarece, ao falar do Império espiritual e
andrógino, masculino-feminino: “Não uma fusão do cristianismo e do
paganismo, como querem Teixeira de Pascoaes e Guerra Junqueiro;
mas um alheamento do cristianismo, uma simples e directa transcen-
dentalização do paganismo, uma reconstrução transcendental do
espírito pagão”108. O Quinto Império converge aqui com o projecto
neopagão de Pessoa, teorizado por António Mora, poetado por
Ricardo Reis e poetado/incarnado por Alberto Caeiro. Outra possibi-
lidade ainda, quando comenta a descontinuidade e exterioridade do
Quinto Império em relação aos quatro anteriores – figurada na pedra

105 Cf. Id., “Índias espirituais e Ilusão em Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa ou
de Portugal como centro do descentramento e re-Orientação do Velho Mundo
europeu-ocidental”, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís
de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva,
pp.59-87; Id., “«Deus existe, com efeito, para si próprio; mas Deus está enganado»:
a Ilusão de Deus em Fernando Pessoa”, O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de
Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2008, pp.91-134.
106 Cf. Id., Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva, Lisboa,

Âncora Editora, 2006; Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em
Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva;
Romana Valente PINHO, Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006.
107 Cf. Fernando PESSOA, Obras, II, p.1154.
108 Ibid., Obras, III, pp.682-683.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 41

que quebra a estátua inteira pelos pés de ferro e argila, no sonho


interpretado por Daniel (Daniel, 2, 34) –, é que ele venha “de fóra”,
procedendo de “uma nação extranha à Europa”. Descartadas as
nações que então tinham “cultura imperial” – “Russia, Japão, China,
Estados Unidos” –, por irrelevante para um “imperio espiritual”,
Pessoa acrescenta poder admitir-se “que fosse um imperio da India,
considerando sobretudo como o buddhismo esoterico se tem lenta-
mente infiltrado nas idéas e nos conceitos de muito mais gente
europea, e de todo o mundo, do que se imagina”109.
Seja como for, há que destacar a oportuna actualidade do renas-
centismo universalista de Pascoaes e Pessoa. Num momento de
sentimento generalizado e sofrido da dramática falência do paradigma
europeu-ocidental, o da civilização tecnocientífica, produtivista-consu-
mista, financeira e mediática, hoje globalizada numa escalada inédita
da predação do planeta e dos recursos naturais, da população humana
e animal, da biodiversidade e da diversidade cultural, que nos deixa
no limiar de um colapso ecológico-social, num momento em que mais
do que nunca se aplica a Portugal, mas também à Europa e ao mundo,
o diagnóstico certeiro do poema “Nevoeiro”110 acerca da desorien-
tação geral e ausência de liderança em que nos encontramos, num
momento crepuscular em que se torna evidente não podermos conti-
nuar como até agora, mas no qual muitos ainda não vislumbram cla-
ramente um novo rumo, cremos que uma leitura atenta, e por isso
indispensavelmente crítica, das propostas de Pascoaes e Pessoa, depu-
radas dos remanescentes neonacionalistas, pode contribuir para um
despertar da consciência individual e colectiva e para um repensar das
potencialidades de Portugal e da cultura lusófona no contexto da
presente crise civilizacional. Sem se cair nos extremos irrealistas do
messianismo lusocêntrico, que desde o Padre António Vieira faz de
Portugal um novo “povo eleito” e cultiva a “imagem de um Portugal-

109Fernando PESSOA, Sebastianismo e Quinto Império, p.210.


110“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra / […] / Ninguem sabe que coisa quer. /
Ninguem conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem. // (Que
ancia distante perto chora?) // Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso,
nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro… // É a Hora!” – Fernando
PESSOA, “Nevoeiro”, in Mensagem, p.96.
42 PAULO BORGES

-menino-jesus-das-nações” 111 , as propostas renascentes de Pascoaes e


Pessoa, sujeitas a uma justa actualização crítica, são um importante
contributo para a integração de Portugal, dos portugueses e dos
lusófonos na comunidade fraterna de todos os que, em todos os povos,
nações, culturas, religiões e irreligiões, desde sempre convergem sem
se conhecerem no mesmo sentido de um despertar fraterno da cons-
ciência e da vida em busca de uma alternativa neocivilizacional ao
colapso destrutivo do paradigma globalizado da civilização europeia-
-ocidental. O seu declínio e queda não é todavia o fim do mundo, mas
antes a abertura de outras possibilidades para o devir europeu e
mundial112, sendo extremamente pertinente que Pessoa haja visto a
civilização europeia como herança e resumo dos quatro impérios
mundanos (Grécia, Roma, Cristandade, Europa) a ser transcendidos
pelo Quinto Império, ou seja, pela nova idade do espírito e do mundo,
que vem preservar e integrar numa unidade superior o mais

111 Cf. Eduardo LOURENÇO, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino


Português, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988, 3ª edição, p.36.
112 “A falência da máquina tecno-económica gera o declínio do Ocidente como

civilização. O fracasso do desenvolvimento e o fim da ordem nacional-estatal são os


sinais e as manifestações deste insucesso, mas não são as suas causas exclusivas. As
resistências das sociedades diferentes, a sua capacidade para sobreviver como
diferentes, a aptidão das socialidades elementares para desviar os contributos mais
diversos da modernidade para sentidos radicalmente estranhos, contribuem para a
erosão do domínio do modelo ocidental. Estas sobrevivências, resistências e desvios
permitem considerar a queda do Ocidente não como o fim do mundo, mas apenas
como o fim de uma civilização. A vitalidade, o dinamismo do outro, deixam augurar
escapatórias à fatalidade do universo unidimensional” – Serge LATOUCHE,
L’Occidentalisation du Monde. Essai sur la signification, la portée et les limites de l’uniformisation
planétaire (1989), pp.139-140. Sobre a globalização, cf., entre outros, Peter
SLOTERDIJK, Palácio de Cristal. Para uma teoria filosófica da globalização, tradução de
Manuel Resende, Santa Maria da Feira, Relógio d’Água, 2008; Hervé JUVIN /
Gilles LIPOVETSKY, L’Occident Mondialisé. Controverse sur la culture planétaire, Paris,
Bernard Grasset, 2010. Sobre alternativas, cf. também Boaventura de Sousa
SANTOS, Portugal. Ensaio contra a autoflagelação, Coimbra, Edições Almedina, 2011,
pp.137-154, derradeiro capítulo que, com o título “Outro mundo é possível”,
retoma o lema do Fórum Social Mundial. Sobre a transição de paradigma, entre
outras obras, cf. Id., A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (Para um novo
senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática, Volume IV), Porto,
Edições afrontamento, 2010, 2ª edição.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 43

característico de todas as culturas e civilizações planetárias, não só


ocidentais113.
Como se evidencia no primeiro poema da Mensagem, Pessoa vê
Portugal como uma instância anfíbia de transição e de mutação da
consciência e da civilização, enquanto “rosto”-essência da própria
Europa no seu impulso de descentramento para o “Occidente”
atlântico114, ou seja, para a sua morte e transfiguração, com o velho
paradigma que ainda a domina, na alteridade ignota e universal que o
Oceano simboliza e o Quinto Império designa. Portugal incarna em
Pessoa a vanguarda da polaridade oculta, subterrânea e mais subtil da
atracção do espírito europeu, não para o imperialismo etnocêntrico e
a hybris da superação de todos os limites que caracteriza a sua história
mais visível – movida pela “patologia do universal” enquanto igno-
rância da relatividade histórico-cultural dos modelos ideais suposta-
mente superiores que pretende exportar para todo o planeta115 e pela
obsessão neoreligiosa da modernidade com o progresso e o desenvol-
vimento infinito 116 –, mas para o arrebatamento numa divina e
fecundante alteridade, como sugere o mito do rapto de Europa por
Zeus. Um dos múltiplos níveis de sentido do pensamento pessoano,
sintetizado na Mensagem, reside assim no compromisso de Portugal e
do que nele se simboliza com a mutação do paradigma civilizacional

113 Como diz Agostinho da Silva: “[…] o que eu quero, e quero porque o penso
possível, é uma terra povoada de indivíduos livres que livremente se agrupam,
jamais procurando no grupo o auxílio de que precisam, mas a oportunidade de
chegarem com seu contributo criador, e possam ser tudo para os outros sem que
nada percam de si próprios. ¶ Para que nos entendamos, é a isto que eu chamo o
Quinto Império, depois dos outros que apontou Pessoa, o da Grécia, que deu a
Ideia, o de Roma, que deu a Ordem, o da Cristandade, que deu o Amor, o da
Europa, que deu o Poder”, Agostinho da SILVA, “Barca d’Alva. Educação do
Quinto Império”, Dispersos, p.483.
114 Cf. Fernando PESSOA, “O dos Castellos”, Mensagem, p.15.
115 Cf. Roger-Pol DROIT, O que é o Ocidente?, tradução de Inês Dias, Lisboa, Gradiva,

2009, pp. 27-29, 50, 54 e 67-69. Sobre a definição e ambiguidades do “universal” há


uma obra fundamental: François JULLIEN, De l’universel, de l’uniforme, du commun et du
dialogue entre les cultures, Paris, Fayard, 2008.
116 Cf. Peter SLOTERDIJK, La Mobilisation Infinie. Vers une critique de la cinétique

politique [1989], Christian Bourgois Éditeur, 2000; Serge LATOUCHE, L’Âge des
Limites, Paris, Mille et Une Nuits, 2012.
44 PAULO BORGES

vigente e com o cumprimento de uma outra Europa, a que aspira


a emancipar-se do etnocentrismo obsessivo e a abrir-se à alte-
ridade e multiplicidade dos modelos culturais planetários117, coli-
gando o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, na emergência de uma
nova constelação civilizacional, afim ao que nomeia como Quinto
Império e nós designamos como visão armilar do mundo118. Cremos residir
aí a única possibilidade de regeneração, por autotranscensão e meta-
morfose, do projecto europeu e cremos também que Portugal, o Brasil
e o mundo lusófono – pela sua vocação e experiência histórica e pela
sua situação geográfica de mediadores entre continentes, povos e
culturas, mas desde que cumpram também uma autosuperação regeneradora, que
os faça renascer emancipados do modelo civilizacional europeu-ocidental – podem
assumir um papel fundamental nesse processo, invertendo e consu-
mando o movimento iniciado por Portugal nas Descobertas: após
havermos levado a Europa a todo o mundo, com todas as conse-
quências ambivalentes disso, trata-se agora de trazermos todo o
mundo à Europa e à civilização europeia-ocidental, como defendeu
Agostinho da Silva, para que deste encontro surja uma nova civil-
zação, planetária mas não refém de nenhum modelo etnocêntrico e
parcelar.

117 “Durante muito tempo um ato de fé, a crença num progresso material e moral
destinado a nunca ser interrompido, sofreu assim a sua crise mais grave. A
civilização de tipo ocidental perdeu o modelo que se apresentara a si mesma e já não
ousa oferecer esse modelo às outras. Não convirá assim olhar noutra direção, alargar
os quadros tradicionais, onde se fechavam as nossas reflexões sobre a condição
humana? Não deveríamos integrar aí experiências sociais mais variadas e mais
distintas das nossas, do que aquelas em cujos estreitos horizontes nos confinámos
durante tanto tempo? A partir do momento em que a civilização de tipo ocidental já
não encontra na sua própria base com o que se regenerar e encetar um novo
objetivo, poderá aprender alguma coisa sobre o homem em geral, e sobre ela
própria em particular, nestas sociedades humildes e longamente desprezadas que,
até uma época relativamente recente, tinham escapado à sua influência?” – Claude
LÉVI-STRAUSS, A antropologia face aos problemas do mundo moderno, prólogo de
Maurice Olender, s. l., Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2012, pp.19-20.
118 Cf. Paulo BORGES, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em

Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva;
“A cultura entre ilusão e des-ilusão – para um nomadismo inter e trans-cultural”,
Cultura ENTRE Culturas, nº1 (Lisboa, 2010), pp.9-16.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 45

Note-se, todavia, que em Fernando Pessoa Portugal e Quinto


Império são também e sobretudo, em última instância e respectiva-
mente, metáforas da consciência em demanda do universal e da plena consumação
disso. Como o disse lapidarmente Agostinho da Silva, já para o Padre
António Vieira “Portugal passa a ser não propriamente um deter-
minado país […] mas sim uma ideia a difundir pelo mundo”119. A par
do sentido exterior, há um sentido interior de Portugal, sem a com-
preensão do qual se nacionalizará, reduzirá e falhará a dimensão mais
profunda e universal da mensagem de Pascoaes, Pessoa e da maioria
dos pensadores do destino português. Como condição da renascença
nacional, cultural e civilizacional em causa, há que haver uma prévia
e mais decisiva renascença espiritual e integral, simultaneamente da
mente, do coração e da sensibilidade, há que haver uma transfor-
mação da consciência no sentido do todo e do universal, sem a qual os
desejados e anunciados renascimentos nacionais, culturais e civiliza-
cionais nunca passarão de meras ficções e figuras de retórica, cedo ou
tarde destinadas a frustrar as expectativas a seu respeito120.
Note-se ainda que Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa
apenas apontaram a direcção geral do novo paradigma civilizacional,
o do sincretismo universalista que não esmague e dilua, mas antes
preserve e integre o mais específico de cada cultura planetária num
nível superior, sem o formularem concretamente. A lógica, a aspira-
ção e o dinamismo holotrópicos do “homem transcendente”, do “além
homem” e do “Português do Cosmos”121, bem como do “Ser tudo, de
todas as maneiras”122, configuram todavia uma convergência com as
tendências holistas e sistémicas da espiritualidade, da filosofia, da
ciência e da cultura contemporâneas, que advertem que a solução
viável e sustentável para a crise planetária da civilização de matriz
europeia-ocidental reside num novo paradigma mental, ético, cultural

119 Agostinho da SILVA, Reflexão à margem da literatura portuguesa [1957], Ensaios sobre
Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, I, Lisboa, Âncora Editora, 2000, p.65.
120 É o que defendemos na nossa interpretação sistemática e poema a poema da

Mensagem de Pessoa: É a Hora! A mensagem da Mensagem de Fernando Pessoa, Lisboa,


Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2013.
121 Cf. Teixeira de PASCOAES, O génio português na sua expressão filosófica, poética e

religiosa, in A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos) [1913], pp.94-95.


122 Cf. Fernando PESSOA, Obras, III, pp.703-704.
46 PAULO BORGES

e civilizacional em que a predação e devastação antropocêntricas do


planeta e dos seres vivos ceda o lugar a uma consciência reintegrada
no infinito e na totalidade pela não-dualidade mental e pelo cuidado
ético do bem de todas as formas de vida e de existência, humanas e
não-humanas, sem esquecer os ecossistemas e a Terra dos quais todas
igualmente dependem. A mensagem dos renascentistas portugueses
converge assim com o novo paradigma holístico de substancial ver-
tente do pensamento contemporâneo123, o qual, como temos defen-
dido, passa pela transformação profunda e abertura infinita da cons-
ciência, mente e coração, de modo a transcender a percepção dualista
e cultivar a empatia amorosa e compassiva com a comunidade
cosmovital de todos os seres e coisas, sencientes, viventes e existentes,
estendendo a todos a experiência da proximidade ou mesmo da
intimidade124.
É este, a nosso ver, o maior desafio que desde sempre nos é
lançado e que cada vez mais se coloca à humanidade contemporânea,
sob risco de, ao persistir em recusá-lo, converter a sua zona de
conforto num inferno e anular a possibilidade de ter um futuro digno
neste planeta. Aceitá-lo e corresponder-lhe com a maior gratidão e as
melhores das nossas forças é partir para essas Novas Descobertas de

123 Cf., sem pretensões exaustivas, David BOHM, Wholeness and the Implicate Order
[1980], Londres/Nova Iorque, Routledge Classics, 2002; Fritjof CAPRA, The
Turning Point. Science, Society, and the Rising Culture [1982], Bantam, 1984; The Hidden
Connections. Integrating the biological, cognitive and social dimensions of life into a science of
sustainability, Doubleday, 2002; Ken WILBER, Uma Breve História de Tudo [1996],
Porto, Via Óptima, 2004, 2ª edição; Uma Teoria de Tudo [2001], Estrela Polar, 2005;
Satish KUMAR, Spiritual Compass. The three qualities of life [2007], Foxhole, Green
Books, 2011.
124 Cf. Paulo BORGES, “Por um novo paradigma mental, ético e civilizacional”, AO

– Boletim da Ordem dos Advogados, nºs 79-80 (Lisboa, Junho/Julho de 2011), p.64;
“Colocar-se no lugar do outro”, CAIS, nº170 (Lisboa, Fevereiro de 2012); “Quem é
o meu próximo”, CAIS, nº171 (Lisboa, Março de 2012);
“Quem é o meu próximo? Senciência, empatia e ilimitação”, Philosophica, nº40
(Lisboa, 2012), pp.25-40; “A meditação entre Ocidente e Oriente ou a atual e
urgente redescoberta de um antigo paradigma”, Humanística e Teologia, Tomo
XXXIII, Fasc. 2 (Porto, Dezembro de 2012), Cristianismo e Cultura. Homenagem a
Arnaldo de Pinho, pp.617-634; Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma
consciência e uma ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional, Lisboa, Edições
Mahatma, 2014.
A IDEIA DE RENASCENÇA NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” 47

que as anteriores não foram senão “o obscuro e carnal antearre-


medo”125. Aceitá-lo e corresponder-lhe é proclamar de novo, com
Álvaro de Campos, mas agora no espírito de um Ultimatum a nós
mesmos e dando a voz a todos os cidadãos da Terra, sem qualquer
arrogância e reivindicação nacional:

Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo tudo o que seja menos


que descobrir um Novo Mundo!126.

Aceitá-lo e corresponder-lhe é convocar-se e a todos para a


urgência do despertar fraterno que abrace armilarmente todos os
humanos, todos os seres, a Terra e o unimultiverso:
É a Hora!

Valete, Fratres

125Cf. Fernando PESSOA, Obras, II, pp.1194-1195.


126Cf. Álvaro de CAMPOS, Ultimatum, in Fernando PESSOA, Sensacionismo e outros
ismos, p.259.
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL

António Braz Teixeira

1. Na carta que, em 26 de Julho de 1911, Jaime Cortesão dirigiu


a Raul Proença, pouco tempo depois da publicação do derradeiro
número da primeira série de A Águia, em que ambos haviam cola-
borado, o futuro autor de … Daquém e dalém Morte falava-lhe “da
necessidade de fundar uma Associação de artistas e intelectuais portu-
gueses com o fim principal de exercer a sua acção (…) orientadora e
educativa, isenta de facciosismos políticos, num meio como o nosso,
em que não há grandes ideias, nem grandes homens que as im-
ponham.”
E acrescentava Cortesão: “um dos primeiros objectivos a
realizar seria a fundação de uma revista orientadora e educativa,
órgão dessa Associação, que, assim apoiada, deveria vingar”, admi-
tindo que, para o efeito, se poderia aproveitar A Águia, embora com
“largas modificações”, pela vantagem de ela dispor já de “certo
público e de uma certa organização”, e cuja direcção pensava poder
vir a ser confiada a Teixeira de Pascoaes, notando, contudo, que o
essencial era que a revista dispusesse de “um corpo de redacção
efectivo”, que, efectivamente, a dirigisse.
Continuando a delinear os termos do projecto que submetia à
consideração de Proença, Cortesão salientava que, para garantir uma
escolha rigorosa dos membros da futura Associação, a fim de que nela
“só entrasse gente da mais comprovada honestidade”, se lhe afigurava
conveniente começar por formar “primeiro um grupo organizador
que, depois de sucessivas sessões, discutiria a entrada de novos sócios,
50 ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA

que seriam admitidos ou não segundo a votação desse grupo”, adi-


tando, com ironia: “É possível que assim o sufrágio desse resul-
tados…”
Propunha, ainda, o autor de A morte da águia que a futura
Associação viesse a ter um âmbito nacional, dispondo de três grupos,
sediados em Lisboa, no Porto e em Coimbra, não se dispensando,
também, de sugerir o valor da jóia e das quotas mensais dos seus
associados.
Cortesão apresenta esta sua proposta a vários outros colabo-
radores da primeira série da revista portuense, que entenderam dar-
-lhe seguimento, tendo, para o efeito, reunido, primeiro em Coimbra,
em final de Agosto seguinte, e, depois, em Lisboa, em meados de
Setembro, reuniões em que foi deliberado criar uma associação cul-
tural denominada Renascença Portuguesa, designação que a maioria pre-
feriu à de Renascença Lusitana, defendida por Pascoaes.
Nestas reuniões verificou-se haver diversidade de pontos de vista
entre os promotores nortenhos da iniciativa e o grupo lisboeta que a
ela aderiu, bem expressa na impossibilidade de acordo acerca de dois
projectos diferentes de manifesto, apresentados, respectivamente, por
Pascoaes e Proença, vindo a caber ao poeta amarantino, na qualidade
de seu director literário, a redacção do editorial do primeiro número
da II série de A Águia, como órgão da nova associação cultural,
sediada, provisoriamente, na capital no norte e cuja finalidade era
“promover a maior cultura do povo português” e “o desenvolvimento
educativo de todos os cidadãos portugueses, por meio da lição, da
conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola,
da Universidade Popular, da excursão, da exposição, etc.”, como se
dispunha nos seus Estatutos.

2. Ao longo dos dois decénios em que desenvolveu a sua


actividade, a Renascença Portuguesa cumpriu, no essencial, os objectivos
culturais e educativos assim enunciados, desde logo, através das duas
centenas de números que compõem as quatro séries (II a V) de A
Águia, e das quatro dezenas de números do seu boletim A Vida Portu-
guesa, editado de 1912 a 1915, sob a direcção de Jaime Cortesão e em
que foram abordados alguns dos mais candentes problemas educa-
tivos, económicos e sociais com que o País então se debatia, desde os
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL 51

problemas da emigração, da instrução secundária, ou das bibliotecas


populares até aos relativos ao porto de Leixões, às quedas do Lindoso
ou aos problemas da agricultura e da indústria em Portugal.
Ao mesmo tempo, as Universidades Populares do Porto, Coimbra,
Vila Real e Póvoa do Varzim realizaram diversos cursos de filosofia,
literatura, história, ciências naturais e problemas políticos e sociais,
bem como cursos profissionais de comércio e tipografia, sendo a obra
cultural e educativa da Renascença completada e desenvolvida por uma
notável actividade editorial, que excedeu as duas centenas de títulos,
distribuídos por uma dezena de colecções, que cobriam as mais
diversas áreas do saber e da cultura, da literatura à história, da eco-
nomia ao ensino, dos clássicos ao direito, em tudo revelando um exi-
gente critério de qualidade e um amplo pluralismo quanto às ideias e
às opções estéticas e culturais.

3. Com efeito, diferentemente do que muitas vezes se tem


afirmado e escrito, a Renascença Portuguesa, movida por um sentimento
patriótico de regeneração cultural e educativa do País, na concreta
situação histórica em que actuou, não só não se circunscreveram ou
encerrou no saudosismo de Pascoaes, como acolheu em si muito
diversas opções filosóficas, políticas, estéticas, pedagógicas e historio-
gráficas, ao mesmo tempo que, quer nos cursos das suas Universi-
dades Populares quer nas páginas de A Vida Portuguesa, conferiu demo-
rada e informada atenção aos mais importantes e decisivos problemas
concretos e práticos com que, então, se defrontava a sociedade
portuguesa.
Essa pluralidade afirmou-se, desde logo, na extensíssima lista de
colaboradores de A Águia, nas quatro séries em que a revista foi órgão
da associação renascente, nas pessoas escolhidas para dirigir as várias
correcções que editou e nos autores cujas obras publicou.
Para além do grupo de intelectuais, escritores, pensadores e
artistas que fundaram o movimento sediado no Porto, pelas páginas
do seu órgão principal, entre 1912 e 1932, passaram os nomes mais
destacados, ainda vivos, da geração de 1870, como Teófilo, Junqueiro
ou Gomes Leal, figuras maiores da geração finissecular, desde Bruno,
Basílio Teles, Raul Brandão ou Fialho de Almeida a Camilo Pessanha,
Wenceslau de Morais, Malheiro Dias ou Alberto de Oliveira, alguns
52 ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA

dos mais ilustres professores da Faculdade de Letras do Porto (Damião


Peres, Luís Cardim, Ângelo Ribeiro, Newton de Macedo, Teixeira
Rego, Aarão de Lacerda, Hernâni Cidade), escritores como Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Aquilino Ribeiro, Veiga Lindes ou
Vitorino Nemésio, os principais mentores da Presença (José Régio,
Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões, Alberto de
Serpa), os então jovens pensadores José Marinho, Sant’Anna Dionísio,
Agostinho da Silva ou Delfim Santos, e novos poetas como Anrique
Paço d’Arcos, Américo Durão ou Domingos. Cumpre lembrar ainda
a colaboração que a A Águia deram intelectuais, investigadores e
eruditos como Aubrey Bell, Ezequiel de Campos, Luís Chaves,
Mendes Correia, Vergílio Correia, Aurélio da Costa Ferreira, Philéas
Lebesgue, Augusto Martins, José Osório de Oliveira, Edgar Prestage,
Carolina Michäelis de Vasconcelos, Miguel de Unamuno, Ribera y
Rovira, Vicente Risco, Noriega Varela, Viana da Mota, João Barreira
ou António Baião.
A este propósito, e contra uma ideia generalizada, convém
recordar que, apesar das profundas divergências de ideias entre Sérgio
e Pascoaes e Cortesão, que levou o primeiro a polemizar nas páginas
de A Águia (1913-1914), com o poeta de Marânus e, em A Vida Por-
tuguesa, com o futuro historiador (1913), o ensaísta não só continuou a
colaborar, regularmente, no órgão do movimento até ao final deste,
como dirigiu a sua Biblioteca da Educação, onde, além do primeiro
volume dos Ensaios (1920), foram publicados alguns dos seus principais
trabalhos de índole pedagógica, como o opúsculo Educação cívica
(1915), as Considerações histórico-pedagógicas (1915), Educação profissional
(1916), A função social dos estudantes (1917) ou O ensino como factor de ressur-
gimento nacional (1918), cumprindo ainda lembrar que a conferência
sobre O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares foi por ele
proferida, no Rio de Janeiro, em Dezembro de 1913, em represen-
tação da Renascença Portuguesa, para dar a conhecer, no Brasil, os
objectivos culturais e educativos da nova associação.
Por outro lado, será ainda oportuno lembrar haver a Renascença
Portuguesa editado obras de autores tão diversos como Raul Brandão
(El-Rei Junot, Memórias, I, Húmus, Teatro e 1817 – A conspiração de Gomes
Freire), Ezequiel de Campos, Basílio Teles, Carlos Selvagem, Américo
Durão, António Arroio, Teixeira Rego, Carolina Michäelis, Leite de
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL 53

Vasconcelos, Mendes Correia, Lúcio de Azevedo, Wenceslau de


Morais, além, evidentemente dos seus fundadores e directores, tendo
editado diversas obras de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Jaime Cor-
tesão, Augusto Casimiro, Mário Beirão, Afonso Duarte, António
Correia de Oliveira, Pina de Morais, Villa-Moura, Aarão de Lacerda
e Sant’Anna Dionísio.

4. Mais significativa da pluralidade que caracterizou a asso-


ciação cultural criada em 1912 foi, a que se manifestou nas diversas
orientações nela expressas nos domínios filosófico, estético, educativo,
historiográfico ou até mesmo político que, longe de a enfraquecer, se
revelou um decisivo factor da sua vitalidade, que acabou por se
alimentar e robustecer com estas fecundas tensões.
Na verdade, não será, decerto, muito difícil reconhecer haver
assinaláveis diferenças, no plano das ideias filosóficas, entre o saudo-
sismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo, o idealismo crítico de
Sérgio, o racionalismo de Proença, o naturalismo de Teixeira Rego ou
o pensamento estético de Aarão de Lacerda, que se exprimiu, acima
de tudo, naquilo que diferencia o panteísmo e o ateoteísmo do
primeiro do teísmo cristão do segundo, ou o deste, tanto da ideia de
um Deus imanente na consciência do ensaísta, como do ateísmo
mitigado do autor do Guia de Portugal e da interpretação do mistério da
queda proposta pelo formulador da Nova teoria do sacrifício. Por outro
lado, é significativamente diferente o modo como Leonardo e Pascoaes
entendem a saudade e o seu significado e dimensão metafísica, da
mesma forma que não pode ignorar-se a oposição crítica de Sérgio à
valorização filosófica do sentimento saudoso.
Por outro lado, ainda, se parece inegável o que há de assinala-
velmente convergente entre o idealismo criacionista leonardino e o
idealismo crítico sergiano, no domínio gnosiológico, igualmente claro
se afigura o que, no plano ontológico e teodiceico, distingue ambos os
pensadores, assim como não pode ignorar-se que, em Proença, não só
o problema do conhecimento recebe uma resposta de teor realista
como há um anseio religioso que o aproxima muito mais do filósofo
criacionista do que do autor dos Ensaios.
Atente-se, ainda, nas profundas diferenças que se registam entre
o modo como a religião e o fenómeno religioso eram compreendidos
54 ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA

no pensamento de Leonardo Coimbra, Raul Proença, Teixeira Rego


ou Aarão de Lacerda ou como o franciscanismo foi valorizado na
obra Leonardina e no ensaísmo sergiano, ou na compreensão da
história portuguesa proposta por Jaime Cortesão.
Por último, assinale-se, por um lado, o comum interesse espe-
culativo de Leonardo e Sérgio pelo pensamento anteriano, a que
ambos dedicaram aprofundados e compreensivos estudos hermenêu-
ticos, só parcialmente coincidentes, assim como o diálogo que manti-
veram com a filosofia francesa sua contemporânea, em especial com
Lachelier, Boutroux, Hamelim e Bergson, no caso do filósofo criacio-
nista, ou com Renouvier e Brunschvicg, no que respeita ao ensaísta,
ao mesmo tempo que divergiam, profundamente, no juízo que faziam
quer do pensamento do autor da Evolução criadora quer do valor
estético da obra de Junqueiro.
Por outro lado, registe-se a demorada atenção reflexiva que a
obra e o pensamento de Nietzsche mereceu por parte de Raul Proença
e de Aarão de Lacerda, contrariamente ao que aconteceu com
Leonardo e Sérgio, se bem que este último pareça ter aproveitado do
autor da Origem da tragédia a contraposição que abundantemente usou,
entre o apolíneo e o dionisíaco, em especial na sua interpretação da
figura e da obra de Antero.
Outro aspecto em que são assinaláveis as diferenças entre os
pensadores reunidos na Renascença Portuguesa é o referente ao problema
ou mistério do mal, pois, enquanto, para Pascoaes, teria origem
divina, sendo o mundo, a natureza e o homem produto da cisão em
Deus, da queda da sua unidade e da diminuição da sua perfeição, e
para Teixeira Rego teria a sua origem na passagem da alimentação
frugívora para a alimentação carnívora, já para Leonardo Coimbra
essa origem encontrar-se-ia na queda, numa liberdade negando-se,
escusando-se, fugindo às solicitações do “operoso e omnipotente”
amor divino.

5. Também no domínio político eram assinaláveis as diferenças


que se registaram entre as mais destacadas figuras do movimento
cultural portuense, o qual, note-se agrupava tanto intelectuais repu-
blicanos, como Leonardo, Pascoaes, Sérgio, Proença, Cortesão ou
Augusto Casimiro, como escritores assumidamente monárquicos,
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL 55

como Afonso Lopes Vieira, António Corrêa d’Oliveira ou Mário


Beirão.
Por sua vez, no campo republicano, ao lado do republicanismo
autoritário de Basílio Teles e dos defensores convictos e empenhados
da democracia liberal, de pendor socializante, como Sérgio, Proença,
Leonardo ou Cortesão, vamos encontrar um defensor de uma “demo-
cracia rural e religiosa”, de base municipalista, assente no sufrágio
orgânico e fortemente crítica dos partidos políticos, cuja acção pre-
tendia ver restringida ou mínimo, senão mesmo suprimida de facto,
como era Pascoaes, enquanto, no terreno monárquico, o monar-
quismo liberal de Afonso Lopes Vieira se afastava, com clareza, do
tradicionalismo de Beirão ou Corrêa d’Oliveira.

6. Esta diversidade de atitudes intelectuais projectava-se, igual-


mente, no domínio educativo, bem patente nas discordantes políticas
prosseguidas por Leonardo e Sérgio, como Ministros da Instrução
Pública, e nas ideias pedagógicas que propugnaram e na ímpar expe-
riência pedagógica que foi a Faculdade de Letras do Porto, sendo de
recordar ainda aqui a polémica travada entre Sérgio e Cortesão, nas
páginas de A Vida Portuguesa, em 1913, a propósito das Universidades
Populares e as Cartas à mocidade (1940), com que o grande historiador
se despediu de Portugal, nas vésperas do seu longo e fecundo exílio
brasileiro. Contrapunham-se aqui uma concepção pragmática e cívica
da educação, de inspiração inglesa, como era a de Sérgio, e uma
orientação de cariz espiritualista, centrada no caracter e na realidade
portuguesa, como era a teorizada por Leonardo e Cortesão e que
Pascoaes igualmente perfilhava.
É, ainda, oportuno lembrar as antagónicas visões da história
portuguesa defendidas por Sérgio e Cortesão, de base económico-
-social, a primeira e de funda inspiração espiritualista, atribuindo deci-
sivo relevo ao elemento religioso e conferindo importante papel aos
heróis e à acção individual, a segunda.

7. Se, no que respeita à teorização filosófica da saudade, havia


significativas diferenças entre as posições do autor de Verbo escuro e o
filósofo de A alegria, a dor e a graça, também no amplo grupo de poetas
que militavam sob o pendão da saudosismo poético se registavam dife-
56 ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA

renças de vulto, em regra desatendidas, cumprindo lembrar aqui não


só os muito distintos modos de vivenciar e exprimir a saudade entre os
poetas saudosistas associados na Renascença Portuguesa, como, ainda,
que, à margem dela, se afirmaram, pela mesma época, poetas saudo-
sistas da superior qualidade de António Sardinha, Florbela Espanca
ou Guilherme de Faria.
Na verdade, se, em António Casimiro e João de Barros, a
saudade assume um carácter vitalista, surgindo associada a uma exal-
tação da vida e dos valores vitais, e pátrios e se, em Afonso Duarte, se
reveste de um sentido panteísta, mas de um panteísmo naturalista que
está longe de alcançar a dimensão metafísica e transcendente que
apresenta na obra de Pascoaes, já em António Patrício aparece inti-
mamente unida ao amor e à morte, como revelação ou anúncio do
bem futuro e instante em que o passado está presente, “abrindo os
olhos sobre um fundo eterno”, apresentando, por isso, uma natureza
transfiguradora, capaz de anular a morte, enquanto, em Fernando
Pessoa, a saudade, que, inicialmente, surge referida às “reminiscências
de qualquer outro mundo em que houvéssemos estado”, vem, depois,
a articular-se com o sonho e a ser entendida ou vivenciada como
saudade imaginada do que nunca foi ou nunca houve, de um possível
nunca concretizado, ao mesmo tempo que, em Jaime Cortesão, se liga
a um profundo sentido da terra e da paisagem, tocado de franciscana
religiosidade, em António Corrêa d’Oliveira assume uma forte dimen-
são religiosa, rigorosamente ortodoxa, na linha de um tradicionalismo
ruralista e nacionalista, em Afonso Lopes Vieira, superada uma pri-
meira fase de recorte naturalista e cientifista, abeira-se, decidida-
mente, do romanceiro e do cancioneiro tradicional, numa feição
também declaradamente lusitanista e em Mário Beirão é “divina
ausência”, “voz da eternidade”, que na paisagem se refracta, “mortal
recordação” que o homem, “inútil sombra” e da “escultura de Deus”
“argila fria”, se encontra condenado a sofrer, no desterro “doutra
existência, das perdidas manhãs do Paraíso”, animado pela “fé num
sonho redentor, / em que tudo será no eterno Amor”.
A estas diversas vivências ou experiências saudosas anda asso-
ciado um também diverso modo de compreender o tempo próprio da
saudade, pois se, para alguns, como Corrêa d’Oliveira ou Lopes
Vieira, ela se reporta, essencialmente, ao passado ou à ausência, para
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL 57

outros, como Pessoa, refere-se a um tempo sonhado ou imaginado, ao


passo que, para outros ainda, como Pascoaes, Mário Beirão ou
Patrício, apresenta uma consubstancial dimensão futurante e reden-
tora do homem, do mundo ou de Deus.

8. Também a ficção produzida no âmbito do movimento


renascente apresenta diversidade de caminhos estéticos e temáticos,
que vão da antecipação expressionista e existencial da obra narrativa
de Raul Brandão, em especial de Húmus (1917), a sua obra-prima, ou
dos contos fantásticos de … Daquém e d’além Morte (1913), de Jaime
Cortesão, na linha esquecida de Teófilo e Álvaro do Carvalhal (1844-
-1868), ao esteticismo decadentista de Villa-Moura (1877-1935) e ao
regionalismo, de recorte ainda naturalista de Pina de Morais (1889-
-1953), de A paixão do “maestro” (1922).
Idêntica pluralidade de opções estéticas se revela, ainda, no
domínio da criação dramatúrgica da Renascença Portuguesa, em que com
o simbolismo e o saudosismo do teatro de António Patrício, do D.
Carlos, de Teixeira de Pascoaes e dos dois dramas históricos e dos dois
dramas históricos de Jaime Cortesão, coexiste o expressionismo e a
dimensão existencial dos dramas e das farsas de Raul Brandão, o
teatro rural de Carlos Selvagem e Américo Durão, o teatro de
actualidade do mesmo Selvagem e do Cortesão de Adão e Eva ou os
autos de inspiração popular de Corrêa d’Oliveira e Afonso Lopes
Vieira.

9. Uma última questão considero ser oportuno abordar ainda


aqui: a que diz respeito às relações de dissidência, ruptura ou conti-
nuidade existentes entre o grupo Seara Nova e a Renascença Portuguesa,
uma vez que na origem e fundação da revista lisboeta estiveram
alguns dos principais promotores e associados do movimento cultural
surgido dez anos antes na capital do norte, como é o caso de Raul
Proença, Jaime Cortesão, Câmara Reys, Augusto Casimiro, Raul
Brandão e, dois anos mais tarde, de António Sérgio, vários dos quais
continuaram a colaborar em A Águia depois da criação do órgão do
grupo seareiro, devendo ainda notar-se que, analogamente, pelo
menos dois dos directores das duas últimas séries da revista portuense
colaboraram, regularmente, na Seara Nova, o mesmo acontecendo com
58 ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA

outros destacados jovens renascentes, como Agostinho da Silva e José


Marinho.
Convém começar por recordar aqui o que Raul Proença
escreveu na apresentação do nº 1 da nova revista lisboeta, publicado
em 15 de Outubro de 1921, ao esclarecer que ela queria “chamar a
atenção de todo o país para as reformas necessárias e contribuir para
que se criasse, em torno dessas reformas, uma opinião nacional que as
exigisse e as apoiasse”, do mesmo passo que pretendia “fundar as
condições da verdadeira democracia” e “contribuir para a grande e
profunda Revolução” que deveria “redimir a nossa Pátria”, esfor-
çando-se, acima de tudo, pela “elevação do Espírito, condição essen-
cial de toda a nobreza da vida humana e das próprias reformas
materiais”, em nome do “verdadeiro idealismo”, o que “mergulha as
suas raízes nas mais fundas necessidades da existência”, aquele que
“exprime a própria vontade de viver uma vida inteiramente humana”,
convictos que estavam os seus promotores de que “nenhum esforço de
redenção nacional seria possível sem uma “espécie de conversão e de
exaltação religiosa dos espíritos”.
Recusando ser um partido político, a Seara não deixava, no
entanto, de se afirmar contra todas as formas de nacionalismo milita-
rista e de declarar que as suas simpatias iam para os que lutavam pelo
triunfo do socialismo, “dentro da ordem, dos métodos democráticos e
desse espírito de realidades sem o qual são inteiramente ilusórias
quaisquer reformas sociais.
Se abstrairmos desta clara tomada de posição política, estas
palavras do autor de O eterno retorno no essencial, não se afastam das
ideias contidas no projecto de manifesto da Renascença Portuguesa
que Proença redigira em decénio antes, quando afirmava que, através
da escola, do livro, da revista, do panfleto, da manifesto, da confe-
rência, da exposição, do inquérito, da viagem de informação de
estudo, a nova associação cultural diligenciaria criar, em Portugal,
“uma elite consciente” e “uma opinião pública esclarecida”.

10. Sendo inegável que os dois movimentos, separados uma


década na sua criação, prosseguiam objectivos não inteiramente
coincidentes, de índole predominantemente educativa e cultural, o
surgido, no Porto, em 1912 e de caracter prioritariamente cívico e
A “RENASCENÇA PORTUGUESA”, MOVIMENTO PLURAL 59

político, o aparecido, em Lisboa, em 1921, não deve esquecer-se, por


um lado, a diversa conjuntura política, social e espiritual em que cada
um deles surgiu e, por outro, aquilo que, apesar disso, apresentavam
de comum ou em que vinham a convergir: a preocupação pela
regeneração ou redenção da Pátria portuguesa, a prioridade conferida
à elevação do Espírito e a atenção dada à educação e à cultura ou o
lugar conferido aos problemas concretos da vida portuguesa, da
economia ao ensino, da agricultura à indústria, dos problemas sociais
ao aproveitamento das riquezas naturais do País.
Daí que, se é verdade que, nalguns aspectos não dispiciendos, a
Seara representou um certo afastamento ou uma relativa ruptura com
um movimento que, com a cessação da publicação de A Vida Portuguesa
e após o afastamento de Pascoaes, sob a direcção exclusiva de
Leonardo Coimbra (de 1922 a 1927), tendia, talvez, a confundir-se
com a Faculdade de Letras do Porto e a descurar a consideração de
problemas sociais, políticos e sociais tornados particularmente agudos
com o termo da I Guerra Mundial, por outro lado, não se pode
ignorar que, em larga medida, o grupo lisboeta, mais próximos dos
centros de poder e mas sensível à gravidade da crise nacional, veio a
ser, em larga medida, o herdeiro e continuador, numa situação
política, social e cultural muito diversa da de 1912, do mesmo espírito
e dos mesmos nobres intuitos de regeneração do País e de incutir uma
verdadeira dimensão ética e espiritual numa sociedade e num regime
em acelerada degradação política, cívica e moral como era a I
República nos inícios dos anos 20 do século passado e que veio a
conduzir ao seu definitivo colapso um lustro depois.

Dezembro de 2012
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA
E RENASCENÇA UNIVERSAL

António Cândido Franco


UNIVERSIDADE DE ÉVORA – C.E.L.

Teixeira de Pascoaes – nome poético de Joaquim Pereira


Teixeira de Vasconcelos (1877-1952) – deixou uma larga obra escrita,
em prosa e em verso, que se estende por quase todos os géneros
conhecidos, da lírica à dramaturgia, do romance ao memorialismo,
mostrando-se ainda em alguns outros momentos impossível de
qualquer classificação de género. Estreou-se em livro aos 17 anos,
1895, usando o nome de Joaquim P. Teixeira de Pascoaes e V., com
Embriões, um livro informe, pouco personalizado, que logo, insatisfeito
com a edição, mandou destruir. A obra de Pascoaes ganhou porém
desde cedo uma tintura original – essa tristeza elegíaca a que ele
chamou saudade e a que soube emprestar um verso terso e vibrátil, de
bom recorte clássico e sortílego efeito sonoro. É o que acontece logo
nas duas primeiras partes de Belo, uma écloga que ele tomou como o
momento original da sua estreia, dada à estampa, em Coimbra, nos
anos de 1896 e 1897, e subscrita já com o nome definitivo. Esses
primeiros opúsculos – a que se juntam À Minha Alma (1898), Sempre
(1898), Terra Proibida (1899), À Ventura (1901) – estão todavia distantes
da grandeza expressiva ulterior do poeta. Mais tarde, desagradado
com eles, ou com a sua expressão, muito credora ainda dos sinais da
época, Pascoaes revolveu-os em profundidade, subordinando-os ao
seu estro pessoal e inconfundível e pouco deixando sobreviver das
primeiras versões originais.
62 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

A originalidade da obra em verso de Pascoaes, que a distinguiu


de imediato dos pares mais próximos – Augusto Gil, António Correia
de Oliveira, Fausto Guedes Teixeira ou Afonso Lopes Vieira –, só
surgiu de forma indubitável e incondicional com livros como Jesus e Pã
(1903), Vida Etérea (1906) e As Sombras (1907), a que podemos juntar
Senhora da Noite (1909), que puseram de lado a saudade como ino-
fensivo motivo epidérmico, ornamento de superfície, sem eficácia
expressiva real, que é o tópico mais vulgar nos poetas do período,
preferindo-lhe uma saudade retoricamente activa, de surpreendente
efeito textual. A tal alteração expressiva, assente na energia imagi-
nativa da metáfora analógica e no choque irracional do paradoxo,
mostrando um Pascoaes no domínio perfeito dos seus dons, muito
acima dos seus pares, chama-se ou pode chamar-se saudosismo, apesar
de a designação só tomar forma mais tarde, no quadro das actividades
da Renascença Portuguesa (1911-32), quando as incidências de
pensamento desta metamorfose se apresentarem de forma intorneável.
O saudosismo de Teixeira de Pascoaes surgiu assim como poética ou
como poesia, a primeira do século XX português, poética de expressão
dinâmica e inovadora, não obstante nela se reconhecerem elementos
característicos do final do século XIX. Enquanto os poetas seus con-
temporâneos, como Augusto Gil ou Fausto Guedes Teixeira, iam
buscar a Cesário Verde e a António Nobre os germes dos seus versos,
Teixeira de Pascoaes preferia o Antero das Odes Modernas (1866), o
Gomes Leal do mistério esotérico e o Junqueiro do evolucionismo
metafísico, este quase contemporâneo da revolução poética saudosista.
Não foi difícil ao poeta perceber que a densidade expressiva do
seu novo modo, condensado sobretudo nos dois grandes livros de 1906
e 1907, tinha implicações pensantes. Os lugares verbais, o espaço dos
novos versos, enigmáticos e obscuros por excelência, podiam ser apre-
sentados numa prosa expositiva, de tipo conceptual, capaz de escla-
recer e até de desenvolver teoricamente as intuições imaginativas das
suas metáforas e dos seus paradoxos poéticos. Por via deste transvase
nasceu a prosa de Teixeira de Pascoaes, revelada pela primeira vez
num jornal anarquista do Porto, A Vida, em dois longos textos sobre o
sentido da vida (14-7-1907 e 18-8-1907), coetâneos das analogias ima-
ginativas que cavalgam os versos de As Sombras e que podem ser
encarados como a sua expositiva dedução filosófica. Este propósito
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 63

nocional encontrou pouco depois, em 1910, na queda da monarquia e


na implantação da República um húmus favorável ao desenvol-
vimento pleno. A publicação do primeiro número da revista A Águia,
no dia 1 de Dezembro de 1910, e a fundação da associação cultural
Renascença Portuguesa, sediada no Porto, em finais de 1911,
estimularam Teixeira de Pascoaes a prosseguir a dedução expositiva
da sua poesia, centrando-se desta vez quase em exclusivo naquilo
mesmo que estava no centro do seu canto poético, a saudade.
Nasceu assim o saudosismo como corrente de ideias ou doutrina
social e como escola estética ou movimento de pensamento. O saudo-
sismo que aqui se joga compila-se em três conferências – O Espírito
Lusitano e o Saudosismo (1912) O Génio Português na sua Expressão Filosófica,
Poética e Religiosa (1913) A Era Lusíada (1914) – e em dois livros, Arte de
Ser Português (1915) e Os Poetas Lusíadas (1919). Estas páginas, a que se
juntam alguns dispersos, exarados na revista A Águia, interpelaram até
hoje, a favor ou contra, inúmeros depoentes. O primeiro deles foi
António Sérgio, que logo em 1913, numa época em que o pensamento
de Pascoaes estava ainda a sazonar, tentou apontar nas páginas de A
Águia os limites do saudosismo nascente. A polémica travada nas
páginas de A Águia entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, de
Outubro de 1913 a Junho de 1914, ao longo de oito peças, constitui-se
como uma das mais importantes trocas de ideias sobre o futuro por-
tuguês de que há memória na cultura portuguesa recente. Impossível
fazer aqui, por aperto de espaço, a leitura pormenorizada deste con-
flito e menos ainda historiar a larga fortuna crítica, nem sempre escla-
recida, que ele teve até aos dias de hoje. Passando por Fernando
Pessoa, José Régio, José Marinho, Eugénio de Andrade, Mário
Cesariny ou Eduardo Lourenço, para só referir meia dúzia, todos eles
se pronunciaram, directa ou indirectamente, sobre aquilo que ficou
em causa entre os dois oponentes. E isto sem sair do país, pois em boa
verdade para se fazer a história da polémica de ideias que atravessou a
Renascença é preciso saltar fronteiras, já que o saudosismo teve nas
duas décadas da Renascença um largo acolhimento na Galiza e na
Catalunha, onde o autor fez de resto as conferências que deram
origem a Os Poetas Lusíadas, e até na Castela salmantina e madrilena de
Miguel de Unamuno, onde Pascoaes chegou a ir fazer palestras sobre
o Saudosismo.
64 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

Cabe porém dizer que é nos textos desta polémica que melhor
podemos encontrar a expressão prática do que Pascoaes desejava para
o país no quadro da renovação institucional republicana e que nesse
sentido as quatro peças que ele aí publica são essenciais para melhor
esclarecer o que ele pretendeu adiantar nas três conferências públicas
que fez nessa época e sobretudo no manual de instrução cívica de
1915.
Ao mesmo tempo que tinha lugar este transvanse, levando o
autor a transitar da poesia para filosofia, ou do verso para a prosa, a
crítica literária da época, pela mão de Leonardo Coimbra (1883-
-1936), retirava da revolução poética de 1906-07 uma nova termi-
nologia crítica, cuja intertextualidade é reconhecível no trabalho
anterior de Oliveira Martins sobre a poesia de Antero de Quental e
Guerra Junqueiro, que foi depois a nomenclatura que Fernando
Pessoa desenvolveu e fez frutificar nos textos que deu à estampa em
1912 na revista A Águia sobre a nova poesia portuguesa.
O saudosismo surge, na teorização dada a lume entre 1912 e
1919, como uma corrente de ideias enquadrada na esquerda da
época, defendendo a separação do clero português de Roma, que a
República não se atreveu assumir, a reorganização política do país a
partir dum municipalismo de matriz federalista proudhoniana, que a
República também teve dificuldade em tomar para si, e o incentivo à
educação cívica e ilustração popular, num tópico comum ao republi-
canismo e ao próprio António Sérgio, e que foi a primeira razão de ser
da acção da Renascença Portuguesa. A associação, além da admirável
obra editorial que deixou, promoveu 4 universidades populares, todas
a funcionar no Norte do país (Coimbra, Porto, Póvoa de Varzim e
Vila Real). Não espanta pois que Cristiano de Carvalho, que de resto
desenhou a capa da primeira série da revista A Águia (1910-1911),
tenha feito um curso sobre a Comuna de Paris de 1871 na Univer-
sidade Popular do Porto no ano de 1913.
O saudosismo singularizava-se porém na esquerda republicana
da época pela recusa em imitar modelos culturais estrangeiros, como
sugerira a geração de 70 e como continuavam a defender António
Sérgio e Raul Proença – isto sem negar a ideia de abertura da cultura
portuguesa ao universal. Teixeira de Pascoaes via na cópia um sinal de
inferioridade cultural e de menoridade mental, se não de colonização
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 65

geral, e preferia por isso, a partir da selecção dos momentos criadores


da cultura portuguesa, apurar um modelo original e inconfundível,
capaz de se universalizar e concorrer em pé de igualdade com os
modelos das culturas fortes.
O saudosismo como ideário social, político, filosófico e religioso,
naquilo que constituiu pretexto para as censuras de António Sérgio,
parece ter sido tão-só a tentativa de pôr cobro à tendência do
Português para a imitação, inclinação que se acentuara de forma
caricata e hiperbólica no constitucionalismo monárquico da segunda
metade do século XIX, substituindo-a por uma nova e situada men-
talidade criadora, que não desdenhava porém, como se percebe nas
réplicas ao autor de Ensaios, assimilar dinamicamente, de forma
pessoal, aspectos superiores e criativos das culturas estrangeiras. O
que mais que importa reter hoje para compreender o saudosismo de
Pascoaes é todavia que se trata duma forma de pensamento poético; con-
venço-me que muitas das incompreensões que se geraram em volta do
Saudosismo, e logo as de António Sérgio, teriam sido menos severas, e
até porventura evitadas, se se percebesse o ideário saudosista desses
anos como o pensamento dum poeta, um poeta que, para escrever a
sua prosa dita doutrinária, empregou, ao modo de Novalis ou de
outros, as mesmas faculdades de expressão usadas para criar a sua
poesia em verso. Esta premissa não solve nem resolve a questão do
Saudosismo, que é das mais complexas e contraditórias da história da
cultura portuguesa do século XX, mas ainda assim dá-lhe o atributo
necessário para entendê-la no espaço que é o seu, a poesia; o Saudo-
sismo é o fruto dum poeta, não dum economista, dum político, dum
financeiro, dum teólogo, dum administrador ou dum arquitecto social
e há-de ser no seu campo próprio, o da linguagem poética, que o
Saudosismo há-de em primeiro ser avaliado.
No momento em que tinha lugar o processo dedutivo do
pensamento saudosista, o verso lírico de Pascoaes, tocado de penum-
bra e de vidência, derivava para linhas narrativas, com a intervenção
directa de personagens, e cujas voltas complexas se mostravam muito
mais aptas à expressão do momento histórico da refundação republi-
cana. O saudosismo filosófico de Pascoaes, muito centrado no am-
plexo recriador da República, incentivou o primeiro saudosismo, o de
1906 e 1907, a libertar-se das formas líricas lineares, emprestando-lhe
66 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

uma vertente dramática, que adoptou formas narrativas que incor-


poravam círculos cada vez mais universalizantes. Os dois grandes
poemas em verso do período – Marános (1911) e Regresso ao Paraíso
(1912) – dão expressão a este novo alargamento, o primeiro por via
dum iberismo cultural, reconhecível também na esquerda da época,
sobretudo através de marcas pimargallianas, e o segundo por meio
duma intertextualidade muito vasta, com a qual interage de forma
rica e original. Este alargamento, antecipando a derradeira fase cria-
tiva de Pascoaes, a mais universalista, toca ainda uma curta narrativa
em verso, O Doido e a Morte (1913), que põe em jogo a tensão das forças
estruturais contrárias, o amor e a morte, num esboço de representação
dramática de grande efeito cénico e impressivo simbolismo vital.
Abra-se um parêntese para falar das primeiras traduções da
poesia de Pascoaes, talvez o mais ibérico dos escritores portugueses –
isto pela largueza do seu entendimento sobre as afinidades contras-
tivas dos povos peninsulares, pela teimosa e corpórea idealização dum
futuro comum para todos eles e pela colossal recepção da sua obra
junto do público espanhol. Foi no seio da Renascença Portuguesa que
a criação poética deste autor conheceu uma primeira vaga de atenção
fora das fronteiras portuguesas. Essa divulgação, que aconteceu em
língua catalã e pela mão de Ribera i Rovira, está por certo na origem
do convite que lhe foi feito para visitar em 1918 Barcelona e aí pro-
nunciar um conjunto de lições sobre poesia portuguesa, de que
resultou o livro Os Poetas Lusíadas (1919). Pouco depois, Fernando
Maristany (1883-1924) verterá para espanhol uma antologia lírica do
poeta português e o poema Regresso ao Paraíso, que antecedeu a
tradução francesa (1931) e checa (1936) desse livro. É o momento em
que Pascoaes dá à luz o texto “Saudade y Quijotismo” (La Vanguardia,
13-7-1920), onde se define pela primeira vez o pensamento peninsular
de Pascoaes, ao menos na prosa, já que Marános, anterior, contempla
no verso um tal pensar. Que cabe aqui dizer sobre ele? Formulado no
rescaldo do iberismo oitocentista, o pensamento peninsular de
Pascoaes nada tem já de político e é todo ele de linha cultural, como
de resto se pressentia no diálogo entre a Saudade e D. Quixote que
tem lugar no poema de 1911. Este iberismo de índole cultural tem
uma inesperada e rica consequência no saudosismo do autor, que
parece alargar o território de expressão. De português passa a ibérico.
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 67

Momentos há, como no prefácio que escreveu ao livro de Maristany,


En Azul (1919), em que a saudade deixa de ser revelação étnica do povo
português, e assim a definiu na conferência de 1912, para passar a ser
expressão dum sentir ibérico, já transnacional. Cito o Pascoaes de
1920: La saudade es portuguesa como es gallega y catalana. La saudade es Fray
Agustín de la Cruz, como es Rosalía de Castro y Juan Maragall. E ainda: La
saudade ciñe casi toda la Iberia en un abrazo, como las brumas del mar…Está
aqui afinal o primeiro passo desse saudosismo largo e final do escritor,
apurado já nos derradeiros momentos da sua vida, em que a saudade
surge como o impulso íntimo da criação, sentimento criador de tudo o
que vive, alma universal da vida, despida de todos os particularismos e
de todos os traços identitários.
E talvez em nenhum outro momento, como na relação de
Pascoaes com Maristany, se possa sentir a afinidade espiritual que liga
as duas afastadas parcelas da Península, a mediterrânica oriental e a
atlântica ocidental. No meio, silenciosa, solene e pontifícia, servindo
de sólida ponte entre tão desencontradas partes, a vasta rechã
castelhana, coberta pelo soberbo e solitário véu dessa pétrea e austera
soledad, que mereceu a Miguel de Unamuno o verso soledad y salud hacen
saudade, também ele ponte ilustre entre o bem definido centro da
Península, que para o poeta português eram os ossos descarnados do
cavaleiro manchego, e a sua vaga e indecisa orla, tocada de praias,
saudades e flores de névoa.
A par disto, quase no mesmo arco temporal, porventura sem
uma relação directa e linear com esta aura luminosa que tocou
Pascoaes em Barcelona e em Madrid (1923, palestra na Residencia de
Estudiantes de Madrid, intitulada “Don Quijote y la Saudade”, cujo
texto se desconhece), porque o local de que falamos se liga à alma por-
tuguesa como uma mãe se confunde com o seu filho, Pascoaes e os
seus versos foram acarinhados como coisa própria na Galiza da
primeira geração artística do século XX, Vicente Risco, Antonio
Villar Ponte, Alfonso Castelao, Noriega Varela, Joan Viqueira, Álvaro
Cebreiro e outros. No primeiro número da revista Nós, dirigida por
Risco e por Castelao e que foi o órgão do ideário galeguista, Teixeira
de Pascoaes é colocado ao lado de Rosalia e de Pondal, numa tríade
que só surpreende pela grandeza, ou calhando não, pois quem leu os
versos do vate amarantino desde Belo percebe que estes são a carne
68 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

moderna dos antigos cantares galaico-portugueses, também eles


unindo, sem marcos, as partes hoje desavindas do rio Minho.
Confessa Risco, nesse primeiro número da revista galega (Outono de
1920): Temos a Teixeira de Pascoaes como cousa nósa, e n-as nósas internas
devociós temo-lo moi perto da santa Rosalia e de Pondal, o verbo da lembranza.
A partir daí, Pascoaes será presença constante nas páginas da
revista e surgirá sempre num lugar cimeiro em muitas outras publi-
cações artísticas e filosóficas da moderna Galiza novecentista, entre
elas A Nosa Terra, Ronsel e Alfar. Para soldar a ligação, Pascoaes dedica,
em 1920, a segunda edição do Marános à Galiza, em doze versos
fluentes e sentidos que na terceira e última edição do livro, em 1930,
ficarão condensados numa concisa oitava camoneana de efeito seguro
e escultural.
Feche-se o parêntese e regresse-se ao percurso do autor. A rijeza
narrativa de Pascoaes no primeiro momento da Renascença Portu-
guesa logo mostrou uma facilidade de dramatização, muito percep-
tível na fluência dos diálogos e no movimento simbólico das acções,
que levou algum tempo depois à criação e publicação de dois textos
dramáticos de estupendo efeito, D. Carlos (1925) – contraponto do
grande poema satírico de Guerra Junqueiro de 1896 e seu natural
desenvolvimento, centrado desta vez no regicídio de 1908 e não na
assinatura do Tratado inglês de 1890 – e Jesus Cristo em Lisboa (1927),
escrito de colaboração com Raul Brandão, o escritor do tempo com
quem Pascoaes mais afinidades apresenta – deixando de lado o Pessoa
de 1912 que o tomou por paraninfo e lhe individualizou alguns
tópicos característicos. As duas peças só foram levadas à cena depois
da Revolução dos Cravos, a primeira em 2009 e a segunda em 1978.
Entretanto, com o passar dos anos, Teixeira de Pascoaes dava
por concluída a sua tarefa junto da Renascença Portuguesa, aban-
donava a direcção da revista A Águia (1917), punha termo à montagem
teórica do saudosismo com as conferências de 1918 na Catalunha,
iberizava o seu pensar e retirava-se para sempre na casa de Gatão,
freguesia rural de Amarante, para se dedicar à criação poética, desta
vez quase só em prosa, e à administração da casa agrícola que
herdava do pai (falecido em 1922), ao mesmo tempo que se dava ao
convívio íntimo e intenso com a natureza selvagem do Tâmega e do
Marão, numa absoluta e apaixonada solidão. É o momento do parto
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 69

da prosa do autor, sem propósitos doutrinários, pelo menos siste-


máticos, com três livros maiores, O Bailado (1921), O Pobre Tolo (1924) e
Livro de Memórias (1927), cujos antecedentes se encontram em dois
livros anteriores, Verbo Escuro (1914) e A Beira num Relâmpago (1916), o
primeiro uma poética de aforismos relampejantes, em versículos visio-
nários e o segundo um diário de viagem, captado ao vivo e vizinho do
futurismo.
Esta prosa poderosa, que só tem paralelo na de Raul Brandão,
refinou-se depois nas biografias – São Paulo (1934), São Jerónimo e a
Trovoada (1936), Napoleão (1940), O Penitente (Camilo Castelo Branco)
(1942), Duplo Passeio (1942) e Santo Agostinho (1945), a que se deve juntar
O Homem Universal (1937), autobiografia mental e filosófica, e os
romances finais, O Empecido (1950) e Dois Jornalistas (1951) – que
calcorrearam mundo e fizeram de Teixeira de Pascoaes, ao lado de
Ferreira de Castro, o escritor português mais traduzido na Europa na
primeira metade do século XX. A prosa deste último período é
vigorosa, instintiva, ágil, repleta de espessura reflexiva, não desme-
recendo todavia elegância e esmero; percebe-se na linha melódica da
frase, na ondulante respiração de largo fôlego, no espírito vivo das
significações, uma originalidade única no quadro da literatura do
período; os seus antecedentes são endógenos, dependem apenas de si e
não têm qualquer paralelo com a época, o que reforça o seu molde
original e criador. Esta fala escrita, e assim Pascoaes a tomava, apre-
senta ainda, como era inevitável em tão singular criação, uma notável
capacidade de antecipação das mais ilustres experiências da prosa
portuguesa da segunda metade do século XX, em primeiro lugar a de
Agustina Bessa-Luís, que sempre reconheceu a dívida que tinha para
com este Pascoaes. No capítulo da recepção europeia de Pascoaes
aponte-se a tradução espanhola de São Paulo (1935), com prólogo
entusiástico do velho Miguel de Unamuno, “San Pablo y Abre
España”. O escritor tudesco Albert Vigoleis Thelen (1903-1989),
muito dado à leitura do biscainho, conheceu em Maiorca esta tra-
dução e iniciou de imediato um vasto trabalho de tradução dos livros
do escritor português, sobretudo os da derradeira fase, para as línguas
alemã e holandesa, neste caso com a colaboração do poeta modernista
Hendrick Marsman, que teve como ponto de partida a tradução
holandesa do São Paulo – um sucesso editorial com quatro edições
70 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

entre 1937 e 1949. Albert V. Thelen, que se refugiou do nazismo em


Amarante, aí vivendo entre 1939 e 1947, foi porventura quem melhor
compreendeu na época os meandros ultra ou trans modernos do
pensamento de Pascoaes, muito brincados em livros como Santo
Agostinho e Duplo Passeio, apetrechado que estava com os rasgos para-
doxais de Nietzsche, com os quais o ateísmo de Deus de Pascoaes, o
ateoteísmo, tem nexos íntimos. A única biografia de Teixeira de
Pascoaes que chegou a ser tentada teve como autor Albert V. Thelen
e como título, Die Gottlosigkeit Gottes (o ateísmo de Deus), o que mostra
quanto a questão do ateoteísmo, derradeiro paradoxo dum Deus ateu,
era decisiva na abordagem do perfil do português.
Esta derradeira fase da obra de Pascoaes, muito descentrada dos
temas portugueses – basta atentar na galeria de figuras – do primeiro
ideário saudosista, o da Renascença Portuguesa, não é porém para ser
encarada em oposição a ele mas em franco e livre desenvolvimento
dele, depois daquela iberização que teve lugar por volta de 1920 e até
daquela ideia de Arte de ser português, capital no cômputo geral do livro,
que coloca a “pátria” abaixo da “humanidade” e o “santo” acima do
“patriota”. Nos versos finais do autor – Versos Pobres (1949) e Últimos
Versos (1953) – a saudade regressa àquele espaço expressivo, marcado
pelo poder da imagem analógica e do paradoxo, que foi o motor do
primeiro saudosismo poético do autor, a par dos grandes motivos
universais tratados no caudal torrencial das biografias e dos romances.
Um dos derradeiros textos de Teixeira de Pascoaes é uma palestra
sobre a saudade, “Da Saudade”, onde afirma a universalidade desta,
agora como matriz geradora da manifestação ou reintegração do
patente na impessoalidade anterior ao princípio e limpa de todos os
tópicos identitários.
Também neste caso o pensamento do autor se desenvolveu no
seio do ideário de esquerda, se bem que de novo se tenha singula-
rizado dentro deste por uma atenção valorativa da natureza e uma
sátira mordaz dos modelos industriais fáusticos, que reactualizaram no
quadro do pós-guerra – numa época em que a natureza era por todos
vista como uma matéria inerte, ao serviço exclusivo dos desejos do
homem titânico – a oposição de Teixeira de Pascoaes ao estran-
geirismo cultural de António Sérgio, sempre preso este ao modelo
utilitarista industrial, mesmo que agora atenuado por novas
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 71

preocupações, estrangeirismo esse dominante já nesta época no seio


da oposição de esquerda, se é que não tendo dela em absoluto o
monopólio. Prova desse alinhamento à esquerda é o apoio público que
o escritor deu à candidatura anti-salazarista de Norton de Matos, em
1949, de que resultou uma cortante entrevista ao Diário de Lisboa (25-1-
-1949), em que defende a liberdade e o pluralismo duma sociedade
aberta, inclusive no que respeita à representação política, e a confe-
rência que fez no Porto, ao lado de Maria Lamas, em 1950, a convite
da Associação Feminina Portuguesa para a Paz, Pro Paz, onde assume
a ética pacifista, o internacionalismo, o feminismo, a sólidariedade
social e ecológica, a democracia de sentido e finalidade libertária. A
estes dois momentos marcantes do pensamento final de Pascoaes, será
necessário acrescentar o livro que deixou inédito, A Minha Cartilha,
publicado em 1954, verdadeiro testamento de ideias, onde o autor, no
modo poético e na deriva assistemática que caracteriza a última prosa,
faz profissão de fé no comunismo libertário, de matriz kropotkiniana,
o que não deve surpreender os exegetas, pois o tópico é logo reconhe-
cível na estreia em prosa de 1907 – numa época em que o seu diálogo
com um dos nomes mais representativos do anarquismo português,
Neno Vasco, era efectivo – e encontra-se reactualizado trinta anos
depois nos enredos de O Homem Universal, no quadro da guerra civil
espanhola.
No seu conjunto a obra de Teixeira de Pascoaes é das mais
universais da língua portuguesa e constitui um dos mais elevados e
perenes patrimónios do pensamento humano. A sua herança imediata,
na segunda metade do século XX português, foi sobretudo recolhida e
desenvolvida pela hermenêutica filosófica de José Marinho (1904-
-1975), que em artigo do Diário de Notícias (24-1-1963) reconheceu no
ateoteísmo o rasgo mais fecundo da literatura portuguesa contempo-
rânea, e pelo surrealismo de Mário Cesariny (1923-2006), que a partir
da década de sessenta reconheceu na poesia em verso ou em prosa de
Teixeira de Pascoaes o ponto cimeiro do contínuo poético do século
XX português, chegando mesmo a afirmar, em 1973, sem equívoco,
Teixeira Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando
Pessoa (“Para uma Cronologia do Surrealismo Português”). Renitente
às vanguardas poéticas da primeira metade do século XX, nas quais
via uma brincadeira ingénua, salutar porventura mas sem espessura
72 ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

de choque, a obra de Teixeira de Pascoaes continua a ser muito mal


classificada na gaveta do neo-romantismo. Uma obra que se desen-
volveu na sua parte final como ateidade ou anarquismo dos princípios, sem
encontrar contemporâneos à altura entre nós, precisando das grandes
línguas da Europa central para ser lida, não pode continuar a ser lida
em tal categoria. É preciso encontrar a categoria justa, que nos obri-
gue a encarar a afinidade da obra de Teixeira de Pascoaes com a de
autores como Antonin Artaud ou André Breton, para só falar de dois,
que se mantiveram sempre à distância do espectáculo mediático e da
indústria cultural e até em franca e declarada guerra contra eles. É o
lugar do refractário, que Teixeira de Pascoaes parece ter querido
ocupar depois do seu regresso a São João de Gatão, fazendo da aldeia
rural e sobretudo da natureza selvagem o coração da sua vivência
escrita. Sente-se nesta escolha do Poeta a reserva feita em 1912 ao
industrialismo triunfante e a forma pós-civilizacional que ele encon-
trou de dar continuidade às principais objecções que fez a António
Sérgio.
Basta a existência dum escritor como Teixeira de Pascoaes, que
produziu a sua obra escrita no final do século XIX e na primeira
metade do século XX, para se fazer imperiosa a substituição do neo-
-romantismo por um novo elemento de aproximação, capaz de ler o
período em causa sem menorizar e sem sonegar uma obra como a de
Pascoaes, como é de força acontecer se continuarmos a insistir em
modelos tão circunstanciais e arbitrários. A periodização hoje usada
no estudo da literatura da primeira metade do século XX é nociva por
demasiado leve e capciosa, levando a erros, que doutro modo podem
ser evitados. Sem o escudo de critério tão desordenado talvez Rui
Ramos não tivesse cometido o erro clamoroso, de afirmar taxativa-
mente, num texto onde de resto as imprecisões, os lapsos, os enganos
são quase enxame, que finalmente foram os católicos que ficaram a guardar a
memória de Teixeira de Pascoaes 1 . Mário Cesariny, católico? Ernesto
Sampaio, católico? Cruzeiro Seixas, católico? Luiz Pacheco, católico?
José Marinho católico? Não se afigura! Todos eles, salvante Marinho,

1Cf. RAMOS, Rui, “Vasconcelos, Joaquim Pereira Teixeira de”, Dicionário de


História de Portugal – IX, supl. P/Z, coord. António Barreto e Maria Filomena
Mónica, Porto, Figueirinhas, 2000, pp. 583-4.
TEIXEIRA DE PASCOAES: RENASCENÇA PORTUGUESA E RENASCENÇA UNIVERSAL 73

que foi ele e nada mais, surrealistas em português, muito da graça de


Benjamin Péret, o destruidor de igrejas, aliás como Pascoaes, que
neste capítulo, como em tantos outros, foi mais longe do que todos
quando pôs Cristo, bêbedo, a ingerir goles de moscatel, numa circu-
laridade ininterrupta, e a invectivar os fiéis da Igreja. São do Cristo
rojo de Pascoaes estas palavras espantosas, mas podiam ser do Péret
mais anárquico e feroz: Não ames o próximo; odeia-o por amor de ti. Eu
também odeio estes fantoches ridículos, ajoelhados aos pés da minha cruz. (…)
Odeio-me também, e tenho o nome de Anticristo (in Duplo Passeio, II, cap IV).
Paradoxos assim não tiveram ainda, no domínio poético e filosófico,
leitura à altura – com a excepção porventura do cingente escólio de
Paulo Borges2, que avançou um glossário novo e muito adequado à
tensão extrema que nesta experiência explode.
Entende-se pois a devoção e a celebração desta experiência por
Mário Cesariny e pelos surrealistas portugueses na segunda metade do
século XX. Não só o poeta de Pena Capital acabou por identificar na
obra de Pascoaes o antecedente mais autêntico do surrealismo em
português como acarinhou, comentou e antologiou essa palavra
poética, que avaliou como superior à de Pessoa e que nós aqui
tomamos como pós-pessoana, o que na verdade foi, pois o autor dos
heterónimos não teve já vida nem cabeça para se confrontar com a
escrita do ateísmo de Deus, em milhares e milhares de páginas,
algumas delas ainda hoje inéditas, tópico quase exclusivo da derra-
deira fase criativa da obra de Pascoaes, que vai de 1934 a 1952, e que
é com certeza a mais importante de todo o seu longo curso de escritor
e aquela que continua dalgum modo a ser ilegível no Portugal do
presente pela forte antecipação de futuro que apresenta.

2 Cf. BORGES, Paulo, Princípio e Manifestação. Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira


de Pascoaes, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO”
POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA
No 1º Centenário de “O Criacionismo”

J. Pinharanda Gomes

Leonardo Coimbra é o filósofo português acerca de cujas obras


e personalidade tem originado maior volume de bibliografia, produ-
zida por diversíssimos autores, de diversíssimas origens culturais e
mentais. O inventário que, a partir dos contributos de Álvaro Ribeiro
e de Sant’Anna Dionísio, elaborámos e ampliámos até ao ano de
1994, é documento comprovativo, já entretanto podendo ser de novo
ampliado com os subsídios posteriores1, sobretudo a partir do ano de
2005, até ao qual julgamos suficientes os inventários abaixo indicados.
Os títulos que integram as Bibliografias são do mais variado
teor, abundando os artigos, os ensaios breves, as comunicações a
Colóquios e a Congressos, os capítulos em livros de natureza cultural,
filosófica, política e religiosa, mas, quanto a teses científicas, produ-
zidas nos âmbitos universitários, parece-nos, salvo erro e omissão, que
as duas primeiras, uma anterior a 1960, outra logo do ano seguinte,
foram elaboradas para institutos católicos com sede em Roma, e

1 Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra. Apontamentos de Biografia e de Bibliografia, Lx.ª, Ed.


Autor, 1945; S. Dionísio, Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus Contemporêneos. Porto,
Liv. Tavares Martins, 1950 (Biog. e Bib., pp. 299-423); Leonardo Coimbra, Cartas,
Conferências, Discursos, Entrevistas [...] Bibliografia Geral. Comp. e notas de P. Gomes e P.
Samuel. Lx.ª, Fund. Lusíada, 1994, pp. 378-415, (Incluíndo já os títulos
inventariados por Maria de Lurdes S. Ganho e Mendo C. Henriques, Bibliografia
Filosófica Portuguesa 1931-1987. Lx.ª, Verbo, 1988); Renato Epifânio, Repertório da
Bibliografia Filosófica Portuguesa 1988-2005. Lx.ª, Centro de Fil. da Univ. de Lx.ª, 2007.
76 J. PINHARANDA GOMES

ambas da autoria de sacerdotes: a tese Momentum Activitatis subjecti in


Cognitione iuxta Leonardi Coimbra Doctrinam, apresentada pelo Padre Fr.
Manuel Barbosa da Costa Freitas, O.F.M. (1928-2010) no acto de
doutoramento no Pontifício Ateneu Antoniano em 1954; e a tese
intituda O Sistema Filosófico de Leonardo Coimbra. Idealismo Criacionista,
apresentada em 3 de Maio de 1961, pelo Padre Ângelo Alves (n.
1930), presbitero secular da Diocese do Porto na Faculdade de
Filosofia da Pontifícia Universidade Gregoriana. A primeira, que nos
conste, não foi publicada na íntegra, havendo trechos importantes nas
revistas Itinerarium (em 1957, 1959, etc.) da Ordem Franciscana, e
Revista Portuguesa de Filosofia (1960). Umas semanas antes da morte do
ilustre autor, ainda tocámos ao de leve na utilidade da publicação
integral, enquanto conversávamos, no Seminário da Luz. A segunda
veio a ser editada pela Livraria Tavares Martins, do Porto, em
Fevereiro de 1962.
O Padre Ângelo Alves admite (1962) que, entretanto, Leonardo
Coimbra continuará sendo “uma personalidade discutida e aduz:
“Não assim, segundo creio, e do mesmo modo” que até aqui, o valor
filosófico e sistemático do seu pensamento” 2 . Quanto a teses
universitárias em Portugal, a primeira foi apresentada pelo Professor
Doutor Manuel Ferreira Patricio em 1983, na Universidade de Évora,
e só publicada nove anos depois: A Pedagogia de Leonardo Coimbra (Porto
Ed., 1992). Depois tem havido outras.
Na multiplicidade bibliográfica abundam os estudos de carácter
geral, olhando para a generalidade ou especialidade da obra
leonardina. Nós, porém, e neste instante, recebemos o apelo para
celebrar o primeiro centenário da publicação de O Criacionismo e,
quanto a este apelo entendemos que poderia ser de eventual interesse
considerar a forma como quatro dos principais discípulos de Leonardo
leram e interpretaram o primeiro livro do Mestre, apenas o primeiro
livro, com exclusão dos outros ou de todos em conjunto.
A edição, pelos condiscípulos desejadíssima, do estudo intitulado
O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, de José Marinho, datado de
1945, ainda se encontrava em finalização, embora “quase terminado”,
quando, em Janeiro de 1946, (10.º aniversário da morte de Leonardo)

2 A. Alves, ob. cit., p. 7.


A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 77

escreveu a Leonardo Coimbra Filho, a desculpar-se de não ter


comparecido nas cerimónias religiosas3. A edição incluíu nas páginas
iniciais uma “Advertência ao Leitor”, em que evocou os contributos
de Álvaro Ribeiro, Delfim Santos e Sant’Anna Dionísio.
Neste breve elenco dispomos do ponto de vista segundo o qual
estes eram, com ele, os discípulos acerca dos quais José Marinho não
tinha dúvidas quanto à discipularidade e quanto à relevância opera-
tiva dos três condiscípulos, sem prejuízo dos muitos que testemunha-
ram, em devido tempo, admiração, amizade e apreço pela pessoa e
pela obra do filósofo criacionista. Dispomos de elementos que nos
habilitam a crer que, o mais tardar em 1936, estes discípulos iniciaram
os estudos da obra leonardina4.
O evento que celebramos é, porém, o primeiro centenário da
publicação da tese de Leonardo Coimbra, do seu primeiro livro, O
Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico), escrito na vila de Lixa entre
5 de Maio e 20 de Junho de 1912 e editado, segundo registo na capa,
em Agosto de 1912. E, sendo assim, propomo-nos percorrer em
sinopse as leituras que estes quatro discípulos efectuaram, cada um a
seu modo, evitando opiniões alheias.

1. SANT’ANNA DIONÍSIO (1902-1991)

Dos quatro assinalados pensadores da escola leonardina,


Sant’Anna Dionísio terá sido o primeiro a dar testemunho, logo nos
dias em que o corpo do filósofo arrefecia no Cemitério da Lapa, onde,
em 4 de Janeiro de 1936, Sant’Anna proferiu o elogio fúnebre5-. Ele
floresceu em abundante e dedicada atenção à personalidade do
Mestre e à respectiva obra filosófica que começara a estudar havia 14
anos, em 1922. A listagem de artigos que espalhou pela imprensa é
extensa, muitos sendo de carácter biográfico, em tempo reunidos em

3 Cf. Jorge Croce Rivera, Prefácio ao Vol. IV das Obras de José Marinho, INCM,
1997, p. 19.
4 Seguimos a ordem cronológica conforme as datas dos escritos dos quatro

escolhidos. Para referência geral, Cf. P. Gomes, A Escola Portuense, Porto, Caixotim,
2005; Actas do Congresso Int. Delfim Santos e a Escola do Porto, Lx.ª, INCM, 2008.
5 Cf. O Primeiro de Janeiro, Ano 68, n.º 4, Porto, 5.1.1936, pp. 1 e 3.
78 J. PINHARANDA GOMES

volume6. Arcando com múltiplas discordâncias, Sant’Anna como que


se constituíu no “secretário geral” da causa leonardina, havendo de
sofrer as polémicas desencadeadas por António Sérgio sobre o valor
da obra filosófica e por Leonardo Coimbra Filho sobre a “conversão”,
um tema que deveio problema e, por fim, levando a efeito o in
memoriam7 e, contudo, a irregular edição das Obras Completas, em 1983.
Prosador inspirado, com notável flexibilidade temática, tão
capaz de exercício discursivo, como de pintura paisagistica, como de
inspirado estilo aforismático, seguiu uma orientação que se reivin-
dicou de cepticismo que, todavia, não lhe ocultou, pelo menos na orla,
o “insondável sobrenatural”, distinguindo, embora em oposição, a
Ciência (segundo a qual toda a existência tem uma causa natural) e
Filosofia (iniciação e interrogação aos absurdos e aos enigmas). A
Filosofia é, como a vida, um trânsito entre enigmas.
Paisagista e retratista, não surpreende a atenção dedicada à
pessoa, que, na verdade, tem especial significado no que julgamos ser
o primeiro ensaio (editado) Leonardo Coimbra. Contribuição para o Conheci-
mento da sua Personalidade e seus Problemas8. Aqui retrata o temperamento
artistico de Leonardo, que “tendia para pensar por golpes rápidos e
iluminantes, por imagens”, implicitamente gradual aprofundamento
das intuições. A par da tendência artística, acentuou a preferência
pelo pensamento discursivo e, mais, demonstrativo, por isso que
Sant’Anna entende que Leonardo foi, após Antero, o único, entre nós,
a merecer o “nome de filósofo”9. Antes dele houve outros vultos, mas
entre todos foi o que “mostrou possuir uma inteligência verdadeira-
mente universalista e constantemente voltada para os confins”10.

6 S. Dionísio, Leonardo Coimbra. O Filósofo e o Tribuno. Lx.ª, INCM, 1985. Um elenco


de escritos do Autor consta do volume Leonardo Coimbra, Cartas [...], 1994,
pp. 386-390. O último texto registado é o da entrevista concedida à revista Leonardo,
n.º 1, 1988, pp. 37-42.
7 S. Dionísio, Objecções a António Sérgio sobre o Valor da Obra Filosófica de Leonardo Coimbra,

Porto, Imp. Portuguesa, 1936; L. Coimbra Filho, Considerações sobre o Livro do Dr.
S. Dionísio, Porto, Liv. Tavares Martins, 1936; L.C. Testemunhos dos seus Contemporâneos,
Porto, id., 1950.
8 Porto, Ed. do Autor, 1936, 2.ª ed., Porto, Lello & Irmão, 1983.
9 Contribuição, cit., p. 60.
10 Id., ib., p. 61.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 79

Prevalecendo no acto de retratar a personalidade, o biógrafo


aduz que, tendo recorrido a todas as expressões de conhecimento,
aquele a que mais recorreu foi à Ciência, mantendo e desenvolvendo
porém o pensamento especulativo sobre o “caminhar das ciências”, a
sua inteligência vendo ao mesmo tempo os problemas metafísicos
implicitos nas teorias científicas.
No contexto do escrito, a memória da personalidade do bio-
grafado tem um peso considerável, talvez com redução do crédito
devido à exegese da obra. Por vezes colhe-se a ideia de que Sant’Anna
se esforçou por encontrar um adjectivo que bastasse para retratar
Leonardo, correndo o risco de o coisificar, ou ossificar em definições
psicológicas como “angustiado incurável”, ou “homem humoral”,
perturbante 11 . Perturbador é também Sant’Anna ao afirmar que
Leonardo foi “um homem culto mas não um homem religioso”, de
onde a sua “conversão” ter sido apenas um acto de procura, mais uma
experiência de vida de um “espírito veemente”, assumindo que
Leonardo ultrapassadas certas “circunstâncias íntimas e ocasionais”,
regressaria ao exercício do livre pensamento, vivendo por conta e
risco12.
Contemplando a primeira obra, o biógrafo define O Criacionismo,
antes de mais, como um exemplo da já referida duplicidade de dons.
Considera que pela primeira vez no país se tentou “uma crítica do
valor das noções científicas conjugada com uma crítica geral do
conhecimento aplicado a todos os sistemas filosóficos [...] em vista de
uma tentativa de síntese unificadora de todas as contribuições para a
compreensão do real”13. Ou seja: o filósofo propõe-se, numa obra
“precoce e ofegantemente escrita” “achar uma imagem total da reali-
dade”, baseada na intuição de que, na essência da realidade, mau-
grado a cousificação, há uma outra tendência, contrária e invencível,
a da criação ascencional de cada instante”, a lei do trânsito do mecâ-
nico para o vivo, deste para o espiritual, e deste para o consciente”14.

11 Id., id., p. 15.


12 Id., id., p. 16.
13 Id., id., p. 63.
14 Id., id., pp. 63-64.
80 J. PINHARANDA GOMES

Leonardo apostou em pôr essa intuição à prova dos factos e dos


conhecimentos, obrigando-se “a examinar os conceitos últimos de
cada ciência” e também a óptica de cada uma, demonstrando a prove-
niência comum e metafísica das ideias. À óptica incumbe mostrar que
as noções superiores (Vida, Espírito, Consciência) são prejudicadas
pelo predomínio dos factos nas ciências mais novas. Leonardo, na
esteira de Bergson e de Boutroux, e mesmo de algum Antero, intentou
denunciar “a óptica científica determinista”, e provar que a óptica da
contingencialidade e da espontaneidade ascencional está mais de
acordo com a maneira de ser dos factos superiores – vitais, sociais e
espirituais15. O valor epistemológico das descobertas científicas visava
tornar sensível a “velha” intuição platónica e hegeliana, qual nova
fórmula de confirmação da verdade ontológica16.
O exegeta do filósofo entende que uma tarefa deste quilate era
excessiva para um homem de 28 anos, ainda para mais sem
“ambiência propiciatória”. Por isso opina que no livro há páginas
“imtempestivas e precoces”, “dissonâncias afectivas” e “imperfeições
de acento e de coordenação”, mas Sant’Anna não regista casos exem-
plificativos. No entanto, apesar destes aspectos minorantes, considera
que o livro “é [...] a primeira demonstração da amplitude singular da
inteligência de Leonardo Coimbra”17. Conclui então: “é por essa obra
insólita, exclamativa e interrogativa talvez em demasia [...] que pode
admirar-se a intensidade da sua amizade de saber e a sua capacidade
de iniciação em problemas que eram literalmente virgens no nosso
meio”, e mais: “um halo de fatalidade percorre as obras qual pressen-
timento de um trágico fim”18.
Ocorreu, ao tempo, a explosão de António Sérgio (provocada
por um artigo de Raúl Proença)19, contra a seriedade de pensamento
de Leonardo, em que Sant’Anna honrosamente se bateu em defesa da
personalidade leonardina. A polémica parece nada ter adiantado ao
conhecimento da obra leonardina mas, com pesar julgamos, deixou

15 Id., id., p. 65.


16 Id., id., p. 74.
17 Id., id., p. 65.
18 Id., id., p. 66. Admira-se que S.D. não tenha também pressentido o mistério da

chamada conversão.
19 A. Sérgio, Sobre uma Opinião de Raúl Proença, O Diabo, n.º 112, Lx.ª, 16.8.1936.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 81

de António Sérgio negativa e mesmo de intolerância imagem, ora


afirmando que Leonardo fora um “poeta transviado”, ora falho de
seriedade, e, de Sant’Anna, que produzira um escrito, “obra de um
obcecado”. Contudo, Sant’Anna confirma o crescente interesse pelo
pensamento de Leonardo, fosse ele discursivo ou “poesia em prosa”
como Sérgio adiantou, aliás pondo em causa a seriedade do seu antigo
aluno na classe de remo na Escola Naval em 1908, e depois seu
opositor na política educacional20.
Sant’Anna prossegue a sua análise mas olhando para o todo do
ideário leonardino, para além do primeiro livro. Entre outras páginas,
relembramos, embora de modo breve, os cruciais desencontros do
Criacionismo com o Positivismo, citando significativas passagens da
tese: “Se todo o conhecimento válido e sério fosse o verificável [...] o
problema de saber qual será o sentido da existência, a compreensão
do sofrimento e do mal, o sentido da Morte, o problema de Deus, o
sentido e valor da Arte [...] seriam necessariamente relegados para
aquele vasto sarcófago [...] o panteon dos pseudo-problemas” 21 .
Recorre, aliás, à inequívoca citação de Leonardo no passo em que este
afirma que “o positivismo tem valor científico pelo mérito pessoal de
Comte... Não o podia ter filosófico, porque a alma da filosofia é a
metafísica, de que Comte era apaixonado inimigo”22.
Sant’Anna entende que a posição de Leonardo face à ditadura
da Lei dos três estados era irreversível porque, se forem apenas
atendidas as verificáveis, abandona-se uma regra que pela nossa parte
qualificamos de principial, qual seja a de que “as interrogações que
excedam a possibilidade de resposta científica, fazem parte da própria
natureza da alma do homem”23, pelo Positivismo consideradas infantis.
A propósito, cita a crítica leonardina ao pancientismo, que gera um
fanatismo, então cientista, que em todo o caso pretende opôr ao
fanatismo religioso. Ora, para Leonardo, todos os fanatismos são
gémeos24.

20 S. Dionísio, Objecções, ob. cit., pp. 6, 8, 10, etc..


21 S. Dionísio, Valor da Ciência para Leonardo Coimbra, Porto, C.E. H., 1956, p. 11.
22 Este juízo encontra-se em O Pensamento Criacionista, 1.ª ed., p. 30, mas de outros

modos Leonardo afirma o mesmo na tese O Criacionismo.


23 S. Dionísio, Valor da Ciência, ob. cit., p. 11.
24 Id., id., p. 12.
82 J. PINHARANDA GOMES

Todo o fanatismo é filho do acto de cousar. “Cousar um pensa-


mento num nível inferior da dialéctico científica [...] é sempre fazer
obra de fanatismo” 25 . Ainda testemunha a atenção leonardina à
“proveniência filosófica” das várias ciências contribuindo para o escla-
recimento da Epistemologia que Leonardo preferiu, em tempo, deno-
minar de “História e Teoria da Ciência”, acerca da qual Sant’Anna
transcreve um texto inédito até à data da morte do filósofo26.
Um último texto antologiado neste esboço de ensaio: o artigo
sobre o Uno e o Múltiplo na Teodiceia leonardina. Volta a considerar
que O Criacionismo, “tese significativa e certeira”, foi “apressada”. O
propósito de Sant’Anna é o de caracterizar a posição teológica (em
Teologia Racional) de Leonardo, que rejeitou o panteísmo, mas que
também não aceitou o “teologismo dissecante” que Sant’Anna evita
identificar em qualquer filiação, sendo possível que aludisse ao ensino
teológico dos institutos eclesiais.
Ora, o ensaio de Sant’Anna visa o 2.º capítulo de O Criacionismo,
intitulado “Deus e as Mónadas” mas que, citando possivelmente de
memória, titula de “Deus e os Seres” (no caso de ter titulado de livre
vontade, conviria que esclarecesse ou justificasse a óbvia sinonimia)
em que sobressai a incompatibilidade do Criacionismo com o mo-
nismo e o dualismo. Revendo as diversas teorias anteriores, Sant’Anna
conclui que “o Criacionismo oferece insistentes sinais de que a com-
preensão do ontos não é atingível pela via láctea de Parménides, e
ainda menos pelo rio de Heraclito”, sendo-o pela valorização dos seres
com “a única possibilidade especulativa dos seres” – a aceitação axio-
mática de um Ser transcendente e excedente, mas não insular”27.
O que, julgamos, não esteve ausente da fé de Leonardo, ressal-
vando a tese em que Sant’Anna parece visar uma antericização de
Leonardo, propondo a analogia de dois termos, redenção e nirvana. Este
ponto de vista liga-se, cremos, ao instante da “conversão” que deveras
causou alto grau de perplexidade no cepticismo do afectivo discípulo.

25 Id., id., p. 12, citando O Criacionismo, pp. 212-213, nova ed. pp. 264-265.
26 Id., id., p. 13. Cf. L. Coimbra, Dispersos, Vol. IV, Ed. Verbo, pp. 248-249.
27 S. Dionísio, O Sentido do Uno e do Múltiplo no Pensamento Teodiceico de L. Coimbra (1959),

compilado in S. D., L. Coimbra. O Filósofo e o Tribuno, ed. cit., pp. 431-435.


A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 83

O nirvana é descanso e quietude. A redenção é obra, opera, e, no


ver do filósofo, o homem está para ser, não o usufrutário de um
mundo feito, mas o obreiro do mundo a fazer.

2. ÁLVARO RIBEIRO (1905-1981)

O primeiro livro de Álvaro Ribeiro intitula-se O Problema da


Filosofia Portuguesa28 que a seu modo retoma as questões suscitadas por
Leonardo Coimbra na tese sobre O Problema da Educação Nacional
(1926). Álvaro renova mas actualiza a natureza e a amplitude do
problema, mantendo viva a causa final: conhecer bem requer o
conhecimento dos fins, – a saber: o bem das pessoas e da comunidade.
Tendo apurado e definido os conceitos necessários e procedendo
à crítica dos métodos de ensino da Filosofia nas escolas, (inçadas de
terminologia e ideários importados das matrizes alemã e francesa),
propõe uma refundação do ensino, com a tónica numa Faculdade de
Filosofia e, no desenvolvimento, a recondução à experiência da Escola
Portuense e à exigência de uma Filosofia Portuguesa, expressa na
portuguesa língua, e em seus filosóficos léxicos revelada e enriquecida.
Esta exigência motivou uma complexa diversificação de opiniões
polémicas em que a maioria apareceu a defender que não havia, nem
podia haver, uma filosofia portuguesa, num desafio a Álvaro que, não
sendo historiador, entendeu levar a efeito uma dedução historiográfica
à sua tese, com o primacial objectivo de contrariar a afirmação de que
a história da nossa filosofia era constituída apenas por reflexos de
doutrinas estrangeiras. Essa dedução intitula-se Os Positivistas. Subsídios
para a História da Filosofia em Portugal 29 em que, em dez capítulos,
demonstra como a filosofia estrangeira mais presente e mais influente
fora, e ainda era, o Positivismo que, a seu ver, não radicou, todavia,
para além de uma “superficialidade cultural” – mesmo ao nível das
Escolas e das ideologias políticas – e dedica os três últimos capítulos
aos representantes do anti-Positivismo30.

28 Lx.ª, Ed. Inquérito, 1943, 2.ª ed. Idem, s.d..


29 Lx.ª, Liv. Popular F. Franco, 1951.
30 P. Gomes, “A Herança Leonardina: Á. R., o Exame Crítico do Positivismo”, in

AA. VV., A Reacção contra o Positivismo e o Movimento da Renascença Portuguesa, Zéfiro Ed.,
84 J. PINHARANDA GOMES

No discurso alvarino, a imagem magistral e inspirador para-


digma é Leonardo Coimbra (sem prejuízo da consideração devida a
Bruno) de quem afirma que ele, “o ensinou sempre a integrar e uni-
ficar os dados da experiência e da intuição pelas articulações da razão
transcendental”31. Em acto de menagem (decorridos nove anos sobre
a morte do Mestre de quem se sentia devedor, pois de certo modo se
atrasara relativamente a Sant’Anna e um pouco quanto a José
Marinho), apresentou um testemunho escrito – Leonardo Coimbra (Apon-
tamentos de Biografia e de Bibliografia)32, um contributo modesto, sem as
exegéticas elaborações de Sant’Anna, mas documentado para servir a
eventuais utentes em busca de bibliografia e de um perfil do filósofo.
A vida de Álvaro foi muito difícil após a licenciatura, o esforço
para ingressar no ensino secundário gorou-se, atravessou graves
carências económicas, e gastou talento e tempo na militância política,
no movimento da “Renovação Democrática”. Alguma pacificação
económica ficou assinalada pela compilação dos artigos que Fernando
Pessoa publicara n’A Águia, com o título A Nova Poesia Portuguesa (1944),
em edição da Editorial Inquérito, mas o breve ensaio sobre Leonardo
foi, sem dúvida, pago do seu bolso, impresso na já indicada tipografia,
na qual o antigo colega renascentista Álvaro Pinto também costumava
imprimir as suas edições (Revista de Portugal e Ocidente).
Nesse ensaio bio-bibliográfico, o Autor discorre sobre alguns
aspectos da personalidade leonardina, relevando o orador e o pro-
fessor, bem como o homem religioso, afirmando: “O espírito de
Leonardo Coimbra não pertencia à família dos impenitentes hetero-
doxos, como Teixeira de Pascoaes, nem à dos ocultistas lunares como
Fernando Pessoa: Todo ele era alvoraçada procura do sol da orto-
doxia. Não teve, pois, mero carácter episódico e sentimental esta
discutida conversão religiosa. Tem o correspondente movimento inte-
lectual registado nos escritos das diversas fases, o que garante a pro-
funda sinceridade do pensador” 33 . Trata-se, sem dúvida, de um

2008, pp. 139-154; Id., Álvaro Ribeiro (1905-1981): A Filosofia como Arte, Nova
Águia, n.º 8, 2011, pp. 117-125.
31 Á. Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lx.ª, Portugália, 1955, p. 13.
32 Lx.ª, Ed. Império, 1945.
33 Á. Ribeiro, ob. cit., p. 17.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 85

recado para Sant’Anna e alguns outros antigos alunos, que viram com
maus olhos a metanóia leonardina34.
Neste ensaio, o primeiro livro de Leonardo é descrito de modo
brevíssimo, pois o tema excedia-o. Álvaro apresenta a tese como algo
que não procedia de “livre arbitrio”, e se opunha ao materialismo e ao
formalismo, e confiava na “espiritualização crescente da sociedade
humana, e postulava um optimismo trancendente, como garantia da
acção moral”35. Aponta o estilo sintético e os sinais que indicam que à
filosofia portuguesa melhor correspondia a “espontaneidade poética”.
É n’Os Positivistas que Álvaro Ribeiro procede à mais específica
recensão de O Criacionismo depois de um considerável excurso sobre as
relações criticas entre Positivismo e Catolicismo, outro acerca dos
anti-positivistas de natureza espiritualista (v.g. Cunha Seixas) e, por
fim, analisando os casos de Bruno e de Leonardo, de forma qua a
critica do Positivismo por este, constitui o miolo das laudas que Álvaro
lhe dedica.
Recorda que, tendo sido “doutrinador anarquista”, tinha de ser
adversário do Positivismo. Leonardo fora mais acrático do que anar-
quista e recusava, com outros, a sociocracia, admitindo a intervenção
do direito divino na condução dos povos36. A algum pessimismo na
ordem política, Leonardo apõe o optimismo na ordem religiosa. A
influência de Bruno na formulação do anti-positivismo leonardino está
fora de dúvida, mas Álvaro entende que a Evolução Criatriz de Bergson
deveio o farol para esse anti-Positivismo.
Proclamada a República, transformado o Curso Superior de
Letras de Lisboa em Faculdade de Letras, e não em Faculdade de
Sociologia como era vontade de Teófilo Braga, e tendo sido aberto
concurso para o lugar de professor assistente de Filosofia, Leonardo
decidiu concorrer, sujeitando-se a facilmente previsíveis vexames ou,

34 Testemunho pessoal: conversando um dia, em Lisboa, com um leonardista, e


vindo a lume o tema do regresso à Igreja, foi-nos dado ouvir este comentário
envolvido em alguma acidez: “Recuso imaginar a filosofia ajoelhada aos pés de um
Padre” (Óbvia alusão à confissão que Leonardo fizera aos ouvidos do Padre Cruz).
35 Á. Ribeiro, ob. cit., p. 27.
36 Á. Ribeiro, Os Positivistas, ed. cit., p. 180, referindo o artigo “O Homem Livre e o

Homem Legal” (1907). Cf. L. Coimbra, Dispersos, Vol. V, Ed. Verbo, 1994, pp. 21-
-24.
86 J. PINHARANDA GOMES

no mínimo, a provas de antipatia. A tese O Criacionismo foi recebida de


forma vexatória, num cenário de repulsa por um concorrente cuja
doutrina era o mais possível diferente e oposta à vigente disciplina da
Faculdade, nova pelo nome, mas antiga pela forma. Segundo a análise
alvarina, apoiada por uma breve ressalva de Leonardo, a estrutura da
tese, embora diferente, é semelhante à de Octávio Hamelin no Essai
sur les Éléments Principaux de la Représentation, obra editada em 190737.
No parecer alvarino, exaltando a excelência da Síntese, e os
valores significativos da Arte, da Filosofia e da Religião, O Criacionismo
ainda apresenta vínculos com o Positivismo, ao admitir que um
sistema filosófico deve organizar-se a partir dos dados e dos métodos
das Ciências para chegar a construír uma “metafísica moral e reli-
giosa”. Álvaro resume a obra: na primeira parte, o Autor analisa as
noções fundamentais das Ciências “em série análoga à da Classi-
ficação de A. Comte”; na segunda parte, nos capítulos intitulados “O
Criacionismo” e “Deus e as Mónadas”, o filósofo exprime “ o melhor
do seu pensamento sobre a arte, a filosofia e a religião” 38. Nesta
segunda parte Leonardo examina os principais sistemas filosóficos,
“com a intenção de mostrar como é sempre uma restrita noção cien-
tífica, ou simples noção do senso comum, que realiza e garante a
coerência da construção sistemática 39 . Eles ossificam no cousismo
implicito em que se instituem.
Em seguida, a leitura alvarina considera as laudas dedicadas ao
Positivismo de Comte, apontando características: a filosofia comteana
não é uma sistematização da realidade, mas uma pesquisa de meios
para reorganizar a sociedade; o Positivismo de Comte tem méritos, já
científicos, já pela abrangência das Ciências e pelo sem rival esforço
de sistematização, mas o cousismo levou Comte a erros graves, como
a teoria do Dever suprimindo o Direito, e a valorização da Sociologia
acima da Pessoa moral e espiritual.
Aponta ainda a critica à “religião da humanidade”, considerada
um apêndice, aliás demonstrativo da falsidade de um sistema que
ignora o valor da vontade e do sentimento. Ainda que esteja longe de

37 Á. Ribeiro, ob. cit., p. 182.


38 Id., id., p. 183.
39 Id., id..
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 87

admitir as formas de conhecimenhto que sustentam a Teologia,


Álvaro anota que Leonardo reconhece o valor da Religião em geral e
do Cristianismo em especial, tratando a Igreja Católica com revê-
rência, postulando a liberdade religiosa e a protecção que lhe é devida
pelo Estado.
Aliás, se em Bruno o problema religioso é considerado sem
imediata aceitação do Catolicismo, Leonardo exprime-o em “termos
cristãos”, de tal forma que “a filosofia será a actividade intermediária
entre a Ciência e a Religião”40. Considerando a Igreja e o Estado, e
uma vez entendido que o problema religioso é mais complexo do que
o pensamento jurídico, toma posição contra a “doutrina oficial do
separatismo”41. O Estado poderá ter uma Religião que, não sendo
obrigatória, seja por ele auxiliada. Definido um regulamento edu-
cativo e formativo, seria até possível evitar o cousismo que, em Reli-
gião, se transforma em fanatismo. Álvaro conclui que “o insucesso de
O Criacionismo não afecta o heróico pensador que persevera, contudo,
na cruzada que se lhe há-de tornar em calvário”42.
Álvaro prestou especial atenção à problemática do Positivismo,
ao qual volveu repetidas vezes, tendo deixado um inédito, sem título,
mas que obviamente tem por tema “Leonardo Coimbra e o Posi-
tivismo”, de cujo teor se infere que foi escrito já no ambiente da
Revolução de Abril, talvez sob o mesmo propósito com que ele,
Álvaro, traduziu, de Comte, o ensaio intitulado Reorganizar a Sociedade
(1977), dado que lhe parecia que o ideário social de Comte seria um
adequado antídoto à ameaça da voragem marxista ou anarquista43.
Num outro escrito, Álvaro privilegia a acção política leonardina,
com evidentes alusões ao “pensamento criacionista”, mas sem verbal

40 Id., id., p. 186.


41 L. Coimbra, O Criacionismo, p. 326 na ed. das Obras Completas, Vol I/Tomo II.
Ocorre lembrar que a Lei da Separação já fora condenada por figuras ilustres,
incluíndo Guerra Junqueiro.
42 Id., id., p. 187.
43 Á. Ribeiro, Dispersos e Inéditos. III (1961-1981). Org. e Ap. de Joaquim Domingues,

Lx.ª, INCM, pp. 579-592. Deste volume consta também o Prefácio que A. Ribeiro
redigiu para a tradução do ensaio de Comte, pp. 269-282, onde Leonardo aparece
como fonte recorrente.
88 J. PINHARANDA GOMES

menção do livro44. De resto, a presença do nome de Leonardo, a


remissão para o seu pensamento, são dados como que estruturais do
discurso alvarino, incluíndo nos volumes da obra autobiográfica,
Memórias de um Letrado (3 vols., 1977, 1979, 1980). Um dos mais belos
escritos em que Álvaro retrata o pensamento espiritual do Mestre
consta do capítulo XII da 2.ª parte da A Arte de Filosofar (1957) em que
o contempla, a par de Bruno, e de Junqueiro, como esteio da nossa
tradição filosófica. Neste retrato, o livro O Criacionismo não está nomi-
nalmente citado, mas as alusões a tópicos peculiares e ao pensamento
criacionista são evidentes: a recusa do pessimismo antropolátrico e
positivista com suas múltiplas derivações catastróficas ou de naufrágio
da condição humana e a afirmação do primado da liberdade. “Em
oposição ao emanatismo e ao evolucionismo [...] o criacionismo
afirma a confiança no futuro, na inteligência e na invenção. Todos os
entes ascendem pela escala qualitativa, que culmina no Ser”45. Mas,
segundo Álvaro, Ser não é, como o cousismo julga, uma substância. É
acto, “somente um verbo”, significativo da actividade ainda não defi-
nida”46 Esse será o Verbo, o Logos com que o clarividente João abre
as portas da Verdade (Jo., 1, 1), sagrando o idealismo espiritualista a
que o Criacionismo conduz.

3. JOSÉ MARINHO (1904-1975)

José Marinho obteve a licenciatura em Românicas na Faculdade


portuense em 1925, já então convertido à Filosofia pelo magistério de
Leonardo Coimbra “do pensamento do qual (afirmou) o meu hoje se
afasta sensivelmente” 47 . Estes dizeres constam da Introdução aos
Aforismos, datada de 1932, mas em 1934 existem sinais de que a obra
dedicada ao pensamento de Leonardo se encontrava em gestação. No
falecimento do Mestre nos primeiros dias de 1936 já teria avançado

44 Á. Ribeiro, Leonardo Coimbra e a Política do seu Tempo, in L.C. Testemunhos dos


seus Contemporâneos, Porto, Liv. Tavares Martins, 1950, pp. 137-150.
45 Á. Ribeiro, A Arte de Filosofar, p. 197.
46 Id., id., p. 13.
47 J. Marinho, Aforismos sobre o que mais importa, Ed. Jorge C. Rivera, Lx.ª, INCM,

1994, Introdução, p. 17.


A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 89

na redacção, e preconizado o título – “Introdução ao Estudo do


Pensamento de Leonardo Coimbra”48.
Sant’Anna Dionísio logo dera fé da importância da persona-
lidade e da obra leonardinas em escrito interpretativo que assinala,
sem favor, a abertura da bibliografia leonardista produzida pelos
discípulos, e decerto que a edição do estudo de Sant’Anna motivou os
outros para análoga tarefa.
Consultou, sem dúvida, o condiscípulo Delfim Santos, acerca do
rumo a seguir, tendo obtido de Delfim o seguinte conselho: “Para
fazer a introdução ao pensamento de Leonardo Coimbra creio que a
condição mais adequada será o estudo e aprofundamento do próprio
pensamento de Leonardo e não das últimas aquisições da filosofia
como me parece que pretende”. E adita: “Por mim, poria como
principio só o ler a ele e ao que ele leu na medida que isto interessasse
para a compreensão do seu pensamento”49.
Entretanto, Marinho atravessou algumas dificuldades, incluíndo
as de natureza política, aliadas à sua carismática prudência e ao
exigente (diremos mais: escrupuloso) rigor da expressão escrita, mas
não abandonou o projecto. Há indicios de que em Janeiro de 1936 já
redigira quase toda a primeira parte e diversas notas para as restantes
duas, esperando concluir o trabalho “prestamente”. A esperança
transmitida pelo advérbio gorou-se e um arrastamento moroso e silen-
cioso se estabeleceu mas não abandonara o projecto, pois que em
1937 chegou a revelar um trecho da terceira parte do estudo, fazendo-
-o anteceder de uma breve apresentação do esquema desse estudo.
Intitulou o trecho: “O Homem, suas possibilidades e Valores no
Pensamento de Leonardo Coimbra”50.
Embora em morosidade e em silêncio, continuou a alargar e a
aprofundar a redacção, os condiscípulos sabendo que não desistira do
estudo, o qual, em fim de contas, só viria a concretizar-se em 1946,

48 Textos preparatórios para esta obra foram revelados por Jorge Croce Rivera, in
Obras de José Marinho, Vol. IV. O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra e Outros Textos,
Lx.ª, INCM, 2001, pp. 35-119.
49 Delfim Santos, Obras Completas. Vol. IV. Correspondência, Lx.ª, FCG, 1998, Carta

n.º 51, Viena de Áustria, 6.6.1936, pp. 120-121.


50 Cf. revista Presença, n.º 50, Coimbra, 1937, pp. 2-4. Reprodução fac-simil,

J. Marinho, Obras, Vol. IV, entre pp. 16 e 17.


90 J. PINHARANDA GOMES

embora a data de impressão esteja referida a 1945. Com efeito, em


Janeiro de 1946, celebrando-se o sufrágio de Leonardo no 10.º aniver-
sário da sua passagem ao outro mundo, José Marinho escreveu uma
carta ao filho de Leonardo, a desculpar-se por não ter estado presente
nas cerimónias por alma de quem, nessa data, já declarava considerar
como “Pai segundo o espírito”, e dando a entender que o livro estava
quase terminado. Marinho escreve “o meu trabalhoso livro está no
fim”51.
O estudo intitulado O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra foi
editado pela Livraria Figueirinhas, na Colecção Estudos e Criticas,
dirigida pelo poeta e ensaista Amorim de Carvalho, de quem temos na
memória que houve de pressionar para que Marinho apressasse a
revisão, que demorou, não por negligência, mas por escrúpulos, enfim
brilhando um fruto que levara uns bons doze anos a amadurecer.
O livro abre com uma Advertência ao Leitor em que José
Marinho situa a edição num quadro afectivo: “um quarto de século
passou desde que nos foi dado ouvir a palavra inspirada, seguir a lição
maravilhosa, saber pela dialéctica viva e implacável o custoso preço da
verdade”.
Professando a condição de discípulo, quis levar a efeito um
“estudo sereno, de rigorosa e fundamentada exposição” – o que
cumpriu: “Curvei-me sobre a obra e estudei o filósofo, tão próximo,
como se tivesse passado há mil anos”52. Imparcialidade de juízo e
respeito. O estudo abrange a totalidade da obra leonardina, consi-
derada em três partes – Fundamentação e Preliminares, Exposição da
Obra e Interpretação do Pensamento, incluíndo um Resumo Final e
as Conclusões.
No presente momento apenas consideramos o essencial relativo
ao primeiro livro de Leonardo, que Marinho contempla na especia-
lidade no capítulo II da 2.º Parte, como obra da primeira fase do
filósofo, em que também situou a meditação sobre A Morte, escrita em
tempo de luto (dor paternal) e de luta (concurso para Professor) e O
Pensamento Criacionista, em que Leonardo leva a efeito uma exposição
mais didáctica, mas sem vulgarizar, do seu pensamento filosófico. No

51 Cf. Obras de José Marinho, Vol. IV, Apresentação de J.C. Rivera, p. 19.
52 O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, ed. cit., p. 151.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 91

capítulo II da primeira parte considera as origens e características do


pensamento de Leonardo, em que a filosofia aparece, não enquanto
Ciência entre as Ciências, mas como “valiosa por si mesma”, sendo o
mais alto valor do conhecimento, tese ou juízo aliás partilhado por
outros dos condiscípulos mais significativos – Sant’Anna, Delfim e
Álvaro.
Traçando o perfil de O Criacionismo, Marinho põe em relevo
como a concepção filosófica da primeira fase se apresenta como dia-
léctica, sem que tanto envolva a ideia de uma completa racionalidade
ou racionalização do ser. Para que o pensamento filosófico se cons-
titua dialecticamente, deve atender ao saber científico, não apenas às
conclusões, mas à génese e estrutura das Ciências, por forma a evitar o
empirismo e/ou o “racionalismo abstracto”. A dialéctica científica, em
todos os saberes, mostra a característica origem na racionalização das
intuições, pelo que toda a Ciência é a um tempo idealista e realista,
por exprimir em simultâneo e de modo indissolúvel o pensamento e a
realidade, que é criação do pensamento.
Adoptando pontos de vista de Boutroux, de quem há incidências
no discurso criacionista (e, portanto, mantendo-se dentro dos autores
citados por Leonardo) entende que as noções características das várias
ciências são irredutíveis, cada uma se constituíndo em “noção irre-
dutível”. “O saber científico realiza-se com sucessivas excedências e o
mesmo saber revela excedência na realidade que insindicavelmente
exprime”53.
Quanto ao progresso dialéctico supõe ele diferentes e irredu-
tíveis oposições a resolver, “altitudes a atingir”, de outro modo não
haveria progresso dialéctico mas apenas “disfarçada imobilidade”.
Assim, as noções de vida, direccionismo e herança (Biologia) de
consciência e de pessoa (Psicologia) e determinação e liberdade das
pessoas (Sociologia) são irredutíveis, cada uma por sua vez, às noções
anteriores. A harmonia sistemática do labor científico não é explici-
tável pela própria ciência. Esta não é sistema, é conjunto; em vez de
Ciência, o nome e o termo justo são particularizantes: Ciências, em
vez de Ciência, espaço do vário.

53 Id., id., p. 151.


92 J. PINHARANDA GOMES

A unidade interpretativa do conhecimento e a constituição do


sistema são tarefas da Filosofia que não irá perguntar pelos seus
próprios fins à Ciência, pelo que, além de filosofia positiva, ela é ainda
“metafísica, moral e religiosa”54.
O Criacionismo contempla a dialéctica científica no Livro I e o
estudo das filosofias contemporâneas, e da dialéctica, da arte, da
moral e da religião no Livro II, ou seja, no que se intitula “Análise
Científica” e no que se reclama de “Sintese Filosófica”. Segundo a
dialéctica criacionista, há tendência para uma detença, num qualquer
momento dialéctico, com isso se pretendendo explicar toda a reali-
dade. É a este fenómeno que dá o nome de cousismo (do verbo cousar) à
filosofia incumbindo “restabelecer o ser e o saber em seu dinamismo,
em sua infinitude55.
Marinho anota a diferenciação relativamente aos pontos de vista
de Bergson, de Comte, do idealismo de alguns pensadores famosos
(Berkley, Kant, Fichte e Hegel) e a crítica do pragmatismo e do con-
tingencialismo, e também, neste ponto, a correspondente crítica de
Bruno e Comte, em O Brasil Mental, e a sua relação com o Criacio-
nismo, pois a lei dos três estados é dada como falecida56.
A dialéctica criacionista entende que “arte e filosofia são postas
pelo pensamento e não opostas ao pensamento científico”, a arte
sendo a “dialéctica do sentimento, que, para ser real, carece de repre-
sentação e, portanto, da arte, de outro modo a dialéctica do senti-
mento será nada. Ciência e arte são fases da dialéctica filosófica, que
tem dois momentos, o positivo e o metafísico, sendo este último a
essência finalista da dialéctica filosófica. Qual é, então, o problema da
essência de toda a dialéctica enquanto essência realizada numa
sociedade de pessoas? Basta afirmar que é essência realizável numa
sociedade de pessoas? Tem autenticidade e sobrevivência?
Compreendida a vida como não originada, e irredutível, o
filósofo considera a religião que, tal como a Ciência e a Arte não é
facto a receber pelo filósofo, mas por ele repensada, no momento dia-

54 Id., id., p. 152.


55 Id., id. p. 152.
56 L. Coimbra, O Criacionismo, ed. INCM, Obras Completas, Vol. I, Tomo II, p. 229;

Marinho, ob. cit., p. 152.


A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 93

léctico correspondente, afirmando-a como um novo meio de acção


das mónadas, instrumento de liberdade de que a pessoa se serve.
Marinho sublinha esta conclusão, citando: “Só é real o que o pensa-
mento justifica, construindo-o. Por isso, todas as revelações são falsas,
venham duma Humanidade, ou dum Deus que absolutamente se
põem perante o pensamento”57.
Nesta trama considera o valor do ateísmo e a carência emotiva
da “religião da humanidade”, emotividade decerto mais possível no
materialismo ateísta do que no humanitarismo positivista.
À semelhança de Bruno, Leonardo recusa a indiferença do
Estado perante as instituições religiosas e expõe a sua doutrina acerca
das relações Estado/Igreja, com a tónica na cultura religiosa. Anota-
mos, de nosso juízo, que Bruno aceitava a persistência da Igreja
Católica, mas nacionalizada, isto é, separada de Roma58, mas acerca
deste ponto Leonardo apenas avançou um limite: “sem dano dos
substanciais valores tradicionais”59.
Percorrido este troço de leitura, Marinho entra de imediato no
capítulo segundo do Livro II, com “o ponto culminante” do Criacio-
nismo, a Metafísica: não há determinismo total, não há substancial-
mente matéria, todo o ser é pensamento, em relação a um oculto
núcleo de consciência, de onde a abóbada do sistema, a Monadologia.
O mecanismo é incapaz de constituir o mundo físico, embora ele seja
um meio operacional das mónadas, mas só a mónada absoluta, –
Deus – perfeita liberdade e infinito excesso, o pode dispensar. Há uma
escala monadológica, desde o mínimo de espontaneidade à liberdade
plena, e a mónada é tanto mais real quanto maior for a unificação de
oposições. “Esse é o grau de liberdade da mónada”60.
A liberdade não é cousa, é algo que consiste num crescimento, é
criação, a sua forma suprema sendo o Amor.
Depois de citar a concepção cristã de Deus como “infinito
amor” aborda de modo remissivo o problema do mal e os argumentos
da existência de Deus (sobretudo o ontológico) que irá revisitar na

57 Id., id. p. 152. Cf. O Criacionismo, ed. cit., p. 258.


58 Bruno, A Questão Religiosa, Porto, 1907.
59 Marinho, ob. cit., p. 153.
60 Id., id. p. 153.
94 J. PINHARANDA GOMES

terceira parte, mas desde logo sublinha como o livro de Leonardo


“termina com a afirmação confiante na liberdade ilimitada do
espírito” no conhecimento e na correlativa acção61.
Desde o Criacionismo, com Deus é dada imediatamente a
criação, e o sentido da imortalidade da alma não é menos urgente do
que o sentido da ideia de Deus. Sendo ideia, não é uma ideia entre
outras, é a ideia por excelência: “O Ser, a plena unidade, que é a
consciência cósmica, Deus, não é inacessível e indemonstrável. Não
se deduz deste ou daquele pensamento, pois ele é o próprio pensa-
mento criando e conservando os mundos, erguendo-se no homem e
caminhando na direcção da unidade, quando o homem procura o
seu destino no todo62 – A mónada é a noção absoluta, total do real, um
totalismo feito em liberdade.
Alguns anos mais tarde, Marinho teceu a apologia do Mestre
em que a excelsa qualidade leonardina é insculpida, mas sem literal
citação de O Criacionismo63. Marinho tem a noção de que a leitura do
seu estudo não é fácil.
Numa última visitação, em obra morosa e seriamente traba-
lhada, e que Marinho já não viu impressa64, tem ele ensejo de remeter
para a chave da compreensão do Criacionismo: “Este método
dialéctico, construtivo, é ao mesmo tempo um método pedagógico.
Chega às últimas e supremas ideias, mas por um progressivo esforço;
ergue-se ao céu, mas sem deixar o contacto com a terra; chega a
Deus, mas sem abandonar o mundo e o homem”65. A obra póstuma,
em apreço, embora animada pela alma criacionista, não se refere
especificamente à primeira obra de Leonardo, antes constitui uma
síntese abrangente das noções limite criacionistas, aliás formuladoras
do título do Cap. V da I Parte dessa obra: “Leonardo Coimbra e o
Magistério do Amor e da Liberdade”.

61 Id., ib.
62 Id., p. 202.
63 Cf. L. Coimbra. Testemunhos dos seus Contemporâneos, Porto, Liv. Tavares Martins,

1950, pp. 259-267. Compilado in Obras de J. M., Vol. IV, pp. 579-581. Neste volume,
Jorge Rivera registou as diversas tentativas do autor até à redacção do texto final.
64 José Marinho, Verdade, Condição e Destino do Pensamento Português Contemporâneo. Porto,

Lello & Irmão, 1976. Cf. Cap. V da I Parte, pp. 93-122.


65 L. Coimbra, O Criacionismo, ed. Cit., p. 5.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 95

Caminhando no sentido de uma abordagem do magistério


como anagogia, reavivam-se as três concepções de amor no discurso
leonardino: amor como simples realidade biológica ou bio-psicológica
(reprodução): amor como sentido espiritual orientado para o destino:
e, enfim, o amor estrutural a todos os seres e que, sendo divino, se
identifica com Deus”.
Marinho inteligiu aqui a bifacial uníade – Ser e Verdade.

4. DELFIM SANTOS (1907-1966)

Delfim Santos, uma vez obtida a licenciatura na Faculdade de


Letras do Porto (1931) prosseguiu uma carreira de estudos, no país e
no estrangeiro, com maior relevo para a Alemanha, onde foi Leitor de
Português na Universidade de Berlim. Doutorou-se na Universidade
de Coimbra em 1940 e consideramos que até 1950 se envolveu na
prossecução da vida profissional universitária, só neste ano tendo
obtido a nomeação como catedrático. Embora ausente, manteve-se
em contacto com diversas pessoas, incluindo condiscípulos, conforme
se acha atestado na Correspondência66. Ele acompanhou de longe,
mas informado, as iniciativas dos condiscípulos, mas, tanto quanto jul-
gamos ter visto, o seu primeiro testemunho escrito é de 1946, incluso
num breve panorama do “Pensamento Filosófico em Portugal”67, num
breve capítulo que abre com Leonardo, mas abrange também Newton
de Macedo e Vieira de Almeida. Nesse breve escrito, considera
Leonardo um “espírito inquieto e brilhante, a sua obra espera ainda
uma análise em conjunto”, pelo que não terá assumido o primitivo
ensaio de Sant’Anna Dionísio como bastante. Afirma que Leonardo
“deixou-nos algumas obras reveladoras de incontestável talento espe-
culativo dirigidas ao tratamento dos temas fundamentais da Meta-
física, da teoria do conhecimento, da teoria da ciência e problemas de

66 Delfim Santos, Obras Completas, Vol. IV. Correspondência. Lx.ª, FCG, 1998; Álvaro
Ribeiro, Cartas para Delfim Santos (1931-1956). Org. int. e notas de Joaquim
Domingues, pref. de A. B. Teixeira, Lx.ª, Fund. Lusíada, 2001.
67 Estudo incluído no volume Portugal, Lx.ª, S.P.N., 1946, pp. 251-275. Compilado

nas Obras Completas, (OC), Vol. I, Lx.ª, FCG, 1982, pp. 438-454 (Leonardo, pp. 453-
-454).
96 J. PINHARANDA GOMES

natureza religiosa”68 . Regista ainda a existência de discípulos que


querem continuar a sua obra.
A primeira reflexão específica acerca de O Criacionismo revela-se
num texto interrogativo, formulado em torno de um elenco de aporias,
dificuldades lógicas, ou becos e paradoxos, talvez como exercício
ainda suscitado pela influência de Hartmann, com quem estudara em
Berlim, e que desenvolveu o processo metódico para análise da aporia
no complexo dos sistemas filosóficos. Esse texto intitula-se “Apo-
rética Criacionista” e destinou-se à primeira grande homenagem a
Leonardo69. Meia dúzia de anos depois, efectuou uma interessante
conferência, em que a primeira obra de Leonardo é tema essencial:
Actualidade e Valor do Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra70. Na leitura
da interpretação de Leonardo percorremos os dois primeiros textos
entrosados, omitindo uma outra conferência de 1959, em que Delfim
presta mais incisiva atenção aos escritos posteriores, designadamente a
A Razão Experimental71.
Delfim Santos entende que “a obra escrita (nem sempre) dá a
medida do homem que a pensou e escreveu”, este juízo sendo para
quem não foi ouvinte de Leonardo nas aulas e nos convívios. Con-
sidera, no entanto, ser “impressivo e fecundo” o contacto com a im-
perfeição, o desarranjo e o caótico do primeiro livro. Esta impressão
deixa vislumbrar as origens do seu (de Leonardo) “desenvolvimento
espiritual em busca de uma fundamentação cognoscitiva da condição
humana, da existência que o conceitismo científico e o idealismo
filosófico desfiguram e deturpam72. Considerando a situação cultural
da época, Delfim admite que se trata de “um livro difícil […] porque
os andaimes da informação ainda visíveis, não permitem logo vislum-
brar a pureza de linhas do edifício, mas impressionante de clarivi-

68 D. Santos, Obras Completas, Vol. IV, p. 453.


69 AA.VV., Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus Contemporâneos. Porto, Liv. Tavares
Martins, 1950, pp. 231-240; D. Santos, Obras Completas, Vol. II, Lx.ª, FCG, 1973,
pp. 71-77.
70 Cf. Studium Generale, Vol. III, Porto, 1956, pp. 51-67. Cf. Obras Completas, Vol. II,

ed. cit., pp. 225-238.


71 Cf. Actas do Colóquio de Estudos Filosóficos, Braga/Porto, 1959. Cf. Obras Completas,

Vol. II, pp. 281-294.


72 D. Santos, OC, Vol. II, p. 71.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 97

dência na estruturação aritmética da sua filosofia73. Opinando, admite


que embora Leonardo se não tenha encontrado logo no seu primeiro
livro, entende-se já que “O Criacionismo é uma metafísica nocional e
intuitiva e, além disso, um ensaio de construtivismo conceitual e da
dialéctica cousada das ideias74. Como apreender o pensamento do
filósofo a partir da leitura do seu primeiro livro?
Delfim Santos enumera e define uma dezena de quesitos.
1. O pensamento mantém-se indeciso entre o essencial e o exis-
tencial da especulação. Procura o essencial, porventura mal situado na
“actividade científica” e na interpretação dos últimos resultados da
ciência do seu tempo”; e procura o existencial na arte, na política e na
religião, mas a tónica é posta no essencial, que pouco a pouco cede até
dar um lugar como que exclusivo ao existencial. Delfim garante o seu
parecer na leitura de uma quase aforismática norma leonardina: “Só
será real a filosofia que, em si, e como seus momentos do pensamento,
envolva uma ciência e uma arte reais”75. Há aqui lugar para inferir
que a filosofia pode reduzir-se à elaboração de (um) pensamento sobre
uma arte real e uma ciência “real”, subordinando o existencial a um
essencial científico, menos exigente, “mitigado”. Por isso, o exegeta
questiona se não seria melhor reformular a definição leonardina na
fórmula “só será real a ciência que em si e como seu momento de
pensamento envolva uma filosofia real”76. Ora, há um vislumbre desta
reformulação quando, logo a seguir, escreve: “Essa filosofia deixa, em
suspenso, o pensamento sobre essas últimas e essenciais realidades
únicas que existem […] e que chamamos consciências e pessoas”77.
2. O livro, de intentos deficientemente realizados, estruturou-se
consoante a sua definição de filosofia: “a ciência é análise e a filosofia
é síntese”78. Há, aqui, uma aporia: se há uma relação entre uma
actividade sintética e uma outra analítica, “qual é o laço”, “o esquema
dinâmico” entre ambas? Delfim afirma ser o pensamento, mas nem a
ciência é apenas analítica, nem a filosofia apenas sintética, e mais:

73 Id., id. p. 227.


74 Id., id. p. 72.
75 L. Coimbra, O Criacionismo, Obras Completas, Vol. I/II, INCM, 2004, p. 350.
76 D. Santos, ob. cit., p. 72.
77 L. Coimbra, ob. cit., ed. cit., p. 350.
78 D. Santos, ob. cit., p. 73.
98 J. PINHARANDA GOMES

uma filosofia que realizasse apenas a análise científica só poderia


constituir-se como “síntese científica”, o que não equivale ao objectivo
leonardino. “Filosofar não é aderir a um sistema feito”, evita o cou-
sismo e outros riscos, e assim Leonardo se liberta do peso da análise
científica para se encontrar na “síntese filosófica” que deveras contém
o novo sistema, já liberto, o Criacionismo79.
Quanto ao título do Livro II, tenha-se presente que, no léxico
leonardino, a síntese não é nem resumo nem sinopse das análises
científicas levadas a cabo no Livro I, mas que, síntese, em vez de ser
uma conclusão, constitui “a parte nuclear da exposição do pensa-
mento do autor”, sendo clara a sua independência relativamente à
anterior. Nela se garante “o exercício da liberdade criativa do espí-
rito”, em relação aos últimos fins – “a dignificação da pessoa moral”.
Sem prejuízo de outros momentos especulativos subordinados às
ciências, é mais evidente uma teoria do Mundo80, do que uma teoria
metafísica. O significado do Mundo prevalece como destino da filo-
sofia, sendo de menos interesse o esquema ou lema de “filosofia pela
filosofia”.
3. Uma filosofia enquanto meio e expressão da concepção do
Mundo, Delfim entende que ela é, no discurso leonardino, um fruto
positivista, aliás censurado mas também valorado nas páginas iniciais
e programáticas de O Criacionismo, sendo evidente a atribuição do
interesse pela Metafísica como resultante da oposição do método
positivista a tal saber, que recebeu a censura leonardina por causa da
oposição de facto a pensamento. Segundo Delfim, “nem o pensamento se
pode identificar com metafísica, nem o positivismo desvaloriza a lei
como expressão de relações fácticas”81.
4. Leonardo organizou o tratado segundo um esquema meto-
dológico constituído por “um máximo de racionalização da intuição
sensível82. A intuição é evocada, sem que o autor chegue a formular
uma definição objectiva, se admite uma intuição intelectual, só já no
capítulo sobre o Número, (em instante em que se apercebeu de que “a

79 D. Santos, OC, Vol. II, p. 229.


80 Delfim usa um germanismo: Weltanschaung.
81 D. Santos, ob. cit., p. 73.
82 L. Coimbra, O Criacionismo, cit. apud D. Santos, ob. cit., p. 73.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 99

palavra intuição pode prestar-se a um erro”) avançando com um


esboço definitório em que o sujeito é, não o substantivo, mas um
adjectivo derivado: “É intuitivo o que se nos apresenta sem o cons-
truirmos, mas, ao lado dessa intuição reveladora [...] o homem vai
criando como que uma intuição de segunda ordem pela presença, sem
esforço indagador de elementos adquiridos83. Ora, tal afirmação leva
à ideia de haver uma intuição inicialmente dada (como em Bergson)
mas que “o homem vai criando”, produzindo-se então o quesito de
indagar sobre qual delas, a recebida e/ou a criada, a racionalização se
efectua. Qual o limite da racionalização?
5. “O limite é a noção”. Noção é palavra e, ressalvado o
truísmo, noção (ideia) deveras abundante no texto leonardino, cons-
titui uma apetecida chave de abertura do discurso. A realidade como
algo independente do pensamento, não existe. Ela consiste num “con-
junto de noções que se vão constituíndo em sistema”84. “O mundo das
noções (é) muito mais vasto e complexo do que o teorema aritmético.
Sendo a realidade construída pelo pensamento (do homem) ao racio-
nalizar sistematizando as noções, a noção apresenta-se racionalizada,
sendo o fundamento e, a razão, o instrumento que elabora a noção, de
modo que esta vem a ser a realidade enquanto sistema. O predicado
para a filosofia leonardina neste transe, não é realismo, nem idea-
lismo; é nocionismo (Delfim escreve: nocionalista).
Noções são também a objectividade e a subjectividade e não
distintas realidades, o que Delfim confirma, citando: “Há uma liber-
dade que excede as suas criações; uma intenção de amor maior que
todas as suas obras; um infinito unindo todas as formas; um irracional
criando todas as razões sem nelas se esgotar nem sequer dimi-
nuir”85. No léxico corrente, o real é o conceito, como que ausente do
léxico leonardino, em que pesam a intuição e a noção, abrindo as portas
à teoria ou visão das mónadas, ou monadologia, que Delfim considera
o “aspecto mais importante” do pensamento leonardino, que ignora o
conceptualismo em favor da noção.

83 O Criacionismo, ed. INCM, p. 26.


84 O Criacionismo, ed. cit., p. 32; D. Santos, ob. cit., p. 74.
85 Cit. apud D. Santos, ob. cit., p. 232.
100 J. PINHARANDA GOMES

Podemos sugerir que o conceito é também uma racionalização


da intuição?
6. A sistematização de noções, a monadologia, aparece como
noção de Universo, “uma pluralidade de mónadas. Se a mónada
suprema é a “pessoa religiosa”, devemos assumir que “a pessoa (é
também) um conjunto de noções”86. Infere-se que a “noção de noção”
com interesse na metodologia da análise científica, “é insuficiente para
a conformação ontológica da pessoa” e, até, de outros exemplos da
realidade.
Se a noção consiste num laço entre a intuição e a mónada, “a
pessoa moral seria o laço entre a mónada e Deus” que, em certo
passo, Leonardo afirma como início e final do Mundo87. Problema é
agora o de saber qual a acepção do termo mundo. É também, ou não,
um sistema nocional? Porque, se o real é nocional, Deus será também
um criador de noções e, sendo assim, Deus é o criador da intuição
primeira e, o homem, o autor das noções da intuição segunda, todavia
Delfim questiona se a vera intuição primeira não é o próprio Deus88.
Por um lado, o filósofo dá-nos a visão epistemológica com os
termos primeiros – intuição, noção e mónada; por outro, a ontologia
(ou ontoteologia), Deus, o Mundo e de novo Deus. Qual a relação da
epistemologia com a ontologia e mesmo com uma Ontoteologia?
7. A noção corre um risco, a cousificação, pois o pensamento
cousa quando, demorando-se excessivamente em certas noções as
assume como exclusivas e extensivas a todos os sistemas da realidade.
O cousismo corre ainda o risco de impedir a clara explicação dos
sistemas mais complexos, quando toma para exemplo os sistemas
mecânicos, esquecendo-se do termo vida que transcende o mecânico, e
vai num direccionismo que a mecânica não esgota, nem atinge, salvo
na pele, nem explica. De facto, “o cousismo considera apenas válido e
admissível o que se deve aprender, demonstrar e verificar pelos méto-
dos adequados ao reino das coisas” e mais: “reduz o pensamento à
função verificativa do mais baixo constituinte da realidade”, valori-
zando o materialismo e desvalorizando a metafísica, pelo que

86 Id., id., p. 74.


87 Id., id., p. 75. O Criacionismo, ed. cit., p. 368.
88 D. Santos, ob. cit., p. 75.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 101

Leonardo propõe a revisão crítica do vício cousista nas tendências


filosóficas do seu tempo89.
Já houve cousificação nos sistemas material-naturalistas? E nos
espiritualistas? Segundo o filósofo, o Criacionismo não cousou qual-
quer noção científica, chegando à concepção de “pessoa moral”. Ora,
no ver de Delfim, Leonardo cousa em duas instâncias: a intuição, à
qual deu “um estranho sentido ontológico” e a ideia de noção, ou
noção da noção.
8. As noções de matéria, energia, massa, espaço, tempo, etc., cousaram
nas atitudes sistemáticas, enquanto o Criacionismo deseja evitar o
cousismo pecaminoso levado a efeito pelo pensamento humano. Se a
expressão corrente é a de noção de (forma transitiva), exigindo um
termo complementar, Leonardo afirma que massa, energia, força,
etc., já são noções, isto é, “dizer noção” de força é dizer “noção de
noção”. No entanto, Leonardo aponta o dedo a Berkeley, consi-
derando que o seu “idealismo absoluto trabalha com noções e nada
mais”, portanto, no julgamento de Berkeley, Leonardo a si mesmo se
julga90.
9. Retomando a dinâmica de um peculiar fundamento, “o
centro temático do sistema” leonardino é uma “teoria da máxima
racionalização”, mesmo sendo exacto que, nesta fase, o nome conceito
se acha ausente do léxico leonardino. De modo diferente, o Criacio-
nismo apresenta-se como uma nova filosofia criadora, e tanto leva
Delfim Santos a questionar: se a intuição é um dado primitivo, e a
razão organiza a intuição em noções constituintes da realidade, o que
há, neste caso, de “criador”? A razão dá forma à intuição, não se
cria”91.
Quanto à organização das noções, estas constituem as mónadas,
que não são criação do pensamento humano, mas notícias ou actos
reveladores de outra noção maior, o Ser, que se mostra em sendos,
entes. A razão pode criar noções, mas que elas constituam a própria
realidade “parece demasiado”.

89 D. Santos, ob. cit., p. 228.


90 D. Santos, ob. cit., p. 76.
91 Id., ibid.
102 J. PINHARANDA GOMES

Delfim considera o capítulo “Deus e as Mónadas” como o


momento existencial do pensamento leonardino, entendendo que o
Livro I, ou da Análise Científica, “é tentativa para dar base segura” ao
seu pensamento emocional, mas entende que os dois livros não são
comuns um com o outro – embora Delfim não explique melhor este
juízo, pelo menos neste trecho que acabámos de ler.
10. Por fim, o problema da liberdade, em que a tese leonardina
é a de que uma liberdade sem determinismo que a sirva é impossível;
e que o criacionismo é uma filosofia da liberdade, porque o seu uni-
verso “é uma sociedade de consciências, e a consciência feita pessoa é
a actividade livre e criadora”92. Contudo, o filósofo chega a apurar
que, afinal, “a liberdade é o progresso da indeterminação” e como o
único infinito por ele admitido “é a liberdade moral”93.
Nesta luz, a filosofia vive para além da teoria e da crítica do
conhecimento, e também para lá da “mecânica lógica do pensa-
mento”, segundo a Psicologia. É uma dialéctica em transe, capaz de
conhecer e de valorizar o concreto, incluíndo o seu mais alto valor, a
pessoa. A pessoa não é redutível a qualquer espécie de materialismo,
ou energetismo, ou seja o que for fora do “espírito incarnado”.
No primeiro passo o criacionismo é um construtivismo; no
segundo, um criacionismo.
Para Delfim, Leonardo resolveu as aporias em escritos poste-
riores, mas, no caso, o que importa é olhar para “o momento do
primeiro livro, o momento genesíaco do futuro”94. Antes da publi-
cação da conferência sobre o sentido da contribuição filosófica de
Leonardo, Delfim ainda leu a Síntese Filosófica, na edição em sepa-
rado, levado a cabo pela Livraria Tavares Martins, sob a direcção de
Sant’Anna Dionísio, no projecto editorial das Obras Completas, que
não chegou a concluír-se. Delfim escreveu o prefácio, nele como que
apontando ou sintetizando as exposições critico-hermenêuticas que
acabámos de contemplar95.

92 Id., id., p. 78.


93 Id., id., p. 77.
94 Id., id., p. 77.
95 O prefácio é breve. Cf. D. Santos, Obras Completas, Vol. II, ob. cit., 263-266.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 103

Ressalva a oportunidade da edição em separado (o que parece


não ter sido objecto de plena aceitação pelos admiradores leonardinos)
para facilitar o contacto imediato com o pensamento do filósofo,
justificando como o valor deste Livro II ou da Síntese Filosófica, não
obstante a valia do Livro I, numa edição separada não leva à perda do
significado de ambas as partes, na relação de uma com a outra.
Explica, ainda assim, que a junção dos dois Livros pelo autor
num só volume foi de ordem circunstancial, mas tal circunstância já
não ocorrendo, a edição separada da Síntese ficava justificada.
Acresce, segundo afirma, que os capítulos do Livro I “são dema-
siado exigentes para o leitor não disposto a seguir os caminhos difíceis
da análise científica”96. Entende que, além do mais, a edição tem o
mérito de pôr em relevo “a mais clara exposição na nossa língua, – e
cita Leonardo – (da) filosofia que um pensador português pensou na
sua terra natal, diante da evocação de todos os homens e seres, na
mais pura sinceridade e na mais veridica e directa curiosidade”97.
Aponta alfim as características do pensamento criacionista, seu
valor e actualidade representando os resultados a que já chegara:
O Criacionismo não é apenas “regulativo do conhecimento”
mas também “constitutivo da realidade”.
A realidade não é em si, resulta da aliança do pensamento e do
não-pensamento. É noção.
A noção não é ideia, nem conceito, mas “núcleo de apercepção
transcendental”, fonte do ôntico e do lógico, do ser e do pensa-
mento98.
Recusa as filosofias construídas como dialéctica de conceitos,
que são apenas pensamento pensado, enquanto a dialéctica de noções se
apresenta, (diremos nós) como pensamento pensante.
A dialéctica nocional, enquanto método, tem dois sentidos
antitéticos e irreversíveis: cousar e criar, cousismo e criacionismo.
O cousismo é a linguagem do “senso comum ou da táctil inte-
ligência”, definição arbitrária do indefinido99.

96 D. Santos, Obras Completas, Vol. II, p. 263.


97 Id., p. 268. Cf. O Criacionismo, ed. cit., p. 378.
98 D. Santos, ob. cit., p. 264.
104 J. PINHARANDA GOMES

A síntese indica, com “a máxima clareza” os vectores antro-


pológico e personalista, tanto como o existencialismo, depois confir-
mados na filosofia europeia.
Constitui-se num “pensamento existencial cristão” sendo pre-
cursor do que depois se chamou “existencialismo cristão”100.
Em termos de apologia, Delfim confirma que o Criacionismo
antecipa a temática própria do trânsito do fenomenologismo para o
existencialismo; que não há razão pura, nem pura experiência; “a
experiência é um caminho que a razão se propõe para a si própria se
verificar”, a ela, apertada entre o monismo da razão e o pluralismo da
“experiência” e o risco da contradição. Enfim: a estruturação séria da
personalidade e da cultura nacional (dependem) da filosofia, o Cria-
cionismo sendo um caminho normativo: “É necessário que a certeza
seja verdade a verdade também certeza”101
Voltando a anterior data. Contemplando o primeiro livro de
Leonardo, Delfim Santos considerou que Portugal não sabia ainda do
valor “do seu mais notável filósofo” porque a nossa cultura não ascen-
dera ainda à “compreensão da mais alta forma de revelação espiritual
que pode enobrecer um povo”102.
Livro estranho, decerto sem leitores capazes de o entenderem,
tanto mais que o autor não expunha mais uma doutrina recebida do
estrangeiro, apresentando a obra como “a tentativa de um português
pensar originalmente uma filosofia, reduzindo o que como filosofia
tinha algum aspecto de validade”103.
“O homem é também uma noção que a si próprio se cria na
reconstrução da sua vital experiência”104. O pensamento leonardino
desenvolve-se em harmonia, com desenvolvimento e não mutação,

99 Id., id., p. 264. No artigo sobre Leonardo Da Vinci nas Obras Completas, Vol. II, pp.
145-147, Delfim, ao tratar do valor da experiência em Da Vinci (maestra vera), como
que retrata o nosso Leonardo...
100 Id., id., p. 265.
101 Id., id., p. 266.
102 D. Santos, Obras Completas, Vol. II, p. 229.
103 Id., id., p. 230.
104 Id., id., p. 234.
A LEITURA DE “O CRIACIONISMO” POR QUATRO DISCÍPULOS DE LEONARDO COIMBRA 105

isto é, criacionismo sem evolucionismo. “O seu primeiro livro é plano


e roteiro de tudo quanto vai surgir posteriormente”105.

***

Pelo excurso acima, quisémos apenas focar, com as inevitáveis


deficiências doxológicas, os modos pelos quais os quatro (a nosso ver)
mais significativos discípulos, consideraram a tese principal do Mestre,
nas analogias e nas diferenças segundo o cânone da liberdade de
pensamento.

105 Id., id., p. 236.


ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS
COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO

Romana Valente Pinho


UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

A actuação de António Sérgio no movimento da Renascença


Portuguesa é demasiadamente conhecido de todos nós. Pelo menos é
conhecido o seu envolvimento inicial. Sérgio, assim como outros
autores portugueses, estava descontente e preocupado com os rumos
que a República estava a dar à sociedade e à cultura portuguesas. Já
não o preocupavam, tal como em 1910, apenas as questões políticas,
ou ideológicas, como ele próprio peferia chamar-lhe, e que o levaram
a demitir-se das suas funções na Armada Portuguesa1 (pede licença em
Novembro de 1910 mas só se afasta definitiva e oficialmente em
Junho de 1915). Acima dessas perspectivas, naturalmente relacionadas
com a sua inclinação monárquica (ainda que nem sempre assumidas
abertamente2), colocavam-se outras de alcance maior, que visavam a

1 SÉRGIO, António. Sobre a minha colaboração na obra da “Renascença Portu-


guesa”. Portucale – Revista Ilustrada de Cultura Literária, Científica e Artística. Porto.
3.ª série, vol. I, n.º 3, Primavera de 1955, pp. 117-118: “Abandonei a Armada
quando se instaurou a República, no empenho de manter a minha liberdade crítica
e de me dedicar à vocação que me parecia a minha (...). Decidira consagrar-me ao
meu próprio rumo (o do apostolado cívico) et me tenir ferme dans les courants”.
2 Ibidem, p. 117: “Recusei-me a ser apresentado a El-rei (que aliás me conhecia) ao

chegar à idade de se cumprir tal praxe. Porque praxe foi essa que me cumpria seguir.
Minha família era, com efeito, de fidalgos cavaleiros da casa real; meu Pai, desde
108 ROMANA VALENTE PINHO

construção de uma sociedade mais democrática, mais crítica, mais


educada3 e mais racional. Visava-se, essencialmente, dar conteúdo à
nova forma de governação política: “No dia em que nós possuirmos
uma porção de homens de boa vontade, de energia e de competência
técnica, capazes de ir reformar e desinfectar os diferentes órgãos do
país – Escola, Fábrica, Agricultura, Exército, Burocracia, etc. – a
revolução está feita, quer o chefe do país use Dom ou não use Dom”4.
Contudo, se todos esses autores que se reuniram, a partir de
1911, em assembleias em Coimbra, no Porto e em Lisboa, e dos quais
destacamos Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra,
Álvaro Pinto, Raul Proença e António Sérgio pretendiam uma reno-
vação e uma renascença de Portugal, a verdade é que nem todos a
almejavam de modos semelhantes. Sérgio e Proença, por exemplo,
depressa confirmariam que as suas propostas se não enquadravam
naquilo que a maioria dos membros desse movimento cultural, e
muito particularmente Joaquim Teixeira de Pascoaes – o homem forte
da Renascença Portuguesa logo desde o seu início –, pensava e
defendia. Assim como Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro já o
haviam confirmado quando não concordaram com a inclinação que
estava a ser dada aos temas da Saudade, do Modernismo e do Futu-
rismo e se desligaram da Renascença. Aliás, a criação da Revista
Orpheu, em 1915, surge, em grande medida, enquanto alternativa

muitos anos, ajudante de campo honorário de El-rei; meu Avô fora, pelos meados
do século, perceptor militar de El-rei D. Luís. Mas declarei a meu Pai que não
seguiria a praxe: e ele (a pessoa de mais encanto que jamais conheci, o homem mais
liberal, mais sorridente e bondoso, de gentileza aristocrática em todas as circuns-
tâncias da vida) conformou-se imediatamente com o meu desejo. «És republicano;
estás no teu direito»: assim comentou. «Nem republicano nem monárquico», expli-
quei eu logo; «desagrada-me a ideia de entrar na Corte»”.
3 Idem. Correspondência para Raul Proença. Organização e introdução de José Carlos

González, Lisboa: Publicações Dom Quixote / Biblioteca Nacional, 1987, p. 77: “A


culpa não foi da M.[onarquia] nem da R. [epública]; nem dos homens monárquicos
ou dos homens republicanos: foi dos homens portugueses, foi da nossa educação e da
nossa história. E isso não se cura à força de bomba, bestializando o povo, dizendo
patacoadas, fazendo traquibérnias com os terrenos de S. Tomé ou com os divórcios
de madamas ao preço de 4 contos: isso tudo se cura pela acção lenta e pacífica da
educação”.
4 Ibidem, p. 38.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 109

cultural e estética, ou seja, enquanto resposta às insuficiências d’A


Águia e da Renascença Portuguesa. Afinal, tanto Pessoa quanto Sá
Carneiro concluíram que os objectivos que norteavam inicialmente o
projecto renascente se modificaram.
Sérgio e Proença, por sua vez, acreditaram que o melhor não
seria criar uma outra revista (a Seara Nova só é formada em 1921 e
não surge enquanto confronto directo à A Águia e ao movimento da
Renascença Portuguesa 5 ) mas afastarem-se ruidosamente, discor-
dantemente, lançando flamejantes farpas e palavras. Contudo, isso
não significa que deixassem de ser seus colaboradores. Se Sérgio se
demarca da Renascença, criticando ardentemente a sua estética e a
sua ideologia, não deixa, ainda assim, de colaborar com ela e até de a
apresentar, em certo contexto, ao ciclo intelectual brasileiro 6 , por

5 A criação da revista Seara Nova, em 1921, tinha como principais objectivos, tal
como Raul Sangreman Proença alertou logo no primeiro número, chamar a
atenção dos republicanos para o avanço desmesurado do partido integralista sob as
cabeças dos mais jovens e conceder à sociedade portuguesa uma acção doutrinal e
crítica: “Como os senhores estão cegos! Pois não viram ainda que o facto que mais
compromete a existência da República é o alastramento das ideias monárquico-inte-
gralistas entre a mocidade das escolas, e que esse facto se deve à absoluta inanidade
mental do regime?! A juventude escolar apega-se à ideologia monárquica porque
não encontra, no terreno dos factos, senão uma República monstruosa, e no terreno
dos princípios a completa ausência duma ideologia republicana de reconstrução e
revolução. Os integralistas têm vivido, pura e simplesmente, da inanição mental
do regime. Não é a força política das suas doutrinas ou a importância real dos seus
homens que explicam o triunfo do snobismo azul-e-branco” (PROENÇA, Raul.
“A Seara Nova e certos republicanos”. Seara Nova. Lisboa, n.° 1, 15 de Outubro de
1921, p. 6).
6 SÉRGIO, António, Cartas de António Sérgio a Álvaro Pinto (1911-1919), pp. 80-81:

“Pediu-me o Álvaro Pinto que fizesse aqui [Rio de Janeiro] uma conferência em
benefício da Renascença. Apesar da minha relutância em falar em público acedi por
consideração ao fim que se tinha em vista, e pus-me a pensar qual devia ser o tema
da palestra. Pareceu-me que o benefício da Sociedade num meio que totalmente a
desconhece indica, sem a menor hesitação, a explicação dos objectivos dessa
sociedade, para a qual se pede dinheiro. É uma explicação devida e uma justificação.
Ora o objectivo da Renascença, segundo os Estatutos, é a cultura do povo português;
portanto, o meu tema devia ser a cultura do povo português. (...) Note que eu não
poderia apresentar a Renascença como uma sociedade de literatos: 1.º, porque não
está isso nos Estatutos, que se vão distribuir; 2.º, porque não é verdade; 3.º, porque
se não justificaria em tal caso a entrada na sociedade das muitas pessoas não literatas
110 ROMANA VALENTE PINHO

exemplo. Sempre com as suas devidas ressalvas, naturalmente, Sérgio


parecia conviver razoavelmente bem com o hiato que se havia
imposto entre a ideia fundadora do movimento da Renascença Por-
tuguesa e aquilo em que os saudosistas o haviam tornado. Embora
fosse contra a estética do movimento, a ideia primeira e fundacional
continuava a aliciá-lo. Ora, é nessa contextuação, que o ensaísta se
desentende com os dois homens que mais viabilizaram o movimento
da Renascença Portuguesa em termos anímicos e substanciais:
Joaquim Teixeira de Pascoaes e Álvaro Pinto.
António Sérgio conheceu Teixeira de Pascoaes nos primeiros
meses de 1912, aquando de uma breve passagem do poeta por Lisboa,
e desde logo lhe devotou estima e admiração: “Falei hoje com o
Pascoaes, que muito estimei conhecer e apreciei”7. No entanto, Sérgio
já se havia enredado no movimento da Renascença Portuguesa desde
que Álvaro Pinto, Raul Proença e Jaime Cortesão o haviam convi-
dado para participar da assembleia de Lisboa, ocorrida no dia 17 de
Setembro de 1911, da qual sairia a Renascença Portuguesa. Quando
António Sérgio conhece o poeta amarantino andava já envolvido,
portanto, com questões de natureza pragmática de tal movimento,
preocupavam-no as assinaturas da revista A Águia, as cobranças dos
recibos, as circulares, as edições da Renascença.
No fim de 1912, no entanto, já não é apenas estima e apreço o
que sente por Pascoaes. Sente igualmente divergência na medida em
que constata que está perante um autor que partilha visões e doutrinas
absolutamente contrárias daquelas que defende. Nesse sentido,
escreve a Álvaro Pinto dizendo que discorda “da orientação da Águia,
mas isso significa só isso. Para mim a amizade é um acordo de
sentimentos e de boas vontades que não implica o acordo nas ideias.
Frequentes vezes divirjo das opiniões dos meus amigos e concordo

que se pretende aliciar para ela; 4.º, porque se não justificaria então o pedido de
dinheiro, o benefício: «meus senhores, dêem esmola a este plumitivos da minha
terra!»; 5.º, porque falando de obra literária eu teria que citar nomes, o que traria os
seguintes disparates (...). Pois bem, como resposta ao meu plano recebo ontem o
bilhete incluso do Álvaro Pinto. Roga-me que «faça tudo o que possa para não
esquecer o movimento literário!!! Por intermédio do Álvaro Pinto, os colegas
plumitivos pedem-me a esmola de decantar os seus nomes às brasileiras multidões!!”
7 Ibidem, p. 16.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 111

com as dos meus inimigos (...) As acusações que faço à Águia são as
seguintes: o exclusivismo de igrejinha; a inconsistência e a autolatria
pascoalesca; o elogio mútuo”8.
É claro que isso não significa só isso. Porque se significasse, Sérgio
não se teria enredado num dos maiores conflitos culturais da moderna
intelectualidade portuguesa.
Inúmeras foram as polémicas que o ensaísta travou ao longo da
sua vida (de Abel Salazar, a António José Saraiva, a António Sar-
dinha, a Bento de Jesus Caraça, a Carlos Malheiro Dias, a J. Preto
Pacheco, a Jaime Cortesão, a João Gaspar Simões, a Jofre Amaral
Nogueira, a José Marinho, a José Sant’Anna Dionísio, a Luís Cabral
de Moncada, a Manuel Múrias e a Martinho Nobre de Melo) mas
nenhuma delas foi tão relevante quanto aquela que protagonizou com
o poeta Teixeira de Pascoaes durante os anos de 1913 e 1914. É que
essa não discutiu apenas pontos de vista, filosofias preferidas, escritores
de eleição e posicionamentos sócio-políticos. Constitui-se num apelo à
modernidade, num brado de natureza civilizacional, num sacudi-
mento no grupo da Renascença Portuguesa e numa antecipação da sua
postura seareira. Nessa polémica, Sérgio revela-se por inteiro. Se, por
um lado, apresenta as suas propostas progressistas, discute a nova
metodologia educativa e disserta acerca da política, da sociedade, da
história e da filosofia, por outro, demonstra igualmente as suas fragi-
lidades. De todo modo, a polémica é essencialmente um manifesto,
um grito em prol do mobilismo.
As cartas trocadas entre Sérgio e Pascoaes, datadas de Outubro
de 1913 a Julho de 1914, anunciam, no fim de contas, um confronto
entre um ensaísta moderno e um poeta anti-moderno, ou pré-
-moderno como se lhe preferir chamar. A amizade que nutriam entre
si ficará alquebrada para o resto das suas vidas, embora o respeito
intelectual pareça ter-se mantido impoluto, tal como demonstra o
testemunho que o ensaísta insere, em 1951, no volume de home-
nagem que a Universidade de Coimbra faz ao autor de O Regresso ao
Paraíso: “Creio que não tenho competência alguma para falar do
Teixeira de Pascoaes: e se acudo agora com estas linhas rápidas, cuja
valia é zero, é só para não faltar nesta homenagem tão justa,

8 Ibidem, p. 17.
112 ROMANA VALENTE PINHO

bendizendo o destino que me dá ansa fácil de desfazer um mal-


-entendido que já dura há anos. Com efeito, lá porque um dia levantei
reparos a que se apresentasse como doutrina de todos nós (os
membros da Renascença, colaboradores da Águia) um nacionalismo
estético-psicológico-político que era apenas dele e de poucos mais,
criou-se essa lenda de ser eu adverso a um eloquentíssimo poeta que
sempre admirei e amei”9.
O duelo travado entre o Homem da Espada de Pau e o Arcanjo da
Espada dum Relâmpago nas páginas d’A Águia, sensivelmente durante dez
meses, não reflecte apenas a dualidade entre a cidade e o campo,
entre a ruralidade e o urbanismo, entre o progresso e o regresso, entre
o internacionalismo e o universalismo, entre o estrangeirismo e o
nacionalismo, entre Londres e a Serra do Marão, mas denuncia
igualmente o projecto similar que os dois pensadores ambicionavam
para Portugal. Na realidade, tanto Sérgio quanto Pascoaes visavam
uma reforma cultural que colocasse o país nas posições cimeiras da
Europa. O que os distinguia, sem embargo, era o modo de conceber
tal empreendimento: o racionalista entendia-o progressivamente e o
saudosista, por sua vez, idealizava-o regressivamente. O que os separava,
no fundo, era o modo de o fazer.
Ainda antes do diálogo entre Sérgio e Pascoaes começar a ser
estampado nos números d’A Águia, já o primeiro, em cartas pessoais,
se manifestava incomodado com o rumo saudosista que o autor da
Senhora da Noite estava a dar ao órgão da Renascença Portuguesa. Numa
missiva enviada ao seu amigo Raul Proença, em Fevereiro de 1912,
lastimava-se assim: “Infelizmente o Pascoaes jurou que havia de matar
o Aiglon logo à nascença: por toda a parte ouço protestos contra aquela
insistência na deliquescente Saudade. Os rapazes tendem a fazer da
revista um campo fechado da seita poético-neo-mística-saudosa”10. No
fim desse mesmo ano, Sérgio continua a criticar o que considera os
credos e os conceitos dogmáticos de Teixeira de Pascoaes e a Renas-
cença Portuguesa.

9 Idem. “Sobre o Carácter da Poesia de Teixeira de Pascoaes”. Cadernos de Poesia.


Número dedicado a Teixeira de Pascoaes. Lisboa, III.ª série, fasc. 14, 1953, p.11.
10 Idem, Correspondência para Raul Proença, p. 33.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 113

Até ao início da polémica se tornar pública, em Outubro de


1913, Sérgio vai-se manifestando contra a teoria da saudade a quem
com ele conversa ou a quem com ele se corresponde. Muitos são os
seus amigos e conhecidos que sabiam já do seu anti-saudosismo antes
de ele se tornar expresso n’A Águia.
No Verão de 1913, numa carta remetida do Brasil a Álvaro
Pinto, António Sérgio escreve: “Peço-lhe que me mande as duas
conferências de Pascoaes: se não erro muito, a primeira chama-se
Saudosismo e a segunda O Génio Português na sua Expressão Literária e Filo-
sófica, ou coisa parecida. Não tencionava ler essas duas conferências,
porque me desgosta ver o Pascoaes a dizer tão idiotas baboseiras, mas
seria falta de consciência falar da Renascença sem as ler. Esteja
sossegado que não esmiuçarei em público nem farei críticas ao
saudosismo”11. Pouco tempo depois, na peça que ficou inédita da
polémica de Sérgio com os saudosistas, publicada por Rogério
Fernandes, em 1972, nas Cartas de António Sérgio a Álvaro Pinto, intitulada
“Humilde súplica aos saudosistas”, adianta ainda que foge de “discutir
em público os contos de fadas de Pascoaes”12. Nessa súplica, António
Sérgio diz que aceita o saudosismo enquanto escola de poetas, mas
roga que “larguem de mão a ideia de filiarem em Antero as teorias
psicológicas, políticas, metafísicas, religiosas, mitológicas, pedagógicas
e patológicas do saudosismo”13. Por mais que Pascoaes o encante
enquanto poeta, não pode ser conivente com a ideia que estabelece
“Antero de Quental como papá do saudosismo” 14 . Perante este
argumento, não será, pois, de estranhar que Sérgio mude de ideias
relativamente a inconfidências acerca do saudosismo e publique em
Outubro desse mesmo ano, n’A Águia, a Epístola aos Saudosistas15, na
qual tece uma fervorosa crítica à filosofia saudosista encabeçada por
Teixeira de Pascoaes. É a partir desta que a polémica com o seu
amigo poeta se enceta formalmente.

11 Idem, Cartas de António Sérgio a Álvaro Pinto (1911-1919), p. 20.


12 Ibidem, p. 22.
13 Ibidem, p. 22.
14 Ibidem, p. 21
15 Idem. “Epístolas aos Saudosistas”. A Águia. Órgão da Renascença Portuguesa.

Porto, vol. V, 2.ª série, n.º 22, Outubro de 1913


114 ROMANA VALENTE PINHO

Pensava Sérgio, pois, que, no contexto cultural, social e literário


do princípio da década de 10, em Portugal, era despropositado fazer-
-se a apologia do saudosismo. Impondo-se a tal ambiente, esse
movimento seria, na sua visão, um projecto premeditado, um
programa literário artificial, uma combinação entre poetas e um mot
d’ordre que não fazia o mínimo sentido. A humanidade tinha avançado
e a doutrina da saudade esboçada por Pascoaes soava falsamente a
Sérgio. De que sentiriam saudades, ao fim e ao cabo, esses seus amigos
que propunham o regresso do saudosismo, se eram “criaturas alegres
e sociáveis; pacatamente instalados na pátria amada, donde ninguém
vos tira e onde vos amam todos; felicissimamente casados com as
eleitas das vossas almas, ou em vias de matrimónio sem estorvos de
maior, vocês proprietários uns, professores ou filhos-famílias outros,
vivendo todos em vida sem grandes lutas nem paixões” 16 ? Para
António Sérgio, quem vive na saudade são “os velhos, e os desgra-
çados a quem a morte levou uma pessoa muito querida”17 e o seu
culto, numa expressão de filosofia nacionalista, conduz ao imobilismo,
à inércia, ao desejo do passado e à amargura da mudança. Ora, o que
o ensaísta preconizava já nessa altura era precisamente o oposto desse
movimento. Almejava o avanço, a acção e o mobilismo. Os seus olhos,
carregando a luz do espírito contemporâneo, estavam postos no
futuro.
Em resposta a estas e a outras questões – sobretudo à questão da
Saudade –, retorque-lhe Pascoaes ainda no mesmo número d’A Águia.
A esse respeito, estipula, então, que a saudade é entendida como “um
sentimento-síntese, um sentimento-símbolo, resultante da fusão
harmoniosa dos dois princípios do Universo e da Vida que, desde a
Origem, se degladiam: Espírito e Matéria, Desejo e Lembrança, Dor e
Alegria, Treva e Luz, Vida e Morte”18. Ou seja, é um sentimento que
está voltado para o Futuro19. Neste sentido, deve essa saudade rever-se

16 Ibidem, p. 99.
17 Ibidem, p. 99.
18 PASCOAES, Teixeira de. “Os meus comentários às duas cartas de António

Sérgio”. A Águia. Porto, 2.ª série , vol. IV, n.º 22, Outubro de 1913, p. 104.
19 Ibidem, p. 104: “Quanto à opinião dos estrangeiros citados, de que em outras

línguas há palavras que traduzem a Saudade, posso apresentar-lhe outras opiniões


em contrário não menos ilustres, como as de Duarte Nunes, Garrett, Ribera i
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 115

e converter-se na consciência poético-filosófica em que consiste a


saudade de um Camões, de um Bernardim e das evocações das suas
gentes: “A Saudade é nossa, como Apolo é da Grécia, e Jeová da
Palestina” 20 exclama, por fim, Pascoaes na despedida da corres-
pondência datada de 17 de Setembro de 1913.
A esta altura da troca de missivas, as divergências impunham-se
necessariamente e os dois protagonistas já não sabiam muito bem
conviver com elas21. Por mais que o autor de A Arte de Ser Português
elogie António Sérgio, chegando até a pedir-lhe que continue a
escrever para A Águia, o certo é que Pascoaes se sente melindrado,
tendo provavelmente necessidade de lhe revidar as provocações22. Por
essa razão, profere que o seu amigo “é uma vítima simpática das

Rovira, Miguel de Unamuno, etc. De resto, eu sei lá o sentido íntimo dessas palavras
arrevesadas, doru, sknad, savn, saknaor, etc.!!! Eu não sei, nem o meu caro amigo!
George Marsh gostou da Saudade e quis presentear com ela os seus irmãos do
norte...”
20 Ibidem, p. 109.
21 SÉRGIO, António. “Regeneração e tradição, moral e economia”. A Águia. 2.ª

série, vol. V, 1914, pp. 1-9: “Já sabia, meu amigo, que era infinita a distância entre
um poeta amabilíssimo (divino salgueiro que se debruça nas águas lentas do puro
sonho) e um voluntarista-intelectualista, esculpido à custa de machadada num
tronco já seco da antiga Helénia; entre um romântico e um clássico; entre um
elegíaco lusitano da escola de Bernardim, que vai encher um cântaro puro à bica
cantante do Amor-Saudade, e um aluno de Albion e da Germânia, admirador de
Antero e de Herculano, todo atascado, como bem crê, no carvão de pedra da suja
Europa; entre um sedentário, finalmente, que se tornou bardo dum cantinho da
doce terra portuguesa, e uma alma bronca de cosmopolita, de vida arquejante e por
vezes ríspida, operário de uma faina que com dor se eleva, pioneiro forçado da larga
Terra, marujo do oceano que não tem fim... ¶ Mas a diferença (o seu artigo mo
demonstra) é maior e mais profunda. Não somos dois homens muito diferentes:
somos substâncias incomunicáveis; somos, pelo menos, duas espécies diversíssimas;
somos como um Rouxinol e como um Peixe. – V. é o rouxinol e eu o peixe”.
22 PASCOAES, Teixeira de. “Mais palavras ao Homem da Espada de Pau”. A Águia.

Porto. Vol. VI, 2.ª série, n.º 31, Julho de 1914: “Mais que para discutir, eu nasci
para afirmar. Nem as grandes verdades se discutem: afirmam-se! ¶ Aqui, tem, meu
amigo, a atitude de um ignorante ao pé de um sábio. É nessa atitude que eu desejo
conservar-me, assim como desejo vê-lo a si, na sua mesa de trabalho, bloqueado de
calhamaços, olhando gravemente por cima dos óculos... ¶ Eu não sou o rouxinol
nem o arcanjo de que fala, o seu sorriso... amável. Mas o meu caro amigo é, com
certeza, o mocho, o mocho da ciência”.
116 ROMANA VALENTE PINHO

Cartas Constitucionais, dos eléctricos, do underground furando, num


delírio, o subsolo de Londres, do vapor, do bico auer, e oxalá o não
seja da aviação aérea!”23. O ensaísta indigna-se e publica que, da
mesma forma, Joaquim Teixeira de Pascoaes é também uma vítima
do ambiente social português e do horrível isolamento que, desde há
muito tempo, tem vindo a encarcerar o país.
Relacionadas à temática da saudade, aparecem, no debate entre
Sérgio e Pascoaes, outras questões como a dicotomia progresso moral
/ progresso económico e a relação, no tempo e na história, entre o
passado e o presente e que se revelam fulcrais para a compreensão do
conflito cultural que se estabeleceu entre ambos. Lançando a mão aos
seus mestres Alexandre Herculano e Antero de Quental, o ensaísta
defende que o futuro e a regeneração do país se dinamizam e concre-
tizam por meio do domínio do Presente. Não é através do culto do
Passado (este vem, apenas, a reboque do Presente), evocando saudo-
sismos e Bandarras, que a humanidade progride e as pátrias se reabi-
litam. Do mesmo modo, crê António Sérgio que o progresso moral de
um povo está dependente do seu progresso económico.
Teixeira de Pascoaes alerta o seu dialogador para ter cuidado
com as imitações, para não se deixar deslumbrar com a grandeza dos
outros povos, até porque, na sua concepção, Portugal tem condições
de criar a sua própria cultura, sem precisar reproduzir os modelos de
fora. Pode até importar o que lhe falta a nível agrícola, industrial e
científico (o corpo de uma civilização, como lhe chama), mas não
deverá turvar o que lhe é mais próprio, a sua alma, com influências
exteriores. É por esse motivo que, diversamente de Sérgio, defende
que é o progresso espiritual e moral de um povo que origina o seu pro-
gresso económico. Por fim, quer “Portugal rico de pão e de espírito, um
Portugal consciente e acreditando num belo destino a cumprir”24. Aos
olhos do poeta amarantino, tal proposta só poderá ser alcançada se os
portugueses tiverem em conta a filosofia da saudade (o saudosismo é
invulnerável, “invulnerável e incombustível”25, assim como escreve ao

23 Idem. “Resposta a António Sérgio”. A Águia. Vol. V, 2.ª série, n.º 26, Fevereiro de
1914, p. 37.
24 Ibidem, p. 38.
25 Ibidem, p. 35.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 117

seu principal interlocutor de 1914) e se se mantiverem longe dos


domínios do materialismo e do positivismo. Correntes das quais,
segundo o que pensa e lastima, Sérgio se aproximou inconsequen-
temente: “É com idênticas palavras que os indivíduos que fazem
profissão de prosa, nesta vida, pretendem lapidar os outros de mais
vastos e fundos desejos, inconformáveis com um mundo asfixiado
entre as quatro paredes sem buracos do Positivismo. ¶ É com tristeza,
meu caro amigo, que o vejo tomar essa atitude, hirta e deserta,
perante a Vida. ¶ Eu sei que a Vida é restrita ou vasta, conforme os
olhos que a contemplam. Ela obedece ao nosso poder de visão. Há
pessoas que lhe apreendem apenas a forma carnal; há outras que
atingem a sua expressão espiritual e eterna. Com as primeiras não se
pode discutir. São criaturas no sentido restrito da palavra, enclausu-
radas, mortas dentro das suas próprias ideias sem alcance. Meteram-
-lhe em cabeça que o Mundo é só feito de pedra... e ei-las, para todo o
sempre, empedernidas! Que lástima!”26
Não cremos que Pascoaes acreditasse piamente na veracidade
de tais palavras. Ele conhecia o pensamento de Sérgio e sabia que o
mesmo não partilhava nem de ideais positivistas nem de teorias mate-
rialistas. Escreveu-as provavelmente motivado pelo sentimento de
afrontação e pelo prazer da controvérsia. No entanto, o seu antago-
nista não lhe perdoa o insulto e responde-lhe acaloradamente – “É o
primeiro a sua concepção simplista, poeticamente ingénua, de que
pretendo limitar a Realidade a quatro palmos de matéria bruta, a
eternidade duma alma às horas do almoço, e o mundo, o vasto
mundo, finalmente –, a um restaurante! Sancta simplicitas! Porque,
afinal de contas, sou um pouco mais do que uma besta: com maior
justeza falou de mim quando me chamou «modernista» (...) e que, por
derradeiro, eu nada tenho a ver com o positivismo, com a demagogia
(raios a levem) e creio que também com a «moral burguesa»” 27 .
Decerto por julgar que não havia já possibilidade de conciliação
intelectual com o seu camarada da Renascença Portuguesa, Sérgio esti-
pula, enfim, os caminhos a que levam as propostas de cada um: o seu

26Ibidem, p. 38.
27SÉRGIO, António. “Despedida de Julieta”. A Águia. Vol. 5, 2.ª série, n.º 28, Abril
de 1914, p. 109.
118 ROMANA VALENTE PINHO

caminho leva “à independência, às profissões usuais, ao desejo de uma


pátria forte, digna, moderna e sábia, ao culto da acção criadora e das
ideias sólidas” 28 ; o caminho de Pascoaes leva a Coimbra, à boa
retórica, ao curso jurídico, a São Bento.
Eterna poderia ser a discussão de Sérgio e de Pascoaes se o
primeiro tivesse replicado o artigo que o saudosista publicou n’A Águia,
em Julho de 1914, intitulado Mais Palavras ao Homem da Espada de Pau.
Mas o ensaísta não o fez e o que ficou assente dessa última resposta do
conflito foi que Pascoaes se sentiu ridicularizado pelo seu confrade e
que os principais temas tratados durante dez meses incidiram essen-
cialmente sobre o saudosismo e a educação portuguesa. Perante isso, o
que teria António Sérgio ainda mais para revidar, se cada argumento
já havia sido discutido incomensuravelmente e se ele já tinha plena
ciência do que pensava Pascoaes acerca da saudade, do isolamento e
do curso da História? Para ele, aquela polémica cumpria-se por ali.
Há evidentemente outras questiúnculas tratadas no processo de
tal discussão que não foram referidas aqui (uma delas, por exemplo, é
a concepção que cada um tem da História de Portugal), contudo, os
aspectos que explorámos mostram-se suficientes para caracterizarmos
a índole e o alcance do conflito. Antípodas no que diz respeito à
questão da modernidade, há que referir igualmente os acertos e os
desacertos de cada um nesse ponto. Se era compreensível a atitude de
quem, como o António Sérgio, sobretudo depois da Implantação da
República, anelava ardentemente a mudança de Portugal – impunha-
-se-lhe uma pátria moderna, contemporânea dos países europeus mais
desenvolvidos, favorável a sistemas educativo-culturais inovadores –,
por outro lado, a postura de Teixeira de Pascoaes não era tão
aberrante como Sérgio a queria caracterizar. Perante os perigos de
uma industrialização excessiva e injusta (tal como a 1.ª Guerra
Mundial acabaria por denunciar), o director d’ A Águia apelava, afinal
de contas, para o benefício de se edenizar a humanidade e de se
valorizar o sentimento nacional. Nesta leitura, o defeito de Sérgio foi a
inconsequência e o de Pascoaes foi a ingenuidade. Qualificaram-nos,
todavia, respectivamente, o desejo do progresso e da transformação e
a consideração do Homem e da sua essencialidade. Por um instante,

28 Ibidem, p. 109.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 119

os objectivos de ambos parecem confundir-se, cruzar-se, envolver-se,


qual o abraço de amizade que antes os reunia29. Por um momento,
longe das dicotomias e das diferenças abismais entre modernidade e
anti-modernidade, foram dois confrades que estavam com os olhos
postos no melhor porvir de Portugal.
Poder-se-á acrescentar ainda que a polémica em torno do
saudosismo em que Sérgio e Pascoaes se deblateraram, não impediu
que o ensaísta continuasse a escrever n’A Águia e que continuasse a
colaborar com a Renascença Portuguesa. É disso exemplo a iniciativa da
Biblioteca de Educação e os projectos editoriais que realizou, em
comum com Álvaro Pinto, em terras brasileiras. Contudo, temos
noção de que o seu fervor e impulso iniciais são alquebrados pela
tensão com Teixeira de Pascoaes e com o grupo do Porto. Não fossem
tais divergências tão acentuadas, Sérgio teria continuado a usar A
Águia como tribuna para a propagação da sua Reforma da Menta-
lidade. Ainda assim, Sérgio reconhece, em 1955 (vinte anos depois de
se ter envolvido polemicamente com o seu amigo Álvaro Pinto a
propósito da sua intervenção no movimento da Renascença), que o
seu trabalho não foi de pouca monta no que diz respeito ao após-
tolado cívico: “Entrando, pois, para a «Renascença Portuguesa», pro-
punha-me trabalhar pela minha ideia: a de dar às novas instituições

Idem. Homenagem a Teixeira de Pascoaes. In: AA.VV. A Teixeira de Pascoaes:


29

Homenagem da Academia de Coimbra. Imprensa Figueira da Foz, 1951:


“«As pessoas são nada, e as coisas tudo»:
Ah, se o pensaste assim, e se o disseste,
É que, infundindo-lhe alma, às coisas deste
Um coração represo, arfante e mudo!
O penumbroso monte, o tronco rudo,
Vivem na névoa humana em que o puseste;
Tornaste irmão ansioso o vento agreste
E carinhosa a relva em seu veludo.
Bendito o canto teu, porque desperta
Essa visão de uma alma já liberta
Das cadeias da luta e da miséria,
E ao Paraíso ao cabo regressada,
- Porque viu, ao fulgor da Vida Etérea,
Que as pessoas são tudo, e as coisas nada!”
120 ROMANA VALENTE PINHO

do País um bom conteúdo de reformação positiva, de carácter edu-


cativo e económico-social, substituindo o republicanismo emocional e
romântico (instintivo, exteriorista, e de expansão, ou centrífugo) por uma
boa democracia, reformadora e concreta”30.
Se Teixeira de Pascoaes é considerado a alma do movimento da
Renascença Portuguesa, Álvaro Pinto pode ser tido como o seu corpo,
ou melhor, a sua substância. Sem o seu sentido de organização e de
dinamização cultural, tal movimento jamais se teria imposto e obtido
o sucesso que obteve. Mas Álvaro Pinto foi mais do que um
incentivador cultural, foi igualmente um exímio editor, um libertário e
um republicano. Nesses contextos, fundou, ao lado de Claúdio Basto,
Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra, a revista Nova Silva (1907);
participou, quer como redactor, quer como director, quer como
fundador, de grande parte da imprensa portuense do início do século
XX; ajudou a fundar a revista A Águia, em 1910, da qual foi também
director, editor e administrador; difundiu, no Brasil, o trabalho da
Renascença Portuguesa; criou no, Rio de Janeiro, ao lado de António
Sérgio, a editora Anuário do Brasil; fundou, ao lado do poeta Tasso da
Silveira, a revista de arte e pensamento Terra de Sol; e lançou, aquando
do seu regresso a Portugal, a revista Ocidente (1938) e a Revista Portugal
(1942).
A entrevista que António Sérgio dá ao Suplemento Literário do
Diário de Lisboa, a 5 de Abril de 1935, a propósito da literatura
portuguesa contemporânea, cujo título dado pelo periódico é António
Sérgio num brilhante depoimento afirma que «Presença» é um factor importante da
literatura do futuro, é o mote para que recordemos aqui não só a relação
entre o homem dos Ensaios e Álvaro Pinto mas também a verdadeira
colaboração de Sérgio na Renascença Portuguesa. Desse modo,
citamos o fragmento da entrevista de António Sérgio que dá azo a
uma micro-polémica e encoleriza Álvaro Pinto: “[A Renascença
Portuguesa] Foi coisa efémera, porque surgiu nela, logo de início, a
pretensão a igreja literária, com a ingénua dogmática do saudosismo, e
porque desprezou a vertebralidade. Os que não acatámos aquela

30 Idem, Sobre a minha colaboração na obra da “Renascença Portuguesa”, p. 118.


ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 121

dogmática desprendemo-nos logo da «Renascença», e formámos mais


tarde a «Seara Nova», depois da tentativa da «Pela Grei»”31.
Álvaro Pinto, que ainda estava no Brasil quando teve acesso a
tal entrevista, mostra-se indignado com as palavras do seu amigo mas
só as contesta cerca de dois meses depois, quando já estava novamente
instalado em Lisboa. A 15 de Junho, num título que o Diário de
Lisboa dá como “Em resposta a uma entrevista: Qual o papel da
revista ‘Águia’ na literatura portuguesa”, Álvaro Pinto afirma que
“não foi efémera nem pretendeu jamais reduzir-se a uma insigni-
ficante igreja literária a obra da «Renascença». A ingénua dogmática
do «saudosismo», a que o sr. António Sérgio quis reduzir a «Renas-
cença» não foi nem princípio de programa, nem meio, nem fim. E
tanta liberdade teve Teixeira de Pascoais para apresentar e exaltar o
«saudosismo», como o sr. António Sérgio para o atacar em todos os
tons, como Fernando Pessoa para vaticinar o advento dum supra-
-Camões, Vila-Moura para defender o Estado artista, ou Teixeira
Rego e Afonso Cordeiro para exporem as doutrinas que quiseram
sobre sacrifícios, ritos, climas e línguas”32. Mas diz mais, “a «Renas-
cença» procurou ligar inteligências e vontades e realizar tudo o que
poderia realizar, criando as secções necessárias para a execução do
seu programa, dentro de uma vertebralidade, que nem a política, nem
as paixões partidárias nem a sede de governo conseguiriam inquinar.
¶ Ideias novas, princípios transcendentes – não surgem das sociedades
mas sim das pessoas. (...) O Sr. António Sérgio foi inexacto e injusto
com a «Renascença» que, apesar de esfacelada há muito, ainda hoje
contribui com cem (100) obras para as 240 que são anunciadas no
catálogo da «Seara Nova»...”33.
Antes de nos debruçarmos sobre a resposta que António Sérgio
dá a este desmentido de Álvaro Pinto, convém dizer que a reacção do
jornalista nos pareceu excessiva tendo em conta o conteúdo e o tom
que Sérgio usa na entrevista. Ao contrário de alguns textos mais

31 Idem. António Sérgio num brilhante depoimento afirma que «Presença» é um


factor importante da literatura do futuro. Diário de Lisboa. Suplemento Literário do
dia 5/04/1935, ano 14, n.º 4446, p. 7.
32 PINTO, Álvaro. Em resposta a uma entrevista: Qual o papel da revista ‘Águia’ na

literatura portuguesa”. Diário de Lisboa. 15/06/1935, ano 15, n.º 4516, p. 5.


33 Ibidem, p. 5.
122 ROMANA VALENTE PINHO

frontais, imediatos e explosivos do seareiro, é esta entrevista uma


abordagem serena, elogiosa e mediadora, que não merecia um ataque
tão franco, afinal, tece Sérgio enormes considerações a todos aqueles
que participaram do movimento da Renascença Portuguesa – de
Sant’Anna Dionísio, José Marinho, Adolfo Casais Monteiro, Delfim
Santos34 a Fernando Pessoa (é curioso que esta entrevista é um dos
casos raros em que Sérgio elogia o poeta da Mensagem: “(...) Fernando
Pessoa, tão atraente e subtil escritor” 35 ). Para além de tudo isto,
Álvaro Pinto conhecia o seu amigo muito bem e sabia, com certeza,
que ele se estava a referir à Renascença Portuguesa enquanto doutrina
e não enquanto movimento cultural. Nenhuma dessas afirmações era
nova para Álvaro Pinto. Antes mesmo da polémica em torno do
saudosismo se tornar pública nas páginas do órgão da Renascença
Portuguesa, Sérgio já lhe havia dito, no início de 1913, que não lhe
agradava o espírito de compadrio e elogio mútuo que se vivia no seio
de A Águia.
Depois de se confrontar com tal resposta de Álvaro Pinto,
António Sérgio publica um esclarecimento nas páginas do Diário de
Lisboa do dia 29 de Junho de 1935, acentuando essencialmente que
“não como tentativa de doutrina comum (como eu a encarei) mas
como organismo de edições e conferências, de divulgação de escritores
de variada índole, de assistência e incentivo à actividade da escrita – a
Renascença constituiu, no seu género, a iniciativa mais relevante da
nossa terra. E, para obedecer ao meu gosto da justiça pura, objectiva,

34 SÉRGIO, António, António Sérgio num brilhante depoimento afirma que «Presença» é um
factor importante da literatura do futuro, p. 7: “Quando de todo se libertarem da moda
efémera, dar-nos-ão provas de maior amplidão um Sant’Anna Dionísio, um
Marinho, um Régio (que também é crítico), um Casais Monteiro, um Gaspar
Simões, um Delfim Santos. Duas palestrazinhas com José Marinho deixaram-me as
mais gratas das impressões...”. Contudo, quem ele mais plenamente elogia é José
Régio, Agostinho da Silva, Castelo Branco Chaves e José Rodrigues Miguéis:
“[Castelo Branco Chaves] salienta-se por um belo equilíbrio, pela solidez do espírito,
pela segurança do juízo no acentuar o básico, o essencial. Agostinho da Silva tem
uma prosa perfeita, luminosa, harmónica, onde se aliam de maneira esplêndida o
saber robusto e a imaginação, a inteligência lúcida e a paixão contida. Rodrigues
Miguéis é um espírito rico, variado, insinuante, fino, e o mais admirável dos
oradores que jamais ouvi na nossa língua...” (Ibidem, p. 7).
35Ibidem, p. 7.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 123

alta, alheia a ridículos pessoalismos, acrescentarei uma observação: e é


que essa parte admirável da obra da Renascença foi quase exclusi-
vamente de Álvaro Pinto – e que a ele, por consequência, é que cabe
na Renascença toda a glória. Como doutrina, a Renascença quase não
existiu; como organização realizada por Álvaro Pinto, existiu e foi
formidável”36.
Mas o jornalista não se satisfaz com estas palavras e retorque
novamente a Sérgio: “O sr. António Sérgio, considerando-me quase
brasileiro, dada a longa ausência em terras de além-mar, quis tratar-
-me como hóspede, excedendo-se em requintes de gentileza. ¶ (...) Eu
reparei muito bem que o autor dos Ensaios se referia à doutrina e
fiquei logo esperando que sua resposta incidiria nesse ponto. Mas, se
nas pessoas eu nunca pude distinguir duas ou mais personalidades
como as conveniências muitas vezes mandam distinguir, nunca pude
considerar igualmente a Renascença como entidade que sob um aspecto
fosse magnífica e sob outro pudesse tratar-se de igrejinha submissa a
qualquer dogmática, sem grandeza nem vertebralidade”37.
Se entre os meses de Abril e Julho de 1935, os ânimos entre
António Sérgio e Álvaro Pinto andavam levemente alterados, a
verdade é que os dois já se conheciam há muito tempo (pelo menos
desde 1911), eram amigos e haviam partilhado projectos comuns.
Afinal, foi Álvaro Pinto (bem como Jaime Cortesão e Raul Proença, é
certo) que o convidou a fazer parte da assembleia de Lisboa da qual
sairia a Renascença Portuguesa e foi também ele que sempre acolheu
todas as iniciativas de Sérgio no seio desse agrupamento (veja-se o
caso da Biblioteca de Educação). A relação entre os dois sempre foi,
portanto, profícua, tanto em Portugal quanto no Brasil, quando
ambos emigraram depois do fim da 1.ª Guerra. No Rio de Janeiro,
haveriam ambos de fundar a sociedade Sérgio & Pinto que daria
expressão à editora Anuário do Brasil. Os dois sócios haviam, pois,
adquirido a tipografia de Manuel José da Silva (sogro de António
Sérgio), ligada às publicações Laemmert, e investido na edição de

36 Idem. “A influência da Águia no movimento literário português”. Diário de Lisboa.


29/06/1935 ano 15, n.º 4530, p. 4.
37 Idem. “A Renascença Portuguesa como corrente doutrinal e como organização

editora”. Seara Nova. Lisboa. N.º 443, ano XIV, 11 de Julho de 1935, p. 174 (trecho
citado de Álvaro Pinto).
124 ROMANA VALENTE PINHO

autores portugueses e brasileiros, para além de, evidentemente, dar


representatividade à Renascença Portuguesa em terras de Brasil.
Ora, a polémica em torno do saudosismo em que Sérgio e
Pascoaes se deblateram, não afectará a amizade que existia entre
Álvaro Pinto e o autor Da Natureza da Afecção, já que, em 1915,
António Sérgio dedica o livro Educação Cívica (colectânea de textos
publicados na revista A Águia durantes os primeiros anos da década de
10), ao seu amigo editor e continuam a trabalhar em conjunto. Sérgio
permanece, aliás, como sabemos, colaborador d’ A Águia e de alguns
projectos da Renascença Portuguesa. Não fosse o desentendimento ideo-
lógico com o poeta do Marão, Sérgio teria permanecido mais assídua-
mente quer n’A Águia quer no movimento da Renascença Portuguesa.
Cremos até que o ensaísta estava convicto de que a sua colaboração
foi real, concreta e objectiva na medida em que ajudou a promover,
por meio de iniciativas sócio-culturais e educativo-pedagógicas38, uma
verdadeira reformação na sociedade portuguesa, independentemente
de determinados cânones e estéticas. No fundo, é isso que pretende
expressar quer quando se envolve na pequena polémica, em 1935,
com Álvaro Pinto quer quando escreve, em tom de recordação e
desabafo, o artigo Sobre a minha colaboração na obra da “Renascença
Portuguesa”, em 1955, para a revista Portucale. Deste modo, poderemos
defender que a Renascença Portuguesa é, para António Sérgio, pratica-
mente o primeiro meio para propagar o projecto reformativo que
tinha em mente desde 1910, já que a direcção literária da revista
Serões, por ter sido tão curta (durou apenas de Janeiro a Dezembro de
1911 – António Sérgio passa a assinar a direcção literária da revista
no número 67 e a sua colaboração estende-se até Dezembro desse
ano, quando a publicação chega ao fim, no entanto, não se lhe
conhece nenhuma colaboração assinada), não lhe permitiu desen-
volver os seus propósitos. Neste sentido, o primeiro palanque que

38 Idem, Sobre a minha colaboração na obra da “Renascença Portuguesa”, p. 119: “Fazer


conhecer à gente portuguesa os novos processos de educação infantil baseados na
livre iniciativa mental, e portanto no dom de auto-domínio da psique, indispensável
à prática de uma democracia genuína: e pedi à minha Mulher, em consequência
disso, que escrevesse um livro de divulgação pedagógica a explicar O Método
Montessori (completamente desconhecido em Portugal), o qual prefaciei e anotei, para
ser editado pela «Renascença»”.
ANTÓNIO SÉRGIO E OS CONFLITOS CULTURAIS COM TEIXEIRA DE PASCOAES E ÁLVARO PINTO 125

Sérgio usou para difundir a sua Reforma da Mentalidade – que


começará a ganhar uma expressão maior com o seu comando na
revista Pela Grei39 (1918/1919) e que atingirá o seu apogeu, a partir de
Abril de 1923, na revista Seara Nova, quando assume um dos lugares
do corpo directivo e se torna o seu maior divulgador – foi A Águia e o
movimento da Renascença Portuguesa. Sempre, verdade seja dita,
auxiliado e escudado pelo seu amigo Álvaro Pinto que, não obstante
os leves desentendimentos que aqui levantámos, sempre teve em alta
consideração: “V. [escreveu António Sérgio a Álvaro Pinto] é um
homem 300 vezes admirável! Pela sua frase «podemos fazer imenso»
elevei-lhe uma estátua no meu espírito!”40.

39 A revista Pela Grei, dirigida por António Sérgio, entre 1918 e 1919, era o órgão da
Liga de Acção Nacional (que tinha sido fundada em Fevereiro de 1918) e tinha
como subtítulo “Revista para o Ressurgimento Nacional pela Formação e Inter-
venção de uma Política Consciente”. Os principais articulistas eram: António Sérgio,
Ezequiel de Campos, Francisco Reis Santos, Raul Proença, A. Reis Machado (este
era também o secretário da revista), Pedro José da Cunha, Francisco da Silva Teles
e Constantino José dos Santos. No primeiro número da revista, Sérgio escrevia
assim: “Pela Grei, quer dizer: pela Nação, pelo Povo, pela Comunidade portuguesa;
a Grei não é só a colecção, ou uma colecção de indivíduos que falam a nossa língua
e vivem sob o governo do Estado português, na metrópole e fora dela, desde Macau
ao Brasil e desde Timor às Sandwich; a Grei é sobretudo essa grande família
quando considerada no aspecto moral que faz dela um todo, com sentimentos,
ideias e aspirações comuns; é até a consciência social de cada um dos seus indivíduos,
na medida em que ele sente o bem e o mal da comunidade, se regozija com as suas
venturas, se indigna contra os vícios e contra os erros causadores das suas desgraças,
e é um representante e um porta-voz sincero dessas ideias, desejos, sentimentos,
aspirações. (...) Trabalhar pois pela Grei é trabalhar pela consciência de comunidade
e pelo interesse da comunidade, e, subsidiariamente, contra todos os sentimentos e
acções que traem o interesse da comunidade; trabalhar pela Grei é trabalhar por
nós próprios, visto que as ideias, os desejos e os sentimentos sociais são uma parte
integrante da consciência do indivíduo, e que a sua vida está dependente, no
material e no moral, de todas as manifestações e alternativas da grei a que pertence;
trabalhar pela Grei é trabalhar pelo Povo, na acepção espiritual e compreensiva
desta palavra, em que nos incluímos todos nós” (SÉRGIO, António. Do intuito e
natureza desta Revista. Pela Grei. Revista para o Ressurgimento Nacional pela
Formação e Intervenção de uma Política Consciente. N.º 1, Lisboa: Oficina do
Anuário Comercial, 1918, pp. 1-2).
40 SÉRGIO, António, Cartas de António Sérgio a Álvaro Pinto (1911-1919), p. 32.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO
DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA

João Príncipe
UNIVERSIDADE DE ÉVORA – CEHFCI

0. Introdução

Neste estudo valorizaremos as conexões entre o ideário filo-


sófico, ideológico e a historiografia de António Sérgio.1 A Reforma
económica e mental de Portugal foi o problema maior que o advento
da República fez o jovem Sérgio, de início dirigido para a poesia e a
filosofia, colocar-se. A sua acção cívica e cultural almejou à com-
preensão dos problemas nacionais, na dupla vertente sócio-económica
e mental-pedagógica, propondo soluções concretas, para cuja rea-
lização tentou, junto com outros companheiros, na Renascença

1 Abreviaturas e convenções: AS – António Sérgio; RP – Renascença Portuguesa;


SN – Seara Nova; JD – John Dewey; E. – Ensaios de AS. Para citar uso, quando
existem, as edições modernas; editadas pela Livraria Sá da Costa Editora (Lisboa)
nos anos de 1970, é o caso de: (1971-1974) Ensaios 8 tomos, (1972) Breve interpretação
da história de Portugal, (1974) Democracia ; outros textos, em dois volumes de edição
INCM (Lisboa), colecção Pensamento Português: AS (2001) Notas sobre Antero, Cartas
de Problemática e outros textos filosóficos, com prefácio de António Pedro Mesquita; AS
(2008) Ensaios sobre educação, com prefácio de Manuel Ferreira Patrício. Recorde-se
que os Ensaios Tomo I, são edição de Editores Annuario do Brasil – Rio de Janeiro,
Renascença Portuguesa – Porto, p. 113-162 e que os tomos II, III, IV e V, são
editados pela SN.
Este texto beneficiou da leitura atenta e comentários de Hermínio Martins, a quem
agradeço.
128 JOÃO PRÍNCIPE

Portuguesa e depois na Seara Nova (para destacar os dois principais


movimentos cívico-intelectuais que integrou), criar e mobilizar uma
elite formadora de uma opinião pública esclarecida, dotada de espírito
crítico e democrático, sensível aos valores de um humanismo cien-
tífico, da autonomia da pessoa humana e de um socialismo libertário,
capaz de ultrapassar o espectrismo secular e de abrir um horizonte
onde a reforma das mentalidades nos devolve, no limite, a nossa
condição de elevação ao puro Espírito, a um estado cuja limite é a
beatitude espinosiana.2
O foco vai centrar-se na vertente pragmatista do seu ideário o
que dá naturalidade à ligação com a parte ‘aplicada’ do seu pensa-
mento, a sua historiografia sociológica (decerto o aspecto mais original
do seu pensamento, até por trazer ligado o vasto feixe dos restantes
aspectos), onde os condicionamentos geográfico e sócio-económicos,
internos e externos (que inserem Portugal na História Universal) inte-
ragem decisivamente com a mentalidade. Para AS foi a tendência
dominante da nossa história pós-navegações (senão mesmo pós Pri-
meira Dinastia) – a do parasitismo associado ao exclusivo domínio da
Política de Transporte, acompanhada, com a Contra-Reforma, de
uma tendência isolacionista e desprezadora do humanismo científico
de feição cosmopolita – que conduziu à decadência nacional; AS colo-
cou-se do lado dos defensores de uma concomitante Política de
Fixação, advogando o cosmopolitismo e estrangeiramento das elites.
Os seus ensaios são marcados por uma concisão extrema, nos antí-
podas do expansionismo romântico; esse dogma metodológico, que se
auto-impôs, foi servido por uma prosa de estilo ímpar que, ao vincar
teses maiores, esconde uma criatividade ancorada em leituras e
análises profundas e detalhadas de autores portugueses e estrangeiros,
pretéritos e seus contemporâneos, cuja investigação permite a inserção
numa constelação cosmopolita de nomes maiores, entre os quais será
lícito ver o seu figurar.

2Ver (1916) “Espectros”, Atlântida – Mensário artístico literário e social para


Portugal e Brasil. Directores: João do Rio e João de Barros, Nº 11, p. 1052-1067; in
E. I, p. 169-187.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 129

1. Filosofia

1.1 Iniciação filosófica


O ponto de partida é, à uma, científico e literário – meditação
do significado da geometria analítica e interesse pela vida e obra de
Antero, tema da sua primeira obra filosófica. AS, recordando a juven-
tude, afirmou em 1915: “Eu gostava muito da matemática, conside-
rava muito belos os encadeamentos dos teoremas e sonhava com uma
matemática universal. Divertia-me dar forma de encadeamento geo-
métrico a tudo o que conhecia, e mais tarde (18 anos) fiquei deslum-
brado ao folhear pela primeira vez a Ética de Spinosa”. Após um ano
de estudos preparatórios na Escola Politécnica faz o curso da Escola
Naval (entre os 19 e 21 anos) – “ao gosto pela matemática sucedeu o
da filosofia, da literatura e da arte…entre os 19 e os 26 eu li sem
método Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant, Schopenhauer,
Comte, Taine, Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”3.
Em 1908 e 1909 vê publicados os seus primeiros textos, um
volume de Rimas e um ensaio sobre o nosso grande poeta filósofo
Antero de Quental, Notas sobre os sonetos e as tendencias geraes da philosophia
de Anthero de Quental; AS analisa as angústias filosóficas de Antero,
demarcando-se do naturalismo cientista, positivista, do médico Sousa
Martins que na sua Nosografia vê Antero como um degenerado
hereditário e superior, na tradição de Lombroso, o autor de Genio e
degenerazione. 4 Aí AS faz uma digressão pela história da filosofia
3 AS (1990) Autobiografia de A. S. escrita em 1915, compilada e anotada por Daniel
Hameline e António Nóvoa, Revista Critica de Ciências Sociais, Nº 29, Fevereiro de
1990, p. 141-174. Ver PRÍNCIPE, JOÃO (2004) Razão e Ciência em António Sérgio,
Lisboa: Colecção Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, § 0.
4 As críticas dos racionalistas franceses do fim do século XIX, ao evolucionismo e ao

positivismo inspiraram AS: “Quer para o positivismo, quer para o evolucionismo, o


pensamento humano está de algum modo ligado às formas sociais, sendo o seu
reflexo…. Renouvier, opôs à ordem de continuidade e de variação estrita,
postuladas pelo evolucionismo, a possibilidade de começos absolutos. Lachelier
submeteu a uma crítica profunda os processos lógicos nos quais se baseiam as
generalizações de Comte e de Spencer. Fouillée, que apelidaram de ‘positivista
platónico’, elaborou uma teoria das ‘ideias-forças’, que realça a função do indivíduo
na história e estima que este sendo capaz, em certas circunstâncias favoráveis, de
modificar o meio social e mesmo de criar um meio novo, a consequência é que não
130 JOÃO PRÍNCIPE

moderna, de Descartes a Hegel e Schopenhauer, sendo dada especial


atenção a Kant e ao problema do conhecimento. No que toca à Ética,
AS inpira-se de Jean-Marie Guyau (1855-1888), para o qual “a vida
envolve, na sua intensidade individual, um princípio de expansão, de
fecundidade, numa palavra de generosidade”.5 Para AS o altruísmo é
uma tendência básica, sendo o princípio darwinista do ‘struggle for
life’ uma generalização abusiva do biológico para o moral.
Alfred Fouillée (1838-1912), grande amigo de Guyau, foi lido
empaticamente pelo jovem AS. Professor na École Normale
Supérieure, o autor de Platon (1869), L’évolutionnisme des idées-forces
(1890) e do Psychologie des idées-forces (1893), opôs-se ao positivismo e
defendeu a metafísica; rejeitou o dualismo entre fenómeno e númeno
(no que se aproximou de Fichte). Em Le Mouvement idéaliste et la réaction
contre la science positive (1895), escreveu: “O valor da ciência implica
duas condições: a realidade das relações que ela estabelece e a reali-
dade dos termos entre os quais elas se estabelecem”; se a psicologia
percebe os termos reais que são os estados de consciência “as ciências
físicas podem se contentar com o acesso apenas às relações sem terem
que se preocupar com a natureza dos termos em si, pois que a estes só
acedemos indirectamente através dos dados das sensações”. AS, em
consonância com Fouillée e com Renouvier, escreveu:

A única coisa conhecida em si é o estado actual de cons-


ciência.... Fantasiemos que o fundo e completo conhecimento
fosse o dos termos e das relações: é impossível. Mais ainda: essas
relações, na ciência, são estabelecidas, não entre as coisas que
são em si, mas entre as representações mentais que lhes corres-
pondem, entre os nossos factos de consciência que se lhes refe-

se pode sustentar seriamente que a história seja governada por leis inelutáveis. Este
ponto de vista é também o de Guyau: ‘o génio, diz ele, modifica portanto o meio
social e intelectual pré-existente. Ele não é pura e simplesmente produto desse
meio’”, BOUTHOUL, GASTON (1946) Traité de Sociologie, Paris: Payot, p. 65.
5 Palavras de Fouillée, citado de BEAUCOUDRAY, ELISABETH GANNE DE

(1936) La psychologie et la métaphysique des idées-forces chez Alfred Fouillée, Paris : Vrin, p. 83.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 131

rem, não sendo as coisas apreendidas senão como funções umas


das outras. Diremos por isso que o saber é relativo.6

No La pensée et les nouvelles écoles anti-intellectualistes (1911), lê-se “o


pensamento foi feito primitivamente, não para especular, mas para
agir, sendo a própria especulação uma ‘acção superior’ que tende a se
prolongar em todas as acções conexas”; a psicologia não se pode
restringir ao ponto de vista da inteligência, devendo-se colocar no
ponto de vista da vontade, do sentimento e das ideias motrizes. As ideias
são acções, são forças, porque se prolongam em movimentos, sejam
eles cerebrais e/ou do nossos membros, do nosso corpo. Psicolo-
gicamente, a força das ideias liga-se à sua influência sobre os nossos
sentimentos, crenças e decisões, e portanto sobre as nossas acções,
sendo as ideias motivos de acção para a nossa vontade; as ideias de
fins ou de regras práticas, as de bens ou de leis, ou seja os ideais, ideias
que respeitam a fins a seguir que nos são imanentes, são as que devem
ter associadas maior intensidade ou força. As ideias têm força causal,
tendo uma ideia força na medida em que ela é consciente; o valor de
acção das ideias é o seu carácter afectivo – quanto mais afectivo,
apaixonado, for um estado psicológico, mais capacidade tem ele de
promover a acção e de influenciar a nossa conduta. As ideias têm a
potência para causar efeitos, logo possuem uma verdade objectiva. A
sua capacidade eficiente resulta da crença que lhes é associada; no
caso das ciências, essa capacidade resulta da harmonia da nossa con-
cepção da sua existência com a natureza íntima das coisas (confor-
midade da ideia com o seu objecto) e no caso das religiões e da
filosofia da sua potência para modificar o nosso comportamento.7

6 BEAUCOUDREY (1936) p. 413, (1909) Notas sobre os sonetos e as tendencias geraes da


philosophia de Anthero de Quental, Livraria Ferreira, editora – Lisboa, 132, Rua do Ouro;
edição moderna em AS (2001) p. 57-144, ver nota XV; ver CARDIA, MÁRIO
SOTTOMAYOR (1982) “O pensamento filosófico do jovem Sérgio”, Revista Cultura
– História e Filosofia, Vol. 1, p. 411-467, ver p. 429.
7 Ver BEAUCOUDREY (1936) p. 74, 226-245, AS (1909) nota XIII, PRÍNCIPE

(2004) p. 21, PRÍNCIPE, JOÃO e MARTINS, HERMÍNIO (2012) Quatro novos


estudos sobre António Sérgio por João Príncipe com um postfácio por Hermínio Martins, Casal de
Cambra: Caleidoscópio, p. 15-20; a citação é de FOUILLÉE, ALFRED (1927 5ª ed.)
La pensée et les nouvelles écoles antiintellectualistes, Paris: Alcan, p. 93.
132 JOÃO PRÍNCIPE

A passagem das Notas que sintetiza o pensamento do jovem


Sérgio é aquela onde nota o carácter dinâmico do conhecimento,
vendo na Razão uma unidade harmónica do entendimento, da razão
especulativa, do sentimento e da vontade:

Separar o sentimento, ou o facto da ideia, é uma ilusão


na vida e um erro na especulação. O próprio trabalho científico
pressupõe um amor e um ideal, ainda que mascarado ou incons-
ciente. Fazer ciência não é só especular, mas sentir, actuar,
produzir. Resulta o conhecimento de uma adaptação do ser ao meio, mas
adaptação em que o indivíduo é essencialmente activo, tomando a iniciativa
da pergunta e a iniciativa da resposta. A ideia, junta ao sentimento,
sai da acção e volta à acção: é assim que se pode dizer que a
poesia é a verdadeira realidade [Novalis]. Ela nos mantém na
atenção ao desconhecido, na admiração da grandeza espan-
tosíssima do Cosmos, da complexidade subtilíssima das almas,
característica do verdadeiro investigador.8

1.2 Um certo pragmatismo


A continuidade temporal do ideário filosófico de AS, que ele
sempre afirmou (e que tem um coincidente paralelo com o percurso
de Dewey desde os anos de 1890 até à década de 1950) não resulta da
fidelidade exclusiva a uma escola filosófica (por ex. o idealismo crítico
neo-kantiano). Durante a Primeira República, AS não enfileira expli-
citamente o seu ideário (racionalista) em nenhuma escola filosófica e,
nas suas obras sobre educação, é a inspiração deweyeana que surge
mais explicitamente. Tal se liga à estadia, entre 1914 e 1916, na
companhia de sua esposa Luísa Sérgio, no Instituto Jean-Jacques
Rousseau (Escola de Ciências da Educação da Universidade de
Genebra), fundado em 1912 pelo psicólogo funcional Edouard
Claparède (1873-1940) e onde Faria de Vasconcelos (1880-1939) é
encarregado de cursos (chargé de cours). Esta instituição está na van-

8AS (1909) nota XLIV (última das Notas), p. 185-186. A passagem em itálico é
aquela que AS dará posteriormente como exemplo da sua fidelidade a uma intuição
primitiva.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 133

guarda da Pedagogia, do movimento da Escola Nova. AS tornar-se-á


amigo de Claparède e de Adolphe Ferrière (1879-1960), outro desta-
cado pedagogo suíço, também professor neste Instituto. Estes dois
intelectuais suíços são muito marcados pelo pensamento de John
Dewey (1859-1952); filósofo norte-americano cuja popularidade inter-
nacional atingiu o seu auge nas primeiras décadas do século XX.9
JD formou-se na tradição idealista, tendo sido o seu contacto
com o darwinismo, com alguma psicologia experimental e com
William James (e vários filósofos americanos e ingleses, hoje razoa-
velmente esquecidos) que o colocaram numa perspectiva crítica e de
afastamento relativamente ao absolutismo do pensar idealista alemão
de Hegel. William James, como Fouillée, é um filósofo da esperança,
com uma visão melhorista, em que o progresso resulta do esforço. Nós
estamos sempre num fluxo contínuo, o pensamento flui como uma
corrente, sendo o presente não tanto uma presença mas sim o ponto
focal de uma experiência constante que é retrospectiva e prospectiva –
para o autor dos Principles of Psychology a consciência está em mudança
constante e é contínua, o tempo humano é sempre sentido casando o
presente com a memória e a expectativa. Esta sensibilidade transicio-
nalista (Koopman) é anti-imobilista e anti-espectrista (no sentido
sergiano) propondo o dever da novidade dos ideais e a realização de
novas formas morais; isso numa perspectiva sempre reformista, conti-
nuista, onde se valoriza aos meios concretos que asseguram a conexão,
o terceiro termo, entre as formas antigas e as novas que se propõem,
entre o ponto de partida actual e o ideal ponto de chegada (por
exemplo, a passagem do militarismo à paz, no seu Moral equivalent of
war (1910), far-se-ia por uma variedade de militarismo pacífico); para
James é essencial o empenho na revisão critica das tradições existentes.10
JD, no seu pragmatismo, seguiu uma via naturalista, para a
qual os problemas que a filosofia deve colocar (e aqueles que deve
rejeitar por falaciosos) resultam da consideração do homem como ente
biológico, mais sofisticado que outras espécies, de que deriva por

9 Ver BLAU, JOSEPH L. (1960) “John Dewey’s theory of history”, The Journal of
Philosophy, Vol. 57, Nº 3, p. 89-100, p. 93, PRÍNCIPE (2012) p. 60-69.
10 KOOPMAN, COLIN (2010) “Historicism in pragmatism: Lessons in

historiography and philosophy”, Metaphilosophy, Vol. 41, Nº 5, p. 690 – 713; ver p.


691-695.
134 JOÃO PRÍNCIPE

continuidade; o homem é um ser gregário que vive em interacção


constante com o seu contexto/ambiente (ou ‘campo situacional’) o
qual lhe coloca constantemente problemas, sendo o pensamento, que
vai criativamente produzindo, indissociável dessa interacção. Pensar é
um dos modos pelo os quais o organismo humano interage com o
ambiente, criando ‘ideias’ para resolver problemas e dificuldades que
encontra; sem choques, não há reflexão, simplesmente inércia mental.
Como as hipóteses científicas, as ideias não possuem carácter trans-
cendente e são testadas pela prática; as ideias têm valor instrumental
na vida humana, servindo para a reconstrução de situações insatis-
fatórias, sendo a tónica posta nos problemas do homem – a filosofia
será um método de diagnóstico e prognóstico nos campos moral e
político. JD foi desenvolvendo uma concepção da experiência, que
classificou (na linha de James) de empirismo radical, na qual “as
conexões, as continuidades e as relações são constitutivas da expe-
riência, e não alheias à mesma”. Sem aceitar o que julgou distinções
abruptas feitas por Kant (a priori/a posteriori, analítico/sintéctico e
uma ideia de razão pura nitidamente distinta da experiência) manteve
do pensamento do mestre alemão a ideia do carácter activo do pensa-
mento na constituição da experiência. A investigação é elemento
essencial da constituição da experiência e “surge de conflitos concretos
e específicos dentro de situações que vamos enfrentando”. Para JD a
natureza humana não é fixa (nem todavia infinitamente plástica e
aperfeiçoável) e a experiência é mais do que conhecimento. O experi-
mentalismo deweyeano afirma o carácter activo da experiência, com a
qual o homem tenta controlar o seu ambiente, processo no qual a
própria experiência se vai melhorando. No campo epistemológico,
esta atitude significa a valorização da problemática que permite a
reconstrução, ao transformar os elementos de situações indetermi-
nadas em todos unificados; no campo político valoriza-se a incerteza,
o empenho em tornar problemáticas as práticas estabelecidas (para as
melhorar) e o falibilismo. 11 Esta tese foi publicitada por AS amiúde,

11BERNSTEIN, RICHARD (2009) edição espanhola de 2010, Filosofia e Democracia


John Dewey, Herder, Barcelona. Os capítulos 1 a 10 correspondem à obra John Dewey
editada em 1966, p. 107, 110 e 229; BLAU (1960) p. 91, 92, 95; KOOPMAN (2010)
p. 704-5. Em JD (1917), “The need for a recovery of philosophy”, encontra-se uma
crítica sintética ao empirismo, ao racionalismo e ao idealismo, bem como uma
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 135

em particular nos seus escritos políticos, e posta em relação com a


mentalidade que presidiu às navegações e com a filosofia imanentista
de Espinosa: “Uma metafísica do labor científico.... somente em Espinosa
é que se entremostra... uma metafísica adequada a um experimenta-
lismo radical”.12
Existem similitudes entre Fichte, para quem a noção de
actividade é fundamental, e JD, que foram, em AS, favorecidas pela
leitura de Fouillée e Claparède. Por exemplo, em 1890, nas páginas de
The Monist lê-se: “Fichte is the real father of such psychical monism as
has recently found so proficient an expounder in Professor Dewey”; e
Claparède nota que: “M. Dewey professa assim uma psicologia pro-
fundamente voluntarista… o eu é actividade [le moi est activité]; é
como que um foco de energia virtual que tende a se realizar incessan-
temente; pois o eu actual é ‘não realizado’ e ‘fazer-se a si próprio’ [se
réaliser lui-même] é o fim ao qual tende constantemente”.13
No seu livro, de 1916, Democracy and Education, JD estabelece
desde o início uma ligação entre a sua filosofia e o seu credo peda-
gógico e político: “A filosofia estabelecida neste livro liga o cresci-
mento da democracia com o desenvolvimento do método experi-
mental das ciências, com as ideias evolutivas da biologia e com a
reorganização industrial e, deste modo, trata de assinalar as mudanças
na matéria e no método que implicam estes desenvolvimentos”. No
capítulo XXV, analisa as várias teorias sobre o conhecimento e trata a
questão da causalidade da estrutura social sobre o pensamento
filosófico. A descontinuidade social, as desigualdades sociais, têm o seu
análogo nas teorias que afirmam dualismos ao invés de afirmarem a

apresentação da concepção de experiência de JD. Sobre ‘naturalismo’ ver E. II, 2ª


edição, p. 257 nota A; AS, ao pensar em Marx, segue JD que ao uso do termo
‘materialismo’ prefere ‘naturalismo’, ver CORK, JIM (1949) “John Dewey, Karl
Marx, and Democratic Socialism”, The Antioch Review, Vol. 9, Nº 4 (Winter, 1949), p.
435-452, p. 442.
12 Ensaio “O Reino Cadaveroso” (1925), E. II, p. 43; ver os textos: Breve interpretação

da História de Portugal, de 1929, p. 86; Democracia, de 1934, p. 94-5, 98; e PRÍNCIPE


(2012) p. 114-5.
13 MONTGOMERY, EDMUND (1892) “Psychical monism”, The monist, Vol. 2,

Nº 3, p. 338-356, ver p. 345. JD (1913) L’école et l’enfant, avec une préface de E.


Claparède, ed. Delachaux et Niestlé, Neuchâtel, p. X. Sobre Fichte e AS ver
PRÍNCIPE (2004) apêndice e § 2.4.
136 JOÃO PRÍNCIPE

continuidade nos modos de conhecer. Um desses dualismos é o que


opõe o conhecimento empírico ao conhecimento racional, as apa-
rências dos sentidos à essência das ideias, o particular ao universal (por
exemplo, a geografia à matemática). À passividade dos sentidos (que
captam a realidade dada) opõe-se a actividade do conhecimento
racional. A isto corresponde uma estrutura social de divisão do
trabalho “entre aqueles que são controlados pela preocupação directa
com as coisas e aqueles que estão livres para se cultivarem a si
próprios”. Tal traduz-se numa separação extrema entre o conhe-
cimento como algo que é exterior “uma acumulação de cognições tal
como se pode armazenar comodidades materiais num armazém” e o
método de aquisição; a tradução social disto é a distinção entre a parte
da nossa vida que depende da autoridade e aquela onde actos livres
podem ter lugar. A distinção entre intelecto e emoção, provoca a
“uma depreciação sistemática do interesse…. Deste modo assistimos
ao espectáculo da falta de apelo dos educadores ao interesse dos edu-
candos enquanto simultaneamente sustentam com ar de grande
dignidade a necessidade de exames, classificações e promoções”. Todas
estas distinções culminam naquela entre “saber e fazer [knowing and
doing], teoria e prática, entre a mente como o propósito e espírito da
acção e o corpo como o seu órgão e meios”. Ora, os avanços nas
ciências experimentais, na biologia (evolução), fisiologia e psicologia
(análise do carácter construtivo da percepção) fornecem instrumentos
para a construção da teoria pragmatista do conhecimento que afirma
a tese da continuidade entre os modos de conhecer, “a continuidade
entre o conhecer e a actividade que tem como propósito a alteração
do ambiente”. A democracia, entendida não como simples realidade
institucional (eleições, parlamento, etc.) mas como princípio e atitude
(democracia participativa ou deliberativa) “deve desenvolver uma
teoria do conhecimento” a qual tem uma tradução pedagógica, na
“conexão entre a aquisição do conhecimento nas escolas e actividades,
ou ocupações, a ocorrer num meio de vida associativa”; a “demo-
cracia é mais do que uma forma de governo; é fundamentalmente
uma forma de vida em associação, de experiência conjunta comu-
nicada”; ela é pois, e antes de tudo, um ideal moral. O pluralismo – o
saber aceitar e defender a ideia de que sobre o interesse comum
devem existir diversas posições, eventualmente conflituosas – e o
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 137

humanismo falibilista – a ideia de que deve existir “ um contínuo


reajuste por meio da confrontação com novas situações produzidas
por uma variedade de encontros” – caracterizam a atitude demo-
crática; a ‘democracia criativa’ implica a prática deste humanismo,
ligado à investigação científica, que exige uma atitude aberta e
imaginativa, uma “disposição de submeter as hipóteses próprias ao
debate e à critica pública, [pelo] carácter intrinsecamente comunal e
cooperativo do método científico”, ou seja uma atitude experimental
auto-correctiva.14
Os textos onde AS ecoa estas ideias, caso de O Ensino como factor
de ressurgimento nacional (1918), foram lidos como sustentando a tese
pragmatista da “origem utilitária do pensamento experimental”, como
AS reconhece no seu ensaio “Educação e Filosofia”. O pragmatismo
foi alvo de desconfiança no Continente europeu e nos próprios Estados
Unidos (ex.: a obra Anti-pragmatisme de Albert Schinz, professor da
Universidade da Pensilvânia, editada em 1909, ‘denuncia’ o carácter
democrático, anti-aristocrático, do pensamento de JD). Dada a matriz
inicial do seu pensamento filosófico, ligada ao platonismo de Fouillée e
ao neo-kantismo fichteano e espiritualista, AS manteve-se muito atento
às críticas sobre o retrato (caricatural) feito por James e JD da tradição
racionalista, bem como da ideia da natureza exclusivamente utili-
tária/instrumental do conhecimento, mas confrontou-se seriamente
com essa tensão e defendeu a necessidade de uma síntese com o inte-
lectualismo; lê-se numa de suas notas manuscritas: “A síntese do
pragmatismo com o intelectualismo deve ser procurada...na doutrina
da razão pura prática, verdadeiro pragmatismo absoluto que faz coin-
cidir a vontade pura com a razão universal”. 15 No ensaio “Educação
14 JD (1916) Democracy and Education An Introduction to the Philosophy of Education, New
York: The MacMillan Company, , p. V, cap. XXV, p. 101 e 100, BERNSTEIN
(2009) p. 228 ; a ideia de interesse é o objecto do cap. X. Ver BERNSTEIN (2009)
cap. 10, 13 e 14.
15 AS considera teimosia de temperamentos sentimentais incompatibilizar “o instru-

mentalismo do conhecimento e o ideal racionalista.... o determinismo da ciência e o


utilitarismo da sua origem não a tornam estrangeira aos altos ideais e aos altos fins,
às nossas preferências de natureza moral e aos nossos juízos de valor, porque a
ciência é o produto de uma actividade paralela…à Razão valorizadora. A Razão, valor
supremo, é o ápice do útil; do vital; do sentimental; do compreensível”, AS (1920)
“Educação e Filosofia”, in E. I, p. 131-167 da edição moderna, ver AS (1920) §8.
138 JOÃO PRÍNCIPE

e filosofia”, onde mais claramente esboça um ideário filosófico, muito


aberto à psicologia, AS esboça essa síntese, notando que a tese
essencial do pragmatismo é a de que “as ideias agem, as ideias valem,
as ideias são forças, são verdadeiros acontecimentos no evolver da
realidade”. Fouillée notou a comunhão do seu pensamento com o dos
pragmatistas (James e JD); são suas as palavras seguintes:

É verdade que o nosso conhecimento não é uma im-


pressão passiva, mas uma acção; é verdade que os nossos senti-
mentos e desejos se misturam com os nossos conhecimentos e os
alteram. É verdade que as nossas ideias agem para produzir os
seus objectos na realidade.... O pensamento tem um carácter
activo e constitutivo.... As coisas não ficam depois da ideia tal
qual elas eram antes, sendo que a ideia marca o início de uma
nova conexão a qual, pelo facto de se produzir assim por inter-
médio de uma ideia, não deixa por isso de ser real.... JD mostra
expressamente que as ideias se tornam forças práticas na
medida em que elas têm a função e o poder de produzir mudanças
nas existências anteriores.

Fouillée nota, no entanto, que a tese pragmatista da eficácia


exclusivamente funcional das ideias, do facto do seu valor ser aferido
pelos seus efeitos úteis ou prejudiciais, é limitativa pois a força de uma
ideia resulta de tudo o que ela contém de verdadeiro e de possível, isso
independentemente do juízo (moral) sobre os seus efeitos (a causali-
dade associada às ideias não se deve confundir com o princípio da
finalidade). Para AS, se na sua origem o saber científico se vê condi-
cionado pela satisfação dos nossos desejos, estes não se limitam à esfera
do vital, do orgânico, do biológico, havendo neles uma dimensão
valorativa associada a um instinto ou ideal de harmonia íntima, de
unidade: “o instinto de racionalização é um esforço para a harmonia,
para a adequação das partes ao todo, para essa reciprocidade de
relações que é o elemento essencial da ideia do justo”; AS termina a
sua secção sobre o pragmatismo, neste ensaio, afirmando: “O élan da
psique não é o vital, é o mental, e por isso é a uma ética racionalista que
conduz logicamente, – sem desvios – a tese inicial do pragmatismo”;
AS perfilha a ideia de que nenhuma demonstração (científica) pode
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 139

ser dada dos preceitos éticos e adere a uma moral voluntarista, tendo
escrito em 1917: “[a] linhagem dos filósofos do moralismo, da decisão
voluntária... vai de Pascal a Renouvier, a William James, ao pragma-
tismo de hoje”.16

2. Ideologia e História

2.1 Antero e Proudhon


Para estabelecer a genealogia do ideário político sergiano
importa decerto referir Herculano (“radical como Kantista, munici-
palista como erudito, sem ser democrata, mas tendo laivo de socia-
lismo prático” nas palavras de O. Martins17), Antero de Quental (cujas
‘utopias políticas’ são referidas en passant nas Notas de 1909) e Oliveira
Martins (que vai da posição de Antero até ao socialismo de cátedra e
ao cesarismo). Mas é para Proudhon e Antero que vão as maiores
simpatias de AS.
No texto de AS sobre as ideias políticas de Oliveira Martins,
publicado em Maio de 1923 na SN Nº 23, onde, como acontecerá em
outros textos sobre Martins e sobre Antero, a sua análise revela de
forma subtil a sua perspectiva e horizonte, lê-se:

Ou aceitamos a relatividade e a implicância recíproca


das contraditórias, ou andaremos aos bordos, como um ébrio,
entre os termos opostos das antinomias. Não foi isto nem
aquilo, mas toda a história da humanidade, nos factos e nos

16 AS (1920) § 8, p. 150, 160, 154, AS (1917a) “Ciência e Educação”, A Águia, Vol.


XI, p. 78-96;
in E. I, p. 124; as citações de Fouillée são da sua obra La pensée et les nouvelles écoles
antiintellectualistes, de 1910, p. 315, 284-286, citado de BEAUCOUDREY (1936) p.
242-244. Ver tb. E. II, 2ª edição, p. 195. Renouvier foi o primeiro filósofo francês a
dar notícia do pragmatismo americano, publicando na sua revista a tradução de um
importante artigo epistemológico de Charles Sanders Peirce; também Durkheim
aceitou as facetas do pragmatismo que não prejudicam o seu racionalismo, ver
Pragmatisme et sociologie, obra que reúne suas lições na Sorbonne no ano académico de
1912-3 sobre o pragmatismo, publicadas por A. Cuvillier na editora Vrin.
17 In MARTINS (1977) Portugal Contemporâneo II, Lisboa: Guimarães editores, p. 237.
140 JOÃO PRÍNCIPE

pensamentos, quem trouxe a situação em que nos encontramos,


bem como as soluções doutrinais que se impuseram por toda
parte na primeira metade do século XIX. O natural – dizia-se
então – era a bondade e a harmonia; perverteram-nos as insti-
tuições. A máxima felicidade obtinha-se pois libertando os
indivíduos de todas as peias e regulamentos a que a conside-
ração do bem geral os submetera até aí. Os interesses dos indi-
víduos, expandindo-se indefinidamente, por si mesmos se coor-
denariam numa harmonia superior. Chamou-se a doutrina,
como todos sabem, Liberalismo, Individualismo na Moral, Livre-
-cambismo na Economia, Parlamentarismo na Política. Destrui-
ram-se assim todos os vínculos que prendiam o indivíduo à
sociedade, e esperou-se de aí a felicidade dos povos. Na geração
seguinte, porém, os críticos começaram a desmentir as previsões
dos optimistas: não era a harmonia espontânea o que eles
observavam no liberalismo, mas a guerra dos indivíduos e das
classes, o esmagamento da maioria, a prepotência dos argenta-
dos, as reclamações violentas dos desfavorecidos, o parvenusismo
desenfreado, o governo dos intrigantes e dos sem-escrúpulos. E
começaram a protestar, dizendo que a sociedade não podia ser
a simples co-existência dos egoísmos soltos: ela era um orga-
nismo, um organismo vivo e centralizado, tal o corpo de cada
um de nós, onde os órgãos não funcionam como seres indepen-
dentes, mas exercem todos funções restritas, sujeitas à ideia do
ser total. Em vez do «laissez faire, laissez passer», cumpria
estabelecer um regime político de protecção e de garantia,
defender o interesse geral contra os abusos dos indivíduos, pro-
curar as formas de agregação mais favoráveis ao bem comum.
Foram surgindo projectos amplos para a reorganização da
sociedade, que todos cabiam, melhor ou pior, na designação
vaga de socialismo, – doutrinas, dizia Herculano, fortes e justas
como crítica, mas inanes como construção.18

18AS (1923), “Problemas políticos nacionais A política de Oliveira Martins”, SN Nº


23 , p. 2.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 141

Desde pelo menos 1873, Antero tenta fundar um partido


socialista, o qual surge em 1875, como ramo da I Internacional. A
influência de Proudhon sobre Antero é clara nas Odes Modernas ou no
texto de 1871, “O que é a Internacional”. Para Antero, como para
Proudhon, e contrariamente aos republicanos, a questão social era
mais importante que a questão política. A indiferença sergiana
perante a escolha entre república e monarquia vai nesta linha e ecoa a
tese da ala possibilista dos socialistas, cujo dirigente Luís Figueiredo,
em 1899, recusa o apoio táctico aos republicanos, defendendo que a
questão da mudança de regime pouco interesse tem face à necessidade
de melhorar as condições de vida do operariado.19
A triologia proudhoniana – Liberdade, Igualdade, Justiça – é
acompanhada pela ideia de que revolucionar a sociedade é uma obra
lenta e não o resultado (como para os jacobinos), de uma revolução
política, baseada no pronunciamento militar. Afirmou Antero; “uma
tão vasta transformação…[efectuar-se-á] evolutivamente, por meio de
sucessivas transformações, por uma lenta preparação, que eduque os
homens para uma nova ordem de coisas, e torne possível, sem se
passar pelo caos, o novo génesis social” 20 ; esta ideia de que a
democracia exige uma educação específica está sintetizada na máxima
proudhoniana: ‘democracia é demopedia’.21
19 Ver MÓNICA, MARIA FILOMENA (1985) O Movimento Socialista em Portugal
(1875-1914). Lisboa: Imprensa Nacional. Em carta a Proença de 1912, AS tematiza
a questão, ver (1987) Correspondência para Raul Proença, organização e introdução de J.
C. González com um estudo de F. Piteira Santos, publicações Dom Quixote /
Biblioteca Nacional, Lisboa, p. 37-41.
20 “O que é a Internacional”, ROCHA, ACÍLIO S. E. (1991) “Proudhon e o

socialismo anteriano”, Revista Portuguesa de Filosofia, T. 47, Fasc. 2, Antero de Quental


(1891-1991) (Apr. – Jun., 1991), p. 349-374. citado da p. 363. Ver ANTERO DE
QUENTAL (1982) Prosas sócio-políticas, org. e introdução de Joel Serrão, Lisboa:
INCM ; tb. o ensaio “Sobre o socialismo de Antero de Quental” in E. IV (1934).
21 “Em política, que deseja a Seara ? A democracia. Mas a base da democracia é a

virtude…isto é: a moralidade cívica de todos nós. Antes de ser um regime político, é a


democracia uma atitude moral; e a maneira de fazer a democracia não é directa-
mente pela política, mas indirectamente pelos costumes…. Fundar a democracia, é
levar a substituir progressivamente a autoridade externa de certos homens (ou dum
certo homem) sobre os outros – pela autoridade interna em cada um de nós, isto é,
pelo império do racional de cada alma cívica sobre os seus próprios interesses e
paixões.... Declara por isso o nosso Proudhon: «democracia é demopedia»; demo-
142 JOÃO PRÍNCIPE

Nas palavras de Antero, o capital procede a um “roubo legal”,


ao sugar a “melhor e a maior parte” da produção “filha exclusiva do
trabalho”. Como Proudhon, Antero admite a propriedade individual
e a liberdade de trabalho e propõe como solução o imperativo social
da associação, a constituição de corporações livres, possuidoras dos
instrumentos de trabalho que devem ser postos ao dispor dos seus
membros. Estas colectividades entendem-se fraternalmente, conce-
dendo-se mutuamente crédito, trocam directamente os produtos,
suprimindo os intermediários, estabelecendo federações e um sistema
universal de bancos de circulação e de troca. O mutualismo é,
destarte, um conceito basilar que traduz a triologia de princípios. Por
esta via elimina-se simultaneamente o Capitalismo e o Estado, sendo
que este tende a alienar a ‘força colectiva’ e a submeter as liberdades
individuais, transformando os indivíduos em “insignificantes peças
minúsculas e sem poder”.22
Nos textos publicados pela RP, AS refere os seus ideias
socialistas. O texto em que apresenta os propósitos da RP numa
conferência no Rio de Janeiro (Julho de 1913), finda com uma citação
longa da conferência de Antero “Causas da decadência dos povos
peninsulares” (Conferências do Casino, 1871), onde este fala da gradual
“transição para o mundo do socialismo, a quem pertence o futuro”;
em rodapé são citados, o “historiador socialista Louis Blanc” e o
“filósofo socialista Carlos Renouvier”. 23 Em “A função social dos
estudantes”, AS insiste sobre a necessidade de descentralização e de
associativismo; julgando que a experiência anteriana da Liga Patrió-
tica do Norte, mostrou que “associações atomisticamente congre-
gadas, sem raízes na terra e no trabalho, não são suficientes”, cita
“Proudhon , o autor do Princípio Federativo” para argumentar da

cracia é educação do povo. Pregar democracia, por isso, é trabalho de exemplo e de


paciência”, SN Nº 87 (1926) p. 292-293. Ver tb. SN Nº 47 p. 202.
22 “O que é a Internacional” citado de ROCHA (1991) p. 366; última citação de

Proudhon, De la justice, II, p. 288, cit. de id., p, 370.


23 AS (1914) O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares, RP, Porto; também

em AS (2008) p. 13-54, ver p. 52-53.


SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 143

necessidade de tal movimento associativo se apoiar nas corporações


profissionais.24
Outro aspecto central do pensamento de Proudhon de que AS
faz eco é o da crítica ao Contrato Social de Rousseau e à noção de
Vontade Geral que foi adoptada pelos Jacobinos defensores da ideia
de um Estado forte e interventor que aglutina em si toda a soberania.
Esta crítica surge na revista Atlântida (1917); transcrevo um excerto:

Rousseau…não logrou clarificar…a noção de Vontade


Geral. {Esta} pode ter uma acepção qualitativa e uma acepção
quantitativa: consoante a primeira é a vontade legítima, racional;
consoante a segunda é a vontade de todos… A primeira contém-
-se numa filosofia e a segunda numa urna; a primeira exprime-se
numa Consciência…. Ora Rousseau… raciocina como se as
duas coincidissem…. Fica deste modo a doutrina… repousando
no seguinte: 1.º – A redução da liberdade à faculdade de
participação no voto…e à submissão de cada homem ao poder
absoluto da Vontade Geral…. A liberdade é pois para o
Rousseau do Contrato Social, praticamente, a submissão absoluta
à vontade da maioria. Suponde agora uma minoria atrevida e
sem escrúpulos, fortemente organizada, absorvendo pelo terror
e pela cupidez a opinião dos dispersos e dos ambiciosos, falando
em nome da ‘vontade geral’ para ‘obrigar os outros a serem
livres’, e tereis o jacobino bem couraçado com a disciplina do
seu evangelho.25

24 AS (2008) p. 200, 206 (AS propõe aí que os eleitores se organizem por profissões –
proposta de algo como uma câmara corporativa, o que vem no contexto da criação
de um Conselho Económico Nacional). Em carta a Proença, de 1913, lê-se: “Creio
que um socialista... me admitiria entre os seus, e isto não de hoje nem de ontem,
mas de há já muitos anos. Das teorias socialistas só não aceito o que é demasiada
restrição à liberdade”, AS (1987) carta nº 21, p. 60; comparar, no entanto, com
ibidem, p. 140, onde parafraseia Herculano. Sobre tirania ver ibidem, p. 99; ver
PRÍNCIPE, JOÃO (2013) “Raízes do pensamento político de António Sérgio”,
Vértice, II Série, Nº 167, 5-18.
25 AS (1917b) “A Educação Cívica, a liberdade e o patriotismo antigos e modernos

(a propósito de Rousseau e de Camões)”, Atlântida, primeira parte, Nº16 p. 251-260,


ver p. 252-253. Ver: a edição do Du Contrat Social de GEORGE BEAULAVON,
(Paris: F. Rieder et Cie.), p. 10 e 101 da 3ª edição de 1922 (a 2ª edição é de 1913); tb.
144 JOÃO PRÍNCIPE

Para Proudhon o contrato social (que ele afirmou repetidamente


ter sido mal compreendido por Rousseau que o teria construído
artificial e metafisicamente, desprezando os naturais laços económicos
entre os indivíduos) é um acordo de troca entre as partes “em virtude
do qual a liberdade e o bem estar aumentam”, o que é contrário à
ideia de governo cuja autoridade, característica inalienável do
governo, faz diminuir aqueles. O contrato social é “o único laço moral
que seres livres e iguais podem aceitar”, sendo sempre recíproco,
“livremente discutido e individualmente aceite”; a mutualidade (la
mutualité) ou sociedade contratual é um outro nome para a soma total
destes contratos. Proudhon insistiu na contradição de Rousseau que,
após ter colocado a soberania no povo, erige a lei (que o governo e o
estado, sedes da autoridade, impõem) como a expressão da vontade de
todos, substituindo por aí a vontade da maioria pela vontade geral,
colectiva e indivisível, ao substituir a transacção directa e pessoal entre
cidadãos pela nomeação de representantes, e concentrando no estado,
que passa a ser a única sociedade permissível, toda a soberania e
poder e autoridade, e criando assim as condições para a tirania mais
violenta. Para Proudhon o jacobinismo não pode assegurar a liber-
dade e a justiça que só podem existir numa sociedade civil constituída
por uma rede de associações e de grupos informais de cidadãos e na
qual “cada indivíduo seria simultaneamente produtor e consumidor,
cidadão e príncipe, governante e governado”.26
A realização dessa sociedade implica uma reforma moral para a
qual é necessário que as acções humanas sejam cada vez mais deter-
minadas pela razão, reflexão e escolha deliberada, e não pelo instinto,

NOLAND, AARON (1967) “Proudhon and Rousseau”, Journal of the History of Ideas,
Vol. 28, Nº 1, p. 33-54. Beaulavon nota as censuras de Proudhon a Rousseau; AS
terá lido também a obra de Paul Janet sobre a História da Ciência Política (2ª edição
de 1872), onde se refere a influência de Rousseau sobre Kant e a analogia entre a
moral individual regida pelo imperativo categórico e a Vontade Geral que deve ser
o princípio da soberania; esta analogia surge em AS (1917b): “Transposto da nação
para o indivíduo, o conceito qualitativo da vontade geral leva ao imperativo
categórico de Kant”.
26 NOLAND (1967) p. 39-42, 49, 50 que remete para as obras de PROUDHON:

(1924) Idée générale de la revolution au XIXe siècle, Paris (p. 76, 169, 187-9, 193, 238) e
(1952) Contradictions Politiques, Paris, (p. 206-7, 211, 236-239).
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 145

intuição ou espontaneidade, ou seja as ideias devem prevalecer sobre


os sentimentos. A dicotomia sergiana clássico /romântico ecoa niti-
damente este pensamento. Proudhon substituí a noção de vontade
geral pela ideia de razão colectiva, “guardiã da verdade e da justiça”,
fonte de toda “a lei pública e dos direitos humanos”, “fonte da mora-
lidade e do progresso”, a qual “é diferente em qualidade e superior em
poder à soma de todas as razões particulares...que a produzem”.27
A ideia de self-government, de uma “articulação entre uma socie-
dade económica livremente federada...com uma democracia política
baseada no contratualismo e na capacidade de auto-admnistração por
grupos naturais constituintes do organismo social”28 tal qual surge na
obra de 1863 Du principe fédératif está em harmonia com a série de
textos onde Sérgio propõe a escola-município, que iria combater o
centralismo denunciado por Herculano (publicados em A Águia
durante 1914, sob o título “O self-government e a Escola”, surgem
depois em conjunto sob o título de Educação cívica).29
O progresso social não se deve, para Proudhon, ao esforço das
massas mas sim à elite, crença que repetiu em diversos textos e de que
Sérgio fez eco ao teorizar sobre elites. Por exemplo, em carta de 1852,
Proudhon escreveu:

É um absurdo querer conduzir uma sociedade no


caminho da liberdade...tomando escravos por líderes e a classe
alta, educada, por instrumento.... As massas, no que conse-
guiram de justo, sempre foram empurradas, solicitadas, de
modo aberto ou de modo secreto, por espíritos de elite…, e
cada vez que o povo se viu abandonado a si próprio, ele apenas
soube, tal como crianças em idade escolar que imitam os seus

27 NOLAND (1967) p. 46.


28 NETO, VÍTOR (1988) “Iberismo e municipalismo em J. F. Nogueira”, Revista de
História das Ideias, Vol. 10, p. 753-768.
29 AS (1915a) Educação Cívica, RP, Porto; também em edição da Sá da Costa de 1984,

e em AS (2008) p. 55-122.
146 JOÃO PRÍNCIPE

mestres de estudos, copiar na margem os exemplos que tinha


diante dos olhos, fazendo regredir a sociedade. 30

Em 1914, AS escreve: “A nossa futura pedagogia deverá ser,


essencialmente, uma pedagogia do trabalho e da organização social
do trabalho”.31 As semelhanças entre JD e Proudhon foram muitas
vezes assinaladas, vendo-se neste um pragmatismo trabalhista – o
trabalho é entendido como acção que é a fonte das ideias. A ligação
Fichte-JD, no plano político, era decerto entendida por AS, no sentido
dado pelas seguintes palavras de JD, que alude à obra de 1800, O
estado comercial fechado: “ O objectivo final é um estado universal tão
vasto quanto a humanidade, e um estado no qual cada indivíduo
possa agir livremente, sem direitos assegurados pelo estado e sem
obrigações impostas pelo estado. Mas antes que esta condição anár-
quica, do ponto de vista cosmopolita e filosófico, possa ser atingida é
necessário passar por um período do estado nacional fechado”. 32

30 Ver PROUDHON (1875) Correspondance, Vol. V, Burgille-les-Marnay, 8 octobre


1852, p. 57-58. Sobre elite em AS ver PRÍNCIPE (2012) p. 53-60.
31 “Pela Pedagogia do trabalho”, A Águia, Nº 27, p. 96. O pedagogo alemão

Kerchensteiner, que AS refere posteriormente, muito valorizou o conceito de


trabalho, entendido como acção, para a aprendizagem, ver PRÍNCIPE (2012) p. 69-
-73; ver carta XXXVII das Cartas do terceiro homem.
32 JD (1915) German philosophy and politics, New York: Henry Holt, p. 75; esta obra de

Fichte, traduzida para francês em 1940, foi referida por diversos autores com ideias
socialistas; esta passagem não é menos ‘severa’ que a ‘governação excepcional’
proposta em 1922 na SN. Ver, p. ex.: – BOUGLÉ, CÉLESTIN (1911) La Sociologie
de Proudhon, Paris: Armand Colin, p. 111, 209; SOLARI, STEFANO (2010)
“Institutions in Proudhon: the Way not Taken by European Economic Thought”, in
XIII Colloque international de l’Association Charles Gide – Les institutions dans la pensée
économique, Paris, 27 au 29 Mai 2010. Solari estabelece a ligação Fichte – Proudhon –
doctrina ideo-realista –pragmatismo – JD; AS ligou o seu anti-estatismo ao pensar
de Fichte – ver E. VII (1954) § 20 do “Relanços de Doutrina Democrática”; ver
também: NAKHIMOVSKI, ISAAK (2011) The Closed Commercial State: Perpetual Peace
and Commercial Society from Rousseau to Fichte, Princeton University Press,
PERRINJAQUET, ALAIN (1997) “Fichte, Proudhon et la propriété” in Fichte et la
France, Vol. 1, editado por Ives Radrizzani, Paris: Beauchesne ed., p. 141-182.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 147

2.2 Os factores mentais e os sócio-económicos na historiografia-sociológica


sergiana
Em 1955, em jeito de balanço, AS referia-se ao seu contributo
historiográfico pela «introdução da problemática sociológica na
maneira de escrever a nossa História». 33 De facto, embora muito
inspirado por Oliveira Martins e por Antero (cujas teses repete, critica
e amplia), AS abandona a história sob o modo dramático-narrativo
onde tão frequentemente perspassa a acção providencial de grandes
homens e concentra o seu esforço na obtenção de uma síntese que
evidencie a inserção da história de Portugal na História Universal,
mostre os condicionamentos externos e internos, valorizando os
aspectos socio-económicos, geográficos, e a sua interacção com os
aspectos mentais; isto decerto porque muito leu sobre história, quer de
autores portugueses antigos e contemporâneos (os cronistas Azurara,
Lopes e Pina; os economistas do séc. XVII, Herculano, Antero,
Martins, Pinheiro Chagas, Teófilo, Rebelo da Silva, Basílio Teles,
Anselmo Braancamp Freire e a sua revista Arquivo Histórico Português,
Ezequiel de Campos, David Lopes, etc.) quer de estrangeiros (Gomez
Solez, Lafuente, Buckle, Carlyle, Ferrero, Ticknor, Friedrich Schlegel,
Gabriel Monod, Henri Berr cuja Revue de Synthèse Historique decerto
ocasionou meditações metodológicas várias tal como o clássico livro
de Langlois e Seignobos), apostando na ultrapassagem do estilo histo-
riográfico do sec. XIX, ao valorizar o método, a estrutura racional do
discurso e as ciências sociais emergentes.34
33 In Prefácio à 2ª edição de E. V, p. 9.
34 Sobre a história da historiografia portuguesa ver o trabalho de síntese TORGAL,
LUÍS REIS; MENDES, JOSÉ AMADO; CATROGA, FERNANDO (1996)
História da História de Portugal Séculos XIX-XX, Lisboa: Círculo de Leitores. Em outro
lugar pretendo me ocupar da metodologia histórica de AS; Seignobos é referido em
1914, AS (1987) nº 48, p. 129; Henri Berr escreveu: “Or, sans doute, on obtient du
général par la méthode comparative. Mais il y a ‘général’ et ‘général’. La com-
paraison est un instrument propre à des services divers et de valeur inégale. Quand
on l’applique sans une étude préalable de la causalité historique; lorsque, de façon
tâtonnante ou massive, elle met en évidence certaines analogies de développement
entre groupes ou époques; qu'elle pose des ‘lois’ plus ou moins approximatives et
instables (l’histoire étant un complexe mouvant), dans cet emploi grossier la
comparaison ne fait guère qu’inviter à réfléchir, à trouver l'explication causale : elle
signale des problèmes, plutôt qu’elle n’apporte des solutions. La synthèse scientifique a
148 JOÃO PRÍNCIPE

A sua grande síntese da história portuguesa encontra-se em


textos dos anos de 1920 quais o ensaio “As duas Políticas Nacionais”
(E. II) e o Bosquejo de História de Portugal (que conhece traduções para
inglês e para alemão), no qual a nossa história surge dividida em três
grandes épocas; a Política de Fixação é aquela que AS liga a uma
visão crítica e de humanismo científico, visão cujo impacto se viu
subitamente interrompida pelo Seiscentismo.35 Este esforço de síntese
é iniciado com os textos, publicados pela RP, O problema da cultura e o
isolamento dos povos peninsulares, (1914) e Educação cívica e Considerações
histórico-pedagógicas antepostas a um manual de instrução agrícola (1915). Em
1913, retomando o tema da decadência nacional posto em relevo pela
geração de 1870, AS releva dois aspectos – o Parasitismo e o Isola-
mento; o primeiro está associado ao tipo de expansão ultramarina e
radica na educação guerreira (factor mental que actua sobre tempos
longos) , o segundo liga-se a um factor externo, onde o acaso se faz
agente pela coincidência de duas séries autónomas (os efeitos da
Contra-Reforma que chegam a Portugal). 36 Considere-se agora as
teses da conferência de 1913, e os aprofundamentos de 1914-15,
dando relevância àquelas que exibem factores mentais (que surgem
em interacção constante com o económico):

pour objet essentiel de démêler les facteurs permanents qui interviennent dans l’histoire, de préciser
leur nature et leurs rapports. Il ne faut donc pas confondre l’établissement de formules
qui ne sont que de larges constatations avec la recherche des causes explicatives” in
“Le Ve Congrès International des Sciences Historiques” Rev. Synthèse historique 1923
Vol. 35, p. 11.
35 AS, no prefácio à 2ª edição de E. II, nota que a Política de Transporte não deve

ser confundida com a política de expansão, sendo a Política de Fixação “a que


criticava e completava a orientação mercantil (sem pretender excluí-la), preconizando
que buscássemos fixar algures, em actividades da agricultura e indústria, os lucros
provenientes de um comércio marítimo que se fizesse com método e com sensatez, e
afirmando que o tráfico, sómente por si, nos não conduziria a uma situação salubre,
à elevação do Povo, a um nível de prosperidade autêntica”, p. 10, ed. Sá da Costa.
36 AS (1915b) Considerações histórico-pedagógicas antepostas a um manual de instrução agrícola,

RP, Porto; também em AS (2008) p. 123-166. O estudo SÁ, VICTOR DE (1979) A


historiografia sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa, Biblioteca
Breve, Lisboa, identifica as teses historiográficas sergianas e aqui o sigo. Sá julga que
as teses menos felizes de AS são as sobre séc. XIX, e que seguem Oliveira Martins.
Para um juízo geral do catedrático espanhol Juan Moneva y Puyol ver SÁ (1979) p.
82. Cito segundo AS (2008) indicando as páginas junto da citação.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 149

i. Parasitismo e Espírito guerreiro.


i.i.a. O domínio serôdio da Cavalaria foi a causa da educação guerreira em vez do
trabalho criador: “O regime da educação guerreira foi originado pela
invasão árabe, e consistiu no domínio serôdio da Cavalaria, esse feu-
dalismo militar que foi uma insalubre exalação do feudalismo agrícola
decomposto; consistiu no facto de Portugueses e Castelhanos terem
vivido, não propriamente dum trabalho criador, mas da energia
caçadora e aventureira: – donde o atraso dos peninsulares nas funções
normais da indústria, e agricultura, com a formação de um tempe-
ramento em que as faculdades românticas da paixão e da fantasia, da
impulsividade e da retórica, preponderam enormemente sobre a
vontade e a razão.” (p.21).
i.i.b. A estrutura social guerreira impediu a criação de uma burguesia afanosa e
representou uma força de inércia: “A orientação exclusivamente guerreira
foi causa de que as nossas conquistas não produzissem uma burguesia
rica e afanosa […] mas uma fidalguia corrompida e um populacho de
mendigos; e uma vez bem definida a estrutura social a que nos levou,
ei-la representando uma força de inércia persistente e multiforme.”
(p.21). Em 1915, AS dará um cunho positivo ao esforço da Primeira
Dinastia: “os dinastas afonsinos empreenderam, como bons adminis-
tradores e bons banqueiros, a organicidade da nação pelo trabalho
colonizador e pelo estrangeirismo intelectual” (p. 111). Mas “a crise que
levantou o Mestre de Avis fez naufragar a nobreza rústica [a única
capaz de resistir ao centralismo, tendo a “gente do campo ligada a ela
por uma comunidade de interesses: foi o que se viu com o Feuda-
lismo”] e ressurgir a Cavalaria, com o seu companheiro, o Comércio.”
(p. 113).
i.ii. A expansão acabou sendo uma persistência da caça secular iniciada com a
Reconquista. A corrupção é inerente ao sistema das conquistas: “A
guerra pode ser um auxiliar da nossa indústria, mas jamais a indústria
única, substituindo todas as outras, sem que o corpo social venha a
sofrer as consequências que nós hoje padecemos.» Depois de con-
quistar o mundo, o Espanhol [o ibérico] caiu exausto «não da enor-
midade do seu esforço [discordância pontual com Cortesão em 1913],
mas da própria corrupção inerente a tal sistema”. (p. 27-28). Em
150 JOÃO PRÍNCIPE

1915: e “se não há comércio que se mantenha sem uma actividade


produtora que esteie a economia nacional, agravou-se aqui o desa-
certo com atacarmos no judeu o nosso único factor de capacidade
comerciante…. Passámos assim a viver num duplo circuito de pira-
taria: o circuito exterior, sobre o indiano, e o interior sobre o judeu.
Mas não vai sobeja a nossa demência, senão que agora, transcorrido
século e meio sobre a aberração comercial, encetamos a aberração
intelectual com a mania purificadora, devolvendo em maninho a
inteligência, como já devolvêramos o território”. (p. 114-116).
Este segundo aspecto remete para uma causa da decadência já
apontada por Antero e por Herculano, o efeito da Inquisição, que
Sérgio amplia designando-o por:
ii. Purificação e Isolamento sistemático (p. 21).
ii.a. Se o século XV foi o «período soberbo» de Portugal em que foi capaz de
participar na vida intelectual de toda a Europa: Depois da conquista de
Ceuta, “o Infante [Dom Henrique] não mais desgarra do programa
nacional, preparando-se metodicamente, coligindo todos os dados,
todas as fontes de informação que lhe podia o Universo fornecer….
Começava o período soberbo em que Portugal não só se cercou de
gentes de diversas nações, mas percorreu todas as nações e ávida-
mente se misturou à vida intelectual de toda a Europa”, (p. 28). Mas
este período foi de curta duração: em meados do século XVI, “Rei,
Inquisição e Jesuítas, numa fúria ‘purificadora’ e diabólica – estalam,
arrancam e arrojam aos quatro ventos a pobre árvore humanista e
europeia” (p. 32).
ii.b. Três séculos de isolamento pela Inquisição reduzem a Península a uma ‘Ilha
de Purificação’: “Parece que o acaso conspirava com a Índia para nos
arrancar à civilização da Europa…. O sistema isolador montava já o
cadafalso onde iria desenrolar-se uma tragédia de três séculos; durante
três séculos o génio europeu será na Ibéria constantemente vencido:
[primeiro pela absorção do nosso espírito na aventura do Ultramar e
pela lei político-religiosa], e depois pelos males hereditários”. (p. 33).
Em conclusão: “Degenerámos precisamente por descumprirmos essa lei,
postergando o trabalho normal da indústria e do saber pela explo-
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 151

ração conquistadora e a aventura, ao mesmo tempo que nos isolámos


da Europa, após a época fulgurante – e europeia – dos descobridores e
humanistas.” (p. 20-21).
iii. Tentativas de Reforma.
iii.a. A uma primeira tentativa liga-se à acção dos estrangeirados no
séc. XVIII, salientando o papel de Verney cujo Verdadeiro Método de
Estudar denuncia o anquilosamento intelectual do ensino superior e
propõe medidas de modernização no sentido de um humanismo cien-
tífico, de pendor eclético e empirista: “As reformas de instrução do
(tempo) de Pombal – (superficialmente depurificado) pelas suas missões
no estrangeiro (de diplomata) foram precedidas dos ataques (da
gloriosa plêiade estrangeirada)…. Luís António Verney, (uma vítima
do marquês) – que passou fora de Portugal toda a vida depois dos
estudos universitários – publicava em 1747 o Verdadeiro método de estudar,
em que... analisava a instrução pública portuguesa, confrontando-a
com a ciência do seu tempo. O Método levantou uma celeuma estre-
pitosa: para os puros da época tudo que não fosse a sua ignorância
eram (cito palavras de Verney) “arengas supérfluas e ociosidades de
estrangeiros”. (p. 37)37
iii.b. Um outro momento decisivo de estrangeiramento é o que acom-
panha as lutas liberais, pós invasões francesas. Herculano, Garret e
Mouzinho lutam por romper a tradição do Isolamento. Antero
(nomeadamente com a ‘questão coimbrã’) e Martins continuarão o
esforço de Herculano.
A descolonização do Brasil e os decretos sobre a economia de
Mouzinho da Silveira são considerados o segundo grande momento
das tentativas de corrigir os vícios seculares: “A separação do Brasil e
Mouzinho abalaram nos alicerces o sistema parasitário. Foi a maior
revolução da nossa História, e era realmente a condenação de toda

37Em 1925, no ensaio “O reino cadaveroso”, AS assinalará a a acção mais eficaz, e


menos aparatosa do que a de Pombal, dos ministros de D. Maria I: “Entra-se na
época que se caracteriza pelas pensões de estudo no estrangeiro e pelo trabalho
metódica da Academia das Ciências… As invasões francesas…vieram perturbar
toda essa faina”, E. II, p. 51.
152 JOÃO PRÍNCIPE

ela, desde o tempo de D. João III, em parte desde o Infante, pelo que
toca às ideias económicas.” Mouzinho da Silveira mostrou “nos seus
decretos, quais eram as condições normais da economia social, e como
a riqueza estava em casa, na libertação e trabalho da própria terra”.
(p.41)
Como nota Vítor de Sá, “O manifesto de Sérgio, consubs-
tanciado nesta conferência sobre O Problema da Cultura, é assim, ao
mesmo tempo que um primeiro ensaio de interpretação sociológica da
História nacional, uma tentativa programática, um enunciado de
reformas pedagógicas e económico-sociais a introduzir no país”.38
Nas Considerações histórico-pedagógicas (terminadas em 24.XI.915)
AS vai inscrever a nossa fundação e expansão na História económica
Universal:

A própria prosperidade que o regime feudal-agrícola


produziu no Norte da Europa excitou a actividade comercial, o
desenvolvimento das cidades, a sua resistência aos senhores, e a
saída deles para o Levante, a alargar a corrente comercial do
Oriente para as regiões setentrionais. Foi este grande movi-
mento das cruzadas do Norte, da Alemanha e França para a
Itália e de aí para a Palestina, que ocasionou a fortuna das
repúblicas marítimas italianas, intermediárias do tráfico entre a
Hansa alemã e as caravanas levantinas…. Uma pequena derivação
deste fluxo foi a origem da fundação do reino de Portugal, onde
Lisboa era então uma Veneza embrionária…. O infante D.
Henrique… D. Afonso V e D. João II foram os caudilhos da
nova cruzada, os heróis de que a vida económica europeia
necessitava, nesse momento, para resolver um dos maiores
problemas de toda a história da civilização. Assistimos, pois,
desde agora, aos esforços sucessivos de Portugal para resolver a
sua crise de subsistências e a crise comercial de toda a Europa.
(p. 136-137).

Um outro aspecto saliente deste texto é o da adopção da


ideologia particularista dos sociólogos franceses da escola de La Science

38 SÁ (1979) p. 29.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 153

Sociale.39 Considerando o período da primeira dinastia, que procede à


formação da nacionalidade e à reconquista, AS nota:

Educados no parasitismo depredador não ganhámos o


dom de iniciativa no trabalho regular dos povos de família
particularista, que produziu em Inglaterra, fiel ao espírito do
feudalismo uma forte e independente população de produtores
rurais, uma nobreza que fixando-se nas terras e cultivando-as,
dirigiu, patronou e governou as populações campesinas, dando
vitalidade pujantíssima à nação trabalhadora.
Nas sociedades de família particularista, como as anglo-
-saxónicas, a criança é educada para a independência, para a
responsabilidade e para a iniciativa; entre as sociedades de
família comunitária, as de formação comunitária de família são
caracterizadas pela reunião de muitos casais no mesmo lar...os
filhos não contam consigo próprios para se estabelecerem, mas
com a comunidade familial, onde ficarão, num bloco de estru-
tura comunista; nas sociedades de formação comunitária de
Estado, de que Portugal é o exemplar mais perfeito, as comuni-
dades familiais dissolvem-se na grande comunidade do Estado:
a juventude conta sobretudo com os lugares da burocracia e do
exército...(Ver a este propósito os trabalhos de La Science Sociale).
(p. 131)

AS nota que o Centralismo caracteriza os liberalismos francês e


português:

Esta concepção da omnipotência do Estado e o correla-


tivo desprezo da constituição de Inglaterra, são comuns aos
escritores que verdadeiramente inspiraram a revolução fran-
cesa. Por isso as nações continentais libertadas, mascaradas com
as fórmulas parlamentares, continuaram com o temperamento
e a educação de século as fizeram: absolutismos liberais, segundo
a frase de Herculano, comunismos burocráticos, tiranias de

Ver PRÍNCIPE (2013), onde se faz a ligação ao voluntarismo inglês e ao Labor, e


39

PRÍNCIPE (2012) p. 37-46.


154 JOÃO PRÍNCIPE

bacharéis; a vida política resume-se nelas a um assalto geral aos


dinheiros públicos, sob a direcção de tiranetes monárquico-
-liberais ou republicanos, que participam, exagerando-os, dos
vícios do antigo absolutismo. (p. 132)

A omnipotência do Estado traduz-se no comunismo buro-


crático, conceito já introduzido por Oliveira Martins, onde as clien-
telas assaltam os dinheiros públicos.

2.3 Uma historiografia também pragmatista

Depois de exemplificada a historiografia sergiana que valoriza


a síntese sobre a narrativa romântica, para a qual uma suposta
‘presença ideal’ (Novalis) do passado é revivida pela dramatização do
discurso, que valoriza a problemática, a ousadia das grandes
hipóteses explicativas que marcam tendências sobre tempos longos,
propondo explicações ‘materialistas históricas’ (onde o geográfico e o
económico-social, o interesse classista, substituem o papel provi-
dencial dos grandes homens, as motivações religiosas e os argu-
mentos rácicos – arianismo nortenho versus semitismo do sul, etc.)
que ultrapassam o nacionalismo estreito e colocam Portugal na
corrente da história Universal, que valoriza também a história
intelectual (analisando o pensamento de indivíduos-tipo repre-
sentativos de tendências em conflito, caso de Camões, dos refor-
mistas modernizantes – dos economistas do séc. XVII, de Verney, de
Antero e de Martins); e que não se enredando no objectivismo dos
factos, sempre criticamente apreciados e seleccionados em função de
problemáticas, interesses e valores presentes, identifica condiciona-
mentos e/ou persistência de factores do anquilosamento intelectual e
económico de Portugal. Por ser tarefa hercúlea o estudo amplo da
genealogia do seu pensamento histórico, restringir-me-ei às resso-
nâncias pragmatistas da historiografia sergiana, essenciais para
compreender a atitude de AS em relação à história. O pragmatismo,
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 155

com a sua sensibilidade melhorista e transicionalista, leva necessa-


riamente a sério a historicidade. 40
Os argumentos que dão à prática económica um papel condi-
cionante sobre o pensamento abundam na obra de JD, como exem-
plificámos em 1.2; se há aqui analogia com argumentos marxistas, o
facto é que JD acusou os marxistas de preconceito histórico ao querer
subsumir os acontecimentos sistematicamente à luta de classes, crítica
(relativamente comum) que AS subscreveu.41
As Considerações histórico-pedagógicas, são encimadas pela citação de
JD: “O valor do ensino da história reside no facto de que esta ciência
pode ser um instrumento de análise das condições sociais presentes”.
Este, em 1916, nota:

A segregação que mata a vitalidade da história resulta do


divórcio relativamente aos modos e preocupações da vida actual.
O passado enquanto apenas passado já não nos diz respeito. Se
ele tivesse ido integralmente embora só haveria uma atitude
razoável em relação a ele…. Mas o conhecimento do passado é
a chave para o entendimento do presente…. O método genético
foi talvez a maior conquista científica da segunda metade do
século XIX. Ele tem por princípio que o modo de entender [get
insight] qualquer produto complexo é traçar o processo da sua
realização, – isto é o de seguir as etapas sucessivas do seu
crescimento. Aplicar este método à história como se ele apenas
consistisse no truísmo de que o presente estado da sociedade
não pode ser separado do seu passado, é unilateral. Ele implica

40 Na carta a Proença de 16 Nov. 1913, do Rio de Janeiro, lê-se: “eu tenho


tendência para as causas gerais e subterrâneas... Eu vejo as fontes no povo, na
história económica, em processos longínquos, esqueço as instituições e os
indivíduos... creio que o meu método vem de uma forma de pensar, e não de uma
forma de paixão”, AS (1987) p. 99.
41 Ver: WILKINS, BURLEIGH T. (1959) “Pragmatism as a Theory of Historical

Knowledge: John Dewey on the Nature of Historical Inquiry”, The American Historical
Review, Vol. 64, Nº 4, p. 878-890, p. 884; PRÍNCIPE (2012) p. 60-69. Sobre as
semelhanças profundas entre o pensamento de JD e de Marx, primeiro notadas
Sidney Hook, que estudou com JD, no seu Toward the understanding of Karl Marx de
1933, ver: HOOK, SIDNEY(2008) John Dewey: A intellectual portrait, New York:
Cosimo, Inc. (1ª ed. de 1939) e CORK (1949).
156 JOÃO PRÍNCIPE

também que os acontecimentos passados não podem ser sepa-


rados do presente vivenciado e conservar o seu sentido. O
verdadeiro ponto de partida da história é sempre uma situação
presente com os seus problemas…. A história económica é mais
humana, mais democrática, e logo mais libertadora do que a
história política. Ela lida não apenas com a ascensão e queda
dos principados e das potências, mas com o crescimento das
liberdades efectivas, através do comando da natureza, do
homem comum para o qual os principados e os potentados
existem.

AS, parafraseando JD, dirá o seguinte:

Nas guerras de Tróia e nas de Alexandre; nas revoluções


de Roma e nas Cruzadas; na revolução industrial e na revo-
lução francesa, – há uma série de causas, de forças, de necessi-
dades sociais profundas que são semelhantes na essência, às que
movem hoje a sociedade…. O verdadeiro ponto de partida é a
consciência de uma situação actual. Se o passado explica o
presente, é o presente que, por sua vez, explica também,
interpreta e dá significação ao que passou.42

A utilidade da história faria provavelmente JD sentir-se impa-


ciente com o eruditismo dos estudos históricos monográficos, ‘impa-
ciência’ que AS traduziu em comentários, subtilmente irónicos, sobre
o carácter não erudito da sua historiografia, no plágio dos eruditos ao
escrever supondo conhecidos os factos que aqueles apuraram; AS
chegou a afirmar não ser um historiador (comentário que os seus
denegridores lhe afivelaram, tal como aconteceu com Ferrero na Itália
natal); o lado positivo desta atitude é o óbvio interesse de AS pela
constituição de grandes-Todos, de uma visão filosófica da história

42JD (1916) cap. XVI, “O significado da geografia e da história”, § 3 “A história e a


vida social actual”; AS (1918) O ensino como factor do ressurgimento nacional, RP, Porto,
ver AS (2008) p. 219, 233-4.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 157

portuguesa que a inscreve na história universal, tendência hegeliana


invertida pelo salientar dos condicionamentos sócio-económicos.43
Uma outra semelhança está em pensar-se a história por homo-
logia com as ciências, no que AS se inspirava também por certo da
historiografia francesa (Comte, Renan, Taine, Fustel de Coulanges,
Langlois e Seignobos, etc.). AS não subscreveu a distinção entre
saberes nomológicos e saberes ideográficos (Windelband, Rickert),
nem se referiu, a meu conhecimento, à simpatia e imaginação que
segundo Croce fariam a especificidade da História; antes valorizou as
semelhanças com a lógica científica, para a qual os particulares são
ordenados como instâncias de generalizações ou de hipóteses.44 Os
dados históricos correspondem aos dados obtidos pelos cientistas nas
suas experiências que são perguntas à natureza, baseadas em hipó-
teses; a história é uma tentativa de reconstrução hipotética da ordem
temporal; essa reconstrução parte de um problema actual, que se
insere numa estrutura conceptual contextualmente condicionada que
atribui presença actual ao passado seleccionado pelo historiador, o

43 WILKINS (1959) p. 884. A história universal de carácter filosófico é um projecto


de Kant expresso metafisicamente no seu Ideia para uma história universal com um
propósito cosmopolita; Henry Thomas Buckle, o autor da História da Civilização em
Inglaterra, que AS cita – AS (2008) p. 36 – que soube valorizar os aspectos econó-
micos no desenrolar da história, é no séc. XIX um dos paladinos da história
universal, ver SEMMEL, BERNARD (1976) “H. T. Buckle: The Liberal Faith and
the Science of History”, The British Journal of Sociology, Vol. 27, Nº 3, Special Issue.
History and Sociology, p. 370-386. Já no séc. XX, H. G. Wells, a quem AS dedica
um ensaio escrito em 1923, publicado em E. II, é um dos poucos a tentar uma
história universal, no seu Outline of History (1920); ver CARNEIRO, ROBERT L.
(2002) The Muse of History and the Science of Culture, New York: Kluwer Academic
Publishers, p. 30-35.
44 Só tardiamente AS escreveu sobre método historiográfico, mas sempre notando as

semelhanças com as ciências, em particular as físicas; ver AS (1941) Em torno da


designação de monarquia agrária dada à primeira época da nossa história, Lisboa: Livraria
Portugália, as Notas de esclarecimento, republicadas em E. II; dada a influência da
sociologia, há alguma hesitação nos anos de 1910 sobre a existência de leis históricas
acessíveis ao sujeito epistémico, ver por ex. carta a Proença de 1916, AS (1987) nº 54,
p. 136. Nas Notas de esclarecimento AS não crê na indeterminação dos factos históricos
mas afirma a não previsibilidade dos mesmos por ignorância das condições iniciais
dos processos históricos, invocando distinções epistemológicas do debate em torno
da Mecânica Quântica, E. II, p. 246-248.
158 JOÃO PRÍNCIPE

que, como notará em Logic: The theory of enquiry (1938), implica uma
constante reconstrução da história a partir da própria variação da
cultura com as gerações sucessivas. Para JD o análogo do uso tecno-
lógico da ciência, a engenharia, será para a história uma engenharia
social como método de aperfeiçoamento social, processo de eminente
experimentalismo.45

3. Epílogo

O interesse de AS pela história da cultura e das mentalidades, o


relevo por ele dado ao papel das elites, através nomeadamente da
leitura das obras de Gabriel Tarde, fazia acreditar que as práticas
culturais, usando o anacronismo terminológico, eram dependentes de
ideias, ou seja de teorias intelectuais, daí, por exemplo, a sua sistemá-
tica censura a Aristóteles e à escolástica, no que aí via de predomínio
de um sensualismo, do espírito de autoridade, contrário ao Huma-
nismo científico que emerge com o Renascimento, as Navegações e
cujo corolário, europeu e não-português, é a Revolução científica do
século XVII. Em 1925, AS afirma que esta revolução é, ao ampliar as
conquistas do Renascimento, “o passo mais decisivo de toda a história
do pensar humano”; enquanto que em Portugal, depois deste ter
estado na vanguarda do espírito europeu no séc. XVI, se assiste a “um
espectáculo de estiolamento da mentalidade”.46 Como nota o soció-
logo norte-americano Reinhard Bendix essa revolução é obra de uma
elite: “The effects of science have been more sweeping than the effects

45 Ver CARNEIRO (2002) p. 145, 146, WILKINS (1959) p. 886-887. BLAU (1960)
P. 95-99; sobre ‘engenharia social’ ver CORK (1949) p. 445-6; em carta de JD a
Cork lê-se: “If I were permitted to define ‘socialism’ and ‘socialist’ I would so classify
myself today…[mas] probably my experimentalism goes deeper than any other
‘ism”, CORK (1949) p. 450-1. A proximidade de JD com o socialismo democrático
assinalada por CORK é mais uma convergência entre JD e AS, e bem feliz; o
socialismo de JD seria certamente um socialismo democrático ou uma democracia
socializante, não-estatista, sem ser fanaticamente anti-estatista, favorecendo especial-
mente as associações voluntárias, como as cooperativas.
46 E. II p. 27. O experimentalismo e a crítica (política) à lógica aristotélica encontra-

-se em JD (1920) Reconstruction in philosophy, New York: Henry Holt, capítulo VIII
“Reconstruction as affecting social philosophy”; ver KOOPMAN (2010) p. 700.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 159

of Christianity… But the spread of the scientific movement… has


been the work of a elite. Science cannot became a mass movement.”47
O historiador da ciência H. Floris Cohen, na sua obra de 1994,
The Scientific Revolution: A Historiographical Inquiry, onde se percorre toda
a historiografia precedente sobre o tema, retoma a tese de Herbert
Butterfield de que o brilho da Revolução Científica, que leva à
ascensão do mundo ocidental na história mundial, reduz o Renas-
cimento e a Reforma ao estatuto de meros episódios dentro do sistema
da Cristandade medieval. Na sua obra de 2010, How Modern Science
Came Into the World, Cohen tenta responder, usando argumentos de
história comparada (considerando a época Sung chinesa, o Islão
medieval, o Renascimento) à questão de porque a ciência moderna
surge na Europa do séc. XVII e porque razão o seu desenvolvimento
tem sido continuado. A resposta de Cohen é a de que duas das três
tradições necessárias à emergência da ciência moderna existiam na
Grécia Antiga – a filosofia especulativa, e as matemáticas puras e
aplicadas (geometria euclideana, estática arquimediana, astronomia
ptolemaica). A terceira tradição, que se funde com as anteriores na
Europa dos séc. XVI-XVII, é o experimentalismo que inquire dos
factos da natureza; este tem origem nas navegações e na exploração
dos novos territórios, na mineração, no desenvolvimento tecnológico
que usa as matemáticas e no comércio. Esta atitude difere das ante-
riores por ser mais intervencionista e orientada para o controle e a
dominação, pelo que Cohen designa esta tendência intelectual por
“empirismo coercitivo”. A síntese das três tradições produziu o tipo de
conhecimento da natureza matemático-empírico que reconhecemos
hoje como ciência moderna.48
No livro de 1994, Cohen mostra como a historiografia tratou
inicialmente o caso de Galileu (que nas palavras de AS é o criador da
moderna mecânica) sob perspectivas tão diversas, desde a prioridade
de factores materiais e práticos (Olshki, Bernal, Zilsel) até à inscrição

47 BENDIX, REINHARD (1989) “Advocacy of science: Galileo”, Embattled


Reason: Essays on Social Knowledge, Volume 2, New Jersey: Transaction
Publishers, p. 290.
48 COHEN, H. FLORIS (1994) The Scientific Revolution: A Historiographical Inquiry,

Chicago: University of Chicago Press; (2010) How modern science came into the world Four
civilizations, one 17th-century breakthrough, Amsterdam: Amsterdam University Press.
160 JOÃO PRÍNCIPE

na tradição platónico-arquimediana (e menorização do lado experi-


mental concreto) por Alexandre Koyré.49 A tese do filólogo e histo-
riador Leonardo Olshki (1885-1962) (a qual surge na obra Galileo und
seine Zeit de 1927) é a de que o que permitiu a Galileu transcender a
erudição infértil dos seus antecessores científicos foi o contacto com a
nova tradição de aplicação das matemáticas a questões tecnológicas,
quais a perspectiva linear, mineração, fortificação, balística, tradição
que é invocada na primeira jornada dos Discorsi, trecho citado por AS.
Esta tese é depois ampliada por Edgar Zilsel, sociólogo marxista (mas
independente), filosoficamente partidário do empirismo lógico, e,
como membro do Mach Verein, um dos fundadores do Círculo de
Viena, no artigo de 1942 “As raízes sociológicas da ciência”. O novo
dinamismo do mundo europeu é um elemento central da tese de
Olschki: – se os gregos possuíram a filosofia (racionalista) e desenvol-
veram dedutivamente as matemáticas (no essencial as mesmas dispo-
níveis para Galileu) foi o séc. XVII europeu que realizou o que
poderia parecer embrionário na Grécia antiga, supondo que Galileu,
como pensou Koyré, foi um sucessor directo de Arquimedes. 50
A terceira tradição, posta em evidência por argumentações
pragmático-materialistas, é aquela a que AS se refere quando fala de
Galileu em “O Reino cadaveroso” de 1925; é a ausência lusa da fusão
das três tradições, para o que contribui a falta de actividade industrial
junto com os efeitos da contra-reforma que caracterizam o nosso

49 KOYRÉ, ALEXANDRE (1943) “Galileo and Plato”, Journal of the History of Ideas,
Vol. 4, Nº 4, p. 400-428. ZILSEL, EDGAR (1942) “The sociological roots of
science”, originalmente em The American journal of sociology, Vol. 47, p. 542-62;
republicado em Social Studies of Science, Vol. 30, Nº 6 (2000), p. 935-949 e nos Boston
Studies in the philosophy of science, Nº 200, 2003, com prefácio de Joseph Needham.
50 Sobre as ideias de Olshki ver COHEN (1994), § 5.2. Cohen nota que a tese de

Olshki era bastante inusitada à época; a interpretação marxista tem um zénite


ideológico na tese do físico soviético Hessen (1931) no seu “The Social and
economics roots of Newton’s ‘Principia’”. A edição original do livro de Olschki
(1927) editado por Max Niemeyer Verlag em Halle, existe na BNP; E. II aparece em
1929, mas AS está desde 1926 em Paris, portanto é difícil afirmar-se que AS terá
tido conhecimento da obra de Olschki, até porque “O Reino cadaveroso” terá sido
escrito em 1925. A questão é irrelevante para o interesse de AS por este tipo
inusitado de explicação ‘materialista’, que está em clara harmonia com a sua
historiografia.
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 161

seiscentismo, que explica a persistência do paradigma aristotélico nos


estudos superiores em Portugal, que é lido como sinal da nossa
decadência. A tese de AS é, resumidamente, a seguinte:

Dois povos (o italiano e o nosso) se viram à testa da


revolução. A faina industrial e o comércio marítimo impeliram
à revolução o Italiano; e foram as navegações e os descobri-
mentos (filhos de necessidades comerciais) que iniciaram na
nova atitude a mentalidade do Português. A ciência mecânica
da natureza, pois, saiu da indústria florescente das cidades
italianas, que buscavam exceder-se umas às outras nas activi-
dades da fabricação, no achado de processos e de máquinas
novas. O uso das forças da natureza levou ao sistemático conhe-
cimento das suas maneiras de actuar, obrigando os espíritos
reflexivos à investigação das suas leis. [segue-se a passagem dos
Discorsi de Galileu em que Sagredo afirma frequentar os arte-
sões-engenheiros dos arsenais de Veneza]..... [este novo espírito
foi teorizado por Bacon de Verulano mas foram] Galileu e
Leonardo da Vinci que concretamente o instituíram... O que
nos manuscritos de Leonardo interessa sobretudo os homens de
hoje, – é por um lado, a ideia da importância essencial do novo
método experimentalista, e do correlativo espírito critico; e por
outro lado, a de que sem a aplicação da Matemática à Física
não há física que se tome a sério. A Física pois, ou é Física
quantitativa (o contrário da de Aristóteles), ou não é nada.51

51In E. II, p. 30-32. Nota de Hermínio Martins: “Um livro relativamente recente,
de Alfred W. Crosby The measure of reality documenta extensamente as múltiplas
práticas de mensuração muito difundidas na Itália do Norte, o que sugere que os
hábitos de pensar quantitativos se tinham estabelecido amplamente na vida quoti-
diana, e não só na aritmética comercial e na arquitectura: sem falar da contabilidade
de dupla entrada inventada pelo italiano Paccioli, geralmente reconhecida como
decisiva para a racionalização do capitalismo comercial já por autores como
Sombart (que até exagerou muito a sua importância), Simmel e Max Weber (devida-
mente notada, como não podia deixar de ser, por Zilsel). É verdade que, mesmo que
se tenha constituido um certo habitus quantitativista difuso nessas sociedades, as
cidades-estados comerciais do Norte da Itália, isso não determinou por si só o
quantitativismo na ciência, que se relaciona crucialmente com instrumentos
desenhados para a observação e a experimentação física, tal como, respectivamente,
162 JOÃO PRÍNCIPE

Esta tese sergiana, que tem afinidades interessantes com a tese


de Zilsel (ao coincidir com o argumento deste reduzido ao mais esque-
mático possível) inscreve-se na tendência explicativa que relaciona o

o telescópio, e a bomba de ar em meados do século XVII. Foi bem depois da


invenção do telescópio galileano em 1609 [que AS assinala como o recurso de
Galileu ao método indutivo, experimental] que o telescópio pôde ser utilizado para
fins de determinação quantitativa, como foi o caso cada vez mais, com os “instru-
mentos filosóficos” (id est, científicos) através do século XVII e XVIII. Aliás, como
se tem dito, a grande viragem foi na crença crescente na fiabilidade do telescópio e
outros instrumentos científicos, mais do que nos resultados individualmente consi-
derados. Diria, portanto, que não foi tanto a passagem de uma física aristotélica,
qualitativa, para uma “física quantitativa”, na frase sumária de AS, mas para uma
física instrumental, experimental em que o papel crucial talvez tenha sido a
centralidade do conceito de função matemática, construído lentamente antes de
Galileu, unida agora à busca de precisão numérica, não só à mera preocupação com a
identificação de quantidades (Koyré, ao que me parece, tem toda a razão sobre este
ponto crucial) por via experimental.
Quanto aos instrumentos, vale a pena recordar que o pai de Galileu passou muito
tempo a tentar reconstruir instrumentos musicais da Antiguidade Clássica, além de
trabalhar com os instrumentos musicais do seu tempo. Os instrumentos musicais
cujo estudo e invenção se poderiam classificar como uma “arte nobre” (a música
fazia parte do quadrivium) contaram por alguma coisa na época da formação da
ciência moderna, como mostrou Jay Kassler em vários artigos publicados em
revistas de história da ciência ou de história cultural e em livros. Descartes, como
sabe, chegou a escrever um tratado de musicologia. – Claro que a familiarização de
G. com o que se fazia no Arsenal de Veneza, também contou, e mais, com certeza
(na altura artista/artesão/engenheiro, especialmente engenheiro militar, todos
trabalhando com a matéria, todos podendo inventar, criar novas coisas recortavam-
-se no entendimento geral: na retórica epideictica da Renascença, como criadores,
podiam auto-designar-se como microtheos numa linha de pensamento que leva
eventualmente a Vico: v. o meu livro Experimentum Humanum). No entanto, preocupa-
-me sempre se um certo bias produtivista, marxista ou não marxista, em relação à
tecnologia em geral, e interpretação tecno-económica da história, não nos deixe ver
outras formas de instrumentalidade que não a destinada à produção de bens
materiais (é verdade que Boris Hessen no seu famosíssimo texto publicado em Inglês
em 1931 sobre a interpretação marxista dos Principia de Newton, certamente
considerou tecnologias como a de navegação, não só da produção no sentido mais
literal: note-se que este texto foi uma inspiração e um catalisador para Bernal e
Joseph Needham, que também salientou a importância do nexo, ou da disjunção,
entre scholars e artesãos em vários artigos e na sua obra monumental sobre a ciência
na China).”
SOBRE A UNIDADE DO PENSAMENTO SERGIANO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 163

advento de teorias intelectuais com práticas não intelectuais; esta


tópica inscreve-se no espírito pragmatista, sem ser, no estilo de J. D.
Bernal ou de Zilsel, de inspiração explicitamente marxista.

Podemo-nos perguntar, com alguma tristeza, o que teria acon-


tecido na história do pensamento histórico-sociológico em Portugal se
o grupo da Biblioteca Nacional, que AS integrava, não se tivesse
desfeito com o fim da Primeira República.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA
E O TEÍSMO DA RAZÃO MISTÉRICA,
À LUZ DA METAFÍSICA CRIACIONISTA DE
LEONARDO COIMBRA

Samuel Dimas
CENTRO DE ESTUDOS DE FILOSOFIA
DA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

1. Introdução: divergência na Renascença Portuguesa


entre tradição e modernidade, filosofia e ciência, racio-
nalismo e espiritualismo, panteísmo e teísmo, mito e
mistério?

Pela ação de uma Razão dinâmica e progressiva, em oposição a


uma Razão abstrata e absolutista, o movimento da Renascença Portuguesa,
tem como objetivo fundamental, não apenas, divulgar os ideais
republicanos e democratas de justiça, igualdade, solidariedade e liber-
dade1, mas também redescobrir a identidade da cultura lusófona espi-
ritualista, representada por noções como as de Saudade, Messianismo,
Sebastianismo e Paganismo transcendente, entretanto expressas em ideias-
-símbolos como o Saudosismo de Pascoaes, o Supra-Camões e o Quinto
Império de Fernando Pessoa ou o Criacionismo de Leonardo Coimbra.

1Cf. Leonardo Coimbra, «Comemoração das Constituintes de 1820», in Obras


Completas, vol. IV, Lisboa, INCM, 2007, p.191.
166 SAMUEL DIMAS

Mas esta associação cultural, que tem como órgão oficial a


revista A Águia – Revista Ilustrada de Literatura e Crítica (2.ª série a partir
de 1912) 2 , é herdeira das mais diversas e importantes expressões
culturais do final do século XIX3, como, por exemplo, o liberalismo
romântico de Alexandre Herculano, o republicanismo de José Félix
Henriques Nogueira, o socialismo anarquista do filósofo racionalista
Amorim Viana, o socialismo humanista de Antero de Quental e a
ontologia monista do gnosticismo de Guerra Junqueiro e Sampaio
Bruno, em torno de temas teodiceicos fundantes como a Verdade, a
existência de Deus, a compreensão do Mundo, o problema do Mal, o
mistério da Queda, a Justiça universal e o Messianismo4.
À luz da metafísica criacionista de Leonardo Coimbra, iremos
centrar este nosso ensaio na análise da importância desta última
herança, que se irá desenvolver no pensamento dos filósofos e poetas
da Renascença Portuguesa de forma divergente, constituindo duas grandes
correntes ao nível epistemológico e ontológico. A partir do reconhe-
cimento do sentido trágico da vida e do problema desconcertante do
mal, a divergência de pensamento irá situar-se entre a ontologia mo-
nista do gnosticismo panteísta e a ontologia pluralista do criacionismo
teísta.

2 O título da revista é sugerido pelo poema, «A Morte da Águia», de Jaime Cortesão,


poema heroico e carregado de simbolismo relacionado com as noções de altura,
independência e solidez. Cf. Teixeira de Pascoaes, «Renascença», in Portucale Revista
de Cultura, Porto, 3.ª série, Vol. I, n.º 1-2 (1951-1952), p. 9. Apresenta Teixeira de
Pascoaes o espírito deste movimento pela analogia com as virtudes da águia: «A
Águia, sobranceira e altiva, deixa por instantes, os solitários píncaros da montanha.
Soltando gritos heroicos de superioridade, alarga as asas no gesto impetuoso do
arranque e já devora os ares, com fervor de vida e luta (...) só ama a grandeza dos
horizontes claros. E sempre para mais alto voa ela, longe do grasnar ridículo da
imbecilidade, bem fora do coaxar impertinente da estupidez». Idem, «A Águia», in
A Águia, Porto, Ano I, n.º1, 1.ª série (1 de Dezembro de 1910), p. 16.
3 Sobre este assunto, consultar: Samuel Dimas, «O movimento social da Renascença

Portuguesa: a arte, a literatura e a filosofia para a educação democrática da


República», in Diafanias do Mundo: Homenagem a Mário F. Lages, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2012, pp. 413-428.
4 Cf. Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa – Um movimento cultural

portuense, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1990, pp.15-47.


A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 167

Podemos dizer que a saudade religiosa experimentada pelos


autores da Renascença configura-se de duas maneiras divergentes: na
linha de Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e José Marinho, o
acesso a Deus é feito pela realidade emanativa da sua presença ima-
nente (panteísmo), sob a inteligibilidade de uma razão mítica que tende
a uma configuração indiferenciada do real; na linha de Leonardo
Coimbra, Álvaro Ribeiro e António Quadros, o acesso a Deus é feito
pela realidade analógica da sua transcendência (teísmo), sob a inteli-
gibilidade de uma razão mistérica 5 que também labora no plano
trans-racional pela afirmação de que o Ideal faz-se corporal em
Cristo, salvaguardando a irredutibilidade dos dois planos ontológicos e
permitindo a comunhão entre a imanência e a transcendência de
Deus6.
Identificamos uma divergência radical entre o pensamento
filosófico de autores como Eudoro de Sousa e José Marinho, para
quem o processo de desmitificação é considerado de forma negativa
como fruto do ambiente positivista do iluminismo de querer reduzir a
verdade ao saber lógico-racional7, e o pensamento filosófico de autores
como Amorim Viana, Leonardo Coimbra e António Quadros, para
quem a dimensão implícita do ser não é o mito, mas sim o Mistério, e o
discurso que o diz não é a visão da mitologia ou da filomitia8, mas sim

5 Acerca da distinção entre a razão mítica e a razão mistérica deve consultar-se:


Samuel Dimas, A Metafísica da Experiência em Leonardo Coimbra: Estudo sobre a dialéctica
criacionista da razão mistérica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, p. 557.
6 Podemos aceder à reflexão acerca da transcendência imanente de Deus em:

Manuel Barbosa da Costa Freitas, «Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia», in O Ser


e os Seres, Itinerários Filosóficos, vol. I, Lisboa, Editorial Verbo, 2004, p. 505.
7 Citando Schelling que se refere ao mito como não fazendo parte da explicação

filosófica e científica, José Marinho diz que o mito não pertence ao domínio
positivista do facto, mas sim ao insondável e implícito do ser: «O mito é o sinal do
que estava implícito ao ser e ao saber tais como os outros homens os conceberam,
ele é a advertência do que permanece implícito. Ele diz: prestai atenção, homens
operosos e razoáveis, àquilo mesmo a que é difícil atender!» (José Marinho,
«Mitologia e Filomitia em Oliveira Martins», in Obras de José Marinho, volume VII,
INCM, 2006, pp. 335-336.)
8 «[…] chamar-lhe-emos então filomitia, amor do mito, relação de dinâmica simpatia

espiritual com o mítico ou o mundo mítico.» (José Marinho, «Mitologia e Filomitia


em Oliveira Martins», p. 337.)
168 SAMUEL DIMAS

a visão mistérica da revelação divina e do lirismo metafísico, pela unidade


da linguagem poética e analógica, presente na teleologia de um tempo
trans-mítico bíblico hebraico-cristão. 9 Há uma divergência radical
entre a configuração monista e panteísta do real que resulta do labor
da razão mítica, e a configuração pluralista e teísta do real que resulta
do labor da razão mistérica: esta última procura conciliar o implícito e
indizível do ser com a objetivação da experiência científica e o rigor
lógico da dialética racional, socorrendo-se para isso do discurso ana-
lógico e de uma metafísica do símbolo.
Pela ontologia do símbolo, desenvolvida na metafísica da
Saudade de Leonardo Coimbra, a humanidade passa de uma conceção
mítica e indiferenciadora do real (panteísmo) para uma conceção mis-
térica e diferenciadora dos diferentes planos ou regiões do Ser (teísmo),
em que, por um lado, o divino já não significa a Força obscura e arbi-
trária dos deuses e, por outro lado, o Absoluto não fica reduzido a
uma abstração. Pela inteligibilidade da razão mistérica, a presença de
Deus é concebida como transcendência imanente e as suas criaturas
são concebidas como resultado da dádiva do seu amor super-abun-
dante. Para Leonardo Coimbra, a experiência cristã da infinita
Presença de Deus realiza-se no insondável silêncio da vida existencial
quotidiana10.
Para o saudosismo do poeta Teixeira de Pascoaes, à semelhança
da teoria do egressus e regressus de Plotino e da teleologia reintegra-
cionista de Sampaio Bruno, a salvação significa a purificação do
mundo material pelo regresso emanativo do estado de degradação à
pátria da sua condição divina originária (reintegração na plenitude do
Paraíso celestial), porque «O universo é o numero um explodindo em
inúmeras partículas, que voltarão caindo, à sua unidade originária»11.
Para o criacionismo do filósofo português Leonardo Coimbra, à
semelhança de St.º Agostinho, a salvação é consumada pela encar-
nação do Verbo, como graça outorgada por um Deus pessoal e trans-
cendente “respeitador” do livre arbítrio humano e da ordem da

9 Cf. ibidem, p. 355.


10 Cf. Leonardo Coimbra, «Pastorais», in Obras Completas, vol. V, tomo II, Lisboa,
INCM, 2009, p. 306.
11 Cf. Teixeira de Pascoaes, «Santo Agostinho», in Obras de Teixeira de Pascoaes, Vol.

14, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p.175.


A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 169

natureza, que por via da fé e da ação do Seu Espírito redime toda a


Criação elevando-a à Perfeição: «o Absoluto não é a ideia das ideias, o
bem dos bens, a verdade das verdades; mas o Deus abscôndito em
presença humana, salvando os homens, e, por estes a própria
matéria»12. O regresso à pátria original não significa reintegração
indiferenciadora do plural no Uno, mas sim a redenção de todas as
criaturas na fraternidade universal de uma comunhão gloriosa e
eterna.
Assim, no nosso entender, a maior divergência que acontece na
Renascença Portuguesa não é aquela que normalmente se atribui à cisão
entre aqueles que defendiam a necessidade de revigorar os valores
espirituais do passado da pátria, alegadamente representados pelo
manifesto de Pascoaes da reunião de Coimbra, intitulado «A Renas-
cença Lusitana – Ao povo português»13, e aqueles que defendiam a
necessidade de acolhimento do progresso científico da Europa moderna,
alegadamente representados pelo manifesto de Raul Proença da
reunião de Lisboa, intitulado «Ao povo – A Renascença Portu-
guesa»14.
Até porque esta ideia de que os homens do grupo do Porto,
representados na reunião Coimbra, não eram progressistas e não

12 Leonardo Coimbra, O Homem de Hoje e a Rússia de Sempre, Porto, Livraria Tavares


Martins, 1935, p. 22.
13 Na sequência da reunião de Coimbra de 27 de Agosto de 1911, marcada por

Teixeira de Pascoaes e em que estão presentes, para além de Jaime Cortesão, que
tomara a iniciativa de constituir um programa para a Associação, também Álvaro
Pinto que já dirigira a 1.ª série, Leonardo Coimbra, Augusto Casimiro, Augusto
Martins, Teixeira de Pascoaes e Luís Filipe, é constituído um manifesto em que
caracteriza o espírito lusitano, definindo os princípios essenciais a partir dos quais
deverá ser erguida a obra de uma nova civilização, a saber: beleza, justiça e bondade.
Cf. Teixeira de Pascoaes, «Para a história da Renascença Portuguesa» in A Vida
Portuguesa, Ano I, n.º 22 (10 de Fevereiro de 1914), pp. 10-12.
14 O grupo de Lisboa, de que faziam parte, entre outros, Raul Proença e António

Sérgio, não se faz representar na reunião de Coimbra convocada por Teixeira de


Pascoaes, vindo a reunir-se em Lisboa a 17 de Setembro desse mesmo ano,
contando também com a presença de João de Deus Ramos, Câmara Reis, Martins
Manso, Mário Beirão e Veiga Simões. Este manifesto centra-se na ideia da falta de
adesão da sociedade portuguesa às conquistas modernas e na necessidade de uma
renascença política e social que integrasse o ideário moderno científico. Cf. Raul
Proença, Vida Portugesa, ano I, n.º 22 (10 de Fevereiro de 1914), p. 13.
170 SAMUEL DIMAS

tinham amor à Ciência, nem seguiam o evolucionismo, é uma ideia


falsa como se comprova pelo facto de a revista A Águia publicar
também, com alguma regularidade, artigos sobre ciência moderna e
artigos de índole filosófico-científica, através de autores como Augusto
Martins, Mendes Correia e Leonardo Coimbra, devendo-se a este
último, pela primeira vez, a exposição em Portugal ao grande público
da teoria da relatividade de Einstein15.
A verdadeira e profunda divergência não está entre aqueles que
defendem o racionalismo, a ciência e a análise experimental e demons-
trativa, e aqueles que defendem o espiritualismo, a religião e a intuição
poética, até porque os grandes autores da Renascença defendem estas
duas dimensões, mas sim entre aqueles que abraçam exclusivamente o
cientismo, o positivismo, o evolucionismo e o determinismo e aqueles
que, não deixando de valorizar os progressos científicos, defende uma
teoria integral do Ser, não reduzindo a realidade a uma das suas
regiões, quer seja material ou espiritual. É evidente que, por exemplo,
sendo poeta e espiritualista, Teixeiras de Pascoaes não deixa de valo-
rizar a ciência, nem deixa de procurar o rigor concetual da racio-
nalidade filosófica.
Mas o maior representante desta segunda posição conciliadora
entre o mistério e o logos, a religião e a ciência, a fé e a razão, é
Leonardo Coimbra que na sua obra O Criacionismo, defende que a
realidade não pode ser cousada ou reduzida a uma das suas dimensões,
a partir do já pensado de uma qualquer experiência parcelar. A reali-
dade tem diferentes níveis de ser, exigindo uma síntese dialética das
diferentes experiências cognitivas para a sua compreensão integral:
quedar por um desses planos é cousar a realidade, reduzindo-a a um

15 Destaque-se a referência a este autor a propósito da noção de ascensão da


realidade e da razão experimental construtiva com que o pensamento prevê os seus
movimentos electromagnéticos. Cf. Leonardo Coimbra, «Comemoração das Consti-
tuintes de 1820», in Obras Completas, vol. IV, Lisboa, INCM, 2007, p. 190. Acerca da
influência de Einstein no criacionismo leonardino, consulte-se o seguinte artigo:
Manuel Cândido Pimentel, «Kant, Einstein e Leonardo Coimbra», in Kant:
Posteridade e Actualidade, coordenação de Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, pp. 537-547.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 171

aspeto parcelar, como acontece, por exemplo, com o materialismo, o


substancialismo, o mecanismo, o sensualismo ou o idealismo16.
Assim, a maior originalidade da Renascença Portuguesa está no
desenvolvimento de uma filosofia que se constitui como atividade con-
templativa e criadora do real, num movimento dialético e progressivo
que ascende para mais complexas determinações17 a partir das noções
recebidas de outros saberes e outras ciências 18 . Um movimento
dialético desde a mais simples realidade físico-química, passando pela
realidade bio-psicológica, e ascendendo depois à realidade das expe-
riências científica, estética e ética, e à realidade da experiência-síntese
metafísico-religiosa, que pelo recurso às noções superiores de liber-
dade moral e infinito excesso, apresenta o Mistério de Deus criador e
redentor como expressão última do Ser e agente coordenador de todas
as relações19.
De que forma Leonardo Coimbra, procura conciliar a expe-
riência e o pensamento, a intuição e a razão, a filosofia e a ciência? E
ao mesmo tempo, como já enunciámos, que divergência fundamental
existe entre a metafísica filosófica-poética deste autor teísta e a meta-
física poético-filosófica de autores panteístas como, por exemplo,
Teixeira de Pascoaes? Em que termos encerram conceções distintas da
razão e dos caminhos de acesso ao Ser divino?

2. Para a superação do antagonismo entre a razão e a


experiência, a unidade e a pluralidade

O pensamento filosófico de Leonardo Coimbra apresenta-nos a


teoria metafísica da Experiência para justificar o sentido da livre relação
entre o Ser e os seres. E para tal, constrói um método dialético criacio-
nista de cariz ideorrealista, em que pensar e ser mutuamente se
fecundam, o qual tem na correlação entre a Razão experimental lógico-
-discursiva e a Razão mistérica analógico-intuitiva o seu instrumento

16 Cf. Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, Porto, Renas-
cença Portuguesa, 1912, in Obras Completas, vol. I, tomo II, Lisboa, 2004, p. 61 [43].
17 Cf. ibidem, p. 49 [32].
18 Cf. ibidem, p. 45[28-29].
19 Cf. Idem, «O mistério», in Obras Completas, vol. I, tomo I., Lisboa, INCM, 2004, p. 181.
172 SAMUEL DIMAS

gnosiológicos mais adequado. O autor situa a origem desta questão


metafísica, acerca da relação entre a Unidade essencial da Origem e a
pluralidade existencial das criaturas, na aurora da experiência reli-
giosa da Humanidade, ilustrando-a com uma citação da poesia do
hinduísmo: «Deus, na sua imensa solidão, suspirou – Ah! Se eu fosse
muitos! E o mundo fez-se»20.
A partir da reflexão de Émile Boutroux acerca da recusa da
necessidade absoluta da ciência dedutiva, que de forma puramente formal
e abstrata determina a imobilidade da natureza, em nome de uma
teoria da contingência, que afirma, não apenas o carácter livre do Ser
absoluto, mas também a intervenção dessa liberdade no curso dos
fenómenos21, a noção criacionista leonardina acerca do valor ontoló-
gico da Experiência afigura-se, assim, como uma tentativa de superar o
dualismo clássico entre a imobilidade do Ser de Parménides e o fluxo
incessante da Natureza de Heraclito, vertido na contraposição entre as
correntes filosóficas do idealismo e do materialismo, e apresenta-se,
igualmente, como uma procura de superar o dualismo moderno
kantiano entre o pensamento universalista de uma Razão imóvel e a ação
de uma Razão prática autónoma e dinâmica22, o qual se traduz na dua-
lidade entre uma realidade inerte e fenoménica, passível de objeti-
vação científica, e uma realidade numinosa oculta e incognoscível.
O pensamento filosófico-teológico de Leonardo Coimbra,
recusando o solipsismo radical de reduzir toda a realidade ao mero
facto de ser pensada, procura conceber racionalmente a concomi-
tância entre a Unidade e a pluralidade, o divino e o humano, o idên-
tico e o diverso, o mesmo e o outro, o livre e necessário, sem cair na
indiferenciação ontológica do panteísmo ou na oposição ontológica do
dualismo entre a realidade verdadeira do plano inteligível e aprio-
rístico da «coisa em si» e a realidade aparente do plano sensível e
experimental.

20 Idem, O Pensamento Criacionista, Porto, Renascença Portuguesa, 1915, in Obras


Completas, vol. II, Lisboa, INCM, 2005, p. 280 [193].
21 Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature, Paris, Librarie Félix Alcan,

1921, pp.7; 136; 146; 149.


22 Cf. Leonardo Coimbra, A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, Porto, Renascença

Portuguesa, 1923, in Obras Completas, vol. V, tomo II, Lisboa, INCM, 2009, p. 22
[21-22].
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 173

Para Émile Boutroux, a contingência dos fenómenos, dados na


experiência e determinados na hierarquia das leis gerais do Mundo, é
expressão da liberdade infinita da ação criadora e providencial do ser
perfeito e necessário de Deus23. A contingência das coisas, que se
comprova nos movimentos de mudança, progresso ou decadência, é o
sinal exterior da potência infinita da liberdade que constitui o funda-
mento da realidade24. Por seu turno, também o homem não é um
mero espectador dos acontecimentos do Mundo, sujeitos à força
impenetrável e irresistível do Destino, caracterizando-se, não apenas
por ser autor do seu carácter, mas também por poder intervir no curso
da sua vida25: a natureza humana, enquanto forma superior da cria-
tura, possui nas formas de vontade, pensamento e sentimento, a
tradução simbólica do ideal da perfeição divina26.
A perfeição da vontade será a caridade, a perfeição do pensa-
mento e da inteligência será o conhecimento completo e a perfeição
da sensibilidade será a felicidade que acompanha o exercício inteli-
gente e eficaz da caridade27. Assim, a fim de poder cumprir o Bem
obrigatório, o homem é dotado de uma livre espontaneidade inteli-
gente, cuja forma mais excelsa é o livre arbítrio, ou a faculdade de
escolher entre o bem e o mal, evitando que a hereditariedade, o ins-
tinto e o temperamento se constituem como leis absolutamente fatais:
a liberdade do homem não se fundamenta num determinismo uni-
versal28.
No entanto, superando a posição de Émile Boutroux, que faz
uma nítida cisão entre o carácter contingente e sensível da experiência,
que apenas apreende as coisas atualmente realizadas, e o carácter
necessário da razão, que nos dá a natureza superior dos seres revelados
aos nossos sentidos no âmbito do seu poder criador anterior ao ato29,
Leonardo Coimbra vai dar um novo alcance à noção de experiência,
caracterizando-a como um longo e cúmplice convívio meditativo do

23 Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature, p. 150; 151; 156.
24 Cf. ibidem, p.136; 151.
25 Cf. ibidem, p. 131; 150.
26 Cf. ibidem, p. 157.
27 Cf. ibidem, p. 159.
28 Cf. ibidem, p. 160.
29 Cf. ibidem, p. 151.
174 SAMUEL DIMAS

pensamento com o Ser, em que a atividade dialética intuitivo-racional


e hipotético-construtiva vai criando as diversas noções da realidade,
desde a inerte à espiritual30.
A Experiência não é aparente, nem condicionada de forma a priori,
mas ao contrário, nada a excede e é a sua radical existência que
constitui o dinamismo essencial da realidade, explanando os seus infi-
nitos modos de ser31 e tendo na noção de Deus a plena e perfeita
Unidade32. A relação do pensamento com o ser é uma experiência,
porque não é um conhecimento absoluto de imediata e perfeita ade-
quação, mas é um conhecimento dinâmico e variável de progressiva
apropriação, onde confluem, de forma correlativa, não apenas o
momento indutivo e o momento dedutivo das dialéticas científica e
filosófica, mas também os conhecimentos de ordem estética, ética e
religiosa.
Está presente na obra de Leonardo Coimbra a dupla necessi-
dade de conciliar o sentimento e a inteligência, a fé e a razão, a
matéria e o espírito, preocupação que está na génese do espírito da
Renascença Portuguesa. O artigo «Renascença», com que Pascoaes inicia
a segunda série de A Águia, e que é considerado como o terceiro e
definitivo manifesto desta Associação33, define a orientação da nova
revista, fundamentando-a naquilo em que acredita ser a especificidade
da cultura lusófona e da alma portuguesa, isto é, a saudade no sentido
metafísico:

A Saudade é o próprio sangue espiritual da Raça (...),


saudade, neste sentido, – encerra uma posição herdada de
Amorim Viana que procurava a superação de uma radical
separação entre razão e fé, filosofia e teologia, religião natural e
revelação cristã, ou seja, uma preemente preocupação em

30 Cf. Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, Porto, Renascença Portuguesa,


1916, in Obras Completas, vol. III, Lisboa, INCM, 2006, p. 160 [195].
31 Cf. Idem, A Luta pela Imortalidade, Porto, Renascença Portuguesa, 1918, in Obras

Completas, vol. III, Lisboa, INCM, 2006, p. 288 [78].


32 Cf. Idem, A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras Completas, vol. III, p. 182 [232].
33 Cf. Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa-Um movimento cultural

portuense, p.98
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 175

superar todo o tipo de dualismos gnosiológicos e ontológicos, –


e quer dizer, o sentimento-ideia, a emoção reflectida.34

Uma noção de fusão entre a emoção e a ideia, o sentimento e a


inteligência, a intuição e a razão, que viria a ser celebrizada por
Fernando Pessoa através da expressão «o que em mim sente s’tá
pensando»35 e que era atribuída apenas ao homem de génio, o intui-
tivo que se serve da inteligência para exprimir as suas intuições36.
Razão e experiência não são realidades antagónicas e não são instru-
mentos suficientes para revelar a o real.

3. Para a superação do antagonismo entre razão lógica


do discurso analítico-demonstrativo e a razão analógica do
discurso poético-emocional

No plano reflexivo desta hierarquização da realidade, Leonardo


Coimbra partilha com o filósofo francês Émile Boutroux a ideia de
que o carácter contingente da experiência e o carácter necessário da
razão não são suficientes para uma teoria integral do Ser: os sentidos
mostram-nos as mudanças, sem serem capazes de as explicar, e o
entendimento revela-nos a necessidade conservadora de certas formas
de ação através dessas mudanças, explicando-as, mas os princípios das
coisas ou as suas causas, propriamente ditas, apenas nos podem ser
dados pela metafísica no seu coroamento último de unidade entre
experiência teológica e experiência religiosa.
O conhecimento das coisas na ordem da sua criação será o
conhecimento em Deus 37 , que Leonardo enquadrará no dom da
revelação e na graça do lirismo metafísico da visão ginástica. Partilha com
o pensador francês a ideia de que a experiência e a razão formal abstrata
não podem fornecer a verdadeira ideia de Deus. Para se apreender a
totalidade do real não podemos ficar apenas pelo mundo dado na
experiência, mas também não é suficiente o recurso à noção de

34 A Águia, 2.ª série, Porto 1912, n.º 1, p.1.


35 Fernando Pessoa, Obras de Fernando Pessoa, vol. I, Porto, Lello e Irmão, 1986, p.188.
36 Cf. ibidem, p. 33.
37 Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature, p. 152.
176 SAMUEL DIMAS

necessidade, que é a forma do entendimento 38 . À semelhança de


Boutroux também Leonardo Coimbra irá situar na experiência-síntese
da metafísica moral e religiosa a faculdade humana de reconhecer a
ação livre e criadora do Bem supremo de Deus e o sentido da reden-
ção integral dos seres criados.
O entendimento, com a sua categoria de necessidade é apenas o
meio-termo entre o mundo e Deus, pelo que precisamos de uma
faculdade superior para ver em Deus outra coisa que não seja apenas
uma mera possibilidade ideal, dando um verdadeiro conteúdo à ideia
abstrata de necessidade e perfeição39. Para Boutroux, encontramos
essa faculdade no conhecimento prático do bem, porque a vida moral
é o esforço do ser livre de Deus em se realizar: sentimos a ação cria-
dora de Deus no mais íntimo de nós mesmos e no esforço por sermos
como Ele. A essência divina é coeterna à sua liberdade, é essência
atual: a necessidade divina é uma necessidade prática no mérito
absoluto do ser se realizar e, ao mesmo tempo, é imutável, porque é
plenamente realizada40.
Mas de que forma o criacionismo procurará a inteligibilidade e
unificação da heterogeneidade dos singulares, dados na experiência,
sem cair numa perspetiva cousista ou redutora do real?
Verificaremos que o fará, em primeiro lugar, afastando-se das
posições dualistas de autores como Kant, pela aplicação da noção de
Experiência no sentido ontológico de uma relação cósmica de social-
zação dos seres com o Ser supremo, na unidade integral da memória,
beleza, verdade e amor41, relação essa que se consumará na redenção
integral de toda a existência através da espiritualização gloriosa da
vida divina.
Em segundo lugar, opondo-se aos monismos de autores como
Hegel, pelo estabelecimento de uma hierarquia da realidade, cuja
relação é apreendida pela consciência humana na dinâmica dialógica
das suas diferentes experiências parcelares de ser e cuja dialética tem
por corolário, não a diluição do heterogéneo na unidade do Absoluto,

38 Cf. ibidem, p. 154.


39 Cf. ibidem, p. 156.
40 Cf. ibidem, p. 157.
41 Cf. Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, Porto, in Obras Completas, vol. III,

p. 161 [196].
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 177

mas a transfiguração dos seres finitos na perfeição da infinita frater-


nidade divina.
Em terceiro lugar, ao arrepio do positivismo de autores como
Bertrand Russell, pela recusa da oposição entre a razão lógica do
discurso analítico-demonstrativo e a razão emocional do discurso poé-
tico-analógico, porque este último invoca uma iluminação ou vidência
que não se atinge por processos exclusivamente rácio-empíricos. Se o
Mistério do Ser de Deus não fosse lógico, não seria comunicável, nem
cognoscível, remetendo-se para o plano do incompreensível e do
absurdo. A solução está na razão mistérica que encerra as duas
dimensões em dinâmica correlatividade.
Ao contrário de Russell, que contrapõe o conhecimento intui-
tivo e revelacional da filosofia mística ao conhecimento analítico e
racional da filosofia lógica e da filosofia científica, caracterizando nega-
tivamente o primeiro como uma crença na lucidez de um momento de
súbita e inefável visão (que advém da ideia de existência de uma
realidade espiritual por de trás do mundo temporal das aparências) 42,
Leonardo Coimbra harmoniza os dois conhecimentos através da sua
dialética intuitivo-racional, que culmina na iluminação da visão ginás-
tica e no salto metanoico do lirismo metafísico e da Revelação, apresen-
tando o movimento dos seres na saudosa e relacional dependência do
Ser divino como a divina ação criadora dos mundos corpóreos para
resgate das almas decaídas.
No diálogo estabelecido com Bertrand Russell, na obra A Razão
Experimental, Leonardo Coimbra, começando por citar a referência
que é feita a Platão e Heraclito na procura de harmonia entre o mis-
ticismo e a ciência43, desenvolve a sua reflexão na crítica ao pensa-
mento do filósofo inglês que, ao associar a tendência mística do pensa-
mento instintivo e intuitivo de autores como Bergson a uma reversão
às formas míticas e religiosas da iluminação e revelação, por contra-
posição com a razão e a análise44, acaba por pretender reduzir a
filosofia ao estudo analítico da experiência científica45.

42 Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, London, Penguin Books, 1954, pp. 15-16.
43 Cf. Leonardo Coimbra, A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, in Obras Completas,
vol. V, tomo II, p. 61 [74].
44 Cf. ibidem, pp. 36-37 [40-41].
45 Cf. ibidem, p. 58 [69].
178 SAMUEL DIMAS

Leonardo Coimbra recusará a divergência estabelecida pela


geração coimbrã de autores como Antero de Quental e Teófilo Braga
entre o sentimentalismo romântico e o cientismo moderno das novas
correntes como o Humanismo de Proudhon e o Positivismo de Comte.
A configuração da realidade não pode ser reduzida à lógica expe-
rimental do moderno cienticismo positivista de Copérnico, Kepler,
Galileu, Comte e Newton: «O cienticismo é o desprezo da autonomia
espiritual pela divinização da objectividade inerte»46.
Leonardo Coimbra considera que a idolatria da ciência trans-
formou a mais bela obra da liberdade humana numa nova fatalidade
e sombrio determinismo: «A Ciência, que vinha marcando o grau de
liberdade do homem, que vinha afeiçoando a máscara da Fatalidade
cósmica aos seus secretos intentos de amor, paira agora com uma
nova e sombria Fatalidade, de suas asas membranosas, escondendo o
claro Sol da Alegria.»47 Sem conseguir equilibrar-se face ao irracio-
nalismo do ser e à complexidade do concreto, sentindo necessidade de
amputar a incomensurável realidade, esta mentalidade moderna
esgota-se no esforço de intelectualizar o ser48. Leonardo Coimbra
afirma que na ausência de reflexão filosófica o método do cientismo
estende-se sobre todo o real e, constituindo-se em metafísica incons-
ciente, dá origem a formas de intelectualismo como o positivismo, o
materialismo, o mecanicismo e o racionalismo. A recusa de posições
irracionais e panteístas conduz à redução do ser à sua dimensão
material mensurável.
Neste enquadramento, para Bertrand Russell a iluminação
mística consubstancia-se na revelação de uma realidade una, indivisí-
vel e invariável, radicalmente distinta do mundo plural das aparências,
posição que, no seu entender, terá sido introduzida por Parménides e
que viria a dar origem ao panteísmo religioso e ao monismo filo-
sófico49. Esta crítica à pré-lógica e também à lógica da Razão mística,
de ordem mítica, é partilhada por Leonardo Coimbra que, adotando
as recentes teorias científicas acerca da conservação da energia e da

46 Leonardo Coimbra, «O preconceito científico», in Obras Completas, vol. I, tomo I,


p. 230.
47 Idem, «Louvor da Liberdade», in Obras Completas, vol. IV, p. 108.
48 Cf. ibidem, «O preconceito científico», in Obras Completas, vol. I, tomo I, p. 229.
49 Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, p. 24.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 179

massa e as noções metafísicas acerca da alteridade relacional da Ori-


gem, recusa a tese acerca da irrealidade do tempo por contraponto à
ideia de que o autenticamente real é a substancialidade imutável50 e
recusa a tese acerca da indiferenciação entre o plano divino e o
humano. Mas ao contrário de Russell, fundamenta no próprio dina-
mismo do Ser e do saber a correlação entre o lógico e o mistérico.
Para Leonardo Coimbra, o Mistério é a origem de toda a reali-
dade e perdurará no tempo analogicamente e poeticamente através da
dialética intuitivo-racional e da visão ginástica. Por isso, no âmbito da
sua preocupação em salvaguardar a correlação entre o transcendente
e o imanente, substitui o significado mítico-mágico de Razão mística, tal
como fora enunciado por Lévy-Bruhl, pelo significado lógico e
analógico metafísico-religioso da Razão mistérica. Uma Razão que,
não só se distancia do sentido mágico dos mistérios de Elêusis e do
sentido do conhecimento direto de Deus da tradição patrística
origenista e augustiniana, como também se distancia das noções de
conhecimento sob espécie eterna, da intuição intelectual de Espinosa51
e de conhecimento da intuição pura divinatória de Bergson52.
A Razão mistérica, que encerra o ver da Revelação e do lirismo
metafísico da filosofia criacionista do Mistério, desenvolve-se a partir do
sentido cristão descrito por Pseudo-Dionísio Areopagita acerca do
Verbo encarnado como manifestação da incomensurabilidade do Ser
de Deus, que habitando numa luz inacessível, se oculta enquanto se
revela. A realidade espiritual e transcendente do Mistério, que corres-
ponde à relação primigénia da plena harmonia de Ser, não se revela
apenas na ordem da sensibilidade e da imaginação, mas também na
ordem da comunicação, do conhecimento e do Amor.
A realidade espiritual e transcendente do Mistério, que corres-
ponde à relação primigénia da plena harmonia de Ser, não se revela
apenas na ordem da sensibilidade e da imaginação, mas também na
ordem da comunicação e do conhecimento. Por outro lado, não se

50 Cf. ibidem, pp. 26-27.


51 Cf. Leonardo Coimbra, A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, in Obras Completas,
vol. V, tomo II, p. 25 [25].
52 Cf. Idem, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras Completas, vol I, tomo

II, p. 281 [228]. Cf. idem, A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, in Obras Completas,
vol. V, tomo II p. 47-48 [54-56].
180 SAMUEL DIMAS

trata de um conhecimento imediato e absoluto, à maneira da razão


mística da configuração mítica do real, que não faz a completa distin-
ção entre as ordens divina e humana, física e moral. Trata-se de um
conhecimento mediado pela representação analógica e pela lingua-
gem poético-simbólica, que não dispensa a experiência dialética judi-
cativa e não admite o instantâneo e claravidente abraço unitário com
Deus. A razão mistérica, que encerra a unidade entre o saber poético-
-intuitivo e o saber lógico-conceptual, anuncia um Ser que se oculta
enquanto se revela e como adverte José Marinho, na sua reflexão
acerca da correlatividade entre o pensamento lógico e o pensamento místico,
a substantividade do Logos não se reduz ao carácter demonstrativo,
claro e coerente53.

4. A divergência entre a razão mítica da imanência e a


razão mistérica da transcendência

O Mistério, na perspetiva da metafísica cristã do criacionismo,


não é uma arbitrariedade da linguagem ou uma invenção poética,
mas tem um fundamento vital próprio e encerra uma necessidade de
razoabilidade que exige a análise crítico-filosófica. No entanto, o pro-
cesso mistérico da experiência religiosa, aqui descrito, não é uma
teogonia, em que, de forma degradativa, o próprio Deus vem a ser e na
pluralidade dessa passagem se reconhece como eterna Unidade –
como defendia Schelling em relação ao processo mitológico54 –, mas é
uma teofania, em que Deus se manifesta na História de forma simbólica
e torna-se presente pela Graça do seu amor, mas permanece
Absconditus na sua essência, porque nós nunca nos confundiremos com
Ele.
Na luz invisível do Mistério a teoria criacionista reconhece a
diferença e alteridade da Relação divina. A Graça da presença de

53 Cf. José Marinho, «Análise de Misticismo e Lógica – III», in Obras de José Marinho,
vol. VII, INCM, 2006, p. 61.
54 Cf. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, Einleitung in die Philosophie der Mythologie, in

Ausgewählte Schriften, band 5, ed. Manfred Frank, Frankfurt am Main, Suhrkamp


Verlag, 1985, pp. 25-26. = [Introduction a la Philosophie de la Mythologie, tome I, trad. de
Jankélévitch, Paris, Aubier, 1945, pp. 7-8].
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 181

Deus dá-se de forma espiritual e incomensurável na expressividade


natural e na experiência consciente, desde a mais elementar vivência
pré-categorial do nível físico-psíquico até à mais elevada intelecção
metafísico-religiosa55.
A oposição entre a transcendência de Deus e a imanência do
Mundo é superada pelo excesso do dom da salvação no mistério da
Encarnação. Sem que seja eliminada a transcendência, porque não é
possível abarcar o mistério de um Deus feito homem, essa transcen-
dência dá-se na imanência da nossa história. Na manifestação pessoal
da sua realidade relacional de identidade e alteridade, Deus é, ao
mesmo tempo, transcendente e imanente, diferente e idêntico, consigo
mesmo, connosco e com o Mundo. A livre atividade da segunda cria-
ção da existência terrena do Universo sensível é símbolo ou manifes-
tação saudosa da livre atividade da primeira criação, na Unidade ori-
ginária da coexistência divina com as almas em perfeita e universal
fraternidade. A noção transcendental de saudade é o sentimento desta
máxima presença de Deus na dinâmica eterna do seu cuidado amo-
roso e, simultaneamente, da sua radical ausência, ocultando-se à razão
humana na imensidão da sua infinitude criadora56.
À semelhança de eminentes filósofos como Platão, Heraclito,
Aristóteles, Descartes e Kant, Leonardo Coimbra vai procurar har-
monizar a experiência científica com a experiência mística cristã,
construindo uma metafísica do Mistério, que embora também recorra
à emoção poética e à linguagem imaginativa, não rejeita a lógica do
conhecimento analítico e discursivo, nem o conhecimento sensível da
experiência empírica. Ao contrário de Bertrand Russell, que recusa a
filosofia mística em nome da neutralidade ética 57 , naquilo que
considera ser a forma de pensamento superior da filosofia científica58,
o trabalho de Leonardo Coimbra não se reduz a uma gnosiologia
orientada para uma epistemologia científica.
A sua dialética judicativa científico-filosófica, inspirada em
Octave Hamelin e Émile Boutroux, – que ordena hierarquicamente as

55 Cf. Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras Completas, vol. III, p. 145
[171].
56 Cf. ibidem, p. 66-67 [43-45].
57 Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, p. 35.
58 Cf. ibidem, p. 36.
182 SAMUEL DIMAS

realidades do mecânico à consciência –, ascende até à noção de pessoa,


enquanto consciência que é atividade livre, responsável e criadora, e
culmina nas noções de volume e hipervolume espiritual do real. Noções
descritas no âmbito de uma estrutura metafísica que, sob a vinculação
do racionalismo e do empirismo, operada pela Razão experimental na
influência de Brunschvicg, envolve a contradição entre a transitorie-
dade do fluxo sensível da vida e a permanência e necessidade da
razão. Pela memória, o espírito liberta-se da morte que essa vida de
incessante fluxo encerra e vislumbra a imortalidade integral da pessoa
na plenitude gloriosa de perfeição e Amor da vida do Além.
Assim, Leonardo Coimbra, afasta-se do positivismo de autores
como Bertrand Russell, para quem os motivos éticos e religiosos,
considerados essencialmente como um produto do instinto gregário, se
constituíam como um estorvo para o progresso da filosofia59, a qual,
no trabalho de procura da solução para problemas como o da unidade
do mundo, devia manter uma perspetiva agnóstica e seguir o método
científico em que as várias teorias estão sujeitas a correção60. Embora
a filosofia criacionista leonardina exija a dialética científica de cons-
truções hipotéticas e adote desta a noção de carácter progressivo do
conhecimento, não reduz o seu labor à análise demonstrativa do
método científico, e partilhando com Émile Boutroux a ideia de que o
elemento moral é a essência do mundo metafísico61, elabora uma
dialética metafísica de inspiração ética e religiosa que define o Ser
como ato puro de fraternal Caridade e o Universo como meio
redentor dos seres criados. Deus é definido como o bem supremo,
criador da essência e da existência dos seres62.
Assim, a noção de necessidade não é mais que a tradução em
linguagem lógico-abstrata, da ação exercida pela suprema bondade de
Deus sobre as suas criaturas, pelo que, de acordo com esta doutrina
criacionista da metafísica da liberdade, inspirada na doutrina da con-
tingência de Boutroux, os princípios supremos das coisas são leis, mas
são leis morais e estéticas, que exprimem de forma mais ou menos

59 Cf. ibidem, p. 95.


60 Cf. ibidem, p. 100.
61 Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature, Paris, Librarie Félix Alcan,

1921, p. 148.
62 Cf. ibidem, p. 157.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 183

imediata a perfeição divina, preexistindo aos fenómenos e fundamen-


tando os agentes doadores de espontaneidade63. Para Leonardo, como
para Boutroux, as leis da natureza não possuem uma existência abso-
luta e expressam apenas um estádio inferior da realidade, apresen-
tando-se na sua constância aparente como imagem artificialmente fixa
e imóvel da essência dinâmica e progressiva do real64.
Ao contrário, para Russell, esta atitude metafísica significa
atribuir leis ao Universo a partir dos desejos atuais do homem, ficando
a dever-se a um antropocentrismo precoperniciano de converter os
desejos, ideais e esperanças no centro do Universo65. A metafísica
ética é caracterizada por este autor como uma forma dissimulada de
dar valor de lei aos desejos humanos atuais, nomeadamente, identi-
ficando o bem com o autenticamente real e, por isso, qualquer con-
ceção do mundo nestes termos não é imparcial e completamente cien-
tífica. As questões do bem e do mal não são um problema da filosofia
científica, que tem como único objetivo a compreensão do mundo
através de um atomista método analítico, não lhe cabendo qualquer
tarefa relacionada com a melhoria da vida prática dos homens ou com
o sentido da experiência religiosa66.
Embora a partir de algumas passagens d’ O Criacionismo, se possa
interpretar que Leonardo Coimbra evita o naturalismo panteísta e a
teoria da Perfeição diminuída 67 de Sampaio Bruno, com o recurso à
perspetiva kantiana de apresentar a metafísica, não como obra da
razão teórica, mas como postulado da razão prática, descrevendo que
só pela atividade moral se pode atingir Deus68, podemos afirmar com
segurança, a partir da análise da totalidade da sua obra, que a filosofia
leonardina se fundamenta no noção central de Mistério do Ser e no
desenvolvimento teorético de uma metafísica, que não é apenas
fecundada pelo lirismo irracionalista do pensamento em ato primeiro,
sob o alcance do sentimento saudoso da visão ginástica, mas que, sob a

63 Cf. ibidem, p. 169.


64 Cf. loc. cit.
65 Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, p. 104.
66 Cf. ibidem, p. 106.
67 Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras Completas,

vol. I, tomo II, p. 369 [303].


68 Cf. ibidem, p. 365 [299].
184 SAMUEL DIMAS

influência, por exemplo, de Maurice Blondel, também é iluminada


pela revelação e «fecundada pelo espírito do Cristianismo»69.
Nesta perspetiva, porque o Mundo, enquanto ação e inércia, é
considerado, não como um dado bruto ou como uma degenerescência
divina, mas como uma plural sociedade cósmica de mónadas70, desde
o mais superficial afloramento de vida até às mais amplas e profundas
consciências, que vivem em reciprocidade de pensamento e de ação,
justifica Leonardo que a única tese que pode defender acerca do sau-
doso regresso à Perfeição originária de Deus é a do criacionismo moral71,
em que a vida plena em Deus, a que as consciências aspiram, não se
dá pela absorção ou diluição do Mundo, mas pela instauração de uma
vida social ideal de justiça e fraternidade perfeitas72. A partir da meta-
física cristã, irá defender que no mistério da ressurreição universal o
próprio Mundo será integralmente redimido pela espiritualização dos
seus corpos.

5. A divergência entre a ontologia imanente do panteísmo


e a ontologia transcendente do teísmo

Fundando a sua metafísica sobre a noção de Experiência,


enquanto diálogo do pensamento com o Ser73, Leonardo Coimbra irá
partilhar com o filósofo francês Alfred Fuillée a crítica à metafísica
dogmática, por esta afirmar coisas74 materiais e espirituais anteriores à
experiência da consciência (oposição entre sujeito e objeto) e por

69 Idem, A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Porto, Livraria Tavares Martins, 1935,
in Obras Completas, vol. VII, Lisboa, INCM, 2012, p. 52 [57].
70 Cf. Idem, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras Completas, vol I, tomo

II, p. 370 [304].


71 Ibidem, p. 370 [303].
72 Cf. ibidem, p. 373 [306].
73 Cf. Idem, A Alegria, a Dor e a Graça, Porto, in Obras Completas, vol. III, p. 160 [195].
74 Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fundée sur l’expérience, Paris, Félix Alcan

éditeur, 1889, p. 286.


A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 185

defender que é na ação daquelas que esta consciência se constitui


(perspetiva substancialista)75.
A noção de Experiência constitui-se, assim, como fundamento do
trabalho gnósico acerca da relação entre o Ser e os seres e acerca do
Ato redentor da Criação e constitui-se como condição do esforço ético
e religioso da vontade em atingir a eternidade na vida livre e cons-
ciente da fraternidade universal. Assim, para o criacionismo leo-
nardino, o pensamento, que no íntimo diálogo com o Ser, se apreende
como contínua ação criadora em experiências inventivas de novas e
amplificantes relações76, participa de modo imperfeito da vida eterna
do Ato auto-criador de Deus, que na super-abundância do seu Amor
excedeu a sua plenitude e criou o Universo.
Por outro lado, Leonardo Coimbra partilha com este autor
francês a crítica à metafísica puramente experimental, por se limitar a
descobrir os elementos necessários da experiência imanente, sem pro-
curar a sua origem ou causa primeira transcendente77. A noção de
experiência não significa a passiva e imediata receção das proprie-
dades das coisas. Não se reduz ao plano do conhecimento objetivo da
realidade sensível e ao domínio da plural evanescência do Mundo, no
sentido negativo de uma deterioração da própria realidade, provocada
pela cisão no Ser e pela Queda.
Ao contrário do enunciado pelo imanentismo degressivo de
Sampaio Bruno, para o criacionismo leonardino, a passagem do Abso-
luto ao relativo e do Uno ao múltiplo não é um mal, que resulta do
facto de Deus, por um secreto mistério, ter perdido a sua omnipo-
tência, mas é um bem que resulta de um ato amoroso de livre e
criadora gratuidade. O mal é uma experiência de ordem ética e a
solução para o vencer é a afirmação de uma vontade heroica, que na
adversidade e na dor, se preserva pela prática do bem e não perde a
Esperança da harmonia na Absoluta plenitude.

75 Alfred Fouillée fundou a sua metafísica na experiência interior e exterior da


consciência, considerando essa metafísica como progressivamente realizável.
Cf. ibidem, p. 283.
76 Cf. Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, Porto, in Obras Completas, vol. III,

pp. 16-17 [2-3].


77 Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fundée sur l’expérience, pp. 286-287.
186 SAMUEL DIMAS

Nesse sentido, Leonardo Coimbra, através do seu método dialé-


tico, descreve as experiências da realidade como formas parciais e
imperfeitas de inteligibilidade do Ser, remetendo para a experiência-
-síntese da metafísica moral a prefiguração do plano da idealidade
eterna, em que se dá a possibilidade da Experiência integral do eterno
e incorruptível amor universal. Para Alfred Fuillée a experiência com-
pleta e total é a síntese universal e necessária do mundo atual ou real,
que o homem não pode alcançar. Por isso, contenta-se com a expe-
riência mais ampla possível, tarefa metafísica que não se confunde,
nem com a ciência, que fica pelo físico e orgânico, nem com a poesia,
que se satisfaz com o imaginário mítico. A metafísica esforça-se por
apresentar um sistema inteligível do real, que é uma explicação uni-
versal, em que a aparente cisão entre a inteligência e os seus objetos é
resolvida de forma monística na unidade da síntese última entre o
físico e o mental, o sensível e o inteligível78.
Mas se para o filósofo francês a experiência integral realiza-se
na unidade universal da síntese última absoluta, à semelhança das
metafísicas monistas de Schopenhauer e de Hegel, para Leonardo
Coimbra a unidade integral da experiência realiza-se na pluralidade
relacional do Ser perfeito de Deus, excedendo-se em invenções amo-
rosas sem limite79. Por isso, podemos compreender a noção de saudade
criadora de Deus, não como marca de incompletude e sentimento de
contingência, que seria saciado pelo movimento emanativo de retorno
dos seres ao Todo da Unidade divina anterior à cisão de si mesmo,
mas como radical sentimento ontológico da alteridade, na presença da
qual se constituem todas as outras alteridades, e como desejo de per-
manência da relação dos seres na unidade divina, num movimento de
perpétuo saciamento, cuja dinâmica de comunhão aumentará nas
consciências o desejo do seu excessivo e criativo Amor80.
Daqui se compreende a profunda divergência entre a metafísica
da saudade de Teixeira de Pascoaes, desenvolvida na linha plotiniana
da teleologia reintegracionista de Sampaio Bruno, e a metafísica da

78 Cf. ibidem, p. 290.


79 Cf. Leonardo Coimbra, «Comemorações das Constituintes de 1820», in Obras
Completas, vol. IV, pp. 196.
80 Cf. Idem, «Sobre a Saudade», in Obras Completas, vol. V, tomo II, pp. 332-333.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 187

saudade de Leonardo Coimbra, desenvolvida na linha cristã francis-


cana, que, pela noção de criação e de relação pessoal com Deus,
introduz uma diferenciação entre o plano divino e o humano. Esta
posição, fundada no mistério de Deus encarnado em Cristo, que
propõe a relação com o divino no plano ético e no plano da adesão
pessoal, é escândalo para os judeus e loucura para os gregos, porque,
como salienta Xavier Zubiri, os judeus procuram a imposição arre-
batadora de Deus através dos sinais milagrosos (teofanias) e os gregos
procuram a sabedoria81.
Como adverte o filósofo espanhol, esta sabedoria tem ao tempo
de São Paulo, no discurso religioso do estoicismo, o significado de
saber racional fundado no νοϋς em que se contempla a Lei universal
(λόγος) que rege o Universo com caráter absoluto. A divindade era aqui
entendida como Lei imanente e cosmo-moral de toda a realidade. A
razão divina que o cristianismo pretende encontrar no Universo não é
a razão que o estoicismo proclamou como uma lei divina imanente ao
mundo (panteísmo) 82 . O monoteísmo judaico-cristão, por contra-
posição com religiões como o Tantrismo, o Jainismo, o Budismo, o
Brahmaismo e a religião cósmica dos estoicos, apresenta a via da
transcendência da realidade pessoal e absolutamente absoluta de Deus
que não se pode converter num momento ou numa propriedade das
realidades relativas que constituem as coisas ou das realidades relati-
vamente absolutas que constituem os homens. O cristianismo não
atribui ao mundo as propriedades de Deus nem a Deus as proprie-
dades do mundo83.
A presença de Deus no mundo é uma presença transcendente,
porque é uma presença fundante, fazendo com que a criação seja o
que é, e não uma presença que signifique que a totalidade do real tem
carácter divino, como é comum no panteísmo moderno de autores
como Espinosa. O mundo não é Deus pela sua extensão, pelas suas
cores ou pelas suas vicissitudes, mas como diz Xavier Zubiri, a sua
realidade contém um si mesmo que é idêntico ao si mesmo absoluto de

81 Cf. Xavier Zubiri, El problema Teologal del Hombre: Cristianismo, Madrid, Alianza
Editorial e Fundación Xavier Zubiri, 1997, pp. 46-48.
82 Cf. ibidem, p. 48.
83 Cf. Idem, El Problema Filosofico de la Historia de las Religiones, Madrid, Alianza

Editorial e Fundación Xavier Zubiri, 1994, pp. 143-144.


188 SAMUEL DIMAS

Deus. Para os crentes este si mesmo é a realidade de Cristo no sentido


teológico de que o Verbo encarnou na realidade inteira. A relação
entre Deus e o mundo não se pode representar de forma numérica:
Deus e o mundo não são dois (dualismo), mas também não são um
(monismo). A transcendência de Deus que exclui que Deus e o mundo
sejam um não implica que sejam dois, no sentido aritmético. Não são
idênticos, mas também não são absolutamente diversos e, por isso,
esta relação é representada pela noção de transcendência. Deus é
transcendente ao mundo, mas isto não significa que Deus está além do
mundo ou ausente do mundo. Deus está no seio do próprio mundo,
mas de forma fundamentante84. Neste sentido podemos dizer que
tudo é Deus, porque é nele que todas as coisas subsistem85.
É neste sentido do carácter transcendente do ato criador que se
apresenta a noção de Presença divina em Leonardo Coimbra. Com a
noção de Presença, o Criacionismo pretende evitar o cousismo do fluxo
temporal do mundo, que, dessa maneira, seria considerado como um
intervalo entre a eternidade do poder de Deus no princípio dos
Tempos e a eternidade do poder de Deus no fim dos Tempos. Nesta
perspetiva, Deus e o Mundo seriam entendidos como dois absolutos,
um perante o outro, impossibilitando estabelecer a unidade da
realidade contemporaneamente criadora e o conhecimento do próprio
Deus86.
Deus não está separado do mundo. O mundo está imerso nessa
realidade de que emerge sem que isso a afete. A dualidade caracte-
rística da transcendência não é a justaposição de duas unidades: Deus
é transcendente porque faz com que o mundo seja, estando no fundo
de toda a realidade87. A Criação é fruto da permanente atividade de

84 Cf. ibidem, p. 146.


85 Cf. Idem, Acerca del Mundo, Madrid, Alianza Editorial e Fundación Xavier Zubiri,
2010, p. 217.
86 Cf. Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras

Completas, vol. I, tomo II, p. 368 [302].


87 À semelhança de Leonardo Coimbra, Xavier Zubiri recusa uma noção deísta de

Deus apenas como origem e fim de todas as coisas: «Dios no está fuera de las cosas,
ni por encima ni por debajo de ellas, ni al comienzo ni al fin de ellas, sino que lleva
fontanalmente implicadas a todas ellas ens u propria realidade en cuanto tal.»
(Xavier Zubiri, Acerca del Mundo, p. 220).
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 189

excesso ou super-abundância do amor divino, e não é resultado de


uma Queda do próprio Deus. Esta ideia da Criação como uma Per-
feição diminuída é absurda, porque neste caso, ou a presença do
espírito de Deus infinito como um espírito diminuído seria uma pre-
sença ineficaz ou, simplesmente, Deus nunca teria sido a perfeição88.
Há uma divergência e oposição entre a ideia desenvolvida em
Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes de união-cisão primordial e de
diminuição de Deus salvo pelo próprio homem e a ideia desenvolvida
por Leonardo Coimbra de pessoal comunhão originária, significando
a divina unidade relacional de que os homens, na sua inviolável me-
mória, sentem solitária ausência com desejo de regresso. O regresso a
Deus significa a reintegração do mundo temporal na social presença de
Deus (cristianismo) e não significa negação da realidade transitória na
extinção nirvânica do Todo (budismo). Aquilo a que as almas aspiram
não é uma absorção em Deus, mas sim uma vida social de plena
justiça e fraternidade89. A Saudade criacionista é, assim, entendida
como radical sentimento ontológico da livre alteridade criadora e
amor super-abundante. Na saudade, o homem experimenta-se,
ansiando a plenitude do Ser, que pre-sente de forma abismal como pre-
sença oculta e espera o regresso a Deus, que significa a reintegração
dos mundos na Harmonia originária da total espiritualização90 pela
ressurreição integral e pelo abraço totalizante da vida91.
Leonardo Coimbra desenvolve a sua metafísica da Saudade em
torno das noções de Relação e Alteridade, concebendo a realidade
divina, não como um produto da razão, mas como um Mistério reve-
lado. A realidade criada é distinta da realidade do Criador, num
projeto de difusão ad extra de si mesmo, por contraposição com a ação
da vida intradivina em que o amor comunica a sua idêntica natureza
a cada uma das três pessoas (Mistério da Trindade). Em contraposição
com as processões imanentes que geram as pessoas divinas, temos a

88 Cf. Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras


Completas, vol. I, tomo II, p. 369 [303].
89 Cf. ibidem, p. 373 [306].
90 Cf. Idem, Jesus, Porto, Renascença Portuguesa, 1923, in Obras Completas, vol. V,

tomo I, Lisboa, INCM, 2009, p. 265 [32-35].


91 Cf. Idem, A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Porto, Livraria Tavares Martins,

1935, in Obras Completas, pp. 60-61.


190 SAMUEL DIMAS

ação criadora que, pelo poder do Espírito Santo, produz a realidade


outra de Si. A produção do outro, ou da alteridade, não afeta a reali-
dade, ou causa primeira inteligente e volitiva, que o produziu e, por
isso, não se entende a noção emanativa de diminuição do ser de Deus.
Deus enquanto realidade essencialmente existente não é divisível, mas
sim participável: todos os seres participam contemporaneamente do
Ser supremo de Deus no dinamismo da permanente ação criadora.
Neste sentido, como adverte Xavier Zubiri, em rigor, todas as coisas,
enquanto alteridade sem alteração, procedem de Deus, como reali-
dade outra, e não procedem do nada, porque por ser nada não se
pode considerar nem sequer um desde92.
A presença de Deus ad extra, no fundo de toda a realidade
criada, dá-se nas coisas materiais de forma fontanal e dá-se nos
homens de forma inter-pessoal nos mais diversos graus de justiça e
santidade. No caso de Cristo Deus não apenas está presente como
constitui a realidade mesma daquilo em que está presente. Trata-se de
uma união hipostática, havendo sob um certo aspeto uma identidade
entre a realidade humana e a realidade de Deus, da qual todos pode-
rão participar de modo perfeito e integral na plenitude escatológica do
Paraíso Celestial93. Como diz Leonardo Coimbra, na vida eterna da
glória, Deus enche a realidade da sua Presença de forma perfeita e
universal, numa perfeita relação amorosa da Consciência-Deus com
as sub-consciências94.

6. A metafísica progressiva criacionista: o progresso do


pensamento como manifestação do dinamismo inventivo e
criador da realidade eterna da Experiência integral de Deus

A maior prova de que não há uma divergência radical entre o


criacionismo saudosista de Leonardo Coimbra e o racionalismo euro-
peísta de Raul Proença e António Sérgio, por causa dos valores
modernistas d’além Pirenéus fundados nos princípios científicos da

92 Cf. Xavier Zubiri, Acerca del Mundo, p. 225.


93 Cf. Idem, El problema Teologal del Hombre: Cristianismo, pp. 55-56.
94 Cf. Leonardo Coimbra, A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, in Obras Completas,

vol. V, tomo II, p. 292 [385].


A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 191

experimentação e do evolucionismo 95 , reside no facto de a obra


leonardina desenvolver uma profunda reflexão acerca da noção de
progresso e assentar num contínuo diálogo entre a experiência cientí-
fica e a experiência filosófica.
A divergência radical não é entre o alegado espírito contem-
porâneo e pragmático de António Sérgio, que quer o progresso e
deseja a ação e a novidade96, e o alegado espírito religioso e saudosista
de Leonardo Coimbra, que preserva os valores tradicionais e apre-
senta a razão poética como meio de aceder ao divino, porque os dois
autores defendem os valores da ciência e do progresso, sobrepondo o
futuro inventivo ao estaticismo do passado. António Sérgio despede-se
da Renascença Portuguesa através de uma carta publicada na revista
A Águia com data de 14 de Março de 1914, para fundar a revista Pela
Grei, associada à Seara Nova. Mas isso não se deve tanto às divergências
filosóficas, que de facto existiam, mas talvez mais a divergências de
projetos pessoais e a distintas prioridades de ordem social e política.
Na nova revista, Sérgio vai dar primazia à atuação política e à lite-
ratura, promotoras da industrialização e dos valores do racionalismo
moderno97. Também Leonardo Coimbra é defensor da dinâmica da
racionalidade moderna científica pelo que não pode ser essa a causa
da divergência dos projetos.
Embora elas existissem, não são as razões profundas de ordem
metafísica que estão na origem desta cisão. Aliás, este movimento cul-
tural da Renascença primava pela tolerância em relação às posições
filosóficas, religiosas e literárias de cada um dos seus membros, dentro
de um âmbito geral de espírito humanista. A única posição que mere-
cia uma crítica e oposição explícita e a do materialismo positivista,
sendo, pois, natural que o movimento não desse voz aos autores que
defendiam este tipo de configuração da realidade. O que não nos
parece que fosse o caso do Orpheu de Fernando Pessoa e a Seara Nova
de Raul Proença e António Sérgio. Só assim se compreende que a
divergência tão profunda entre o teísmo cristão de Leonardo Coimbra

95 Cf. Raul Proença, Vida Portuguesa, ano I, n.º 22 (10 de Fevereiro de 1914), p. 13.
96 Cf. António Sérgio, «Epístolas aos Saudosistas», in A Águia, n.º 22, 2.ª série,
(Outubro de 1913), p.99.
97 Cf. Idem, «Despedida de Julieta», in A Águia, 2.ª série, n.º 28, 2.ª série (Abril de

1914), p.109.
192 SAMUEL DIMAS

e o panteísmo pagão de Teixeira de Pascoaes não tivesse dado origem


a uma separação pessoal e a uma cisão institucional. Os homens da A
Águia eram modernos, defendiam a ciência e o progresso e é nesse
contexto que Leonardo Coimbra entra em diálogo com autores como
Fuillée, para quem a metafísica não pode alcançar totalmente o seu
ideal da experiência completa da síntese universal e, por isso, consi-
dera que será sempre relativa e progressiva98.
A diferença é que, para Leonardo Coimbra o carácter pro-
gressivo da metafísica não se fica a dever tanto à limitação e contin-
gência do saber humano, mas sim à própria essencialidade dinâmica e
criadora do Ser Supremo, de que todos os seres participam e depen-
dem. Devido à sua interação social pluralista das consciências, a reali-
dade é concebida como um excesso de atividade criadora sobre o já
criado e como um excesso de possíveis relações sobre as relações já
consumadas99.
Tal como é descrito na obra A Luta pela Imortalidade, a expe-
riência-síntese metafísico-religiosa não é de ordem necessitarista e
definitiva, mas de ordem progressiva e modificável, estabelecendo de
forma incessante e descontínua novos pontos de contacto e novas
conexões entre as experiências particulares da ciência, da arte, da
moral, da filosofia e da religião, colocando a noção de Infinito sempre
em termos dinâmicos e radicalmente originais100. Estas experiências
da consciência humana são realidades dinâmicas e progressivas, porque
participam da própria dinâmica da Unidade divina da Experiência
radical, que ao contrário da conceção clássica de éternidade imóvel, se
constitui como Consciência inventiva, renovando-se pela sua ação
criadora nos caminhos infinitos da ciência e do amor101.
A Experiência integral e perfeita, que a consciência da síntese
metafísica procura alcançar, não é o saber absoluto e definitivo da
Unidade ideal entre a matéria e o espírito, o físico e o mental, tal

98 Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fundée sur l’expérience, p. 293.


99 Cf. Leonardo Coimbra, A Luta pela Imortalidade, Porto, Renascença Portuguesa,
1918, in Obras Completas, vol. III, Lisboa, INCM, 2006, p. 322 [137].
100 Cf. ibidem, p. 320 [135].
101 Cf. Idem, «Comemorações das Constituintes de 1820», in Obras Completas, vol. IV,

pp. 196.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 193

como se descreve no monismo das ideias-força de Fuillée102, mas é o


saber criador do convívio compreensivo e fraternal de Deus consigo
mesmo e com todos os seres: o progresso do conhecimento não é ex-
pressão apenas da contingência da realidade temporal, mas é expressão
do dinamismo inventivo e criador da própria realidade eterna de
Deus, cuja essência é a mistérica Experiência da relação aumentativa do
conhecimento e do amor103.
O método dialético criacionista de Leonardo Coimbra apre-
senta o conhecimento como resultado dinâmico e progressivo da ativi-
dade criadora do pensamento, na relação de convívio com o Ser104. A
realidade apresenta-se como o próprio movimento criador do pensa-
mento105, que aponta para uma solução metafísica do ser integral, que
inclui na sua constituição o dinamismo da dialética científica e gnosio-
lógica em permanente ascensão para o plano ideal das experiências
artística, moral e religiosa. Toda a realidade de que o conhecer faz
parte é dinâmica em progressiva ascensão para a plenitude de ser e
conhecer.
A partir de uma idêntica preocupação contemporânea em
conciliar o conhecimento científico com o filosófico, esta noção pro-
gressiva do conhecimento irá estar presente na metafísica de autores
como, por exemplo, Bernard Lonergan, que apresentando uma defi-
nição heurística do Ser, como aquilo que há para ser conhecido pela
compreensão inteligente e pela afirmação razoável – isto é, como
aquilo que não é conhecido à partida pela atividade cognitiva, mas
apenas pode ser definido nos termos do próprio processo do conhecer

102 A verdadeira força dos seres é mental e não mecânica. De acordo com esta
metafísica, no movimento dos seres a ideia apresenta-se como uma forma de movi-
mento cerebral e, ao mesmo tempo, como uma forma de consciência, de sentimento,
de pensamento e volição. Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fundée sur
l’expérience, pp. 300-301.
103 «O Ser perfeito deve tirar de si tanta invenção amorosa que, ao encerrar de um

abraço, terá de o abrir de novo para o ampliar mais, pois, por virtude do próprio
gesto inicial, as realidades aumentaram a grandeza do seu convívio.» (Leonardo
Coimbra, «Comemorações das Constituintes de 1820», in Obras Completas, vol. IV,
p. 197.)
104 Cf. Idem, O Pensamento Criacionista, Porto, Renascença Portuguesa, 1915, in Obras

Completas, vol. II, Lisboa, INCM, 2005, p. 245 [129].


105 Cf. Idem, «O problema da indução», in Obras Completas, vol. IV, p.138.
194 SAMUEL DIMAS

–, descreve a realidade desse ser proporcional ao nosso conhecimento


como dinâmica e incompleta, em direção a uma completude que se
vai determinando nesse processo ascendente de novos pontos de vista
superiores pela acumulação de intelecções106.
Neste sentido, Lonergan também apresenta uma metafísica, que
integra as ciências empíricas e o senso comum, com o objetivo de
atingir uma visão integral e unitária do universo do ser proporcio-
nado107. Uma metafísica que, por isso, tem de lidar com factos e não
se pode limitar a aceitar as leis necessárias do dedutivismo abstrato,
sendo, nesse sentido, o resultado da experiência, da compreensão e do
juízo na atividade concreta e inteligível de uma consciência empírica,
inteligente e racional.
O Universo não é estático, mas está em processo, fluindo num
dinamismo aberto em que aquilo que há para ser conhecido só se
torna determinado por meio do conhecer e aquilo que há-de ser só
fica determinado por meio do seu devir. O conhecer do presente é um
momento em processo para um conhecimento mais pleno, tal como o
ser do presente é um momento em processo para uma realidade mais
plena108.
Podemos dizer que à semelhança da metafísica criacionista leo-
nardina, que se constitui num movimento dialético do real, que é
concebido como perenemente criador, em permanente excesso,
também a metafísica lonerganiana se apresenta como um processo em
progressiva ascensão, não tendo qualquer pretensão de um saber
absoluto e acabado. A fonte é comum: uma profunda valorização do
conhecimento científico e um amplo sentido da dimensão plural do
Ser (ontologia pluralista) e da consciência polimórfica, procurando per-
manentemente a recusa da cousificação do real pelas interpretações
monistas e parciais da diversidade relacional do Universo.
Nesta conceção pluralista da realidade, encontramos a genia-
lidade de Leonardo e de Lonergan, que evitando a catalogação do
pensamento em correntes contrapostas de realismo e idealismo,

106 Cf. Bernard Lonergan, Collected Works of Bernard Lonergan, n.º 3 – Insight: A Study of
Human Understanding, Edited by Frederick E. Crowe and Robert M. Doran, Toronto,
University of Toronto Press, 1997, p. 470.
107 Cf. ibidem, pp. 466-467.
108 Cf. ibidem, pp. 471.
A DIVERGÊNCIA ENTRE O PANTEÍSMO DA RAZÃO MÍTICA E O TEÍSMO DA RAZÃO ... 195

empirismo e racionalismo, reconhecem a capilaridade do ato humano


de conhecer, na dinâmica polifónica e inter-relacional das suas várias
funções. Tal como virá a descrever Lonergan, o conhecimento humano
tem muitos veios e muitas direções, havendo uma íntima cumpli-
cidade entre os atos da inteligência e os atos da imaginação, que
apontam para uma verdade inesgotável que não se reduz a certezas
definitivas e estáticas. Nesta forma plural do ato de conhecer, não
ficam esquecidas as dimensões poéticas e artísticas. Esta comunicação
íntima entre as diversas funções do pensamento, traduzida por Lonergan
e por Leonardo, pelos diferentes níveis de experiência consciente,
inviabiliza uma hermenêutica que reduza a realidade à sua parcia-
lidade.
O nosso intelecto tem muitas palavras, ou como diria São
Tomás de Aquino a partir de Santo Agostinho, o verbo interior que
nos move a procurar a solução dos problemas e nos leva à descoberta,
encerra uma pluralidade de verbos e de ações. A injustiça dos filósofos
está no facto de reduzirem a riqueza de verbos a um único verbo,
como se residisse aí a verdade absoluta das coisas: a verdade não está
apenas na fenomenologia, como não está apenas no existencialismo,
como não está apenas na filosofia analítica. Por esta razão, é incorreto
caracterizar Leonardo de idealista e Lonergan de intelectualista, no
sentido em que os seus pensamentos estão para além dessas catalo-
gações: para estes autores, mais importante que os resultados, que
dependem do nosso ponto de partida, é a apropriação das operações
do ato de conhecer, isto é, o modo de funcionar da consciência, apreen-
dendo-se aí a universalidade do ser humano. Um funcionamento que
não se reduz à realidade da experiência empírica e da experiência
metafísica, mas se alça ao Mistério do seu fundamento último.
Embora se possa partir daí, como sugerem as dialéticas de
Fuillée e Leonardo Coimbra, ao procurarmos a compreensão da reali-
dade ou do «ser proporcionado» não ficamos limitados ao plano da
experiência interna e externa da consciência, isto é, não ficamos redu-
zidos às possibilidades do conhecimento empírico. Ao darmos liber-
dade de operacionalidade à consciência inteligente e racional, solta-
mo-nos da rotina rígida da perceção e do inatismo e somos seduzidos
pelo fascínio dos problemas, comprometendo-nos na busca de solu-
ções através da fidelidade ao desejo irrestrito de compreender. Trata-
196 SAMUEL DIMAS

-se do impulso imperturbável de uma pergunta que se segue a outra


pergunta na génese da verdade, constituindo a dinâmica do conheci-
mento progressivo que pode incluir a afirmação do ser transcendente
como Ato irrestrito de conhecer.
Na sequência das reflexões de Émile Boutroux e Alfred Fuillé, o
pensador português Leonardo Coimbra, à semelhança do que
também defenderão mais tarde outros homens da ciência e da filosofia
como Bernard Lonergan, afirma que a metafísica, à semelhança da
ciência, é uma forma de saber sempre em progresso, porque considera
que o desenvolvimento do pensar na relação de convívio com o Ser
Supremo, fonte de toda a realidade, se dá em eterna ação criadora no
Mistério da sua inventiva infinitude. A este propósito, como destaca
Alexandre Fradique Morujão, num seu artigo sobre a relação entre
ciência e filosofia em Leonardo Coimbra109, ao arrepio do estático
conhecimento a priori kantiano, a metafísica do filósofo criacionista
portuense é concebida como o próprio pensamento avançando em
síntese progressiva até se apreender como eterno e criador, numa
construção dialética que abrange, não apenas todo o coordenável espi-
ritual, mas também a fonte deste que é o próprio Deus110.

109 Cf. Alexandre Fradique Morujão, «Ciência e Filosofia no pensamento de


Leonardo Coimbra», in Estudos Filosóficos, vol. II, Lisboa, INCM, 2004, p. 589.
110 Cf. Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, in Obras

Completas, vol. I, tomo II, p. 17 [3].


O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912:
TERMÓMETRO DAS TENSÕES NA RENASCENÇA
PORTUGUESA1

Duarte Drumond Braga


CENTRO DE ESTUDOS COMPARATISTAS

1. Introdução

Os principais dissídios que abrem a actividade intelectual e


social da Renascença Portuguesa: Fernando Pessoa versus Adolfo
Coelho, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão versus Júlio de Matos, e
Teixeira de Pascoaes versus António Sardinha, são todos eles gerados
no contexto de um «inquérito literário», promovido em 1912 pelo
jornalista José Boavida Portugal (1889-1931) nas páginas do diário A
República. O essencial de tal plebiscito será publicado em 1915, pela
Clássica Editora, em volume organizado pelo mesmo Boavida. Trata-
-se de um momento inaugural de confronto onde se cruzam e se
desenham várias das tensões que se projectam no seio da Renascença
Portuguesa, bem como em movimentos subsequentes, como a Seara
Nova. Visa este breve ensaio delinear um mapa da genealogia de tais
tensões, sobretudo as que se dão em torno da questão da saudade e do
Saudosismo. Adoptaremos, para este efeito, um registo sobretudo mais

1Uma versão deste texto encontra-se no volume Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara
Nova. Organização de Amon Pinho, António Pedro Mesquita e Romana Valente
Pinho. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2014.
198 DUARTE BRAGA

descritivo. No final, serão feitas algumas considerações mais inter-


pretativas.

2. O Inquérito Literário

O «Inquérito Literário» desenvolveu-se nas páginas do diário A


República, entre os meses de Setembro a Dezembro de 1912, rece-
bendo variados ecos na imprensa portuguesa. O volume que reúne os
textos possui 3 secções: “I-Depoimentos”; “II-Réplicas de outros escri-
tores” e “III-Comentários da Imprensa”, precedidas de um prefácio
do antólogo: “Sinfonia de Abertura”. De entre os autores consultados
há a destacar os seguintes nomes: Júlio de Matos, Henrique Lopes de
Mendonça, Teixeira de Pascoaes, Gomes Leal, João Grave, Adolfo
Coelho, Júlio Brandão, o Visconde de Vila Moura e Carlos Malheiro
Dias; de entre os replicantes: Fernando Pessoa, Raul Proença,
Augusto Casimiro, Jaime Cortesão, António de Monforte (pseudó-
nimo poético de António Sardinha), Aarão de Lacerda e Hernâni
Cidade. Como vemos, só com o segundo grupo se forma um quadro
apreciável da vida cultural e literária portuguesa, depondo na tribuna
da imprensa, de acordo com o espírito republicano de responsabili-
zação social do intelectual. As respostas directas e as réplicas às
mesmas surgem geralmente sob a forma da epístola e, mais rara-
mente, da entrevista. O volume contém ainda excertos retirados de
outros jornais onde se comenta todo o processo.
O inquérito tinha como seu propósito declarado averiguar os
efeitos directos nas letras da recentíssima revolução de 19102. Desa-
parecidos, como lembra Nuno Júdice3, os escritores laureados do fim-
-de-século: Eça, Camilo e Fialho na ficção; Antero e Nobre na poesia
– apenas restando Junqueiro, que entretanto apadrinhara a Renas-
cença Portuguesa –, muitos concluem haver uma grave crise no plano
da criação literária, dois anos após a instalação do novo regime. O
segundo propósito do inquérito, decorrente do primeiro, consistia no
juízo crítico da revista A Águia e do Saudosismo, e por extensão do

2 Cf. Portugal, Boavida. «Sinfonia de Abertura», pp. 5-11.


3 Júdice, Nuno. A Era do “Orpheu”. Lisboa: Editorial Teorema, s/d., p. 9.
O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912: TERMÓMETRO DAS TENSÕES ... 199

movimento que se assumira como porta-estandarte das dimensões


cultural e espiritual da República, a Renascença Portuguesa. O tom
geral, incluindo o de Boavida Portugal, é hostil à nova escola literária
associada à revista, vendo-a muitos dos articulistas como uma desen-
volução escolar do Simbolismo enformada por um filosofismo pan-
teísta. O volume final resultante da compilação é pois um importante
documento para a compreensão da Renascença Portuguesa e do
Saudosismo, mas não só: expõe reflexões dos literatos em relação ao
meio literário e às questões da leitura e do livro no primeiro quartel do
século XX4; exibe um repositório de perspectivas estético-ideológicas
sobre a literatura muito distintas, desde o Naturalismo serôdio de João
Grave até à antemanhã do Modernismo pessoano (a revista Orpheu sai
a lume no mesmo ano da publicação: 1915), e denuncia ainda o
embate filosófico entre o Intuicionismo e Messianismo renascentes e o
Positivismo instituído, representado por Adolfo Coelho e Júlio de
Matos5. É em torno da reacção à Saudade e ao Saudosismo por parte
destas duas figuras-chave do cientismo do início do século XX que se
forma o principal veio polémico do inquérito e é nesse que incidi-
remos em seguida. Com efeito, sendo a estrutura deste inquérito
constituída por vários confrontos paralelos entre depoentes e repli-
cantes, articulando-se enquanto polémica polifónica, há, no entanto,
uma questão central e unificadora, a da saudade e do Saudosismo.
No depoimento de abertura, assinado por Júlio de Matos – o
que mais tinta fez correr, já que a maior parte das réplicas lhe são
dirigidas: Raul Proença, Antero de Figueiredo, Augusto Casimiro,
João Amaral, Cortesão, Pascoaes (e indirectamente em outros artigos,
réplicas e tréplicas) –, o reputado psiquiatra, recém-eleito ministro da
Instrução e reitor da Universidade de Lisboa, é instigado pelo
entrevistador a opinar em relação à revista “que se diz órgão de uma
renascença portuguesa”, respondendo da seguinte maneira: “São

4 Sobre estas questões ver Mota, Nuno. «Dois Inquéritos Literários (1912, 1920)». In:
Curto, Diogo Ramada (Org.). Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, pp. 761-788.
5 Cf. Real, Miguel. «O pensamento racionalista português na segunda metade do

século XIX: Teófilo Braga, Júlio de Matos e Miguel Bombarda». Vértice, Lisboa, v.
122, 2ª série.
200 DUARTE BRAGA

rapazes, não é verdade? Mas tudo aquilo é muito ordinário” 6 . E


continua: “Ora, em que se baseia essa renascença? Na saudade? (…)
Cultivar a saudade é amarrar-se ao passado, é alimentar um estado
mórbido, é ajudar a definhar mais a raça” 7 . Estas palavras irão
suscitar as manifestações iradas de Jaime Cortesão e de Leonardo
Coimbra8.
Mas importaria reler as palavras de Júlio de Matos para termos
uma noção mais vasta da recepção dos poetas saudosistas no final do
primeiro quartel do século. Matos faz, por exemplo, a associação da
Saudade ao sebastianismo: “O saudosismo é uma espécie de sebas-
tianismo. Mas os sebastianistas ainda têm fé num messias (…). Os
lamechas que só têm Saudades… não têm mais nada”9. Compare-se
esta definição de Saudade com estoutra, proposta por um intelectual
com um quadro mental não muito distante deste, Manuel Laranjeira.
Para o autor de Comigo a Saudade é uma “emoção complexa”, um
“período rítmico de duas emoções”10, uma depressiva e a outra exal-
tante. Trata-se de uma definição bem mais complexa e interessante do
que a do psiquiatra, parecendo seguir na linha do entendimento da
Saudade como sentimento duplo ou combinatório, de carácter
agridoce, presente sobretudo em D. Francisco Manuel de Melo, no
“delicioso pungir” de Almeida Garrett, e em Carolina Michäelis de
Vasconcelos11. Também Gomes Leal, nas páginas deste inquérito,
entendeu A Águia como uma “rapaziada”, entregue a um novo e
bizarro tipo de Simbolismo: “Vivem nuns mundos desconhecidos,

6 Matos, Júlio de. «O Sr. Dr. Júlio de Matos não acredita que atravessemos um
período de renascimento literário». Op. Cit., p. 17. «O Sr. Augusto Casimiro
responde aos Srs. Júlio de Matos e Gomes Leal». Op. Cit., pp. 151-155.
7 Matos. Op. Cit., p. 18.
8 O filósofo depõe no jornal A Montanha, em Setembro de 1912. Cf. Coimbra,

Leonardo. «A voz da incompetência». Portugal. Op. Cit., pp. 310-16.


9 Idem, Ibidem, p. 19.
10 Laranjeira, Manuel. O Nirvana (interpretação psicopatológica dum dogma). In:

Pereira, José Carlos Seabra (org.). Obras de Manuel Laranjeira, vol. II. Lisboa: Edições
Asa, 1993, p. 120, n. 35.
11 “«The joy of grief», como dizem os ingleses”. Vasconcelos, Carolina M. A Saudade

Portuguesa. Lisboa: Estante, 1990, p. 12.


O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912: TERMÓMETRO DAS TENSÕES ... 201

onde nunca poderá penetrar ninguém” 12. No mesmo curiosíssimo


depoimento dirá que a verdadeira renascença literária portuguesa não
é tanto a que emana d’A Águia, mas a que procederá da sua própria
poesia. Estas reacções não provocam tanto a ira, como a mágoa dos
renascentes, como se pode ler no depoimento de Augusto Casimiro13.
Desde o início a polémica força, então, os principais renascentes
a uma vigorosa tomada de posição. Paralelamente, Teixeira de
Pascoaes está ocupado num confronto com Júlio Brandão que, em
ataque desabrido à sua pessoa, o havia apodado de “Budazinho que
usasse navalha de ponta e mola”14, só mais tarde vindo a medir forças
com Júlio de Matos15. É Jaime Cortesão quem com maior veemência
responde ao “desejo de enxovalhar” 16 do psiquiatra, assumindo-se
como fundador e paladino da Renascença Portuguesa.
O julgamento ex cathedra do médico Júlio de Matos é rebatido
ponto a ponto por Cortesão: a) à acusação de francesismo, e de não
conhecerem os novos a literatura inglesa, dirá que o grupo “não sofre
de qualquer influência estrangeira” e que conhece bem o “panteísmo
científico” de Shelley, apontando, como é de supor, para o caso de
Pessoa: “um desses escritores, dos que mais crêem na «renascença»,
foi lá educado”17. De resto, o francesismo é um tópico batido do
inquérito, onde será exorcizado, ora em prol de um mais consciente
europeísmo (Proença), ora da necessidade de procurar outros modelos
(Adolfo Coelho, Gonçalves Viana). Um autor como Henrique Lopes

12 Gomes, O poeta Gomes Leal diz que de Antero, de Junqueiro e principalmente


dele procederá uma verdadeira renascença, impregnada de misticismo, Inquérito
Literário, p. 52.
13 Cf. CASIMIRO, Augusto. O Sr. Augusto Casimiro responde aos Srs. Júlio de

Matos e Gomes Leal, Inquérito Literário, pp. 151-155. Não deixe de se lembrar que a
Renascença Portuguesa dinamizará, em 1913, uma subscrição pública para tirar
Gomes Leal da miséria.
14 Brandão, Júlio. «O Sr. Júlio Brandão diz não ver correntes literárias que não se

tenham há muito observado». Op. Cit., p. 97.


15 Pascoaes, Teixeira de. «O Sr. Dr. Teixeira de Pascoais responde aos Srs. Dr. Júlio

de Matos, Raul Proença e Adolfo Coelho». Op. Cit. pp. 172-187.


16 Cortesão, Jaime. «Uma réplica do Sr. Jaime Cortesão ao Sr. Dr. Júlio de Matos».

Op. Cit., p. 162.


17 Cf. Idem. Ibidem, p. 65.
202 DUARTE BRAGA

de Mendonça chegará mesmo a afirmar: “O que principalmente


prejudica a nossa literatura é sabermos todos (…) francês”18.
À acusação de os poetas da Renascença serem depressivos,
responde Cortesão que estes “não cantam tristezas nenhumas”, mas
antes possuem um canto cheio de vitalidade; c) quanto aos ataques à
Saudade, a Saudade destes não é a da “pessoa querida que nos faltou
(que coisa tão chocha!)”19, mas é antes o que permite “elevar a Raça à
consciência activa das suas mais altas virtudes, é levantá-la às suas
mais sublimes culminâncias, arrebatá-la no ímpeto da sua antiga
audácia, erguendo-lhe a vontade pelos seus mais genuínos sentimentos
para as realizações do Futuro”20. d) Quanto ao juízo negativo do
Desterrado feito pelo médico: “Como é que não vê nessa figura em
vez do abandono de quem «deixa correr o marfim»?, antes o exaltado
e sublime Desejo tão repassado de audácia criadora, que a sua parte
mais lata, o excedente sobre-humano se reflecte num desterro de
Alma, numa religiosa mágoa…?!” 21 . A conclusão de Cortesão só
pode, pois, ser a seguinte: a de que o ilustre médico se tratava de um
“incompetente confesso, ignorante, irreflectido, inconsequente, ame-
tódico” 22 . Em prol da orientação saudosista d’A Águia, o poeta e
ensaísta Cortesão afirma a total incapacidade do (outro) médico em
opinar acerca de matérias literárias e defende a saudade pascoalina:

O conceito de Saudade que aparece na Águia é outro


bem diferente. A Saudade, como síntese psicológica e o saudo-
sismo é [sic] criação individual do poeta Teixeira de Pascoais,
que aliás acho formosíssima e cheia de profunda verdade. É
pois a ele que compete a sua defesa, se é que este termo tem
aqui algum cabimento. No entanto devo dizer-lhe que para
contraditar a definição do Sr. Matos, que no conceito de

18 Mendonça, Henrique Lopes de. O Sr. Lopes de Mendonça diz não existir uma
forte corrente literária…, Inquérito Literário, p. 24.
19 Cortesão. Op. Cit., pp. 164-5.
20 Idem. Ibidem, p. 164.
21 Id.. Ibid., p.167.
22 Id.. Ibid., p. 167.
O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912: TERMÓMETRO DAS TENSÕES ... 203

Pascoais a Saudade envolve Esperança, esforço criador, entu-


siasmo religioso e voluntariosa continuidade afectiva23.

Raul Proença, apresentando-se como “dissidente da Renas-


cença”24, defenderá também, mas apenas literariamente, os renas-
centes, uma vez que os acusa de colonização ideológica do projecto.
Chega mesmo a admitir que a Saudade é o “sentimento mais indivi-
dual”25 de Portugal, ainda que “incapaz de revigorar uma raça”26. Por
seu turno, Cortesão, em outro texto saído a lume n’A Águia em
Outubro de 1912, “Da «Renascença Portuguesa» e seus intuitos”, ao
mesmo tempo que se demarca do europeísmo do manifesto paralelo
da Renascença, escrito por Proença para a secção de Lisboa 27 ,
continua a responder directamente aos detractores do Saudosismo na
polémica do «Inquérito Literário»: “a violenta diatribe e (…) o ataque
pessoal àqueles dos seus membros que mais esforço lhe dedicam [à
Renascença]”28. E acrescenta:

Quem sabe se aqueles mesmo que tanto teimam em nos


aconselhar a panaceia da civilização europeia, desconhecem
por absoluto a história da sua pátria e as conclusões a que
chegaram os mais altos espíritos da sua Terra?29

Neste e no texto já citado é evidente como Cortesão partilha


com Pascoaes os vários níveis de entendimento da Saudade, que
considera ser algo de “legítimo, próprio, original e fecundo à luz dum
critério histórico e filosófico” 30 . O autor coimbrão – ainda que

23 Id.. Ibid., p.163.


24 Cf. Proença, Raul. «O Sr. Raul Proença analisa as declarações do Sr. Dr. Júlio de
Matos». Op. Cit., pp. 119-129.
25 Idem. Ibidem, p. 127.
26 Id.. Ibid., p. 125.
27 Proença, Raul. «Ao Povo: a ‘Renascença Portuguesa’». A Vida Portuguesa, ano I, nº

22, 10-2-1914, pp. 11-12; republicado em Samuel, Paulo. A Renascença Portuguesa: um


perfil documental. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1990, pp. 16-19.
28 Cortesão, Jaime. «Da ‘Renascença Portuguesa’ e seus intuitos». In: Samuel, Paulo.

Op. Cit., p. 20. Mais à frente no texto lemos:


29 Idem. Ibidem, p. 22.
30 Id.. Ibid., p. 21.
204 DUARTE BRAGA

salvaguardando da Saudade a sua condição de criação do poeta


amarantino31 – revê-se, quer nas implicações filosóficas que dela retira
Pascoaes, quer na neo-romântica eleição desta ideia-sentimento como
imagem aglutinante do génio pátrio, daqui advindo a sua escolha para
motor anímico de uma escola poética. Todavia são as verdadeiras
dimensões do génio nacional o mais urgente a ser consciencializado,
como lembra no mesmo texto:

(…) quando alguém tenta ministrar ao doente o único


remédio possível, acordar para uma clara consciência os seus
mais genuínos sentimentos, as virtudes que lhe são próprias,
logo há quem acuse, desdenhe, emende ou castigue e tudo pelo
terror que lhes inspira o que não podem compreender ou sentir
e ainda pelo hábito de ver nas palavras unicamente o seu
esqueleto verbal, sem se darem ao trabalho de procurar a
riqueza íntima que as anima. [¶] O que para aí se tem dito da
Saudade (…)32.

Trata-se de uma evidente retoma da resposta a Júlio de Matos.


Bem como, implicitamente, a Adolfo Coelho – que é aquele com
quem Pessoa se envolverá directamente –, e cuja opinião, embora
mais complexa e fundamentada, não difere essencialmente da de
Matos. Na sua resposta, reputa como megalomania o messianismo
pessoano e desfaz a poética saudosista em “banalidades” 33 . É a
necessidade de responder a Coelho que impele Pessoa a desenvolver
as suas ideias34.
Mas ainda para o historiador Jaime Cortesão, nas suas vozes
discordantes, o inquérito responde, pois, à reacção do corpo social
doente, que deseja continuar a desconhecer a sua alma, imerso na

31 É certo que esta noção de ‘criação’ deve ser entendida no sentido de ‘revelação’,
seguindo a proposta pascoalina de identificação entre criação e revelação de um
novo mundo espiritual através da Saudade.
32 Id.. Ibid., p. 21.
33 Coelho, Adolfo. «O Sr. Dr. Adolfo Coelho diz que não temos direito a saudar a

aurora de um verdadeiro renascimento literário». Op. Cit., pp.75-86.


34 Fá-lo logo na réplica «Uma réplica ao Sr. Dr. Adolfo Coelho». Op. Cit., pp. 138-

-150.
O «INQUÉRITO LITERÁRIO» DE 1912: TERMÓMETRO DAS TENSÕES ... 205

desnacionalização, causa dessa teimosa ignorância. Tratam-se de


argumentos comuns aos outros mentores da Renascença (alternando
com a condenação da educação jesuítica). A actividade renascente, ou
a própria descoberta da Saudade, seria então esse poderoso “impulso
afectivo” destinado a acordar as “fortes volições” nacionais35. É à elite
intelectual e artística a quem foi primeiro revelada a Saudade que
cabe a missão de planear e dinamizar uma terapia social colectiva,
cujo aprofundamento é o único meio de produzir alterações efectivas
na vida portuguesa. E di-lo Cortesão a partir de uma citação de
Michelet: “O advento duma ideia não é tanto a primeira aparição da
sua fórmula, como a sua definitiva incubação, quando, depois de ter
sido aquecida pelo amor, desabrocha, fecundada pela força do cora-
ção”36. Fica assim clara a necessidade de um trabalho intenso com
vista à incorporação definitiva da alma nacional pelo corpo social
doentio. Ainda que nos textos de Cortesão esta necessidade de
tradução da Saudade em obras não seja menos intensa que a de um
Pascoaes, é certo que foi aquele quem na Renascença Portuguesa se
colocou na primeira linha quanto à assunção desta vertente, sobretudo
com o seu papel activo nas Universidades Populares e na direcção do
boletim renascentista A Vida Portuguesa, que visava afirmar e dar conta
da obra de renascimento no domínio social.

Conclusões

Vimos apenas uma dimensão parcial das polémicas geradas no


seio do Inquérito, sobretudo aquelas que giram em torno da questão
da saudade. Uma polémica muito importante, e que não se esgota
nessa questão, é a que envolve Fernando Pessoa e Adolfo Coelho,
acerca da questão do supra-Camões, o que bastaria para nos aperce-
bermos da importância do «Inquérito Literário» na cultura portu-
guesa, para além do relevo meramente epocal. Impressiona, assim, a
amplitude de questões gerada nesta poli-polémica. Por outro lado,
como vimos, o inquérito é sobretudo um corte seccionado sobre um
35Com efeito, Cortesão dirá no mesmo artigo: “averiguado está que só os poderosos
impulsos afectivos podem neles acordar as fortes volições”. Cortesão. Op. Cit., p.21.
36 Id.. Ibid., p.21.
206 DUARTE BRAGA

campo fértil de tensões que se irão aprofundar alhures, em polémicas


menos amplas, mas mais focalizadas, como a subsequente entre Sérgio
e Pascoaes. Por outro lado, permite também esclarecer e conhecer
outras posições antitéticas que ficaram esquecidas, como a que opôs o
Saudosismo ao Integralismo, Pascoaes a Sardinha, e que, por não ser
hoje lembrada, permite ainda criar, nalguma crítica, confusões inde-
sejadas quanto ao que uniu ou separou os dois movimentos. Neste
sentido, o confronto que opôs o simbolista Júlio Brandão a Pascoaes
de alguma forma se reflectirá nos comentários críticos do segundo em
relação àquela estética. Em síntese, o «Inquérito Literário» torna
patente a importância do movimento da Renascença, na sua articu-
lação com o Saudosismo, como um dos movimentos culturais centrais
da cultura portuguesa do início do século XX, criador de vastas,
fundas e permanentes tensões. Neste sentido, alguns dos depoimentos
foram reeditados no âmbito das obras de Teixeira de Pascoaes,
Leonardo Coimbra, e de Fernando Pessoa. Importaria porém reeditar
todo o conjunto de modo a obtermos uma visão global deste impor-
tante documento para a compreensão da República das Letras no
primeiro quartel do século XX.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”,
O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE:
DOIS OU TRÊS TIPOS DE VERDADES,
DE LITERATURAS E DE PERÍODOS CIVILIZACIONAIS

Daniel Moreira Duarte


UNIVERSITAT DE BARCELONA
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Compõe-se o título desta comunicação de três termos que irei


rodando ao longo da mesma, sendo que o conjugá-los assim já me
complica bastante a questão: por isso não me debruçarei como em
outras ocasiões sobre o problema historiográfico da recepção da obra
de Friedrich Nietzsche por parte de Fernando Pessoa1. Não poderei

1 Cf. DUARTE, Daniel Moreira, “Pontos de vista nietzschianos sobre a apreciação


pessoana da verdade do freudismo: o inconsciente antes das metáforas.”, in coord.
Paulo Borges et Nuno Ribeiro et Cláudia Souza, Nietzsche, Pessoa e Freud, Lisboa,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013: “[...] a hipótese [...] de [...]
Pessoa ter lido [...] o «Así hablaba Zaratustra» cuja «tradução» é assinada por «Pedro
González-Blanco». Pude constatar [...] o facto de na contracapa dessa edição da
valenciana F. Sempere, bem como em outras publicações da mesma editora, ser
publicitada, entre outras obras então vendidas a «Una peseta el tomo», a obra «Así
hablaba Zorrapastro», cujo verdadeiro autor, que aí se intitula apenas «Comandante ***»,
é na verdade Ricardo Burguete: numa das suas listagens de referências bibliográficas
Pessoa toma nota desse mesmo título, atribuindo a autoria a «Nietzsche» e rasurando
depois o nome do autor, acrescentando um ponto de interrogação, pelo é provável,
com efeito, que pretendesse ler, isso sim, a referida tradução de Also sprach
Zarathustra.”, in “-1. Ponto de vista preliminar sobre as recepções de Freud e de
Nietzsche:”; cf. COELHO, António Pina, Os fundamentos filosóficos da obra de Fernando
208 DANIEL MOREIRA DUARTE

Pessoa II, Lisboa, Verbo, 1971: “[...]”, in p. 155 in “6. Documentos inéditos”;
cf. PIZARRO, Jerónimo, “A representação da Alemanha na obra de Fernando
Pessoa”, in ed. Teresa Amado et Fernando Guerreiro et João Dionísio et Cristina
Serôdio, Românica 15, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa /
Edições Colibri, 2006, pp. 95-108: “[...]”, in p. 96; cf. DIX, Steffen, “Nietzsche,
Friedrich”, in coord. Fernando Cabral Martins, Dicionário de Fernando Pessoa | e do
modernismo português, Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 530-533: “[...]”, in p. 531;
cf. PESSOA, Fernando, s.t., s.d. (cca. 1913?) in [BNP\E3 48-54, in] PÉREZ López,
Pablo Javier, “Un insólito nietzscheano. Notas sobre el nietzscheanismo explícito e
implícito de Fernando Pessoa”, in org. Paulo Borges, Olhares europeus sobre Fernando
Pessoa, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, pp. 157-229:
“[...]”, in p. 159; cf. NIETZSCHE, Friedrich, in tr. Pedro González-Blanco, Así hablaba
Zaratustra, Valencia, F. Sempere Y Comp.ª Editores, s.d. [1906 et ss.]; cf. BURGUETE,
Ricardo, Así hablaba Zorrapastro, Valencia, F. Sempere Y Comp.ª Editores, [1899 /
1900 et ss.]; cf. SOBEJANO, Gonzalo, Nietzsche en España | (1890-1970), Madrid,
Editorial Gredos, II ed. “corregida y ampliada” 2004: “[...]”, in p. 79 in “b)
Traducciones españolas de Nietzsche durante el período 1900-1910” in “I | | La
crítica española en torno a Nietzsche hasta 1910” in “Parte I | | Nietzsche y la
generación de 1898”, et “[...]”, in p. 440 in “3. El noventa y ocho” in “III | | Influjo
de Nietzsche en la generación de 1898” in loc.cit.. Etc. [; cf. DUARTE, “O ideal
ascético e a ceifeira”, 2012\I\26, in org. Paulo Borges et Nuno Ribeiro et Cláudia
Souza, Ciclo internacional de conferências Pessoa na Actualidade, Lisboa, Casa Fernando
Pessoa, 2011\XII et 2012\I; cf. id., “¿Pessoa lector de Nietzsche?”, 2012\X\9, in
org. Elena Losada et Isabel Soler et Miguel Candel et Paulo Borges et Daniel
Moreira Duarte et Diego Giménez Celano et Pablo Javier Pérez López, Coloquio
Internacional Fernando Pessoa en Barcelona, Barcelona, Facultat de Filologia de la
Universitat de Barcelona et Facultat de Filosofia de la Universitat de Barcelona,
2012\X\8 et 2012\X\9;] cf. LANCASTRE, Maria José de, Fernando Pessoa | Uma
Fotobiografia, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1981: “[...]”, in p. 114; cf.
REIS, António, “Introdução”, in PROENÇA, Raul, in ed. António Reis, O eterno retorno
I, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987: “[...]”, in p. 10; cf. LIND, Georg Rudolf,
“Nietzsche em Pessoa”, in Um século de Pessoa | Encontro Internacional do Centenário de
Fernando Pessoa, Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1988, pp. 283-286: “[...]”,
in pp. 285-286; cf. MONTEIRO, Américo Enes, A recepção da obra de Friedrich Nietzsche
na vida intelectual portuguesa | (1892-1939), Porto, Universidade do Porto, 1997, in org.
Departamento para a Universidade Digital da Universidade do Porto, Repositório
Aberto da Universidade do Porto, http://repositorio-aberto.up.pt/[...] (2012\I\5),
Universidade do Porto, 2007 et ss.: “[...]”, in pp. 331-430 in “Capítulo V | O
modernismo literário português”; cf. DIX, “Pessoa e Nietzsche: deuses gregos,
pluralidade moderna e pensamento europeu no princípio do século XX”, in dir.
João Medina, Clio II 11, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa,
2004, pp. 139-174: “[...]”, in pp. 141-142.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 209

nomeadamente demorar-me como nesta ocasião caberia numa análise


das recepções da obra de Nietzsche por parte de outros colaboradores
da revista “A Águia” e por parte de adeptos da Renascença Portu-
guesa2: por isso começo não obstante por notar que várias de essas
outras recepções não terão deixado de influenciar tal como alguma de
toda a recepção portuguesa dessa obra3 muita de toda a recepção

2 Cf. MONTEIRO, op.cit., in org.cit.: “[...]”, in pp. 143-237 in “3. Frederico


Nietzsche, os homens da Renascença Portuguesa e outros colaboradores de A Águia”
in “Capítulo II | A proclamação da República (1910), a revista A Águia e a
Renascença Portuguesa”, et “[...]”, in pp. 239 et ss. in “Capítulo III | Nietzsche, um
apóstolo da violência, ou talvez não”.
3 Cf. ARAÚJO, Luís de, “Nietzsche – que Humanismo?”, in org. Américo Enes

Monteiro, Reencontro com Nietzsche, Porto, Granito Editores e Livreiros, 2001, pp. 29-
-35: “[...] Nietzsche [...], instaurando arbitrária e imprudentemente um cego
voluntarismo cujos equívocos e contradições se condensam na máxima ‘ousa tornar-
-te naquilo que és!’, expressão fulgurante de um suposto imperativo de autenticidade
que [...] assim construída se converte tão só na expressão espontânea, mas a-crítica
da personalidade, evidenciando as suas convicções, mas descuidando as suas conse-
quências no âmbito da acção humana. Pensamos que só quando a autenticidade
aparece como tarefa moral da pessoa e, assim, surge como autenticidade moral, se
concretiza a dimensão ética daquele imperativo, senão [sic] não passa de mera
fidelidade à estrutura bio-psicológica de cada indivíduo [...], resultante do descrédito
de critérios de índole ética susceptíveis de alicerçarem uma fundamentação racional
da moral.” et “[...] que o superhumanismo que Nietzsche propõe pela voz de
Zaratustra se situa no abismo da irracionalidade [...]. De facto, para Nietzsche o
Bem é a vontade do mais forte, do guerreiro, [...] e não a expressão de alguém
integralmente generoso.”, in pp. 31-32, et passim; cf. n. 42. Cf. NIETZSCHE in tr.
Andrés Sánchez Pascual, Así habló Zaratustra | Un libro para todos y para nadie [, 1883-
-1885], Madrid, Alianza Editorial, ed. “revisada” 1997 imp. 2009: “[...] a menudo
no se quiere, con el amor, más que saltar por encima de la envidia.” et “¿No quieres
llevar vestido alguno delante de tu amigo? ¿Debe ser un honor para tu amigo el que
te ofrezcas a él tal como eres? ¡Pero él te mandará al diablo por esto! | El que no se
recata provoca indignación: ¡tanta razón tenéis para temer la desnudez! ¡Sí, si fueseis
dioses, entonces os sería lícito avergonzaros de vuestros vestidos! | Nunca te
adornarás bastante bien para tu amigo: pues debes ser para él una flecha y un
anhelo hacia el superhombre. | ¿Has visto ya dormir a tu amigo – para conocer cuál
es su aspecto? ¿Pues qué es, por lo demás, el rostro de tu amigo? Es tu propio rostro,
en un espejo grosero e imperfecto. | ¿Has visto ya dormir a tu amigo? ¿No te
horrorizaste de que tu amigo tuviese tal aspecto? Oh, amigo mío, el hombre es algo
que tiene que ser superado. | En el adivinar y en el permanecer callado debe ser
maestro el amigo: tú no tienes que querer ver todo. Tu sueño debe descubrirte lo
210 DANIEL MOREIRA DUARTE

pessoana da mesma 4 , sendo que certamente tampouco terão sido


ignoradas pelo próprio ortónimo e heterónimo, o que talvez não
queira dizer que o tenham influenciado positivamente, até na medida
em que onde encontramos referências de Pessoa a termos nietzschianos
e à própria pessoa de Nietzsche é muitas vezes em breves aponta-
mentos, os quais talvez não expressem sempre ortónimas nem sequer
heterónimas opiniões suas senão justamente as de outros ainda, agui-
listas e renascentistas e não só, como é sabido, e também na medida
em que sendo o poeta um fingidor é natural que também pelo menos
algum do seu aparente anti-nietzschianismo voluntaria e consciente-
mente finja5. Pois bem, e o que em suma com toda esta pequena

que tu amigo hace en la vigilia. | Un adivinar sea tu compasión: para que sepas
primero si tu amigo quiere compasión. Tal vez él ame en ti los ojos firmes y la
mirada de la eternidad. | Ocúltese bajo una dura cáscara la compasión por el
amigo, debes dejarte un diente en ésta. Así tendrá la delicadeza y la dulzura que le
corresponden.”, in pp. 96-97 in “Del amigo” in “Los discursos de Zaratustra”, et
“En verdad, yo os adivino, discípulos míos: vosostros aspiráis, como yo, a la virtud
que hace regalos. ¿Qué tendríeis vosotros en común con gatos y lobos? | Ésta es
vuestra sed, el llegar vosotros mismos a ser ofrendas y regalos: y por ello tenéis sed
de acumular todas las riquezas en vuestra alma. | Insaciable anhela vuestra alma
tesoros y joyas, porque vuestra virtud es insaciable en su voluntad de hacer regalos.
| Forzáis a todas las cosas a acudir a vosotros y a entrar en vosotros, para que
vuelvan a fluir de vuestro manantial como los dones de vuestro amor. | En verdad,
semejante amor que hace regalos tiene que convertirse en ladrón de todos los
valores; pero yo llamo sano y sagrado a ese egoísmo. | Existe otro egoísmo, dema-
siado pobre, un egoísmo hambriento que siempre quiere hurtar, el egoísmo de los
enfermos, el egoísmo enfermo. | Con ojos de ladrón mira ese egoísmo todo lo que
brilla; con la avidez del hambre mira hacia quien tiene de comer en abundancia; y
siempre se desliza a hurtadillas en torno a la mesa de quienes hacen regalos.”, in p.
123 in “De la virtud que hace regalos” in loc.cit.. Etc..
4 Etc.; cf. DUARTE, “La escritura de la verdad: apuntes hacia una propedéutica

nietzscheana de semejante interpretación del quehacer literario de Pessoa.”, in org.


Pablo Javier Pérez López et Fernando Calderón Quindós, El pensar poético de Fernando
Pessoa, Morata de Tajuña – Madrid, Editorial Manuscritos, 2010, pp. 291-318:
“[...]”, in pp. 297-303 in “2. Semejanzas críticas y superadoras y semejanzas del
nihilismo pasivo: breve historia de la comparación entre los dos escritores.”; cf. n. 57;
cf. n. 42.
5 Cf. PÉREZ, Poesía, ontología y tragedia en Fernando Pessoa, Morata de Tajuña – Madrid,

Editorial Manuscritos, 2012: “[...]”, in pp. 242-325 in “7.2 El nietzscheano


involuntario: | Friedrich Nietzsche y Fernando Pessoa” in “7. Fernando Pessoa:
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 211

introdução não quero deixar de dizer é que se mesmo mais contem-


poraneamente nem sempre se parece reconhecer diferenças tais como
por exemplo a que existe entre a personagem nietzschiana do Homem
superior e o conceito nietzschiano de super-Homem, ou de superação
da própria superior humanidade, dir-se-ia6, mais compreensível ainda
é que dada a proximidade histórica não tenham às vezes sido dema-
siado felizes as recepções aguilistas e de impulsionadores da Renas-
cença Portuguesa da filosofia de Nietzsche7, malgrado o próprio título
que reveste a revista8 e mesmo a inspiração renascentista de todo o

pensador de lo trágico”; cf. n. 42. Cf. CARDIELLO, Antonio, “Pessoa, leitor de


Gaultier. De Kant à Nietzsche (1910)”, in org. Paulo Borges, Olhares europeus sobre
Fernando Pessoa, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010, pp.
143-156. Cf. RIBEIRO, Nuno, Fernando Pessoa e Nietzsche: | O pensamento da pluralidade,
Lisboa, Verbo / Babel, 2011. Etc.; cf. n. 1.
6 Cf. MONTEIRO, op.cit., in org.cit.: passim. Cf. NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra. |

| Ein Buch für Alle und Keinen. IV, Leipzig, E. W. Fritzsch, 1885, in ed. Paolo D’Iorio,
Digitale Kritische Gesamtausgabe | Werke und Briefe (“auf der Grundlage der Kritischen
Gesamtausgabe Werke, herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari,
Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1967ff. und Nietzsche Briefwechsel Kritische
Gesamtausgabe, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1975ff. [...]”),
http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/[...], Nietzsche Source, 2009 et ss.,
[...]/#eKGWB/Za-IV: “[...] höheren Menschen [...]” et “[...] Übermensch [...]” et
“[...]”, in [...]/#eKGWB/Za-IV-Menschen-1 et ss.; cf. id. in tr.cit., op.cit.: “[...]”, in
pp. 389-401 in “ Del hombre superior” in “ Cuarta y última parte | de | Así habló
Zaratustra” . Cf. n. 3 et n. 57.
7 Cf. n. 2 et n. 42.
8 Cf. MONTEIRO, op.cit., in org.cit.: “O título da revista sugeriu-o o poema de Jaime

Cortesão, A Morte da Águia, autêntica apologia da vida heróica, publicado havia


pouco, e do qual a Ilustração Popular já havia dado a conhecer, dois anos antes, o
canto V, intitulado “O Canto das Águias”. As palavras do poeta | “Águia divina
que entendeste o mundo, | Tu viste como o céu era profundo | E o mar inesgotável,
| Que tudo é vida e toda a vida é luta” | eram para os seus iniciadores como que o
lema e o programa de acção. Efectivamente a águia é a rainha das aves, a qual,
segundo a crença generalizada, é capaz de fitar o Sol sem que os seus olhos sofram o
minimo [sic] dano e por isso mesmo, e dada a acuidade da sua visão, ela é tomada
como o símbolo da contemplação e da percepção directa da luz intelectiva.” et “A
águia é uma ave verdadeiramente nietzschiana, [...] porque Frederico Nietzsche faz
dela a companhia inseparável de Zaratustra [...]. Ele conhecia, no essencial, o
zoroastrismos, segundo o qual tudo dinama de dois princípios antitéticos: Ormuzd,
princípio do bem e da luz, e Ariman, princípio do mal e das trevas; o primeiro é
representado pela águia e o segundo pelo dragão ou a serpente. Por duas vezes
212 DANIEL MOREIRA DUARTE

movimento9: verdade seja dita, aliás, melhor destino não parece ter
tido a obra nietzschiana em meios não portugueses da época, como
entre os eugenistas britânicos10 ou mesmo entre os pensadores anar-
quistas e os anti-anarquistas pensadores espanhóis11, para dar apenas
um par de exemplos. O que desta feita pretendo, porém, é dar conta
de certas analogias que é possível estabelecer entre os pensamentos
dos próprios Nietzsche e Pessoa, mormente entre certos pensamentos
seus de juventude, a respeito da questão da Verdade e do seu Devir
cultural: e não obstante, se a não ser em uma nota mais à frente12 não
mais aqui explicitamente me debruçarei sobre todas as semelhanças e
diferenças que entre recepções pessoanas e de Pessoa e entre
recepções renascentistas e aguilistas da filosofia nietzschiana caberia
apreciar, darei conta sim de algumas outras poucas tensões e diver-
gências do aguilista sujeito pessoano com Nietzsche e com outras
facetas de Pessoa, assim mesmo explicitando também, sobretudo ao

(1871 e 1872) Nietzsche requisitou da biblioteca da Universidade de Basileia a


célebre obra de Creuzer, sobre a mesma temática, Symbolik und Mithologie der alten
Völker, besonders der Griechen.”, in pp. 137-138 in “2.4.1 Caracterização” in “2.4 A
revista A Águia, embrião e expressão-mor do ideal renascentista” in “2. A Renas-
cença Portuguesa” in “Capítulo II | A proclamação da República (1910), a revista
A Águia e a Renascença Portuguesa”, et “[...]”, in pp. 137-141 in loc.cit. [; cf.
CORTESÃO, Jaime, “O Canto das Águias”, in dir. Carlos de Magalhães et M.
Paulino de Oliveira, Ilustração Popular 9, Porto, Carlos de Magalhães et M. Paulino
de Oliveira, 1908, pp. 3-5; cf. id., A Morte da Águia, Lisboa, Guimarães & Co.ª, 1910].
9 Cf. NIETZSCHE in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de

Santiago Guervós), El nacimiento de la tragedia [, 1878 (I ed. 1872)], in ed. Diego


Sánchez Meca, Obras completas I Escritos de juventud, Madrid, Editorial Tecnos, 2011,
pp. 329-438: “Que nadie intente debilitar nuestra fe en un renacimiento ya
inminente de la Antigüedad helénica; pues en ella encontramos nuestra única
esperanza de una renovación y purificación del espíritu alemán por la magia ígnea
de la música.”, in p. 420 in “20”, et passim.
10 Cf. STONE, Dan, Breeding Superman | Nietzsche, Race and Eugenics in Edwardian and

Interwar Britain, Liverpool, Liverpool University Press, 2002.


11 Cf. SOBEJANO, Gonzalo, op.cit.: “Fuese o no Nietzsche un “anarquista

intelectual”, como tal fue recibido por algunos de los primeros españoles que con su
obra entraron en contacto, provocando en unos horror y en otros entusiasmo.”, in p.
33 in “Introducción” in loc.cit., et “[...]”, in pp. 48 et ss., in “a) La crítica hasta 1900”
in loc.cit..
12 Cf. n. 42.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 213

aproximar-me do fim, duas ou três ambiguidades de semelhante


sujeito relativamente à Renascença Portuguesa de entre outros
António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, sendo que outras mais talvez
não deixem de detectar ao longo de toda esta comunicação os verda-
deiros conhecedores de todo o renascentista movimento português do
princípio do século passado. Mas começo, então, e começo com a
Verdade, para ao longo de dois ou três tipos de períodos ir passando
também pelo Pessoa de “A Águia” e pelo jovem Nietzsche: e começo
não obstante pelo que é anterior à Verdade e primordial relativa-
mente a Ela, anterior e primordial não só no sentido de se tratar do
mais antigo num sentido cronológico, ou horizontal, digamos, senão
antes de mais num sentido vertical, ainda que para baixo, por assim
dizer, para começar.

1. A Verdade, o Pessoa de “A Águia” e o jovem


Nietzsche: tipos conservadores

A Verdade: se nos detivéssemos num primitivo significado do


termo “verdade”, se por exemplo nos houvéramos detido no que na
Grécia arcaica o termo “alétheia”, ou “ἀλήθεια”, melhor dizendo, parece
ter começado por significar, não seria propriamente o significado de
falsidade que lhe oporíamos, porque em tal caso, como nessa época
não apenas pré-platónica senão anterior também aos próprios pré-
-platónicos filósofos e à própria arte da tragédia, o que lhe oporíamos
seria antes o significado de “lethe”, ou “λήθη”, termo que hoje se deixa
traduzir por “olvido”, ou “esquecimento”, enquanto que ao signifi-
cado de “falso”, ou “pseudós”, “ψεῦδος”, melhor dizendo, ao que parece
oporíamos o de “apseudés”, ou “ἀψευδής”13. E tal como nesse lon-
gínquo e talvez saudoso passado, anterior ainda à época em que na
Grécia antiga o lirismo terá começado a ser forjado, caberia não

13 Cf. MOREY, Miguel, el orden de los acontecimientos | sobre el saber narrativo, Barcelona,
Ediciones Península, 1988: “Si nos detuviéramos en el primitivo significado del
término “verdad” en la Grecia arcaica comprobaríamos que, originariamente,
alétheia no se opone a pseudós, como lo verdadero a lo falso – sino a lethé, que significa
olvido.”, in p. 29 in “Palabras de la tribu”, et “Por su parte, es apseudés quien se opone
a pseudós [...]”, in p. 30 in “Pequeña historia de la verdad”.
214 DANIEL MOREIRA DUARTE

obstante com outra espécie de poesia cantar a dita verdade, a qual


então nenhuma dúvida enfrentaria, já que as dúvidas, se as haveria,
iriam sendo em todo o caso dominadas, portanto sendo esquecidas, na
história não sendo registadas: e no entanto não aos próprios poetas
uma tal verdade pertenceria em primeiro lugar senão às Musas, ou ao
que quer que fosse, melhor dizendo, que os levasse a sentirem-se
inspirados por aquela dita divina loucura, a theia mania, ou θεία μανία,
de que em jeito já de duvidosa memória Platão mais tarde ainda
falaria14. Conta-nos Marcel Detienne que se trata de uma verdade, ou
de uma falsidade, fundamentalmente diferente daquela que ao menos
nos nossos de alguma forma mais convencionais momentos vamos
agora tendo por tradição ou pelo menos por costume conceber, conta-
-nos Detienne que não se trata de o verdadeiro frente ao falso, ou seja
que primitivamente alétheia não é o acordo entre a proposição e o seu
objecto, tampouco quanto o acordo de um juízo com os outros juízos,
e que não se opõe ao que vamos agora concebendo e tentando sentir
como mentira ou incoerência, menos ainda se opondo, dir-se-ia,
àquilo que dizemos ser o erro científico: o que nos conta é que primiti-
vamente a única oposição significativa é a de alétheia e lethe, sendo que
a tal nível de pensamento, se se crê que o poeta está verdadeiramente
inspirado, se se crê que o seu verbo se funda num dom de vidência,
logo tenderá a palavra poética a ser algo espontaneamente
identificada com a verdade15. Ora, e é nisto que Marcel Detienne nos
conta que se apoia Miguel Morey para nos levar a concluir que
originariamente a Verdade não é senão um exercício da memória e

14 Cf. id., ibid.: “Esa verdad que es la alétheia arcaica pertenece, en primer lugar, a
las Musas – y si ellas inspiran al poeta aquella “locura divina”, la theía manía de la
que Platón hablaba, entonces sus palabras revelan la verdad.”, in p. 29 in “Palabras
de la tribu” [; cf. Platão, Fedro; cf. id., Íon].
15 Cf. MOREY, op.cit.: “Marcel Detienne [...] caracteriza [...]: «[…]. Una “Verdad”

fundamentalmente diferente de nuestra concepción tradicional. Alétheia no es el


acuerdo de la proposición y de su objeto, ni tampoco el acuerdo de un juicio con los
otros juicios; no se opone a la “mentira”; no está lo “verdadero” frente a lo “falso”.
La única oposición significativa es la de Alétheia y Lethé. A este nivel de pensamiento,
si el poeta está verdaderamente inspirado, si su verbo se funda en un don de
videncia, su palabra tiende a identificarse con la “Verdad”.»”, in p. 30 in loc.cit. [; cf.
DETIENNE, Marcel, Les Maîtres de vérité dans la Grèce archaïque, Paris, Éditions Maspero,
1967].
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 215

uma vontade de resgatar os homens da ameaça de se dissolverem no


olvido, ou para nos levar a concluir, pois, que originariamente a Verdade
não é senão literatura, ou exercício da palavra memorável, melhor
dizendo16: e são sedutores, actualmente, semelhantes discursos assim
acerca de a Verdade ser literária, sendo que eu não quero dizer que
não seja assim, antes de mais, originariamente, e mesmo essencial-
mente, mas creio que não podemos confundir tal ideia com o mito do
bom selvagem, por exemplo, nem com qualquer outro culto de uma
pura e simples espontaneidade17. São de resto os próprios Morey e

16 Cf. MOREY, op.cit.: “[...] originariamente [...]” et “Y esa verdad que dice el poeta
destaca, antes que por cualquier otra cosa, por ser un ejercicio de memoria – por su
voluntad de rescatar a los hombres de la amenaza de disolverse en el olvido.”, in p.
29 in loc.cit., et “La verdad es, pues, literatura – ejercicio de la palabra memorable.”,
in p. 30 in loc.cit..
17 Cf. PÉREZ, op.cit.: “Hubo un tiempo alegre en que [...]” et “Filósofos y Poetas no

tenían dueños ni esclavos, no eran desterrados ni perseguidos por los ejércitos ni los
defensores de la moral [...]”, in p. 29 in “1. La Antigua y eterna disputa entre
Filosofía y Poesía. | El pensamiento poético.”. Cf. NIETZSCHE in tr. Genoveva
Dieterich, Aurora | Reflexiones sobre los prejuicios morales [, 1887], Barcelona, Random
House Mondadori, 2009: “En tiempos primitivos, cuando los juicios pesimistas
reinan sobre el hombre y el mundo, el individuo consciente de su plena fuerza
procura actuar según esos criterios, es decir, trasladar a la acción esas ideas, a través
de la caza, la rapiña, el saqueo, la violencia y el asesinato; incluyendo las variaciones
más pálidas de estas acciones, que son las únicas que la comunidad tolera. Pero
cuando su fuerza disminuye, cuando se siente cansado o enfermo o triste y, en
consecuencia, pasajeramente libre de deseos y ambiciones, es un ser humano
relativamente mejor, es decir menos dañino, y sus ideas pesimistas se descargan
únicamente en palabras y pensamientos, por ejemplo, sobre el valor de sus
compañeros o de su mujer o de su vida o de sus dioses, – sus juicios serán juicios
negativos. En este estado se convierte en pensador y profeta, o sigue especulando
creativamente sobre su superstición e imagina nuevas costumbres, o se burla de sus
enemigos –: pero invente lo que invente, todos los productos (de su espíritu) reflejan
su estado, es decir, el aumento del miedo y del cansancio, la disminución de su
aprecio de la acción y el placer; el contenido de estos productos ha de corresponder
al contenido de estos estados de ánimo poéticos, filosóficos o sacerdotales; en ellos ha
de regir el juicio negativo. Más tarde se llamó a todos los que continuamente hacían
lo que antaño hacía el individuo en ese estado, es decir a los que juzgaban
malévolamente, vivían melancólicos e inactivos, poetas o pensadores o curanderos –:
de buena gana se hubiera despreciado y expulsado de la comunidad a estas personas,
porque no actuaban suficientemente; pero había en eso un peligro, – ellas habían
investigado la superstición y la huella de las fuerzas divinas y nadie dudaba de que
216 DANIEL MOREIRA DUARTE

Detienne que também não deixam de nos pôr de sobreaviso a tal


respeito, dizendo-nos nomeadamente que enquanto mera literatura,
por assim dizer, ou enquanto puro exercício de uma memória, a
verdade que diz o poeta mais não será do que uma tutela narrativa da
fama a que aspiram os homens, tutela essa que se efectuará através da
lisonja, através da palavra que conserva a memória e canta a fama dos
heróis, ou seja de alguns de todos os Homens, assim como dos seus
supostos e temidos antepassados e deuses18, por assim dizer, e através
da reprimenda e das modernamente mais veladas injúria e censura,
através em suma da palavra que tende a deixar que os demais
Homens caiam naturalmente no esquecimento, ou que tende a deixar
que sobre eles se abata o silêncio, ou a obscuridade, e que pode até
condená-los ao desterro, ou ao terem de ser relativamente marginais:

dispusieran de medios de poder desconocidos. Ésta es la valoración en la que vivía la


estirpe más antigua de las naturalezas contemplativas, – ¡despreciadas sólo en la medida en
que no eran temidas! Bajo este disfraz, con este prestigio ambiguo, con un corazón
malvado y a menudo con una cabeza atemorizada, apareció por primera vez en la
tierra la contemplación, débil y terrible al mismo tiempo, despreciada en secreto y
colmada de respeto supersticioso. Aquí, como siempre, vale la frase: ¡pudenda origo!”,
in pp. 51-52 in “42” “Origen de la vita contemplativa.” in “Primer libro”; cf. n. 47
et n. 48 et n. 49.
18 Cf. id. in tr. Andrés Sánchez Pascual, La genealogía de la moral | Un escrito polémico [,

1887], Madrid, Alianza Editorial, ed. “revisada” 1997 imp. 2009: “El temor al
antepasado y a su poder, la conciencia de tener deudas con él crece por necesidad,
según esta especie de lógica, en la exacta medida en que crece el poder de la estirpe
misma, en la exacta medida en que ésta es cada vez más victoriosa, más indepen-
diente, más venerada, más temida.” et “Imaginemos que esta tosca especie de lógica
ha llegado hasta su final: entonces los antepasados de las estirpes más poderosas tienen
que acabar asumiendo necesariamente, gracias a la fantasía propia del creciente
temor, proporciones gigantescas y replegarse hasta la oscuridad de una temerosidad
e irrepresentabilidad divinas: – el antepasado acaba necesariamente por ser transfi-
gurado en un dios. ¡Tal vez esté aquí incluso el origen de los dioses, es decir, un
origen por temor!... Y si a alguien le pareciese necesario añadir: «¡pero también por
piedad!», difícilmente podría tener razón en lo que respecta al período más largo de
la especie humana, a su época primigenia. En cambio, tanto más la tendría, sin
duda, con respecto a la época media, en la que se forman las estirpes nobles: – éstas,
de hecho, han reintegrado a sus fundadores, a los antepasados (héroes, dioses), con
sus intereses correspondientes, todas las cualidades que entre tanto se habían
manifestado en ellas mismas, las cualidades nobles.”, in p. 115 in “19” in “Tratado
Segundo | «Culpa», «mala conciencia» y similares”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 217

Detienne é aliás ainda mais preciso, nomeadamente ao notar que o


dito divinamente inspirado poeta arcaico mais não será deveras do
que um funcionário da soberania, ou um elogiador da nobreza guerreira,
como de qualquer outro ainda que menos nobre poder, cuja dita
verdade ninguém demonstrará nem sequer realmente discutirá19. E o
que com tudo isto talvez possamos ir dizendo é que são de tipo tradi-
cionalista, ou conservador, uma tal verdade, ou uma tal literatura, e
uma tal sociedade, ou um tal período civilizacional: talvez devamos
desde já também é ir pensando que toda a tradição há-de começar de
forma crítica, há-de ter início numa crise, ainda que de origem
externa, como aquando da invasão e do princípio da dominação de
uma tribo ou de um qualquer grupo ou uma qualquer rede por
guerreiros ou outros não verdadeiramente poetas que tais como por
exemplo os dórios terão começado por ser. Não será propriamente de
Tirania que se trata, pois, no que diz respeito às mais primitivas das
primitividades por que me parece ser sempre de bom tom começar,
pois tanto pressupõe já um certo tipo de civilidade, em que se
encontre formada e relativamente fixada alguma complexidade social,
dentro de cuja ordem possam então surgir, subvertendo-a, os próprios
tiranos em alguma gregária plebe apoiados20: mas tratar-se-á em todo

19 Cf. MOREY, op.cit.: “La verdad que dice el poeta tiene que ver con una narración
que tutela esa fama a la que aspiran los hombres, esa fama que es presentada por los
poetas a los hombres como lo auténticamente deseable – y que no es sino un
precipitado literario de la moira (destino o botín) que buscan con sus actos.” et “Y ese
ejercicio se orientará según una polaridad básica: la alabanza (épainos) que es la
palabra que conserva la memoria y canta la fama de los héroes; y la censura, la
injuria o el reproche (mómfos) que equivale a olvido, destierro, oscuridad y silencio. |
Marcel Detienne nos caracteriza de este modo la figura del poeta arcaico: «Funcio-
nario de la soberanía o elogiador de la nobleza guerrera, el poeta es siempre un
"Maestro de la Verdad". Su "Verdad" es una "Verdad" asertórica: nadie la discute,
nadie la demuestra.»”, in p. 30 in loc.cit. [; cf. DETIENNE, op.cit.].
20 Cf. NIETZSCHE in tr. Cristóbal Macías Villalobos, Teognis de Mégara [, 1864], in ed.

Diego Sánchez Meca, Obras completas II Escritos filológicos, Madrid, Editorial Tecnos,
2013, pp. 89-124: “[...] la nobleza que se corrompía poco a poco y [...] la plebe que
florecía, también sucedió entre los megarenses tras la tiranía de Teágenes. Nada
provocó más daño a los nobles que la propia tiranía de éste, que, nacido de un linaje
ilustre, por algún tiempo se comportó como un plebeyo y consiguió el poder con el
apoyo de la plebe.”, in p. 121 in “16.” (“¿Se mantiene firme Teognis en sus
218 DANIEL MOREIRA DUARTE

o caso de um exercício da violência, assim precisamente embora se


formando uma sociedade mais complexa, e tratar-se-á sobretudo da
Literatura, ou da Linguagem, melhor dizendo, como um mero instru-
mento da afirmação ou da manutenção de determinado poder e das
respectivas ordem e coesão sociais.21 E o mais certo é que nunca deixe
de ser assim essencialmente, não sendo jamais definitivo o progresso e
retornando a cada novo momento a primitiva literariedade, a primi-
tiva vivência da Verdade, mesmo se sob formas mais refinadas, até
dentro da própria instituição estatal, se dissimula o estado de guerra
primordial: por este lado, porém, ainda bem que tampouco nos deti-
vemos nem sempre nos detemos completamente nela, ainda bem que
podemos estar assim de novo e alegremente, quer dizer isso sim
tragicamente, confrontando-a.
O Pessoa de “A Águia”: se bem poderíamos demorar-nos nas
avaliações que no artigo publicado em Abril de mil novecentos e doze
e intitulado “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”
o jovem Pessoa faz dos dois pares de três períodos em que divide as
histórias literárias e políticas da Inglaterra e da França, tal como nas

opiniones incluso en los momentos de cambio político de su época?”) in “III | Las


opiniones de Teognis sobre los dioses, la ética y la política”; cf. n. 21 et n. 29.
21 Cf. id. in tr. Andrés Sánchez Pascual, La genealogía de la moral | Un escrito polémico:

“[...] que el «Estado» más antiguo apareció [...] como una horrible tiranía, como
una maquinaria trituradora y desconsiderada, y continuó trabajando de ese modo
hasta que aquella materia bruta hecha de pueblo y de semianimal no sólo acabó por
quedar amasada y maleable, sino por tener también una forma. He utilizado la
palabra «Estado»: ya se entiende a quién me refiero – una horda cualquiera de
rubios animales de presa, una raza de conquistadores y de señores, que organizados
para la guerra, y dotados de la fuerza de organizar, coloca sin escrúpulo alguno sus
terribles zarpas sobre una población tal vez tremendamente superior en número,
pero todavía informe, todavía errabunda. Así es como, en efecto, se inicia en la
tierra el «Estado»: yo pienso que así queda refutada aquella fantasía que le hacía
comenzar con un «contrato».”, in p. 111 in “17” in loc.cit., et “[...] que algo
existente, algo que de algún modo ha llegado a realizarse, es interpretado una y otra
vez, por un poder superior a ello, en dirección a nuevos propósitos, es apropriado de
un modo nuevo, es transformado y adaptado a una nueva utilidad; que todo
acontecer en el mundo orgánico es un subyugar, un enseñorarse, y que, a su vez,
todo subyugar y enseñorarse es un reinterpretar, un reajustar, en los que, por necesidad,
el «sentido» anterior y la «finalidad» anterior tienen que quedar oscurecidos o
incluso totalmente borrados.”, in pp. 99-100 in “12” in loc.cit.; cf. n. 20 et n. 29.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 219

analogias que entre eles estabelece, 22 para mais rapidamente


chegarmos aonde pretendo levar-nos bastar-nos-á confiar nas suas

22 Cf. PESSOA, “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.


Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et José de Magalhães et ed. Álvaro Pinto,
A Águia II 4, Porto, A Renascença Portuguesa, 1912\IV, pp. 101-107: “A historia
litteraria da Inglaterra mostra trez periodos distinctos [...] – o isabelliano, que vae de
1580 approximadamente até a um ponto pouco mais ou menos coincidente com o
fim da Republica; o tratavel de “neo-classico„ que, pouco depois começando,
occupa quasi todo o seculo dezoito, começando porém a morrer desde 1780,
approximadamente; e o moderno, que vem desde então até aos nossos dias. D’estes
tres [sic] periodos o primeiro impõe-se como por muito o maior, não só por ser mais
alto o tom poetico geral do periodo, mas tambem porque as suas culminancias
poeticas – Spenser, Shakespeare e Milton – põem na sombra quantos nomes illustres
os outros dois periodos apresentem. – O segundo periodo é inferior aos outros dois:
o tom poetico é aquelle, intoleravel, que a França do ancien régime derramou pela
Europa de que tinha a hegemonia social. – O terceiro periodo contém figuras que,
sem serem supremas, são como Coleridge, Shelley ou Browning, grandes indiscu-
tivelmente. | Vejamos agora a que periodos politicos estas epocas litterarias corres-
pondem. A epoca isabelliana corresponde ao periodo da vida ingleza cuja realisação
foi feita pela Republica [...]. Foi um periodo creador; n’elle deu a Inglaterra ao
mundo moderno um dos grandes principios civilizacionaes que lhe são peculiares –
o de governo popular, principio que depois a Revolução Franceza, parcamente crea-
dora, simplesmente transformou no de democracia republicana. – O segundo periodo da
vida politica ingleza, o que vem desde a queda da Republica, culmina na revolução,
de mera substituição dynastica, de 1688, e vem morrer por 1780 nas almas, e de facto
com a reforma eleitoral de 1832, é absolutamente nullo e esteril para a Inglaterra;
n’elle ella nada creou, nem mesmo a sua própria grandeza, visto que a hegemonia
social na Europa era então da França. N’este segundo periodo a Inglaterra não fez
senão ir realisando, apathica- e frouxamente, o principio de governo popular que
havia creado. – Tambem no terceiro periodo a Inglaterra nada creou de civiliza-
cional; creou a sua propria grandeza e nada mais – visto que a hegemonia européa
tem sido mais sua do que d’outra nação no seculo dezenove [...] | Virando-nos
agora para a França [...], vemos egualmente trez periodos, incoincidentes porém, no
tempo, com os trez periodos inglezes. O primeiro periodo acompanha o ancien
régime, culmina no tempo de Luiz XIV, e dura até ao fim do seculo dezoito,
emprestando o tom á litteratura européa. O segundo periodo, o romantico, começa
depois da queda do ancien régime e vae terminando á medida que o republicanismo se
vae realisando nas almas, de 1848 a 1870, approximada- mas incorrectamente. De
então para cá, em seguida ao periodo (de 1871 a 1881 pouco mais ou menos) de
lenta consolidação republicana, vem o terceiro periodo, aquelle a que caracterizam
o realismo, o symbolismo e outros anti-romantismos. | Vejamos agora como se nos
mostram os correspondentes periodos políticos. O primeiro, ancien régime, foi um
220 DANIEL MOREIRA DUARTE

conclusões analógicas mais gerais, as quais encontramos também no


segundo dos seus artigos publicados na revista então dirigida pelo seu
Teixeira de Pascoaes. Desta forma aliás evitaremos grande parte das
complexidades que resultam das subdivisões dos referidos períodos
que nomeadamente a respeito dos períodos que em geral avalia como
sendo de máxima grandeza nesse segundo artigo publicado em Maio
do mesmo ano e intitulado “Reincidindo...” Pessoa considera também23:
sem a pretensão porém de como o Pessoa de “A Águia” analogica-
mente estabelecermos premissas para uma dedução de um advento
próximo da culminância literária de um período maximamente

periodo em que a França nada creou para a civilização, visto que creou apenas a sua
propria grandeza e a correspondente hegemonia social européa [...]. O segundo
periodo é aquelle que, precipitando-se na prematura Revolução Franceza, se vae
realisando só depois, nas almas, de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é neste
periodo que a França cria para a civilização a idéa de democracia republicana. Não
a cria, é claro, tão creadoramente como a Inglaterra de Cromwell, que a origina no
mundo moderno; torna-a porém mais intensa e nitida, desenvolve-a – o que é
tambem, ainda que secundariamente, uma creação. Finalmente, no terceiro periodo,
o de 1870 para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua propria
grandeza cria, visto que decahe em valor européo: vae vivendo, como a Inglaterra
no segundo periodo, e realisando, apathica- e despiciendamente, o principio de
democracia republicana que em anterior periodo creára. | [...] é evidente a
analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional, entre o
primeiro periodo francez e o terceiro inglez, entre o segundo periodo francez e o
primeiro inglez, e entre o terceiro periodo francez e o segundo da Inglaterra. Tão
perfeita é a analogia social e civilizacional como a analogia litteraria. A litteratura
ingleza atinge o seu auge no primeiro, a franceza no segundo, periodo. São relati-
vamente ricas, a ingleza no terceiro periodo, a franceza no primeiro. E a ingleza no
seu periodo segundo e a franceza no terceiro seu estão no mesmo nivel de abati-
mento litterario perante os outros periodos.”, in pp. 103-104 in “III”.
23 Cf. id., ibid.: “[...] trez periodos distinctos, ainda que subdivisiveis em sub-

-periodos [...]”, in p. 103 in loc.cit., et passim. Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.


Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et José de Magalhães et ed. Álvaro Pinto,
A Águia II 5, Porto, A Renascença Portuguesa, 1912\V, pp. 137-144: “Preaclaremos,
porém, a questão, resolvendo em seus elementos historicamente – isto é, chrono-
logicamente – constitutivos, a corrente literaria [sic] carateristica [sic] das epocas de
maxima grandeza nacional. [...]. | Toda a corrente literaria [sic] desta especie
suprema é subdivisivel [...]” et “[...]”, in pp. 137-138 in “II”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 221

criador na história de Portugal ou de qualquer outra cultura24, bem


poderemos assim proceder, não propondo eu então senão por sua vez
mais um exercício analógico entre os três tipos gerais de períodos que
analogicamente Pessoa considera e um já passado devir cultural da
Verdade, por um lado, e alguma da já oitocentista literatura filosófica,
por outro lado, do jovem Nietzsche. Ora, e a analogia pela qual me
parece ser pertinente começar não será entre a caracterização feita
por Marcel Detienne do mais arcaico período da civilização grega
para que comecei por apontar e aquele tipo de períodos que Pessoa
considera serem civilizacional e literariamente superiores: se alguma
analogia é possível começar por estabelecer, ela terá antes de ser a de
um tal período grego com o segundo período da história pessoana da
Inglaterra, iniciado com a queda da República e terminado entre mil
setecentos e oitenta e mil oitocentos e trinta e dois, o qual Pessoa diz
ser tratável de neo-clássico e ter por culminância literária a poesia de
Alexander Pope, e com o terceiro período da pessoana história da
França, com inicio na década de consolidação republicana de mil
oitocentos e setenta e um a mil oitocentos e oitenta e um, o qual
Pessoa diz ser caracterizado pelo movimento literário do simbolismo,
assim como pelo do realismo e pelos de outros anti-romantismos,
tratando-se então de períodos em que a corrente literária teria vindo
depois da corrente política correspondente, como se mais uma vez a
Literatura se subordinasse a um poder anterior, e sendo que em tais
períodos cada uma das referidas nações tanto em termos políticos
como em termos literários nada de radicalmente novo teria criado,
nem para os outros, ou para a civilização em geral, nem para si, ou
para o seu domínio sobre outros povos, melhor dizendo25. Aliás, tendo
24 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et
ed.cit.: “[...] deve estar para muito breve o inevitavel apparecimento do poeta ou
[sic] poetas supremos d’esta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande
Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora
primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito proximo a
ruidosa confirmação d’este deduzidissimo asserto?”, in p. 106 in “IV”. Cf. id.,
“Reincidindo...”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...]”, in pp. 138-139 in loc.cit., et “[...]”, in
pp. 141-142 in “IV”, et “[...]”, in pp. 142-143 in “V”, et “[...]”, in pp. 143-144 in
“VI”. Cf. n. 65.
25 Cf. n. 22. Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in
dir.cit. et ed.cit.: “No segundo periodo inglez e terceiro francez, analogos como já
222 DANIEL MOREIRA DUARTE

em conta a correspondência que Pessoa estabelece entre o valor da


literatura perante a história literária e o valor da época civilizacional
perante a história da civilização, poderíamos talvez até dizer das não
criadoras literaturas inglesa e francesa referidas, a tratável de neo-
-clássica inglesa e a francesa simbolista e anti-romântica, que elas
corresponderão também ao que Pessoa diz serem períodos de apagada
e estéril vida política, de despotismo fácil, de agitação nula e como que
servil, e de estagnação social, paz ou guerra que haja: muito embora
no artigo “Reincidindo...” Pessoa utilize essas exactas palavras para
descrever não os dois períodos políticos gerais da França e da
Inglaterra a que agora me refiro mas sim o sub-período francês do fim
do reinado de Luís XV e todo o de Luís XVI e o período pré-Tudor
inglês que propriamente não considera entre os três períodos da sua
história da Inglaterra26. Do que em todo o caso se trata mais uma vez,
como se depreende do que diz o próprio Pessoa desde logo no mesmo
artigo, é de períodos de tipo tradicionalista, sendo que então, como

vimos, a corrente litteraria vem depois da corrente politica que lhe corresponde;
como em França se vê pelo apparecimento dos movimentos symbolistas, realista e
outros, claramente, nos annos que succedem áquelles em que se consolidou a
republica; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente litteraria culmina
(Dryden, talvez maior, é um poeta de transição, pertencente em parte ainda ao
periodo anterior), sêr da geração seguinte á dos consolidadores da nova formula,
caracteristica da época [sic], a de monarchia constitucional.” et “As correntes
litterarias do segundo periodo inglez e o terceiro francez – aquelles periodos em que
essas nações nada criaram, nem para os outros nem para si [...]”, in p. 105 in loc.cit..
26 Cf. id., ibid.: “[...] o valor dos creadores litterarios corresponde ao valor creador

das épocas [sic] a que correspondem de modo que a litteratura não só traduz as
idéas da sua época [sic] mas – e é isto que importa que fixemos – o valor da
litteratura, perante a historia litteraria, corresponde ao valor da epoca, perante a
historia da civilização.”, in p. 104 in loc.cit.. Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.cit. et
ed.cit.: “Vejamos a que especie de periodo social succedem as grandes epocas literarias
[sic] ingleza e franceza. Esse periodo é, em Inglaterra, o periodo pre-Tudor; em
França, é o fim do reinado de Luiz XV, e todo o de Luiz XVI. Que teem, de
analogo, estes dois periodos sociaes? São ambos periodos de apagada e esteril vida
politica, de despotismo facil, de agitação nulla e como que servil, se agitação chega a
haver – periodos onde se parece ter ficado n’uma estagnação social, paz ou guerra
que haja.”, in p. 139 in “III”, et “[...] o caso do isabel[l]ianismo [...], sobre ser o
maximo periodo da literatura ingleza é [...] o primeiro, no tempo, não tendo,
portanto, epoca literaria anterior [...]”, in p. 142 in “V”. Cf. n. 22.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 223

lemos em “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Consi-


derada”, a Inglaterra mais não teria feito do que ir realizando, apática
e frouxamente, sob a forma entretanto adquirida da monarquia cons-
titucional, o princípio de governo popular criado anteriormente com a
República, analogamente ao que teria feito a França no seu período
não criador apenas realizando despicientemente o anteriormente
criado princípio de democracia republicana: e o que é no mínimo
curioso é que Pessoa considere contrariamente a alguns discursos
habituais que esses períodos de tipo tradicionalista seriam também
períodos desnacionalizados, cujas literaturas nomeadamente desnacio-
nalizadas seriam, como se comprovaria por o tom poético da tratável
de neo-clássica Inglaterra não ser mais do que o que a hegemónica
França do Ancien Régime teria derramado pela Europa27, devendo nós
então pensar, analogamente a como pensámos a propósito do
primeiro período da Grécia antiga que considerámos, que também
assim mais modernamente parece ser a tradição resultante de uma
anterior e crítica influência externa depois internamente conservada
sem nada de propriamente novo entretanto se criar. Bem poderíamos
aliás ser assim tentados a achar que as poesias dos períodos literários
de tal forma desnacionalizados seriam sempre em determinado sentido
poesias objectivas, de observação sobretudo da natureza exterior, por
assim dizer, e sobretudo da igualmente exterior sociedade, o que
talvez seja mesmo acertado pensar pelo menos em relação às pri-
meiras poesias da antiga Grécia: mas acontece que o Pessoa de “A
Águia” não pouco nos complica a questão, já que como voltarei a
referir considera que é precisamente uma poesia predominantemente
objectiva a poesia romântica francesa que corresponderia ao período
maximamente criador da sua história da França, o qual no entanto

27 Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...]”, in loc.cit.; cf. n. 63. Cf. id., “A
Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et ed.cit.:
“Examinemos agora quaes os caracteristicos interiores d’estas correntes litterarias.
[...] offerecem como mais importante facto espiritual a desnacionalisação da litteratura;
visto que a litteratura ingleza do seculo dezoito é vazada em moldes francezes e a
litteratura franceza de 1880 para cá é tudo menos franceza de espirito. Assim, para
dar o unico exemplo que o espaço pode admittir, o simbolismo, essencialmente
confuso, lyrico e religioso é absolutamente contrario ao espirito lucido, rhetorico e
sceptico do povo francez.”, in p. 105 in loc.cit.. Cf. n. 22.
224 DANIEL MOREIRA DUARTE

talvez também por isso mesmo ele considere ser inferior ao maxi-
mamente criador período da sua história da Inglaterra, cabendo-nos a
nós para mais pensar que segundo Pessoa o sujeito colectivo francês
seria intrinsecamente mais objectivista do que subjectivista, no seu
objectivismo se realizando maximamente e no subjectivismo alheio da
poesia simbolista degenerando, ao passo que à menos criadora das
poesias inglesas corresponderia pelo contrário a influência externa
sobre um seu intrínseco subjectivismo de algum excessivo objectivismo
externo, nomeadamente o francês, como a propósito da hegemonia da
França de Luís XIV ainda agora admitíamos28.
O jovem Nietzsche: em uma obra já do período dito da sua
madurez mas muito provavelmente a partir das suas anteriores invésti-
gações enquanto filólogo e enquanto estudante de Filologia Nietzsche
dir-nos-á que em várias línguas as palavras e raízes correspondentes à
designação de bom não nos remetem para o sentido moral que actual-
mente lhe vamos pretendendo dar mas sim para os juízos de distinta
forma morais que originariamente os dominadores fariam de si
mesmos e imporiam aos demais, aos que considerariam como uma
colectividade ou mesmo uma raça aparte, chamando-se e fazendo-se
ser chamados esses dominadores a si mesmos então através de nomes
que significariam tão simplesmente essa mesma superioridade de
poder sua, esse seu serem os poderosos, os senhores, os que mandam,
ou então através de nomes significativos do signo mais visível de tal
superioridade, como o seu serem os ricos ou o seu serem os proprie-
tários, mas começando a certa altura a chamar-se e a fazer-se ser
chamados através de nomes significativos de traços típicos do seu
carácter, começando nomeadamente, justamente por alturas do
apogeu da aristocracia na Grécia antiga, a chamar-se e a fazer-se ser
chamados através do nome grego que podemos traduzir por “nobre”
mas que etimologicamente se referirá a alguém tido por ser verdadeiro,
não tanto no sentido de ser veraz, de se tratar de alguém que diz a
verdade, mas sim no mais originário sentido de se tratar de alguém

28Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...] das magnas epocas [...], estas
correntes interpretam completamente a alma nacional [...]”, in p. 142 in “V”. Cf. n.
67 et n. 69. Cf. n. 67 et n. 100.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 225

que é real, que tem realidade, que é29. Claro está, não cabe pensar
que de facto os demais que assim seriam dominados não tivessem

29 Cf. NIETZSCHE in tr.cit., op.cit.: “¡[...] esos historiadores de la moral! [...]. Como
es ya viejo uso de los filósofos, todos ellos piensan de una manera esencialmente a-
-histórica [...]. «Originariamente – decretan – acciones no egoístas fueron alabadas y
llamadas buenas por aquellos a quienes se tributaban, esto es, por aquellos a quienes
resultaban útiles; más tarde ese origen de la alabanza se olvidó, y las acciones no
egoístas, por el simple motivo de que, de acuerdo con el hábito, habían sido alabadas
siempre como buenas, fueron sentidas también como buenas – como si fueran en sí
algo bueno.» Se ve en seguida que esta derivación contiene ya todos los rasgos
típicos de la idiosincrasia de los psicólogos ingleses [...]... Para mí es evidente [...]
que esta teoría busca y sitúa en un lugar falso el auténtico hogar nativo del concepto
«bueno»: ¡el juicio «bueno» no procede de aquellos a quienes se dispensa «bondad»!
Antes bien, fueron «los buenos» mismos, es decir, los nobles, los poderosos, los
hombres de posición superior y elevados sentimientos quienes se sintieron y se
valoraron a sí mismos y a su obrar como buenos, o sea como algo de primer rango,
en contraposición a todo lo bajo, abyecto, vulgar y plebeyo. Partiendo de este pathos
de la distancia es como se arrogaron el derecho de crear valores, de acuñar nombres
de valores: ¡qué les importaba a ellos la utilidad!”, in pp. 36-37 in “2” in “Tratado
Primero | «Bueno y malvado», «bueno y malo»”, et “[...] que en las palabras y
raíces que designan «bueno» se transparenta» todavía, de muchas formas, el matiz
básico en razón del cual los nobles se sentían precisamente hombres de rango
superior. Es cierto que, quizá en la mayoría de los casos, éstos se apoyan, para darse
nombre, sencillamente en su superioridad de poder (se llaman «los poderosos», los
«señores», «los que mandan»), o en el signo más visible de tal superioridad, y se
llaman por ejemplo, «los ricos», «los propietarios» (éste es el sentido que tiene arya;
y lo mismo ocurre en el iranio y en el eslavo). Pero también se apoyan, para darse
nombre, en un rasgo típico de su carácter: y este [sic] es el caso que aquí nos interesa. Se
llaman, por exemplo, «los veraces»: la primera en hacerlo es la aristocracia griega,
cuyo portavoz fue el poeta megarense Teognis. La palabra acuñada a este fin,
ἐσϑλος [noble], significa etimológicamente alguien que es, que tiene realidad, que es
real, que es verdadero [...]”, in p. 41 in “5” in loc.cit.. Cf. id. in tr. Cristóbal Macías
Villalobos, Teognis de Mégara, in ed.cit.: “[...] como la autoridad de la nobleza, con la
cual se mantenía sumisa y obediente a la plebe, estuviera basada en la fama de su
antiguo linaje, en el conocimiento de la administración militar y política, en la
dirección de los asuntos religiosos, en el ornato y esplendor de las riquezas y de la
vida, y en el conocimiento de las artes liberales, ¿por qué ha de sorprender que
Teognis, cuando advirtió la gran diferencia que existía entre los nobles y la plebe,
dijera que el hombre noble debía evitar a toda costa el trato con la plebe?” et “Nos
encontramos, pues, con esa soberbia convicción de la nobleza doria, cuyas opiniones
nadie negará que se encuentran en Teognis, aunque puede dudarse de si éste se
mantuvo siempre en las mismas [...]”, in pp. 120-121 in “<15>” (“¿En qué se
226 DANIEL MOREIRA DUARTE

realidade, ou não fossem, ao menos passageiramente, como tudo o


que devém, ainda que tal fosse apenas na obscuridade e no silêncio da
falta de maior reconhecimento social: mas trata-se efectivamente de
um traço típico do carácter dos dominadores, não tanto originaria-
mente o de se fazerem reconhecer como verazes mas sim o de afir-
marem e verem reafirmada a sua realidade, o de afirmarem o seu ser
como um ser perene à semelhança do que viria por sua vez a ser
depois o próprio mais abstracto Ser de Parménides e o de se afirma-
rem assim por sobre o devir dos outros, ao ponto desses outros,
incluindo os futuros, os lembrarem, ou não deixarem que eles caíssem
no esquecimento, melhor dizendo, para tanto servindo nomeada-
mente as memoráveis palavras dos ditos poetas, pelo que é ainda e
novamente com aquele tipo primordial de memorada verdade, com
aquela alétheia não oposta à falsidade de que fala Marcel Detienne, que
nos deparamos. Talvez, pois, não seja caso para falarmos de Litera-
tura naquele sentido extra-moral, ou não subordinado ao poder esta-
belecido, que com ou sem razão nos vamos habituando a referir
àquelas obras literárias que consideramos verdadeiramente artísticas:
porém do que em todo o caso se trata, de acordo também com o
jovem Nietzsche, é de um primitivo mundo de metáforas e da própria
Verdade enquanto um exército de metáforas em movimento com
origem numa primordial e guerreira capacidade humana para a
fantasia e para o domínio ou para a auto-conservação da vida mediante
a dissimulação, bem como num ainda mais primordial poder artístico
não só assim apolíneo senão também dionisíaco da própria Natureza30.

fundamentaba la dignidad y autoridad de los nobles en Grecia?”) in loc.cit.; cf. n. 20


et n. 21.
30 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago

Guervós), El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “[...] lo apolíneo y su antítesis, lo


dionisíaco, como poderes artísticos que surgen de la naturaleza misma, sin mediación
del artista humano, y en los cuales las pulsiones artísticas de ésta se satisfacen por vez
primera y por vía directa: por un lado, como mundo de imágenes de los sueños,
cuya perfección no tiene conexión alguna con la altura intelectual o con la
formación artística de la persona individual, por otro lado como realidad embria-
gada, la cual, a su vez, no presta atención a esa persona, sino que intenta incluso
aniquilar al individuo y redimirlo mediante un sentimiento místico de unidad. Todo
artista, comparado con estos estados artísticos inmediatos de la naturaleza, es un
«imitador» [...]”, in p. 342 in “2”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 227

E não obstante, como um tal estado perfeitamente natural das coisas,


ou tal absoluta primordialidade, pois, talvez nunca tenha plenamente
existido a não ser em alguns instantes excepcionais, talvez até mesmo
entre os demais animais, e como portanto de acordo com Nietzsche o
ser humano, como outros seres, procuraria segurança, para além de
diversão, em formas de existência gregárias e sociais, do que se vai
tratando também é da celebração de um tratado de paz, por assim
dizer, ou de uma atenuação do estado de guerra primordial: sendo no
entanto que se trata de um tratado de paz não apenas no que con-
cerne àquilo em que por assim dizer se materializam as relações
humanas, sendo que se trata de uma atenuação também do carácter
bélico das próprias metáforas, nomeadamente das metáforas da lin-
guagem verbal, que mais do que representar como um conhecimento
puro essas relações o que farão é contribuir poetica e retoricamente,
criativamente portanto embora, para a reprodução de tais relações,
tratando-se assim do estabelecimento de alguma ordem social, da con-
solidação de algum poder, e do abrandamento do movimento meta-
fórico, ou seja de uma tendência para o impedimento da fantasia que
primordialmente não cessaria de produzir novas metáforas, tendo tal
tendência por resultado ao longo do tempo a fixação como algo de
canónico e obrigatório de determinadas metáforas, ou ilusões, ou
mentiras, nomeadamente as dos designáveis de vencedores, e a fixa-
ção de uma uniformemente válida forma correspondente de designar
e assim reproduzir as mesmas coisas e as mesmas relações de poder
como se deveras de verdades se tratasse. Em momentos como aqueles
não modernos a que com Marcel Detienne nos referimos talvez não se
trate de conceitos em sentido estrito31: mas como melhor veremos são
31 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “[...] la duplicidad de lo apolíneo y de lo dionisíaco
[...]. Esos nombres los tomamos en préstamo a los griegos, los cuales hacen que
quien discierne pueda percibir las profundas doctrinas secretas de su intuición del
arte no, ciertamente, con conceptos, sino con las figuras penetrantemente claras del
mundo de sus dioses.”, in p. 338 in “1”. Cf. DELEUZE, Gilles, et GUATTARI, Félix, in
tr. Margarida Barahona et António Guerreiro, O que é a Filosofia?, Lisboa, Presença,
1992: “[...] os Gregos tinham de facto o plano de imanência construído com entu-
siasmo e com embriaguez, mas tinham de procurar os conceitos para o preencher, a
fim de não caírem de novo nas figuras do Oriente; nós, em contrapartida, temos
conceitos, julgamos que os temos, depois de tantos séculos de pensamento ocidental,
mas não sabemos onde os pôr, porque nos falta um verdadeiro plano, distraídos que
228 DANIEL MOREIRA DUARTE

sim os conceitos e a abstracção em sentido lato o que preocupa já o


jovem Nietzsche, sendo que no sentido de serem mais estritamente
conceptuais as metáforas fixando-se petrificar-se-iam, quer dizer tornar-
-se-iam meramente convencionais, deixariam de ser figuras univer-
salmente re-interpretáveis em cada situação particular para passarem a
ser universalizações de particularidades circunstancialmente ausentes,
pelo que perderiam a sua força sensível, pelo que perderiam afinal o seu
poder, já que se enquanto metáforas jamais constituiriam um puro
conhecimento das coisas em si deixariam para mais, quais moedas de
faces desgastadas, de ter valor de troca, de valer pelas metáforas origi-
nárias na sua instantânea e singular ocorrência32. No que não obstante
concerne a ambos os casos o que é curioso entretanto é que Nietzsche
nos diga que só mediante o esquecimento se tornaria possível a pro-
pósito do que deveras é metafórico o sentimento da verdade, desde logo
o dessa mesma verdade que enquanto primitiva literatura não se opõe
senão ao próprio esquecimento, mais não sendo ela do que um exer-
cício da palavra memorável e uma fixação do reconhecimento do valor
dos Homens, ou dos grupos de Homens, que em algum momento
passado se terão imposto como sendo aqueles a quem por suposto
cabe a designação de verdadeiros, a quem sobretudo cabe ter por reais,
assim como por bons, por outro exemplo: se já com Marcel Detienne
constatáramos que à memória das verdades de alguns Homens corres-
ponde o esquecimento das de outros, do que desta feita se trata é no
entanto do esquecimento da primordialidade fantasiosa e não real-
mente verdadeira das próprias ditas verdades em si de que se tem
memória. 33 Não se trata do esquecimento de uma qualquer

estamos pela transcendência cristã. Em resumo, sob a sua forma passada, o conceito
era aquilo que ainda não existia. Nós, hoje, temos os conceitos, mas os Gregos não
os tinham ainda; tinham o plano que nós deixámos de ter. Por isso é que os Gregos
de Platão contemplam o conceito, como qualquer coisa que está por cima e muito
longe ainda, ao passo que nós, nós temos o conceito, temo-lo no espírito de uma
maneira inata, basta reflectir.”, in pp. 90-91 in “4 | Geofilosofia”.
32 Cf. n. 44.
33 Cf. NIETZSCHE in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et

Diego Sánchez Meca), Sobre verdad y mentira | en sentido extramoral [, 1873], in ed.
Diego Sánchez Meca, Obras completas I Escritos de juventud, pp. 609-619: “Sólo
mediante el olvido de ese primitivo mundo de metáforas, sólo mediante el endure-
cimiento y la petrificación de una masa de imágenes que brota originariamente en
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 229

verdadeira bondade ou superior realidade originariamente determi-


nada34, pois, deparando-nos nós todavia com a mesma bélica primi-
tividade, ainda que a referida fixação de determinadas memórias meta-
fóricas como verdades constitua um primeiro passo na interiorização e
no refinamento, ou pelo menos no esquecimento35, no tornar-se inapa-
rente e até inconsciente, da mesma, cabendo inclusivamente, caso não
nos centrássemos aqui no pensamento de um mais jovem Nietzsche,
referir-nos ao papel nesse processo que ele mais tarde atribuirá à

candente fluidez de la capacidad primordial de la fantasía humana, sólo mediante la


invencible creencia en que este sol, esta ventana, esta mesa, sean una verdad en sí, en
una palabra, gracias solamente a que el ser humano se olvida de sí mismo en cuanto
sujeto y, en particular, en cuanto sujeto artísticamente creador, vive con cierta calma,
seguridad y coherencia [...]”, in p. 615 in “1”, et “¿Qué es, pues, la verdad? Un
ejército de metáforas, metonimias, antropomorfismos en movimiento, en una
palabra, una suma de relaciones humanas que han sido realzadas, extrapoladas,
adornadas poética y retóricamente y que, tras un prolongado uso, a un pueblo le
parecen fijas, canónicas, obligatorias: las verdades son ilusiones que se ha olvidado
que lo son, metáforas que se han quedado gastadas y sin fuerza sensible, monedas
que han perdido su imagen y que ahora ya no se consideran como monedas, sino
como metal.”, in p. 613 in loc.cit., et “En un estado natural de las cosas el individuo,
a fin de conservarse frente a otros individuos, utilizaría el intelecto casi siempre sólo
para la ficción: pero, como el ser humano quiere existir, por necesidad y a la vez por
aburrimiento, de forma social y gregaria, necesita un tratado de paz y, conforme a
ello, procura que desaparezca de su mundo al menos el más brutal bellum omnium
contra omnes [guerra de todos contra todos]. Este tratado de paz, no obstante, conlleva
algo que tiene aspecto de ser el primer paso en la consecución de ese enigmático
impulso hacia la verdad. Porque en este momento se fija lo que desde entonces
deberá ser «verdad», esto es, se inventa una designación de las cosas uniformemente
válida y obligatoria [...]”, in p. 610 in loc.cit., et “Todo lo que distingue el ser
humano frente al animal depende de esa capacidad de volatilizar las metáforas
intuitivas en un esquema, esto es, de disolver una imagen en un concepto; pues en el
ámbito de esos esquemas es posible algo que nunca podría conseguirse bajo las
primeras impresiones intuitivas: construir un orden piramidal de castas y grados,
crear un mundo nuevo de leyes, privilegios, subordinaciones y delimitaciones,
mundo que ahora se contrapone al otro, el mundo intuitivo de las primeras impre-
siones, y pasa a considerarse como lo más firme, lo más universal, lo más conocido y
lo más humano y, por ello, lo regulador e imperativo.”, in p. 613 in loc.cit.. Cf.
n. 84.
34 Cf. n. 17 et n. 47 et n. 48 et n. 49.
35 Cf. n. 38 et n. 53.
230 DANIEL MOREIRA DUARTE

personagem do sacerdote ascético36: não deixemos porém é de pensar


que um tal processo há-de iniciar-se criticamente, quer dizer há-de ter
início num período de crise, ainda que de origem externa, como é
para o Nietzsche de “O nascimento da tragédia” o caso da Grécia mais
arcaica sucessivamente invadida por dionisíacas influências orientais, às
quais os dórios, eles próprios à partida invasores, durante algum
tempo teriam podido resistir, embora apenas as rejeitando, através da
oposição de uma arte apolínea e de uma mundividência respectiva,
quer dizer através da tradição que não obstante teriam ido resistente-
mente construindo37. Não se trata exactamente de desnacionalização
como nos períodos pessoanos referidos das mais modernas histórias da
França e da Inglaterra, mas trata-se do mesmo tradicionalismo com
que Pessoa os caracteriza, não podendo nós deixar de o associar
àquela de entre as três vivências da História a que na segunda das suas
“Considerações intempestivas” Nietzsche dá o nome de anticuária,
reconhecendo-lhe certa utilidade enquanto força capaz de evitar os
efeitos desagregadores de grandes migrações e dos excessos de influên-
cias externas e enquanto força capaz de assim preservar a ainda que

36 Cf. id. in tr. Andrés Sánchez Pascual, op.cit.: “«Yo sufro: alguien tiene que ser
culpable de esto» – así piensa toda oveja enfermiza. Pero su pastor, el sacerdote
ascético, le dice: «¡Está bien, oveja mía!, alguien tiene que ser culpable de esto: pero
tú misma eres la única culpable de esto, – ¡tú misma eres la única culpable de ti!...» Esto es
bastante audaz, bastante falso: pero con ello se ha conseguido al menos una cosa,
con ello la dirección del resentimiento [...] queda cambiada.”, in p. 165 in “15” in
“Tratado Tercero | ¿Qué significan los ideales ascéticos?”.
37 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago

Guervós), El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “[...] cómo de la edad de «acero», con


sus luchas de titanes y su ruda filosofía popular, se desarrolló, bajo el gobierno de la
pulsión apolínea de belleza, el mundo homérico, cómo la invasora corriente de lo
dionisíaco se volvió a engullir esa magnificiencia «ingenua», y cómo frente a este
nuevo poder lo apolíneo se eleva a la majestad inflexible del arte dórico y de la
consideración dórica del mundo.”, in p. 350 in “4”, et “¡Vosotros acompañareis al
cortejo dionisíaco desde India hasta Grecia!”, in p. 421 in “20”, et “[...] desde Roma
hasta Babilonia, podemos demostrar la existencia de festividades dionisíacas [...].
Contra las febriles agitaciones de esas festividades, cuyo conocimiento penetraba
hasta los griegos por todos los caminos terrestres y marítimos, ellos estuvieron
durante algún tiempo, como parece, completamente asegurados y protegidos por la
figura de Apolo [...]. En el arte dórico ha quedado eternizada esa actitud de rechazo
mayestático de Apolo.”, in p. 343 in “2”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 231

não igualitária nem sempre agradável coesão das sociedades, bem


como a própria vida, mas não escondendo tampouco os perigos de
uma tal vivência, nomeadamente o perigo cognitivo derivado da
estreiteza etnocêntrica, por exemplo, ou em geral auto-centrada e
desligada de qualquer contexto, da sua visão sobre o passado, assim
como o perigo ademais moral de por essa estreiteza se valorizar todos
os aspectos da respectiva tradição, por mais pequenos que sejam,
como igualmente importantes, e o ainda mais grave perigo vital de a
tradição deixar de se relacionar com a vida presente e se constituir
como um obstáculo à acção e à geração do novo, não mais conser-
vando a mesma vida senão apenas a mumificando38: e no entanto, na

38 Cf. id. in tr.cit., Consideraciones intempestivas II | De la utilidad y los inconvenientes de la


historia para la vida [, 1874], in ed. Diego Sánchez Meca, Obras completas I Escritos de
juventud, pp. 695-748: “La Historia pertenece, pues [...], al que preserva y venera, a
aquel que con lealtad y amor mira allí de donde proviene y en donde se ha formado;
con esta piedad expresa, en cierto modo, su gratitud por su existencia. Cuidando
con mano solícita lo que desde antiguo existe, quiere preservar las condiciones en
que él nació para los que han de nacer después de él – y así sirve a la vida. [...]. Lo
pequeño, lo limitado, lo decrépito y anticuado recibe dignidad e inviolabilidad
propias en virtud de la circunstancia de que el alma preservadora y reverente del ser
humano anticuario se aloja en estas cosas y en ellas se prepara una morada íntima.
[...]. «Aquí se ha podido vivir – dice para sus adentros –, pues aquí se puede vivir,
aquí se podrá vivir, pues somos tenaces y no hay manera de quebrarnos de golpe».
De esta manera, con este «nosotros», mira por encima de la efímera y curiosa vida
individual y se identifica con el espíritu de su hogar, de su linaje, de su ciudad.”, in
p. 707 in “3”, et “Como la historia mejor puede servir a la vida es atando también a
los linajes y poblaciones menos favorecidas a su tierra y a sus costumbres tradicio-
nales, proporcionándoles arraigo y disuadiéndoles de vagar por tierras extrañas en
busca de lo mejor y disputando por su posesión. A veces, se parece a obstinación e
insensatez lo que hace al individuo aferrarse a tal compañía y ambientes, a tal
costumbre penosa, a tal monte estéril – y sin embargo, es la insensatez más saludable
y más provechosa para el bien común; como lo sabe todo el que se haya percatado
de los terribles efectos del afán aventurero de emigración, máxime en el caso de
pueblos enteros, u observe de cerca la situación de un pueblo que haya perdido la
fidelidad con su pasado y esté librado a un incesante afán y prurito cosmopolita de
novedades y de innovación.”, in p. 708 in loc.cit., et “No es ése, por cierto, el estado
en que el ser humano está mejor capacitado para disolver el pasado en saber puro
[...]. El sentido anticuario de un ser humano, de un vecindario, de todo un pueblo,
siempre se caracteriza por un campo visual limitadísimo; es muy poco lo que
percibe, y este poco lo ve demasiado cercano y demasiado aislado; no es capaz de
232 DANIEL MOREIRA DUARTE

medida em que pelo menos primitivamente é também de uma


vivência mítica e até algo artística da memória que se trata, na medida
pelo menos em que mesmo que não se trate de uma soberania dos
próprios artístas tampouco se trata como mais modernamente vamos
pretendendo de uma tradição perfeitamente ecdótica e avaliada por
uma crítica científica, a verdade é que também não podemos deixar
de associar tal vivência a alguma parte do que Nietzsche diz ser a
história monumental, de novo não escondendo o perigo cognitivo
respectivo, o de muito do passado ser esquecido, precisamente, em
benefício de uma memória para mais embelezada, quer dizer adulte-
rada, de alguns poucos acontecimentos e personalidades assim toma-
dos por dignos de emulação e tais quais efeitos em si, quer dizer com
efeito em todos os tempos independentemente das causalidades e
motivações particulares a cada circunstância histórica, e de novo não
escondendo o respectivo perigo moral, talvez sem embargo afinal de
contas felizmente o de por essa analogicamente enganadora dignidade
de emulação a história monumental poder tentar o valente à teme-
ridade e o entusiasta ao fanatismo e poder mesmo nas mãos de
egoístas com talento e malfeitores exaltados levar à destruição de
reinos, ao assassinato de príncipes e ao desencadeamento de guerras e

medirlo y, por consiguiente, considera todo igualmente importante, es decir,


atribuye a todo lo individual una importancia excesiva. Entonces, no hay para las
cosas del pasado diferencias de valor ni proporciones que las establezcan verdade-
ramente en su justo valor unas con respecto a otras; sino siempre tan sólo dimen-
siones y proporciones de las cosas con referencia al individuo o pueblo que mira
hacia atrás de manera anticuaria.”, in pp. 708-709 in loc.cit., et “[...] cuando la
historia sirve a la vida pasada en tal forma que mina la continuidad vital y, preci-
samente, la vida superior, cuando el sentido histórico ya no conserva, sino momifica
la vida [...]. La historia anticuaria degenera ya en el instante mismo en que deja de
animarla e infundirle entusiasmo la vida palpitante del presente.” et “[...] aunque la
historia anticuaria no pierda el fundamento en que debe enraizarse si ha de estar al
servicio de la vida: no faltan los peligros, por cuanto existe el riesgo de que adquiera
excesiva preponderancia y llegue a asfixiar los otros modos de considerar el pasado.
Es que sólo es capaz de preservar la vida, no de generarla; por lo que siempre
subestima lo que deviene, porque para eso carece de instinto que lo detecte [...]. Por
consiguiente, pone trabas al firme impulso a lo nuevo y paraliza a quien actúa, el
cual, al obrar, no puede menos que violar tales o cuales devociones.” in p. 709 in
loc.cit..
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 233

revoluções39. Aliás, no que diz respeito à origem crítica da própria


tradição e muito em especial àqueles dominadores ou invasores de que
falávamos e que Nietzsche diz serem os poderosos e activos, já sejam
bons ou maus e governantes ou artistas, temos mesmo de associar a
correspondente alethéia à vivência monumental da História, precisa-
mente por o que de modelar e emulador para a criação no presente de
algo de grande ou de uma prática mais elevada corresponderá então
às figuras e aos acontecimentos do passado tornados monumentos:
simplesmente, por agora refiro-me sobretudo ao consecutivo processo
de fixação dessa verdade monumental em uma tradição, por assim
dizer, e à consolidação de períodos literários e civilizacionais do tipo
dos que com Pessoa começámos por ter em consideração, nos quais
talvez até os próprios artistas e os próprios governantes, ou os seus
sucessores, não sejam propriamente criadores, o que de acordo com
Nietzsche não será de estranhar, na medida em que o único perigo
não tão somente cognitivo e moral mas realmente vital, perigo de
estagnação da vida e da cultura, que considera que atinge a história
monumental, não decorrendo propriamente de tal vivência, não seria
senão o perigo de o idolatrar os monumentos servir apenas de disfarce

39 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “[...] se dan épocas que no saben discernir entre
un pasado monumental y una ficción mítica [...]” et “[...] cuando la consideración
monumental de lo pasado impera sobre los otros modos de consideración, esto es, el
anticuario y el crítico, sale perjudicado el pasado mismo: grandes partes de él se
olvidan, se desprecian, siendo como una ininterrumpida corriente gris donde sólo
facta aislados, embellecidos, se destacan cual islootes: en las contadas personas que
en general se hacen perceptibles llama la atención algo innatural y prodigioso [...]”
et “[...] la historia monumental [...]: siempre tenderá a la aproximación, la genera-
lización y, por último, la equiparación de lo desigual, siempre atenuará la diferencia
de los motivos y los móviles, para presentar los effectus en forma monumental, vale
decir, ejemplar y digna de emulación, a expensas de las causae: de suerte que, dada
su propensión a prescindir en lo posible de las causas, sin mucha exageración se la
podría llamar una colección de «efectos en sí», esto es, de acontecimientos que en
todos los tiempos surtirían efecto.”, in p. 705 in “2”, et “La historia monumental
engaña mediante analogías: con seductoras similitudes tienta al valiente a la
temeridad y al entusiasta al fanatismo, y si se imagina esta historia hasta en las
manos y mentes de los egoístas con talento y de los malhechores exaltados, se
destruyen reinos, se da muerte a príncipes, se instigan guerras y revoluciones y se
aumenta aún más el número de «efectos en sí» históricos [geschichtlichen], esto es, de
efectos sin causas suficientes.”, in p. 706 in loc.cit..
234 DANIEL MOREIRA DUARTE

a forças conservadoras, não seria senão o perigo de a história monu-


mental, como a Arte e a Religião, perder sob o domínio do conserva-
dorismo o seu poder de emulação 40 . Bem, e quanto ao demais
veremos em que medida o jovem Nietzsche de “O nascimento da
tragédia” considera não ser pertinente a oposição entre aquilo a que
dá o nome de objectivo e aquilo a que dá o nome de subjectivo: não
obstante, sendo de resto o seu romantismo no mínimo duvidoso, não
trairemos a sua apreciação da literatura homérica se enquanto arte
por assim dizer objectiva, ou enquanto pura contemplação de imagens
por assim dizer exteriores ao poeta que nelas imerso se encontra, a
associarmos, ainda que como também mencionarei a partir do
próprio Homero algo de crítico possa ter transcorrido subterranea-
mente, ao tradicionalismo do tipo de períodos a que até agora me
venho sobretudo referindo41.

40 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “Esto, para recordar los daños que la historia
monumental puede ocasionar entre los poderosos y los activos, ya sean buenos o
malos: ¡y no digamos cuando se apoderan y se valen de ella los impotentes y los
inactivos! | Veamos el caso más simple y frecuente. Imaginemos a los humanos de
naturaleza no artística o poco artística armados y revestidos por la historia
monumental al modo de los artistas: ¡contra quién dirigirán sus armas! Contra sus
enemigos mortales, los espíritus de portentoso temperamento artístico, es decir,
contra aquellos que son los únicos capaces de aprender verdaderamente de esta
historia, esto es, de aprender para la vida y de traducir lo aprendido en una práctica
más elevada. [...]. Pues no quieren que surja lo grande; su recurso es decir: «¡Mirad,
lo grande ya está ahí!». En verdad lo grande que ya está ahí les importa tan poco
como lo grande que surge: como lo atestigua su vida. La historia monumental es el
disfraz bajo el cual su odio a los poderosos y grandes de su época pretende hacerse
pasar por admiración plena de los poderosos y grandes de épocas pasadas, disfraz en
el que invierten el sentido propiamente dicho de ese modo de considerar la historia;
tengan o no clara conciencia de su proceder, lo cierto es que actúan como si su lema
fuese: «Haced que los muertos entierren a los vivos».”, in loc.cit., et “Pertenece la
Historia ante todo al individuo activo y poderoso, a aquel que sostiene una magna
lucha, necesita modelos, maestros, confortadores, y no puede encontrarlos entre sus
compañeros ni en el presente. [...]. Con referencia al individuo activo, Polibio, por
ejemplo, define la historia política como la correcta preparación para el gobierno de
un Estado y como la maestra más extraordinaria que haciéndonos recordar las
calamidades ajenas exhorta a soportar con entereza las vicisitudes de la fortuna.”, in
p. 703 in loc.cit. [; cf. POLÍBIO, Historiae: “[...]”, in I 1 4].
41 Cf. id. in tr.cit., El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “Homero, [...] el tipo de artista

apolíneo, de artista ingenuo, mira con espanto la apasionada cabeza de Arquíloco,


O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 235

2. O jovem Nietzsche, a Verdade e o Pessoa de “A


Águia”: tipos transformadores

O jovem Nietzsche: muito embora o próprio Pessoa pareça


hesitar em pensar que sim, um pouco como Leonardo Coimbra e
outros aguilistas e renascentistas 42 , deveras não cabe dizer de

belicoso servidor de las musas, impulsado salvajemente a través de la existencia: y la


estética moderna, interpretando esta información, sólo ha sabido añadir que aquí
está situado frente al artista «objetivo» el primer artista «subjetivo».” et “El artista
plástico e igualmente el poeta épico, que es pariente del primero, están inmersos en
la contemplación pura de las imágenes.”, in pp. 352-353 in “5”. Cf. n. 46.
42 Cf. PESSOA, s.t., s.d. [, in BNP\E3 20-97r,] et s.t., s.d. [, in BNP\E3 55B-19,] et

“Tyrannia”, s.d. [, in BNP\E3 92C-55,] et s.t., s.d. [, in BNP\E3 134B-7r], in


PÉREZ, op.cit.: “(O conceito de superhomem de Nietzsche é um conceito pagão...
mas compare-se o anti-intelectualismo d’ele).”, in p. 296 in “Anexo 7.2.1” in “7.2 El
nietzscheano involuntario: | Friedrich Nietzsche y Fernando Pessoa” in “7.
Fernando Pessoa: pensador de lo trágico”, et “[...] Preconceito racionalista (ou
philosophico) | (Erros de conceber a sociedade como regulavel intellectualmente,
etc.) | | [...] | Nietz[s]che é tratado e reutado [sic] sob o heading de “Preconceito
Racionalista””, in p. 307 in loc.cit., et “F – Uma idéa expressa é uma fôrça; nunca é
demais fazer valer os direitos da Intelligencia. | A – Uma idéa expressa é uma falta
de força – da força de a calar. Os mestres ensinam pela palavra, mas é no silencio
que eles aprenderam | F – O dever dos intellectuaes (em uma epohca [sic] como a
nossa, em que o odio maior é á Intelligencia) é crearem uma atmosphera favoravel á
Intelligencia, fazer constar a Intelligencia como una [sic] fôrça, ou pelo menos,
como uma cousa. | A – Nesse caso o facto mais interessante no teu livro é elle não
ser nunca um facto. | F – □ hoje a Intelligencia, como em todos os periodos de
decadencia, passa a servir o instinto. E temos os vários phenómenos typicos da nossa
epchoca [sic] – o irracionalismo de Nietzsche, instintivismo das correntes tradicio-
nalistas, os pragmatismo [sic], os intuicionismos todos [...]”, in p. 315 in loc.cit., et
“Os mais degenerados – pelo menos intellectualmente – são os que pensam sob a
fórma poética, mas não são poetas. E.g. Carlyle, Nietzsche”, in p. 320 in loc.cit.;
etc.. Cf. COIMBRA, Leonardo José, “A Critica do Sublime de Kant | Excerto do
livro inedito – O Pensamento Criacionista | Do Capítulo: O Formalismo”, in dir.
Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et ed. Álvaro Pinto, A Águia II 31, Porto,
Renascença Portuguesa, 1914\VII, pp. 19-24: “O «Retour eternel [sic]» é a
redução da vontade ao mais insignificante dos epifenomenos.”, in p. 20 n. 1. Cf. id.,
“Natal e novo anno”, in dir. Álvaro Pinto et ed. Tércio Miranda, A Águia I 3, Porto,
Álvaro Pinto et imp. Tipografia da Empreza Guedes, 1911\I\1, pp. 1-2: “O
bailarino Zaratustra saltava, por cima de [sic] Moral, para o mar imenso e profundo
da Vida. Muito bem. Sómente o bailarino Zaratustra era ainda bovinamente
236 DANIEL MOREIRA DUARTE

burguês, imbecilmente escravo do passado. Esperava o «Retour Éternel». O pobre


Zaratustra era um impotente – não podia, não sabia e acabava por não querer
criar.”, in p. 2, et “Nietzsche é uma sensibilidade excepcional. Todas as duvidas e
[sic] tormentos da época o movem em delirio. A sua filosofia é uma auto-terapeutica.
É, por isso, ocasional e genialmente insensata. Ele é romantico e classico;
pretendendo ser irracionalista (ir além do bem e do mal...) ele é requintadamente
intelectualista. O super-homem padece do mais plebeu de todos os vicios – o do
racionalismo. Reduz o mundo ao atomismo (o mais gregario, velho e banal dos
sistemas) e ele, o desprezadôr, o altivo, o criador dos valores!!! aguarda a eterna
repetição da mesma monotonia, alegre á força da loucura.”, in p. 2 n. 5. Cf. MONTEIRO,
op.cit., in org.cit.: “[...] em “O Génio Português”, Pascoaes afirma que a alma da
raça lusitana, “é a matéria e o espírito, penetrando-se mutuamente numa constante
actividade criadora de novas formas de vida”. A saudade, longe de ser algo de
estático, de estagnado, é, muito pelo contrário, dinamismo, acção, vida. Apresenta o
saudosismo como substituto dinâmico e antitético da doutrina retornista e por isso
convida o leitor a comparar a saudade “com o triste rétour eternel [sic] de Nietsche
[sic]”, movimento que Pascoaes considera estéril, “jogo inútil eternamente repetin-
do-se”. Mesmo assim tem Nietzsche em conta de “indivíduo absoluto, sem parentes,
sem compatriotas, grande, extraordinário no seu isolamento infecundo e trágico”.
Não se compreende muito bem como, sendo-se “estéril”, “inútil” e “infecundo”, se
possa ser simultaneamente “grande” e “extraordinário”.”, in pp. 154-155 in “b)
Teixeira de Pascoaes [1877-1952]” in “3.1 A tríade iniciática e dorsal: Jaime
Cortesão, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra” in “3. Frederico Nietzsche, os
homens da Renascença Portuguesa e outros colaboradores de A Águia” in loc.cit.. [;
cf. PASCOAES, Teixeira de, O Génio Português, Porto, Renascença Portuguesa, 1913:
“[...]”, in p. 8]. Cf. DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, Paris, Quadrige / Presses
Universitaires de France, 2010: “Quand les dés lancés affirment une fois le hasard,
les dés qui retombent affirment nécessairement le nombre ou le destin qui ramène le
coup de dés. C’est en ce sens que le second temps du jeu est aussi bien l’ensemble
des deux temps ou le joueur qui vaut pour l’ensemble. L’éternel retour est le second
temps, le résultat du coup de dés, l’affirmation de la nécessité, le nombre qui réunit
tous les membres du hasard, mais aussi le retour du premier temps, la répétition du
coup de dés, la reproduction et la re-affirmation du hasard lui-même. [...] Il y a bien
des fragments du hasard qui prétendent valoir pour soi ; ils se réclament de leur
probabilité, chacun solicite du joueur plusieurs coups de dés [...] ; mais Zarathoustra
sait que ce n’est pas ainsi qu’il faut jouer, ni se laisser jouer ; il faut, au contraire,
affirmer tout le hasard en une fois [...], pour en réunir tous les fragments et pour
affirmer le nombre qui n’est pas probable, mais fatal et nécessaire ; alors seulement
le hasard est un ami qui vient voir son ami, et que celui-ci fait revenir, un ami du
destin dont le destin lui-même assure l’éternel retour en tant que tel.”, in pp. 32 in
“12) Conséquences pour l’éternel retour” in “Le tragique”, et “L’exposé de l’éternel
retour tel que le conçoit Nietzsche suppose la critique de l’état terminal ou état
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 237

d’équilibre. Si l’univers avait une position d’équilibre, dit Nietzsche, si le devenir


avait un but ou un état final, il l’autait déjà atteint. Or, l’instant actuel, comme
instant qui passe, prouve qu’il n’est pas atteint : donc l’équilibre des forces n’est pas
possible. Mais pourquoi l’équilibre, l’état terminal devrait-il être atteint, s’il était
possible ? En vertu de ce que Nietzsche appelle l’infinité du temps passé. L’infinité
du temps passé signifie seulement ceci : que le devenir n’a pas pu commencer de
devenir, qu’il n’est pas quelque chose de devenu. Or, n’étant pas quelque chose de
devenu, il n’est pas davantage un devenir quelque chose. N’étant pas devenu, il
serait déjà ce qu’il devient, s’il devenait quelque chose. C’est-à-dire : le temps passé
étant infini, le devenir aurait atteint son état final, s’il en avait un. Et en effet, il
revient au même de dire que le devenir aurait atteint l’état final s’il en avait un, et
qu’il ne serait pas sorti de l’état initial s’il en avait un.”, in p. 53 in “5) Premier aspect
de l’éternel retour : comme doctrine cosmologique et physique” in “Actif et réactif”,
et “Voilà la pensée que Nietzsche déclare avoir trouvée «chez des auteurs anciens».
Si tout ce qui devient, disait Platon, ne peut jamais esquiver le présent, dès qu’il y est,
il cesse de devenir, et il est alors ce qu’il était en train de devenir. Mais cette pensée
antique, Nietzsche la commente : chaque fois que je l’ai rencontrée, «elle était
déterminée par d’autres arrière-pensées généralement théologiques». Car, s’obsti-
nant à demander comment le devenir a pu commencer et pourquoi il n’a pas encore
fini, les philosophes antiques sont de faux tragiques, invoquant l’hybris, le crime, le
châtiment. Sauf Héraclite, ils ne se mettent pas en présence de la pensée du pur
devenir, ni de l’occasion de cette pensée. Que l’instant actuel ne soit pas un instant
d’être ou de présent «au sens strict», qu’il soit l’instant qui passe, nous force à penser
le devenir, mais à le penser précisément comme ce qui n’a pas pu commencer et ce
qui ne peut pas finir de devenir.”, in pp. 53-54 in loc.cit., et “Comment la pensée du
pur devenir fonde-t-elle l’éternel retour ? Il suffit de cette pensée pour cesser de
croire à l’être distinct du devenir, opposé au devenir ; mais il suffit aussi de cette
pensée pour croire à l’être du devenir lui-même. Quel est l’être de ce qui devient, de
ce qui ne commence ni ne finit de devenir ? Revenir, l’être de ce qui devient. [...]. Jamais
l’instant qui passe ne pourrait passer, s’il n’était déjà passé en même temps que
présent, encore à venir en même temps que présent. Si le présent ne passait pas par
lui-même, s’il fallait attendre un nouveau présent pour que celui-ci devint passé,
jamais le passé en général ne se constituerait dans le temps, ni ce présent ne
passerait : nous ne pouvons pas attendre, il faut que l’instant soit à la fois présent et
passé, présent et avenir, pour qu’il passe (et passe au profit d’autres instants). Il faut
que le présent coexiste avec soi comme passé et comme à venir. [...]. L’éternel retour
est donc réponse au problème du passage. Et en ce sens, il ne doit pas être interprété
comme le retour de quelque chose qui est, qui est un ou qui est le même. Dans
l’expression «éternel retour», nous faisons un contresens quand nous comprenons :
retour du même. Ce n’est pas l’être qui revient, mais le revenir lui-même constitue
l’être en tant qu’il s’affirme du devenir et de ce qui passe. Ce n’est pas l’un qui
revient, mais le revenir lui-même est l’un qui s’affirme du divers ou du multiple.”, in
238 DANIEL MOREIRA DUARTE

Nietzsche que um ideal seu, gnoseológico ou político ou literário, seja


o anti-intelectualismo, ou mesmo o irracionalismo, o que não obstante
tampouco significa que se trate de um idealista no sentido de conceber
a Inteligência como existente em si, tal como tampouco significa que
se trate de um racionalista no sentido de confiar na razão enquanto
princípio de uma infabilidade do conhecimento ou da acção moral ou
artística. Não cabe aqui abordar toda essa questão, sobretudo não no
que concerne às suas obras posteriores: mas vale pelo menos a pena
reter que no dito póstumo escrito de juventude “Sobre verdade e
mentira em sentido extra-moral”, não obstante a primazia que então
concede ao que diz ser o mito e a arte, pelo pugna Nietzsche é por um
intelecto libertado, ou livre, dir-se-ia melhor,43 mas libertado em todo

pp. 54-55 in loc.cit., et “Pourquoi le mécanisme est-il une si mauvaise interprétation


de l’éternel retour ? Parce qu’il n’implique pas nécessairement ni directement
l’éternel retour. Parce qu’il entraîne seulement la fausse conséquence d’un état final.
Cet état final, on le pose comme identique à l’état initial [...]. Ainsi se forme
l’hypothèse cyclique, tant critiquée par Nietzsche.”, in p. 55 in loc.cit.. Cf. n. 89 et n.
90. Cf. D’IORIO, Paolo, in tr. Ernani Chaves, “O eterno retorno. | Gênese e
interpretação”, in ed. Scarlett Marton, Cadernos Nietzsche 20, São Paulo, Grupo de
Estudos Nietzsche, 2006, pp. 69-114: “[...]”, in pp. 69-71 in “1. Retorno do
Mesmo?”. [Cf. NIETZSCHE.]
43 Cf. FOUCAULT, Michel, “L'éthique du souci de soi comme pratique de la liberté”

(“entretien avec H. Becker, R. Fornet-Betancourt, A. Gomez-Müller, 20 janvier


1984”), in [ed. Raúl Fornet-Betancourt, Concordia 6, Aachen?, Raúl Fornet-
-Betancourt?, 1984\VII-XII, pp. 99-116, in] org. Philippe Coutant, Nouveau millénaire,
Défis libertaires, http://1libertaire.free.fr/index.html (2014\IV\29), Philippe Coutant,
2001 et ss.: “J'ai toujours été un peu méfiant à l'égard du thème général de la
libération, dans la mesure où, si l'on ne le traite pas avec un certain nombre de
précautions et à l'intérieur de certaines limites, il risque de renvoyer à l'idée qu'il
existe une nature ou un fond humain qui s'est trouvé, à la suite d'un certain nombre
de processus historiques, économiques et sociaux, masqué, aliéné ou emprisonné
dans des mécanismes, et par des mécanismes de répression. Dans cette hypothèse, il
suffirait de faire sauter ces verrous répressifs pour que l'homme se réconcilie avec lui-
-même, retrouve sa nature ou reprenne contact avec son origine et restaure un
rapport plein et positif à lui-même. Je crois que c'est là un thème qui ne peut pas être
admis comme cela, sans examen. Je ne veux pas dire que la libération ou telle ou
telle forme de libération n'existent pas : quand un peuple colonisé cherche à se
libérer de son colonisateur, c'est bien une pratique de libération, au sens strict. Mais
on sait bien, dans ce cas d'ailleurs précis, que cette pratique de libération ne suffit
pas à définir les pratiques de liberté qui seront ensuite nécessaires pour que ce
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 239

o caso daquelas verdades fixadas de que falávamos ou dos petrificados


conceitos e das correspondentemente universais designações, sendo
que mesmo quando então tal intelecto não se guiaria por conceitos
senão por intuições, mesmo quando destruiria as verdades pré-estabe-
lecidas, ou não se subordinaria a elas, não por as esquecer mas por
utilizar de forma não convencional as convenções linguísticas e assim
fazer uso antes de metáforas proibidas, de metáforas que por relação
às pré-estabelecidas seriam tidas por mentiras mas que seriam de novo
metáforas da singularidade do presente, não obstante continuaria a
tratar-se de um intelecto, que por intelectual justamente voltaria a
compor novas concatenações conceptuais, para de novo as destruir
embora, na medida em que livre, dir-se-ia, tampouco pelas suas
próprias criações anteriores se deixaria subjugar44. Ora, e o que a

peuple, cette société et ces individus puissent se définir des formes recevables et
acceptables de leur existence ou de la société politique. C'est pourquoi j'insiste plutôt
sur les pratiques de liberté que sur les processus de libération, qui, encore une fois,
ont leur place, mais ne me paraissent pas pouvoir, à eux seuls, définir toutes les
formes pratiques de liberté. Il s'agit là du problème que j'ai rencontré très
précisément à propos de la sexualité : est-ce que cela a un sens de dire «libérons
notre sexualité» ? Est-ce que le problème n'est pas plutôt d'essayer de définir les
pratiques de liberté par lesquelles on pourrait définir ce qu'est le plaisir sexuel, les
rapports érotiques, amoureux, passionnels avec les autres ? Ce problème éthique de
la définition des pratiques de liberté est, me semble-t-il, beaucoup plus important
que l'affirmation, un peu répétitive, qu'il faut libérer la sexualité ou le désir.”, in
http://1libertaire.free.fr/MFoucault212.html (2014\IV\29).
44 Cf. NIETZSCHE in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et

Diego Sánchez Meca), Sobre verdad y mentira | en sentido extramoral, in ed.cit.: “Ese
impulso hacia la formación de metáforas, ese impulso fundamental del ser humano,
que en ningún momento se puede eliminar porque con ello se eliminaría al ser
humano mismo, no está en verdad dominado ni apenas domado por el hecho que
con sus evanescentes productos, los conceptos, se construya un mundo nuevo,
regular y rígido, que es como una fortaleza para él. Dicho impulso se busca para su
actividad un campo nuevo y un cauce distinto y los encuentra en el mito y, de modo
general, en el arte.”, in pp. 617-618 in “2”, “Aquel gigantesco entramado y
andamiaje de los conceptos, aferrándose al cual el ser humano indigente va salvando
la vida, es, para el intelecto liberado, solamente un armazón y un juguete para sus
más temerarias obras de arte: y cuando lo destruye, lo arroja sin orden ni concierto,
o con ironía lo vuelve a componer, uniendo lo más diverso y separando lo más afín,
entonces revela que no necesita de aquellos auxilios extremos de la indigencia y que
ahora no se guía por conceptos sino por intuiciones. Ningún camino regular
240 DANIEL MOREIRA DUARTE

respeito da Literatura talvez devamos pensar, para neste segundo


momento a questão recomeçar, é que muito mais do que qualquer
pré-estabelecida espontaneidade emotiva só um intelecto assim verda-
deiramente mentiroso por relação à dita verdade da tradição possibi-
litará o aparecimento de poetas fingidores, capazes de até a si mesmos
se fazerem passar por outros que não os respectivos sujeitos ortodoxos,
ou convencionais: o que no entanto não os impedirá de fingirem tão
completamente que cheguem a deveras sentir uma tal alteridade
subjectiva e uma correspondentemente alterada objectividade, de acordo
também com o que o Nietzsche já de mil oitocentos e oitenta e quatro
poetiza, asseverando-nos que só o poeta que de mentir é capaz, cons-
cientemente, voluntariamente, capaz seria de falar com verdade, com
uma verdade, quer dizer, mais lúcida e soberana, ainda que nem por
isso mais verdadeira por relação ao que só em si pudessem ser objec-
tivamente as coisas como os próprios sujeitos45. Talvez seja mesmo

conduce de estas intuiciones al país de los esquemas fantasmales, de las abstrac-


ciones: para aquéllas no está hecha la palabra, el ser humano enmudece al verlas o
habla solamente en metáforas prohibidas y en inauditas concatenaciones concep-
tuales con el fin de corresponder creativamente a la impresión de la poderosa
intuición presente, al menos, destruyendo y burlándose de las antiguas barreras
conceptuales.”, in pp. 618-619 in loc.cit., et “[...] la legislación del lenguaje
proporciona también las primeras leyes de la verdad: pues aquí aparece por primera
vez el contraste entre verdad y mentira: el mentiroso utiliza las designaciones
válidas, las palabras, para hacer que lo irreal parezca real; dice, por ejemplo, yo soy
rico, cuando la designación correcta para su estado sería justamente «pobre». Abusa
de las convenciones consolidadas efectuando cambios arbitrarios e incluso
invirtiendo los nombres.”, in p. 610-611 in “1”. Cf. n. 84.
45 Cf. PESSOA, “Autopsicografia”, 1931\IV\1, in ed. Maria Aliete Galhoz, Fernando

Pessoa, Lisboa, Editorial Presença, II ed. 1988: “O poeta é um fingidor, | Finge tão
completamente | Que chega a fingir que é dor | A dor que deveras sente.”, in p.
108 in “De «Poesias» de Fernando Pessoa” [; cf. id., op.cit., in dir. João Gaspar
Simões et José Régio, Presença 36, Coimbra, 1932]. Cf. NIETZSCHE, “Die Bösen
liebend”, 1884, in ed. Laureano Pérez Latorre, Friedrich Nietzsche | Poesía completa
(1869-1888), Madrid, Editorial Trotta, III ed. 2008: “Der Dichter, der lügen kann |
wissentlich, willentlich | Der kann allein Wahrheit reden” in p. 146 in “Poesía
póstuma” in “Poesías sueltas”. Cf. SENA, Jorge de, “«O poeta é um fingidor» |
(Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais)”, 1959, in ed. Mécia de Sena, Fernando Pessoa
& Cª heterónima | Estudos coligidos 1940-1978, Lisboa, Edições 70 (et Mécia de Sena),
III ed. 2000, pp. 97-117. Cf. PESSOA, s.t., 1914?, in [ed. Georg Rudolf Lind et
Jacinto do Prado Coelho, Páginas de Estética e de Teoria Literárias, Lisboa, Editorial
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 241

por uma semelhantemente nova ainda que a princípio não tão


voluntária e consciente subjectivação, no sentido ascético e foucaul-
tiano do termo, que se torna possível como o drama o verdadeiro
lirismo, sendo pelo menos que tal teria sido o caso na Grécia antiga do
jovem Nietzsche, para quem não se encontraria em Arquíloco um
poeta subjectivo no sentido de o mesmo expressar as suas vontades e
os seus estados de alma pré-estabelecidamente individuais, porque isso
nem literatura propriamente dita seria: não obstante, pois, ao con-
trário de um apolíneo Homero a contemplar o objecto como algo de
exterior em que se encontraria mergulhado, seria Arquíloco aquele
poeta relativamente mais dionisíaco que se confundiria com o con-
templado e com a própria Natureza enquanto artista primordial,
assim em todo o caso se transformando no que de outra forma ele
próprio só por si não seria46. Que a princípio uma tal inovação na

Ática, 1966, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa, http://arquivopessoa.net/


(2014\III\26), Obra Aberta CRL, 2008 et ss., http://arquivopessoa.net/textos/4088
(2014\III\26): “A sensação estética pode tornar-se uma ciência; e a originalidade
cultivada como uma disciplina.” et “A sinceridade é o grande obstáculo que o artista
tem a vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão
literariamente as coisas, podem levar o espírito a esta culminância.”. Cf. id., s.t.
(“Anatole France”), 1914, in [ed.cit., in] dir.cit., http://arquivopessoa.net/textos/3479
(2014\III\26): “Alguma coisa porém contribuiu para a criação do estado estético
da inteligência, que é o máximo a que ela pode atingir – para nos curar do vício da
convicção, da mania da sinceridade, da estupidez de tomar a sério um mundo que
os deuses, que o dirigem, não tomam a sério nunca.”. Cf. id., s.t., 1914?, in [ed.cit.,
in] dir.cit., http://arquivopessoa.net/textos/1859 (2014\III\26): “1. A arte é a
notação nítida de uma impressão errada (falsa). (À notação nítida duma impressão
exacta chama-se ciência). | 2. O processo artístico é relatar essa impressão falsa, de
modo que pareça absolutamente natural e verdadeira.”.
46 Cf. FOUCAULT, “Usage des plaisirs et techniques de soi”, in ed. Daniel Defert,

Dits et écrits IV, Paris, Éditions Gallimard, 1994: “Il n’y a pas d’action morale
particulière qui ne se réfère à l’unité d’une conduite morale ; pas de conduite morale
qui n’appelle la constitution de soi-même comme sujet moral ; et pas de constitution
du sujet moral sans des ”modes de subjectivation” et sans une ”ascétique” ou
des ”pratiques de soi” qui les appuient.”, in p. 558 [; cf. id., op.cit., in dir. Pierre
Nora, Le Débat 27, Paris, Éditions Gallimard, 1983\XI, pp. 46-72]. Cf. DELEUZE et
GUATTARI in tr.cit., op.cit.: “[...] as personagens conceptuais (e também as figuras
estéticas) são irredutíveis a tipos psico-sociais [...]”, in p. 62 in “3 | As personagens
conceptuais”, et “As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance, mas
também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que excedem as
242 DANIEL MOREIRA DUARTE

vivência da Verdade com efeito não seria bem consciente, isso é o que
já em “Para a genealogia da moral” nos dirá Nietzsche a propósito
dos primeiros filósofos, escritores tantas vezes ainda de poemas, que
tendo começado a aparecer em épocas terríveis como seria o primitivo

afeições e percepções ordinárias, do mesmo modo que os conceitos excedem as


opiniões correntes.”, in p. 60 in loc.cit.. Cf. n. 41. Cf. NIETZSCHE in tr. Joan B.
Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago Guervós), El nacimiento de la
tragedia, in ed.cit.: “[...] puesto que nosotros no conocemos al artista subjetivo más
que como mal artista, y en toda especie y nivel de arte exigimos ante todo y sobre
todo victoria sobre lo subjetivo, redención del «yo» y silenciamiento de toda
voluntad y veleidad individuales, más aún, si no hay objetividad, si no hay pura
contemplación desinteresada, no podemos creer jamás en la más mínima
procreación verdaderamente artística. Por eso nuestra estética tiene que resolver
primero ese problema, a saber, cómo es posible el «lírico» en cuanto artista: él, que,
según la experiencia de todos los tiempos, siempre dice «yo» [...]”, in p. 352 in “5”,
et “El genio lírico siente surgir del estado místico de autoenajenación y unidad un
mundo de imágenes y metáforas que tiene una coloración, una causalidad y una
velocidad que son totalmente diferentes de aquel mundo del escultor y del poeta
épico. Mientras que este último vive en esas imágenes, y sólo en ellas, con alegre
placer, y no se cansa de contemplarlas con amor hasta en sus más pequeños rasgos,
mientras que para él incluso la imagen del colérico Aquiles es sólo una imagen, de
cuya colérica expresión disfruta con aquel placer onírico por la apariencia – de
modo que gracias a este espejo de la apariencia está protegido contra el unificarse y
fundirse con sus figuraciones –, las imágenes del lírico no son, por el contrario, otra
cosa que él mismo, y sólo distintas objetivaciones suyas, por así decirlo, por lo cual él,
en cuanto centro motor de aquel mundo, tiene derecho a deir «yo»: sólo que esta
yoidad no es la misma que la del ser humano despierto, empírico-real, sino la única
yoidad verdaderamente existente y eterna [...]. En verdad Arquíloco, el ser humano
inflamado de pasión, que ama y odia apasionadamente, no es más que una visión
del genio, el cual no es ya Arquíloco, sino el genio del mundo y, como tal, expresa
simbólicamente su dolor primordial en esa metáfora que es el ser humano Arquíloco:
mientras que aquel ser humano Arquíloco que quiere y apetece de manera subjetiva
no puede ni podrá ser jamás poeta.”, in pp. 353-354 in loc.cit., et “[...] que toda la
antítesis [...] de lo subjetivo y de lo objetivo [...] es completamente improcedente en
estética, pues al sujeto, al individuo que quiere y que fomenta sus finalidades
egoístas, sólo se lo puede pensar como adversario, no como origen del arte. Pero en
la medida en que el sujeto es artista, está ya redimido de su voluntad individual y se
ha convertido, por así decirlo, en un medium a través del cual el único sujeto
verdaderamente existente celebra su redención en la apariencia. [...]. El genio sabe
algo del eterno ser del arte tan sólo en la medida en que, en el actus de procreación
artística, se fusiona con aquel artista primordial del mundo [...]”, in p. 355 in loc.cit..
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 243

período da Grécia para que comecei por apontar e sendo provenientes


eles próprios de duras e cruéis morais conservadoras de uma memória
guerreira a que no entanto pela debilidade do seu serem contem-
plativos e intelectuais e sem embargo pela sua ânsia de poder se
oporiam, compreensivelmente provocariam desconfiança e desprezo à
sua volta, como também enquanto jovem Nietzsche parece pressentir47,
e a si mesmos tampouco deixariam de se desprezar, pelo que teriam
tido de ser também eles malvados e de aprender a a si mesmos como
aos outros inspirar antes medo e respeito, por isso se disfarçando de já
temidas e respeitadas figuras de tipo sacerdotal e para tal papel
poderem representar se tornando crentes no ideal do duro ascetismo
que também sobre si mesmos e evitando tomar consciência de si
enquanto puros filósofos opostos às tradições praticariam 48: e não

47 Cf. id. in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego
Sánchez Meca), La filosofía en la época trágica de los griegos [, 1873], in ed. Diego
Sánchez Meca, Obras completas I Escritos de juventud, pp. 571-607: “El camino hacia los
orígenes nos lleva siempre a la barbarie [...]” et “[...] Tales, Anaximandro, Heráclito,
Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito y Sócrates. [...]. No son nada
convencionales, porque en aquellos tiempos no existía un estamento de filósofos y
doctos. Todos ellos se encontraron inmersos en una grandiosa soledad, puesto que
son los únicos que en aquella época vivían sólo para el conocimiento.”, in p. 575 in
“1”, et “La filosofía es peligrosa, cuando no tiene pleno derecho a existir [...]”, in p.
573 in loc.cit., et “Existe una necesidad férrea que encadena al filósofo a una
verdadera cultura: ¿pero cómo cuando esa cultura no existe? En tal caso el filósofo
es un cometa imprevisible y que por eso infunde miedo [...]”, in p. 576 in loc.cit.. Cf.
n. 17.
48 Cf. id. in tr. Andrés Sánchez Pascual, La genealogía de la moral | Un escrito polémico:

“Los sentimientos dulces, benévolos, indulgentes, compasivos – los cuales alcanzaron


más tarde un valor tan alto que casi son «los valores en sí» –, tuvieron en contra
suya, durante larguísimo tiempo, precisamente el autodesprecio: el hombre se
avergonzaba de la mansedumbre, como hoy se avergüenza de la dureza [...]”, in p.
147 in “9” in loc.cit., et “A la filosofía le ocurrió al principio lo mismo que a todas
las cosas buenas, durante mucho tiempo éstas no tuvieron el valor de afirmarse a sí
mismas, miraban en torno suyo por si alguien quería venir en su ayuda, más aún,
tenían miedo de todos los que las miraban. Enumérense una a una todas las
pulsiones y virtudes del filósofo – su pulsión dubitativa, su pulsión negadora, su
pulsión expectativa («eféctica»), su pulsión analítica, su pulsión investigadora, inda-
gadora, atrevida, su pulsión comparativa, compensadora, su voluntad de neutralidad
y objectividad, su voluntad de actuar siempre sine ira et studio [sin ira ni parcialidad] –:
¿se ha comprendido ya bien que todas esas pulsiones salieron, durante larguísimo
244 DANIEL MOREIRA DUARTE

obstante, pois, assim mesmo se iria tornando possível a afirmação de

tiempo, al encuentro de las primeras exigencias de la moral y de la conciencia? (para


no decir nada de la razón en cuanto tal, a la que todavía Lutero gustaba de llamar
Señora Sabia, la sabia prostituta). ¿Se ha comprendido ya bien que un filósofo, si
hubiera cobrado conciencia de sí, habría tenido que sentirse precisamente como la
encarnación del nitimur in vetitum [nos lanzamos hacia lo vedado] – y, en conse-
cuencia, se guardaba de «sentirse a sí mismo», de cobrar conciencia de sí?”, in pp.
145-146 in loc.cit., et “[...] un cierto ascetismo, una dura y serena renuncia hecha
del mejor grado, se cuentan entre las condiciones más favorables de la espiritualidad
altísima y también entre las consecuencias más naturales de ésta; por ello, de
antemano no extrañará que el ideal ascético haya sido tratado siempre con una
cierta parcialidad a su favor precisamente por los filósofos. En un examen histórico
serio se pone incluso de manifiesto que el vínculo entre ideal ascético y filosofía es
aún mucho más estrecho y riguroso. Podría decirse que sólo apoyándose en los
andadores de ese ideal es como la filosofía aprendió en absoluto a dar sus primeros
pasos y pasitos en la tierra [...]”, in p. 145 in loc.cit., et “[...] en qué estima, bajo qué
presión estimativa hubo de vivir la más antigua estirpe de hombres contemplativos, –
¡despreciada en la misma medida en que no era temida! La contemplación apareció
por vez primera en la tierra bajo una figura disfrazada, bajo una apariencia ambigua,
con un corazón malvado y, a menudo, con una cabeza angustiada: de esto no hay
duda. La condición inactiva, meditadora, no-guerrera, de los instintos de los
hombres contemplativos provocó a su alrededor durante mucho tiempo una
profunda desconfianza: contra ésta no había otro recurso que inspirar decidida-
mente miedo de uno mismo.”, in pp. 148-149 in “10”, et “Los más antiguos filósofos
supieron dar a su existir y a su aparecer un sentido, un apoyo y un trasfondo, en
razón de los cuales se aprendió a temerlos; y, sopesando las cosas con más exactitud,
hicieron aquello por una imperiosa necesidad más fundamental aún, a saber, para
cobrar ellos mismos miedo y respeto a sí mismos. Pues encontraban que todos los
juicios de valor existentes en su interior estaban vueltos en contra suya, tenían que
vencer todo tipo de sospechas y de resistencias contra «el filósofo en sí». Como
hombres de épocas terribles que eran, hicieron esto con medios terribles: la crueldad
consigo mismos, la automortificación rica en invenciones – tal fue el principal
recurso de estos eremitas y de estos innovadores del pensar ansiosos de poder, los
cuales tenían necesidad de violentar primero dentro de sí los dioses y las tradiciones,
para poder creer ellos mismos en su innovación.”, in p. 149 in loc.cit., et “[...] al
principio el espíritu filosófico tuvo siempre que disfrazarse y enmascararse en los
tipos antes señalados del hombre contemplativo, disfrazarse de sacerdote, mago,
adivino, de hombre religioso en todo caso, para ser siquiera posible en cierta medida:
el ideal ascético le ha servido durante mucho tiempo al filósofo como forma de
presentación, como presupuesto de su existencia, – tuvo que representar ese ideal para
poder ser filósofo, tuvo que creer en él para poder representarlo.”, in pp. 149-150 in
loc.cit.. Cf. n. 17.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 245

novas verdades, ou de novas mentiras, na mesma medida em que um


novo período civilizacional se iria instalando com uma cultura mais
propícia, como destaca o jovem Nietzsche ter a certa altura aconte-
cido entre os gregos antigos, ao exercício do poder da Filosofia49. Tal
teria acontecido na Grécia antiga mais ou menos pela mesma altura
em que a tão apolínea como dionisíaca obra de arte suprema que seria
a tragédia ática teria nascido50, justamente quando por o dionisismo
ter sido absorvido e começar a manifestar-se como factor crítico a
partir do interior da própria cultura grega a resistência apolínea a essa
anteriormente estrangeira influência se teria tornado impossível51, o

49 Cf. id. in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego
Sánchez Meca), La filosofía en la época trágica de los griegos, in ed.cit.: “Los griegos, por el
contrario, han sabido comenzar a filosofar a su debido tiempo y nos han enseñado,
con una claridad que ningún otro pueblo ha igualado, cuándo se tiene que
comenzar a filosofar. No ciertamente en la adversidad: algo que creen algunos, los
que derivan la filosofía del mal humor. Sino en la época feliz, en una pubertad
madura, brotando de la fogosa alegría de una victoriosa y valiente edad viril. [...]. Si
los griegos de entonces hubiesen sido aquellos hombres sobrios y sabihondos,
prácticos y serenos, como se los imagina el filisteo docto de nuestros días, o si
hubiesen vivido sólo de manera orgiástica, entre fluctuaciones y sonidos, entre
anhelos y sentimientos violentos, como les gusta pensar en ellos a los soñadores
ignorantes, entonces la fuente de la filosofía no habría brotado en Grecia.”, in p. 574
in loc.cit., et “Por eso los griegos justifican al filósofo, porque solamente entre ellos
no es un cometa.”, in p. 576 in loc.cit.. Cf. n. 17.
50 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago

Guervós), El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “[...] que en el mundo griego subsiste


una antítesis tremenda, en origen y metas, entre el arte del escultor, el arte apolíneo,
y el arte no-plástico de la música, que es el arte de Dioniso: ambas pulsiones tan
diferentes van en compañía, las más de las veces en abierta discordia entre ellas y
excitándose mutuamente para tener partos siempre nuevos y cada vez más
vigorosos, con el fin de que en ellos se perpetúe la lucha de aquella antítesis, sobre la
cual la común palabra «arte» tiende un puente sólo en apariencia; hasta que,
finalmente, se manifiestan, gracias a un milagroso acto metafísico de la «voluntad»
helénica, apareadas entre sí, y en ese apareamiento engendran por último la obra de
arte de la tragedia ática, que es dionisíaca en la misma medida que apolínea.”, in
p. 338 in “1”.
51 Cf. n. 37. Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “Más arriesgada e incluso imposible se

hizo esta resistencia cuando desde la raíz más honda de lo helénico se abrieron paso
finalmente pulsiones similares: ahora la actuación del dios délfico se limitó a quitar
de las manos de su poderoso adversario, mediante una reconciliación concertada a
246 DANIEL MOREIRA DUARTE

que de forma nenhuma quer dizer que então teriam os gregos perdido
a sua soberania: pelo contrário, segundo o jovem Nietzsche não por
uma simples importação qualquer mas sim justamente por uma tal
absorção de culturas estrangeiras, por uma tal subjectivação colectiva,
teriam os gregos podido desenvolver em si mesmos uma cultura
superior e fazer crescer a partir do seu solo natural até a própria
Filosofia52. Enfim, do que em tudo isto se trata é de uma terceira
dimensão de toda a Vivência da História, ou da Memória, de uma
terceira dimensão da Alethéia, afinal, à qual não obstante já não
corresponderá uma mera conservação das verdades tradicionais senão
o que o jovem Nietzsche diz ser uma história crítica, através da qual se
investigaria e consequentemente por um lapso de tempo se destruiria
o esquecimento para que já apontei da originariamente metafórica e
logo enquanto absolutizada falsa natureza da própria memória
conservada, assim se pondo em evidência a injustiça da existência de
castas, dinastias e demais prerrogativas, pelo que então se julgaria e
condenaria a tradição, não estando isento também esse processo
crítico de perigos cognitivos e morais, pois assim julgaria não uma
qualquer Justiça em si mas apenas a subjectiva vítima de alguma
opressão, quando não meros eruditos não tendo para tanto qualquer
vital razão, e não estando o mesmo processo isento também de perigos
vitais, mais ainda do que esse de ser posto em marcha sem uma
efectiva necessidade, pois não obstante a sua originariamente forjada
arbitrariedade a verdade entretanto tornada tradicional assim mesmo

tiempo, sus armas aniquiladoras. Esta reconciliación es el momento más importante


en la historia del culto griego [...]”, in p. 343 in “2”.
52 Cf. id. in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego

Sánchez Meca), La filosofía en la época trágica de los griegos, in ed.cit.: “Sin duda, se ha
hecho hincapié en todo lo que los griegos pudieron aprender y encontrar en los
países extranjeros de Oriente, y en todas las cosas que ellos han sacado de allí. [...]
nos dejaríamos cautivar por esta idea en su conjunto, si no se nos importunara con
el argumento de que en Grecia la filosofía ha sido simplemente importada y no ha
crecido de su natural suelo natal, y que como algo extraño esa filosofía en lugar de
hacer progresar a los griegos, les ha llevado a la ruina. No hay cosa más estúpida
que atribuir a los griegos una cultura autóctona; ellos absorbieron más bien toda
cultura de otros pueblos que fuese viva, por eso han llegado tan lejos, precisamente
porque han sabido lanzar la jabalina más lejos, recogiéndola allí donde otros
pueblos la habían abandonado.”, in p. 574 in loc.cit..
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 247

estaria já subjectivada nos próprios críticos também, constituindo uma


sua natureza primeira, pelo que não bastaria pretender negá-la para
dela se ser emancipado, seria antes preciso passar por uma luta entre
essa primeira natureza herdada e uma mais débil segunda natureza,
ou uns novos costumes que se pretenderia incorporar, ou tornar numa
nova natureza primeira, sendo que então frequentemente nem a
segunda efectivamente se tornaria primeira nem a primeira passaria
por tal conflito sem perder alguma de toda a plenitude que teria de ter
para os respectivos sujeitos poderem ao menos sobreviver, mas sendo
também que às vezes uma ou outra natureza segunda em uma nova
primeira efectivamente se tornaria, da mesma forma que a relativa-
mente anterior natureza primeira que também teria começado por ser
segunda, e sendo ainda que sem uma tal renovação as culturas como
todos os seres vivos tampouco não morreriam53: ora, mas na medida

53 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago
Guervós), Consideraciones intempestivas II | De la utilidad y los inconvenientes de la historia
para la vida, in ed.cit.: “[...] únicamente aquel al que un apremio actual oprime el
pecho y que ansia sacarse de encima esta carga, cueste lo que cueste, tiene una
necesidad de historia crítica, esto es, la necesidad de una historia que juzgue y que
condene.”, in p. 707 in “2”, et “Es preciso que, para poder vivir tenga la fuerza y la
emplee de tanto en tanto, de quebrar y disolver un pasado: para cuyo fin abre juicio
sobre él, lo hace objeto de una estricta investigación y, por último, lo condena; pero
todo pasado merece ser condenado – pues en las cosas humanas siempre han
privado la violencia y la debilidad humanas. No es la justicia lo que aquí juzga [...].
Se requiere mucha fuerza para poder vivir y para olvidar hasta qué punto vivir y ser
injusto es una y la misma cosa. [...]. Pero a veces la misma vida que necesita del
olvido pide la destrucción por un lapso de tiempo de ese olvido; precisamente
entonces ha de ponerse en evidencia la injusticia inherente a la existencia de tal o
cual cosa, de tal o cual prerrogativa, casta o dinastía, y hasta qué punto esa cosa
merece desaparecer. [...]. Es siempre un proceso peligroso, peligroso para la vida
misma: y los seres humanos o las épocas que sirven a la vida juzgando y destruyendo
un pasado siempre son individuos y épocas peligrosos y expuestos a peligros. Pues
siendo como somos los resultados de generaciones anteriores, somos también los
resultados de sus yerros, pasiones y extravíos, y aun de sus crímenes; no es posible
desligarse del todo de esta cadena. No por condenar esos extravíos y considerarnos
emancipados de ellos deja de ser un hecho que provenimos de ellos. Llegamos,
cuando más, a un choque entre la naturaleza ingénita y heredada y nuestro
conocimiento, acaso también a la lucha de una disciplina nueva y severa contra lo
desde antiguo heredado e inculcado, plantamos una costumbre nueva, un instinto
nuevo, una segunda naturaleza, y de esa forma se atrofía la primera. Se trata, en
248 DANIEL MOREIRA DUARTE

essa justamente em que não bastaria negar a tradição indicando a sua


originária erroneidade, nessa medida em que preciso seria também
criar, nomeadamente através de outros nomes, se não mesmo heteró-
nimos, novas e passíveis de serem pouco a pouco incorporadas coisas
e apreciações de valores, inclusivamente do valor de verdade, tam-
pouco podemos deixar de associar à crítica a já referida monumental
vivência, ao encontro de resto daquele aforismo de “A gaia ciência”
em que menos jovem mas jovial todavia Nietzsche nos dirá que só
como criadores destruir nos é possível54.
A Verdade: terá sido ainda antes da poesia de Arquíloco que
não obstante com outro poeta se terá começado a deslocar o sentido
da Verdade na antiga Grécia, assim se consumando uma crise interna
à lógica do saber narrativo que aliás já transcorreria subterranea-
mente a partir da épica homérica. Terá sido nomeadamente com
Hesíodo que se terá começado a explicitar tal crise, porque o que

cierto modo, de una tentativa de darse a posteriori un pasado del que se quisiera
provenir, en contraposición a aquel del que se proviene – tentativa siempre
peligrosa, por ser muy difícil dar con un límite en la negación de lo pasado y porque
las segundas naturalezas suelen ser más débiles que las primeras. [...]. Pero aquí y
allá se obtiene la victoria, y hasta hay para los luchadores, para los que hacen de la
historia crítica un instrumento suyo al servivio de la vida, un consuelo singular: saber
que también esa primera naturaleza fue una vez segunda y que toda segunda
naturaleza triunfante se convierte en primera.”, in p. 710 in “3”.
54 Cf. n. 40. Cf. id. in tr. Pedro González-Blanco et Luciano de Mantua, La Gaya

Ciencia [, 1887 (I ed. 1882)], Palma de Mallorca, José J. de Olañeta, III ed. 2003:
“Sólo como creadores. – Hay una cosa que ha producido la mayor confusión y sigue
causándomela: es advertir cómo es infinitamente más importante conocer el nombre
de las cosas que saber lo que son. La fama, el nombre, el aspecto, la importancia, la
ordinaria medida y [sic] peso de una cosa fueron en su origen las más veces un
error, una calificación caprichosa puesta sobre las cosas como una vestidura y
completamente ajena a su manera de ser y hasta a su apariencia superficial; pero
por la fe que se les otorga, por su desenvolvimiento de generación en generación,
poco a poco se van adhiriendo a la cosa y con ella se identifican y a ella se
incorporan. Así la apariencia primitiva acaba casi por volverse esencia y semeja ser
tal esencia. Loco sería quien se figurase que basta indicar este origen y esta nebulosa
envoltura de la ilusión para destruir ese mundo tenido por esencial, mundo que
llamamos realidad. Mas no olvidemos tampoco esto: basta inventar nuevos
nombres, apreciaciones y probabilidades nuevas para crear poco a poco cosas
nuevas.”, in p. 78 in “58.” in “Libro Segundo”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 249

encontramos na sua “Teogonia” não é já tão somente uma assertórica


verdade poética: aí se revela antes como radicalmente ambígua a
poesia ao escutarmos as próprias ditas Musas filhas de Mnemosine
confessando saber dizer também, para além de coisas verídicas, ou
aléthea, outras tantas coisas por oposição enganosas, enganosas no
sentido de pseudea e já não no sentido primeiramente oposto daquele
esquecimento para que nos remete o termo “lethe”. 55 Então terá
“alétheia”, que primitivamente significaria conservação da memória, ou
não deixar que se perca a memória, melhor dizendo, ou desesquecer,
por assim dizer, visto que originariamente se trata de um termo
negativo, começado a deixar de se opor apenas a “lethe”, termo que
por positivo e por antigo de resto nos indica que originariamente será
esquecer e não lembrar o mais natural ou frequente, ou independente
da acção civilizacional: terá sido então que como oposição maior se
terá começado a estabelecer por sua vez no seio do logos grego a
oposição entre pseudós e alétheia56 . E terá sido a partir daí que os

55 MOREY, op.cit.: “Suele decirse que es Hesíodo quien va a comenzar a desplazar el


sentido y la presencia de la verdad poética. Esa palabra inspirada por las Musas se
nos va a presentar como radicalmente ambigua, consumando así una crisis en la
lógica de la polaridad que el saber narrativo ponía en obra – crisis que transcurría
subterránea desde Homero, y que Hesíodo será el primero en explicitar. Así, en el
prólogo a su Teogonía, leemos la célebre confesión de las Musas, hijas de Mnemosine
(el Recuerdo, la Memoria), que declaran: «Sabemos decir muchas cosas engañosas
(pseudea), semejantes a realidades, pero sabemos decir también, cuando así lo
queremos, cosas verídicas (aléthea).»” et “Y, curiosamente, tuvo que ser un poeta
quien hiciera posible esta aventura.”, in pp. 31-32 in “Pequeña historia de la
verdad”. [; cf. HESÍODO, Teogonia].
56 MOREY, op.cit.: “No parece necesario insistir en el hecho de que tanto alethéia

como apseudés son términos negativos – la presencia de la alfa privativa lo señala así
de modo inequívoco. Es razonable suponer entonces que tuvo que ser necesaria, sin
duda, una notable torsión de sus contenidos semánticos para que, una vez consti-
tuida la polaridad filosófica alethéia [/] pseudós, esta relación acabara por invertirse:
siendo «verdad» utilizado como término positivo, mientras que pseudós era
identificado como negativo.”, in p. 31 in loc.cit., et “Con este gesto de Hesíodo, se
sientan las condiciones de posibilidad para el desplazamiento de los términos
arcaicos de la polaridad, al establecerse en el seno del logos, del lenguaje, como
oposición mayor, alétheia / pseudós – que no debe traducirse todavía como verdad /
falsedad, sino por «mantener la memoria de la verdad» frente a «mentir».”, in pp.
31-32 in loc.cit..
250 DANIEL MOREIRA DUARTE

primeiros filósofos, muitas vezes mascarados ainda de primitivos


poetas e revestindo-se até de sacerdotais roupagens ascéticas mas insa-
tisfeitos com os procedimentos de inquisição do saber mítico tradi-
cional e tendendo por isso à denúncia da mendicidade, ou do ser servil,
da poesia anterior, terão efectivamente realizado uma tal transmu-
tação do valor de verdade, sendo que se digo transmutação do valor,
ou transvaloração, é porque é disso que se trata e não de uma mera
inversão ou troca de sinais de valores como já a propósito da própria
filosofia de Nietzsche diz por exemplo Eduardo Lourenço57: claro está

57 Cf. LOURENÇO, Eduardo, Pessoa Revisitado | Leitura Estruturante do Drama em Gente,


Lisboa, Gradiva, 2003: “[...] Fernando Pessoa [...]. | O seu caminho, como o de
Nietzsche, está atapetado da mesma paixão-destruição que conduziu este último de
Schopenhauer a Wagner e de Wagner ao seu parricídio, para não falar da ambígua
relação de um e outro com esse Cristo que os não deixa em paz e a que se
assimilarão, um, como Crucificado-Diónisos, e outro, como «Cristo Negro». Como
em Nietzsche, a sua titânica ambição foi a de trocar os sinais aos valores que servem
de referência ao mundo moderno.”, in pp. 144-145 in “6 | Dois interlúdios sem
muita ficção”. Cf. NIETZSCHE in tr. Genoveva Dieterich, Aurora | Reflexiones sobre los
prejuicios morales: “Hay dos clases de negadores de la moralidad. – «Negar la
moralidad» – puede significar, por un lado: negar que los motivos morales que los
hombres aducen los han conducido a sus acciones, – es, pues, la afirmación de que la
moralidad consiste en palabras, y forma parte del engaño burdo y refinado (en
especial, el autoengaño) de los hombres, y sobre todo quizá de los más famosos por
su virtud. Por el otro lado, puede significar: negar que los juicios morales se basan
sobre verdades. En este caso se admite que los motivos de la acción son verdaderos,
pero que, de este modo, errores, como fundamento de todo juicio moral, impulsan los
hombres a sus acciones morales. Éste es mi punto de vista: aunque no se me escapa
que en muchos casos una sutil desconfianza, en el sentido del primer punto de vista,
es decir en el espíritu de La Rochefoucault, también es justa y, en cualquier caso, del
mayor beneficio general. – Niego, pues, la moralidad como niego la alquimia, es
decir, niego sus premisas: pero no niego que haya habido alquimistas, que han creído
en esas premisas y han actuado de acuerdo con ellas. – Niego también la inmo-
ralidad: no que innumerables hombres se sientan innmorales, sino que que haya una
razón en la verdad para sentirse así. No niego, como se sobreentiende – dando por
supuesto que no soy un necio – que muchas acciones calificadas de inmorales han de
ser evitadas y combatidas; como también han de hacerse y favorecerse muchas
calificadas como morales, – pero propugno lo uno y lo otro por razones diferentes a las
hasta ahora propugnadas. Tenemos que reeducarnos, – para por fin, quizá mucho más
tarde, alcanzar algo más: sentir de otra manera.”, in pp. 97-98 in “103” in
“Segundo libro”. Cf. id. in tr. Joan B. Llinares, in litt. Cosima Wagner,
1889\I\cca.3, in ed. Luis Enrique de Santiago Guervós, Correspondencia VI Octubre
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 251

que esses filósofos, pretendentes da Sabedoria, quer dizer, terão


pretendido fazer valer por cima das demais, como verdades realmente
verdadeiras, as suas próprias, ou pelo menos aquelas que pretende-
riam poder subjectivar e expressar, mas é todo o sentido dessas
verdades que para tanto justamente se terá deslocado, mesmo se não
se trata ainda de verdades como as que modernamente vamos tendo
por estritamente epistemológicas e sendo ainda “alétheia” o termo
negativo da oposição, porque passando então “alétheia” a opor-se
negativamente a “pseudós”, termo que podemos traduzir por “mentira”,
no sentido não apenas gnoseológico senão também moral de “torcido”
que mais frequentemente expressamos com um valor negativo como
com o termo “incorrecto”, ser verdadeiro terá portanto começado a
significar desmentir, deixando a vontade de alétheia de ser uma
vontade de conservar determinada memória para se tornar numa
crítica vontade de inquisição e destruição das opiniões correntes, o
que de resto bem poderá ter consistido em um refinamento da vio-
lência com que a tradição assim combatida teria anteriormente ela
própria começado a por assim dizer desde o exterior se impor58.

1887 – Enero 1889, Madrid, Editorial Trotta, 2012: “¡Ariadna, te amo! Dioniso” in p.
372. Cf. id. in tr.cit., in litt. Umberto I, 1889\I\cca.4, in ed.cit.: “□ A mi amado hijo
Umberto | ¡Que mi paz sea contigo! Iré el martes a Roma y quiero verte junto a su
santidad el papa. | □ El Crucificado”, in p. 376. Etc.; cf. DELEUZE, op.cit.: “[...]”, in
pp. 9-11 in “4) Contre la dialectique” in “Le tragique”, et “[...]”, in pp. 16-19 in “7)
Dionysos et le Christ” in loc.cit..
58 MOREY, op.cit.: “Es esta oposición la que recogerán los primeros filósofos – y se

nos presentará, de entrada, como denuncia de la mendicidad de los poetas y


procedimientos de inquisición del saber narrativo mítico tradicional, desde un
«amor al saber» insaciable que no es sino la faz noble y arcaica de nuestra voluntad
de lucidez.”, in p. 32 in loc.cit., et “Por su parte, es apseudés quien se opone a pseudós:
como lo recto se opone a lo oblicuo, a lo torcido, a lo ambiguo – como el engaño se
opone a la veracidad.” et “[...] pseudós, que se deja traducir entonces como «lo falso»,
incluye un elemento semántico importante, de carácter ético o antropológico [...]. Y
es que pseudós es tanto mentira como error – o mejor: es antes mentira que error.”, in
pp. 30-31 in loc.cit., et “De ser esto cierto, el carácter negativo de alétheia enfrentado
a la presencia positiva del término pseudós, entendido como mentira, nos permitiría
sospechar que traducir tajantemente tal polaridad por verdad(ero) / falso, a lo largo
de toda la historia griega del uso filosófico del término, implicaría una inevitable
falsedad retrospectiva. Hasta sentarse el contenido tópico de modo cerrado, en las
vacilaciones y tanteos de nacimiento, la polaridad pseudós (+) / alethéia (-) se mostraría
252 DANIEL MOREIRA DUARTE

O Pessoa de “A Águia”: se bem que modernamente talvez seja


a Europa no seu conjunto e todo o chamado Ocidente que vêm
constituindo uma civilização de resto cada vez mais global59, algo de
análogo a toda a caracterização do segundo período da civilização
grega para que acabo de apontar há-de verificar-se, como proponho,
em algum período da pessoana história da nação inglesa e em algum
outro período da sua história da nação francesa, só podendo eu estar a
referir-me ao primeiro período inglês que Pessoa considera, o período
isabeliano que iria de 1580 aproximadamente até a um ponto mais ou
menos coincidente com o fim da República, e ao segundo período da
sua história da França, que seria um período de literatura romântica,
como já referi, e que terminando com a referida década de consoli-
dação republicana teria começado depois da queda do Ancien Régime60.
Diz-nos Pessoa que em tais períodos o movimento literário precederia
o movimento político, como se com efeito o criasse ou ao menos
condicionasse61, e que períodos tais seriam maximamente criadores

más proclive a dejarse trocar por el par mentir / desmentir, antes que por cualquier
otro. La voluntad de alethéia que constituye el eje de tensión de nuestra lucidez sería
entonces, antes que cualquier otra cosa y en su faz arcaica, voluntad de inquisición
de la mentira – una sed despobladora de opiniones, fascinada por el desierto.”, in p.
31 in loc.cit..
59 Cf. PESSOA, “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico | |

(Continuado de pag. 94)”, in dir. Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et ed.


Álvaro Pinto, A Águia II 11, Porto, Renascença Portuguesa, 1912\XI, pp. 153-157:
“[...] o facto de, estando Portugal íntegrado na civilização europêa, a sua poesia o
estar tambem inevitavelmente [...]”, in p. 153 in “IV”.
60 Cf. n. 22.
61 Cf. id., s.t., 1912?, in [ed. Georg Rudolf Lind et Jacinto do Prado Coelho, Páginas

de Estética e de Teoria Literárias, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa,


http://arquivopessoa.net/ (2014\III\26), Obra Aberta CRL, 2008 et ss.,
http://arquivopessoa.net/textos/1140 (2014\III\26): “The social transformation
which has been taking place in Portugal for the last three generations, and which
culminated in the establishment of the Republic, has been, as is natural,
accompanied by a concomitant transformation in Portuguese literature. The two
phenomena have a common origin, in the essential changes which have, with
increasing rapidity, been taking place in the very bases of the national consciousness.
To attribute the literary change to the political one, or the political one to the
literary one would be as erroneous. Both are manifestations of a fundamental
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 253

tanto literariamente, com Shakespeare em Inglaterra e Victor Hugo


em França por culminâncias literárias, quanto a seguir o seriam social
e politicamente, com toda a transformação criadora do princípio de
governo popular iniciada na ruptura de Henrique VIII em relação à
Roma católica e com toda a transformação iniciada na revolução
francesa de mil setecentos e oitenta e nove, tratando-se assim mesmo
de agitados períodos críticos, ou de períodos em que como diz Pessoa
desde logo na literatura imperaria o anti-tradicionalismo, para além
de uma não-popularidade devida não só à novidade desse não se
tratar pelo menos ainda de qualquer mesmo que nova tradição senão
devida também à elevação literária que sempre continuaria a ser
compreendida apenas por uma aristocracia da inteligência: e assim
mesmo devemos não obstante pensar que se trata de crises que já não
seriam tão simplesmente por razões exteriores provocadas senão que
teriam sido interiorizadas, porque o que nos diz Pessoa é que em tais
períodos o espírito nacional seria patente e dominante, absorvendo e
absolutamente eliminando qualquer influência estrangeira, sendo que
a expressão “absolutamente eliminando” talvez seja excessiva, mas
sendo também que a igualmente expressa “absorção” da influência
estrangeira não deixa de nos proporcionar a analogia com aquela
crítica subjectivação de que já há pouco por oposição a outras menos
críticas nos servíamos. Por outro lado, talvez caiba assinalar aqui uma
divergência relativamente ao jovem Nietzsche a propósito do carácter
supremo que no que toca à literatura da Renascença o Pessoa de “A
Águia” atribui não à poesia lírica respectiva mas sim à respectiva
poesia épica: ou talvez não, na medida em que Nietzsche tampouco
desvalorizaria a poesia homérica, limitando-me aliás eu próprio há
pouco a chamar a atenção para a crítica manifestação de certa
tomada de consciência da mentira poética que com Hesíodo por
exemplo encontrámos, sendo aliás que na Grécia antiga uma tal crise
subterraneamente transcorreria já desde o próprio Homero, e na
medida também em que um todavia mais supremo carácter é atri-
buído pelo mesmo Pessoa à renascentista poesia dramática, o que
continua ainda a proporcionar-nos a analogia com a subjectivação do

transformation which the national consciousness has undergone and is


undergoing.”.
254 DANIEL MOREIRA DUARTE

objectivo que por exemplo no Arquíloco do jovem Nietzsche pretendi


que interpretássemos62. Seria na verdade todo o progresso de um povo
que segundo Pessoa de semelhante anti-tradicionalismo dependeria,
como lemos em um escrito provavelmente da altura das suas
colaborações aguilistas em que tendo em vista embora um imperia-
lismo e uma correspondentemente necessária instrumentalização da
plebe ele louva o cio de criar, a sagrada luxúria de construir: mas no
que toca à Literatura ela seria segundo o Pessoa de “A Águia” nos
agora referidos períodos maximamente criadora justamente pela
substantiva novidade que o seu ser nacional, ou soberana, não poderia
deixar de acarretar, na medida em que a tradição, ou o não novo, é
que seria resultante de um anterior domínio de outras culturas sobre
aquela que seria própria da nação, cabendo então pensar que só o
próprio anti-tradicionalismo possibilitaria para além da novidade os
outros dois exclusivamente literários elementos distintivos de uma
máxima criatividade apresentados em “Reincidindo...”, a saber a
elevação do tom poético geral e a grandeza das literatas figuras indivi-
duais correspondentes.63 E o que em “A nova poesia portuguesa no

62 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico | | (Conclusão)”,


in dir. Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et ed. Álvaro Pinto, A Águia II 12,
Porto, Renascença Portuguesa 1912\XII, pp. 188-192: “[...] mas não foi a
Renascença inimiga do espiritualismo? Do da edade-media foi, mas esse era um
espiritualismo inferior. Da fórma catholica e aristotelica foi inimiga a Renascença;
mas foi para ser mais e mais puramente espiritualista, foi para se lançar no maior
espiritualismo da Reforma e de Platão. Platonista foi, de resto, toda a poesia lyrica
de algum valor da Renascença.” et “Como vimos, o espiritualismo é o systema que
tem seu centro de realidade na consciencia: logicamente, em seu temperamento, um
espiritualista é um homem que dá attenção superiormente á vida interior e
inferiormente á vida exterior. Toda a poesia da Renascença é de suppôr portanto
que gire sobre assumptos humanos e não da Natureza. Assim é: o que de supremo
tem a poesia da Renascença é a poesia épica – isto é, de acção humana –, e a poesia
dramatica (Renascença ingleza, culminando em Shakespeare), de acção humana
mais essencialmente ainda.”, in p. 190 in “VII”. Cf. n. 55. Cf. n. 41 et n. 46.
63 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et

ed.cit.: “[...] no primeiro periodo, o creador, da Inglaterra, o movimento litterario


que culmina em Shakespeare (entre 1590 e 1610) precede o movimento politico, que
só começa ao decahir ele. E, em França, o movimento romantico vai decahindo á
medida que se vai realizando nos espiritos o correspondente, e socialmente
exuberante, movimento politico.”, in pp. 104-105 in loc.cit.. Cf. id., “Reincidindo...”,
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 255

in dir.cit. et ed.cit.: “A agitação revolucionaria ou transformadora é o que ambos


teem de distinctivo. Do periodo francez 1789-1870 é inutil fallar n’este respeito. Do
periodo inglez note-se que começa com Henrique VIII, sob quem a Inglaterra
rompeu com Roma e a religião catholica (primeiro facto indicador de uma transfor-
mação que se nota na historia da Inglaterra) e atravessa todo o periodo máxima-
mente transformador que vae de ahi até Cromwell.”, in p. 140 in “III”, et “A analise
[sic] esboçada no nosso anterior artigo, e feita sobre os periodos inglez e francez de
maxima grandeza literaria [sic] e social, levou-nos a atribuir ao movimento literario
[sic], que corresponde a uma epoca creadora, tres [sic] carateristicos [sic] – o
preceder o movimento social creador, o ter novidade, e o ter nacionalidade.”, in p.
137 in “II”, et “Falta, agora, examinar os caracteristicos das mahnas epocas
literarias [sic] em face da alma do povo que as produz. [...]. O primeiro caracte-
ristico, n’este respeito, d’essas correntes, é a sua não-popularidade, o segundo a anti-
-tradicionalidade, e o terceiro, mas o primacial e basilar, a nacionalidade. Isto é, estas
correntes interpretam completamente a alma nacional; como, porêm, a interpretam
com plena elevação [...], desdobrando-lhe as inconscientes tendencias philosophicas
ou religiosas em detalhes intelectuaes e espirituaes, traduzindo a alma popular para
arte suprema, forçosamente se collocam fóra da comprehensão popular [,]
entendendo por comprehensão popular tudo quanto não seja a comprehensão de
uma élite ou aristocracia de intelligencia. D’ahi a sua não-popularidade, maxima na
epoca em que existem, por aggravada pela novidade do tom poetico, menor nas
epocas subsequentes, mas anulada nunca. Redizendo, estas correntes filiadas
absolutamente na alma do povo, não a exprimem: representam-a, interpretam-a. Ninguem
negará a absoluta nacionalidade do isabelianismo, como inglez, e, como francez, do
romantismo da França. Tampouco se pode negar a não-popularidade das duas
correntes, maxima na primeira, cuja mera fórma de expressar mesmo a um
individuo culto fere como extremamente complexa e intelectualisada, menor na
segunda, que ainda assim está longe de popularmente accessivel [...]. | Ora, como
estas correntes são as de maxima nacionalidade dos respectivos paizes; como,
portanto, as correntes anteriores forçosamente haveriam sido ou menos, ou nada,
nacionaes, a plena nacionalidade das correntes maximas importa uma quebra com o
espirito d’essas anteriores correntes, involve, pois, anti-tradicionalidade.”, in p. 142 in
“V”. Cf. id., “Atlantismo”?, 1913?, in [ed. Maria Isabel Rocheta et Maria Paula
Morão et Joel Serrão, Sobre Portugal | Introdução ao Problema Nacional, Lisboa, Editorial
Ática, 1979, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa, http://arquivopessoa.net/textos/3612
(2014\III\26): “Antitradicionalismo: | Todo o progresso dum povo é feito pela
imposição à plebe de instituições criadas contra a tradição dessa plebe. Assim, na
Alemanha, a base antiga, a tradição era democrática; a actual civilização é
aristocrática. Em Portugal, a tradição é democrática, de governo popular; por isso a
construção deve ser aristocrática, para que haja civilização.” et “A plebe deve ser o
instrumento dos imperialistas, casta dominadora, mas escrava deles ligada a eles por
uma comunidade de misticismo nacional, de modo que voluntariamente seja
256 DANIEL MOREIRA DUARTE

seu aspecto psicológico” nos diz Pessoa acerca da verdade litera-


riamente expressa assim soberana e criticamente é que se como referi
à de tal forma maximamente criadora literatura inglesa correspon-
deria uma poesia sobretudo subjectiva, ou de observação e análise da
alma, e à mais criadora das literaturas francesas corresponderia uma
poesia sobretudo objectiva, ou de observação da natureza exterior e
síntese de impressões e memórias e associações de ideias,64 já à mais

escrava, desde nascença esteja involuntariamente conforme com a condição que se


lhe impõe. Esta casta dominante não deve escravizar a plebe só pelo prazer de o
fazer, porque o imperialismo não tem que existir dentro da nação; apenas é útil o
domínio de casta porque é uma educação do Mando, tomando-o possível para o
exterior.” et “O cio de criar, a sagrada luxúria de Construir...”. Cf. id., “A Nova
Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...] nos
periodos creadores [...] temos na litteratura o espirito nacional patente e dominante,
absorvendo e absolutamente eliminando qualquer influencia estrangeira que haja.
Assim, nada mais francez do que Victor Hugo com a sua rhetorica, a sua pseudo-
-profundeza, a sua lucidez epigrammatica em pleno seio do lyrismo, onde não está
bem. E Spenser, Shakespeare e Milton [...] são inglezes inconfundivelmente.”, in p.
105 in loc.cit.. Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...] sob o aspecto
exclusivamente literario [sic] ora em vista, trez elementos distinctivos – a novidade (ou
originalidade), a elevação, e a grandeza. Por elevação entendemos do tom literario [sic]
geral, por grandeza o conter grandes figuras individuaes, grandes poetas. Todos os
trez elementos são indispensaveis para a caracterização inconfundivel do periodo. Se
originalidade bastasse, faria candidatura a magno periodo literario [sic] um que
podia ser original n’uma especie poetica secundaria, como um novo epigramatismo,
um novo genero de poesia artificial: está no caso a poesia dos trovadores provençaes.
Por isso, sobre novidade, ha n’estes periodos elevação. Mas elevação só pode ser
verdadeiramente e completamente elevação quando – ao contrario do que acontece
com o symbolismo francez, que não caracteriza um grande periodo creador – é
universalisada, intensificada por poetas á altura d’essa elevação. A não ser assim,
queda-se, como a citada corrente franceza, sempre proxima da mera exquisitice e
extravagancia [...]. É inutil apontar quão novos, sob todos os pontos de vista, são,
cada qual no seu tempo, o isabellianismo, e o romantismo francez: desde o modo de
pensar ante os homens e as cousas até ao modo de exprimir, tudo é original. De
egual inutilidade é referir que o tom d’esses periodos literarios é elevado, e que ha
n’elles grandes figuras de poeta.”, in p. 141 in “IV”. Cf. n. 22.
64 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico”, in dir. Teixeira

de Pascoaes et António Carneiro et ed. Álvaro Pinto, A Águia II 9, Porto, A


Renascença Portuguesa, 1912\IX, pp. 86-94: “[...] a observação da alma implica
analyse [...]” et “[...] a observação [...] da natureza, a do exterior, involve synthese, e
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 257

criadora de todas as literaturas cuja culminância literária estaria


prestes a cumprir-se em Portugal, precedendo uma igualmente
criadora culminância civilizacional e por isso coincidindo ainda com
uma deprimida vida social e uma mesquinha política,65 o que corres-
ponderia seria uma poesia tão subjectiva quanto objectiva66: sendo no
entanto de notar que aqui de novo encontramos alguma primazia
dada por Pessoa a um sujeito interior, na medida em que essa nova
poesia portuguesa já possuiria as três características analíticas de uma
poesia subjectiva, a saber a capacidade de idear e expressar de forma

uma synthese complexa, de impressões secundarias, memorias, e obscuras e


instantaneas associações de idéas.”, in p. 92 in “III”.
65 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et

ed.cit.: “O primeiro facto que se nota é que a actual corrente litteraria portugueza é
absolutamente nacional, e não só nacional com a inevitabilidade bruta de um canto
popular, mas nacional com idéas especiaes, sentimentos especiaes, modos de expressão
especiaes e distinctivos de um movimento litterario completamente portuguez; e, de
resto, se fosse menos, não seria um movimento litterario, mas uma especie de traje
psychico nacional, relegavel da categoria de arte para a, para este caso sociologico
nulla, de um mero costume caracteristico.”, in pp. 105-106 in “IV”, et “O segundo
facto a notar é que o movimento poetico portuguez contém individualidades de
vincado valor: não são Miltons nem Shakespeares, mas são gente que se extrema,
além de pelo tom, que é da corrente, pelo valor mesmo [...]” et “O terceiro e ultimo
facto que se impõe é que este movimento poetico dá-se coincidentemente com um
periodo de pobre e deprimida vida social, de mesquinha politica, de difficuldades e
obstaculos de toda a especie á mais quotidiana paz individual e social [...]”, in p. 106
in loc.cit., et “Porque a corrente litteraria, como vimos, precede sempre a corrente
social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos signal de
renascença na vida politica, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma,
duas ou trez gerações depois do auge da corrente litteraria?” et “Ousemos concluir
isto, onde o raciocinio excede o sonho: que a actual corrente litteraria portugueza é
completa- e absolutamente o principio de uma grande corrente litteraria, das que
precedem as grandes épocas [sic] creadoras das grandes nações de quem a civilização é filha.”, in p.
107 in loc.cit..
66 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico”, in dir.cit. et

ed.cit.: “A nova poesia portugueza [...], apezar de mostrar todos os caracteristicos da


poesia de alma, preocupa-se constantemente com a natureza, quasi que exclusi-
vamente, mesmo, na natureza se inspira. Por isso dizemos que ella é tambem uma
poesia objectiva.”, in p. 92 in loc.cit., et “A nossa poesia caminha para o seu auge: o
grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge, realizará o maximo
equilibrio da subjectividade e da objectividade. [...]. Super-Camões lhe chamámos
[...].”, in p. 93 in loc.cit..
258 DANIEL MOREIRA DUARTE

nítida e definida o vago e indefinido objecto que seria a subjecti-


vidade, a subtil capacidade de desdobrar a sensação nos seus próprios
detalhes internos e a sua complexa capacidade de extrair da própria
sensação elementos dadores de um novo sentido à mesma, e sendo
então de notar também que a essa novíssima poesia, a essa poesia de
entre outros Teixeira de Pascoaes e Mario Beirão, que enquanto
poesia simultaneamente objectiva já teria atingido a nitidez sintética
da forma epigramática e a igualmente sintética capacidade plástica de
fixar a percepção exterior como tal, faltar-lhe-ia ainda atingir uma
terceira e máxima característica da objectividade poética, que seria a
imaginação, ou o pensar e sentir por imagens, sem a qual não pode-
riam adquirir rapidez e capacidade de deslumbrar, dir-se-ia quando
necessário, os ainda geralmente lentos versos dos novos poetas 67 .

67 Cf. id., ibid., in dir.cit. et ed.cit.: “A primeira constatação analytica que o racio-
cinio faz ante a nossa poesia de hoje é que o seu arcabouço espiritual é composto
dos trez elementos – vago, subtileza, e complexidade. São vagas, subtis, e complexas as
expressões caracteristicas do seu verso, e a sua ideação é, portanto, do mesmo triplo
caracter.” et “Ideação vaga é cousa que é escusado definir, de exhaustivamente
explicante que é de per si o mero adjectivo; urge, ainda assim, que se observe que
ideação vaga não implica necessariamente ideação confusa, ou confusamente expressa (o
que aliás redunda, feita uma funda analyse psychologica, precisamente no mesmo).
Implica simplesmente uma ideação que tem o que é vago ou indefinido por
constante objecto e assumpto, ainda que nitidamente o exprima ou definidamente o
trate [...]. Uma ideação obscura é, pelo contrario, apenas uma ideação ou fraca ou
doentia. Vaga sem ser obscura é a ideação da nossa actual poesia; vaga e frequen-
temente – quasi caracteristicamente – obscura é a do symbolismo francez [...]”, in p.
90 in loc.cit., et “Por ideação subtil entendemos aquella que traduz uma sensação
simples por uma expressão que a torna vívida, minuciosa, detalhada – mas deta-
lhada não em elementos exteriores, de contornos ou outros, mas em elementos
interiores, sensações –, sem comtudo lhe acrescentar elemento que se não encontre
na directa sensação inicial. [...]. [...] nos versos de Mario Beirão | | □ Charcos onde
um torpor, vitreo torpor, se esquece, | □ Nuvens roçando a areia, os longes baços...
| □ Paizagem como alguem que, ermo de amor, se desse, | □ Corpo que estagna
frio a beijos ou a abraços, | | ha simplesmente um desdobrar, como em leque, de
uma sensação crepuscular, que cada termo maravilhosamente intensifica, mas não
alarga.”, in pp. 90-91 in loc.cit., et “[...] entendemos por ideação complexa a que
traduz uma impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica
acrescentando-lhe um elemento explicativo, que, extrahido d’ella, lhe dá um novo
sentido. A expressão subtil intensifica, torna mais nitido; a expressão complexa dilata,
torna maior. A ideação subtil involve ou uma directa intellectualização de uma idéa,
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 259

ou uma directa emocionalização de uma emoção: d’ahi o ficarem mais nítidas, a


idéa por mais idéa, a emoção por mais emoção. A ideação complexa suppõe sempre
ou uma intellectualização de uma emoção, ou uma emocionalização de uma idéa: é
d’esta heterogeneidade que a complexidade lhe vem. São da ideação complexa, por
exemplo, os versos de Mario Beirão | | □ A boca, em morte e marmore esculpida, |
□ Sonha com as palavras que não diz; | | de Teixeira de Pascoaes | | □ A folha que
tombava | □ Era alma que subia; [...]” et “A poesia de que se trata é portanto uma
poesia de vida interior, uma poesia de alma, uma poesia subjectiva. Será então uma
nova especie de symbolismo? Não é: é muito mais. Tem, de facto, de commum com
o symbolismo o ser uma poesia subjectiva; mas, ao passo que o symbolismo é, não só
exclusivamente subjectivo, mas incompletamente subjectivo tambem, a nossa poesia
nova é completamente subjectiva e mais do que subjectiva. O symbolismo é vago e
subtil; complexo, porém, não é. É-o a nossa actual poesia; é, por signal a poesia mais
espiritualmente complexa que tem havido, excedendo, e de muito, a unica outra
poesia realmente complexa –, a da Renascença, e, muito especialmente, do periodo
isabeliano [sic] inglez.”, in p. 91 in loc.cit., et “Quaes são os caracteristicos psychicos
da poesia objectiva? [...] São trez [...]. O primeiro é a nitidez, revelada na forma
ideativa do epigramma, chamando assim, convenientemente, á phrase synthetica,
vincante, concisa: quando, exemplificando, dissermos que o typo da poesia objectiva
apenas epigrammatica é a dos seculos dezesete e dezoito, em França especial- e
originantemente, teremos dado idéa clara do que por nitidez, e epigramma, no caso
presente entendemos. O epigramma porém subjaz, como fórma ideativa, toda a
poesia de exterior [...]. Epigrammatica como nenhuma é a poesia de Victor Hugo,
que é muito mais do que epigrammatica.”, in p. 92 in loc.cit., et “Segundo
caracteristico da objectividade poetica é aquillo a que podemos chamar a plasticidade;
e entendemos por plasticidade a fixação expressiva do visto ou ouvido como exterior,
não como sensação, mas como visão ou audição. Plastica, n’este sentido, foi toda a
poesia grega e romana, plastica a poesia dos parnasianos, plastica (além de
epigrammatica e mais) a de Victor Hugo [...]”, in pp. 92-93 in loc.cit., et “Mais um
caracteristico possue, e é o maximo, a poesia objectiva – é o a que poderemos
chamar imaginação, tomando este termo no proximo sentido de pensar e sentir por
imagens; e isto dá á poesia objectiva d’este genero, quando intensamente inspirada,
uma rapidez e um deslumbramento que, em alto grau, enthusiasmando, deixam, quando
sem elemento de pura espiritualidade, uma inquietante impressão de grandeza ôca.
É o caso dos romanticos todos e, maximamente, de Victor Hugo – é isto que,
dissémos, elle tem além do epigrammatismo e da plasticidade [...]”, in p. 93 in
loc.cit., et “Epigrammatica é [...] a nossa actual poesia, e por ser, ao mesmo tempo
vaga e epigrammatica é que ella é grandemente, magnificamente equilibrada.” et
“[...] são epigrammaticas as phrases citadas de Mario Beirão, o segundo trecho, e de
Teixeira de Pascoaes. A actual poesia portugueza possue, portanto, equilibrando-lhe
a inegualada intensidade e profundeza espiritual, o epigrammatismo sanificador da
poesia objectiva.”, in p. 92 in “III”, et “[...] o que se dá nos quatro versos, em
260 DANIEL MOREIRA DUARTE

Importa notar que Pessoa começa assim analiticamente por tomar o


subjectivo por um vago interior espiritual, ou por uma alma, consi-
derando então o objectivo como se de um separado ainda que como o
mostraria a nova poesia portuguesa simultâneo exterior material se
tratasse: mas cabe em abono da verdade notar também que conclui
que dado tal equilíbrio entre as duas coisas se revelaria uma inter-
-penetração de ambas, sendo espiritualizada a matéria, ou a natureza
tida por exterior, como se verdadeiramente se subjectivasse, e sendo
materializado o espírito, que como se se expressasse se encontraria
disperso nesse exterior que afinal não deixaria de ser todo ele Alma, o
que nenhum problema nos colocaria se ao começar assim a dar conta
do que diz ser a metafísica da nova poesia portuguesa e uma corres-
pondentemente nova e não católica nem panteísta senão super-pan-
teísta religião Pessoa igualmente frisasse o não deixar de ser Corpo
afinal de todo o dito Espírito68. Nos capítulos seguintes de “A nova

primeiro logar citados, de Mario Beirão [,] que a uma objectividade (plasticidade)
perfeita unem uma perfeita subjectividade (subtileza). [...] prova que a nossa actual
poesia possue egualmente o segundo elemento caracteristico da poesia objectiva;
elemento esse que é mais um a equilibrar-lhe a profunda espiritualidade.” et “[...]
imaginação [...]. A este maximo grau de objectividade não subiu ainda a nova poesia
portugueza: prova-o ao ouvido o seu movimento geralmente lento [...]”, in p. 93 in
loc.cit. [; cf. BEIRÃO, Mario, “Coimbra, ao ritmo da saudade”; cf. id., “O Sonho”;
cf. PASCOAES, “Elegia (Vida Etherea)”].
68 Cf. PESSOA, op.cit., in dir.cit. et ed.cit.: “Resultam [...] trez cousas. A primeira é o

já-citado equilíbrio [...]. A segunda é que, sendo ao mesmo tempo, e com quasi egual
intensidade, poesia subjectiva e objectiva, poesia da alma e da natureza, cada um
d’estes elementos penetra o outro; de modo que produz essa extranha e nitida
originalidade da nossa actual poesia – a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo,
a materialização do Espírito, a sua comunhão humilde no Todo, comunhão que é, já
não puramente pantheista, mas, por essa citada espiritualização da Natureza, super-
-pantheista, dispersão do ser n’um exterior que não é Natureza, mas Alma. Decorre de
aqui uma terceira cousa. Esta interpretação das duas almas da sua alma una obriga
a nova poesia portugueza a ser puramente e absorvidamente metaphysica [...]”, in
pp. 93-94 in loc.cit., et “[...] de ser a nossa nova poesia absorventemente meta-
physica ha uma conclusão a tirar. Poesia metaphysica implica emoção metaphysica;
emoção metaphysica é simplesmente synonymo de religiosidade. A actual poesia
portugueza é pois uma poesia religiosa. [...]. – Ha mais: a religiosidade da nossa
actual poesia é uma religiosidade nova, que não se parece com a de nenhuma outra
poesia, nem com a de qualquer religião, antiga ou moderna. Contraste-se n’isto com
o symbolismo, que não tem religiosidade propria; e não a tem porque a que tem é
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 261

poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”, publicados já não em


Setembro como os primeiros senão em Novembro e Dezembro de mil
novecentos e doze, para chegar à conclusão de que necessariamente
tal seria a filosofia que informaria a culminância poética de uma Nova
Renascença que estaria prestes a plenamente se cumprir na figura de
mais do que um super-Camões um super-Shakespeare português,
Pessoa começa por considerar não tanto os referidos períodos nacio-
nais mas o que teriam sido as duas únicas grandes épocas literárias da
civilização em geral, a saber a Grécia antiga e a própria Renascença,
cuja filosofia característica, ou superior, seria o espiritualismo: con-
cluindo então que não poderia ser senão pelo contrário apenas um
movimento percursor da Nova Renascença, enquanto fase tardia da
grande época renascentista anterior, todo o Romantismo com o
elemento panteísta que conteria caracteristicamente na sua metafísica,
como lhe chama Pessoa, pelo que apesar de tudo envolveria já algum
ainda que relativamente imperfeito equilíbrio entre objectividade e
subjectividade, padecendo como se lê em um apontamento provavel-
mente não muito posterior de uma relativa escassez de elementos
intelectuais mas sendo isso em virtude de uma sobre-compensação do
avanço entretanto feito na expressão e na ideação de elementos
subjectivos com uma renovação da metáfora e da imagem 69 .

catholica ou quasi-catholica; vem-lhe do passado, é morte – ponto de capital impor-


tancia, porque mostra nitidamente o caracter degenerativo e morbido do symbo-
lismo.”, in p. 94 in loc.cit..
69 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico | | (Continuado

de pag. 94)”, in dir.cit. et ed.cit.: “Só na Renascença nos apparece uma figura
culminante, Shakespeare, que accusa sobre Homero alguma – não importa quanta
superioridade. – Isto indica que a Renascença marca uma evolução real do espirito
humano, o attingir de um grau já super-grego de poder creador. Como, desde a
Renascença, ninguem ainda appareceu de quem se possa pretender que é superior,
ou mesmo egual, a Shakespeare, forçoso é que se conclúa que a humanidade, se
entrou já em periodo de verdadeiro avanço espiritual sobre a Renascença, não
chegou ainda á culminancia d’esse periodo.”, in p. 156 in “V”, et “Estabeleçamos
agora o valôr relativo da Renascença e do Romantismo. [...] notamos sem hesitação
que a Ronascença [sic] é superior ao Romantismo. [...]. Visto que o seu valôr é
inferior, elle só pode ser uma de trez cousas: ou uma decadencia da Renascença, ou
uma reacção contra a Renascença, ou o principio de uma Nova Renascença, que
em sua culminância será superior, mas que pode não o ser em seu inicio, como
Dante, o maior poeta do inicio da Renascença, é inferior a Homero. [...] o
262 DANIEL MOREIRA DUARTE

Enquanto caracteristicamente panteísta sentir-se-ia o poeta romântico


parte de um Todo real, parte da própria Natureza dita exterior que
não obstante panteisticamente não só como Natureza material senão
também como Natureza espiritual seria tida assim por exterior e por
real, pelo que não obstante podemos dizer que a Realidade seria para
esse poeta o Imanente dessa Natureza, ou da Experiência material e
espiritual, ao contrário do que segundo Pessoa aconteceria com o
fatalmente pessimista poeta transcendentalista, que conceberia a
Realidade como um misterioso Transcendente e logo quer a dita
Matéria quer o dito Espírito, quer dizer todo o Experimentado, como

espiritualismo é a metaphysica da Renascença, torna-se evidente que, se o Roman-


tismo é uma decadencia da Renascença, não pode a sua metaphysica ser senão uma
decadencia do espiritualismo, e não poderá conter, portanto, elementos outros do
que espiritualistas. Ora o Romantismo contém caracteristicamente um elemento
pantheista [...]. Se tem um elemento a mais, não pode ser uma decadencia da
Renascença. – Tampouco pode ser uma reacção contra a Renascença. Se o fosse, a
sua metaphysica seria inteiramente opposta á da Renascença, isto é, seria de todo
anti-espiritualista. Ora [...] o elemento espiritualista encontra-se presente – com
mais ou menos, e por vezes com grande, nitidez – na poesia representativa dos
romanticos. Não é pois o Romantismo uma reacção contra a Renascença: involve,
sim, uma reacção, mas é contra outra poesia, claramente anti-espiritualista essa – a
poesia do seculo dezoito. – Por exclusão de partes temos, portanto, infallivelmente
que concluir que o Romantismo é, não já uma epoca, mas o principio de uma epoca;
não é a Nova Renascença, mas o movimento precursor d’essa Renascença Nova.”,
in pp. 156-157 in loc.cit.. Cf. id., s.t., 1914?, in [ed. Georg Rudolf Lind et Jacinto do
Prado Coelho, Páginas de Estética e de Teoria Literárias, in] dir. Leonor Areal, Arquivo
Pessoa, http://arquivopessoa.net/textos/3789 (2014\III\26): “O que a nossa época
sente é um desejo de inteligência. O que a desgosta no romantismo é a escassez dos
elementos intelectuais, quer directamente pela escassez, quer pela subordinação
deles aos elementos emotivos. O único elemento intelectual notável no romantismo
é o da especulação, da reflexão, aparecido naturalmente pela ruína progressiva das
influências religiosas. Nisto o romantismo é forte, porque está na grande tradição
civilizacional europeia, que é a tradição helénica, do individualismo racionalista. |
Por outra parte o romantismo é o aboutissement de outra tradição, a cristã; é isso pelo
seu emotivismo e subjectivismo. | De novo, o que o romantismo trouxe foi o senti-
mento, propriamente tal, da Natureza. (A renovação da metáfora e da imagem).” et
“Quanto maior a subjectividade da Arte, maior tem que ser a sua objectividade,
para que haja equilíbrio, sem o qual não há vida, nem, portanto, vida ou duração da
mesma arte. Como o romantismo tinha mais emoção, tinha que ter mais
pensamento; como tinha mais subjectividade, tinha que ter mais objectividade.”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 263

Irrealidade, ou Ilusão: ora, mas a partir tão só da sucessão do pan-


teísmo característico da poesia romântica ao espiritualismo caracte-
rístico da poesia renascentista induz o Pessoa de “A Águia” o que aliás
considera poder ser concluído a priori, que é que a filosofia da poesia
europeia continuaria a evoluir assim do mais simples para o mais
complexo, pelo que à oposição entre o realismo panteísta e o irrealismo
transcendentalista necessariamente se seguiria o transcendentalismo
panteísta característico da Nova Renascença como mais e maxi-
mamente complexa filosofia, tal como em um nível inferior à oposição
entre o materialismo e o espiritualismo teria sucedido o próprio
panteísmo como relativa síntese, dir-se-ia, ainda que tendendo ora
para uma sobrevalorização da realidade dita material ora para uma
sobrevalorização da dita espiritual, à semelhança do que também com
o transcendentalismo a um relativamente superior nível aconteceria,
tendendo este a sobrevalorizar a irrealidade ora de um ora de outro
dos ditos tipos de coisas que na verdade são igualmente objectos da
Experiência deveras subjectiva70. Mais em pormenor e abstractamente

70 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico | | (Conclusão)”,


in dir.cit. et ed.cit.: “[...] o individuo commove-se até perder a individualidade,
entrega-se. Mas não se entrega como [...] por vezes o poeta na Renascença fazia, por
humildade; aqui, no Romantismo, entrega-se para viver uma vida mais ampla. Ora o
individuo não se entrega – e menos então se entrega para viver – a qualquér cousa
exterior que não considere como real. Temos, pois, em ultima analyse, que o
romantico representativo se sente parte de uma Natureza real, ainda que espiritual-
mente real. Estamos em pleno sentimento pantheista. Com effeito, desde o
pantheismo materialista de Goethe ao pantheismo espiritualista de Shelley, o
romantismo nada é senão pantheismo.” et “Nas duas fórmas menos complexas do
transcendentalismo, o materialista e o espiritualista, o individuo sente-se, como o
pantheista, parte de um Todo, mas com a diferença que, para elle, esse Todo é
sentido como irreal, como illusorio. Decorre d’aqui que o poeta transcendentalista
(materialista ou espiritualista) fatalmente será um poeta pessimista. Mesmo que,
transcendentalista espiritualista, conceba como vagamente espiritual o Transcen-
dente, esse Transcendente, por sua propria, concebida, natureza, é sentido como
Mysterio [...]” et “[...] a linha evolutiva da philosophia da poesia europêa [...], a
evoluão da alma da civilisação da Europa. Evolue – o que de resto se podia ter
concluido à [sic] priori, mas foi melhor que d’outro modo se concluisse – do mais
simples para o mais complexa; parte do espiritualismo e avança até ao pantheismo, e
d’ahi, inevitavelmente, subirá para a complexidade maxima do transcendentalismo,
até chegar ao limite, o transcendentalismo pantheista.”, in p. 191 in “VII”.
264 DANIEL MOREIRA DUARTE

começa Pessoa desde logo no sexto ainda que já em Dezembro


publicado capítulo do artigo a sua exposição dessa que diz ser a
metafísica característica da nova poesia portuguesa, começando então
por considerar os tipos mais primitivos de filosofias que seriam
complexificadas nela, o materialismo e o espiritualismo, ou seja a
identificação da verdade com o que haveria de espiritual na expe-
riência, por oposição ao que haveria de material nela, que seria então
a falsidade, a aparência, e a identificação da verdade pelo contrário
com o que haveria de material na experiência, por oposição ao que
haveria de espiritual nela, que passaria então a ser a aparência, a
falsidade: mas considerando então que o dualismo constituido por
essas duas identificações da verdade não poderia deixar de se opor por
sua vez à racional exigência de um monismo, à exigência racional de
pensar a Realidade como Uma só, como sendo de uma só natureza,
melhor dizendo, e considerando para mais que dada essa mesma
exigência também a oposição entre o dualismo e o monismo por sua
vez não poderia deixar de se complexificar também, de forma que
seria ainda possível pensar a Realidade como sendo simultaneamente
espiritual e material, ainda que mais ou menos espiritual ou material,
ou como não sendo espiritual nem material, ainda que também neste
caso não fosse humanamente possível corresponder plenamente à
monística exigência racional e algum dualismo sempre sobejasse, neste
segundo caso nomeadamente na atribuição de maior irrealidade ora
ao dito espírito ora à dita matéria. Assim chega não obstante Pessoa
no primeiro caso à sua noção de panteísmo e no segundo caso à sua
noção de transcendentalismo: mas não fica por aí, pois, pela mesma
exigência considerando que à oposição entre esses dois tipos de
filosofias corresponderia uma ainda mais complexa síntese, dir-se-ia,
que representaria a Realidade como sendo simultaneamente espiritual
e material e ao mesmo tempo como simultaneamente não sendo
material nem espiritual, ou seja que representaria tanto o espírito
como a matéria como sendo reais e irreais ao mesmo tempo, tratando-
-se então por fim do transcendentalismo panteísta, se não do pan-
teísmo transcendentalizado, como tampouco deixa Pessoa de dizer,
fazendo porém equivaler as duas expressões, ou não utilizando a
expressão panteísmo transcendentalista, e assim não explicitando que
tão simplesmente de mais uma oposição por sua vez ainda se pode
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 265

tratar, porquanto aliás obstinadamente considera apresentar antes um


sistema que coincidiria com o limite, com a cúpula, de toda a dita
Metafísica.71 Retenhamos em todo o caso outra coisa, derivada da

71 Cf. id., ibid., in dir.cit. et ed.cit.: “O espirito humano, por sua propria natureza de
duplamente – interiormente e exteriormente – percipiente, nunca pode pensar senão
em termos de um dualismo qualquér; mesmo que se esforce por chegar, e até certo
ponto chegue, a uma concepção altamente monistica, dentro d’essa concepção
monistica há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da Expe-
riencia – materia e espirito – se negue a realidade a um, não se lhe nega a existencia
como irrealidade, como apparencia – o que transforma o dualismo espirito-materia em
dualismo realidade-apparencia; mas realidade-apparencia é, para o espirito, um
dualismo. | O genero de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que
se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura d’essa
realidade que é o fim da especulação metaphysica. O espirito não pode admitir duas
realidades: a idéa de realidade absoluta involve a idéa de unidade. Mesmo, portanto,
que o espirito admitta, como em alguns sistemas – e flagrantemente no espiritua-
lismo classico – acontece, dois principios, com egual objectividade reaes, é forçado a
admittir que o genero de realidade de um d’esses principios é superior ao da do
outro. | Temos, pois, que todo o systema philosophico involve um dualismo e um
monismo. A constituição do espirito impõe-lhe, por mais que elle lhe queira fugir,
que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente.
O espirito não pode construir um systema pura e integralmente monistico; e um
sistema puramente dualistico não seria um systema philosophico. | Todo o systema
philosophico sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo
essencial do nosso espirito, é de subentender que represente uma systematisação de
elementos da Experiencia em torno áquella parte da Experiencia – materia ou
espirito – que o philosopho, por causas que, em sua essencia, são de temperamento,
considera a Realidade. Temos, pois, que, consoante para o philosopho o espirito ou
a materia se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode
directamente surgir – o espiritualismo ou o materialismo. – Para o materialista a
fórma essencial de realidade, seja ela especialisadamente qual for no seu especial
systema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento
ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciencia. – Para o espiritualista, atravez das varias
formas que pode tomar o espiritualismo, ha sempre de central e essencial um
elemento, o elemento consciencia, que é o que o espirito immediatamente concebe
como sua base propria. D’aqui partem todas as theorias caracteristicas do espiritua-
lismo – a immortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a cons-
ciencia), o livre-arbitrio (concebida superioridade do consciente sobre o incons-
ciente) e a existência de um Deus clara- ou obscuramente tido como pessoal, isto é,
como consciente. | A ideação metaphysica pode, porém, tentar monismo de outro
modo mais queridamente absoluto. Não ha, é certo, outros elementos da Expe-
riencia que não a materia e o espirito; o pensamento, porém, de certo modo tenta
266 DANIEL MOREIRA DUARTE

supprimir este dualismo. E de trez modos o pode fazer: 1.° Negando toda a realidade
objectiva a um dos elementos da Experiencia, isto é (consoante já passim vimos),
reduzindo o dualismo ao minimamente dualistico (ainda que impossivelmente de
todo monistico) dualismo de realidade-apparencia. Conforme é o espirito ou a
materia o elemento eliminado, temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo
absoluto. – 2.° Admitindo a realidade egual de ambos os elementos da Experiencia;
ora, como isto resulta num absurdo de systema – dado que a existencia de duas,
eguais, realidades é impensável – fatalmente essa dupla realidade tira o seu caracter
de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer cousa em sua
essencia tida por nem matéria nem espirito, ainda que somente existente e real
naquelas suas manifestações. Se essa substancia as transcendesse, isto é, fosse outra
cousa, existisse substancialmente àparte da sua manifestação atravez de materia e
espirito, estariamos então peorados para trez realidades. – 3.° Negando a realidade
a ambos elementos da Experiencia, considerando-os apenas como a manifestação,
não real mas illusoria, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. – Temos
assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo systema
citado o pantheismo, e no terceiro o transcendentalismo. | O leitor reparou que no
primeiro genero de systemas acima expostos ha duas formas – uma materialista,
outra espiritualista. O mesmo acontece ao pantheismo e ao transcendentalismo. É
que, por mais que abstractamente ideêmos, realmente não temos outros modelos
por onde idear senão espirito e materia. Mesmo, portanto, que concebamos um
Transcendente, inconscientemente e involuntariamente o teremos de conceber
como feito á imagem da matéria [sic] ou á semelhança do espirito. Assim, temos um
pantheismo materialista e um pantheismo espiritualista. O primeiro – o de Spinoza
– é o que encerra o que Spinoza, não se sabe porquê, chama Deus, nos seus
attributos. Estes, são como que o corpo de Deus; mas para além desse corpo, Deus
não é nada. É só o corpo de si proprio. Vê-se que o modelo é materialista; tanto
quanto um pantheismo pode ser materialista, é-o o systema de Spinoza. – O
pantheismo espiritualista admitte Deus substancia de tudo, mas permanecendo Deus
e diverso atravez da sua manifestação por seus attributos. Faça-se uma distincção
subtil, que tem de ser subtilmente compreendida: para o pantheista materialista tudo
é Deus; para o pantheista espiritualista Deus é tudo. Se houvesse sido pensado
coherentemente, e despidamente de influencias de estreita theologia, teria sido este o
systema de Malebranche. | Com o transcendentalismo acontece o mesmo. Importa
fixar bem a differença entre o pantheismo e o transcendentalismo, tanto mais que
estabelecemos nós estes termos independentemente de como tenham sido usados
antes, assim como, de resto, fazemos esta classificação de modo absolutamente
original. – Para o pantheismo de qualquér das duas especies, materia e espirito são
manifestações reaes de Deus, exista ele (pantheismo espiritualista) ou não (pantheismo
materialista) como Deus além das suas duas manifestações. Para o transcenden-
talista, materia e espirito são manifestações irreaes de Deus, ou, antes, para não
errarmos, do Transcendente, o Transcendente manifestando-se como a illusão, o
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 267

referida precedência do movimento literário relativamente ao


movimento social e político nos períodos de tipo crítico e criador a
que nos vimos referindo e do facto de no pessoano presente histórico
de Portugal não ter o primeiro atingido ainda a sua culminância nem
ter o segundo ainda eclodido, que é o só muito informemente Pessoa
poder então antever a resultante criação civilizacional de um tal
período português: e no entanto não deixemos de ter em conta que tal
como na poesia e na respectiva filosofia também social e politicamente
se trataria de uma criação que envolveria uma fusão de elementos
absolutamente opostos, sintetizando-se assim democracia e aristo-
cracia e por sua vez política e religião, através de um maximamente
elevado sentimento religioso mas através também da mais cruel das
práticas sociais, em movimento contrário ao da modernidade do

sonho de si proprio. – Dos transcendentalistas, para o transcendentalista materialista


(Schopenhauer), a essencia real, de que as cousas são a illusão, é qualquér cousa
vaga cujo caracter essencial é ser inconsciente; ora, como a consciencia é a base dos
systemas espiritualistas, temos aqui um systema que, apesar de transcendentalista, o
é anti-espiritualista-, isto é, materialisticamente. – É escusado definir o transcen-
dentalismo espiritualista, que representa a hypothese contraria. | Um outro systema
pode, porém, surgir, limite e cúpula da metaphysica. Supponha-se que a um
transcendentalista qualquér esta objecção se faz: O Apparente (materia e espirito) é
para vós irreal, é uma manifestação irreal do Real. Como, porém, pode o Real
manifestar-se irrealmente? Para que o irreal seja irreal é preciso que seja real:
potranto [sic] o Apparente é uma realidade irreal, ou uma irrealidade real – uma
contradição realisada. O Transcendente pois é e não é ao mesmo tempo, existe
àparte e não-àparte da sua manifestação, é real e não real nessa manifestação. – Vê-
-se que este systema é, não o materialismo nem o espiritualismo, mas sim o
pantheismo, transcendentalizado; chamemos-lhe pois o transcendentalismo pantheista.
Ha d’elle um exemplo unico e eterno. É essa cathedral do pensamento – a
philosophia de Hegel. | O transcendentalismo pantheista involve e transcende todos
os systemas: materia e espirito são para ele reaes e irreaes ao mesmo tempo, Deus e
não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a materia e o espirito existem
como que não existem, porque existem e não existem ao mesmo tempo. A suprema
verdade que se pode dizer de uma cousa é que ella é e não é ao mesmo tempo. Por
isso, pois, que a essencia do universo é a contradicção – a irrealisação do Real, que é
a mesma coisa que a realisação do Irreal –, uma affirmação é tanto mais verdadeira
quanto maior contradicção involve. Dizer que a materia é material e o espirito
espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a materia é espiritual e o espirito
material. E assim, complexa- e indefinidamente...”, in pp. 188-190 in “VI”.
268 DANIEL MOREIRA DUARTE

cristianismo, da democracia, de todos os demais humanitarismos e dos


comercialismo e materialismo radicais72.

3. O Pessoa de “A Águia”, o jovem Nietzsche e a


Verdade: tensões e divergências

O Pessoa de “A Águia”: bem, mas o mesmo Pessoa considera


ainda um terceiro tipo de períodos nacionais, ao qual corresponderia
o terceiro período da sua história da Inglaterra, que tendo atingido o
respectivo maior valor civilizacional e literário durante o movimento
reformista de entre mil setecentos e setenta e mil oitocentos e trinta e
dois viria vigorando após o princípio do declínio do tratável de neo-
-clássico período inglês, com poetas como Coleridge, Shelley e

72 Cf. id., ibid., in dir.cit. et ed.cit.: “Feito assim o esboço psychologico da nossa
actual poesia no que respeita á sua esthetica e á sua metaphysica, resta concluir
approximadamente qual deva ser a resultante social das forças da Raça cujo primeiro
assomo á tona da realidade ora e apenas se está fazendo, n’essa, citada, poesia.” et
“Só muito informemente, por razões que já expusémos, essa creação social, em seu
genero e especialidade, é antevisivel.” et “Sendo o transcendentalismo pantheista
um systema essencialmente envolvedor de uma fusão de elementos absolutamente
oppostos, segue-se que a creação resultante da nova alma lusitana deverá envolver,
em seu resultado definitivo e ultimo, o estabelecimento de qualquér nova formula
social onde uma fusão d’essas se dê. [...] a futura creação social da Raça portugueza
será qualquér cousa que seja ao mesmo tempo religiosa e politica, ao mesmo tempo
democratica e aristocratica, ao mesmo tempo ligada á actual formula da civilisação e
a outra cousa nova. [...] inutil deve ser notar quanto essa futura formula deve distar
do christianismo, e especialmente do catholicismo, em materia religiosa; da
democracia moderna, em todas as suas formas, em materia politica; do comer-
cialismo e materialismo radicaes na vida moderna, em materia civilizacional [sic]
geral. E, finalmente, é da mesma inutilidade acrescentar, accentuando e especia-
lisando a sua divergencia da democracia, que as formas extremas ou perturbadas
d’esta – anarchismo, socialismo, etc. – serão varridas para fóra da realidade, mesmo
do sonho nacional; os humanitarismos morrerão ante essa nova formula social, de
portugueza origem, mais alta, provavelmente, em sentimento religioso do que outra
qualquér que tenha havido, mais rude e cruel talvez em pratica social do que o mais
rude militarismo commercialista.”, in p. 192 in “VIII”. Cf. id., “Reincidindo...”, in
dir.cit. et ed.cit.: “[...] periodo politico que as grandes épocas [sic] literarias [sic]
precedem – não offerece, é claro, interesse analogico, dado que não passámos ainda do
principio do segundo estadio do periodo literario [sic].”, in p. 140 in “III”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 269

Browning, que sem serem supremos seriam indiscutivelmente grandes,


e ao qual corresponderia também o primeiro período da sua história
da França, que teria acompanhado o Ancien Régime culminando de
forma coincidentemente política e literária no tempo de Luís XIV e
durando até ao referido revolucionário final do século dezoito. Diz-
-nos Pessoa que em tais períodos a corrente e a culminância literárias
coincidiriam, pois, com o movimento e a culminância políticos, como
se portanto nenhum conflito tivesse existido entre as literaturas então
realizadas e os poderes então estabelecidos, tratando-se aliás de períodos
em que se verificaria um equilíbrio do nacional com a influência
estrangeira, assim como com os elementos tradicionais, o que literária-
mente se comprovaria por uma patente mas não dominante influência
alemã no romantismo inglês e por na literatura dos séculos dezassete e
dezoito em França ser tão importante a influência da antiguidade
como o espírito nacional: mas trata-se então como o mesmo Pessoa
nos diz de períodos em que tais nações nada de radicalmente criador
teriam feito directamente pela própria Literatura ou pela própria
Civilização, limitando-se elas a criar a sua própria hegemonia sobre
outros povos e a espalhar assim os seus modos literários e as suas
formas de organização política e social. 73 É caso para pensar que
talvez semelhantes períodos não constituam verdadeiramente um

73 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in dir.cit. et


ed.cit.: “No terceiro periodo inglez e primeiro francez temos a coincidencia no tempo
entre a corrente e culminancias litterarias e o movimento e culminancias politicos. É
sob Luiz XIV que a vida litteraria é de mais valor, e o movimento reformista inglez
(de 1770 a 1832), que involve em si as causas da hegemonia ingleza moderna e
inclue as guerras em que ella se fixou, coincide com o romantismo britannico.” et
“As correntes litterarias do terceiro periodo inglez e primeiro francez – as dos
periodos em que os paizes crearam a sua propria grandeza e hegemonia social, mas,
de civilizacional, nada – mostram um equilibrio entre o espirito nacional e a influencia
estrangeira: assim, a influencia allemã é patente mas não dominante no romantismo
inglez, e a influencia da antiguidade tão importante como a do espirito nacional na
litteratura dos seculos dezesete e dezoito em França.”, in p. 105 in “III”, et “Por
vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua
prosperidade commercial, cousas secundarias e por assim dizer physicas nas nações;
tem de se entender a sua exuberancia de alma, isto é, a sua capacidade de crear, não
já simples sciencia, o que é restricto e mecanico, mas novos moldes, novas idéas geraes,
para o movimento civilizacional a que pertence.”, in p. 102 in loc.cit.. Cf. n. 22.
270 DANIEL MOREIRA DUARTE

terceiro tipo essencialmente distinto do tipo tradicionalista, no sentido


em que talvez não se caracterizem senão precisamente pela fixação de
uma nova tradição a partir de uma anterior criação e pela respectiva
expansão, analogamente ainda ao que por outro exemplo terá suce-
dido no dito helenista período tardio da Grécia antiga, tal como no
próprio tardio período do expandido Império Romano, o qual o
próprio Pessoa considera mais não ter sido do que um prolongamento
inferior da anteriormente criada civilização grega, comprovando tal
diferença desde logo literariamente como entre quaisquer outras
épocas ou períodos civilizacionais, a saber pelo valor relativo daqueles
que considera serem os respectivamente máximos poetas e no caso em
particular pela superioridade de Homero relativamente a Vergílio74:
claro está por outro lado que em nenhuma das histórias pessoanas da
França e da Inglaterra se seguem imediatamente os períodos do
terceiro tipo em causa aos períodos criadores, correspondendo a

74 Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza no seu aspecto Psychologico | | (Continuado


de pag. 94)”, in dir.cit. et ed.cit.: “Guardemos, pois, d’esta analyse uma tripla
constatação: (1) que um periodo literario [sic] é sociologicamente importante
quando n’elle se notam figuras importantes de literatos [sic], e, especialmente, de
poetas; (2) que a importancia sociologica de um periodo literario [sic] se mede pela
sua maxima figura; e (3) que, portanto, a humanidade só mostra em certo periodo um
verdadeiro avanço espiritual – isto é, um augmento de poder creador – quando o
maior poeta d’esse periodo é superior aos maximos poetas de todos os periodos
anteriores. Esta ultima, corollaria, constatação é illuminadora da historia. Assim na
superioridade de Homero a quantos poetas anteriores se divisem lê-se claramente o
augmento de poder creador que a humanidade no seu periodo grego trahe sobre
anteriores periodos; e assim como Homero é o primeiro maximo poeta de pleno e
integral equilibrio, a Grecia Antiga é o primeiro povo plena-, lucida- e integral-
mente creador que na historia nos apparece. A inferioridade de Vergilio a Homero
mostra que da Grecia para Roma a humanidade não avançou, que nenhum novo
elemento espiritual lhe nasceu – o que nos indica nitidamente que Roma constituiu,
não uma civilização, mas o prolongamento inferior e decadente da civilização
grega.”, in pp. 155-156 in loc.cit.. Cf. id., “A Nova Poesia Portugueza Sociologi-
camente Considerada”, in dir.cit. et ed.cit.: “[...] ninguem compara a grandeza
ruidosa de Roma á super-grandeza da Grecia. A Grecia creou uma civilização, que
Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruinas romanas e idéas gregas.
Roma é, salvo o que sobremorre nas formulas invitaes dos codigos, uma memoria de
uma gloria; a Grecia sobrevive-se nos nossos idéaes e nos nossos sentimentos.”, in
loc.cit..
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 271

hegemonia francesa ao primeiro período da história de tal nação que


Pessoa considera e encontrando-se a hegemonia inglesa na sua
história separada do respectivo período criador por um respectiva-
mente segundo e não criador nem hegemónico período, mas cabe
pensar que no caso francês por certo a hegemonia europeia de Luís
XIV terá resultado de um longo e nem sempre linear processo de
incremento do poder antes de mais nacional dos reis sobre o dos
demais aristocratas e o do clero, da mesma forma que segundo o
próprio Pessoa teria a mundial hegemonia britânica difundido sob a
forma inferior de monarquia constitucional entretanto adquirida o
princípio nacional de governo popular não imediatamente antes
criado, sendo de resto que pelo referido equilíbrio entre o nacional e o
não absorvido estrangeiro e tradicional também as literaturas do
terceiro tipo de períodos em causa não poderiam ainda que superiores
às do primeiro tipo ser senão inferiores às do segundo e crítico tipo,
por certo então não correspondendo a literatura do Ancien Régime à
relativa e panteísta preponderância da objectividade romântica em
que plenamente se interpretaria o ser francês nem correspondendo o
romantismo britânico à subjectividade renascentista em que plena-
mente o ser inglês se interpretaria75. E claro está que existe uma dife-
rença entre a hegemonia de uma tradição que até por povos com
tradições diferentes passa a ser subjectivada e essas mesmas menos
poderosas e colonizadas tradições: mas é que talvez não haja para um
mesmo povo tal como para um mesmo indivíduo diferença essencial
entre o estrangeiramente criado e o criado anteriormente, porquanto
espacial ou temporalmente se trata em todo o caso do alheio e do
diferente, e para além disso talvez a tradição de uns assim mesmo
hegemonicamente provoque em outros primeiro uma crise exterior-
mente despoletada e depois uma interiorização e uma fixação da
mesma à partida não própria cultura, até que pela manifestação de
factores críticos internos se configure um período criador, tal como
venho sugerindo a propósito do mais arcaico período da Grécia antiga
e dos períodos mesmos que Pessoa diz serem os tradicionalistas e
desnacionalizados. Talvez aliás em semelhantes períodos o próprio
criticismo passe a fazer parte da tradição, tal como em toda a nossa

75 Cf. n. 22.
272 DANIEL MOREIRA DUARTE

moderna tradição científica: mas o que esse complexificar-se e refinar-


-se da tradição implicará, junto para mais com a respectiva expansão,
será sobretudo talvez uma maior capacidade de conservação da
mesma, tornando-se mais difícil o aparecimento de factores de novo
radicalmente críticos, de factores críticos da própria crítica tornada
tradição e da política e da sociedade correspondentemente fixadas.
O jovem Nietzsche: em “O nascimento da tragédia” encon-
tramos porém distinguidos, para além da cultura de tipo popular que
como vimos também Pessoa estetica e intelectualmente desvaloriza,
três superiores tipos de culturas, a saber o tipo dito artístico, digamos
antes apolíneo, correspondendo por exemplo histórico à cultura
helénica, que não helenística, e o tipo trágico, que o jovem Nietzsche
associa à cultura budista ao contrário do que mais tarde fará76 e que
não podemos deixar de associar ao momento simultaneamente dioni-
síaco e apolíneo para que já apontei do próprio nascimento da
tragédia que o mesmo jovem considera, e o tipo socrático, ou
dialéctico e científico, nem apolíneo nem dionisíaco,77 por exemplo
histórico à própria helenística cultura alexandrina e assim mesmo

76 Cf. NIETZSCHE in tr. Andrés Sánchez Pascual, La genealogía de la moral | Un escrito


polémico: “[...] alejamiento nihilista de la existencia, deseo de la nada o deseo de su
«opuesto» [...], budismo y similares [...]”.
77 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago

Guervós), El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “De esta manera el drama euripideo es


una cosa fría y ardiente al mismo tiempo, tan capaz de congelar como de inflamar;
le resulta imposible alcanzar el efecto apolineo de la epopeya, mientras que, por otro
lado, se ha desprendido en todo lo posible de los elementos dionisíacos, y ahora,
para producir efecto, necesita nuevos excitantes, que no pueden ya encontrarse en
las dos únicas pulsiones artísticas, la apolinea y la dionisíaca. Esos excitantes son
fríos pensamientos paradójicos – en lugar de contemplaciones apolineas – y afectos
ardientes – en lugar de éxtasis dionisíacos –, y, desde luego, pensamientos y afectos
imitados de una manera altamente realista, pero en modo alguno inmersos en el éter
del arte.”, in p. 385 in “12”, et “Aquí el pensamiento filosófico crece tanto que se
sobrepone al arte y lo obliga a una estrecha sujeción al tronco de la dialéctica. En el
esquematismo lógico la tendencia apolinea se ha transformado en crisálida; del mismo
modo que en Euripides tuvimos que percibir algo análogo y, además, una
traducción del dionisíaco al afecto naturalista. Sócrates, el héroe dialéctico del drama
platónico, nos recuerda la naturaleza afin del héroe euripideo, el cual tiene que
defender sus acciones con razones a favor y razones en contra, y con ello corre a
menudo peligro de perder nuestra compasión trágica [...]”, in p. 392 in “14”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 273

também a todo o nosso mundo moderno correspondendo. Não


obstante o nacionalismo quiçá algo exagerado que analogamente a
Pessoa o jovem Nietzsche de “O nascimento da tragédia” exibe ao
pugnar por uma expulsão de elementos estrangeiros enxertados com
violência que possibilitasse um originariamente alemão renascimento
do trágico na civilização moderna78, do que se trata não é tanto de
períodos nacionais como nos dois primeiros artigos pessoanos de “A
Águia” quanto de épocas civilizacionais e de épocas civilizacionais tão
somente no que diz respeito aos respectivamente superiores tipos
culturais: em todo o caso, a analogia continuará a ser válida, desde
logo em relação à cultura apolínea, a qual ainda que como sugeri na
sua dimensão superior e dependente da influência externa de factores
críticos e dionisíacos atingisse um criativo nível artístico, pelo que não
deixei de a associar a uma vivência monumental da Alétheia, temos de
voltar a associar também a uma vivência tradicionalista da mesma,
pois é o mesmo jovem Nietzsche quem nos volta a dizer que se trata
de como um véu e uma invenção mentirosa rememorada ou tomada
por verdadeira utilizar a própria beleza de forma a triunfar sobre o
sofrimento inerente à vida79, e continuará a analogia a ser válida
também em relação à maximamente criadora cultura trágica, que por
isso mesmo tampouco deixei de associar a uma vivência monumental
mas que temos de voltar a associar a uma vivência imanentemente
crítica, na medida em que se trata de encontrar consolo, ainda que

78 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “Aquí cobra vida en nosotros la sensación de
que el nacimiento de una edad trágica no ha de significar para el espíritu alemán
sino un retorno a sí mismo, un dichoso reencontrarse, después de que poderes
enormes, que lo habían estado invadiendo desde fuera durante mucho tiempo, a él,
que vegetaba en una desamparada barbarie de la forma, lo habían obligado a vivir
en una servidumbre sometida a la forma que ellos le imponían.”, in p. 418 in “19”,
et “Nosotros tenemos en tanta estima el núcleo puro y enérgico del ser alemán, que
precisamente de él nos atrevemos a esperar aquella expulsión de elementos extran-
jeros injertados con violencia, y consideramos posible que el espíritu alemán vuelva
a acordarse de sí mismo.”, in p. 433 in “23”.
79 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “[...] Apolo supera aquí el sufrimiento del

individuo mediante la glorificación luminosa de la eternidad del fenómeno, la belleza


triunfa aquí sobre el sufrimiento inherente a la vida, el dolor queda en cierto sentido
eliminado de los rasgos de la naturaleza por una invención mentirosa.”, in p. 403 in
“16”.
274 DANIEL MOREIRA DUARTE

segundo o mesmo jovem consolo metafísico, na crença em um


indestrutível fluir da vida que mais além dos fenómenos, incluindo
toda a tradição e a própria beleza, os aniquilaria e levaria à transfor-
mação80, e isto mesmo que como também vimos semelhante vivência
crítica fosse tal como a tradicionalista e tal como toda a Cultura tão

80 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “En el arte dionisíaco y en su simbolismo trágico
la naturaleza misma nos dirige la palabra con su voz verdadera, no cambiada: «¡Sed
lo que soy! ¡Bajo el cambio incesante de los fenómenos, la madre primordial
eternamente creadora, la madre primordial que eternamente apremia hacia la
existencia y que eternamente encuentra en este cambio de los fenómenos su propia
satisfacción!»”, in loc.cit.. Cf. id. in tr.cit., in ed.cit.: “El mito trágico sólo se ha de
comprender como una configuración plástica de la sabiduría dionisíaca por medios
artísticos apolíneos; él lleva el mundo del fenómeno a los limites en los que éste se
niega a sí mismo e intenta refugiarse de nuevo en el seno de la verdadera y única
realidad [...]”, in p. 427 in “22”, et “[...] para servirnos de la terminología de Platón,
se tendría que hablar de las figuras trágicas del escenario helénico poco más o menos
de este modo: el único Dioniso verdaderamente real se manifiesta en una pluralidad
de figuras, con la máscara de un heróe que lucha, y, por así decirlo, prisionero en la
red de la voluntad individual.”, in p. 374 in “10”. Cf. CASTILLA Cerezo, Antonio,
“Giorgio Colli: por una lectura crítica de Nietzsche”, in coord. Antonio Castilla
Cerezo, Nietzsche o el espíritu de ligereza, México DF / Madrid, Plaza y Valdés, 2007,
pp. 121-137: “Dado que la expresión [...] consta siempre de dos polos, el fondo
oculto inagotable y las concreciones y objetos del mundo, se entiende que de todos
los dioses griegos Nietzsche se quedara con dos, Dioniso y Apolo, que representan
respectivamente esas dos tendencias. Colli localiza en este punto el nervio central
que recorre la totalidad de la obra de Nietzsche, pero también su más profundo
error. Apolo sería, según este modelo, el dios de lo concreto, de la representación, en
tanto que Diónisos sería su contrario, el dios de la embriaguez, del caos y de la
pérdida del principio de individuación. Pero encarnar la pérdida de la individuación
en una figura concreta, ¿no es lo mismo que individuarla? Dioniso, como señala
Colli, es también una representación, un concepto, y por lo tanto una derivación de
Apolo, en lugar de ser ontológicamente anterior a él, como sostuviera Nietzsche.
Entender que el pensador alemán planteó el problema de la expresión en nuevos
términos implica, según Colli, percatarse también de que tales términos no son
todavía los adecuados. Nietzsche liberó a la filosofía, dice Colli, de una confusión, la
que identificaba el fondo último de la expresión con un Dios único, y por ello no
podemos dejar de remitirnos a él para hacer filosofía en nuestros días, pero se
entregó a otra, a la equiparación de ese mismo fondo con la figura de Dionisos [...]”,
in pp. 125-126; cf. COLLI, Giorgio, in tr. Carmen Artal, Después de Nietzsche,
Barcelona, Editorial Anagrama, 1978 [; cf. id., Dopo Nietzsche, Milano, Adelphi
Edizioni, 1974].
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 275

somente um instrumento para a continuação da própria vida e fosse


por isso mesmo uma vivência iludida e ela própria injusta e enganosa.
Ora bem, e a cultura alexandrina e moderna, segundo o jovem
Nietzsche entregue ao prazer socrático do conhecimento e à optimista
pretensão de por tal meio contruir uma felicidade universal81 e não
apenas dissimular senão curar a eterna ferida do existir, será no que
toca ao ser expansionista por certo análoga a qualquer outra mais ou
menos cientifica e tecnologicamente desenvolvida hegemónica ten-
dência cultural, abarcando esse aspecto da analogia tanto o hege-
mónico período pessoano da França de Luís XIV quanto o do
romantismo britânico: mas de resto é o mesmo Nietzsche quem nos
diz que também todo o universalismo socrático e científico e não
apenas a beleza apolínea e a trágica sabedoria corresponderia a uma
cultura de algo ilusório, restando apenas saber se se trata de uma
vivência da Ilusão, ou de uma vivência da ilusória Verdade, de tipo
transformador ou de tipo essencialmente conservador.82 Do que não

81 Cf. NIETZSCHE in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “¡[...] ahora uno debe no ocultarse lo
que está escondido en el seno de esa cultura socrática! ¡Un optimismo que se cree
que no tiene límites ni barreras! ¡Ahora uno debe no asustarse si los frutos de ese
optimismo maduran, si la sociedad, agriada hasta en sus capas más bajas por
semejante cultura, se estremece paulatinamente bajo efervescencias y apetencias
exuberantes, si la fe en la felicidad terrenal de todos, si la fe en la posibilidad de
semejante cultura universal del saber se transmuta paulatinamente en la amena-
zadora exigencia de semejante felicidad terrenal alejandrina [...]”, in p. 409 in “18”.
82 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “Es un fenómeno eterno: la ávida voluntad

encuentra siempre un medio de retener a sus criaturas en la vida y de obligarlas a


seguir viviendo, gracias a una ilusión extendida sobre las cosas. A éste lo encadena el
placer socrático del conocer y la ilusión de poder curar con él la eterna herida del
existir, a aquél lo enreda el seductor velo de belleza del arte, que ondea ante sus
ojos, a aquel otro, el consuelo metafísico de que, bajo el torbellino de los fenómenos,
la vida eterna continúa fluyendo de manera indestructible: para no hablar de las
ilusiones más comunes y casi más intensas aún, que ya prepara la voluntad en cada
instante. Aquellos tres grados de ilusión están reservados en general sólo a las
naturalezas más noblemente dotadas, que sienten el peso y la gravedad de la
existencia en general con muy profundo displacer, y a las que hay que quitarles de
manera ilusoria ese displacer con estimulantes selectos. De esos estimulantes se
compone todo lo que nosotros llamamos cultura: según cuál sea la proporción de las
mezclas, tendremos una cultura preferentemente socrática, o artística, o trágica: o, si se
admiten ejemplificaciones históricas: hay, o bien una cultura alejandrina, o bien una
276 DANIEL MOREIRA DUARTE

se trata é de uma vivência verdadeira no sentido de constituir uma


experiência da Realidade em si mesma independente do seu ser
experienciada, pois, e tampouco se trata de uma vivência monumental,
desde logo por não ser apolínea nem dionisíaca, quer dizer por não
ser de todo artística, e assim mesmo por não ser uma vivência mítica,
por ser antes uma vivência da verdade como abstracta, ou de acordo
com a “segunda” “Consideração intempestiva” e em sentido contrário
às pessoanas materialização do dito espírito e espiritualização da dita
matéria por ser antes a vivência de uma separação entre um interior e
um exterior, por ser antes a vivência de uma verdade interior, ou de
uma segunda natureza, sem correspondência exterior nem por conse-
guinte poder transformador, ou capacidade de se tornar numa nova
natureza primeira, pelo que se trata de uma não criadora vivência:
trata-se sim de uma vivência que envolveria uma crítica inclusiva-
mente excessiva da verdade, como da história, que à falta de um
critério mítico para a selecção dos conhecimentos a preservar e dos
conhecimentos a deixar cair no esquecimento que assim servisse de
enquadramento e suporte à própria criação, ou tendo por assim dizer
como mito, ou como meta, apenas o aumento do conhecimento em si
mesmo e não ao serviço de fins vitais, resultaria numa improdutiva
divagação da fantasia artística e numa mera e vã colecção de
inumeráveis influências históricas e culturais alheias que pelo seu
excesso e pela sua contradição e desordem não apenas impossibili-
tariam o desenvolvimento do futuro senão que também debilitariam a
própria vida presente, ou a própria natureza primeira, em que não
chegariam a ser incorporadas.83 Ora, e nessa mesma medida podemos

cultura helénica, o bien una cultura budista. | Todo nuestro mundo moderno está
preso en la red de la cultura alejandrina y conoce como ideal el ser humano teórico,
equipado con las fuerzas cognoscitivas supremas, que trabaja al servicio de la ciencia
[...]”, in p. 409 in loc.cit..
83 Cf. id. in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “Pongamos ahora junto a esto el ser humano

abstracto sin mitos que le guíen, la educación abstracta, la moral abstracta, el


derecho abstracto, el Estado abstracto: recordemos la divagación sin reglas, no
refrenada por ningún mito patrio, de la fantasía artística: imaginemos una cultura
que no tenga una sede primordial firme y sagrada, sino que esté condenada a agotar
todas las posibilidades y a nutrirse miserablemente de todas las culturas – he aquí el
presente, como resultado de aquel socratismo dirigido a la aniquilación del mito. Y
ahora el ser humano sin mitos está, eternamente hambriento, entre todos los
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 277

considerar que se trata também de uma vivência conservadora, ainda


que não propriamente tradicionalista, ou ainda que a tradição por tal

pasados, y cavando y revolviendo busca raíces, aun cuando tenga que buscarlas
excavando en las más remotas Antigüedades. ¿A qué remite la enorme necesidad
histórica de la insatisfecha cultura moderna, el coleccionar alrededor de sí
innumerables culturas distintas, el voraz querer conocer, sino a la pérdida del mito,
a la pérdida de la patria mítica, del seno materno mítico? Preguntémonos si el febril
y tan siniestro agitarse de esta cultura es otra cosa que el ávido echar mano y tratar
de atrapar alimento que son propios del hambriento – ¿y quién querría dar todavía
algo a semejante cultura, que no puede saciarse con todo lo que zampa, y a cuyo
contacto el alimento más vigoroso y más saludable suele transformarse en «historia y
crítica»?”, in pp. 431-432 in “23”. Cf. id. in tr.cit., Consideraciones intempestivas II | De
la utilidad y los inconvenientes de la historia para la vida, in ed.cit.: “[...] no como una
cohorte de pensadores puros que se limitan al papel de observadores de la vida, no
como individuos ávidos de saber a quienes únicamente el saber puede satisfacer y
para los cuales el aumento de conocimiento es la meta en sí misma, sino siempre tan
sólo para los fines de la vida y, por lo tanto, bajo el señorío y la dirección suprema
de estos fines. Que tal es la relación natural de cualquier época, cultura y pueblo con
la historia [...], que el conocimiento del pasado se desea en todos los tiempos
exclusivamente al servicio del futuro y del presente, y no para debilitar el presente,
ni para arrancar las raíces de un futuro pletórico de vitalidad [...]”, in p. 711 in “4”,
et “El saber histórico, proveniente de fuentes inagotables, afluye y se introduce
siempre de nuevo, lo extraño e inconexo se acumula, la memoria abre todas sus
puertas y, sin embargo, no está abierta lo suficiente, la naturaleza hace todo lo
posible por recibir, ordenar y honrar a estos huéspedes extraños, pero éstos están
trabados en luchas entre sí y parece necesario contenerlos y dominarlos a todos para
no sucumbir en su combate. La habituación a tan desordenada, tumultuosa y bélica
vida doméstica se convierte paulatinamente en una segunda naturaleza, aun cuando
es indiscutible que esta segunda naturaleza es mucho más débil e inquieta y de todo
punto más malsana que la primera. Concluye el ser humano moderno por arrastrar
consigo una cantidad tremenda de indigestas piedras de saber, que en ocasiones
entrechocan en su panza, como refiere el cuento. Por este entrechocar se pone de
manifiesto el rasgo más característico de este ser humano moderno: el singular
contraste entre un interior al que no corresponde ningún exterior y un exterior al
que no corresponde ningún interior, contraste que los pueblos antiguos no
conocieron. El saber, absorvido en demasía, sin hambre, más aún, contrariando la
necesidad, ahora ya no obra como motivo transformador que tiende hacia afuera,
sino que permanece oculto en cierto caótico mundo interior que el ser humano
moderno señala con extraño orgullo como la «interioridad» que le es peculiar y
propia. Se dice entonces que se tiene el contenido y que sólo falta la forma; pero en
toda cosa viva es éste un contraste de todo punto improcedente.”, in pp. 711-712 in
loc cit..
278 DANIEL MOREIRA DUARTE

vivência conservada fosse precisamente a do excessivo conhecimento


crítico, e ainda que tão completamente ecdótico conservadorismo,
pois, não conservasse a própria cultura, como a própria vida: para
além da ecdótica e da crítica, aliás, é também precisamente às culturas
de tipo alexandrino e moderno de que agora tratamos que temos de
associar os conceitos de que em “Sobre verdade e mentira em sentido
extra-moral” nos fala Nietzsche, sendo que desta feita já não se trata
mesmo de figuras míticas, nem de figuras míticas inspirando uma
acção transformadora nem de míticas figuras conservando determi-
nada coesão social, mas sim de conceitos no sentido estrito de
metáforas fixadas e abstraídas que tornadas fixas e tidas por interiores
não teriam real valor de troca nem pelo mutável nem pelo próprio
dito exterior, ainda que assim mesmo enquanto palavras e universais
meramente inteligíveis as devamos pensar como instrumentos de um
poder, ainda que de um poder ele próprio algo abstracto, ou mais
dissimulado, e como elementos não propriamente de uma tradição
por assim dizer plenamente interiorizada e exteriormente expressa de
forma correspondente mas sim em todo o caso como elementos de
uma convenção84.
A Verdade: se naturalmente só em culturas assim convencio-
nalistas encontramos a oposição entre uma falsidade tida por negativa
e uma verdade tida por positiva enquanto juízo adequado a um
objecto paradoxalmente tomado por não se confundir com ela, no que
toca à abordada questão do poder e independentemente do valor vital
do mesmo, esse que segundo Nietzsche seria em tais culturas inferior
até ao que seria nas tradicionalistas, talvez possamos sem embargo
considerar que se trata de um sub-tipo do mesmo tipo de Verdades
em que incluiremos as tradições, ou seja talvez possamos considerar

84 Cf. id. in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego
Sánchez Meca), Sobre verdad y mentira | en sentido extramoral, in ed.cit., “Pensemos un
poco más en la formación de los conceptos: toda palabra se convierte de manera
inmediata en concepto cuando deja de servirle a la vivencia originaria, única y por
completo individualizada, gracias a la cual se generó, por ejemplo, como recuerdo, y
tiene que pasar a adaptarse a innumerables vivencias más o menos similares, esto es,
hablando con rigor, nunca idénticas; es decir, tiene que valer al mismo tiempo para
casos claramente diferentes. Todo concepto se genera igualando lo no-igual.”, in p.
612 in “1”. Cf. n. 33 et n. 44.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 279

apenas dois grandes tipos de Verdades e de Literaturas, incluindo as


linguagens científicas, e de períodos civilizacionais, considerando nós
então apenas um tipo transformador para além desse primeiro a que
podemos dar o nome de conservador mesmo nos casos em que a
própria crítica seja conservada enquanto instrumento de si mesma e
do próprio conservadorismo e mesmo nos casos em que expandindo-
-se sobre outras culturas tal conservadorismo se constitua nelas como
um factor de crise externo. Curiosamente, abstraído como aparece em
“A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico” o transcen-
dentalismo panteísta de Pessoa poderia passar por uma verdade e uma
literatura do agora em causa conservador sub-tipo, pelo que pode-
ríamos esperar encontrá-lo não em um período criador como seria o
da Nova Renascença mas sim em períodos convencionalistas: tal não
será porventura o caso, na medida ao menos em que se trata da
filosofia que a nova poesia portuguesa incorporaria e expressaria, o
que parece indicar-nos mais uma vez que o desenvolvimento intelec-
tual da primitividade literária não termina necessariamente na fixação
de uma experiência do dito interior e do dito exterior como dimensões
separadas, ainda que por um tal momento passe, e que a cultura pode
ser antes algo assim como o que nos diz o jovem Nietzsche que ao
contrário da romana teria sido a grega, a saber algo assim como uma
physis nova e aperfeiçoada, sem interior nem exterior, sem convencio-
nalismo, sendo que como nos dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari
talvez até os próprios conceitos filosóficos possam ser sempre recriados
e tão percebidos e sentidos quanto pensados85. De acordo com o

85 Cf. id. in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de Santiago
Guervós), Consideraciones intempestivas II | De la utilidad y los inconvenientes de la historia
para la vida, in ed.cit.: “[...] el concepto griego de la cultura – en contraposición al
latino [romanisch] –, a saber, que la cultura es una physis nueva y perfeccionada, sin
interior ni exterior, sin [...] convencionalismo [...]”, in p. 748 in “10”. Cf. DELEUZE
et GUATTARI in tr.cit., op.cit.: “Criar conceitos sempre novos é o objectivo da
filosofia. É porque o conceito tem de ser criado que remete para o filósofo como
aquele que o tem em potência, ou que dele tem a potência e a competência. Não se
pode objectar que a criação se diz sobretudo do sensível e das artes, de tal modo a
arte faz existir entidades espirituais e de tal modo os conceitos filosóficos são
também «sensibilia». A falar verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igual-
mente criadoras, embora só à filosofia caiba criar conceitos em sentido restrito.”, in
p. 12 in “Introdução | Assim pois a questão...”, et “[...] as personagens conceptuais
280 DANIEL MOREIRA DUARTE

jovem Nietzsche isso nunca quereria dizer que os conceitos, ou as


palavras, alguma vez pudessem reproduzir os objectos da sensibilidade
ou quaisquer outros, dir-se-ia, tais quais eles são experienciados, ou
como imagens mentais, justamente porque como já referi, ou como
lemos também em “Descrição da retórica antiga”, toda a Linguagem
em todos os seus usos sem excepção seria metafórica, num sentido lato,
ou tropológica, melhor dizendo86, e assim mesmo resultante sempre
de um acto ou então de um acontecimento de criação, tratando-se de
resto de uma substituição desses objectos da experiência por outros
igualmente experienciados, dir-se-ia, mas completamente distintos
como são por exemplo as palavras enquanto sons articulados ou as
palavras escritas, dir-se-ia como é seja que coisa for que se tome por
representar outra coisa que não ela mesma, e sendo para mais que
para o Nietzsche de “Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral”
a Linguagem seria até duplamente metafórica, porque as próprias

são os sensibilia filosóficos, as percepções e afecções dos próprios conceitos


fragmentários: através deles, os conceitos não são apenas pensados, mas percebidos
e sentidos.”, in p. 118 in “5 | Functivos e conceitos”.
86 Cf. NIETZSCHE in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Manuel Barrios et

Alejandro Martín et Diego Sánchez Meca et Juan Luis Vermal), [, 1872?], Descripción
de la retórica antigua, in ed. Diego Sánchez Meca, Obras completas II Escritos filológicos, pp.
823-883: “Los artificios más importantes de la retórica son los tropos, las designa-
ciones impropias. Pero todas las palabras son en sí y desde el principio, en cuanto a
su significación, tropos. En vez de aquello que tiene lugar verdaderamente, pre-
sentan una imagen sonora que se evanece con el tiempo: el lenguaje nunca expresa
algo de modo completo, sino que exhibe solamente una señal que le parece deter-
minante. Cuando el retórico dice «vela» en vez de «barco», «ola» en lugar de «mar»
– a esto se llama sinécdoque –, se introduce una «coimplicación» [Mitumfassem] [...]. –
La segunda forma del tropus es la metáfora. Ésta no produce nuevas palabras, pero les
da un nuevo significado. Por ejemplo, para una montaña se habla de cima, pie,
espalda, gargantas, picos, vetas [...]. [...] la metáfora se muestra en [...] una
transposición [Übertragung] [...]. – Una tercera figura es la metonimia, la sustitución de
la causa y del efecto; por ejemplo, cuando el retórico dice «sudor» por «trabajo»,
«lengua» [Zunge] por «lenguaje» [Sprache]. Nosotros decimos «la pócima está
amarga» en vez de «excita en nosotros una sensación particular de esa clase»; «la
piedra es dura» como si «duro» fuese algo distinto de un juicio nuestro. [...]. – In
summa: los tropos no se añaden ocasionalmente a las palabras, sino que constituyen
su naturaleza más propia. No se puede hablar en absoluto de una «significación
propia», que es transpuesta a otra cosa sólo en determinados casos.”, in pp. 831-832
in “§ 3. Relación de la retórica con el lenguaje”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 281

imagens mentais, ou os próprios objectos da experiência sem serem


tomados por representar outros objectos da experiência, incluindo os
objectos da percepção, desde logo seriam também metáforas, quer
dizer coisas distintas do que seriam as coisas em si enquanto não
experienciadas, ou coisas distintas do que algo contraditoriamente
Nietzsche descreve com o conceito de estímulos nervosos que seriam
subjacentes às imagens, sendo em todo o caso que ao concluir que as
coisas em si distintas de todo o metafórico e ilusório Experienciado
seriam totalmente inapreensíveis o mesmo Nietzsche nos apresenta
uma versão do transcendentalismo: e no entanto, como ao mesmo
tempo parece pôr em dúvida a existência em si de tais coisas assim
distintas de toda e qualquer determinação inteligível ou sensível, de
todo e qualquer metafórico objecto da Experiência, Nietzsche parece
caminhar no sentido de um panteísmo transcendentalista, sendo pelo
menos que o que então claramente afirma é que da ocorrência de um
estímulo nervoso não cabe inferir a existência de uma causa exterior87.
Talvez aliás tanto faça estarmos assim a falar de sujeitos individuais,
quer dizer de plurais substâncias transcendentes à sensibilidade e
inteligibilidade ou como diria Pessoa transcendentes às coisas mate-
riais e espirituais imanentemente experienciadas por indivíduos, ou
estarmos a falar assim de um Subjectum transcendente a todo o Mundo
sensível e inteligível, na medida em que em ambos os casos se trata de

87 Cf. id. in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego
Sánchez Meca), Sobre verdad y mentira | en sentido extramoral, in ed.cit.: “¿Qué es una
palabra? La reproducción en sonidos articulados de un estímulo nervioso. Pero,
partiendo del estímulo nervioso, inferir además una causa existente fuera de
nosotros, eso ya es el resultado de un uso falso e injustificado del principio de razón.
Si la verdad fuese lo único decisivo en la génesis del lenguaje, si el punto de vista de
la certeza fuese asimismo lo único decisivo a la hora de fijar las designaciones, ¡cómo
íbamos a poder decir «la piedra es dura», como si conociéramos lo «duro» de otra
manera y no únicamente en cuanto excitación del todo subjetiva! [...]. La «cosa en
sí» (eso sería la verdad pura y sin consecuencias) es [...] totalmente inaprehensible y
no resulta en absoluto deseable para el creador de lenguaje. Éste designa tan sólo las
relaciones de las cosas con los seres humanos y para su expresión recurre a las
metáforas más atrevidas. ¡Un estímulo nervioso extrapolado en primer lugar en una
imagen! Primera metáfora. ¡La imagen transformada a su vez en un sonido
articulado! Segunda metáfora. Y en cada caso, un salto de esferas, adentrándose en
otra completamente distinta y nueva.”, in p. 611 in loc.cit..
282 DANIEL MOREIRA DUARTE

conceber de acordo com um panteísmo transcendentalista que a


Realidade não será nem o Indeterminado, ou seja nem o que por
transcendente teria de ser distinto de todo o possívelmente Determi-
nado, sendo então todo esse sensível e inteligível Determinado ima-
nente à Realidade e logo ilusório, e que nem pelo contrário será a
Realidade esse Determinado em si e logo a nenhuma real e não
ilusória transcendência imanente, o que faz todo o sentido lógico,
embora apenas lógico, partindo do pressuposto de que até a determi-
nação do que possa ou não ser a Realidade como sendo algo transcen-
dente e indeterminado, como qualquer outra determinação da mesma,
é por sua vez algo experienciado ou mundano e não seguramente o
seu ser em si: porém em “O nascimento da tragédia” o próprio Nietzsche
o que nos apresenta por filosofia é ainda em larga medida um já não
pessimista mas em todo o caso ainda tonalmente schopenhauriano e
não panteísta transcendentalismo, mesmo se não abstractamente mas
à semelhança do que segundo Pessoa aconteceria com o transcenden-
talismo panteísta na nova poesia portuguesa o apresenta de uma
forma figurativa, através nomeadamente da figura de Apolo, encar-
nando então esse deus grego a beleza, ou uma pulsão natural tendente
à conservação da mesma, e assim servindo o mesmo de exemplo
também para toda a demais e menos divina e bela Aparência, ou seja
constituindo-se Apolo como imagem divina de toda a individuação,
incluindo não apenas a de todo o indivíduo humano senão também a
de todas as demais coisas limitadas, ou com medida, quer dizer
justamente incluindo a determinação de todo o Determinado, ainda
que por menos belo e divino nem sempre tão bem conservado, e por
outro lado principalmente através da figura de Diónisos, encarnando
este pelo contrário o que schopenhaurianamente o jovem Nietzsche
diz ser uma pulsão da Natureza em direcção a um metafísico Ente
verdadeiro e Uno primordial, o qual no entanto nem propriamente
ente nem propriamente uno senão Ser e nem uno nem múltiplo seria,
já que é o mesmo jovem quem tampouco deixa de nos dizer que se
trata do Não-Individuado, do Contraditório, do Desmedido sem
limites, e assim mesmo de uma tendência destruidora e reconstruidora
por certo dolorosa do ponto de vista de todo o ser animado com a
pretensão de se manter em determinada ainda que aparente indi-
vidualidade sua, pelo que do que se tratará é de um Indeterminado
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 283

tido em “O nascimento da tragédia” por ser em si realmente trans-


cendente, ou transcendentemente real, por oposição a um irreal ser
em si de toda a relativa conservação e sobretudo de todo o inexorável
devir do imanentemente aparente, se é que portanto não se trata antes
do aparentemente imanente ao referido transcendente88. Semelhante
filosofia pessimista terá encontrado o jovem Nietzsche não apenas em

88 Cf. NIETZSCHE in tr. Joan B. Llinares (et Diego Sánchez Meca et Luis E. de
Santiago Guervós), El nacimiento de la tragedia, in ed.cit.: “La persona que filosofa tiene
[...] el presentimiento de que [...] debajo de esta realidad en la que vivimos y somos
está oculta una segunda realidad completamente diferente, esto es, que la primera
[...] es una apariencia; y al don que permite que los seres humanos y todas las cosas
se presenten en determinadas ocasiones como meros fantasmas o imágenes onírica,
Schopenhauer lo califica claramente como la señal distintiva de la aptitud
filosófica.”, in p. 339 in “1”, et “[...] habría que decir de Apolo que en él han
alcanzado su más sublime expresión la confianza imperturbable en ese principium y el
tranquilo estar ahí de todo el que se encuentra atrapado en él, e incluso se podría
designar a Apolo como la magnífica imagen divina del principium individuationis, con
cuyos gestos y miradas nos hablarían todo el placer y toda la sabiduría de la
«apariencia», en compañía de su belleza.”, in p. 340 in loc.cit., et “Esta divinización
de la individuación, cuando es pensada en general como si fuera imperativa e
impusiera prescripciones, sólo conoce una única ley, el individuo, es decir, el
mantenimiento de los límites del individuo, la mesura en sentido helénico. Apolo, en
cuanto divinidad ética, exige de los suyos la mesura y, para poder mantenerla,
conocimiento de sí mismo.”, in p. 349 in “4”, et “El individuo, con todos sus limites
y medidas, se hundió aquí en ese olvido de sí de los estados dionisíacos, y olvidó los
preceptos apolíneos. La desmesura se reveló como verdad, la contradicción, la delicia
nacida de los dolores hablaron de ellas mismas desde el corazón de la naturaleza. Y
de este modo, en todos los lugares donde penetró lo dionisíaco quedó superado y
aniquilado lo apolíneo.”, in p. 350 in loc cit., et “[...] fenómeno dionisíaco, el cual
vuelve una y otra vez a revelarnos, como emanación de un placer primordial, la
lúdica construcción y destrucción del mundo individual [...]”, in p. 436 in “24”, et
“En efecto, cuanto más advierto en la naturaleza aquellas pulsiones artísticas
omnipotentes, y, en ellas, un ferviente anhelo de apariencia, de ser redimidos
mediante la apariencia, tanto más me siento obligado a la hipótesis metafísica de
que el Ente-verdadero y Uno-primordial, en cuanto es lo eternamente sufriente y
lleno de contradicción, necesita a la vez, para su permanente redención, la visión
extasiante, la apariencia placentera: nosotros, que estamos completamente presos en
esa apariencia y que consistimos en ella, nos vemos forzados a sentirla como el
noente-verdadero, es decir, como un continuo devenir en el tiempo, el espacio y la
causalidad, dicho con otras palabras, como la realidad empírica.”, in p. 348 in “4”,
[; cf. SCHOPENHAUER, Arthur, Parerga e Paralipomena: “[...]”, in 61-67].
284 DANIEL MOREIRA DUARTE

Schopenhauer senão também em Anaximandro, ao considerar que


para esse grego arcaico todo o Determinado e todo o seu devir e
perecer e toda a sua pluralidade dependeriam, como uma mascarada
ilusória ou um relativo não-ser, de uma matéria primordial, ou de um
ser originário e eternamente uno, por assim dizer, que elevado acima
de toda essa múltipla e mutável determinação dos objectos e dos
sujeitos não poderia ser senão o Indeterminado: e no entanto não é já
sem certo criticismo que em “A Filosofia na época trágica dos gregos”
Nietzsche aprecia semelhante transcendentalismo, independente-
mente de se tratar de acordo também com a classificação do Pessoa de
“A Águia” de um transcendentalismo materialista, pois do que em
todo o caso na essência se trataria é de uma metáfora sumamente
antropomórfica, de uma transposição do valor moral da existência dos
Homens para a existência de todas as coisas determinadas, de forma
que tal como seria fundamentalmente malvada a natureza de toda a
vida humana assim transcendentalisticamente seria injusto, ainda que
não como com o cristianismo e na modernidade responsavelmente
culpável, todo o devir determinado, toda a emancipação do ser eterno
e indeterminado, que com a morte ou com o devir indeterminado ou
determinado como algo de outro e com o consequente sofrimento se
expiaria,89 começando nós então para mais a notar uma evolução do
89Cf. NIETZSCHE in tr. Luis Enrique de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et
Diego Sánchez Meca), La filosofía en la época trágica de los griegos, in ed.cit.: “Anaximandro
de Mileto [...]: «De donde las cosas tienen su origen, allí deben también perecer
según la necesidad; pues deben expiar sus culpas con una penitencia y ser conde-
nados por sus injusticias, conforme al orden del tiempo». ¿Cómo interpretaremos
esta sentencia enigmática de un verdadero pesimista, una inscripción oracular en la
piedra fronteriza de la filosofía griega?”, in p. 582 in “4”, et “Quien descubre esta
enseñanza, a partir de la fisionomía de nuestro humano destino común, y reconoce
la naturaleza fundamentalmente malvada de toda vida humana [...]; quien como
Schopenhauer ha oído en las «cumbres de la atmósfera hindú» la palabra sagrada
sobre el valor moral de la existencia, difícilmente podrá evitar hacer una metáfora
sumamente antropomórfica y extraer esa triste enseñanza de los límites de la vida
del hombre, y aplicarla mediante una transposición al carácter general de toda
existencia. Puede ser que esto no sea lógico, pero en todo caso es muy humano [...]
considerar ahora con Anaximandro todo devenir como una emancipación del ser
eterno digna de castigo, como una injusticia que debe ser expiada con la muerte.
Todo lo que ha llegado a ser una vez, también perece, ya sea que pensemos en la
vida humana o en el agua, o bien en el calor y en el frío: en cualquier parte en la
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 285

que sean percibidas determinadas cualidades, podemos profetizar el fin de estas


cualidades según una prueba abrumadora de la experiencia. Para que el devenir no
cese, el ser originario debe ser indeterminado. La inmortalidad y la eternidad del ser
originario no consisten en su infinitud e inagotabilidad – como commúnmente
sostienen los intérpretes de Anaximandro, sino en el hecho de que tal ser está
privado de las cualidades determinadas que conducen a la muerte: por eso es
llamado también «lo indeterminado». El ser originario así llamado se eleva por
encima del devenir y precisamente por eso garantiza la eternidad y el libre curso del
devenir. Esta unidad última que se contiene en eso «indeterminado», la matriz de
todas las cosas, puede ser designada por el hombre sólo negativamente, como algo a
lo que no se le puede atribuir ningún predicado tomado del mundo del devenir
presente, por eso esa unidad última podría ser equivalente a la «cosa en sí» kantiana.
| [...] materia primordial [...]”, in pp. 582-583 in loc.cit., et “Tales muestra la
necesidad de simplificar el reino de la pluralidad reduciéndolo a un mero despliegue
o a un enmascaramiento de la única cualidad real, el agua. Anaximandro lo supera,
dando dos pasos más allá. Se pregunta ante todo: «si existe verdaderamente una
unidad eterna, ¿cómo es posible entonces esa pluralidad?» Y obtiene la respuesta del
carácter contradictorio, autodestructivo y negador de esta pluralidad. La existencia
de esa pluralidad se convierte para él en un fenómeno moral, no está justificada, sino
que se expía continuamente a través de la muerte. Pero entonces se le ocurre la
siguiente pregunta: ¿Por qué todo lo que ha devenido no ha perecido hace ya
tiempo, puesto que ya ha transcurrido toda una eternidad? ¿De dónde proviene el
flujo constantemente renovado del devenir? Sólo mediante posibilidades míticas
puede librarse de esta pregunta [...]”, in p. 584 in loc.cit. [; cf. ANAXIMANDRO:
“[...]”, in 1; cf. SCHOPENHAUER, Parerga e Paralipomena II: “[...]”, in 156 in cap. 12].
Cf. DELEUZE, op.cit.: “L’existence comme démesure, l’existence comme hybris et
comme crime, voilà la manière dont les Grecs, déjà, l’interprétaient et l’évaluaient.
[...] Interprétation si séductrice que Nietzsche, dans l’Origine de la tragédie, ne sait pas
encore lui résister et la porte au bénéfice de Dionysos. Mais il lui suffira de découvrir
le vrai Dionysos pour voir le piège qu’elle cache ou la fin qu’elle sert : elle fait de
l’existence un phénomène moral et religieux !”, in p. 22 in “9) Le problème de
l’existence” in loc.cit., et “Anaximandre est le philosophe qui, selon Nietzsche,
donna son expression parfaite à cette conception de l’existence.” et “Schopenhauer
est une sorte d’Anaximandre moderne. Qu’est-ce qui plaît tant à Nietzsche, chez
l’un comme chez l’autre, et qui explique que, dans l’Origine de la tragédie, il est encore
fidèle en général à leur interprétation ? Sans doute est-ce leur différence avec le
christianisme. Ils font de l’existence quelque chose de criminel, donc de coupable,
mais non pas encore quelque chose de fautif et de responsable.”, in p. 23 in loc.cit.,
et “Par rapport au christianisme, les Grecs sont des enfants. Leur façon de déprécier
l’existence, leur «nihilisme», n’a pas la perfection chrétienne. Ils jugent l’existence
coupable, mais ils n’ont pas encore inventé ce raffinement qui consiste à la juger
fautive et responsable. Quand les Grecs parlent de l’existence comme criminelle et
286 DANIEL MOREIRA DUARTE

jovem Nietzsche no sentido da explicitação de uma preferência no


mínimo moral, ou estética, por uma filosofia menos moralista como
aquela que diz ser a de Heráclito, segundo a qual em termos todavia
antropomorficamente metafóricos mas com um sentido extra-moral
todo o devir e todo o correspondente múltiplo seriam antes inocentes
e justos, não obstante ser então a justiça, ou a harmonia, como a
verdade, aquela que regeria a luta entre contrários em que o próprio
múltiplo e devir consistiria, assim não consistindo o mesmo devir e
múltiplo do ponto de vista da sua totalidade sobrehumana na expia-
ção de qualquer culpa nem em qualquer dor senão pelo contrário na
alegria de um jogo infantil e artístico de construção e destruição, ou
reconstrução, que o próprio Zeus, ou o próprio fogo e logos, ou o
próprio tempo, ou o próprio mundo, dir-se-ia, consigo mesmo jogaria,
o que é como quem diz que os opostos jogadores, ou os lutadores, não
se distinguiriam dos próprios deuses, não se distinguiriam dos juízes,
ou dos árbitros, da contenda, cujas invioláveis leis, ou regras, seriam
por isso mesmo imanentes, não estabelecendo portanto Heráclito
qualquer separação entre um mundo físico e outro metafísico, entre
um reino das qualidades determinadas e um reino da indeterminação
indefinível, não querendo isso dizer que tomasse quaisquer umas
dessas múltiplas qualidades determinadas por serem por sua vez
essências eternas mais além do que fosse apenas aparente, chegando
Heráclito pelo contrário a dizer até que a Linguagem fixando nomes
de coisas é que criaria a ilusão essa sim de elas terem duração, assim
negando o próprio ser enquanto permanência de toda e qualquer
determinação e afirmando antes o próprio devir e múltiplo, por uma
dupla afirmação aliás o afirmando como verdadeiro ser e unidade e
não como algo de negativo o valorizando, o que de resto é como se
assim negando toda e qualquer permanência de algo determinado que
não deviesse e todo o transcendente fizesse passar o próprio indetermi-
nado por Imanente também ele ao determinado, ou vice-versa,
apresentando-nos em todo o caso uma filosofia que para além de
panteísta, ou por isso mesmo, independentemente da evolução e das

«hybrique», ils pensent que les dieux ont rendu fous les hommes : l’existence est
coupable, mais ce sont les dieux qui prennent sur eux la responsabilité de la faute.”, in p. 25 in
loc.cit.. Cf. n. 42.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 287

hesitações por que também o próprio Heráclito tenha passado, bem


parece ser monista90. Curioso então é que o Pessoa de “A Águia” nos

90 Cf. NIETZSCHE in tr.cit., op.cit., in ed.cit.: “En medio de esta noche mística, que
había envuelto el problema del devenir de Anaximandro, apareció Heráclito de Éfeso,
y la iluminó con un relámpago divino. «Contemplo el devenir [...]. ¿Y qué es lo que
veo? Regularidades, certezas infalibles, siempre las mismas vías de la justicia [...] no
[...] el castigo de lo que ha devenido, sino la justificación del devenir. [...] donde sólo
rige la ley y la hija de Zeus, Diké, como en este mundo, ¿cómo podría existir la
esfera de la culpa, de la expiación, de la condena y, por decirlo así, el patíbulo de
todos los condenados[?]»”, in pp. 584-585 in “5”, et “[...] Heráclito ya no establece
la separación entre un mundo físico y otro metafísico, entre un reino de las
cualidades determinadas y un reino de la indeterminación indefinible. Ahora,
después de este primer paso, ya no podía detenerse ante una negación bastante más
audaz: negó el ser en general. Pues este único mundo que él conservaba – protegido
por leyes eternas no escritas, fluyendo y refluyendo al compás férreo del ritmo – no
revela por ninguna parte una permanencia, una indestructibilidad, una barrera que
detenga la corriente. Con mayor fuerza que Anaximandro exclama Heráclito: «Lo
único que veo es devenir. ¡No os dejéis engañar! Depende de vuestra miopía y no de
la esencia de las cosas, el que creáis ver tierra firme en algún lugar del mar del
devenir y del perecer. Usáis los nombres de las cosas, como si tuviesen una duración
constante: pero incluso el río en el que os bañáis por segunda vez ya no es el mismo
río en el que lo hicisteis la primera».”, in p. 585 in loc.cit., et “De la lucha entre los
opuestos surge todo devenir: las cualidades determinadas que se nos presentan como
duraderas, no expresan más que el momento de supremacía de uno de los
combatientes, pero la guerra no se termina con esto, la lucha continúa por toda la
eternidad. Todo sucede según esta contienda y justamente esta contienda revela la
justicia eterna. Se trata de una idea maravillosa, que emana de la fuente más pura
del helenismo, que considera la contienda como el gobierno continuo de una justicia
unitaria y rigurosa ligada a leyes eternas. [...]. Cada griego lucha como si él fuese el
único que tiene razón, en cada instante hay un juez que juzga con un criterio
infinitamente seguro, hacia qué lado se inclina la victoria, y del mismo modo las
cualidades luchan entre sí, siguiendo leyes y criterios inviolables e inmanentes a la
lucha.”, in pp. 586-587 in loc.cit., et “[...] ya no pudo considerar por separado las
parejas de los contendientes e los jueces, incluso parecía que los jueces luchaban y
los mismos contendientes parecía que se juzgaban a sí mismos – y puesto que en el
fondo percibía solamente el dominio eterno de una sola justicia, se atrevió a
exclamar: «¡la lucha de la pluralidad constituye ella misma la única justicia! Y, en
general: la unidad es la pluralidad. [...]»”, in pp. 587-588 in “6”, et “El mundo es el
juego de Zeus o, expresado físicamente, es el juego del fuego consigo mismo, sólo en
este sentido lo uno es al mismo tiempo lo múltiple.”, in p. 588 in loc.cit., et “Esa
peligrosa palabra, hybris, es en realidad la piedra de toque para todo seguidor de
Heráclito [...]. ¿Existen en este mundo la culpa, la injusticia, la contradicción, el
288 DANIEL MOREIRA DUARTE

dolor? | Sí, exclama Heráclito, pero sólo para los hombres limitados que
contemplan las cosas separadamente y no en su unidad, no para el dios que intuye el
todo: para este último todos los contrarios fluyen juntos en una armonía [...]. Un
devenir y un perecer, un construir y un destruir, sin ninguna atribución moral y en
una inocencia eternamente igual, se dan sólo en este mundo en el juego del artista y
del niño. Y así como juegan el niño y el artista, juega el fuego eternamente vivo,
construye y destruye inocentemente – y éste es el juego del «eón» que juega consigo
mismo.”, in p. 590 in “7” [; cf. HERÁCLITO: “[...]”, in 91 et 12 et 49ª et 80 et 53 et
90 et 66 et 64 et 118 et 102 et 51 et 8 et 54 et 52; cf. DIÓGENES LAERCIO: “[...]”, in
8 in IX]. Cf. DELEUZE, op.cit.: “[...] Nietzsche s’apercevra [...]. Quand on pose
l’existence coupable, il s’en faut d’un pas pour la rendre responsable [...]. Qu’un
dieu prenne sur lui la responsabilité de la folie qu’il inspire aux hommes, ou que les
hommes soient responsables de la folie d’un Dieu qui se met en croix, les deux
solutions ne sont pas encore assez différentes, bien que la première soit
incomparablement plus belle. En vérité, la question n’est pas : l’existence coupable
est-elle responsable ou non ? Mais l’existence est-elle coupable... ou innocente ? Alors
Dionysos a trouvé sa vérité multiple : l’innocence, l’innocence de la pluralité,
l’innocence du devenir et de tout ce qui est.”, in p. 25 in loc.cit., et “Héraclite est le
penseur tragique. Le problème de la justice traverse son œuvre. Héraclite est celui
pour qui la vie est radicalement innocente et juste. Il comprend l’existence à partir
d’un instinct de jeu, il fait de l’existence un phénomène esthétique, non pas un phénomène
moral ou religieux. Aussi Nietzsche l’oppose-t-il point par point à Anaximandre,
comme Nietzsche lui-même s’oppose à Schopenhauer. – Héraclite a nié la dualité
des mondes, «il a nié l’être lui-même». Bien plus : il a fait du devenir une affirmation. [...].
Sans doute est-ce dire, en premier lieu : il n’y a que le devenir. Sans doute est-ce
affirmer le devenir. Mais on affirme aussi l’être du devenir, on dit que le devenir
affirme l’être ou que l’être s’affirme dans le devenir. Héraclite a deux pensées, qui
sont comme des chiffres : l’une selon laquelle l’être n’est pas, tout est en devenir ;
l’autre selon laquelle l’être est l’être du devenir en tant que tel. [...]. Ces deux
pensées ne sont pas séparables, étant la pensée d’un même élément, comme Feu et
comme Dike [...]. Car il n’y a pas d’être au-delà du devenir, pas d’un au-delà du
multiple ; ni le multiple ni le devenir ne sont des apparences ou des illusions. Mais il
n’y a pas non plus de réalités multiples et éternelles qui seraient, à leur tour, comme
des essences au-delà de l’apparence. Le multiple est la manifestation inséparable, la
métamorphose essentielle, le symptôme constant de l’unique. Le multiple est
l’affirmation de l’un, le devenir, l’affirmation de l’être. L’affirmation du devenir est
elle-même l’être, l’affirmation du multiple est elle-même l’un, l’affirmation multiple
est la manière dont l’un s’affirme.” in p. 27 in “Existence et innocence” in loc.cit., et
“Héraclite a regardé profondément : il n’a vu aucun châtiment du multiple, aucune
expiation du devenir, aucune culpabilité de l’existence. Il n’a rien vu de négatif dans
le devenir, il a vu tout le contraire : la double affirmation du devenir et de l’être du
devenir, bref la justification de l’être.”, in p. 28 in loc.cit.. Cf. n. 42.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 289

diga que por admitir a realidade igual de ambos os elementos da


Experiência, referindo-se assim ao espírito e à matéria, o panteísmo
seria um absurdo de sistema: sê-lo-ia deveras se deveras se tratasse de
elementos, ou de duas distintas substâncias, sê-lo-ia deveras se só
transcendentalistico-panteisticamente fosse possível afirmar aquela
materialização do espírito e espiritualização da matéria de que o
mesmo Pessoa nos fala, sendo no entanto que o que transcenden-
talistico-panteisticamente ele nos afirma não é exactamente só isso,
não é exactamente que o ser espiritual da matéria e o ser material do
espírito, mas sim que toda essa Matéria espiritualizada, ou que todo
esse Espírito materializado, quer dizer que toda a Experiência,
justamente, ou que todo o Experimentado, melhor dizendo, que todo
o Objecto material e espiritual seria ao mesmo tempo real, como se
panteisticamente nada lhe fosse transcendente, e irreal, como se
transcendentalisticamente se tratasse de algo imanente a um Subjectum
elevado à máxima potência. Ora, e o que parece assim, se de resto já
tínhamos notado alguma primazia dada pelo jovem Pessoa ao que é
experimentado como espiritual, ou como interior a um sujeito, é que
por sua vez semelhante primazia é dada pelo mesmo transcenden-
talista panteísta não a todo o Objecto espiritual e materialmente expe-
rimentado mas sim a um respectivo Subjectum transcendente: não
obstando isto, claro está, à ideia de que tanto esse Objecto como esse
Subjectum seriam e não seriam a Realidade, sendo a verdade suprema e
essência do universo a própria contradição, mas sendo o subjectivo
Transcendente em todo o caso percebido pelo aguilista sujeito
pessoano como algo um tanto mais real, ou pelo menos mais valioso,
do que o objectivo Imanente. É aliás o próprio Pessoa de “A Águia”
quem nos diz que apesar da referida exigência racional de um
monismo, por sua própria natureza de duplamente, interiormente e
exteriormente, percipiente, nunca poderia o dito espírito humano
completamente deixar de pensar em termos de um dualismo qual-
quer: mas se é que aceitamos essa duplamente percipiente natureza, se
é que desconsideramos a possibilidade cultural de construção de uma
experiência das coisas como não sendo interiores nem exteriores para
que já apontei, não será então em todo o caso, ou ainda assim,
preferível pelo menos moralmente sobrevalorizar antes o Objectivo e
Imanente, quanto mais não seja para não corrermos o risco do
290 DANIEL MOREIRA DUARTE

conservadorismo que Deleuze e Guattari associam à concepção do


Imanente como sendo imanente a qualquer coisa de Outro que ao
longo da história da Filosofia muitas vezes parece apenas como no
transcendentalismo panteísta de Pessoa tornar-se mais refinadamente
Transcendente91? Interessante também, tendo em conta de resto a

91 Cf. DELEUZE et GUATTARI in tr.cit., op.cit.: “Poder-se-á apresentar toda a


história da filosofia sob o ponto de vista da instauração de um plano de imanência?
Distinguiríamos então os fisicalistas, que insistem sobre a matéria do Ser, e os
noologistas, sobre a imagem do pensamento. Mas muito rapidamente surge um risco
de confusão: enquanto o plano de imanência constitui ele próprio essa matéria do
Ser ou essa imagem do pensamento, seria a imanência que estaria relacionada com
qualquer coisa que seria como um “dativo”, Matéria ou Espírito. É o que se torna
evidente com Platão e os seus sucessores. Enquanto um plano de imanência constitui
um Uno-Todo, a imanência está “no” Uno, de tal modo que um outro Uno,
transcendente desta vez, se sobrepõe àquele em que a imanência se estende ou ao
qual é atribuída: sempre um Uno para além do Uno, será esta a fórmula dos
neoplatónicos. Cada vez que se interpreta a imanência como estando “em”
qualquer coisa, produz-se uma tal confusão do plano e do conceito que o conceito se
torna um universal transcendente, e o plano, um atributo no conceito. Assim
menosprezado, o plano de imanência volta a lançar o transcendente: é um simples
campo de fenómenos que só possui já em segundo lugar o que se atribui primeiro à
unidade transcendente. | Com a filosofia cristã a situação piora. A posição de
imanência permanece a instauração filosófica pura, mas ao mesmo tempo aquela só
é suportada em pequeníssimas doses, é severamente controlada e enquadrada pelas
exigências de uma transcendência emanativa e sobretudo criativa. Cada filósofo tem
de apresentar provas, com risco da sua obra e por vezes da própria vida, de que a
dose de imanência por ele injectada no mundo e no espírito não compromete a
transcendência de um Deus ao qual só secundariamente a imanência deve ser
atribuída (Nicolau de Cusa, Eckart, Bruno). A autoridade religiosa quer que a
imanência só seja suportada localmente ou a um nível intermédio, um pouco como
uma fonte em patamares onde a água pode estar brevemente imanente em cada
patamar, mas com a condição de vir de uma fonte mais alta e ir cair mais abaixo
(transascendência e transdescendência, como dizia Wahl). Da imanência, pode-se
pensar que é a pedra de toque escaldante de toda a filosofia, pois chama a si todos os
perigos que esta tem de enfrentar, todas as condenações, perseguições e negações
que sofre. O que ao menos convence de que o problema da imanência não é
abstracto ou meramente teórico. À primeira vista, não se percebe porque é que a
imanência será tão perigosa, mas é assim. Ela devora os sábios e os deuses. A parte
da imanência, ou a parte do fogo, por aí se conhece o filósofo. A imanência só é
imanente a si própria e a partir daí agarra tudo, absorve Tudo-Uno e não deixa
subsistir nada a que pudesse vir a ser imanente. De qualquer modo, sempre que se
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 291

transformação da negativa alétheia em verdade positiva para que


através da história apontei, seria apreciar o positivo valor dado à
negação e à contradição na produção dessa síntese dialéctica que seria
afinal o transcendentalismo panteísta relativamente à dupla afirmação
da pluralidade espácio-temporal de opostos que com Heráclito e
Nietzsche encontrámos 92 : se isso porém mais ainda obstaria à

interpreta a imanência como imanente a Algo, podemos ter a certeza de que esse
Algo reintroduz o transcendente. | A partir de Descartes, e com Kant e Husserl, o
cogito torna possível tratar o plano de imanência como um campo de consciência. É
que a imanência é suposta ser imanente a uma consciência pura, a um sujeito pen-
sante. A esse sujeito chamará Kant transcendental e não transcendente, precisa-
mente porque é o sujeito do campo de imanência de toda a experiência possível ao
qual nada escapa, tanto o exterior como o interior. Kant recusa qualquer uso trans-
cendente da síntese, mas relaciona a imanência com o sujeito da síntese como nova
unidade, unidade subjectiva. Pode até dar-se ao luxo de denunciar as ideias trans-
cendentes para fazer delas o “horizonte” do campo imanente ao sujeito. Mas, ao
fazer isto, Kant descobre a maneira moderna de salvar a transcendência: não é já a
transcendência de um Algo ou de um Uno superior a todas as coisas (contemplação),
mas a de um Sujeito ao qual o campo de imanência não é atribuído sem pertencer a
um eu que necessariamente se representa a si próprio esse sujeito (reflexão). O
mundo grego que não pertencia a ninguém torna-se cada vez mais propriedade de
uma consciência cristã.”, in pp. 44-45 in “Exemplo III” in “2 | O plano de
imanência”.
92 Cf. DELEUZE, op.cit.: “Le «oui» de Nietzsche s’oppose au «non» dialectique ;

l’affirmation, à la négation dialectique ; la différence, à la contradiction dialectique ;


la joie, la jouissance, au travail dialectique [...]”, in p. 10 in “4) Contre la
dialectique” in loc.cit., et “[...] qu’est-ce que veut le dialecticien lui-même ? Qu’est-
-ce qu’elle veut, cette volonté qui veut la dialectique ? Une force épuisée qui n’a pas
la force d’affirmer sa différence, une force qui n’agit plus, mais réagit aux forces qui
la dominent : seule une telle force fait passer l’élément négatif au premier plan dans
son rapport avec l’autre, elle nie tout ce qu’elle n’est pas et fait de cette négation sa
propre essence et le principe de son existence.”, in pp. 10-11 in loc.cit., et “[...]
Nietzsche présente la dialectique comme la spéculation de la plèbe, comme la
manière de penser de l’esclave : la pensée abstraite de la contradiction l’emporte
alors sur le sentiment concret de la différence positive, la réaction sur l’action, la
vengeance et le ressentiment prennent la place de l’agressivité. Et Nietzsche
inversement montre que ce qui est négatif chez le maître est toujours un produit
secondaire et dérivé de son existence. Aussi bien, ce n’est pas la relation du maître et
de l’esclave qui, en elle-même, est dialectique. Qui est dialecticien, qui dialectise la
relation ? C’est l’esclave, le point de vue de l’esclave, la pensée du point de vue de
l’esclave. L’aspect dialectique célèbre de la relation maître-esclave, en effet, dépend
292 DANIEL MOREIRA DUARTE

brevidade, acabando por nos levar para além do âmbito textual do


jovem Nietzsche, não deixemos de nos lembrar do reconhecimento
em “Ecce homo” de que de “O nascimento da tragédia” se desprenderia
ainda um repugnante odor hegeliano93 e notemos que terminando
muito embora o seu raciocínio transcendentalisto-panteísta com a
expressão “e assim” “complexa e indefinidamente” o jovem Pessoa de
“A Águia” dá por exemplo único e eterno dessa metafísica da nova
poesia portuguesa precisamente a teleologia de Hegel, por sinal uma
filosofia do fim da História.94 Ora, e se assim sobre mais ou menos
certas tensões e divergências vimos nós entre Pessoa e Nietzsche a
versar talvez a respeito de semelhantes assuntos mais uma ou outra
entre o Pessoa de “A Águia” e outras facetas suas como entre ele e
alguns dos designáveis de renascentistas portugueses possamos rápida-
mente assinalar, sendo aliás que já enquanto aguilista parece Pessoa
em tensão com o seu próprio espiritualismo e o da nova poesia
portuguesa, desde logo por toda a ideia do ser o espírito materializado
a que me venho referindo, claro, mas também mais em particular por
ser com um artigo sobre “A nova poesia portuguesa sociologicamente
considerada” que se estreia na revista, declarando logo à partida que

de ceci : que la puissance y est conçue, non pas comme volonté de puissance, mais
comme représentation de la puissance, comme représentation de la supériorité,
comme reconnaissance par «l’un» de la supériorité de «l’autre». Ce que les volontés
veulent chez Hegel, c’est faire reconnaître leur puissance, représenter leur puissance. Or,
selon Nietzsche, il y a là une conception totalement erronée de la volonté de
puissance et de sa nature. Une telle conception est celle de l’esclave, elle est l’image
que l’homme du ressentiment se fait de la puissance. C’est l’esclave qui ne conçoit la
puissance que comme objet d’une recognition, matière d’une représentation, enjeu d’une compétition, et
donc qui la fait dépendre, à l’issue d’un combat, d’une simple attribution de valeurs établies. Si la
relation du maître et de l’esclave emprunte aisément la forme dialectique, au point
d’être devenue comme un archétype ou une figure d’école pour tout jeune hégélien,
c’est parce que le portrait que Hegel nous propose du maître est, dès le début, un
portrait fait par l’esclave, un portrait qui représente l’esclave, au moins tel qu’il se
rêve, tout au plus un esclave arrivé. Sous l’image hégélienne du maître, c’est toujours
l’esclave qui perce.”, in p. 11 in loc.cit..
93 Cf. NIETZSCHE in tr. Andrés Sánchez Pascual, Ecce homo | Cómo se llega a ser lo que

se es [, 1888], Madrid, Alianza Editorial, ed. “revisada” 1998 imp. 2005: “[...] El
nacimiento de la tragedia [...] desprende un repugnante olor hegeliano [...]”, in p. 76 in
“1” in “El nacimiento de la tragedia”.
94 Cf. n. 71.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 293

face à incompreensão desse movimento poético por parte da opinião


pública e face à própria falta de consciência de si mesmo desse ainda
embrionário movimento urgiria pôr de parte misticismos de pensa-
mentos e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo o
interesse alegre do inimigo social, e usar em vez disso de raciocínios e
de cingentes análises para penetrar de forma lógica no valor e na
significação da nova poesia95, e considerando em “A nova poesia
portuguesa no seu aspecto psicológico” que essa primeira análise do
aspecto sociológico seria mais envolvente do que a dos aspectos
literário e psicológico e que um estudo literário completo seria em
grande parte, ou ultimamente mesmo, um estudo sociológico, dado
ser uma corrente literária basilarmente uma corrente social: e no
entanto considera o mesmo Pessoa que pouco importaria começar por
esse aspecto primeiro e não pelos outros dois, já que os três se
interexplicariam e se completariam numa interpretação sintética e
integral96. Talvez de resto o Pessoa de “A Águia” pretendesse assim

95 Cf. PESSOA, “A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada”, in


dir.cit. et ed.cit.: “Ao movimento litterario representativo e peculiar da nascente
geração portugueza tem sido feito pela opinião pública o favor de o não
comprehender.” et “[...] e [...] não tomou ainda consciencia de si como o que
realmente é, porquanto o movimento poetico actual é ainda embryão [...]” et “Urge
que – pondo de parte mysticismos de pensamentos e de expressão, uteis apenas para
despertar pelo ridiculo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse
alegre do inimigo social – com raciocinios e cingentes analyses se penetre na
comprehensão do actual movimento poetico portuguez, se pergunte á alma
nacional, n’elle espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de
comprehensibilidade logica o valor e a significação, perante a sociologia, d’esse
movimento litterario e artistico.”, in p. 101 in “I”.
96 Cf. id., “A Nova Poesia Portuguesa no seu aspecto Psicológico”, in [dir.cit. et

ed.cit., in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa, http://arquivopessoa.net/textos/3101


(2014\III\26): “No estudo – suponha-se – de uma qualquer corrente literária,
importa pouco sob qual dos três aspectos primeiro a examinarmos, logo que sob
todos os três aspectos sucessivamente e completamente o assunto se raciocine. Como
fenómeno literário, como fenómeno psíquico, como fenómeno social, sucessiva-
mente analisada, os três aspectos de uma corrente interexplicam-se e completam-se,
fornece cada qual elementos especiais e essenciais para a interpretação sintética e
integral da corrente.” et “Começámos pela análise sociológica porquanto, sendo essa
a mais envolventemente explicativa das três, de princípio ficava, posta ela
inicialmente, abrangido em todo o seu valor e superfície o movimento literário
294 DANIEL MOREIRA DUARTE

situar-se algures entre ou sinteticamente além de o espiritualismo de


Teixeira de Pascoaes e por exemplo o materialismo que este viria a
atribuir a António Sérgio, para quem o progresso não exactamente
espiritual mas moral dependeria do progresso económico e das
energias do presente mais do que das do passado que apenas se as do
presente delas necessitassem por assim dizer ressuscitariam, como se
de um modelo criativamente interpretado se tratasse, à semelhança do
que como vimos seria segundo o jovem Nietzsche a utilidade da
história ao serviço da vida que é presente e futura, quer dizer que
ainda é ou pode vir a ser vida: aliás, o criticismo e a eliminação por
absorção do estrangeiro que como sugeri já o aparentemente pré-
-modernista Pessoa encontra nos transformadores períodos e épocas
literários e civilizacionais, juntamente com a identificação que
reconhece existir entre a tradição nacional e as influências de outras
nações, parece estar na verdade algo mais próxima de algum do
cosmopolitismo de Sérgio, assim como por outro exemplo de Raul
Proença, do que do nacionalismo movido em direcção ao futuro mas
a partir do passado nacional como suposto princípio motor de
Pascoaes, sendo para mais no mínimo curioso que ao defender certo
anti-tradicionalismo e defendendo-se não obstante da ideia de que
pretenderia eliminar do presente todo o passado, referindo-se como
Pascoaes nomeadamente a Camões, Sérgio lembre não ser ele quem
criticamente prevê a superação desse poeta por um novo poeta
português 97 . Em todo o caso, se talvez por nunca a realizar

estudado.” [in p. 86 in “I”] et “[...] uma corrente literária é basilarmente, e


representativamente, uma corrente social; tanto assim que – como o temos indicado
teoricamente já aqui, e praticamente na feição realizada do nosso anterior artigo –
um estudo literário completo é, em grande parte – e máximo e ultimamente mesmo
– um estudo sociológico.” [in p. 88 in “II”].
97 Cf. SÉRGIO, António, “Regeneração e tradição, moral e economia”, in [dir.

Teixeira de Pascoaes et António Carneiro et José de Magalhães et ed. Álvaro Pinto,


A Águia II 25, Porto, A Renascença Portuguesa, 1914\I, in] ed. Marieta Dá
Mesquita, A Águia, Lisboa, Publcações Alfa, 1989: “Não são as energias do passado
que suscitam as do presente, mas as energias do presente que ressuscitam as do
passado.” et “«Ai de nós se não tivéramos passado», exclama o Pascoais convicta-
mente: «nele murmura a fonte onde bebemos novas energias!» Em sua opinião,
«uma pátria necessita de se firmar constantemente na sua individualidade esculpida
pelos séculos». Já lhe não falo nessas pátrias que se reformam aos nossos olhos, por
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 295

cabalmente Pessoa parece manter ao longo da vida a aspiração


sintética patente nas suas colaborações para a revista “A Águia”,
parece também não ficar fixado nas mesmas apreciações literárias de
então e parece aliás às vezes abandonar deveras aquela tendência para
sobrevalorizar o dito espírito sobre que vimos versando: parece por
exemplo num texto aparentemente destinado em algum momento a
fazer parte de um artigo a publicar ainda na mesma revista considerar
que é pelo contrário a partir do dito material que a própria

oposição ao seu passado: para um puro lusitano, um japonês não é gente; mas nada
me impede de perguntar: e antes das pátrias terem séculos? Como se formaram
pátrias novas sem as energias necessárias de um passado inexistente?” et “Pois eu
pretendo realmente eliminar Camões? Dir-se-ia que fui eu quem lhe previu o
caimento – para breve (muito breve!) –, quando aparecesse o Superdito, matema-
ticamente anunciado. Qual de nós todos será ele, bom amigo, qual será? Eu cá não
sou: palavra de honra que não sou! | | Passemos à materialidade com que me
emblema [...]. | O meu amigo pretende primeiro o progresso espiritual; obtido ele,
«o resto nos será dado em excesso». Ora a minha tese é que o progresso moral de um povo está
dependente do seu progresso económico.”, in p. 54 in “Capítulo II | Polémica sobre o
saudosismo”. Cf. n. 83. Cf. n. 63. Cf. PROENÇA, Raul, “A Renascença Portuguesa”,
in dir. Jaime Cortesão, A Vida Portuguesa 22, Porto, Renascença Portuguesa,
1914\X\10, pp. 11-12: “Que fazer então? Pôr a sociedade portuguêsa em contacto
com o mundo moderno, fazê-la interessar pelo que interessa os homens lá de fóra,
dar-lhe o espirito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o
ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionaes. Temos de
aplicar a nós mesmos, por nossa conta, esse espirito do nosso tempo, de que temos
estado tão absolutamente alheados.”, in p. 12. Cf. PASCOAES, “Os meus comen-
tários às duas cartas de António Sérgio”, in [dir. Teixeira de Pascoaes et António
Carneiro et José de Magalhães et ed. Álvaro Pinto, A Águia II 25, Porto, A
Renascença Portuguesa, 1914\I, in] ed. Marieta Dá Mesquita, A Águia: “[...] a
saudade é a grande criadora do futuro, mas não tira o futuro do nada, não se
consegue um futuro de geração espontânea ou caído miraculosamente das estrelas. |
Ela constrói o futuro com a matéria do passado. O meu querido camarada parece
querer eliminar o passado. É apenas um belo gesto quixotesco... O passado é
indestrutível, nele murmura a fonte onde bebemos as novas energias. Ai de nós se
não tivéramos passado!”, in p. 52 in loc.cit.. Etc.; cf. MESQUITA, Marieta Dá,
“Prefácio”, in ed. Marieta Dá Mesquita, A Águia, pp. 11-21: “[...]”, in p. 14, et
“[...]”, in pp. 17-19; cf. id., “Índice”, in ed.cit., pp. 5-10: “[...]”, in p. 6. Cf. DUARTE,
“O nacionalismo fundamental de Pessoa e o seu objectivo cosmopolitismo como um
exemplo da sua estratégia cognitiva e moral”, in org. Paulo Borges, Olhares europeus
sobre Fernando Pessoa, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010,
pp. 72-97.
296 DANIEL MOREIRA DUARTE

espiritualidade pode ser forjada, porque o que o que aí reconhece é


que ele mesmo a partir do dia oito de Março de mil novecentos e
catorze outrado em Alberto Caeiro, um poeta à partida materialista
ao contrário dos já perfeitamente subjectivos mas ainda imperfeita-
mente objectivos portugueses renascentistas, é que seria o mais
original dos poetas modernos, com uma poesia inteiramente nova,
pelo que não obstante seria também um poeta místico, com todas as
qualidades de requinte espiritual do místico, assim ele sim realizando
as contradições, se não já tanto o equilíbrio, daquilo que mais do que
um transcendentalismo panteísta por certo constituiria então um
panteísmo, ainda que porventura transcendentalista 98 . No mesmo
sentido devemos apreciar o sensacionismo que Pessoa passa entretanto
a ter por estética e mesmo por total filosofia, deixando de nos falar
tanto em matéria e espírito e passando a falar-nos mais tão simples-
mente em sensações e ideias, para não obstante não deixar de concluir
algo de semelhante àquela materialização do espírito e espiritua-
lização da matéria que sendo assim apenas tonalmente parece adoptar
nas suas colaborações aguilistas, ou seja para desta feita mais
panteisticamente embora nos dizer que não haveria realidade alguma
além da sensação, ou que até as próprias ideias seriam sensações, e
que portanto toda a arte não poderia ser senão uma conversão duma
sensação numa outra sensação, chegando a propor que contra toda a
tendência histórica da arte mais do que intelectualizar a sensação se
sensacionasse a inteligência: e não obstante, pois, para simulta-
neamente nos dizer que por sua vez a sensação tampouco deixaria de

98 Cf. PESSOA, s.t. (“A. C. – Artigo para A Águia”), s.d., in [ed. Teresa Rita Lopes,
Pessoa por Conhecer | Textos para um Novo Mapa, Lisboa, Estampa, 1990, in] dir. Leonor
Areal, Arquivo Pessoa, http://arquivopessoa.net/textos/287 (2014\III\26): “Se nos
houvessem dito que era de um materialista que havia de emanar a mais original e
mais límpida poesia, a poesia mais puramente poesia, de hoje, não nos levaríeis a
mal que duvidássemos. Se nos falassem num místico materialista, mas um místico
com todas as qualidades de requinte espiritual do místico, e ao mesmo tempo o mais
absoluto e radical dos materialistas, nem nos daríamos ao trabalho de virar as costas
ao grosseiro paradoxo. Se alguém nos dissesse que haveria um poeta de hoje que
apareceria com uma poesia inteiramente nova, o total contrário da poesia – encolheria
talvez os ombros, quem não (...). Alberto Caeiro realiza estas contradições todas. |
Saudamos nele o mais original dos poetas modernos, um dos maiores poetas de
todos os tempos…”.
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 297

ser uma ideia e que para se tornar artística, ou seja para se converter
em uma sensação outra, a sensação relativamente primeira não
poderia deixar de ser intelectualizada, acabando até por confessar que
só aparentemente seriam vindas do exterior ou vindas do interior as
sensações, ou as ideias 99 . Na verdade, mais importante do que o
dualismo entre sensação e ideia, ou entre matéria e espírito, mais
importante do que o que ainda jovem Pessoa diz também que seriam
o complexo contemplar e o subtil contemplar-se em que consistiriam
os sentimentos estáticos da dita Natureza e do dito Espírito, bem assim
até como mais importante do que a respectiva síntese, talvez seja a
natureza dinâmica e orgânica que logo a vinte e dois de Janeiro de mil
novecentos e treze Pessoa descreve a Jaime Cortesão como sendo a

99 Cf. id., “Sensationism:”, s.d., in [BNP\E3 20-103r et 20-104r, in] coord. Ivo
Castro et ed. Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa | Série Maior X
Sensacionismo e outros ismos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009:
“There is nothing, no reality, but sensation. Ideas are sensations, but of things not
placed in space and sometimes not even in time. Logic, the place of ideas, is another
kind of space.” et “The end of art is simply to increase human self-consciousness.”,
in p. 153. Cf. id., “Some Manifest. | Principios”, s.d., in [BNP\E3 20-94r, in] coord.
Ivo Castro et ed. Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa | Série Maior X
Sensacionismo e outros ismos: “1. Todo o objecto é uma sensação nossa. | 2. Toda a arte
é a conversão d’uma sensação em objecto. | 3. Portanto, toda a arte é a conversão
d’uma sensação n’uma outra sensação.”, in p. 145. Cf. id., s.t., s.d., in [BNP\E3 88-
-15r, in] coord. Ivo Castro et ed. Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa |
Série Maior X Sensacionismo e outros ismos: “Toda a tendencia da arte tem sido
intellectualizar a sensação ou o sentimento. Propomo-nos inverter este processo, e
sensacionar a intelligencia.”, in p. 181. Cf. id., s.t., s.d., in [BNP\E3 88-3r et 88-3ar,
in] coord. Ivo Castro et ed. Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa | Série
Maior X Sensacionismo e outros ismos: “Mesmo a sensação não passa de uma idéa nossa
[...]”, in p. 150. Cf. id., s.t., s.d., in [BNP\E3 20-107r, in] coord. Ivo Castro et ed.
Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa | Série Maior X Sensacionismo e outros
ismos: “1. A base de toda a arte é a sensação. | 2. Para passar de mera emoção sem
sentido á emoção artistica, ou susceptivel de se tornar artistica, essa sensação tem de
ser intellectualisada.”, in pp. 174-175. Cf. id., s.t., s.d., in [BNP\E3 20-106r, in]
coord. Ivo Castro et ed. Jerónimo Pizarro, Edição crítica de Fernando Pessoa | Série Maior
X Sensacionismo e outros ismos: “[...] o sensacionismo nota as duas especies de sensações
que podemos ter – as sensações apparentemente vindas do exterior, e as sensações
apparentemente vindas do interior. E constata que ha uma terceira ordem de
sensações resultantes do trabalho mental – as sensações do abstracto.”, in pp. 171-
-172.
298 DANIEL MOREIRA DUARTE

base de toda a construção, poética ou outra, considerando então dois


ou três tipos de dinamismos, ou impulsos construtivos, que seriam o
heróico e épico, movendo-se este embora ao contrário do que venho
sugerindo a respeito da primitiva épica de dentro para fora, e o
religioso, dado de fora para dentro, para além do sintético desses dois,
um puro impulso construtivo que seria para Pessoa de origem e
espécie diversa e ajustaria o interior ao exterior e o detalhe ao todo:
assim porém diverge um pouco Pessoa de si mesmo em “A Águia”,
porque desta feita encontrar-se-ia a superioridade da poesia da Renas-
cença mais em ela dar exemplos de cada um dos dois primeiros tipos
de impulsos construtivos do que em ser como vimos sobretudo
subjectiva, continuando o simbolismo esse sim a passar por um puro e
seguramente estático subjectivismo e passando a poesia romântica por
envolver um ainda relativamente estático sentir de ambos os ditos
Espírito e Natureza, ainda que como referi sobretudo da natureza tida
por exterior, e porque afinal a novíssima poesia portuguesa suprema-
mente equilibradora do espiritual e do material, se é que como vimos
não pecaria ainda por uma falta de objectividade imaginativa, pecaria
sobretudo é por lhe faltar alguma da referida construção, ou organi-
cidade, sem a qual todo o poetizar com alguma extensão se tornaria
desconexo, sendo que o próprio Cortesão se destacaria dos demais
poetas novos apenas por possuir de forma ainda não plenamente
desenvolvida o primeiro tipo de dinamismo100. Bem, e não cabendo

100Cf. id., in litt. Jaime Cortesão, 1913\I\22, in [Textos de Crítica e de Intervenção,


Lisboa, Ática, 1980, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa,
http://arquivopessoa.net/textos/3111 (2014\III\26): “A poesia só de Natureza, por
alta que seja, tira o indivíduo demasiadamente de si para o deixar saber construir
uma poesia um pouco extensa conexamente: o caso de Wordsworth, que criou a
poesia da Natureza, e, com duas excepções, falhou toda a poesia mais do que
pequena, é típico. A poesia apenas subjectiva faz com que o indivíduo se extravie de
si dentro de si próprio: é, ainda mais que a da Natureza, encurtadora do fôlego
espiritual. Escuso de lhe apontar o caso representativo dos simbolistas, os mais
puros-subjectivos que a poesia tem tido. – Ora, consoante eu apontei num dos meus
artigos n'A Águia, o que dá o especial valor à nossa poesia novíssima é que equilibra a
poesia da Natureza, em alto grau inspirada, com a poesia da Alma, em grau tão alto
sentida. Mas houve uma coisa que ali não disse, não de propósito, mas porque me
escapou naquela primeira análise do assunto. E [sic] que há um terceiro elemento, e
nesse ainda a nossa nova poesia é pecadora: é a construção, aquilo a que se pode
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 299

chamar a organicidade de um poema, aquilo que nos dá, ao lê-lo, a impressão que ele
é um todo vivo, um todo composto de partes, e não simplesmente partes compondo um todo. –
Ora de onde vem a construção? – isto é, de que qualidades nasce? | Eu mostrei que
quer a poesia subjectiva, quer a poesia objectiva dá, sendo só ou subjectiva ou
objectiva, uma falta, muitas vezes de equilíbrio, e sempre de fôlego. Possuídas em
grau igual estas duas formas ideativas, resulta equilíbrio com certeza, mas fôlego não
resulta. É que, quer o sentimento do Exterior, por intenso e complexo que seja (e
quanto mais intenso ou mais complexo pior) como o sentimento do espírito, por
subtil que seja (e tanto mais quanto mais subtil), são, quanto no caso é possível, de
sua natureza estáticos; e da sua combinação, como é de ver, nada resulta que não
estático. – Ora construir implica esforço, quer este esforço seja consciente ou
inconsciente, rápido ou demorado. À base da construção, poética ou outra, sendo pois
de sua natureza um dinamismo, logo se compreende como os sentimentos estáticos
que são o da Natureza (que é apenas um complexo contemplar) e o do Espírito (que é
somente um subtil contemplar-se) conduzam à falência construtiva. (É de notar,
naturalmente, que o carácter estático do sentimento da Natureza do da Alma é
relativo; puramente estático, quedava-se sem gestos de expressão dentro de si
próprio, e nunca dali resultaria arte). | Posto isto, que a construtividade poética
parte de uma faculdade qualquer, dinâmica de essência, com só mais um passo
atingiremos a compreensão de quais são essas faculdades. O dinamismo pode ser de
três espécies, evidentemente. Ou é dinamismo do Espírito para o Mundo Externo,
ou do Mundo Externo para o Espírito, ou uma síntese destes dois dinamismos
especiais. Temos pois que os poetas capazes de construir têm uma de três faculdades.
Ou têm aquilo a que chamarei o impulso heróico, que é o dinamismo de dentro para
fora, a ânsia de dominar as coisas, de sobrepor à Natureza a individualidade própria.
– Ou tem aquilo a que chamarei o impulso religioso, que é o dinamismo de fora para
dentro (e que é bom não confundir com o outro sentimento religioso, que é a mais
alta manifestação do sentimento da Natureza, mas a que falta o impulso, por ser de
mais subjectivo, meditativo apenas), e que vem a ser ânsia, contrária à outra, de se
submeter, sem se abandonar (como o místico) a um Deus – impulso de outro modo
heróico também, porque essa submissão traz consigo o sentimento contrário ante a
Natureza e os homens. – Ou, finalmente, têm o impulso construtivo puro, que,
sempre com certo grau de consciência, ainda que inspiradamente, ajusta o interior
ao exterior, o detalhe ao todo. Este, que é realmente sintético dos outros, é de
espécie e origem diversa. | Os homens da Renascença – que foram, na época
moderna, os grandes construtivos, tao [sic] superiores nisto aos Românticos, por
maiores que fossem estes em sentir a Natureza e o Espírito – tinham um ou outro
daqueles dinamismos. Os épicos de género guerreiro tinham o primeiro: é mesmo a
intensidade do «dinamismo heróico» que aguenta e vivifica Os Lusíadas, e os salva de
serem vítimas das pequenas faculdades puramente-críticas de Camões. Milton tem o
segundo género de dinamismo. O terceiro parece-me que o encontro em
Shakespeare, onde, por exemplo no caso das várias edições do Hamlet, nas
300 DANIEL MOREIRA DUARTE

mais ainda o âmbito desta já heterogénea e pouco conclusiva reflexão


feita a propósito de escritos do Pessoa de “A Águia” e do jovem
Nietzsche extravasar talvez caiba apenas darmos um salto relativa-
mente final até junto do Pessoa de mais do que duas décadas passadas
sobre o tempo da sua colaboração na referida revista, pois então o
encontramos atento já não exactamente a uma nova poesia que seria
portuguesa senão aparentemente com uma tónica talvez não menos
posta na soberania mas já não tanto no que pudesse ser um espírito
nacional atento a “A poesia nova em Portugal”, assim se referindo ele
às poesias entretanto aparecidas de José Régio, em especial, e de
Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga, Alberto de Serpa e Marques
Matias, nas quais encontra um elemento comum, a saber um indivi-
dualismo absoluto, termo de que Pessoa diz fazer uso num sentido
puramente estético mas que não deixa de associar à oposição política
dos poetas e artistas e intelectuais que nesse momento seriam designá-
veis de novos aos estados autoritários e portanto conservadores que
entretanto teriam passado a estar na moda: tirando porventura o que
concerne ao tal espírito nacional, nenhuma divergência ou tensão
assim porém encontramos, mesmo que associemos a nova Renascença
Portuguesa e a respectiva hegemonia por vir à construção política e
por isso também literária e mítica de um Quinto Império final, já que
como vimos com as histórias do Pessoa de “A Águia” nada obstaria a
que a um período crítico e criador como o da renascença inglesa ou o
do romantismo francês se seguisse entretanto um período não criador
como o tratável de neo-clássico em Inglaterra ou o do simbolismo em
França, sendo para mais que poetas relativamente novos, ou como
lhes chama o Pessoa de “A Águia” precursores de futuros períodos
criadores, não deixariam de aparecer em sub-períodos de períodos
anteriores101. Retenhamos antes outra coisa, portanto, e façamo-lo por

constantes alterações, claramente estudadas e cautas, que, ao mesmo tempo que


mais e mais deteatrizam (sic) a obra, mais a tornam ligada, e una. | Ora, para
entrarmos enfim em casa, o que com grande alegria noto no meu amigo como
destacando-o entre os novos poetas é a sua capacidade construtiva. O género dessa
capacidade é o «dinamismo heróico». Como adiante direi, este dinamismo não está
ainda em si plenamente desenvolvido.”.
101 Cf. id., “A poesia nova em Portugal”, 1935, in [ed. Georg Rudolf Lind et Jacinto do

Prado Coelho, Páginas de Estética e de Teoria Literárias, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa,
O PESSOA DE “A ÁGUIA”, O JOVEM NIETZSCHE E A VERDADE... 301

oposição ao que parece ser algum excesso de espiritualismo, ou de


idealismo, presente nos escritos que como outros o próprio Pessoa
publicou em “A Águia”, ainda que por oposição também à fixação
por sua vez do materialismo como sistema de metáforas, compene-
trando-nos de que se não o mesmo Pessoa ao menos António Mora,
aparentemente ainda mais ou menos na época em que Pessoa era
colaborador da revista, considera à semelhança do que venho dizendo
sobre a literariedade originária da Verdade e do que nos diz o próprio
jovem Nietzsche que o conhecimento só teria podido desenvolver-se
opondo-se à vida, quer dizer através da criação de um tipo de

http://arquivopessoa.net/textos/1151 (2014\IV\24): “[...] proponho-me considerar,


com a brevidade e a concisão que uma análise suficiente consinta, as obras em verso, até
hoje publicadas em livro, dos seguintes novos poetas: José Régio, Adolfo Casais
Monteiro, Adolfo Rocha (Miguel Torga), Alberto de Serpa, Marques Matias.” et “Para
que, porém, o termo genérico “poesia nova” possa convir por igual a duas espécies
opostas – pois “conteúdo” e “ forma”, como aqui os entendo, são termos em contraste
lógico –, força é que eles tenham qualquer elemento geral comum, sem o que seriam,
não já espécies, dois géneros, diferentes, ou, então, espécies de dois diferentes géneros. |
Ora não é difícil encontrar esse elemento comum. Consiste ele no individualismo
absoluto. Não uso deste termo, bem entendido, em qualquer sentido político ou social,
ou sequer filosófico; se bem que necessariamente os poetas e outros artistas e intelectuais
novos – o fenómeno é, como seria de supor, comum a todos os géneros da vida mental
de hoje – tendem a ser mais atraídos pelos sistemas individualistas em (sociologia) e
política do que pelos sistemas que a estes são opostos. E tanto assim é que, medida em
que se tem ido afirmando e acentuando os estados autoritários hoje em moda, em essa
mesma medida se têm ido confirmando na sua hostilidade ou afastando, para a
indiferença quando não para a oposição, os poetas, os artistas e os intelectuais
designáveis de “novos”. Desse aspecto do assunto, porém, não tenho, felizmente, que
tratar. Repito: uso do termo “individualismo absoluto”, no sentido puramente estético,
pois é a arte em geral, e uma forma dela em particular, em que me ocupo neste estudo.”.
Cf. id., “Reincidindo...”, in dir.cit. et ed.cit.: “Vejamos a que especie de periodo social
succedem as grandes epocas literarias [sic] ingleza e franceza. Esse periodo é, em
Inglaterra, o periodo pre-Tudor; em França, é o fim do reinado de Luiz XV, e todo o de
Luiz XVI. Que teem, de analogo, estes dois periodos sociaes? São ambos periodos de
apagada e esteril vida politica, de despotismo facil, de agitação nulla e como que servil, se
agitação chega a haver – periodos onde se parece ter ficado n’uma estagnação social, paz
ou guerra que haja. Do grande periodo subsequente só ha preindicação na literatura [sic],
porque é n’este periodo que apparecem os precursores do magno periodo literario [sic]
que se vae seguir. Vivem n’este periodo Chaucer em Inglaterra, Rousseau em França.”,
in p. 139 in loc.cit..
302 DANIEL MOREIRA DUARTE

Homem inactivo no qual se teria atenuado o estado de guerra inevi-


tavelmente primitivo, primordial: e, não obstante, pois, retenhamos
que o mesmo António Mora considera que as ideias abstractas seriam
elementos de que uma individualidade com um sistema nervoso
superior careceria tão simplesmente para poder viver, sendo de
sublinhar essa palavra “poder”102. Que é assim é, desde logo a priori,
dir-se-ia, mas sobretudo a posteriori: esperemos porém realistas opti-
mistas que não seja só assim, ou quanto mais não seja, como deveras
não é, que ao menos a partir de aí volte a ser possível criar antes uma
verdade, bem assim como uma autêntica ainda que fingida, ou feita,
quer dizer, criada, justamente, liberdade.

102 Cf. id. \ MORA, Antonio, s.t., 1914?, in [ed. António de Pina Coelho, Textos
Filosóficos I., Lisboa, Ática, 1968 imp. 1993, in] dir. Leonor Areal, Arquivo Pessoa,
http://arquivopessoa.net/textos/3863 (2014\III\26): “A metafísica, na sua essência, isto é,
no que de ao mesmo tempo mais lato e mais simples comporta o seu conceito, assenta em
uma distinção, possível só a conscientes desenvolvidos, entre o conhecimento e a vida, ou, com
precisão mais verbal, entre conhecer e viver. Só uma longa experiência humana,
acumulada e transmitida, pôde criar um tipo de homem primeiro inactivo, por quaisquer
circunstâncias que atenuassem o estado de guerra inevitavelmente primitivo (primordial)
entre os humanos, e depois, por apuramento especializado desses inactivos, o tipo já
propriamente especulativo.”. Cf. id. \ id., s.t., 1912?, in [ed. António de Pina Coelho, Textos
Filosóficos I, in] dir cit., http://arquivopessoa.net/textos/4253 (2014\III\26): “As ideias
abstractas são apenas elementos de que uma individualidade com um sistema nervoso
superior carece para poder viver. Erigir essas ideias em coisas (como faz Platão) é transformar
um elemento pragmático em uma entidade concreta.”. Cf. NIETZSCHE in tr. Luis Enrique
de Santiago Guervós (et Joan B. Llinares et Diego Sánchez Meca), Sobre verdad y mentira | en
sentido extramoral, in ed.cit.: “En un apartado rincón del universo, que centellea desperdigado
en innumerables sistemas solares, hubo una vez un astro en el que unos animales astutos
inventaron el conocer.” et “Es curioso que esto lo haga precisamente el intelecto, que no es
más que un recurso añadido a los seres más desdichados, delicados y efímeros para
retenerlos un minuto en la existencia [...]”, in p. 609 in loc.cit.. Cf. id. in tr.cit., Cinco prólogos
| para | cinco libros no escritos [, 1872], in ed. Diego Sánchez Meca, Obras completas I Escritos de
juventud, pp. 543-568: “Cuando se habla de humanidad, se da por sentada la idea de que se
trata de aquello que separa y distingue al hombre de la naturaleza. Pero en realidad tal
separación no existe: las propiedades «naturales» y las llamadas realmente «humanas»
están indisolublemente entrelazadas. El hombre, en sus más altas y nobles fuerzas, es
completamente naturaleza y lleva en sí mismo el inquietante doble carácter de la misma.
Sus aptitudes más terribles, que se consideran como inhumanas, son acaso el único terreno
fértil en el que puede crecer toda humanidad en emociones, hechos y obras.”, in p. 562 in
“5 | El certamen de Homero”.

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