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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Luiz Daniel Jatobá França

Democracia, política externa e integração regional: um estudo


comparativo das trajetórias de Argentina e Brasil

Rio de Janeiro
2011
Luiz Daniel Jatobá França

Democracia, política externa e integração regional: um estudo comparativo das


trajetórias de Argentina e Brasil

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-graduação em Ciência Política, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Dra. Maria Regina Soares de Lima

Rio de Janeiro
2011
Luiz Daniel Jatobá França

Democracia, política externa e integração regional: um estudo comparativo das


trajetórias de Argentina e Brasil

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-graduação em Ciência Política, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 16 de setembro de 2011.

Banca Examinadora:
Prof.ª Dra. Maria Regina Soares de Lima (Orientadora)
Centro de Ciências Sociais - UERJ

Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes Santos


Centro de Ciências Sociais - UERJ

Prof. João Feres Júnior


Centro de Ciências Sociais - UERJ

Prof.ª Dra. Miriam Gomes Saraiva


Centro de Ciências Sociais - UERJ

Prof. Dr. Alcides Costa Vaz


Universidade de Brasília

Prof.ª Dra. Monica Hirst


Universidad Torcuato di Tella

Rio de Janeiro
2011
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha mãe, a Professora Ana Lucia Pedreira Jatobá
AGRADECIMENTOS

        
        A primeira pessoa a quem devo meus agradecimentos é a Professora Maria
Regina Soares de Lima. Desde os anos de Mestrado, sua produção intelectual já
era uma referência para mim. A vontade de ter sua orientação no Doutorado foi a
razão  principal  para  eu  escolher  o  lugar  onde  decidi  continuar  minha  formação
iniciada  na  UnB.  Coincidentemente,  fui  recebido  pela  minha  futura  orientadora
num dia 16 de setembro, data marcada para a defesa, quando ela generosamente
aceitou  orientar-me,  mesmo  sem  me  conhecer  previamente,  e,  durante  todos
esses  anos,  pude  contar  com  o  seu  apoio,  críticas  e,  acima  de  tudo,  muita
compreensão. Sem a orientação e a amizade da nossa querida Regina nada disso
teria sido possível. Agradeço-lhe, de coração aberto, por tudo.
        À Professora Mônica Hirst, agradeço por me aceitar para o estágio sanduíche
na Universidad Torcuato Di Tella e pelas importantes orientações. Seus trabalhos
também  são  uma  referência  na  área  e  fiquei  muito  honrado  com  a  aceitação  e
hospitalidade.  Senti-me  em  casa  em  Buenos  Aires  e,  especialmente,  nas
instalações  da  universidade.  Sua  excelente  biblioteca  e  um  ambiente  acolhedor
convidavam-me  a  passar  boa  parte  do  tempo  por  lá.  Estendo  meus
agradecimentos  aos  Professores  Roberto  Russell  e  Javier  Zelasnik,  com  quem
tive a oportunidade de dialogar durante as aulas ou fora de sala.
        No Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP, ex-IUPERJ), devo meus
agradecimentos  primeiramente  aos  professores  da  instituição,  heróis  da  difícil
transição  ocorrida  nos  últimos  anos,  e  que  compartilharam  conosco  seus
conhecimentos  ou  companheirismo,  muitas  vezes  as  duas  coisas.  Gostaria  de
mencionar,  em  particular,  aqueles  com  quem  tive  mais  contato,  expressando
assim  minha  gratidão  para  com  os  Professores  Renato  Lessa,  Fabiano  Santos,
João Feres Jr. e Marcelo Jasmim. Adiciono à lista o nome do Professor Visitante
Jens Borchet, que, durante o período em que esteve conosco no Rio, ajudou-me
muito  mais  do  que  pode  imaginar  na  preparação  do  projeto  para  a  qualificação.
Por meio das funcionárias Lia, Valéria, Caroline e Simone, agradeço a todos que
tornam o trabalho dos alunos e professores da casa possível e mais agradável.
                Tenho  muito  a  agradecer  aos  meus  colegas  da  Universidade  de  Brasília
(UnB), onde encontrei um ambiente favorável de harmonia e troca de ideias nos
últimos  anos.  Nos  momentos  de  mais  dificuldade  para  concluir  o  texto,  foram
inestimáveis  os  incentivos  dos  Professores  Eiiti  Sato,  Cristina  Yumie,  Antônio
Carlos Lessa, Alcides Vaz, Norma Breda e Maria Helena de Castro Santos. Não
poderia  deixar  de  agradecer  as  facilidades  propiciadas  e  a  forte  amizade  dos
funcionários  Vanderlei  Valverde,  Odalva  de  Araújo  Costa  Otávio,  Celi  Oliveira  e
Anderson Xavier. A cada um de vocês, professores e funcionários do Instituto de
Relações Internacionais (iREL), agradeço profundamente o apoio recebido.
        Preciso agradecer também a dois colegas, com quem trabalhei no Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB) e que me encorajaram a também seguir para
o  Doutorado,  no  momento  em  que  faziam  o  mesmo,  que  são  os  Professores
Tarciso  Dal  Maso  Jardim,  amigo  antigo  e  eterna  fonte  de  inspiração,  e  Renato
Zerbini.
        Desde que voltei para Brasília, também contei com o apoio, direto ou indireto,
de  muitos  alunos  e  monitores.  Gostaria  de  lhes  agradecer  nominalmente,  pois
muitos  rostos  e  atos  concretos  vêm  à  minha  mente  neste  momento.  Entretanto,
para  evitar  que  a  lista  ocupasse  muitas  folhas,  deixo  o  meu  reconhecimento
individualizado  aos  alunos  da  pós-graduação  que  me  auxiliaram  na  atividade
docente  (Matías  Franchini,  Janira  Borja,  Tchella  Maso  e  Luiz  Felipe  Doles)  e
agradeço aos alunos da graduação coletivamente, por meio dos estranhos nomes
das turmas que mais acompanhei (Relniken, Relscore e Rel69) ? a cada um de
vocês  e  aos  alunos  mais  recentes,  agradecerei  pessoalmente  quando  tiver  a
oportunidade.
        Neste último ano, tive o privilégio de compartilhar a atividade docente com a
Professora  Amena  Yassine,  no  Instituto  Rio  Branco  (IrBr)  do  Ministério  das
Relações  Exteriores  (MRE).  Dividir  as  aulas  foi  uma  experiência  inédita  e
enriquecedora.  Isto  sem  contar  a  amizade  desenvolvida  entre  nós  e  a
oportunidade  de  discutir  algumas  ideias  contidas  no  trabalho  enquanto
desenvolvia a versão final da Tese.
        Durante todo o tempo, precisei contar com o apoio da minha família. Os mais
próximos  sempre  foram  minha  mãe  Ana  Lucia  (a  quem  dedico  este  trabalho)  e
meus  irmãos  Luiz  Carlos  e  Danielli.  Além  de  todo  o  apoio  e  ideias,  minha  irmã
teve a paciência de ler cada linha do texto e, com seu brilhantismo intelectual, fez
críticas  importantes  e  correções  detalhistas.  Tentei  de  tudo,  mas  não  encontrei
palavras  adequadas  para  agradecer  a  cada  um  de  vocês  três.  Só  espero  poder
retribuir eternamente o amor recebido.
                Meus  agradecimentos  familiares  também  se  dirigem  aos  primos  Antônio
Carlos,  Juçara,  Vinícius  e  Vitor,  que  tantas  vezes  me  receberam  em  sua  casa,
desde  antes  do  processo  de  seleção  para  o  Doutorado  no  antigo  IUPERJ  e
durante todo o curso, no período em que morei fora do Rio, e aos primos André
Luiz,  Eliana,  Thiago  e  Pablo,  que  me  receberam  em  momentos  especialmente
difíceis e fizeram com que me sentisse em casa durante todo o tempo.
        Durante os anos de aulas, pesquisas e, finalmente, de redação, morei em
três cidades: Rio, Buenos Aires e Brasília. Meus amigos foram fundamentais em
cada  uma  delas.  Tenho  saudades  de  muitos  de  vocês,  especialmente  de  quem
me afastei, seja pelas mudanças de cidade, seja pelo necessário isolamento para
redigir  o  texto,  período  que  parecia  interminável.  Quero  listar  aqueles  mais
próximos,  que  mais  contribuíram,  em  diferentes  momentos.  Nos  primeiros  anos,
vivi no Rio: agradeço e guardo boas recordações dos amigos André Luiz Coelho,
Diogo Lyra, Juan Cláudio Epsteyn, Marcelo Coutinho, Iara Leite e Vítor Acselrad.
Depois, vieram os amigos dos tempos em Buenos Aires: agradeço a Augustín e
Esteban  Depetris,  Pablo  Bolaños,  Ana  Dulce  Colados,  Gabriel  Ferreira,  Edgard,
Ana  Moreno  Catala,  Guadalupe  Belmonte  e  Celia  Bartolomé.  Finalmente,  em
Brasília,  o  retorno  à  convivência  dos  antigos  amigos  Renato  de  Lima  França,
Marcella  Souza  Cunha,  Pedro  André  dos  Santos,  Rafael  Conti,  Vinícius  Alex,
Frederico Dias, Antônio Corrêa e Ivanildo Silva. Agradeço a todos vocês, que me
apoiaram  com  ideias,  amizade  ou  simplesmente  com  momentos  de  alegria  e
prazer.
        Registro o meu agradecimento especial a Raiane Santana, companheira cujo
apoio foi fundamental para que eu conseguisse terminar a redação deste trabalho.
Com  paciência  e  incentivo  amoroso,  você  me  ajudou  a  ter  força  para  seguir
adiante,  num  esforço  que,  muitas  vezes,  parecia  não  ter  fim,  e  que,  não  raras
vezes,  foi  acompanhado  de  doloridos  problemas  de  saúde  e  lágrimas.  As
incontáveis  horas  de  amizade  e  convívio  foram  se  convertendo,  pouco  a  pouco,
numa relação cada vez mais forte. Muito obrigado!
        Apesar de aparecer antes do trabalho, esta lista de agradecimentos foi a
última parte a ser redigida e, devo dizer, uma das mais difíceis. Levei literalmente
vários dias tentando expressar, de modo mais ou menos objetivo, o quanto devo a
tantas  pessoas.  Confesso  que  pensei  poder  escrever  rapidamente  e  com
brevidade, mas, agora que concluí o texto, eu me dou conta de que a demora em
redigi-lo  e  a  extensão  do  texto  são  reflexos  do  imenso  apoio  recebido,  vindo  de
tantas  pessoas,  em  alguns  casos  com  tanta  intensidade,  que  nunca  saberei  se
pude  corresponder  satisfatoriamente  e  que  espero,  quem  sabe,  poder  retribuir  à
altura.
        
RESUMO

FRANÇA, Luiz Daniel Jatobá. Democracia, política externa e integração regional: um


estudo comparativo das trajetórias de Argentina e Brasil. 2011. 357 f. Tese
(Doutorado em Ciência Política) - Centro de Ciências Sociais, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

Este trabalho focaliza os fenômenos da politização da política externa e da


luta pela democratização do seu processo decisório no que se refere às políticas de
integração regional de Argentina e Brasil, nos âmbitos do MERCOSUL e da ALCA. O
objetivo principal é analisar, por um lado, os processos de liberalização política e
democratização do regime ocorridos nestes dois países entre os anos 1970 e 1980,
e, por outro, as relações entre a incorporação do regionalismo às respectivas
estratégias de inserção internacional e a politização da política externa, desde o final
da Guerra Fria. Considerando as controvérsias em torno do conceito de democracia,
são discutidas as principais estratégias de análise encontradas na política
comparada e as três principais perspectivas teóricas contemporâneas (realismo,
pluralismo e deliberativismo). A análise empírica concentra-se em dois processos: a
criação do MERCOSUL, desde suas origens até o final da fase de transição
(1991-1994), e as negociações para a criação da ALCA, desde o seu lançamento
até a suspensão (1994 2005). Argumenta-se que apesar da incorporação do
regionalismo haver gerado um aumento da politização doméstica em torno da
política externa, isto não significou, no entanto, qualquer avanço no sentido da
democratização das decisões nestes âmbitos específicos.

Palavras-chave: Democracia. Politização. Política externa. Integração regional.


MERCOSUL. ALCA. Argentina. Brasil.
ABSTRACT

This work focuses on the phenomena of politicization of foreign policy and the
struggle for democratization of its decision-making process, in what refers to the
regional integration policies of Argentine and Brazil, in MERCOSUR and FTAA. The
main objective is to analyze, in first place, the processes of political liberalization and
regime transition occurred in these countries between the late 1970s and the early
1980s, and, secondly, the relation between the incorporation of regionalism in the
respective international insertion strategies and the politicization of foreign policies
since the end of the Cold War. Considering the controversies around the concept of
democracy, this essay discusses the main analytical strategies found in comparative
politics and the three main contemporary theoretical perspectives (realism, pluralism
and deliberativism). The empirical analysis focuses in two processes: the creation of
the MERCOSUR, from its origins to the end of its transition phase (1991-1994), and
the negotiations to the establishment of the FTAA, since the beginning until its
suspension (1994-2005). It is argued that although the incorporation of regionalism
has generated growing domestic politicization of the foreign policy, this result did not
mean advancement towards democratization of decision-making process in these
two specific realms.

Keywords: Democracy. Politicization. Regional integration. MERCOSUR. FTAA.


Argentine. Brazil.
RESUMEN

El presente trabajo analiza los fenómenos de la politización de la política


exterior e de la lucha por la democratización de su proceso decisorio, en las políticas
de integración regional de Argentina y de Brasil, en los ámbitos específicos del
MERCOSUR y ALCA. El objetivo principal es analizar, por un lado, los procesos de
liberalización política y democratización del régimen vividos en estos países entre los
años 1970 y 1980, y, por otro lado, las relaciones entre la incorporación del
regionalismo a las respectivas estrategias de inserción internacional y la politización
de la política exterior, desde el fin de la Guerra Fría. Considerando las controversias
alrededor del concepto de democracia, son discutidas las principales estrategias
analíticas que se puede encontrar en la política comparada y las tres principales
perspectivas teóricas contemporáneas (realismo, pluralismo y deliberativismo). El
análisis empírico se concentra en dos procesos: la creación del MERCOSUR, de sus
orígenes hasta el fin de la fase de transición (1991-1994), y las negociaciones para
la creación del ALCA, desde su lanzamiento hasta la suspensión de las mismas
(1994 2005). En síntesis, se argumenta que a pesar del hecho de que la
incorporación del regionalismo haya generado un incremento de la politización
doméstica en torno a la política exterior, sin embargo esto no ha significado cualquier
avance en el sentido de una democratización de las decisiones en los ámbitos
específicamente analizados.

Palabras clave: Democracia. Politización. Política exterior. Integración regional.


MERCOSUR. ALCA. Argentina. Brasil.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 - Marcos de referência conceitual utilizados nas pesquisas


comparativas sobre democratização recente 43
Figura 1 - Perspectivas selecionadas da teoria democrática contemporânea 101
Tabela 1 - Alguns requisitos de uma democracia para um grande número de
pessoas 137
Quadro 2 - Reuniões Presidenciais e Ministeriais para a Formação da ALCA 301
SUMÁRIO

  INTRODUÇÃO 13
1 POLÍTICA COMPARADA E TEORIA DEMOCRÁTICA: A HEGEMONIA
DA CONCEPÇÃO PROCEDIMENTAL MÍNIMA, A DICOTOMIA
REPRESENTAÇÃO VERSUS PARTICIPAÇÃO E A ABORDAGEM
ANALÍTICA PROPOSTA 22
1.1 Democracia e política comparada: a inesgotável inovação
conceitual e a hegemonia da concepção procedimental mínima 26
1.1.1 A democracia e seus adjetivos nos estudos comparativos 28
1.1.2 Limitações metodológicas da adjetivação e da hegemonia da concepção
procedimental mínima 47
1.2 A hegemonia da democracia representativa na teoria democrática e
a dicotomia representação versus participação 55
1.2.1 A hegemonia da democracia representativa na 2ª metade do século XX 59
1.2.2 Os  Latin American Studies  (estudos  latinoamericanos):  da  teoria  da
modernização aos estudos sobre transição e consolidação democrática 67
1.2.3 A  crise  da  democracia  representativa,  os  limites  da  dicotomia
representação versus participação e o pluralismo teórico contemporâneo 81
2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS E SEUS CONCEITOS FUNDAMENTAIS:
REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO 104
2.1 A perspectiva realista de democracia 111
2.2 A perspectiva pluralista de democracia 129
2.3 A perspectiva deliberativa e suas variações 150
3 PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E TRAJETÓRIAS POLÍTICAS
DE ARGENTINA E BRASIL 166
3.1 O processo de transição democrática e a formação dos primeiros
governos civis: instituições e organizações políticas, em meio à
crise socioeconômica dos anos 1980 174
3.2 Os governos civis de Raúl Alfonsín e José Sarney e a adoção do
neoliberalismo no início dos anos 90 212
4 AS TRAJETÓRIAS DE INTEGRAÇÃO REGIONAL DE ARGENTINA E
BRASIL: POLITIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA
EXTERNA 244
4.1 A institucionalização do MERCOSUL: da aproximação
Brasil-Argentina à criação do Bloco 251
4.2 A nova fase das políticas de integração: entre as negociações para
a criação da ALCA (1995-2005) e o desafio de aprofundamento
institucional do MERCOSUL 283
5 CONCLUSÃO 335
  REFERÊNCIAS 340
13

INTRODUÇÃO

(...) Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente, mas ainda não
tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada
permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é
atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim
do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio
fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada
–, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico.
Reinhart Koselleck

Esta é uma tese que analisa os fenômenos de politização e democratização


das políticas de integração regional presentes na agenda de política externa da
Argentina e do Brasil desde o final dos anos 1980. Mesmo com um recorte empírico
bem definido, trata-se de um período amplo para o esforço de uma investigação
individual, afinal são cerca de duas décadas de história. Quando se trata de
compreender os comportamentos internacionais deste ou daquele Estado e os
processos de tomada de decisão que os precederam, são praticamente incontáveis
os fatores que podem influenciá-los – por isso, já se afirmou que pesquisas que
realizam interpretações globais da política externa de um país possuem retornos
decrescentes de capacidade explicativa. Este é um alerta que se impõe a qualquer
estudioso de política externa1. Como são muitos fatores a influenciar as políticas, o
risco principal é realizar interpretações globais, mesmo que limitadas a determinados
períodos, enquanto boa parte das explicações de questões específicas permanece
incompreendida, por não se ajustar no enquadramento geral.

______________________________________________
1
Em uma formulação bastante próxima à enunciada, esta observação metodológica está presente em um texto
da orientadora deste trabalho e foi um alerta presente na mente do autor mesmo antes de se iniciar esta
pesquisa. Como já se disse na apresentação, a responsabilidade pelo uso do conselho só pode ser daquele
que foi aconselhado (ver Lima, 1992: 77).
14

O presente texto tem como objetivo principal analisar, por um lado, os


processos de democratização política ocorridos na Argentina e no Brasil entre os
anos 1970 e a década seguinte, e, por outro, as relações entre as políticas de
integração regional desses dois países e os fenômenos da politização da política
externa e da luta pela democratização dos seus processos decisórios desde o final
da Guerra Fria. Busca-se apreender, por meio de uma narrativa analítica, o modo
como os padrões de tomada de decisão prevalecentes condicionaram a construção
dos projetos de integração incorporados às respectivas agendas externas, assim
como o impacto do novo regionalismo sobre as arenas políticas domésticas. Em
resumo, o foco da pesquisa incide sobre os processos de democratização do regime
e seus legados sobre o período posterior à transição, em particular sobre as
respectivas trajetórias de incorporação do regionalismo às estratégias de inserção
internacional dos países investigados.
Argentina e Brasil não ficaram alheios à tendência mundial de formação de
blocos econômicos regionais. De fato, o regionalismo tornou-se um dos elementos
prioritários das políticas externas desses países a partir dos anos 90, o que, entre
outras consequências, acentuou o grau de politização doméstica e deu origem a
demandas de determinados agentes ou grupos de interesses domésticos pela
democratização dos processos decisórios dessas políticas públicas, tradicionalmente
concentrados nas mãos do Poder Executivo. O recorte empírico dos processos de
integração analisados respeita a seguinte subdivisão: primeiramente, analisa-se o
processo de criação do MERCOSUL, desde suas origens bilaterais durante a
segunda metade dos anos 80 ao final da fase de transição (1991-1994), para depois
analisar a nova fase das políticas de integração, quando os dois países
encontravam-se entre as negociações para a institucionalização da ALCA (1994-
2005), que ao final não criaram a instituição pretendida, e o desafio de consolidação
institucional do MERCOSUL. Estes dois processos são privilegiados neste trabalho,
embora caiba adicionar que há outras iniciativas de integração das quais participam
atualmente os dois países, como a União de Nações Sulamericana (Unasul) e as
negociações do próprio MERCOSUL com outros blocos regionais ou países
isolados.
Esses processos de integração regional, por sua vez, coincidiram com a nova
realidade política representada pela atual experiência democrática. Argentina e
Brasil viveram experiências de redemocratização durante os anos 1980, que
15

substituíram as ditaduras comandadas pelas burocracias militares – a última


experiência autoritária brasileira durou de 1964 a 1985 e a argentina de 1976 a 1983
– pelos atuais regimes democráticos. No caso argentino, isto ocorreu após a
implosão acelerada do regime militar depois da derrota na Guerra das Malvinas, em
meio à crescente crise econômica, enquanto no caso brasileiro a transição se deu
depois de um processo de cerca de sete anos de abertura política gradual e irregular
do regime autoritário, apesar da crise que também atingiu a economia brasileira no
mesmo período. Nos dois casos, foram estabelecidas as bases da nova ordem
político-constitucional, típicas de um Estado Democrático de Direito, com a livre
eleição dos representantes políticos, tanto dos membros dos poderes legislativos
como dos chefes dos poderes executivos, nas diversas esferas federativas (governo
municipal, estadual ou provincial, e federal), além do reconhecimento de extensos
conjuntos de direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Desde então, nas quase três décadas que separam a redação deste trabalho
e o fim das ditaduras militares na Argentina e no Brasil, as ideias de democratização
e de democracia tornaram-se cada vez mais presentes no debate público. Tornou-se
frequente a reivindicação de se levar a democracia a todos os âmbitos da vida
política nacional e mesmo à política entre as nações. Muitas vezes, alega-se que a
democracia já está consolidada em algum desses âmbitos específicos, o que quase
nunca inclui a gestão governamental da política externa. Outras vezes, a
democratização é reivindicada, tornando-se palavra de ordem de apelo político,
constantemente repetida por diferentes vozes, ainda que o significado da pretendida
“democracia” não seja unívoco. Devem os processos de tomada de decisão que
conduziram as escolhas governamentais no âmbito da integração ser
mecanicamente caracterizados como democráticos, uma vez que foram formuladas
dentro do recém restabelecido “Estado Democrático de Direito”? É claro que a
associação não pode ser tão simples assim, ainda mais quando a própria ideia de
democracia é matéria de tanta controvérsia intelectual, como costuma ocorrer com
os conceitos políticos centrais, pois essas controvérsias são um elemento
constitutivo da própria política cotidiana. Tanto no caso do processo de criação do
MERCOSUL como nas negociações que tentaram institucionalizar a ALCA, os
governos envolvidos emitiram declarações de que pretendiam envolver os setores
sociais mais atingidos pela integração regional, como os empresários e os
trabalhadores, para conferir um caráter mais democrático ao processo. Também nos
16

dois casos, embora na ALCA com maior intensidade do que no MERCOSUL, os


grupos de interesse manifestaram-se no sentido de reivindicar maior inclusão nos
processos de tomada de decisão, politizando assim a própria formulação da política
externa nos dois países. As demandas sociais e promessas governamentais se
irmanam em torno do alegado objetivo de garantir não apenas a permanência das
instituições democráticas como a sua reforma, no sentido de uma expansão ou
aperfeiçoamento, o que talvez só seja possível por não haver consenso nem ser
bastante claro o que isto pode significar.
Tendo em vista as controvérsias existentes em torno de ideias como
democracia e democratização, a primeira tarefa assumida neste trabalho é discutir
as perspectivas teóricas e conceituais sobre a democratização, o que se faz a partir
de uma literatura selecionada em dois campos mais ou menos definidos dentro da
ciência política, a política comparada e as teorias da democracia. Com efeito, os dois
primeiros capítulos da tese realizam o que se pode chamar de uma limpeza do
terreno conceitual, interessando principalmente as discussões acadêmicas em torno
da ideia de democracia. Espera-se estimular o diálogo dos estudos de integração
regional com os campos da política comparada e da teoria democrática
contemporânea. Em cada uma dessas áreas da ciência política, buscam-se
elementos teóricos e conceituais que auxiliem tanto a compreender, do ponto de
vista empírico, como a avaliar, a partir de seus exigentes parâmetros normativos, os
processos de tomada de decisão em política externa, ou, mais especificamente, a
própria construção de políticas de integração regional, uma vez que governos e
agentes interessados respectivamente prometem e reivindicam a sua maior
democratização.
No Capítulo 1, examinam-se as principais tendências conceituais encontradas
no campo da política comparada, em especial as estratégias metodológicas
utilizadas pela literatura selecionada, assim como a concepção hegemônica de
democracia e a noção de uma crise da democracia representativa liberal. Assim, no
primeiro capítulo espera-se cumprir as seguintes tarefas: enfatizar algumas
características da literatura sobre os processos de democratização nos países da
América Latina, em particular a infindável adjetivação do termo “democracia” e a
predominância das abordagens elitistas sobre a transição e a consolidação da
democracia; apresentar e discutir a ideia de “crise da democracia representativa”,
que há algumas décadas serviu como um ponto de inflexão na teoria democrática,
17

dando origem a novas tendências intelectuais e tornando esse campo teórico mais
plural nas últimas décadas do século XX; explorar algumas contribuições da teoria
democrática participativa, cujo alcance ajudou a moldar a persistente noção de uma
oposição fundamental entre “representação” e “participação”, recorrente na literatura,
particularmente desde os anos 70, na ciência política; e, por fim, realizar uma
discussão sobre os limites dessa dicotomia e a retomada do interesse pela ideia de
representação política nos debates teóricos mais recentes, reconhecendo ao mesmo
tempo a existência de um maior pluralismo teórico neste princípio de século.
A análise da literatura de política comparada aponta duas tendências gerais,
ambas confluindo para o mesmo ponto, a concepção procedimental mínima de
democracia. Essas tendências são a inesgotável adjetivação do termo democracia e
o predomínio do elitismo democrático. A adjetivação da democracia é o
procedimento metodológico predominante nos estudos dos processos de
democratização recente, sendo que na maioria deles o ponto de partida é a
concepção procedimental e minimalista. A outra tendência reduz igualmente o
espectro das teorias contemporâneas da democracia à hegemonia da concepção
procedimental mínima, como se apenas a perspectiva elitista-realista, que remete a
autores como Max Weber e Joseph Schumpeter, entre outros, pudesse servir de
enquadramento analítico e de fundamento normativo para a democracia nas
complexas sociedades modernas.
É importante notar, todavia, que essas duas tendências são inadequadas
para o estudo de políticas públicas específicas, como é o caso da análise
empreendida neste trabalho. Além dos problemas metodológicos examinados
adiante, o privilégio quase exclusivo da concepção mínima (ou seja, da democracia
representativa liberal de ênfase eleitoralista) produz um silêncio inaceitável da rica
produção acadêmica da teoria democrática contemporânea, a qual foi impulsionada,
em grande medida, pelas críticas aos seus limites normativos. A ideia de “crise da
democracia representativa”, cujas principais interpretações são examinadas adiante,
parece não haver alcançado os estudiosos da democratização recente, pelo menos
os da política comparada. O que se verifica, de fato, é uma apartheid entre o
trabalho empírico realizado pelos comparatistas e as reflexões teóricas
contemporâneas, que ficam restritas ao campo da chamada teoria política normativa,
ou teoria democrática normativa, embora não seja possível nem adequado separar
tão simplesmente a dimensão empírica da dimensão normativa da ciência política,
18

principalmente quando se considera o papel legitimador exercido por estes discursos


teóricos.
Desde o fim da Guerra Fria, a ideia de uma voga democrática tornou-se
recorrente não apenas em discursos políticos, mas também nos discursos
acadêmicos e jornalísticos, entre outros campos da cultura. Durante o último quarto
do século XX, houve uma multiplicação do número de nações cujo regime político
pode ser qualificado como “democrático”, o que deu origem à interpretação de haver
uma “terceira onda democrática”, o que só é possível porque o conceito de
democracia não é inequívoco. O Capítulo 2 explora os diferentes significados
frequentemente associados à ideia de democracia, por meio de uma discussão
analítica de teorias e conceitos que transcenda o mero procedimentalismo mínimo
predominante na política comparada. Para isso, o trabalho adota um pluralismo
teórico, definido como uma atitude de abertura intelectual e de reconhecimento da
variedade de discursos democráticos. Argumenta-se que se trata de uma maneira
mais adequada para a análise e a avaliação das decisões sobre políticas públicas,
independente dos limites empíricos que se possam revelar nos casos concretos,
pois a luta por democratização não se restringe aos padrões decisórios vigentes em
um dado momento. Como qualquer conceito político fundamental, “democracia” e
“democratização” são ideias que estão longe de possuírem univocidade e seus
significados, como foi dito acima, constituem parte essencial da própria dinâmica
política moderna. Por conseguinte, é preciso lidar com a polifonia que caracteriza a
vida política em geral e a teoria política em particular, ou, mais precisamente, a
teoria democrática deste princípio de século.
É com este espírito que se produz neste trabalho uma análise teórica das três
principais formas contemporâneas de enxergar a democracia e os processos
políticos que a constituem e lhe conferem legitimidade política, as quais são
designadas como “realismo”, “pluralismo” e “deliberativismo”, ou, respectivamente,
como “democracia realista”, “democracia pluralista” e “democracia deliberativa”. O
objetivo é utilizar estas linguagens do imaginário político democrático como
estruturas facilitadoras da compreensão, ao mesmo tempo em que elas também
servem para a visualização das suas respectivas limitações normativas, pois os
discursos teóricos sobre a política adquirem mais sentido quando confrontados uns
aos outros, isto é, quando são identificadas as suas aproximações e diferenças.
Além disso, essa atitude epistemológica plural parece ser uma boa maneira de lidar
19

com a complexidade e a dinâmica de um mundo em constante transformação, pois


nenhum discurso teórico isolado é suficiente. Ela também parece ser a estratégia
mais adequada para lidar com processos históricos concretos, pois nenhum deles é
capaz de capturar as diferenças de realidade dos diferentes lugares e períodos.
Cada uma das perspectivas selecionadas apresenta uma visão diferenciada sobre
as implicações das instituições políticas democráticas sobre os processos de tomada
de decisão, isto é, sobre as políticas públicas, o que não significa que os processos
historicamente existentes atendam aos parâmetros das visões teóricas mais
exigentes. Mas, ao tornar explícitos estes critérios teóricos, em vez de implicitamente
silenciados, também se tornam mais perceptíveis as respectivas críticas normativas
aos processos de tomada de decisão vigentes nos regimes políticos analisados, ou,
mais especificamente, em determinadas políticas públicas, já que não se pode
generalizar a partir da análise deste ou daquele âmbito decisório. É com este espírito
crítico que se adota o pluralismo teórico analisado no segundo capítulo do trabalho,
mesmo que se deva reconhecer, desde já, que talvez algumas delas forneçam
parâmetros muito exigentes para avaliar políticas tradicionalmente decididas apenas
no âmbito do Poder Executivo, como se procurará demonstrar no terceiro e quarto
capítulos, em especial no último deles.
Os dois capítulos restantes destinam-se à narrativa histórica propriamente
dita. Primeiramente, no Capítulo 3 é desenvolvida uma análise comparada dos
processos de liberalização política e de transição democrática nos dois países,
ocorridos nos anos 1970 e 1980. O trecho busca reconstruir aquele contexto
histórico e identificar as semelhanças e diferenças entre os casos, em termos das
características e trajetórias das respectivas configurações institucionais e
organizações políticas consideradas mais relevantes ao longo daquele período.
Ademais, o início do terceiro capítulo apresenta alguns conceitos-chave do
institucionalismo histórico, cujas contribuições são utilizadas para a organização do
material encontrado sobre os casos, como os conceitos teoricamente informados de
instituições, organizações e, finalmente, de dependência de trajetória (path
dependence). A abordagem institucionalista histórica está subjacente à narrativa
contida nos dois últimos capítulos, nos quais se procurou situar a política no tempo
de forma a enriquecer a compreensão de dinâmicas sociais complexas como as
focalizadas por esta pesquisa.
20

Depois de comparar as respectivas trajetórias de liberalização política e


democratização do regime, enfrenta-se a tarefa de comparar os desafios
enfrentados pelos primeiros governos civis e as condições das respectivas arenas
políticas, uma vez que a estratégia de inserção internacional via integração regional
teve início ainda na segunda metade dos anos 80, embora naquela primeira fase o
processo de integração fosse apenas bilateral. A análise da formação dos primeiros
governos civis e do modo como eles procuraram lidar com os desafios políticos e
socioeconômicos fornece elementos para conhecer as condições antecedentes à
incorporação da integração regional às agendas externas de Argentina e Brasil, com
a criação do MERCOSUL, que transformou a cooperação bilateral em um bloco
regional que incluía, a princípio, também o Paraguai e o Uruguai. Por fim, o terceiro
capítulo termina com uma discussão sobre os padrões de tomada de decisão e
sobre a adoção dos modelos econômicos neoliberais nos dois países, entre o final
dos anos 80 e o início da década seguinte, dado que também é considerado
fundamental para compreender a incorporação do novo regionalismo às suas
agendas externas.
O Capítulo 4 dá continuidade à análise histórica, focalizando as respectivas
trajetórias de suas políticas de integração, analisando a relação entre o
envolvimento regional e os fenômenos da politização da agenda externa e da
democratização do processo decisório em política externa. Por meio da análise dos
processos de institucionalização do MERCOSUL e de negociações da ALCA,
procura-se descrever as dinâmicas políticas que estiveram por trás das políticas
externas de integração regional dos países investigados. O objetivo principal deste
último capítulo é apresentar uma narrativa histórico-analítica que permita avaliar, por
um lado, em que medida a participação nos referidos esquemas de integração
chegou a conformar alguma mudança em termos da mobilização doméstica diante
da política externa, como isto ocorreu em cada um desses dois processos
(MERCOSUL e ALCA) e países investigados, e, por outro lado, em que medida
estas mudanças chegaram a significar alguma transformação em relação aos
padrões de tomada de decisão prevalecentes historicamente. Argumenta-se, apesar
da adesão de Argentina e Brasil à tendência mundial de formação de blocos haver
originado um aumento da politização doméstica, isto não significou, no entanto,
qualquer avanço no sentido de uma maior democratização das decisões que dizem
respeito à política externa neste âmbito específico, se o que se tem em mente são
21

os significados associados às ideias de democracia e de democratização do


processo decisório encontrados nas principais perspectivas da teoria democrática
contemporânea. Espera-se que, de algum modo, os resultados desta pesquisa
possam contribuir para o debate acadêmico sobre as conexões entre democracia,
política externa e integração regional neste início de século.
22

1 POLÍTICA COMPARADA E TEORIA DEMOCRÁTICA: A HEGEMONIA DA


“CONCEPÇÃO PROCEDIMENTAL MÍNIMA”, A DICOTOMIA
“REPRESENTAÇÃO VERSUS PARTICIPAÇÃO” E A ABORDAGEM
ANALÍTICA PROPOSTA

No campo acadêmico, é notável a fluência das inúmeras traduções da crença


em uma “onda democrática”, presente em expressões como “terceira onda”, “triunfo
do liberalismo”, “hegemonia das democracias de mercado”, entre outras quase
infindáveis formulações intelectuais do gênero. De uma perspectiva histórica, é trivial
dizer que o conceito de democracia ocupou um lugar central no campo político
durante o século XX. O que se destaca nestas últimas duas ou três décadas é a
confiança na superioridade e, com frequência, até na inevitabilidade do caminho
democrático, indiferentemente do país ou região do mundo. Mas o que é
democracia? O que caracteriza um processo de democratização? São perguntas
que talvez pudessem receber respostas simples, se não houvesse a multiplicidade
de sentidos e a complexidade que se escondem por trás de cada uma destas ideias.
Estas questões precisam ser enfrentadas, para que se alcance a ideia de
democratização das políticas públicas em geral ou da política externa em particular –
o que isso pode significar e como se pode analisar o seu desenvolvimento, neste ou
naquele campo das relações internacionais de um país.
Este primeiro capítulo enfrenta os contornos conceituais dessas ideias e
algumas questões teóricas, assim como um conjunto de implicações metodológicas
das concepções que circulam no campo da política comparada e na teoria
democrática, em especial nos estudos de área referidos à região “latina” ou
“sulamericana” onde se encontram os dois países estudados. Com relação à
democracia, trata-se de um conceito político cuja história de apropriações
discursivas percorre os mais de vinte séculos que separam a Antiguidade Clássica
dos dias atuais, evidentemente com os mais diversos significados em cada tempo e
lugar. Sendo um dos principais conceitos políticos e sociais do mundo atual, não
poderia deixar de ser um conceito contestado. Assim, é preciso especificar alguns
dos significados que o termo assume nos debates contemporâneos sobre a política
– primeiramente, nos estudos comparados sobre democratização política. Seus
significados são variados nas contendas intelectuais, assim como ocorre na luta
23

política cotidiana, onde os conceitos são mobilizados para significar aquilo a que se
aspira, aquilo que se combate ou aquilo que se teme. Ao mesmo tempo, as
controvérsias em torno da conceituação da democracia refletem preferências
normativas e epistemológicas. Para aqueles que se dedicam a um estudo
comparativo, a conceituação constitui um desafio de peso. Afinal, para que seja
possível comparar dinâmicas democráticas em sistemas políticos diversos (na
maioria dos estudos, são comparados países diversos, mas também são
consideradas tendências regionais as mais diversas, como no caso dos citados
estudos de área), muitos defendem que é preciso chegar a algum consenso em
termos do que se considera como democracia. Isto ocorre porque as diferentes
definições utilizadas pela literatura possuem implicações analíticas – e normativas,
como já foi dito – estejam os estudiosos conscientes ou não dessas implicações.
Quando se penetra no campo dos estudos de política comparada sobre
democracia e democratização, observam-se algumas características interessantes.
Em primeiro lugar, a existência de uma quantidade impressionante de adjetivações
do termo presentes na literatura. O que significa a permanente agregação de
significados adicionais – ou, conforme a perspectiva, a sua subtração – à ideia de
democracia na passagem do século XX para o atual? É possível identificar uma
estrutura por trás dessas adjetivações? Como isto se relaciona com os debates
teóricos mais gerais sobre o processo de democratização? Trabalha-se aqui com o
pressuposto de que se trata de uma questão ao mesmo tempo intelectual e política a
conceituação da democracia – pois neste campo, como nos demais campos da
ciência política, e também das relações internacionais, é inadequado separar um
conhecimento “empírico” do que seriam as prescrições “normativas”, distinção tão
bem estabelecida quanto questionável. Além disso, o procedimento intelectual de
conceituar a democracia está profundamente imbricado com os discursos teóricos
sobre a democracia. Conceitos de democracia e teorias democráticas caminham
lado a lado, isto é, também não há como separar a ideia de democracia das
linguagens teóricas que buscam compreender os processos democráticos.
Em segundo lugar, parece adequado trabalhar com a hipótese de que existe
uma concepção hegemônica de democracia, a qual se reflete nas práticas e
instituições políticas da maior parte dos países considerados democráticos: a
democracia liberal representativa, também chamada procedimental mínima, entre
outras designações análogas. Mas que, ao mesmo tempo, essa concepção se
24

encontra desafiada por críticos, que asseveram a inquestionável crise de


legitimidade da democracia representativa e defendem modelos alternativos, entre
os quais esta investigação destaca a democracia participativa, em um primeiro
momento, e, depois, a democracia deliberativa, outra perspectiva crítica à
concepção hegemônica. Configura-se um conflito de concepções democráticas, que
põe em crise o relativo consenso formado em torno da primeira delas, um debate
também explorado neste capítulo.
Uma breve apresentação das três seções que compõem este primeiro
capítulo. A seção 1.1 aborda um enorme desafio anteposto aos estudos
comparativos sobre democracia: conceituá-la. Por um lado, a suposta necessidade
de conceitos comuns, mas que ao mesmo tempo evite o uso inapropriado de
conceitos entre diferentes unidades políticas, consideradas as idiossincrasias de
cada país. Por outro, o esforço de aumentar a eficiência analítica, capturando as
peculiaridades de cada sistema político. Este desafio se revela ainda maior em meio
às infindáveis adjetivações da democracia. Com o suporte de uma pesquisa de D.
Collier e S. Levitsky (1996, 1997), de um texto clássico de G. Sartori (1970) e de um
estudo da conceituação em alguns índices (G. Munck e J. Verkuilen, 2002), discute-
se como são estruturadas essas adjetivações na ciência política contemporânea.
Boa parte da literatura se baseia na definição procedimental mínima ou na
mínima expandida como referências fundamentais. Essas duas definições
predominam na política comparada e também está suposta em boa parte dos
discursos veiculados nas relações internacionais, além de serem hegemônicas na
teoria democrática, mais especificamente. Elas servem de padrão de referência
tanto para a elaboração de marcos analíticos comparativos como para a avaliação
de certos regimes como subtipos diminuídos ou problemáticos de democracia, ou
seja, como democracias parciais, híbridas ou incompletas. A primeira seção do
capítulo termina com uma discussão sobre as limitações metodológicas da infindável
adjetivação da democracia, que, conjugada à hegemonia da concepção
procedimental mínima, não favorecem o desenvolvimento dos estudos de
democratização, senão dentro desta concepção restrita de democracia.
A seção 1.2 aproveita o ponto de chegada da discussão anterior e explora o
campo da teoria democrática, para apresentar um itinerário de como se formou a
hegemonia do minimalismo procedimental, que reduz a democracia a eleições
periódicas e um conjunto de liberdades públicas básicas. Este segmento do texto
25

explora também alguns conceitos, hipóteses e discursos teóricos subjacentes à


maior parte da literatura de política comparada a respeito dos processos de
democratização, em especial, ocorridos na América do Sul. A argumentação
desenvolvida demonstra que os chamados “estudos latinoamericanos” (no inglês,
Latin American Studies) foram constituídos sob a hegemonia da teoria da
modernização, nos anos 60, e que, nas décadas seguintes, as concepções
procedimentais mínimas influenciaram as literaturas conhecidas pelos estranhos
nomes de “transitologia” e “consolidologia”, resultando em certas características
gerais encontradas nesta literatura e recentemente criticadas por novos trabalhos
sobre democratização.
Cabe anotar que um desafio particular que se apresenta a estas literaturas se
relaciona à ambiguidade arraigada na própria ideia de democratização, pois a
palavra pode se referir tanto àquilo que se fez, a um feito realizado, quanto ao que
se está fazendo, a uma ação em curso. Na primeira acepção, a democratização se
dirige a uma condição, isto é, à substituição de um regime não-democrático por um
que seja digno da denominação “democrático”, tem um início e um fim; no segundo
sentido, o conceito designa um processo que supõe um conjunto de princípios
orientadores ou atributos a serem aperfeiçoados, isto é, a democracia é um ideal,
pois ainda não se realizou na prática, ou mesmo que ela é um processo aberto, cujo
conteúdo varia de acordo com as sucessivas gerações, adquirindo sempre novas
conotações e sentidos políticos. Em outros termos, pode-se trabalhar, para fins
analíticos, com as concepções de democratização enquanto processo de transição e
como processo aberto de construção democrática. Os dois sentidos são encontrados
na literatura e são diferenciados na seção 1.2.
A segunda seção deste capítulo apresenta também uma ideia bastante
veiculada na teoria democrática contemporânea: a alegada crise de legitimidade da
democracia liberal representativa. O que isto significa? Quais são os elementos
principais desta crise apontada pelos críticos, em particular pelos defensores da
democracia participativa, desde o final dos anos 60, pelo menos, mas não somente
por eles? Paralelamente a esta ideia de “crise”, formou-se a noção de uma oposição
26

entre “representação” e “participação”, no interior da teoria democrática. Busca-se


explorar alguns limites desta dicotomia, conforme apontam algumas discussões mais
recentes dos teóricos e pesquisadores da democracia2.
A intenção é começar a estabelecer as bases para a discussão subsequente
dos diferentes significados que pode assumir a ideia de democratização em cada
uma destas concepções, ou melhor, de acordo com algumas famílias de
argumentos, ou perspectivas, as quais podem ser encontradas na literatura
politológica sobre a democracia. Como é argumentado ao final da seção, a oposição
entre “representação” e “participação” parece haver sido superada pelas discussões
teóricas mais recentes, embora ainda possua forte apelo público. Em seu lugar,
consolida-se um cenário teórico mais plural que põe em crise o discurso
hegemônico. As novas perspectivas introduzidas têm o potencial de transformar
também o debate público sobre a democracia, fato já parcialmente convertido em
realidade.

1.1 Democracia e política comparada: a inesgotável inovação conceitual e a


hegemonia da “concepção procedimental mínima”

É possível perceber o caráter polissêmico do conceito de democracia, pois,


ao longo do tempo, têm sido intermináveis as significações dadas a ele – mais ainda,
em cada dado momento também é possível identificar os seus variados significados.
Não é à toa que sua adjetivação se tornou comum nos debates acadêmicos, assim

______________________________________________
2
Posteriormente, no capítulo 2, são exploradas as três perspectivas teóricas que servem de base para a
esquematização de uma abordagem analítica dos processos de democratização das políticas públicas. A
primeira é denominada “perspectiva realista ou elitista”, a segunda, “pluralista ou participativa”, e a terceira,
“democracia deliberativa” – longe de exaurir os novos debates, trata-se de uma seleção entre as mais
difundidas perspectivas democráticas contemporâneas, cujas variações internas e relações recíprocas também
são exploradas na última seção deste primeiro capítulo. A abordagem proposta tem a intenção de fomentar o
debate democrático entre as diferentes perspectivas. Em vez de tratá-las como campos conceituais distintos,
que se opõem entre si, trabalha-se a hipótese de que todas elas precisam lidar com os conceitos centrais de
uma teoria democrática – como representação, participação e deliberação, conceitos centrais a todas elas,
mesmo que tenham significados e, portanto, valores distintos em cada uma delas.
27

como as oposições entre modelos de democracia: fala-se em “democracia


substantiva vs. democracia formal”, em “democracia participativa vs. democracia
representativa”, nomeiam-se regimes como “democracias delegativas”, “democracias
frágeis”, “democracia com isto”, “democracia sem aquilo”. O que é mais importante,
e digno de nota, é que estas diferenças não são meras perfumarias em torno de
uma ideia, mas constituem a essência dos debates e revelam a riqueza da luta
política em torno deste conceito, cuja centralidade durou todo o século XX e parece
não haver perdido o posto no princípio do século XXI.
Como observa o historiador alemão Koselleck, a democracia tornou-se “um
conceito generalizante (...) que impele os demais tipos de Constituição para a
ilegalidade como forma de governo” (2006[1979]: 107). Diante disso, surge a
necessidade de se ressignificar o conceito por meio de qualificações adicionais –
somente adjetivada é que a noção de democracia pode ter funcionalidade política,
diz Koselleck. E, pode-se acrescentar, também utilidade analítica. O que as
diferentes concepções de democracia revelam é a luta política pela sua significação,
isto é, pelos significados práticos decorrentes do termo. Ao mesmo tempo, estas
conceituações também reverberam as práticas e instituições democráticas que se
tornaram hegemônicas ao longo do tempo e do espaço.
O filósofo W. B. Gallie caracterizou o conceito de “democracia” como um
conceito essencialmente contestado: “O conceito de democracia que estamos
discutindo é avaliativo [no inglês, appraisive]; com efeito, muitos instariam que
durante os últimos cento e cinquenta anos ele se estabeleceu firmemente como o
conceito político avaliativo par excellence” [com grifos no original]. Na sua pertinente
observação, o conceito possui uma complexa estrutura interna, de modo que
qualquer avanço ou programa democrático “admite uma variedade de descrições
nas quais seus diversos aspectos são classificados em diversas ordens de
importância” (1956: 184). Um primeiro passo do trabalho é examinar a estruturação
do conceito, tal como verificada em algumas análises da literatura de política
comparada sobre a democratização recente. Esta tarefa é realizada a partir de uma
aproximação crítica da infindável adjetivação do termo, o que está associado não
apenas às lutas políticas e preferências normativas, mas também à necessidade de
conceitos que sirvam às análises politológicas da democracia nos países
latinoamericanos.
28

1.1.1 A democracia e seus adjetivos nos estudos comparativos

Em estudos de política comparada, é preciso estar atento às implicações de


cada uma das incontáveis definições de democracia, pois, como observam Collier e
Levitsky (1997), a diversidade dos regimes pós-autoritários abordados na literatura
impõe o desafio de tratá-los no plano conceitual, diante do qual os estudiosos têm
respondido com a busca de dois objetivos potencialmente contraditórios. Por um
lado, busca-se aumentar a diferenciação analítica, de modo a capturar as diversas
formas de democracia que emergiram no contexto da recente onda global de
democratização. Por outro, enfrenta-se o problema da validade dos conceitos
utilizados para descrever os diversos regimes existentes, de forma a evitar o
problema do “esticamento conceitual”, que emerge quando o mesmo conceito de
democracia é aplicado a casos particulares variados. Com efeito, destaca-se a
crescente inovação conceitual nas pesquisas comparativas. Collier e Levitsky
analisam a complexa estrutura das estratégias alternativas de inovação, em termos
de suas contribuições a esses dois objetivos, que potencialmente se opõem – vale
dizer, contribuições para aumentar a diferenciação e para evitar o esticamento
conceitual.
Na literatura de política comparada, os estudiosos utilizam o que Sartori
(1970) consagrou na expressão "contêineres conceituais" (no texto original,
conceptual containers) – isto é, seja um estudo qualitativo ou mesmo nos estudos
quantitativos, sempre existe uma fase prévia à “observação empírica”, que é a etapa
de formação dos conceitos. Em outros termos, os fatos e processos históricos
analisados precisam ser categorizados. Um dos problemas metodológicos que se
apresentam aos comparatistas diz respeito à questão de se “viajar” com os conceitos
entre os casos diversos, de se formular conceitos aplicáveis às diferentes realidades
das diversas unidades de análise. Em geral, como dito, comparam-se países, mas
também são frequentes as pesquisas que comparam regiões, tema explorado
adiante. Por ora, basta relembrar os questionamentos e as propostas elaboradas
pelo cientista político italiano, radicado nos Estados Unidos há mais de trinta anos,
no texto em que enfrentou o problema que poderíamos traduzir como o problema da
de- ou má-formação conceitual (no inglês, concept misformation).
29

Na sua visão, o estudo da política comparada é particularmente vulnerável a


esse problema metodológico. O artigo de Sartori é do princípio dos anos 70,
contexto no qual a política comparada expandiu-se significativamente, enquanto
campo com questões próprias. Um campo designado genericamente pelo método
utilizado, diferentemente de outros subcampos da ciência política, em geral rotulados
por seus objetos particulares. Muitas foram as razões desta expansão, o que não
convém explorar neste ponto (cf. A. Lijphart, 1971; P. Schmitter, 1993; e o próprio D.
Collier, 1993).
O fato é que houve, por um lado, o que Sartori chamou de "expansão da
política", na medida em que o mundo se tornara mais politizado (com o aumento da
participação, da mobilização, da intervenção estatal, inclusive em novos campos
sociais etc.), além dos chamados novos campos da política, transcendentes aos
processos governamentais, que haviam se tornado de interesse dos estudiosos; e,
por outro lado, uma "proliferação de unidades políticas", tanto em termos de número
de países independentes como no sentido de que as comparações se haviam
tornado mais abrangentes, muitas vezes globais ou inter-regionais. Estes novos
elementos exigiam, segundo ele, uma profunda renovação conceitual do campo.
Este é o ponto de maior interesse no seu artigo: a questão da necessidade e
das estratégias para alcançar a diferenciação analítica e evitar o esticamento
conceitual (note-se que o texto citado um par de parágrafos acima, de Collier e
Levitsky, explora justamente esses dois objetivos "potencialmente contraditórios"
apontados por Sartori quase quarenta anos antes). As estratégias elaboradas por
este último se baseiam na metáfora da escada de abstração (ou escada de
generalidade)3. O insight básico do autor reside na identificação de um padrão de
variação entre o número de atributos definidores e o número de casos aos quais
esses atributos se aplicam. Assim, são concebidos dois movimentos ao longo da
escada: quando se sobe a escada de generalidade, há os conceitos com menos

______________________________________________
3
No texto original, Sartori utilizou a primeira expressão. No entanto, Collier e Levitsky preferem a expressão que
está entre parênteses e justificam: uma vez que o termo abstrato frequentemente é entendido em contraste
com o termo concreto, este rótulo pode gerar confusão. Na opinião deles, a segunda expressão, escada de
generalidade, expressa mais claramente o significado pretendido pelo primeiro autor.
30

características definitórias, em consequência, aplicáveis a um maior número de


casos, enquanto degraus abaixo estão os conceitos que reúnem mais
características, o que implica na sua aplicação a um menor número de casos. Assim,
quando são escalados os degraus, se ganha em termos de combater o esticamento
conceitual, e quando se desce teoricamente se ganha em termos de diferenciação
analítica entre as diversas formas de democracia.
De olho neste problema metodológico, Collier e Levitsky (1996, 1997)
argumentam que a tendência recente de democratização “levou a uma proliferação
de inovações conceituais, incluindo centenas de subtipos de democracia, i.e.,
‘democracia com adjetivos’” (D. Collier e S. Levistky, 1996). A intenção dos autores é
avaliar essas inovações em termos de suas contribuições ao desafio dual
identificado por Sartori. No olhar crítico dos autores, as estratégias de Sartori são
incapazes de perseguir, simultaneamente, os dois objetivos referidos: quando se
sobe a escada rumo à generalidade, há uma perda da capacidade de diferenciação
conceitual; quando se adota a estratégia alternativa – escada abaixo – aumenta a
vulnerabilidade aos riscos do esticamento conceitual. Por isso, as estratégias de
Sartori podem avançar em um ou em outro desses objetivos, mas não nos dois ao
mesmo tempo – existe uma clara limitação na metáfora da escada, argumentam os
autores.
Depois de demonstrar esta limitação, Collier e Levitsky dedicam-se a explorar
as potencialidades e limitações de três estratégias de inovação identificadas por eles
na literatura de política comparada, com particular atenção aos estudos dos
processos de democratização na América Latina. São elas: primeiro, gerar subtipos
de democracia; segundo, precisar a definição do termo; por fim, modificar o conceito
mais abrangente4, ao qual a democracia é associada. Vale anotar que, nesse
mesmo trabalho, os autores identificaram mais de 550 subtipos de democracia, ao
resenhar cerca de 150 estudos (a maior parte, então recentes) – isto é, “muitas

______________________________________________
4
No inglês, overarching concept.
31

vezes mais subtipos do que países sendo analisados” (1996: 3)5. Conforme
observou L. Diamond, naquele mesmo ano, depois de tomar contato com o referido
trabalho: “Alguns desses subtipos nominais meramente designam características
institucionais específicas ou tipos de democracia completa, mas muitos denotam
formas diminuídas de democracia” (1996: 7). No entanto, ainda é preciso voltar às
estratégias que vêm sendo utilizadas como alternativas à metáfora da escada de
Sartori.
Em primeiro lugar, a estratégia de criação de “subtipos diminuídos de
democracia”. São inúmeros os exemplos de autores que, ao elaborar uma definição
de democracia para fins analíticos, identificam atributos específicos ausentes em
determinados casos – evidentemente, nessa estratégia existe uma definição de
democracia tomada como ponto de partida (os autores utilizam a ideia de um
“conceito raiz” [root concept]), da qual é subtraída uma característica (ou mais),
resultando daí o que os autores chamam de subtipo diminuído de democracia: eles
não são democracias plenas em virtude da ausência apontada6. Ao designarem algo
que não democracias plenas, estas adjetivações são menos vulneráveis ao
esticamento conceitual, e ao identificarem atributos faltantes específicos, elas
aumentam a capacidade de diferenciação analítica destes modelos.
A segunda estratégia alternativa empregada pelos estudos comparativos
sobre a democratização na América Latina é tornar mais precisa a definição de
democracia, incluindo atributos definidores adicionais. Com este procedimento,

______________________________________________
5
Esta impressionante contabilidade está registrada na versão de 1996 do artigo, não publicada, pois a versão
publicada no periódico World Politics, em 1997, é uma abreviação do conteúdo que circulara anteriormente na
Universidade da Califórnia em Berkeley.
6
Alguns dos exemplos colhidos pelos autores, que configuram tipos diminutos da chamada definição
procedimental mínima, que será explorada adiante: “democracia limitada”, “democracia machista” ou
“democracia oligárquica”, quando é ausente o sufrágio universal; “democracia controlada”, “democracia
unipartidária de facto”, ou “democracia restritiva”, quando falta plena contestação; “democracia eleitoral”,
“democracia dura”, ou “democracia iliberal”, quando faltam as liberdades civis. Eles também listam exemplos
de subtipos diminuídos relativos a outro conceito raiz, a chamada definição procedimental mínima expandida,
que como se verá adiante adiciona à definição anterior a efetiva capacidade de governar por parte do governo
eleito: “democracia tutelar”, “democracia vigiada”, ou “democracia protegida”, nestes três casos a plena
democracia é restringida pelo poder de facto de outros poderes, em especial as forças armadas. A lista
completa das referências bibliográficas de onde é colhida tal diversidade conceitual é apontada no apêndice da
versão de 1996 do referido texto de Collier e Levitsy, assim como nas múltiplas notas de rodapé da versão
publicada de 1997.
32

modifica-se o conceito raiz de referência – modifica-se o ponto de partida. Por isso,


trata-se de uma estratégia diversa da criação de subtipos mencionada acima, na
medida em que, ao introduzir essas modificações, o próprio campo semântico com o
qual os pesquisadores trabalham é questionado. Na avaliação de Collier e Levitsky,
esta estratégia aumenta a diferenciação conceitual, ao estabelecer critérios
adicionais para diferenciar uma democracia de não-democracias, e ao mesmo tempo
serve para combater o esticamento conceitual, na medida em que o rótulo não é
aplicado se um caso não atende a esses critérios adicionados7.
Por fim, a terceira estratégia alternativa identificada pelos autores: modificar o
conceito abrangente, em relação ao qual a democracia é vista como uma instância
específica – por exemplo, transpor as análises tradicionais da democracia enquanto
“regime”, isto é, como uma espécie de regime político, para análises da democracia
enquanto atributo do “Estado”, conceito mais abrangente do que o primeiro. Trata-se
de estabelecer um novo padrão de referência – Estado, no lugar de regime – seja
ele mais exigente, como neste caso, pois pode haver um “regime democrático” sem
que haja necessariamente um “Estado democrático” – ou menos exigente, como nos
casos em que se diferencia um regime democrático de uma mera “situação
democrática” ou um “governo democrático”. Pode haver uma situação democrática
sem que se tenha um regime democrático. Estes são justamente os exemplos
utilizados pelos autores para ilustrar esta terceira estratégia de inovação conceitual
existente na literatura de democratização na América Latina em perspectiva
comparada.
Nos dois casos, isto é, tanto no caso de o conceito mais abrangente ser
também mais exigente, como no caso de que ele o seja menos, a diferenciação
analítica é refinada, uma vez que se criou uma categoria analítica adicional,
aumentando assim a capacidade de diferenciação entre os diversos casos

______________________________________________
7
Para ilustrar o uso desta estratégia, os autores utilizam três exemplos. O primeiro corresponde justamente à
chamada definição procedimental mínima expandida de democracia, em que o critério adicionado para
aumentar a precisão do conceito é o “poder efetivo de governar”. O segundo exemplo adiciona a existência de
“algum nível de equidade social”, enquanto o terceiro exemplo o faz com a presença de mecanismos de
controle dos atos do Poder Executivo (no inglês, checks on executive power, parte da chamada horizontal
accountability).
33

comparados. Por outro lado, os autores observam uma diferença com relação à
capacidade de combater o esticamento conceitual: no primeiro caso, isto é, quando
se estabelece um padrão de referência mais exigente, este movimento é irrelevante,
pois não se está preocupado em evitar o erro de se identificar um caso particular
como um regime democrático, embora ele possa não se enquadrar como um Estado
democrático; já no segundo caso, quando se estabelece um padrão de referência
menos exigente, este movimento também serve para evitar o esticamento
conceitual, além de contribuir para a diferenciação, o que se aplica a ambos os
movimentos metodológicos.
Embora se tenha iniciado com estas considerações mais abstratas que
cercam a polissemia do conceito de democracia, o objetivo a seguir é apresentar
certas distinções conceituais que se reputa serem úteis e relevantes para a
discussão do processo de democratização das políticas públicas em geral, gênero
do qual a política externa é considerada uma espécie. Trata-se aqui das principais
referências usadas nos estudos comparativos – como a referida definição
procedimental mínima, em que a democracia é vista como um método de seleção
periódica de governantes via competições eleitorais livres, competitivas e isentas de
fraude massiva, e a levemente modificada definição procedimental mínima
expandida, em que se acrescenta como atributo de um regime democrático a
capacidade real do governo eleito de realizar suas opções de políticas públicas, sem
se submeter a outros poderes.
Antes de seguir, no entanto, algumas palavras sobre a denominada “onda
global de democratização”. Depois, são exploradas as principais definições (ou
marcos de referência) encontradas por Collier e Levitsky nos estudos comparativos
sobre os países da região, e as encontradas em um conjunto de índices analisados
por Münck e Verkuilen (2002). É inegável que desde meados dos anos 70 vem
sendo cada vez maior um número de países considerados democráticos ou em
democratização, ainda que, dependendo de como se define o conceito, como
observou Larry Diamond (1996), em seu presente podia-se contar 117 democracias,
ou podia-se contar 76. O reconhecimento deste fato – algo como uma “onda global”
de conversões democráticas – não implica na adoção de outra crença que é muitas
vezes associada a isso, qual seja, a crença de que este é um processo irremediável
e irreversível. A história não autoriza tais teleologias: pequenos avanços em uma
34

direção podem ser e são realmente seguidos, muitas vezes, de grandes recuos em
sentido contrário.
A ideia de uma voga democrática é persistente na ciência política e nas
relações internacionais. Tornou-se corrente, a partir dos anos 90, a ideia de que se
testemunhava uma terceira “onda democrática”, definida por S. Huntington (1991)
como cada momento na história do século XX em que um grupo de transições para
regimes democráticos ocorre em um período de tempo específico e em número
significativamente superior às transições em sentido oposto, isto é, de uma
democracia para outro regime. Especialmente no início daquela década, a sua
expressiva fórmula se tornou praticamente um mantra, reforçado pelo final da Guerra
Fria e o desmantelamento da União Soviética e de outros regimes comunistas no
Leste Europeu, ainda que a onda estudada naquele momento se referisse aos
processos iniciados na própria Europa, no sul mediterrâneo, em meados dos anos
70, e na América do Sul, desde o seu final, mas, sobretudo, na década de 1980.
Convém fazer o registro de seu esquema histórico, já que se tornou tão usual
nos últimos anos do século XX. Seu esquema é o seguinte: houve uma primeira
onda, longa, de democratização (entre 1828 e 1926), influenciada pelas revoluções
americana e francesa, mas cujas primeiras instituições democráticas propriamente
ditas foram um fenômeno do século XIX – neste período, mais de trinta países
passaram por uma transição para a democracia8. Esta primeira onda foi sucedida
por um período de reversão, isto é, transições de democracia para algum regime
não-democrático (entre 1922 e 1942), seja o “retorno a formas tradicionais e
autoritárias de governo, ou então a introdução de novas formas de totalitarismo de
massa” (1994[1991]: 26-27)9.

______________________________________________
8
Os países identificados como parte da primeira onda democrática são os seguintes: Alemanha, Argentina,
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colômbia, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia,
França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Noruega, Nova Zelândia,
Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, Tchecoslováquia e Uruguai.
9
Nesta primeira onda de reversão, Huntington identifica: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Colômbia,
Dinamarca, Espanha, Estônia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Noruega,
Polônia, Portugal, Tchecoslováquia e Uruguai.
35

A segunda onda democrática, mais curta, foi inaugurada pela ocupação de


territórios pelos países “Aliados” e a subsequente implantação de instituições
democráticas, tendo outros países seguido o mesmo itinerário entre os anos de 1943
e 196210; esta onda também sofreu reveses entre o final dos anos 50 e meados da
década de 70 (1958-1975)11. O momento final desta segunda onda de reversão da
democratização serve de marco inicial para a análise que o autor empreende em sua
obra, a terceira onda democrática, teve início com a transição portuguesa e abarcou
mais de trinta países, entre 1974 e 199012; neste mesmo período, pelo menos nove
países haviam feito a transição oposta, o que levou o autor a apresentar uma visão
mais cautelosa acerca dos rumos da democracia ao redor do mundo, “menos
otimista”, em suas palavras. Ele chega mesmo a questionar se não haveria uma
nova onda de reversão13. Ao mesmo tempo, afirma que não se pode prever o futuro,
pois sempre há um elemento de incerteza quanto ao futuro da democracia mundo
afora.
Em suas considerações acerca da relação entre democracia política e
desenvolvimento histórico, Huntington aponta a necessidade de fazer algumas
distinções, que ele considera relevantes. Primeiro, considera a liberdade individual
como o valor social supremo da democracia política e afirma haver uma alta
correlação entre democracia e liberdade. Segundo, diferencia a ideia de democracia
enquanto forma de governo da ideia de estabilidade política: “as democracias

______________________________________________
10
Segunda onda democrática, sempre de acordo com o autor: Alemanha Ocidental, Argentina, Áustria, Bélgica,
Birmânia, Bolívia, Botsuana, Brasil, Colômbia, Coréia do Sul, Dinamarca, Equador, Fiji, Filipinas, França,
Gâmbia, Gana, Grécia, Guiana, Holanda, Hungria, Índia, Indonésia, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Líbano,
Malásia, Malta, Nigéria, Noruega, Paquistão, Peru, Sri Lanka, Tchecoslováquia, Trinidad e Tobago, Turquia,
Venezuela e Uruguai.
11
Segunda onda de reversão: Argentina, Birmânia, Bolívia, Brasil, Chile, Coréia do Sul, Equador, Fiji, Filipinas,
Gana, Grécia, Guiana, Hungria, Índia, Indonésia, Líbano, Nigéria, Paquistão, Peru, Tchecoslováquia, Turquia,
e Uruguai.
12
Terceira onda democrática, propriamente dita: Argentina, Bolívia, Brasil, Bulgária, Chile, Coréia do Sul, El
Salvador, Equador, Filipinas, Grécia, Guatemala, Haiti, Honduras, Hungria, Índia, Mongólia, Namíbia,
Nicarágua, Nigéria, Panamá, Paquistão, Peru, Romênia, Senegal, Sudão, Suriname, Tchecoslováquia, Turquia
e Uruguai.
13
“Terceira onda de reversão?”, pergunta-se Huntington, que dedica uma seção ao tema. Os países eram então
os seguintes: Bulgária, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Mongólia, Namíbia, Nicarágua, Panamá,
Romênia, Senegal, Sudão e Suriname.
36

provêem canais aceitos para a expressão do dissenso e a oposição no interior do


sistema”, o que pode instabilizar a realidade temporariamente, mas elas geram
menos incentivos para o uso da violência como meio de solução dos conflitos
políticos em uma dada sociedade. A terceira observação do autor remete às
implicações da difusão global da democracia para as relações internacionais –
Huntington subscreve algumas das hipóteses e argumentos da chamada “teoria da
paz democrática”. Por ora, cabe assinalar que o autor identifica um paralelismo entre
a tendência à expansão da democracia e à extensão de uma zona de paz. A última
observação, de cunho mais paroquial, diz respeito à relevância do futuro da
democracia para a sociedade norte-americana, pois, segundo ele, os valores liberais
e democráticos fazem parte da própria identidade dos Estados Unidos enquanto
nação.
A ideia de “terceira onda democrática” gerou bastante debate nas últimas
duas décadas, o que não chega a ser uma surpresa quando se trata das ideias de
Huntington, intelectual tão prestigiado quanto combatido não apenas no âmbito
acadêmico, mas também no debate público nos Estados Unidos e alhures. Este
quadro geral do autor, assim como os de outros esquemas afins com o dele,
influenciou o pensamento produzido no período, pois se juntou a outras formulações
a respeito do fenômeno – pense, sobretudo, nas leituras mais liberais da ordem
mundial, que na passagem dos anos 80 para os 90 se uniram a leituras congêneres
por lideranças políticas, como, por exemplo, na expressão “nova ordem mundial” –
todas elas convergindo em afirmar e defender o avanço da democracia e do
capitalismo. Tratava-se do “triunfo do liberalismo”, tanto no front político como no
âmbito da economia globalizada14.
Evidentemente, esta leitura liberal da ordem internacional do pós Guerra Fria
recebeu inúmeras objeções e qualificações por parte de estudiosos de política

______________________________________________
14
A ideia de “nova ordem mundial” tornou-se lugar comum a partir do discurso do então presidente norte-
americano George Bush, que proferiu um discurso diante do Congresso daquele país intitulado Towards a New
World Order, curiosamente no dia 11 de setembro de 1990, onze anos antes dos atentados terroristas
ocorridos em território norte-americano que abalaram o país e o mundo. Quanto aos textos de acadêmicos que
sustentaram esta ideia ou outras análogas, pode-se mencionar especialmente o trabalho de Francis Fukuyama
(The End of History and the Last Man, de 1992), entre inúmeros que foram produzidos no contexto posterior a
ele.
37

comparada e relações internacionais. Ao comentar a ideia de que o colapso da


União Soviética significara a vitória ao mesmo tempo do Ocidente e dos argumentos
favoráveis ao capitalismo, mesmo um autor conhecido por não ser propriamente um
antiliberal, como Richard Little, sentenciou: “sem dúvidas de que há razões para ser
cético quanto a esta avaliação” (1995: 62). Fred Halliday também buscou apresentar
algumas qualificações à ideia de “expansão da democracia”, as quais apontam para
a precariedade da democracia – primeiro, a construção de regimes democráticos
não é um processo rápido ou de uma vez por todas, mas ocupa um longo período de
transição. São processos que podem levar até mesmo gerações, dependendo do
país, com notáveis casos históricos de retrocesso em democracias antes
consideradas sólidas. Por outro lado, mesmo os Estados capitalistas se encontram
distantes de qualquer unanimidade quanto à preferência pela democracia – não há
um vínculo entre a difusão mundial do capitalismo e a adesão a regimes
democráticos – e mesmo naqueles países capitalistas liberais haveria ameaças às
instituições democráticas, incluindo a cada vez maior intromissão de autoridades
estatais em esferas da liberdade individual, ou os níveis crescentes de abstenção
eleitoral e alienação social. O quadro de sua expansão apontava para a
“precariedade da democracia” (F. Halliday, 1995). Uma ideia tão radical e unilateral
como a de Huntington não poderia permanecer isenta de críticas, mas não cabe aqui
estender-se demasiado no tema de “terceira onda democrática”, ele serve apenas de
contexto mais geral dos estudos acadêmicos e da discussão política sobre
democracia no final do século XX.
Agora é o momento de apresentar propriamente as definições reunidas por
Collier e Levitsky, as quais são utilizadas na literatura sobre a democratização nos
países da América Latina. Naturalmente, não se poderia oferecer uma lista completa
dos conceitos de democracia disponíveis no mercado das ideias, pois, de fato, são
incontáveis os significados associados à ideia de democracia. Trata-se apenas de
explorar alguns dos significados associados às principais adjetivações da
democracia. A polissemia como característica essencial do termo já foi destacada,
como afinal sói ocorrer com os conceitos políticos fundamentais. Agora se trata de
identificar alguns destes sentidos que o termo assume na literatura de ciência
política, com ênfase nas discussões que acompanharam o termo no período final do
século XX e neste princípio de século.
38

Ao se refletir sobre o lugar ocupado pela democracia durante o último século,


parece bastante adequada a caracterização dada por Koselleck, ainda nos anos
1950: a democracia como um conceito generalizante que exclui formas de governo
alternativas. A defesa da democracia tornou-se um slogan, palavra repetida com
frequência e coagulada ideologicamente nos debates sobre a política, acadêmicos
ou não. Sobre os conceitos políticos fundamentais em geral, o historiador observou
que eles poderiam ser categorizados, quanto ao aspecto puramente temporal, em
três grupos. Há os conceitos tradicionais, presentes na doutrina constitucional
clássica, “cujos significados lexicais permaneceram em parte e cuja exigência pode
também ser resgatada empiricamente nas relações de hoje” (2006[1979]:106). Em
segundo lugar, há os “conceitos cujo conteúdo se alterou de maneira tão decisiva
que, a despeito da mesma constituição linguística, são dificilmente comparáveis; seu
significado só pode ser recuperado historicamente”. E, por fim, os neologismos,
surgidos em determinados contextos históricos e que remetem às situações sociais
e políticas determinadas, que buscam registrar o ineditismo de uma dada situação
ou mesmo provocar a sua produção (entre os exemplos, cita os conceitos de
“comunismo” e “fascismo”)15.
A democracia é um conceito que remonta à Antiguidade Clássica, ainda que
não seja o intuito aqui resgatá-lo de um período tão remoto, pois, ao mesmo tempo,
os conteúdos associados a sua significação política sofreram tantas transformações
que tornaria inútil tentar refazer a sua história, ainda mais considerando a
diversidade de histórias políticas dos inúmeros lugares e povos, em momentos
também distantes entre si. Como se pode verificar, o conceito de democracia não
apenas não perdeu a centralidade que ocupou durante todo o século XX, como sua
importância parece ser redobrada depois do término da Guerra Fria. Aliás, cabe
assinalar que, mesmo durante o período entre o final da Segunda Guerra Mundial e
o fim da Guerra Fria, uma das lutas conceituais em torno do termo opunha as

______________________________________________
15
É praticamente infindável a criação de neologismos. Na história recente dos dois países estudados, são
muitos os conceitos cunhados para designar tendências políticas, como denotam as expressões “peronismo”,
“varguismo”, ou, nas décadas mais recentes, os fenômenos do “alfonsinismo”, “menemismo” ou
“kirchnerismo”, “lulismo”etc., todas elas destacando o papel ocupado por estas lideranças pessoais nos
respectivos sistemas de governo presidencialistas, tema que será retomado no capítulo 2
39

“democracias liberais” às “democracias populares”, apropriações discursivas que


refletiam o conflito político-ideológico então vigente – e significados, valores e
projetos políticos tão diversos, todos reivindicando o status democrático16.
Apesar do debate durante a existência da União Soviética e das demais
formas de “socialismo real”, entre uma versão liberal e uma popular-socialista de
democracia, não parece sem razão adotar a hipótese de que, após a Segunda
Guerra Mundial, no entanto, a hoje denominada definição procedimental mínima
tornou-se hegemônica nos países ocidentais. No âmbito da ciência política, este fato
esteve relacionado a um esforço de padronização do uso do termo democracia para
fins analíticos. A necessidade de comparar sistemas políticos e seus processos de
democratização serviu de justificativa, muitas vezes, para definir minimamente o
conceito, como se o procedimento de colocar-se no topo da escada da generalidade
fosse a única estratégia possível de comparação. Ora, os estudos comparativos
lidam sempre com similaridades e diferenças, e que, além disso, existem diferentes
estratégias ou lógicas de comparação, entre sistemas políticos relativamente mais
similares ou entre mais diferentes entre si17. Assim, apesar de haver significado uma
importante padronização conceitual, limitar-se à definição procedimental mínima
parece ser inadequado por razões metodológicas, como se discute ao final da
seção, e pela necessidade de fomentar o diálogo acadêmico, como se discute nos
trechos sobre o pluralismo teórico contemporâneo.
Por outro lado, embora não se devem limitar as pesquisas e o debate a uma
concepção de democracia, cada um destes modelos deve fornecer um conjunto

______________________________________________
16
Ainda hoje, a democracia recebe adjetivações “populares”, como é o caso da República Popular da China e
da República Democrática Popular da Coréia, para designar regimes que estão bastante distantes das ideias
de estado democrático de direito e de democracia representativa liberal, que caracterizam as concepções
mínimas trabalhadas aqui.
17
O que se tem em mente são as duas estratégias que J. S. Mill (1974) denominou como “método da diferença”
e “método da semelhança”. No “método da diferença”, são selecionados casos que possuem todas as
características relevantes para a explicação similares, exceto duas: uma sendo aquela que se pretende
explicar (em linguagem metodológica, a chamada variável dependente), a outra a que se supõe poder explicar
a anterior (variável independente). O “método da semelhança” (no inglês, method of agreement), inverte a
lógica para alcançar o mesmo objetivo de explicação: são selecionados casos em que a maioria das
características relevantes assume valores diferentes, exceto a variável explicativa (independente) e o resultado
que se pretende explicar (dependente). O primeiro é denominado por Przeworski e Teune (1970) como “most
similar system”, enquanto o segundo é chamado de “most different system”.
40

identificável de marcos de referência, de pontos de comparação, enfim, um conjunto


de atributos que permita: em primeiro lugar, descrever um sistema, o que envolve a
extensão na qual um sistema político particular é democrático ou não, em um dado
momento; em segundo lugar, comparar os diversos sistemas; e, finalmente, analisar
se os sistemas se estão tornando mais ou menos democráticos, ao longo de certo
período investigado.
É curioso notar que a maior parte dos estudiosos que definem de forma
minimalista a democracia – como Huntington, entre tantos outros, dominantes na
maior parte das academias, como é o caso da influente academia norte-americana –
têm consciência das diferenças que existem entre as inúmeras democracias, antigas
ou recentes, inéditas ou restabelecidas. Veja-se, por exemplo, esta ressalva feita
pelo próprio Huntington:

“os regimes políticos nunca se enquadrarão perfeitamente em caixas definidas


intelectualmente e qualquer sistema de classificação deve aceitar a existência de
casos ambíguos, fronteiriços ou mistos (...) embora com todos estes problemas a
classificação de regimes em termos de seu grau de democracia procedimental
permanece uma tarefa relativamente simples” (1991: 8-9).

No entanto, o problema é que esta ressalva soa como um mero improviso


retórico, como uma mera cláusula de proteção contra prováveis acusações de
ingenuidade ou de esticamento conceitual, uma vez que, na prática, ela não tem
repercussões sobre as análises e comparações empreendidas. Basta retornar, por
exemplo, às ondas democráticas listadas anteriormente: quanta diversidade no
interior de cada “onda”! Ou, com mais tempo, perceber como no restante do livro o
seu autor parece não dar tanta importância à diversidade concreta entre os regimes
que são incluídos em cada um desses movimentos, nos diversos momentos
históricos dos últimos quase dois séculos. Esta observação crítica vale tanto para a
sua contabilidade, pois muitos casos considerados democráticos dificilmente seriam
mantidos nesta categoria, caso os critérios não fossem tão minimalistas, como para
a sua tentativa de “explicação” da alegada expansão global da democracia. Neste
último caso, a falha em reconhecer as diferenças atinge o principal objetivo da obra,
41

uma vez que o propósito do livro é “tentar explicar por que, como e com que
consequências um grupo de transições para a democracia, mais ou menos
contemporâneas, ocorreu nos anos 1970 e 1980 e entender o que essas transições
podem sugerir sobre o futuro da democracia no mundo” (Huntington, 1991: 30)18.
Como dito acima, cada definição de democracia identifica um conjunto de
marcos de referência. Na mencionada pesquisa de Collier e Levitsky (1996, 1997),
seus autores estruturaram o Quadro abaixo (aqui traduzido para o português com
leves adaptações), na qual se pode visualizar um esquema dos significados
associados por cada uma das definições de democracia: (1) definição eleitoral; (2)
definição procedimental mínima; (3) definição procedimental mínima expandida; (4)
definição prototípica de democracia industrial; e (5) definição/concepção
maximalista. Trata-se de um spectrum de definições identificadas nos estudos sobre
“democratização recente”. Os autores reconhecem que não foi possível fazer justiça
a todas as nuanças de significado, e por isso pretenderam identificar de forma
sumária os pontos de referência cruciais na orientação dos trabalhos analisados por
eles. Além disso, acrescentam que

“as definições examinadas são principalmente ‘procedimentais’, no sentido de que


elas focam em procedimentos democráticos e não nas políticas substantivas ou
outros resultados que deveriam ser vistos como democráticos. Muitas são também
definições ‘mínimas’, na medida em que elas deliberadamente focam no menor
número possível de atributos que ainda são vistos como capazes de produzir uma
definição viável (embora, não surpreendentemente, qualquer um encontra
desacordo sobre quantos atributos são necessários para uma decisão ser viável).”
(1996: 6)

No esquema elaborado por eles, cada nova definição acrescenta novos significados
à definição anterior, com exceção da última (concepção maximalista), pois seus
defensores usualmente não incluem os significados contidos nas anteriores19. Como

______________________________________________
18
Em um trecho anterior à ressalva citada, o autor afirma que somente a definição minimalista permite a
precisão analítica e os referenciais empíricos que tornam o conceito útil: “Por algum tempo depois da Segunda
Guerra Mundial, travou-se um debate entre aqueles que, na linha clássica, definiam democracia segundo fonte
ou propósito e o crescente número de teóricos que aderiam ao conceito processual de democracia, à maneira
schumpeteriana. Nos anos 70 o debate tinha terminado e Schumpeter vencera. Cada vez mais os teóricos
estabeleciam distinções entre definições racionalistas, utópicas e idealistas de democracia, por um lado, e
definições empíricas, descritivas, institucionais e processuais, por outro, concluindo que somente a última
definição permitia a precisão analítica e os referenciais empíricos que tornam utilizável o conceito” (1991: 6-7).
19
Nesse sentido, os autores observam o seguinte: “Embora este spectrum de significados não forme uma
‘escala cumulativa’ perfeita, com exceção da última coluna da direita, cada definição subsequente inclui todos
42

se pode visualizar a seguir, a definição procedimental mínima, por exemplo,


acrescenta à concepção mais minimalista de todas elas (a definição eleitoral, ou
“eleitoralista”, em que basta a existência de eleições razoavelmente competitivas,
isenta de fraude massiva e com amplo sufrágio), a existência de liberdades civis
básicas: liberdade de expressão, assembleia e associação. A definição
procedimental mínima expandida, por sua vez, bastante relevante segundo os
estudiosos dos casos latino- ou sulamericanos, acrescenta a condição de que os
governos eleitos possuam poder efetivo de governar. Observe-se o

______________________________________________
os atributos envolvidos nas definições prévias (veja a linha reforçada na figura). Este ordenamento tem um
papel crítico em dar estrutura para as inovações conceituais analisadas no restante deste artigo” (1996: 10).
43

Quadro 1, que recebe explicações sobre cada uma das colunas e


comentários adicionais logo depois:
44

Quadro 1 – Marcos de referência conceitual utilizados nas pesquisas comparativas


sobre democratização recente
(3) (4)
(2) (5)
(1) Definição Concepção
Definição Definição /
Definição procediment prototípica de
procedimental Concepção
eleitoral al mínima democracia
mínima maximalista
expandida industrial
Significados
Papel
associados
Principais definições de democracia importante na
Frequentemente
empregadas na literatura; com freqüência, formação de
não é definida
são apresentadas e aplicadas com subtipos,
explicitamente
considerável cuidado embora
indefinida
Eleições com
sufrágio
universal
Frequentemente
razoavelmente SIM SIM SIM SIM
não incluído
competitivas e
isentas de
fraude massiva
Liberdades civis
básicas: direitos
Frequentemente
de expressão, SIM SIM SIM
não incluído
assembleia e
associação
Governos
eleitos possuem Frequentemente
SIM SIM
poder efetivo de não incluído
governar
Características
políticas,
econômicas e
Frequentemente
sociais SIM
não incluído
associadas à
democracia
industrial
Igualdade
socioeconômica
e/ou altos níveis
de participação
popular nas SIM
instituições
econômicas,
sociais e
políticas
Fonte: D. Collier e S. Levitsky (1996), com leves adaptações ao português. As referências que
servem de exemplo para cada uma das colunas estão presentes nos textos originais, tanto na própria
figura como ao longo do texto e no apêndice ao final da versão não publicada, mais completa do que
a posterior, do ano seguinte.

Nota-se que existem três observações adicionais sob a primeira linha do


Quadro, que dispõe as cinco definições/concepções: as definições (1), (2) e (3) são
apontadas como sendo as “principais definições de democracia empregadas na
literatura”, além de serem frequentemente “apresentadas e aplicadas com
45

considerável cuidado”, enquanto a definição (4), inspirada em um modelo do que


seriam as democracias industriais, apesar de exercer um papel importante na
formação de subtipos, é avaliada pelos autores como “indefinida”, e, por fim, a
definição (5), denominada maximalista, “frequentemente não é definida
explicitamente”.
Os autores põem toda a ênfase sobre as três primeiras definições, que eles
consideram predominantes na literatura sobre democratização recente na América
Latina. Segundo eles, a definição eleitoral é utilizada por muitos estudiosos20, mas
devido à preocupação diante da possibilidade de se estender o rótulo democrático a
países nos quais, embora haja eleições regulares, as violações às liberdades civis
são comuns, “emergiu um consenso substancial em torno da definição
procedimental mínima ou da definição procedimental mínima expandida”. É clara a
preferência dos autores por estas definições, como se viu explicitado na citação de
seis linhas transcrita antes do Quadro acima.
Em sentido semelhante, Maria Helena de Castro Santos (2001) afirma que a
maior parte dos autores adota a definição procedimental mínima, “na tradição de
Schumpeter/Dahl”, mas ela lembra a advertência formulada por outra estudiosa em
estudo de democratização na América Central, sobre a chamada falácia do
eleitoralismo (cf. Terry Karl, 1995), uma vez que eleições e partidos pode não ser o
suficiente para que se possa constituir uma democracia. A cientista política brasileira
observa o seguinte:

“A literatura tenta escapar deste problema acrescentando atributos ao procedural


mínimo. Dessa forma, muitos autores ‘precisam’ essa definição de democracia,
adicionando-lhe novos ‘atributos definidores’ (cf. Collier e Levitsky, 1997). Karl
(1990), por exemplo, baseada na experiência latino-americana, inclui na definição de
democracia prerrogativas militares limitadas. Schmitter e Karl (1996) adicionam outro
atributo ao procedural mínimo, relativo à autodeterminação do sistema político. Este
deve ser capaz de agir de forma independente, a salvo de constrangimentos
impostos por algum outro sistema político. Eles também refraseiam a condição
formulada por Karl (1990) em termos mais gerais, indicando que governantes eleitos
não devem sofrer restrições severas ou ter suas decisões submetidas ao veto de

______________________________________________
20
Os autores situam, por exemplo, a teoria schumpeteriana como “eleitoral”, em vez de “procedimental mínima”,
como se fez anteriormente nesta tese. Não se pretende explorar agora esta divergência, mas registrar a
opinião de que o enquadramento de Schumpeter como “procedimental mínimo” é mais comum do que fizeram
os autores.
46

atores não eleitos, como servidores civis arraigados ao cargo ou gerentes de


empresas estatais, e especialmente os militares.” (Santos, 2001: 741-742)

O procedimento metodológico de expansão da definição mínima ilustra a


estratégia de “tornar mais precisa” a definição de democracia, adicionando atributos
à “definição raiz” de número (2). A estratégia de criar subtipos diminuídos vale-se da
subtração de certa(s) característica(s), para descrever ou avaliar casos concretos de
regimes “democráticos” (isto é, nestes casos não se trataria de democracias plenas).
Diferentemente disso, a estratégia de “precisar” o significado de democracia põe em
questão o próprio campo semântico do termo. Também há casos em que os
“subtipos diminuídos” são criados a partir desta definição “mais precisa” do conceito,
como é o casos, muitas vezes, de subtipos diminuídos que tomam como raiz a
definição procedimental mínima expandida.
Existem ainda duas questões a apontar no Quadro. A primeira diz respeito
aos chamados “regimes híbridos”, discussão que se relaciona à adequação da
dicotomia entre regimes democráticos e autoritários. Alguns autores apresentam
reflexões sobre os regimes existentes, no sentido de questionar a adequação desta
categorização dualista. A sugestão é pelo reconhecimento de regimes “híbridos” ou
“mistos”. Pode-se dizer que, em alguma medida, a multiplicação de subtipos
diminuídos já constitui um movimento nesta direção. Seriam democracias parciais?
Ou, como questionam-se Guillermo O’Donnell e Phillipe Schmitter (1986), em artigo
que abre uma conhecida série de estudos comparativos sobre a região, seriam estes
regimes concretos dictablandas ou democraduras?
Apesar do tom levemente gracioso dos neologismos em castelhano, trata-se
de uma questão relevante do ponto de vista analítico, pois se refere a uma
classificação fundamental e subjacente em praticamente toda a literatura sobre
democratização, e do ponto de vista normativo, da luta pela significação da
democracia e pelo seu aprofundamento.
Quando um regime combina elementos democráticos e autoritários, por
exemplo, em seu processo de tomada de decisões sobre as principais políticas
públicas, como tratá-lo, do ponto de vista analítico? São regimes democráticos que
podem ser considerados consolidados? Estariam em consolidação? E quais são as
consequências disto para uma crítica democrática? Estas e outras questões ainda
serão exploradas mais a fundo, com o foco específico nas questões que circundam o
47

processo decisório, portanto não convém se estender sobre isto aqui. Apenas se
levanta o problema, para aprofundamento posterior21.
A segunda questão a apontar no Quadro refere-se ao que Collier e Levitsky
chamaram de “democracias problemáticas”. Algumas reflexões críticas podem
indicar como esta categorização é que talvez seja problemática, de fato. Mas é
compreensível, ao mesmo tempo, pela ênfase que os autores põem sobre as
concepções ao mesmo tempo procedimentais e mínimas, como já se destacou. Se
os subtipos gerados a partir de (2) e (3) resultam em versões diminuídas de alguma
destas definições de democracia (no inglês, diminished subtypes, expressão que
aparece quinze vezes na versão publicada e mais de trinta na versão completa, não
publicada), quando o marco de referência utilizado é a definição (4), isto é, uma
“concepção prototípica das democracias industriais”, os autores falam em
“democracias problemáticas”22. Neste caso, o modelo tomado como referência se
baseia em um conjunto de atributos os quais estariam supostamente presentes nos
sistemas políticos dos países de industrialização avançada. Mas o que seriam estas
“democracias problemáticas”? Segundo eles, é um dos tipos de adjetivação ou de
inovação conceitual que se refere ao modelo das “democracias industriais”, ou seja,
existe um modelo prototípico a partir do qual são subtraídos certos atributos,
resultando em adjetivações as mais diversas, todas indicando uma carência do(s)
regime(s) político(s) sob estudo/avaliação. Elas também são subtipos de
democracia, ou democracias parciais, pois em cada uma delas carece de algum
elemento definidor da democracia, de acordo com um protótipo referencial23.

______________________________________________
21
S. Mainwaring, D. Brinks e A. Pérez-Liñán (2001), em artigo em que classificam os regimes políticos
latinoamericanos entre os anos de 1945 e 1999, por exemplo, preferem uma escala tricotômica, alternativa à
dicotomia tradicional democracia-autoritarismo. Entre essas duas categorias, é inserida uma terceira,
designada “semidemocracia”. Existe uma literatura relativamente extensa sobre as inadequações da dicotomia
mencionada (sobre esta discussão e outras afins, ver, p. ex., os textos de L. Diamond, 1996, 1999; G.
O’Donnell, 1994, 2001; ou T. Karl, 1995).
22
A questão das “democracias problemáticas” é discutida pelos autores apenas na versão mais longa da
pesquisa, não publicada. Na versão publicada em 1997, existe apenas uma indicação em nota de rodapé (n.
25), a qual remete o leitor à outra versão do trabalho.
23
Os autores elaboraram um quadro em que agrupam exemplos destas adjetivações de acordo com a carência
referente ao modelo prototípico suposto. Segundo eles, foram encontradas mais de uma centena de
adjetivações referidas a esse protótipo. A lista de exemplos é a seguinte, que se transcreve aqui: quando se
48

Quando se examina a lista de adjetivações que exemplificam a conceituação destes


regimes problemáticos, chama a atenção o fato de serem ainda adjetivadas como
democracias, apesar da carência de tantos elementos diversos, problema análogo
ao mencionado acima, o dos regimes híbridos e suas classificações.
Com relação à utilização da definição “prototípica” de democracia industrial,
ela é ainda mais problemática, pelo menos da forma como ela é tratada pelos
autores. Isso porque esta formulação conceitual supõe que nos países de
“democracia industrial” as instituições democráticas funcionam adequadamente,
ignorando assim as severas debilidades e as inúmeras crises experimentadas por
estes países tomados como protótipo de democracia. Diante da profunda crise de
legitimidade da democracia representativa nos países europeus ocidentais e nos
Estados Unidos, principais referências de “democracias avançadas” ou
“consolidadas”, como também é comum se referir a estes regimes em boa parte da
literatura, não seriam também esses países, supostamente prototípicos, também
exemplos de “democracias problemáticas”? O problema não estaria, assim, na
própria concepção prototípica, o que logicamente colocaria em xeque também a
classificação de democracias “recentes” ou “não-industriais” como problemáticas?

1.1.2 Limitações metodológicas da adjetivação e da hegemonia da concepção


procedimental mínima

______________________________________________
quer apontar a fraqueza da própria consolidação do regime, os exemplos são “democracia frágil”, “democracia
imatura”, “democracia incerta” e “democracia não-consolidada”; quando é enfraquecida a accountability
horizontal: “democracia caudilhista”, “democracia delegativa”, “democracia plebiscitária” e “democracia
populista”; quando falta efetiva participação cidadã: “democracia despolitizada”, “democracia dual”,
“democracia elitista” e “democracia de baixa intensidade”; quando faltam efetividade e responsividade do
governo e do regime: “democracia bloqueada”, “democracia impotente”, “democracia superinstitucionalizada”,
“democracia fraca”; quando falta o compromisso de sustentar políticas de bem-estar social: “democracia
conservadora”, “democracia de input”, “democracia moderada” e “democracia neoliberal”; quando falta a
soberania nacional: “democracia controlada”, “democracia internacionalmente dependente”, “democracia
neocolonial” e “democracia imposta pelos EUA”; quando são enfraquecidas as condições econômicas
favoráveis: “democracia insolvente”, “democracia sem prosperidade”, “democracia de baixa renda” e
“democracia pobre”; quando falta estabilidade política e social: “democracia cercada”, “democracia conflitiva”,
“democracia socialmente explosiva” e “democracia desgovernada”; e, finalmente, quando é apontado algum
elemento genérico: “democracia incompleta”, “democracia problemática”, “democracia enferma” e “democracia
opaca”. Por questões de legibilidade, evitou-se aqui indicar as referências de cada uma dessas adjetivações –
as referências bibliográficas completas estão no apêndice de Collier e Levitsky (1996).
49

Até o momento, o que se quis apresentar foi uma visão estruturada acerca do
procedimento de conceituação da democracia, em particular quando se trata da
literatura de política comparada sobre os países da região. A compreensão da
natureza e da estrutura desse procedimento, tantas vezes repetido na literatura e,
em geral, considerado necessário à comparação, passa pelo entendimento das
adjetivações do termo. Procurou-se demonstrar que existem algumas estratégias
predominantes de inovação conceitual, com a ajuda do texto clássico de Sartori e da
extensa pesquisa de Collier e Levitsky. Além disso, espera-se que tenha ficado claro
como as concepções ao mesmo tempo procedimentais e mínimas predominam nos
estudos comparativos sobre a região. Mesmo quando os autores buscam apontar,
em geral alegando um viés crítico, as deficiências institucionais de um determinado
sistema político – ou de um conjunto deles, como se faz com frequência nos
“estudos de área” – mesmo nestas estratégias de criação de subtipos diminuídos de
democracia, as concepções procedimentais mínimas predominam como marco de
referência fundamental.
Por outro lado, a pesquisa de Collier e Levistky aponta ainda para o que se
poderia chamar de baixa especificidade analítica das abordagens críticas ao
“procedimentalismo mínimo”. Segundo eles, a tarefa metodológica de definir os
atributos específicos que constituem as definições prototípica e maximalista não é
uma preocupação comum aos trabalhos que as utilizam como marco de referência,
diferentemente do que ocorre nos trabalhos que utilizam a definição eleitoral, a
definição procedimental mínima ou a versão procedimental mínima expandida.
Porém, como avalia a pesquisa de G. Munck e J. Verkuilen (2002), outro
trabalho sobre os problemas de conceituação e mensuração da democracia, esta
deficiência metodológica não se limita às concepções maximalistas. As
conceituações mínimas, que subjazem aos índices analisados por eles, também
sofrem de problemas de especificidade analítica, entre outras limitações
metodológicas, na visão dos autores.
Em primeiro lugar, cabe apresentar a natureza do trabalho de Munck e
Verkuilen, pois se trata de um esforço um pouco diferente do trabalho de Collier e
Levitsky. Estes últimos estão preocupados em identificar as estratégias
predominantes de inovação conceitual no campo dos estudos sobre as transições
democráticas recentes na América Latina, assim como as suas respectivas
contribuições para os desafios aparentemente contraditórios de aumentar a
50

diferenciação analítica e evitar o esticamento conceitual. O trabalho de Munck e


Verkuilen, por outro lado, analisa um conjunto de bases de dados disponíveis sobre
democracia, os índices mais utilizados em pesquisas estatísticas e também usado
em muitos estudos qualitativos, em termos da sua adequação diante de três desafios
metodológicos: conceituação, mensuração e agregação.
O que mais interessa aqui são as considerações deles acerca do primeiro
desafio – conceituar a democracia – e de como essas conhecidas bases de dados
enfrentam o desafio. A intenção é fornecer elementos para se discutir, desde uma
perspectiva adicional, a questão da conceituação da democracia e dos seus usos
dentro da política comparada. Sobre este desafio, os autores iniciam com esta
observação de caráter geral:

“a tarefa inicial na construção de uma base de dados é a identificação dos atributos


que são constitutivos do conceito sob consideração. Essa tarefa, que aponta para
uma especificação do significado do conceito, afeta todo o processo de geração de
dados, considerando que ela fornece a âncora para todas as decisões
subsequentes” (Munck e Verkuilen, 2002: 7-8).

Eles advertem para a tentação da facilidade por trás de um impulso “natural e


compreensível” de encontrar critérios objetivos e imutáveis para guiar a tarefa: “não
há uma regra rígida e rápida que possa ser utilizada para determinar que atributos
devam ser incluídos em uma definição de um dado conceito”. Eles concluem o tema
afirmando que a conceituação é uma tarefa intimamente ligada à teoria, como já se
argumentou no início deste capítulo, e é uma atividade em aberto, isto é, que deve
ser avaliada em termos do caráter frutífero ou não para as teorias que a
conceituação ajuda a formular. Finalmente, eles reconhecem que não há um ponto
de onde alguém possa afirmar possuir uma definição “correta” de certo conceito,
como democracia.
Para os autores, existem duas tarefas que compõem o desafio de conceituar
a democracia. A primeira refere-se à “identificação dos atributos”, ou seja, à
enumeração das características ou variáveis que preenchem a definição. Esta
primeira tarefa requer que sejam evitadas as concepções maximalistas, que ao
incluir muitos atributos, e aquilo que eles chamam de “componentes dos atributos”,
variáveis mensuráveis e mais específicas que preenchem os “atributos” da definição,
correm os riscos de, por um lado, não possuir referenciais empíricos, ou, por outro
lado, ter correspondentes na realidade, mas serem concepções tão sobrecarregadas
51

que perdem sua utilidade analítica para fins comparativos, entre outros fins. A tarefa
também requer que sejam evitadas as concepções minimalistas, que, ao restringir
excessivamente os atributos necessários a uma democracia (e seus “componentes”)
pode terminar por incluir tantos casos que se faz necessário adicionar outros
atributos à definição minimalista, para que se possa ter utilidade analítica,
justamente parte das estratégias dominantes de inovação conceitual identificadas
por Collier e Levitsky.
A segunda tarefa refere-se à organização vertical dos atributos de acordo com
o nível de abstração. Embora seja parte do desafio de conceituação, ela também
possui impactos significativos sobre os desafios subsequentes de mensurar – como
se afirmou também acerca da tarefa de identificar os atributos e seus componentes –
e de agregar os elementos constituintes de certa definição. O raciocínio dos autores
é relativamente simples: considerando que os diversos atributos, e componentes de
atributos, os quais constituem certa definição de democracia, estão relacionados
entre si, é necessário organizar verticalmente estes elementos de acordo com os
diversos níveis de abstração. Para isso, os autores utilizam a metáfora de “isolar as
‘folhas’ da árvore conceitual”. A maioria dos índices analisados logra organizar os
atributos em termos de níveis de abstração (em uma escala decrescente, p. ex.,
atributos, componentes de atributos, subcomponentes, e assim por diante), apesar
de alguns problemas adicionais24.
Segundo a análise de Munck e Verkuilen (2002), mesmo os índices
prestigiados, que se encontram entre os mais citados e que adotam em geral uma
concepção procedimental mínima – estão incluídos, entre outros, os índices da
Freedom House e o relativamente bem conhecido projeto Polity IV – possuem
problemas de especificidade analítica. Se não logram ser específicos o suficiente
para a mera classificação dos regimes enquanto democráticos / não democráticos,
como poderiam servir de guia para se discutir o problema que se propõe nesta

______________________________________________
24
Entre os principais problemas, os autores apontam os casos de “redundância”, quando diferentes
características se referem a um mesmo aspecto da democracia, e de “conflation”, termo para o qual não se
encontrou uma tradução adequada ao português, mas que se refere aos casos nos quais características que
se referem a diferentes aspectos da democracia são tidas como componentes de algum deles apenas.
52

investigação? Sem falar na ausência da questão da participação política – mesmo


entre aqueles que mencionam como referência perspectivas teóricas que a
identificam como uma das condições democráticas25. Silêncio, isto é o que se
encontra a respeito da incorporação da democracia aos processos de tomada de
decisões públicas, o que está diretamente relacionado ao problema de pesquisa
desta tese.
A investigação realizada sobre a conceituação da democracia na política
comparada, em particular nos estudos latinoamericanos, aponta para a
impressionante compulsão de adjetivar. Com frequência, a adjetivação é utilizada
para classificar um determinado sistema político como carente em um determinado
aspecto do que se considera uma definição satisfatória de democracia. Outras
vezes, a adjetivação tem por objetivo colocar em questão o próprio campo semântico
de uma determinada definição tomada como referência. Não convém repetir a
complexa estruturação em torno da adjetivação da democracia, mas apenas se quer
realçar essas características gerais do processo de associação de qualificativos
adicionais ao termo. As definições e os adjetivos associados ao conceito, cerne da
impressionante inovação conceitual presente no campo, são insuficientes para se
penetrar no problema central da tese. A mera estruturação de escadas conceituais,
em que se adiciona e/ou são subtraídos certos atributos de uma definição raiz, não é
um procedimento suficiente para que se realizem estudos comparativos sobre a
democratização dos processos decisórios. Não parece ser possível o ganho
epistemológico nem em termos de diferenciação analítica, nem em termos de se
evitar o esticamento conceitual, ao contrário do que sugerem os autores da primeira
pesquisa longamente apresentada e discutida. Parece razoável sustentar que,
quando se analisam as características dos processos de democratização ou da
tomada de decisão em uma determinada esfera das políticas públicas, em vez de
pensar no regime como um todo, é que se pode avaliar quão democrático é este ou
aquele processo em particular. Obviamente, a estratégia de analisar âmbitos

______________________________________________
25
Veja-se, por exemplo, o uso que se faz do conceito de “poliarquia”, de R. Dahl, excluindo o elemento
participativo explicitado como uma das condições para a existência de um regime poliárquico. Este paradoxo
será retomado adiante, quando se discutir um pouco mais a sua perspectiva teórica.
53

específicos das políticas públicas, como, por exemplo, as políticas externas de


integração regional, não permite que sejam feitas generalizações a partir dessas
análises. As conclusões, como aquelas, realizadas nesta tese, devem ser restritas
ao recorte empírico específico, não podendo ser estendidas ao regime como um
todo.
Adicionalmente, parece razoável sustentar a ideia de que é preciso promover
o diálogo entre as diversas perspectivas teóricas sobre a democracia e os seus
processos políticos. As adjetivações são geralmente utilizadas para caracterizar o
regime político como um todo. As meras adjetivações não são capazes de contribuir
para a reflexão sobre campos específicos das políticas públicas – seja o campo da
política externa, seja sobre outros campos, como as políticas econômicas em
sentido amplo, ou as políticas sociais, ou recortes específicos dentro de cada um
dos campos em torno dos quais se promove o debate acadêmico e político em um
país democrático. Campos diversos das políticas públicas possuem processos
decisórios também diversos, alguns com maior grau de inclusão democrática, outros
em que o círculo decisório é bastante mais restrito, ou mesmo fechado às lideranças
políticas. As adjetivações são referências metonímicas, como destacou
recentemente o cientista político Guillermo O’Donnell (1999): “chamar um ‘país’ de
democrático é uma metonímia: isto é, designa o todo, um país, por um atributo de
conotação positiva ligado a uma de suas partes, o regime”.
Além disso, o que existe na literatura é uma predominância das definições
procedimentais mínimas. Em que medida essas definições, para ficar naquelas que
predominam na literatura discutida anteriormente, podem nos dizer algo sobre o que
poderia ser a democratização da tomada de decisões? A existência de eleições
periódicas livres e isentas de fraude e de alguns conjuntos de liberdades, que muitos
autores apontam como suposto da concepção procedimental mínima, não são
suficientes para que as políticas públicas realizadas pelo governo eleito sejam
consideradas democráticas. Exceto no caso de se considerar que o mandato é um
“papel em branco”, entregue periodicamente pelo mecanismo do sufrágio a alguma
das forças políticas em disputa pelo governo e pelos demais cargos eletivos, sobre o
54

qual se pode escrever aquilo que entenderem os que venceram a competição


eleitoral26.
Ao mesmo tempo, as adjetivações que tomam como referência não as
definições eleitoral, procedimental mínima ou mínima expandida, mas alguma
concepção prototípica de democracia industrial, ou aquilo que se chamou de
concepção maximalista de democracia, em geral mal definem as características de
uma democracia. Novamente, a categorização busca classificar todo o regime como
democrático, ou, o que é mais comum, identificar alguma carência específica, que se
expressa por meio de uma adjetivação diminuidora. Nestes casos, como seria
possível avaliar a democratização do processo decisório com o uso de concepções
de “democracia avançada” ou de “democracia maximalista” tão pouco definidas? Isto
sem considerar o fato de que, nos países considerados avançados por esta
literatura, suas democracias representativas se encontram em uma crise de
legitimidade social, mas este é um assunto para a próxima seção, sobre a
hegemonia da concepção procedimental desde o pós Segunda Guerra e a alegada
crise do modelo de governo representativo.
Outra conclusão relevante que se pode extrair dos trabalhos analisados é que
os problemas metodológicos relacionados à baixa especificação analítica não são
exclusividade daqueles que escapam ao minimalismo procedimental. Algumas das
mais referenciadas bases de dados, que trabalham dentro dessa concepção,
também padecem de graves problemas metodológicos, mesmo quando avaliadas
em seus próprios termos. Ademais, como destaca a análise dos índices de
democracia, existe uma notável omissão por parte daqueles que utilizam definições
procedimentais mínimas da democracia, apesar de serem inspirados, em sua
maioria, na formulação de R. Dahl (1971): a participação. No pluralismo democrático

______________________________________________
26
Esta questão refere-se à bem conhecida discussão presente na teoria política e também discutida em outros
âmbitos sociais, que transcendem os debates acadêmicos. De um lado, está a visão de que a legitimidade
conferida pelos eleitores transfere a soberania decisória, uma vez que os cidadãos delegaram-na aos
representantes políticos. Do outro, a visão de que, mesmo durante a vigência dos mandatos políticos, os
cidadãos permanecem titulares das escolhas e suas preferências devem ser levadas em conta nas decisões
políticas dos representantes. Na segunda perspectiva, o direito dos cidadãos não exclui nem mesmo a
possibilidade de revogação dos mandatos pelos próprios eleitores, com instrumentos como o recall ou
“referendo revocatório”, entre outros.
55

de Dahl, a ser explorado em termos mais teóricos do que apenas conceituais, a


participação é considerada como um dos elementos da “poliarquia”, conceito
elaborado para designar “realisticamente” as democracias existentes, em
contraposição a uma suposta concepção “ideal” ou “axiomática” de democracia.
É paradoxal que a obra Poliarquia seja citada frequentemente como uma das
principais referências teóricas, se não é a principal encontrada nos estudos
contemporâneos sobre democracia, mas que, ao mesmo tempo, uma das condições
democráticas previstas na obra publicada originalmente em 1971, a condição de
possuírem os indivíduos oportunidades plenas “de ter suas preferências igualmente
consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação
decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência” (Dahl, 2005[1971]: 26), isto é, o
elemento participativo, praticamente desapareça por completo, mesmo entre aqueles
que se dizem alinhados aos pressupostos de seu modelo. Para Dahl, esta é a
terceira condição (além das oportunidades plenas de formular e de expressar,
individual ou coletivamente, as preferências cidadãs) para que se possa preencher o
pressuposto adotado por este teórico: “a contínua responsividade do governo às
preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais”.
O modelo poliárquico de Dahl, ao menos em sua formulação inicial, parte do
pressuposto de que as instituições da sociedade devem oferecer oito garantias e a
última delas é justamente haver “instituições para fazer com que as políticas
governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência”.
Este assunto ainda será aprofundado no Capítulo 2. O que se pretende é apenas
adiantar esta perplexidade diante do fato de a perspectiva dele informar a maior
parte das conceituações, incluídos os subtipos diminuídos a que se referem Collier e
Levitsky, assim como a construção das bases de dados referidas por Munck e
Verkuilen, mas, ao mesmo tempo, ser omitida a questão da participação nestes
conceitos e índices. Não seria possível, para aqueles que se dedicam a construir
definições operacionais de democracia, incluir entre seus atributos aspectos
referentes à participação dos cidadãos ou de grupos organizados da sociedade no
processo de tomada de decisões?
Outro fato que gera perplexidade é a distância tomada por esta literatura de
algumas das principais questões dos debates teóricos contemporâneos. A questão
da participação política é apenas uma destas questões que ocupam boa parte dos
esforços de teóricos da democracia. Para concluir, pode-se apresentar outro curioso
56

paradoxo da literatura examinada: ao mesmo tempo em que ela seria um reflexo da


“expansão da política” a que se referiu Sartori ainda no princípio dos anos 70, no
sentido de um aumento da participação política, assim como da mobilização e da
intervenção estatal, também ocorreu em seu seio a formação de um consenso em
torno da definição procedimental mínima, com a notória exclusão de qualquer
elemento participativo que vá além das escolhas eleitorais populares. A seção
seguinte explora a formação da hegemonia da democracia representativa e da
concepção procedimental mínima na teoria democrática durante a segunda metade
do século passado, além de outras questões ligadas à evolução teórica do tema nas
últimas décadas.

1.2 A hegemonia da democracia representativa na teoria democrática e a


dicotomia “representação versus participação”

As ideias sobre a teoria e a prática da democracia são tratadas nesta parte do


texto desde a perspectiva de um conflito de concepções: embora exista uma
concepção hegemônica de democracia – nas práticas e nas instituições, não apenas
no pensamento político – ela é desafiada por movimentos sociais e intelectuais de
natureza crítica. A democracia representativa está em crise, argumentam em tom
acusativo os defensores de concepções alternativas. Porém, mesmo desafiada por
críticos de variadas perspectivas, a concepção que reduz a democracia
simplesmente a um conjunto de regras que estabelece e regulamenta a livre
competição eleitoral pelos principais cargos políticos executivos e dos membros das
assembleias legislativas segue dominando a cena.
Quando se afirma que existem mais de 100 democracias no mundo, ou que a
Argentina voltou à democracia em 1983 e o Brasil em 1985, ou em 1989, o que se
tem em mente é uma definição mínima de democracia. Os regimes costumam ser
classificados de acordo com a existência ou não de eleições livres, competitivas e
isentas de fraude massiva, além de um conjunto de liberdades civis básicas, como
os direitos à livre expressão, associação etc. Em outros termos, trata-se da
concepção procedimental mínima, que é central para os estudos comparativos e foi
analisada na seção anterior. Em uma passagem do texto, também se remeteu à
57

dupla Schumpeter/Dahl, principais referências dentro desta tradição de pensamento,


dominante nos estudos de política comparada e na teoria democrática da segunda
metade do século XX.
Esta seção também apresenta uma ideia bastante comum na literatura da
teoria democrática contemporânea. Trata-se da ideia de um conflito entre a
democracia representativa e a democracia participativa, uma dicotomia construída
sobre o diagnóstico de que a concepção hegemônica está em crise e entre as
principais vertentes críticas está a que carrega a ideia-força de uma democracia
participativa. São exploradas duas hipóteses de trabalho, a partir das quais se
reconstrói este argumento. Primeiro, há uma concepção hegemônica de democracia
e é possível identificar alguns de seus fundamentos intelectuais – esta tradição é
apresentada aqui pela indicação de um determinado itinerário dentro do pensamento
político. Evidentemente, este trajeto pressupõe uma seleção abreviada de alguns
dos fios que compõem a trama desta primeira forma de se pensar e praticar a
democracia. Com este propósito, é apresentada uma narrativa que reconstrói esta
primeira tradição, identificando algumas das principais referências teóricas desde os
anos 1940, quando o debate democrático recebeu a contribuição de Schumpeter.
A segunda hipótese sustenta a existência de uma crise na concepção
hegemônica, gerada por suas próprias limitações e pelos questionamentos
intelectuais e reivindicações políticas em sentido mais amplo, que lhe são dirigidos
por estes movimentos de crítica democrática. Um segundo trecho da seção
apresenta alguns desses diagnósticos feitos por perspectivas críticas, que tentam
compreender as razões dessa crise da democracia representativa. São
apresentadas duas versões sobre a crise da democracia representativa, as quais
remetem a uma discussão iniciada nos anos 70. De um lado, a crítica conservadora,
que buscava explicar a crise da representação por uma espécie de excesso de
demandas. Com os governos sobrecarregados pelas demandas sociais, era preciso
iniciar uma reforma estrutural do Estado, no sentido de mudanças institucionais
orientadas para o mercado. Do outro, a crítica progressista, que buscou explicar pela
noção de uma crise de legitimidade da democracia representativa. Esta vertente vem
enfatizando a distância entre representantes e representados, os limites da
burocratização do processo de tomada de decisões e outras questões associadas à
qualidade da democracia, o que, por sua vez, tem levado à reivindicação da
58

ampliação da participação ou mesmo de uma nova gramática social, baseada na


participação cidadã ampliada.
A ênfase nesta seção recai sobre as críticas e formulações alternativas
apresentadas por defensores da “democracia participativa”. Essa vertente crítica se
fortaleceu ao final do mesmo século em que a democracia representativa antes se
havia consolidado. Foi no século XX que a democracia se expandiu em termos
globais, estabelecendo-se em um crescente número de países, apesar de suas
limitações e das inumeráveis rupturas institucionais testemunhadas até os dias de
hoje. Apesar de não ser a única vertente crítica (de fato, a teoria democrática
contemporânea possui várias outras perspectivas, assim como toda uma riqueza de
debates que não será explorado neste trabalho), a construção de uma dicotomia
“democracia representativa / democracia participativa” é a forma característica de
boa parte das discussões contemporâneas, tanto na ciência política como nos
debates públicos que ocorrem nas sociedades democráticas ou em democratização.
Por enquanto, essas questões ainda são postas em termos bastante
abstratos, como um conflito de concepções de democracia. A discussão sobre a
conceituação de democracia, conduzida na seção anterior, ganha um pouco mais de
substância teórica, na medida em que a discussão sobre a adjetivação da
democracia nos estudos comparativos havia deixado de lado questões que vão além
das definições básicas do conceito, para se concentrar nas estratégias de
construção de contêineres conceituais e na predominância do procedimentalismo
mínimo e nas estratégias. A seguir, são adicionados outros elementos teóricos,
identificando as suposições e os argumentos principais que deram origem à
concepção procedimental mínima, base da justificação teórica que sustenta a
hegemonia da democracia representativa.
Esta seção também demonstra que os estudos sobre democratização recente
desenvolvidos a partir dos anos 80, que constituíram novos subcampos da ciência
política, a “transitologia” e a “consolidologia”, incorporaram como marco de
referência a concepção procedimental mínima. Examinam-se estas duas literaturas,
surgidas como alternativas às explicações de corte estrutural que predominaram nas
primeiras décadas de desenvolvimento dos Latin American Studies, sob a égide da
teoria da modernização. São examinadas também algumas notas críticas
apresentadas ao elitismo predominante nos estudos de democratização recente, em
particular à sua ênfase no comportamento e nas interações entre as elites, à
59

valorização dos pactos políticos entre os que detêm o poder e as elites opositoras
moderadas e à utilização de metáforas lúdicas para a descrição dos processos de
transição como processos graduais pré-estruturados em termos de sua sequência.
A literatura sobre teoria democrática muitas vezes postula a existência de
uma linha de fratura fundamental nos debates atuais sobre democratização. Como
dito, esta hipótese se baseia em uma estrutura conceitual dual: “democracia
representativa / democracia participativa”. Assim como ocorre nestes debates
acadêmicos, a oposição entre democracia representativa e democracia participativa
é um elemento crucial da realidade democrática nos debates políticos em sentido
mais amplo, neste início de século27. Este trecho termina com a apresentação de
algumas bases do que formaria esta tradição participativa da democracia,
compartilhada por inúmeros teóricos e estudiosos da democracia em geral. Assim,
depois de discutir as duas interpretações sobre a crise da democracia representativa
– a “teoria do governo sobrecarregado”, sustentada por autores e atores políticos
conservadores, ou mesmo reacionários, e a “teoria da crise de legitimidade”,
carregada pelos autores e movimentos sociais progressistas – reproduz-se, em um
primeiro momento, a persistente autoimagem dual da teoria democrática
contemporânea: de um lado, a hegemonia da concepção procedimental mínima,
base da democracia representativa; do outro, os críticos que postulam as vantagens
da concepção participativa de democracia.
Esta imagem é uma etapa considerada essencial para a argumentação
subsequente, pois, a partir das críticas a esta dicotomia, pretende-se avançar no
sentido de uma leitura mais plural do problema teórico da democratização das
políticas públicas, coerente com o estado da arte da teoria democrática
contemporânea. Enquanto a narrativa aqui reproduz a díade que persiste em parte
da teoria democrática, na sequência são apresentados os limites desta oposição
dicotômica, em favor da visão de uma estrutura teórica chamada de “triangular”, com
o intuito incentivar a reflexão não apenas sobre as diferenças e oposições entre as

______________________________________________
27
Ainda que algumas disciplinas pareçam estar alheias a esta oposição, como a política comparada, ou as
relações internacionais, cujas elaborações teóricas se situam, em geral, dentro do campo hegemônico,
reproduzindo-o por meio das reflexões de internacionalistas e comparatistas.
60

principais teorias circulantes na ciência política atual, mas também as suas diversas
possibilidades de aproximação e combinação. O amadurecimento de uma vertente
teórica inspirada no conceito de “deliberação” tem um primeiro mérito de romper com
a oposição dualista desenhada pelo contraste entre “representação” e “participação”.
O próximo capítulo analisará essas três perspectivas e, ao final, em vez de
considerar que cada um dos conceitos corresponda a uma perspectiva teórica,
sustenta-se que cada um deles é fundamental para qualquer perspectiva de
construção da democracia.

1.2.1 A hegemonia da democracia representativa na 2ª metade do século XX

A concepção de democracia procedimental mínima fez-se presente em boa


parte das teorizações e conceituações desenvolvidas ao longo do século XX,
especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria é o contexto do
notável desenvolvimento da ciência política, dentro da qual recebeu muito destaque
o tema das instituições democráticas e de seus fundamentos teóricos. A aliança
militar que saiu vitoriosa da Segunda Guerra havia justificado a empreitada como
uma luta pela democracia, embora durante os anos seguintes haja restado claro que
os países “ocidentais” defendiam uma concepção liberal-representativa da
democracia, enquanto os países do “bloco soviético” também defendiam o valor da
“democracia”, embora em uma chave bastante divergente, em que não era
reconhecido o pluralismo partidário nem o conjunto de liberdades fundamentais
incluídas pelos primeiros.
Vale anotar também que o desenvolvimento da ciência política no pós-guerra
corresponde à consolidação da dicotomia entre o que seria uma ciência política
“empírica” e uma ciência política “normativa”, a qual tem profunda influência sobre a
forma como se desenvolveram os debates na teoria democrática desde então.
Tome-se como exemplo Joseph Schumpeter, que formula a sua teoria competitiva
da democracia, ou Robert Dahl, com a teoria da poliarquia: ambos estão
preocupados em distinguir as teorias que eles recusam, por serem “modelos ideais”,
de suas próprias formulações teóricas, as quais são apresentadas como
perspectivas “realistas”, no sentido de tratarem dos processos democráticos como
61

eles são, não como eles deveriam ser. Os defensores da concepção procedimental
mínima incorporam esta diferenciação entre o mundo do “ser” e o mundo do “dever
ser”, em geral. Eles muitas vezes reportam-se ao pensamento de Schumpeter, que
foi o primeiro a definir a democracia como um método político de constituição de
governos. Em seu mais citado trecho, o teórico escreveu no princípio da década de
1940, em plena guerra: “o método democrático é aquele arranjo institucional para se
chegar a decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir por
meio de uma luta competitiva pelo voto popular” (1974[1942]: 269). O procedimento
democrático por excelência é a seleção dos governantes pelos governados por meio
de eleições competitivas. O poder de decidir é adquirido pelos governantes eleitos
em uma disputa similar à concorrência que caracteriza os mercados econômicos. A
analogia entre o mercado democrático e o mercado econômico está na base da
denominada “teoria democrática competitiva”, de Schumpeter, que também será
analisada mais detidamente no próximo capítulo.
Na visão de seus defensores, a teoria democrática competitiva, ao definir a
democracia basicamente como um procedimento para a constituição de governos,
teria afastado de uma vez por todas as definições modernas que, desde as
reviravoltas revolucionárias europeias do século XVIII, faziam referência à
democracia enquanto “fonte de autoridade” ou como “propósito servido pelos
governos”. Sendo assim, o ideal formulado naquele século por J-J. Rousseau, de
autogoverno das massas, de ampla soberania e participação populares, elaborado
em meados do século das luzes, teria sido definitivamente superado por essa
concepção procedimental. O que Schumpeter pretendeu em sua obra foi apontar os
limites e as incoerências da concepção que ele denominou como “teoria clássica da
democracia”, e é preciso reconhecer que ele foi eficiente, firmando-se como um dos
principais teóricos políticos do século XX, embora fosse mais conhecido por seus
trabalhos como teórico econômico.
Para o lugar da “teoria clássica”, o autor apresenta a sua visão da democracia
enquanto método, base do que ele chamou de “outra teoria da democracia”. Apesar
de haver construído o “mito clássico”, que simplificou e estilizou o pensamento de
um conjunto de autores “clássicos” que discordavam entre si em diversos pontos, a
argumentação schumpeteriana foi capaz de firmar no âmbito acadêmico uma
concepção de democracia na qual ela é definida como o mecanismo de competição
entre as elites e, ao mesmo tempo, ele defende a redução, ao máximo, da
62

participação popular. Ademais, construiu-se uma articulação entre a sua teoria e


uma visão de que ela sim seria capaz de capturar os fatos da vida política como eles
eram, isto é, uma teoria política científica e empírica, enquanto a suposta “teoria
clássica” seria normativa e “carregada de valor”.
Antes das discussões do pós-guerra, no entanto, já existia toda uma tradição
de democracia representativa. Esta matriz ideológica remonta, pelo menos, à
elaboração da teoria da soberania nacional, no contexto da revolução francesa, pela
obra do abade Emmanuel Sièyes, autor de um dos opúsculos mais conhecidos de
contenção do ímpeto revolucionário por uma participação cidadã plena ou direta, em
pleno primeiro semestre de 1789, o texto O que é o Terceiro Estado? Contra a
perspectiva elaborada cerca de quatro décadas antes pelo filósofo genebrino J-J.
Rousseau, para quem a democracia direta seria a base para uma sociedade
participativa e uma verdadeira democracia política, baseada na igualdade entre os
indivíduos, Sièyes sustentava uma diferença entre as categorias de “povo”, substrato
sociológico e empírico das diversas sociedades, e de “nação”, esta o seu elemento
jurídico-político e, portanto, o verdadeiro titular da soberania. Na visão de Sièyes, a
complexidade da sociedade francesa, então com cerca de vinte e cinco milhões de
habitantes, dispersos em um amplo território, tornava imprescindível o mecanismo
da representação política, pois isto tornava inviáveis, na prática, as formas de
participação direta defendidas pelos adeptos de Rousseau. As raízes da oposição
entre participação e representação como procedimentos para a formação das
decisões públicas remetem às revoluções liberais na Europa, não há dúvidas, ainda
que não seja o propósito aqui retomar estas discussões. Para os propósitos deste
trabalho, basta refazer um caminho mais bem estabelecido na literatura politológica
desde meados do século passado, conduzido pela narrativa a seguir.
De acordo com a análise de B. Santos e L. Avritzer (2002: 39-40), até o
século XIX ainda não se havia instaurado no pensamento político o “debate sobre a
desejabilidade da democracia”, uma vez que ela havia sido considerada
consensualmente perigosa e, portanto, indesejada. Qual o perigo? Esta forma de
governo “atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condições de o
fazer: a grande massa da população, iletrada, ignorante e social e politicamente
inferior” (2002: 39). Santos e Avritzer indicam alguns elementos da formação do
consenso em torno do procedimentalismo minimalista. Segundo eles,
63

“na primeira metade do século [XX] o debate centrou-se em torno da desejabilidade


da democracia (M. Weber, 1919; C. Schmitt, 1926; H. Kelsen, 1929; R. Michels,
1949; J. Schumpeter, 1942). Se, por um lado, tal debate foi resolvido em favor da
desejabilidade da democracia como forma de governo, por outro lado, a proposta
que se tornou hegemônica ao final das duas guerras mundiais implicou em uma
restrição das formas de participação e soberania ampliadas, em favor de um
consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (J.
Schumpeter, 1942). Essa foi a forma hegemônica de prática da democracia no pós-
guerra, em particular nos países que se tornaram democráticos após a segunda
onda de democratização.” (2002: 39-40)

De fato, durante o século XIX, o ambiente intelectual no qual predominava o


desprezo pelas classes populares favoreceu a difusão, entre as elites intelectuais
europeias, do sentimento reacionário diante da extensão da cidadania política, em
especial após as violentas explosões sociais ocorridas na década de 1840. No
fundo, o que toda uma família de pensadores e políticos sustentava era a
irracionalidade das massas. Entre os discursos analisados por Albert Hirschman na
obra A Retórica da Intransigência (1991), muitas denunciavam os efeitos perversos
dessa extensão, isto é, os resultados obtidos teriam o sentido oposto ao pretendido
pelas mudanças introduzidas. Desde pensadores como o historiador da cultura suíço
Jacob Buckhardt, até o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, passando pelo
romancista francês Gustav Flaubert e o dramaturgo norueguês Ibsen, críticos de
diversos matizes apontavam para os efeitos negativos do “governo da maioria”
(Ibsen), ou do “sufrágio universal como a vergonha do espírito humano” (Flaubert),
ou ainda as eleições populares como a expressão suprema do “instinto de manada”
(Nietzsche).
A capacidade de analisar racionalmente as diversas condições políticas e as
alternativas disponíveis à decisão é concebida como uma faculdade reservada
apenas às elites políticas estabelecidas. Schumpeter, para voltar a ele, questiona a
capacidade que têm os cidadãos comuns de observar objetivamente e de interpretar
os fatos políticos, de forma a poder produzir inferências racionais. Isto se aplica tanto
aos assuntos nacionais como aos internacionais28. Para ele, mesmo que possamos
considerar os indivíduos comuns racionais para lidar com os seus negócios e demais

______________________________________________
28
No Capítulo 2, serão examinadas com mais profundidade as ideias de Schumpeter, entre as quais a defesa do
isolamento da política externa da interferência popular ou mesmo da opinião pública.
64

assuntos pessoais, o indivíduo médio possui um nível mais baixo de racionalidade


ao entrar no campo da política – ainda que bons gestores de seus negócios
pessoais, os indivíduos em geral não sabem tratar dos assuntos públicos.
Ao mesmo tempo, a teoria democrática schumpeteriana reproduz a ideia,
bastante comum e difundida por outros teóricos das elites, que lhe precederam e
influenciaram, de que o ideal democrático de igualdade política é irrealizável. A
desigualdade é um dado da política, não importa o regime de governo. Sempre
haverá um pequeno grupo de governantes, em contraposição à massa de
governados. A irracionalidade das massas e a inevitabilidade da desigualdade
política são dois sólidos pilares dessa concepção de democracia que se tornou
hegemônica nas décadas posteriores à sua elaboração. Por isso, é com razão que
muitos cientistas políticos situam o pensamento de Schumpeter entre os teóricos
elitistas, como é feito neste trabalho que o leitor tem em mãos. Este é o caso de Luis
Felipe Miguel (2002), por exemplo, que no trecho a seguir descreve o contexto
intelectual do autor. Para ele, os teóricos das elites forneceram algumas “bases
antidemocráticas” à teoria democrática contemporânea, título do trabalho onde
afirma que:

“é possível traçar um quadro condensado da discussão sobre a igualdade entre os


seres humanos: a ordem estamental medieval afirmava a desigualdade entre os
indivíduos. Contra ela, o liberalismo vai propugnar que todos são iguais. Os
socialistas, então, denunciam que a igualdade formal, apreciada pelos liberais, é
inócua diante da permanência de profunda desigualdade material. Em oposição ao
socialismo, a teoria elitista vai dizer que a igualdade é impossível. Há uma
concordância quanto ao diagnóstico sobre as sociedades contemporâneas, com a
constatação de que a igualdade dos liberais é a mera fachada da desigualdade
efetiva; mas a ênfase é dada à polêmica contra a bandeira socialista de uma nova
forma de organização, material e politicamente igualitária, que a teoria das elites
apresenta como ilusória” (2002: 498)

A ampla mobilização popular realizada pelos regimes totalitários naquele


momento criava uma aura suspeita em torno da retórica de realização da vontade
das massas. O uso extensivo da propaganda política não autorizava a automática
valoração positiva da participação política que muitas vezes se havia feito
anteriormente, quando da extensão do sufrágio universal. A ideia de fazer prevalecer
a vontade coletiva, ou vontade geral, a qual Rousseau distinguia das vontades
particulares, mas igualmente encontrada em cada um dos indivíduos, para a
construção de uma sociedade democrática, parecia definitivamente viciada, na
65

mesma medida em que a vontade geral era manipulada pelo poder da propaganda
política.
Para alguns analistas e políticos, o excesso de participação é que teria sido
responsável por alguns fracassos históricos memoráveis. Nesse sentido, a ascensão
de Adolf Hitler e a implosão da democracia social instaurada pela República de
Weimar após a Primeira Guerra Mundial foram atribuídas à combinação entre o
excesso de participação e a engenhosa e eficiente máquina de propaganda nazista.
Assim como o regime totalitário vigente na União Soviética, que servia de exemplo
para os limites da participação popular, uma vez que a evidente mobilização
induzida pelo regime não implicava níveis correspondentes de participação efetiva
da população na condução política do país, que era restrita às elites do Partido
Comunista. Como se recordou acima, tanto os países alinhados aos Estados Unidos
como aqueles que se mantinham alinhados à União Soviética sustentavam a noção
de democracia, embora com significados evidentemente diversos. De um lado,
encontravam-se as autodenominadas “democracias liberais”, enquanto de outro as
que se denominavam “democracias populares”. Em larga medida, esta divisão
fundamental da política internacional se refletia nas disputas domésticas entre
esquerda e direita, entre socialistas e liberais, enfim, ela se reproduzia de acordo
com as múltiplas configurações de cada um dos contextos políticos nacionais e
regionais. A divisão ecoava também na construção de um sistema multilateral de
defesa dos direitos humanos, que também teve o seu desenvolvimento determinado
pela oposição entre os direitos humanos “civis e políticos” e os “econômicos, sociais
e culturais”. É neste contexto que se insere a formulação discursiva que viria a ser
conhecida como procedimentalismo mínimo, pois se tratava, no hemisfério ocidental,
do problema de certificar a existência de uma democracia, apesar do visível controle
da esfera política por uma minoria e da também clara ausência de uma efetiva
participação dos cidadãos comuns na definição dos assuntos políticos nacionais.
Ao comentar as fundações elitistas da tradição hegemônica da teoria
democrática, Miguel (2002) chama a atenção para uma curiosa reviravolta que
caracteriza o desenvolvimento histórico dessa tradição, já que são justamente as
teorias que afirmavam a impossibilidade de realização da democracia que são
posteriormente utilizadas para a bem sucedida empreitada de reconstruir as bases
teóricas da democracia, a partir dos anos 40:
66

“Os elitistas miraram no socialismo, mas acabaram acertando também a


democracia, denunciando como fantasista qualquer idéia de governo da maioria.
Porém, numa reviravolta notável, uma importante corrente da teoria democrática vai
aceitar o argumento elitista como pressuposto. É a tese da ‘democracia
concorrencial’, cujo pai é o economista austríaco Joseph Schumpeter. Não se trata
apenas de uma tendência, entre outras, da teoria democrática. É a corrente
amplamente dominante, que se enraizou no senso comum; é um divisor de águas, já
que, a partir dela, qualquer estudioso da democracia tem que se colocar, em
primeiro lugar, contra ou a favor das teses schumpeterianas. Entre aqueles que
foram influenciados por elas, de diferentes maneiras, estão nomes do peso de
Giovanni Sartori, Robert Dahl e Anthony Downs.” (2002: 498-499)

Em suma, os debates em torno da desejabilidade da democracia resultaram


na formação de um consenso em torno da concepção de democracia enquanto
método de seleção de governantes via escolha popular. Naquele momento, o
sufrágio universal já havia se difundido na maioria dos países considerados
democráticos. O sufrágio masculino já fora praticamente superado, a partir da
extensão do direito de voto às mulheres, e aqueles países que ainda não o haviam
feito deram cabo desta mudança ainda na primeira metade do século. Seria
impossível reproduzir em uma única pesquisa todos os teóricos que contribuíram
para a hegemonização desta “democracia de baixa intensidade” (Santos e Avritzer,
2002), ainda mais quando se pensa na enorme variação de realidades institucionais
e de contextos acadêmicos em que a teoria democrática competitiva foi
disseminada.
Por ora, cabe destacar que a defesa de uma democracia de baixa intensidade
recebeu o suporte de estudos os mais diversos, que se somaram à bem difundida
formulação schumpeteriana, a qual por sua vez se consolidou e recebeu o apoio de
uma série de formulações teóricas congêneres. Muitos eram estudos empíricos que
ajudavam a lhe conferir suporte. Os estudos sobre escolha eleitoral e formação da
opinião eleitoral, por exemplo, buscavam demonstrar que os eleitores “reais” não
correspondiam às expectativas dos teóricos. Mais especificamente, essas
investigações supostamente forneciam um suporte empírico à hipótese de que os
eleitores não realizam as suas escolhas dentro dos parâmetros esperados de
racionalidade – como o estudo sobre as eleições de autoria de P. Lazarsfeld, B.
Berelson e H. Gaudet (1944), e, nos anos 50, sobre a formação da opinião em uma
67

campanha presidencial, de B. Berelson, P. Lazarsfeld e W. McPhee (1954), que


ilustram esta tendência29.
Por outro lado, a partir dos anos 1950, um conjunto de teóricos procurou
explicar os regimes democráticos e seus processos políticos recorrendo a modelos
que concebiam a plena racionalidade dos eleitores, o que significava uma ruptura,
ainda que parcial, com a perspectiva schumpeteriana. Porém, essa ruptura era
apenas parcial, pois embora se introduzisse a premissa epistemológica da
racionalidade dos indivíduos em geral, permanecia como referência democrática
principal a descrição da concepção procedimental mínima, na maioria dos casos. Em
outras palavras, a introdução da escolha racional na ciência política forneceu novas
bases para a legitimação intelectual das democracias de baixa intensidade30. Nas
duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, uma crescente produção
acadêmica buscou conciliar a noção de racionalidade individual e a evidente
distância entre os cidadãos e as decisões governamentais.
No contexto norte-americano, tornaram-se especialmente influentes a noção
de “poliarquia”, desenvolvida por Charles E. Lindblom e Robert Dahl (1953), utilizada
também no importante livro deste último, Um Prefácio à Teoria da Democracia
(1956), e a teoria econômica de Anthony Downs (1957). Essas perspectivas serão
examinadas no Capítulo 2, como perspectivas pluralistas ou participativas da teoria
democrática, que se diferenciam tanto da perspectiva schumpeteriana, identificada
aqui com o realismo político, como também da democracia deliberativa, inspirada

______________________________________________
29
Trata-se dos seguintes livros: The People’s Choice: How the Voter Makes up his Mind in a Presidential
Election (Lazarsfeld et alli) e Voting: A Study of Opinion Formation in a Presidential Campaign (Berelson et
alli.). Para uma análise mais detalhada destes trabalhos, em língua portuguesa, ver Miguel (2002) e Pateman
(1992[1970]). O teórico B. Berelson é descrito como um dos teóricos elitistas no livro de Pateman, que lembra
que o pesquisador tinha o mesmo objetivo de Schumpeter (confrontar a “teoria clássica” com as evidências
empíricas) e a mesma estratégia (mostrar, pela análise da escolha eleitoral, como as “exigências” para o
funcionamento do modelo clássico de democracia não eram encontradas no comportamento do “cidadão
médio”). Apesar destas semelhanças, ela lembra que sua estrutura teórica funcionalista não é encontrada na
construção schumpeteriana.
30
Entre os analistas da escolha racional que provavelmente tiveram mais influência neste período, pode-se citar
os casos de Kenneth Arrow (Social Choice and Individual Values, de 1963), William Riker (The Theory of
Political Coalitions, de 1962) e o livro de James Buchanan e Gordon Tullock (The Calculus of Consent: Logical
Foundations of Constitutional Democracy, também de 1962), além de Mancur Olson, de 1965, citado no corpo
do texto, adiante.
68

por releituras críticas em parte associadas às teorias sociais europeias do século


XX, sobretudo às reformulações do marxismo clássico.
Neste mesmo contexto intelectual, poderiam ser incluídas outras duas obras
que foram bastante influentes na ciência política norte-americana. A primeira é a
contribuição de Mancur Olson, no livro A Lógica da Ação Coletiva: Bens Públicos e a
Teoria dos Grupos (1965), e a segunda é a obra aparentemente mais citada como
referência nos estudos sobre democratização, o livro Poliarquia, de Robert Dahl,
publicado no ano de 1971. Para o primeiro, o que explica a incompetência do
cidadão comum para se envolver nas decisões é justamente a sua racionalidade, e
não a irracionalidade que fundamenta a argumentação de Schumpeter. Como os
indivíduos do modelo teórico de Olson são racionais, não lhes convém, com base
em um cálculo de custo-benefício, despender seus limitados recursos, como esforço,
tempo e até mesmo financeiros, para se informar sobre as decisões a serem
tomadas. Mesmo nas eleições, o ínfimo peso de seu voto dentro do universo de
eleitores o desestimula a informar-se. A obra de R. Dahl ainda será objeto de um
exame mais aprofundado, mas pode-se dizer que ela também contribuiu para a
formação de tendência de reproduzir a concepção procedimental mínima difundida
pela geração de Schumpeter, embora também legitimando a concepção sobre novas
bases de racionalidade individual e incluindo a participação como uma das
condições para uma democracia plena.

1.2.2 Os Latin American Studies (estudos latinoamericanos): da teoria da


modernização aos estudos sobre transição e consolidação democrática

A literatura examinada na seção 1.1, sobre a inesgotável inovação conceitual


e a hegemonia da concepção procedimental mínima, faz parte dos chamados Latin
American Studies. Como demonstra Feres Jr. (2005), ao analisar a história do
conceito de Latin America nos Estados Unidos, as fundações institucionais dos
estudos de área latinoamericanos foram estabelecidas inicialmente sob a hegemonia
da teoria da modernização. Além disso, a consolidação deste campo acadêmico
relaciona-se à revolução cubana, que representou para o governo americano um
sinal de que a “ameaça comunista” poderia espalhar uma onda revolucionária pela
69

região. Esta preocupação política fomentou o surgimento das bases institucionais


dos hoje denominados estudos latinoamericanos, sejam eles comparativos, refiram-
se a países específicos ou mesmo regiões dentro deles, ou, finalmente, à região
como um todo, sendo esta última literatura a que examina o autor, em sua tese
publicada. Ao delimitar suas fontes, Feres Jr. define o que hoje se entende por Latin
American Studies:

“uma atividade profissional sustentada por uma extensa rede institucional composta
por especialistas, currículos universitários, centros de pesquisa, periódicos, editores,
associações, conferências, subvenções e estrutura de financiamento. Mais
importante é verificar que essa literatura não produziu qualquer teoria ou abordagem
sociocientífica ao estudo de Latin America. Em suma, designá-la como Latin
American Studies é um duplo presentismo: um conceito e uma prática institucional
do presente são projetados em uma circunstância passada na qual eles não
existiam.” (2005: 81)

Se por um lado a consolidação dos estudos latinoamericanos refletia a


preocupação subjacente de conter um eventual avanço do comunismo na região,
por outro ela também se relacionava à necessidade que a superpotência tinha de
produzir conhecimento especializado sobre outras regiões do mundo, vista como
uma consequência lógica da sua inequívoca ascensão na política internacional, após
a Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, os estudos de área cresceram
significativamente entre o início dos anos 50 e os anos 60; os estudos
latinoamericanos, sobretudo a partir da revolução cubana, em 195931; e a política
comparada, não apenas como um método, mas como um campo da ciência política,
definido pela preocupação de examinar as similaridades e diferenças entre unidades
políticas para produzir inferências, a partir do início dos anos 1970. Neste último
caso, a referência pioneira costuma ser o artigo de Arendt Lijphart (1971), estudioso
que se tornaria referência obrigatória também nos estudos sobre democracia32.
Sobre a teoria da modernização, pode-se dizer que ela buscou correlacionar o
processo de modernização a determinadas variáveis políticas. A preocupação

______________________________________________
31
Sobre o surgimento e a consolidação institucional dos chamados Latin American Studies, ver o livro de Feres
Jr. (2005).
32
Sobre a importância do texto de A. Lijphart e a consolidação da Política Comparada a partir dos anos 1970,
ver D. Collier (1993) e P. Schmitter (1993).
70

central dessa literatura é porque apenas alguns países conseguiram manter seus
regimes democráticos por um longo período de tempo. Em outras palavras, tratava-
se de explicar as variações no sucesso da democracia. O que podia explicar o dado
de que alguns países estabeleceram e mantiveram suas democracias enquanto em
outros ela nunca se desenvolvera ou era entremeada por regimes não
democráticos? A princípio, este esforço procurou fornecer explicações baseadas no
desenvolvimento histórico das estruturas sociais, tendo como suposto a dicotomia
fundamental entre o “tradicional” e o “moderno”. Cabe adicionar que a ciência
política norte-americana se encontrava bastante influenciada pelas pretensões
epistemológicas do behavioralismo, também chamado de cientificismo, que buscou
incorporar às ciências sociais uma visão de ciência inspirada em um modelo
supostamente reconhecido pelas ciências naturais.
Seymour Lipset (1959, 1960) e Barrington Moore (1966) são dois dos autores
principais da teoria da modernização e influenciaram toda uma geração de cientistas
políticos interessados na região. O primeiro definiu um conjunto de características
“modernas”, como urbanização, nível educacional e de renda, meios de
comunicação de massa e burocratização, e testou a correlação entre diversos
índices de modernização e a sua classificação de regimes políticos33. Com base em
análise estatística, Lipset sustentou a hipótese de que um maior grau de
modernização era favorável a democracia, embora a literatura influenciada por seu
trabalho tenha sustentado, muitas vezes, a existência de uma relação causal, isto é,
a modernização implica em democratização. A explicação do autor busca escapar
das explicações propriamente políticas, culturais ou institucionais do fenômeno
democrático. Na sua visão, as estruturas sociais dos países em que havia os
maiores graus de modernização tinham como consequência menores graus de

______________________________________________
33
Em seu pioneiro artigo de 1959, Lipset agrupou os quarenta e oito países analisados por ele em duas grandes
“áreas de cultura política” – europeus e anglófonos, de um lado, e latinoamericanos, de outro – para então
comparar internamente estas duas regiões. Não convém reapresentar sua construção, mas é interessante a
sua classificação de acordo com as áreas, em primeiro lugar, e quanto aos “graus de democracia estável”:
entre os países da primeira “área”, há duas categorias: são (a) democracias estáveis ou (b) democracias
estáveis e ditaduras; entre os países da América Latina, eles são (c) democracias instáveis e ditaduras ou (d)
ditaduras estáveis. Note-se que não há qualquer país do primeiro grupo que seja uma ditadura estável ou uma
democracia instável, enquanto no segundo grupo não há qualquer democracia estável.
71

conflito político. Isto significava a tradução política da modernização econômica e


social, que era atribuída teoricamente ao desenvolvimento de uma classe média,
mais moderada politicamente, e ao aumento da renda e da educação das classes
inferiores.
Na prática, a possibilidade de haver uma mudança em direção à democracia
nos países latinoamericanos, todos classificados por Lipset como “democracias
instáveis e ditaduras” ou como “ditaduras estáveis”, é desconsiderada neste discurso
teórico. A explicação sociológica que deriva de sua análise estrutural não deixa
espaço para as variáveis propriamente políticas. Em sua teoria, não há lugar para a
análise dos agentes políticos constituídos historicamente nem para as suas escolhas
e interações. As expectativas em relação ao futuro dos países subdesenvolvidos
apontavam para um quadro pessimista, segundo a argumentação de Lipset. Aliás,
com exceção dos países desenvolvidos, que em sua maioria construíram seus
regimes democráticos a partir do século XIX, parecia impossível a ocorrência de
transições democráticas.
Ao comentar essa primeira versão da teoria da modernização, Fernando
Limongi (2005) destaca uma passagem do livro The Political Man, de 1960, em que
Lipset admite um papel, ainda que secundário, da paisagem institucional, embora
permaneça a importância primária das diferenças na estrutura social para os rumos
da história política dos países. O cientista político brasileiro adiciona o seguinte
comentário à análise e à filosofia política de Lipset:

“Em sua análise empírica, Lipset não recorreu a uma série temporal. Foram
comparados os países desenvolvidos e subdesenvolvidos nos anos 50. Logo, a
inferência segundo a qual o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos trará
consigo a democracia encontra fundamento em uma teoria linear da história. Mais do
que isso, supõe que a história seja única, que todo e qualquer país, em qualquer
momento da história, passa pelos mesmos estágios. Assim, os países
subdesenvolvidos representariam o passado dos países desenvolvidos e estes o
futuro daqueles. A inferência, portanto, passa pela suposição da existência de um
caminho único, a ser trilhado por todos os países que caminham em direção à
modernidade.” (2005: 15)

Em um caminho distinto, alguns anos depois, a elaboração de Barrington


Moore (1966) somou-se à então crescente discussão da teoria da modernização.
Moore questionou a hipótese de que a modernização levaria à democracia e a um
menor grau de conflito político. Enquanto a análise sincrônica de Lipset sustenta a
hipótese de que a modernização podia se traduzir politicamente em uma redução do
conflito social, a perspectiva macrohistórica de Moore postula que, ao contrário
72

disso, o processo de modernização é mais provavelmente um fator de acirramento


do conflito. Ao mesmo tempo, é destacado o peso da história, isto é, das trajetórias
históricas anteriores, em especial o legado das relações entre as diversas classes
sociais, isto é, o seu impacto sobre o desenvolvimento político de um determinado
país. Em outras palavras, os regimes políticos derivam de substratos históricos de
longo prazo. Para ele, havia três trajetórias políticas distintas, todas advindas da
modernização:

“No leque dos fatos aqui examinados, poder-se-ão distinguir três caminhos
principais, desde o mundo pré-industrial ao contemporâneo. O primeiro desses
caminhos leva-nos através daquilo que acho que merece ser chamado as
revoluções burguesas. (...) Acho que [revoluções burguesas] é uma designação
necessária para determinadas alterações violentas que se verificaram nas
sociedades inglesa, francesa e americana no seu caminho para a transformação em
modernas democracias industriais. (...) O segundo caminho também foi capitalista
mas culminou em fascismo durante o século XX. A Alemanha e o Japão são os
exemplos evidentes. (...) Chamar-lhe-ei a forma capitalista e reacionária. Equivale a
uma forma de revolução vinda de cima. (...) O terceiro caminho é, evidentemente, o
comunismo, como foi exemplificado na Rússia e na China.” (Moore, 1975[1966]: 14,
apud Limongi, 2005: 16)

Se, nos anos 60, contexto original de difusão das ideias da teoria da
modernização, as trajetórias passadas eram consideradas tão importantes para a
definição das características vigentes, então parecia haver também pouco espaço
para a ação política transformadora e para as escolhas dos agentes políticos
constituídos historicamente, como em Lipset e nos demais teóricos que partilharam
esta perspectiva. De acordo com a argumentação de Moore, a chave explicativa
fundamental eram os diferentes padrões de alianças de classes que se realizaram
ao largo do processo de modernização, como resume Limongi:

“Onde a burguesia não enfrentou e destruiu a nobreza, a modernização


desembocou em regimes não-democráticos: nazi-fascismo, quando foram
preservadas as formas repressivas de trabalho no campo via a aliança entre nobreza
e burguesia; comunismo, quando a burguesia era demasiadamente fraca e o
problema do campo foi deixado intocado. (...) Não existiriam propriamente, opções a
fazer. (...) Nem mesmo alterações estruturais fundamentais garantiriam, com um
grau mínimo de certeza, a alteração do rumo traçado no passado distante. Em
Moore, os homens são presas das decisões tomadas no passado. O destino político
da Alemanha no século XX foi decidido ao longo dos séculos XVIII e XIX, se não
antes. Regimes políticos não são matéria de escolha. (...) não seria possível inferir o
futuro dos países subdesenvolvidos pelo que se passou com os países
desenvolvidos.” (2005: 17)

A elaboração de Moore teve uma influência crucial nesse debate, ao propor


uma tipologia de “países com propensão democrática” e “países sem propensão
democrática”. O viés normativo da modernização é bem conhecido e já foi bastante
73

explorado: se não fossem modificadas determinadas características estruturais –


relativas ao papel do Estado no processo modernizador e à sua relação com as
classes agrárias, à relação entre campo e cidade e ao nível de ruptura provocado
entre eles – não haveria as condições necessárias para o estabelecimento e
desenvolvimento de uma democracia. A conclusão era também desoladora para os
países subdesenvolvidos: vítimas de sua própria história, não seriam jamais capazes
de reproduzir em seus respectivos contextos nacionais a experiência democrática do
primeiro grupo de países, excepcionalidade reservada à experiência dos países
desenvolvidos. Os métodos políticos autoritários ou não democráticos eram
elementos constitutivos das experiências de industrialização tardia. Aliás, o timing,
ou seja, o momento histórico particular da industrialização era um elemento chave
para o destino político e, nesse sentido, o suposto atraso histórico da modernização
tinha como consequência política o aprofundamento dos conflitos entre as classes
dominantes e as inferiores.
A explicação desta segunda versão da teoria da modernização, portanto,
substitui a ênfase da primeira sobre as mudanças estruturais advindas da passagem
do tradicional para o moderno, para dar destaque aos padrões diversos de alianças
entre as classes. Portanto, a democratização dependia da articulação política de um
grupo que possuísse uma base econômica independente e que fosse ao mesmo
tempo capaz de suprimir os obstáculos opostos ao pleno desenvolvimento de uma
versão democrática do capitalismo. No entanto, vale ressaltar, esta capacidade não
podia resultar na construção de uma democracia em um tempo próximo à sua
articulação. Diferente disso, o que se espera, nos termos do discurso teórico de
Moore, é que os impactos dessas alianças se dêem com o atraso de séculos.
Qualquer transição rumo à democracia parecia estar muito distante do horizonte
histórico dos países latinoamericanos.
Até a década de 1970, predominaram as explicações de corte estrutural, em
que não se trabalhava com a possibilidade de uma transição política em direção à
democracia. É nesse sentido que o livro Poliarquia tem um reconhecido papel de
ruptura teórica, pois enquanto as abordagens anteriormente predominantes nos
estudos latinoamericanos derivavam suas previsões políticas de certas
características sociais e históricas, Dahl concedeu autonomia teórica às variáveis
políticas. Seu trabalho distingue as sociedades em termos de seus diversos graus de
poliarquia, liberando ao mesmo tempo o regime político da determinação muitas
74

vezes reducionista do processo histórico de modernização. Na sua visão, é o maior


ou menor grau de pluralismo na sociedade a chave explicativa para as
possibilidades da democracia em uma dada comunidade política. A “transição
democrática” é o próprio objeto definido pelo autor em seu livro, na abertura do
primeiro capítulo: as condições para a transição de um regime em que os opositores
do governo não possam aberta e legalmente participar de eleições livres e idôneas
para um regime em que isto seja possível.
Desde então, e especialmente a partir da multiplicação global das
democracias, a situação na ciência política foi transformada. Tornou-se abundante a
literatura preocupada em investigar a implantação, ou o restabelecimento, conforme
o caso, de regimes identificados como democráticos. Com base em um conjunto de
pressupostos teóricos compartilhados, formou-se uma comunidade de especialistas,
no interior da ciência política, que levou à constituição de duas verdadeiras
subdisciplinas, denominadas “transitologia” e “consolidologia” (N. Guillhot e P.
Schmitter, 2000). Os termos estranhos, que já apareciam no princípio dos anos 90
(P. Schmitter, 1993), designam o desenvolvimento de linguagens e tendências
próprias do estudo das democratizações em perspectiva comparada34.
Estas literaturas, por sua vez, se cruzam com os chamados estudos de área,
bastante difundidos na ciência política norte-americana, mas também existente em
outros contextos acadêmicos, e que contam atualmente com um sem-número de
instituições de pesquisa, publicações especializadas e até mesmo associações
acadêmicas específicas. Apesar do debate que se instaurou na área de política
comparada em princípio dos anos 90, sobre a adequação ou não de se fazer
estudos centrados nesta noção de area studies, o fato é que a literatura mencionada
está profundamente ligada ao interesse de, em primeiro lugar, estudar processos de
transição e consolidação em regiões específicas, mesmo que o conceito de região
não tenha sido suficientemente elaborado, e, em segundo lugar, comparar esses
processos em duas dessas áreas subcontinentais, Sul da Europa e América do Sul,

______________________________________________
34
Os dois trabalhos de Schmitter, de autoria individual e em parceria com Guillhot, examinam essas novas áreas
do conhecimento (cf. Schmitter, 1993; Guillhot e Schmitter, 2000). Para uma resenha das principais hipóteses
e tendências dos estudos de democratização na política comparada, cf. V. Bunce, 2000.
75

às quais se juntaram os casos também “recentes” do Leste Europeu, durante a


última década do século XX.
Na Europa meridional, o caso considerado como marco desta nova difusão da
democracia foi a transição de regime em Portugal, cujo processo conhecido como
Revolução dos Cravos, em abril de 1974, pôs fim ao regime autoritário governado
por Antônio Salazar desde 1933 e conduzido por Marcelo Caetano desde o final dos
anos 1960, com o afastamento de Salazar. Seguiram-se outros processos de
transição na Europa meridional. Na Espanha, entre os anos de 1975 e 1978, foi
substituído o regime comandado pelo general Franco, também desde os anos 1930.
O terceiro país do Sul da Europa a realizar a transição foi a Grécia, que entre os
meses de julho e dezembro de 1974 pôs fim à ditadura instaurada sete anos antes.
Na América do Sul, os regimes autoritários haviam sido substituídos por regimes
identificados como democráticos. Estes regimes autoritários, por sua vez, foram
instaurados desde meados dos anos 1960, dando sequência à interrupção da
democracia no Brasil, em 1964: Argentina, em 1968, e novamente em 1976; Chile,
em 1973; e assim por diante. O primeiro país sulamericano a retornar à democracia
foi o Equador (em 1979), seguido dos demais: Peru (1980), Bolívia (1982), Argentina
(1983), Brasil (1985), Uruguai (1985) e, finalmente, Chile (1990).
Pois bem, estas foram as principais referências empíricas trabalhadas pela
literatura sobre transição e consolidação da democracia. O franco desenvolvimento
dessas subdisciplinas proporcionou uma “continuidade lógica à sequência iniciada
pelos estudos sobre os regimes autoritários e sua decomposição”, convertendo “a
restauração e a estabilização das instituições democráticas num dos principais
objetos da investigação politológica em e sobre a América Latina nos últimos
tempos” (G. Vitullo, 2007: 21). É realmente interessante notar que existe um grupo
de autores com ampla experiência em estudos latinoamericanos. Primeiro, eles
estudaram os processos de ruptura de experiências democráticas anteriores35, isto

______________________________________________
35
Entre os estudos comparativos sobre a ruptura anterior, cita-se, a título de ilustração: G. O’Donnell (1973).
Modernization and Bureaucratic Authoritarianism: Studies in South American Politics (Berkeley: Institute of
International Studies, Politics of Modernization Series); J. Linz e A. Stepan (eds.)(1978). The Breakdown of
Democratic Regimes (Baltimore: Johns Hopkins University Press); e D. Collier (ed.)(1979). The New
Authoritarianism in Latin America (Princeton: Princeton University Press).
76

é, a onda autoritária dos anos 60 e 70. Depois, estudaram a democratização, ou a


decomposição dos diversos regimes autoritários, nos anos 80 e na década
seguinte36.
A literatura sobre transição e consolidação democráticas trabalha com uma
série de pressupostos compartilhados. Primeiro, há um consenso em torno da
concepção procedimental mínima de democracia. Segundo, a centralidade dos
conceitos de “regime”, “transição”, “liberalização” e “democratização”, apresentados
a seguir. Terceiro, há um viés normativo explícito e assumidamente pró-democracia,
mas que se satisfaz com o estabelecimento de eleições periódicas para os cargos
executivos e legislativos e de um conjunto de liberdades públicas. Por fim, a
abordagem elitista predomina nesta literatura, centrada na análise das estratégias e
comportamentos de agentes individuais e que insiste em geral nos conflitos e
compromissos estabelecidos no interior das elites.
Quanto ao conceito de “regime”, ele é definido como “o conjunto de padrões,
explícitos ou não, que determinam as formas e os canais de acesso às principais
posições governamentais, as características dos atores que se admite ou se exclui
desse acesso e os recursos ou estratégias que eles podem utilizar para obtê-lo” (G.
O’Donnell e P. Schmitter, 1986). Já o conceito de “transição” é definido como “o
lapso entre um regime e outro” por estes dois autores, em um texto central da
literatura sob exame, produzido no âmbito da mais conhecida entre as inúmeras
iniciativas de grupos de pesquisa voltados para o estudo das transições. Com
critérios mais específicos, mas nesse mesmo sentido, Juan Linz e Alfred Stepan
(1999[1996]) caracterizaram uma “transição completa” quando há (1) consenso
quanto aos procedimentos eleitorais; (2) um governo que chega ao poder por meio
do voto popular livre; (3) esse novo governo tem autoridade de facto para gerar
novas políticas; e (4) quando os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não

______________________________________________
36
Uma lista dos estudos comparativos sobre “transição” e “consolidação” mais citados certamente incluiria os
seguintes: J. Linz e A. Stepan (1996). A Transição e Consolidação da Democracia: A Experiência do Sul da
Europa e da América do Sul (São Paulo: Ed. Paz e Terra); G. O’Donnell e P. Schmitter (1986). Transitions from
Authoritarian Rule: Tentative Conclusions about Uncertain Democracies (Baltimore: John Hopkins University
Press); e S. Mainwaring, G. O’Donnell e J. Valenzuela (1992). Issues in Democratic Consolidation: The New
South-American Democracies in Comparative Perspective (Notre Dame: University of Notre Dame Press).
77

dividem, de jure, o poder com outras organizações ou corporações – por exemplo,


com os militares. Em ambos os casos, a “transição” se refere a um período de tempo
que precede a “consolidação” da democracia.
Os conceitos de “liberalização” e “democratização” também são definidos de
modo mais ou menos homogêneo por esta literatura. O primeiro remete ao processo
de redefinição e extensão de direitos de indivíduos e grupos, que os protegem de
atos arbitrários ou ilegais cometidos pelo Estado ou por terceiros. Enquanto isso, a
democratização propriamente dita é definida como um conceito mais amplo, que
designa o estabelecimento de uma competição aberta pela conquista do controle
governamental. Conforme anotam Linz e Stepan, “com base nestas definições, é
óbvio que pode haver liberalização sem democratização”, quando há, por exemplo,
um processo de liberalização, isto é, mudanças que reconhecem direitos como a
livre circulação, expressão e petição, o habeas corpus, a libertação de presos
políticos, entre outros exemplos de direitos, mas não há um processo
institucionalizado de escolha dos governantes pelos cidadãos comuns.
Sobre este último conceito (“democratização”), O’Donnell e Schmitter
chamam a atenção para o fato de que não existe um conjunto pré-definido de
instituições ou regras específicas que possam caracterizar uma democracia
consolidada, mas ao mesmo tempo afirmam haver uma “espécie de procedimental
mínimo”, que inclui certos elementos considerados necessários a uma democracia
política: sufrágio universal, secreto e periódico, competição partidária, direito à
associação política e à disputa eleitoral e controle dos atos governamentais pelos
demais poderes. Como se viu, a concepção procedimental da democracia é um
suposto compartilhado pela grande maioria dos estudiosos de política comparada.
Os estudos comparativos em torno da transição e da consolidação democrática
situam-se, na grande maioria dos casos, no âmbito dessa concepção hegemônica. A
tradição participativa ou mesmo o papel das não-elites nos processos de transição é
quase ignorada por essas literaturas investigadas. O levantamento bibliográfico
78

realizado nesta pesquisa de tese aponta a existência de pouquíssimos trabalhos


comparativos que escapam ao procedimentalismo mínimo e elitista37.
Sobre a ideia de “democracia consolidada”, Linz e Stepan operacionalizam
uma definição que reconhecem como sendo “estreita” – segundo eles, em oposição
àqueles que “enumeram todas as características do regime que poderiam
aperfeiçoar a qualidade geral da democracia”. A definição dos autores combina as
três dimensões seguintes: “comportamental”, quando nenhum grupo político de peso
faz tentativas sérias de derrubar o regime ou dividir o Estado, deixando de ser o
comportamento do governo eleito dominado pelo problema de evitar o colapso do
regime; “de atitudes”, no sentido de que a grande maioria da população mantém a
crença nos procedimentos e instituições da democracia como a forma mais
adequada para o governo da vida coletiva em uma sociedade e é pequeno, ou mais
ou menos isolado, o apoio a alternativas não-democráticas diante das forças
favoráveis à democracia; e, por fim, “constitucional”, verificada quando a democracia
se torna o único jogo disponível na sociedade e tanto as forças governamentais
como não governamentais buscam resolver os conflitos dentro das leis,
procedimentos e instituições democráticos. Em síntese, as regras do jogo
democrático são as únicas reconhecidas por todos, e na lúdica expressão dos
autores, “democracy is the only game in town”.
Uma tendência geral dessas literaturas é a definição da democracia enquanto
as regras do jogo para a sucessão dos governos, nos termos procedimentais
mínimos, como se viu. Outra tendência é a valorização dos pactos entre as elites
como a forma mais adequada de se realizar uma transição. A propósito dessa
tendência de se conceber o processo de transição em termos meramente elitistas,
têm sido apresentadas inúmeras críticas. Para ilustrá-las, vale mencionar dois
desses estudos críticos, que são o trabalho do cientista político argentino Gabriel

______________________________________________
37
Vale ressaltar que a ênfase desta literatura recai sobre as mudanças de regime. São raros os estudos sobre a
democratização de políticas públicas específicas, como é o foco desta tese, embora seja preciso também
reconstruir intelectualmente as respectivas trajetórias de transição de Argentina e Brasil, se a intenção é fazer
uma análise institucionalista histórica do período posterior, pois as instituições, organizações e agendas
políticas do período de transição repercutem na dinâmica posterior da arena política.
79

Vitullo (2007) e o da experiente pesquisadora norte-americana Ruth Collier (1999),


exemplos escolhidos para ilustrar este ponto.
A primeira obra é um estudo de caso sobre a Argentina contemporânea e o
seu autor critica duas tendências das literaturas de transição e consolidação: uma é
a de utilizar metáforas lúdicas, a outra é a de valorizar a metáfora do pacto38. Ao
comentar essas literaturas, o autor sustenta que foi com o intuito de enfrentar as
abordagens estruturalistas até então predominantes, que

“a nova vertente mudou o foco e decidiu concentrar sua atenção nas elites políticas
e nas suas decisões, opções e estratégias. A democracia passou a ser vista, a partir
de então, como o resultado das habilidades, tomadas de decisões e estratégias
racionais seguidas pelos grupos dirigentes e atores políticos mais relevantes. Dessa
nova ótica, os diversos quadros e situações políticas dependerão,
fundamentalmente, das ‘jogadas’ levadas a cabo por um número limitado de
participantes e de suas interações contingentes” (2007: 22-23).

A ênfase nos comportamentos e interações das elites passou a derivar as


probabilidades de uma abertura para a democracia, e suas características, não de
uma série de elementos sociais e históricos, como na geração de cientistas políticos
em que predominou a teoria da modernização, mas da disposição das elites, de
seus cálculos e suas decisões, de suas negociações e recursos, e, eventualmente,
dos pactos realizados em seu interior, em particular entre aquelas com maior peso
político.
Gabriel Vitullo aponta, comentando o texto de O’Donnell e Schmitter,
publicado no Brasil como o quarto volume de Transições para a Democracia, que os
dois autores recorrem diversas vezes a expressões como “jogo”, “jogadores”,
“lances”, “movimentos de peças”, “tabuleiro”, “rodada de jogos”, “partida de pôquer”,
com o intuito de realçar o caráter estratégico que envolve a relação entre os que
estão no poder, isto é, os encarregados do regime autoritário, de um lado, e os
líderes da oposição política, de outro. Vale trazer um trecho daquele texto, em que
os dois autores sugerem a utilização de uma metáfora lúdica:

______________________________________________
38
Cf. a tese publicada de Gabriel Vitullo (2007), Teorias da Democratização e Democracia na Argentina
Contemporânea (Porto Alegre: Editora Sulina), que traz interessantes constatações sobre o papel da
participação na democratização argentina contemporânea.
80

“(...) propomos a metáfora de um jogo de xadrez de níveis múltiplos. Neste jogo,


adicionam-se à já grande complexidade do xadrez normal, as quase infinitas
permutações e combinações resultantes da habilidade de cada jogador, em toda
jogada, de passar de um para outro nível do tabuleiro. Todos que o jogaram terão
experimentado a frustração de não saber, praticamente até o fim, quem vai ganhar,
por quais razões e com que peça. As vitórias e derrotas costumam acontecer de
forma inesperada para ambos os jogadores.” (O’Donnell e Schmitter, 1988 apud
Vitullo, 2007: 25)

A recorrente utilização de metáforas lúdicas é complementada tanto pela


visão gradualista ou sequencial do processo de transição como pela valorização dos
pactos no interior das elites. Aliás, é bem conhecido o espaço ocupado, nesta
literatura, pela celebração de pactos entre os que estão no poder e os líderes da
oposição mais moderados. Vitullo destaca a definição de pacto dada pelos dois
autores citados: um acordo explícito entre os seus participantes, com o intuito de
definir ou redefinir as regras, nem sempre publicamente explicado ou justificado. A
seguir é transcrita a crítica do autor, que por sua vez sustenta explicitamente uma
concepção de democracia participativa, em contraposição à concepção elitista
hegemônica:

“Segundo esse enfoque, tal instrumento facilitaria o êxito da fase transicional na


construção ou reconstrução do regime democrático, apesar de fazê-lo,
paradoxalmente – como admitem os mesmos autores recém-citados (O’Donnell e
Schmitter, 1988) – por meios não-democráticos, já que os pactos normalmente são
negociados por um pequeno número de participantes, reduzindo a responsabilidade
desses atores frente a públicos mais amplos, limitando o leque de opções na
discussão da agenda política e excluindo os não-integrantes do pacto da tomada de
decisões.” (2007: 24)

O autor também critica a noção de “consolidação democrática”. Na sua visão,


a democracia deve ser concebida como um processo, mas a literatura da
“consolidologia” supõe que a transição tem um princípio e um fim, justamente o
momento de consolidação das regras do jogo. Segundo Vitullo,

“não há maneira de resolver a evidente contradição entre a ideia de ‘consolidação’


entendida como ponto de chegada e a habitual tendência de transitólogos e
consolidólogos a assumir a democracia como um processo e não como um resultado
final. Como bem questiona Bunce (1995), se a democracia é um processo e não um
resultado e se o projeto democrático nunca poderá ser desenvolvido em toda sua
plenitude, como entender, então, o termo ‘consolidação’ e o que este implica como
uma democracia vista como estado final? Isto sem aprofundar aqui na análise de
outra contradição que traria atrelada essa noção: a utilização que muitos autores
fazem do seu antônimo, a ‘desconsolidação’. Como aceitar que possa haver
democracias que entrem numa fase de ‘desconsolidação’? A consolidação não
implicaria, para os cultores do termo, a aquisição de uma força tal que impediria
eventuais retrocessos repentinos?” (2007: 40)
81

O outro trabalho que vale comentar aqui é o estudo comparativo dos


“caminhos para a democracia”, publicado originalmente como Paths toward
Democracy: The Working Class and Elites in Western Europe and South America, de
Ruth Collier (1999), que segue a mesma senda crítica à concepção elitista
predominante nos estudos de transitologia e consolidologia. Sua pesquisa investiga
o papel das classes trabalhadoras nas transições rumo à democracia e identifica os
diversos padrões de interação das classes trabalhadoras e das elites estabelecidas,
tanto nas experiências “históricas”, do final do século XIX e princípio do século XX,
como nas experiências “recentes” dos anos 1970 e 198039. Ao justificar sua posição,
depois de discorrer sobre estas duas literaturas, Ruth Collier afirma que:

“Muito da literatura sobre democratização recente enfatiza as escolhas estratégicas


da elite, diminuindo ou ignorando o papel dos trabalhadores na democratização. A
‘literatura de transições’, como o trabalho existente se tornou conhecido, tem como
seu melhor representante o ensaio fundador de O’Donnell e Schmitter (1986), que
estabeleceu um enfoque que é seguido, implícita ou explicitamente, na maioria das
outras contribuições.”

Após reconhecer que há diferenças e sutilezas entre os diversos autores que


contribuem para a formação desta literatura, ela sugere que é possível esquematizar
uma caracterização básica desta literatura e um conjunto de proposições
subjacentes à tendência dominante:

“À parte os casos em que se afirma que o regime autoritário sofreu um colapso


interno ou uma implosão, a literatura de transições tende a conceber o processo de
democratização em três estágios. O primeiro estágio é marcado por uma divisão
interna entre os que estão no poder [no inglês, incumbents], que se dividem em
facções em torno de questões sobre como alcançar legitimidade e o problema geral
de como consolidar ou institucionalizar o regime autoritário. Em um segundo passo,
um processo de liberalização é iniciado pelos que estão no poder, o que ocorre
quando a facção que propunha tal solução para o problema da legitimação-
consolidação sai vitoriosa do embate. (...) O estágio final é o jogo estratégico da
elite, no qual os que estão no poder ‘negociam’ ou ‘barganham’, formal ou
informalmente, com os líderes dos partidos de oposição moderados. Nesse jogo de
interação estratégica, a ação de massa (incluindo os protestos dos trabalhadores) é
geralmente levada em consideração apenas na medida em que ela afeta os
recursos políticos e as estratégias dos líderes individuais que realmente jogam o
jogo de barganha da elite.”

______________________________________________
39
O trabalho de Ruth Collier também será retomado adiante, quando se tratar das dinâmicas de transição de
regime na Argentina e no Brasil do início dos anos 80, no Capítulo 3 (seção 3.1).
82

Segundo ela, a referida literatura é marcada por três tendências principais.


Em primeiro lugar, seus autores frequentemente enfatizam o papel da liderança e da
condução política por parte de indivíduos, em vez de atores coletivos, como é o caso
do papel da classe trabalhadora, objeto central da investigação de Collier. Em
segundo lugar, os atores examinados tendem a ser definidos estrategicamente, com
base nas suas respectivas posições dentro do “jogo da transição”, deixando de lado
assim as questões sobre as definições de classe dos atores. Em terceiro e último
lugar, a literatura é centrada nos atores que já detêm o poder estatal, subordinando
os atores da sociedade às decisões e processos que envolvem as elites
governantes.

1.2.3 A crise da democracia representativa, os limites da dicotomia “representação


versus participação” e o pluralismo teórico contemporâneo

Nas últimas décadas do século XX, testemunhou-se um conjunto de


mudanças nos termos do debate democrático, tal como ele havia se desenvolvido
nas duas primeiras décadas após a Segunda Guerra. Exatamente quando ocorreu a
extensão da democracia a novas realidades nacionais, multiplicaram-se as críticas
aos limites da concepção minimalista procedimental. Neste duplo movimento, as
democracias eleitorais ou outras versões mínimas multiplicam-se no mundo, ao
mesmo tempo em que se multiplicam também os movimentos de contestação
política e intelectual. O que é interessante é que a contestação se faz por “mais
democracia”, não por algo que não seja democracia. Isto é, a condição de um
símbolo ou slogan incontestável faz com que a contestação seja feita em nome da
própria democracia, ou, mais precisamente, de outros modelos de democracia.
Nesse sentido, Santos e Avritzer (2002) propõem a “ampliação do cânone
democrático”, título de seu trabalho, o qual serve de abertura a uma coletânea de
estudos de caso sobre experiências de democracia participativa, em diversas partes
dos “países em desenvolvimento”. Na visão dos críticos, a redução da democracia a
um pequeno conjunto de elementos, os quais conformam a concepção hegemônica,
deixou de lado o problema da qualidade da democracia. Isso resulta, por sua vez, da
solução dada pelas fórmulas elitistas aos problemas da forma da democracia e da
83

sua variação. Ademais, além de ser enorme a variação de realidades


socioeconômicas dos países de democratização recente, o desmonte das políticas
de redistribuição do Estado de bem-estar nos países de industrialização avançada
expôs o caráter limitado dos debates anteriores, tanto sobre os impedimentos
estruturais, como sobre as consequências distributivas irreversíveis da
democracia40.
Num esforço de síntese, Santos e Avritzer listam o que seriam os principais
elementos dessa concepção hegemônica a que se refere a literatura:

“(...) a tão apontada contradição entre mobilização e institucionalização (Huntington,


1968; Germani, 1971); a valorização positiva da apatia política (Downs, 1957), uma
ideia muito salientada por Schumpeter, para quem o cidadão comum não tinha
capacidade ou interesse político senão para escolher os líderes aos quais caberia
tomar as decisões (1942: 269); a concentração do debate democrático na questão
dos desenhos eleitorais das democracias (Lijphart, 1984); o tratamento do pluralismo
como forma de incorporação partidária e disputa entre as elites (Dahl, 1956; 1971) e
a solução minimalista para o problema da participação pela via da discussão das
escalas e da complexidade (Bobbio, 1986; Dahl, 1991). Todos esses elementos que
poderiam ser apontados como constituintes de uma concepção hegemônica da
democracia não conseguem enfrentar adequadamente o problema da qualidade da
democracia que voltou à tona com a assim chamada ‘terceira onda de
democratização’.” (Santos e Avritzer, 2002: 41-42)

Segundo os autores, esta concepção democrática pressupõe que o


encaminhamento das questões democráticas devesse seguir uma suposta fórmula
desenvolvida na Europa desde meados do século XX, além de ser limitada para
tratar dos processos mencionados acima. A solução adotada na Europa ocidental,
no pós-guerra, é tomada como inspiração para a ideia de consolidação ou
construção da democracia, uma solução idealizada, naturalmente, que simplifica a
conhecida variedade das experiências e trajetórias institucionais das democracias
europeias.

______________________________________________
40
Esta é outra discussão que compôs o debate sobre as condições estruturais da democracia, ao lado da
explicação estrutural da teoria da modernização, como observam Santos e Avritzer (2002). O debate diz
respeito às implicações redistributivas da democracia: “tal debate partia do pressuposto de que à medida que
certos países venciam a batalha pela democracia, junto com a forma de governo eles passavam a usufruir de
certa propensão distributiva caracterizada pela chegada da social-democracia ao poder” (Santos e Avritzer,
2002: 40, que citam como exemplo o conhecido trabalho de A. Przeworski, 1985). Pode-se adicionar que,
também nos países latinoamericanos, a incorporação das políticas chamadas de “neoliberais”, que
sustentavam a redução da intervenção estatal na economia e na sociedade, colocaram em xeque a hipótese
de uma propensão democrática à redistribuição.
84

O que é paradoxal, nesta inspiração eurocêntrica, é que são recorrentes as


alusões a uma crise nas democracias ditas avançadas. Ou seja, ao mesmo tempo
em que se busca inspiração em certas fórmulas supostas de construção
democrática, salta aos olhos aquilo que Santos e Avritzer chamam de “dupla
patologia” da democracia representativa liberal, que não exclui os países
desenvolvidos. Aliás, foram as próprias realidades dos países de democracias
desenvolvidas que deram origem à reflexão sobre a “crise da democracia”, desde o
início dos anos 1970, pelo menos. As duas patologias a que se referem os autores
são: a patologia da participação, com o aumento dramático do abstencionismo ou da
apatia política; e a patologia da representação, na medida em que os indivíduos e
grupos sociais se sentem cada vez menos representados, pondo em xeque a própria
democracia representativa.
Em sua formulação crítica, os autores buscam apontar para a crise,
considerada uma crise tripla, da explicação democrática tradicional. À crise
corresponde um triplo questionamento dos rumos do debate, dentro do que eles
chamam de “itinerário da concepção hegemônica da democracia”: crise do marco
estrutural da possibilidade democrática, crise da explicação homogeneizante sobre a
forma da democracia e crise da representação, que se traduz na propensão a
examinar tradições participativas e variações internas aos Estados, obscurecidas
pelos processos de construção de identidades nacionais41. Muitos desses críticos
defendem a necessidade de “democratizar a democracia”. A ofensiva da obra
organizada pelos dois autores mencionados carrega a noção de democracia
participativa, assim como de toda uma família de autores e argumentos que eles
representam aqui.
No texto em que propõem a ampliação do cânone democrático, eles
identificam lacunas ou insuficiências na forma como a concepção hegemônica
respondeu a três questões. Primeiro, quanto à relação entre procedimento e forma,

______________________________________________
41
Aqui, como em outras realidades, percebe-se com clareza a conexão apontada por Koselleck, em sua tese de
doutorado defendida nos anos 50, entre a noção moderna de crise e o lugar ocupado pela crítica intelectual na
modernidade (R. Koselleck, 1999[1959]). A história conceitual elaborada pelo autor nesta e em outras obras,
assim como a análise histórica feita por ele a respeito do conceito de “crise”, podem ser acessadas no livro
The Practice of Conceptual History (2004).
85

ao identificar democracia com um método político de constituição de governos e


focalizar nos mecanismos de representação política, essa concepção deixou de fora
a questão de outros procedimentos de autorização e controle popular, além de haver
deixado de lado também a questão crucial da representação da diferença. Em
segundo lugar, toda a discussão precedente, no itinerário hegemônico, deixa de lado
a questão do papel da burocracia. Desde Max Weber, é forte o argumento teórico, e
os elementos empíricos são notáveis, no sentido da “inevitabilidade do controle
crescente do processo de decisão por formas de organização burocrática” (Santos e
Avritzer, 2002: 46), em detrimento de qualquer controle pela cidadania das
orientações e políticas governamentais sobre questões concretas. Finalmente, a
terceira questão cuja resposta hegemônica é posta em xeque pelos partidários da
democracia participativa é a alegada inevitabilidade da representação.
Esta última ideia não se restringe às formulações democráticas do pós-
guerra, pois está presente em toda a evolução do pensamento democrático liberal
desde o final do século XVIII, quando da mencionada formulação antirrevolucionária
da teoria da soberania nacional, do abade Emmanuel Sièyes, entre tantas outras
defesas. A defesa da representação assenta-se, em geral, sobre a justificação de
que, se os governos são eleitos em escolhas livres e sob um regime de liberdades,
então se trata de governos representativos, que agirão em nome daqueles que os
escolheram e serão os titulares permanentes do poder de decidir sobre os seus
representantes (B. Manin, 1997; B. Manin, A. Przeworski e S. Stokes, 2006).
A defesa do conceito de representação obteve a sua base de sustentação
normativa da ideia de que, para solucionar a questão da autorização política em
sistemas de grande escala e complexos, a representação é inevitável. Basicamente,
foram construídos dois argumentos que coincidem na defesa da representatividade
como a única resposta adequada. De um lado, argumentou-se que a necessidade
do consenso dos representantes dependia de mecanismos de autorização periódica,
por meio de eleições livres e competitivas. De outro, argumentou-se em favor da
capacidade das formas de representação de expressarem as diversas opiniões e
preferências existentes em uma comunidade política qualquer.
Ao comentarem a “terceira onda democrática”, Santos e Avritzer sustentam
que “quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade,
menos se consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido
consigo uma enorme degradação das práticas democráticas” (2002: 42).
86

Evidentemente, um jogo com os termos, que traz implícita a controvérsia em torno


do que é ou deveria ser a democracia. Nesta abordagem crítica, o que põe em crise
a difusão da democracia, concebida em termos minimalistas, é o fato de que esta
concepção é considerada inadequada, por institucionalizar práticas reconhecidas
como anti ou insuficientemente democráticas (é claro que este último juízo está
baseado em uma definição que utiliza critérios diversos para o que é democracia,
diversa daquela posta em termos procedimentais mínimos).
Assim, se é verdade que, no final do século XX, foram amplamente difundidas
as ideias como “terceira onda democrática”, “triunfo do liberalismo” ou “hegemonia
das democracias de mercado”42, expressões que ganharam força desde os anos 90,
também é verdade que os diagnósticos e preferências destas literaturas convivem,
desde os anos 70, com interpretações que veiculam a ideia de uma “crise da
democracia representativa liberal”.
Diferentemente dos cerca de quinze anos que se seguiram à Segunda Guerra
Mundial, marcados por uma relativa apatia política, nos anos 1960 ampliou-se a
politização das inúmeras sociedades, com o aumento da mobilização política de
estudantes secundaristas ou universitários, em prol de reformas do sistema de
ensino ou mesmo de processos de reestruturação social mais ampla, além dos
movimentos organizados de trabalhadores nos principais centros industriais do
mundo e dos movimentos pelos direitos civis de minorias ou pelo fim das guerras
“neocoloniais”, em que as principais potências mundiais buscavam manter seus
sistemas coloniais, sobretudo na África e na Ásia, ou expandir a sua influência, como
era o caso mais notório da disputa no Sudeste Asiático.

______________________________________________
42
Enquanto as duas expressões anteriores já foram exploradas, a ideia de “hegemonia das democracias de
mercado” ainda não foi comentada. Trata-se de uma expressão muito utilizada durante todo o período que
delimita esta investigação, embora nem tanto na academia brasileira, como ressaltam H. Leis e E. Viola
(2008), que denominam “como democracias de mercado aos países que combinem economias de livre
mercado e regimes políticos democráticos”. Eles preferem esta denominação às alternativas que vislumbram:
“Ainda que conscientes de que esta não é uma terminologia usual na academia brasileira, preferimos esta às
denominações de ‘capitalismo democrático’ ou ‘democracia liberal’, predominantes no país. No primeiro caso,
‘capitalismo democrático’ está marcado por uma perspectiva marxista da sociedade, com uma série de
conotações negativas. No segundo, ‘democracia liberal’ também está contaminada negativamente em relação
a uma democracia desejável, a qual seria entendida como substantiva (ou socialista e/ou popular, no caso da
tradição marxista) ou como radical (no caso das tradições participativas, sejam elas de origem socialista ou
liberal)” (2008: 42).
87

David Held (2001), um autor influente nos meios acadêmicos tanto da ciência
política como das relações internacionais, identifica duas teorias que se propuseram
a explicar a “crise da democracia”. O autor identifica as hipóteses fundamentais e as
implicações políticas de cada uma delas. Trata-se de dois diagnósticos convergentes
sobre a situação da democracia representativa liberal, ainda que cada uma dessas
interpretações explique de modo diferente as razões da crise e apresente caminhos
também diferenciados do ponto de vista político e ideológico. Nesse sentido, de um
lado encontra-se a interpretação da teoria do governo sobrecarregado e, de outro, a
teoria da crise de legitimidade.
A teoria do governo sobrecarregado43 atribui a crise a um “excesso de
democracia”, na medida em que as demandas de grupos sociais organizados, uma
vez incorporadas às políticas públicas de um Estado em constante expansão,
geraram um esgotamento da capacidade de intervenção estatal. O raciocínio teórico
desta primeira vertente é bastante conhecido: com o intuito de atender às demandas
dos grupos sociais que defendem os mais diversos interesses setoriais presentes
nos regimes democráticos e controlar o conflito político, os políticos fazem
promessas impossíveis e também expandem, de forma clientelista, a estrutura
burocrática e a intervenção política do Estado. O resultado disso é a perda de
governabilidade estatal, resultante do estrangulamento fiscal produzido pelo
constante aumento dos gastos públicos sem o correspondente aumento da
capacidade de arrecadação. Este quadro de ingovernabilidade, por sua vez,
alimenta o descrédito social em relação ao regime democrático representativo. A
saída da crise, de acordo com a teoria do governo sobrecarregado, está na reforma
do Estado, isto é, na redução da máquina administrativa e também do nível de
intervenção estatal na economia e na realidade social em sentido mais amplo.
A teoria da crise de legitimidade, que Held associa às perspectivas
neomarxistas de Jürgen Habermas e Claus Offe, avança a hipótese alternativa de

______________________________________________
43
Esta primeira linha interpretativa é associada, por exemplo, ao relatório da Comissão Trilateral, de cuja
elaboração participou o cientista político norte-americano Samuel Huntington: S. Huntington, M. Crozier e J.
Watanuki (1975). The crisis of democracy: report on the governability of democracies to the Trilateral
Comission.
88

que a crise da democracia resulta da própria contradição entre esse regime político e
o sistema capitalista. Encontrando-se em situação de dependência estrutural, o
Estado “deve adotar decisões que sejam compatíveis com os interesses
empresariais (capitalistas) a largo prazo”, e, ao mesmo tempo, precisa fazer com
que as decisões e políticas públicas “pareçam neutras a respeito de todos os
interesses (classes), de forma que possa manter um apoio eleitoral massivo” (Held,
2001: 277). Nesta visão, o Estado é visto também como um complexo de instituições
que recebem pressões políticas de diversos grupos sociais, mas cuja dependência
estrutural dos agentes capitalistas desabilita essas mesmas instituições para atender
aos demais grupos de interesses da sociedade. Esta crise de racionalidade, por sua
vez, leva a um quadro de perda de legitimidade da democracia representativa, que
somente pode ser afastada com o aprimoramento dos mecanismos de
representatividade dos interesses sociais, isto é, com o aprofundamento da
democracia em termos qualitativos.
Ao caracterizar a crise vigente e com a mente nos processos ocorridos pelo
menos desde os anos 60 nas democracias dos países ocidentais, Held confere
destaque à convergência de um conjunto de fatores:

“As crescentes dificuldades econômicas, a redução de muitas economias ocidentais,


os problemas para cobrir os custos de um Estado de bem-estar intervencionista, as
crescentes mostras de desilusão com respeito aos partidos políticos dominantes e
ao sistema de partidos, o ceticismo eleitoral frente às promessas dos políticos: tudo
isso dava mostras de que por baixo, subjacente ao Estado e, em geral, ao sistema
político, existiam dificuldades profundamente estruturadas.” (2001: 272)

O registro usado para ilustrar a literatura referida é o de David Held, mas são
inúmeras as referências sobre a crise da democracia. Dos anos 90, por exemplo, as
referências literárias incluem desde autores situados no pólo procedimental mínimo,
como Norberto Bobbio (1997), que aponta para um momento de tensões por
mudanças qualitativas nos regimes democráticos, o que pode resultar em dinâmicas
positivas ou negativas, com ele destaca, até defensores da democracia deliberativa,
como Habermas (1994: 13), que atribui a crise da democracia representativa liberal
à sua incapacidade de lidar com os “imperativos sistêmicos inerentes
estruturalmente, [mas] que são incompatíveis e não podem ser integrados
hierarquicamente”. O reconhecimento da crise é um dos poucos consensos da
literatura, o que não é pouca coisa diante da polifonia que caracteriza a teoria
democrática. Até os defensores da democracia representativa passaram a
89

reconhecer esta crise, propondo a revisão do conceito de representação e das


próprias práticas de representação política, unindo-se às reivindicações de mudança
democrática que passaram a ser elaboradas por defensores da democracia
participativa ou por defensores da democracia deliberativa.
A teórica Carole Pateman, uma das pioneiras na defesa da democracia
participativa, começou o seu livro Participação e Teoria Democrática (1970) com a
afirmação de que “a palavra ‘participação’ tornou-se parte do vocabulário político
popular”. Assim como Held, Pateman também se referia aos últimos anos da década
de 60. Segundo ela, “isso aconteceu na onda de reivindicações, em especial por
parte dos estudantes, pela abertura de novas áreas de participação – nesse caso na
esfera da educação de nível superior –, e também por parte de vários grupos que
queriam, na prática, a implementação dos direitos que eram seus na teoria”
(Pateman, 1970: 9). De fato, as reivindicações que constituíram os levantes
estudantis e sindicais do ano de 1968, em praticamente todos os países ocidentais,
puseram a ideia de “participação” entre as principais controvérsias políticas. Os
empreendedores da ideia não se limitavam aos que criticavam o Estado e as suas
políticas. Além disso, tornava-se patente que eram diversos os significados
associados ao conceito, de acordo com a perspectiva de quem dele fazia uso:

“Na França, ‘participação’ foi uma das últimas palavras de ordem utilizadas por De
Gaulle em campanhas políticas; na Grã-Bretanha, vimos a ideia receber a bênção
oficial no Relatório Skeffington sobre planejamento, e nos Estados Unidos o
programa antipobreza incluía fundos para o ‘máximo possível de participação’ dos
afetados por ela. O uso generalizado do termo nos meios de comunicação de massa
parecia indicar que qualquer conteúdo preciso ou significativo praticamente
desaparecera; ‘participação’ era empregada por diferentes pessoas para se
referirem a uma grande variedade de situações.” (Pateman, 1970: 9)

Num primeiro momento, enquanto a ideia de participação tornava-se popular


entre os movimentos sociais mencionados, e mesmo entre os governos, as teorias
da democracia ainda permaneciam relativamente distantes disso, salvo raras
exceções, como o trabalho de Pateman. Em geral, a ênfase era colocada sobre os
perigos inerentes à introdução de mecanismos institucionais de participação
ampliada. Como visto anteriormente, a crítica da ortodoxia teórica à teoria
participativa era dirigida aos representantes de uma suposta tradição que, em um
sentido pejorativo, era denominada como “clássica”. A ideia de uma “tradição
clássica” resulta de uma simplificação forçada do pensamento de um conjunto
variado de autores e perspectivas sobre a democracia, ou seja, trata-se de um
90

artifício retórico usado para legitimar a visão ortodoxa da democracia de baixa


intensidade. Esta visão negativa da participação foi alimentada pela visão cética do
realismo político dos teóricos das elites e pela ascensão de Estados totalitários, nos
quais a ideia de participação foi utilizada como forma de mobilizar a nascente
sociedade de massas para determinados sistemas teleológicos, como argumentado
na seção 1.2.1. Além disso, muito dos debates teóricos de então ajudaram a reforçar
uma dicotomia entre representação e participação, assunto discutido a seguir.
As teorias da democracia contrárias à introdução ou à extensão das formas
de participação cidadã basearam os seus argumentos na oposição, tão persistente
quanto questionável, entre, de um lado, as teorias supostamente “normativas”, rótulo
acusatório para designar que seus “ideais” não seriam realizáveis na prática, e, de
outro, as teorias “empíricas” ou “científicas”, fundamentadas na crença de
descreverem as democracias como elas realmente são. É interessante observar
como estas tendências intelectuais são estruturadas em torno de dicotomias, de
oposições duais, como realismo-idealismo, empírico-normativo etc. Por este
esquema de pensamento, de um lado são situadas as teorias “empíricas” ou
“realistas”, a sustentar uma postura de objetividade científica diante das democracias
realmente existentes, nas quais o mecanismo da escolha de representantes eleitos é
visto como o cerne da democracia moderna. Do outro lado do esquema, situam-se
as perspectivas teóricas “normativas” ou “idealistas”, termos que são associados em
seus sentidos pejorativos, seja do ponto de vista “científico”, seja do ponto de vista
da “aplicabilidade prática”. Pela argumentação de Schumpeter, para ser “realista” é
preciso reduzir a existência de canais participativos. Por meio desta retórica
assimétrica, a representação se sobrepõe à participação, pois o “realismo” das
teorias empíricas é preferível ao “idealismo” das teorias clássicas. Como se viu, a
chave para a explicação da crise da democracia (na via interpretativa do governo
sobrecarregado) é a sua excessiva porosidade às demandas sociais, vista como
uma espécie de populismo democrático.
Evidentemente, a neutralidade axiológica alegada pelos teóricos “realistas” é
denunciada pelas visões participativas, entre outras perspectivas críticas, pois ela é
considerada um mero instrumento de sedução embutido no argumento dos
opositores da participação popular. Os críticos ao realismo alegam que não há
teorias neutras. O que diferencia as perspectivas teóricas são as diversas
preferências normativas entre elas, e não uma diferença de atitudes
91

epistemológicas. Todas as teorias trazem consigo determinados “ideais”, mesmo


aquelas que afirmam serem realistas, descritivas, científicas ou empíricas. A
interpretação da crise da democracia como uma crise de legitimidade, apresentada
acima, serve de base para as tendências dispostas a dar sustentação teórica ao
projeto de ampliação da participação política. Assumindo o seu próprio ideal, os
teóricos da democracia participativa agarraram-se à pretensão de ampliar as formas
de participação, a qual deixa de se limitar à escolha periódica dos representantes,
na prática a única oportunidade de participação ao alcance do cidadão nas
democracias representativas.
Os teóricos da participação estão conscientes de que a alegação de
“realismo” da ortodoxia representativa é uma das razões de sua predominância, pelo
apelo “científico” que resulta da alegação de que se descreve “a realidade como ela
é”. Ao mesmo tempo, a alegação é uma estratégia retórica para desqualificar outras
perspectivas democráticas, consideradas “idealistas” e, portanto, irrealizáveis.
Cientes disso, os primeiros procuraram destacar o elemento intrinsecamente
normativo de qualquer perspectiva teórica. Esta é a crítica de Pateman, por exemplo,
para quem

“qualquer teoria política destaca dos fenômenos considerados aqueles que precisam
ser explicados e os que são relevantes para a explicação. Mais do que isso, no
entanto, (...) tal seleção significa que não apenas algumas dimensões são excluídas
por serem irrelevantes – dimensões que podem ser cruciais para outra teoria –, mas
que as dimensões escolhidas também sustentam uma posição normativa, uma
posição implícita na própria teoria” (Pateman, 1992[1970]: 26).

Nos dias atuais, é amplamente reconhecido que as diferentes configurações


teóricas incorporam preferências valorativas, tanto por autores que trabalham com a
teoria democrática como pelos trabalhos empíricos com maior consciência teórica.
Em consequência, a questão deixa de ser definir se uma teoria é ou não normativa e
passa a ser esclarecer quais são as preferências democráticas, implícitas ou
explícitas, carregadas por cada uma das inúmeras teorias disponíveis. Todas as
teorias incorporam preferências normativas, mesmo quando os seus defensores
alegam refletir a realidade como ela é.
A questão saliente para o método, do ponto de vista desta tese, é a
identificação de quais são as características dos processos políticos de definição das
políticas públicas, para que eles possam ser considerados “democráticos”, de acordo
com uma determinada perspectiva teórica. O reconhecimento desta variedade de
92

conteúdos democráticos não chega a ser uma novidade. Mesmo assim, é uma
atitude intelectual diversa da reivindicação de “realismo” por parte de uma
determinada teoria, ou por determinado conjunto de perspectivas teóricas, as quais
servem de referência para o procedimental mínimo, ou da atitude de afirmar que
apenas certas concepções democráticas seriam “idealistas”, merecendo ser
descartadas da ciência política. Todas as teorias buscam referenciar processos
“reais” e são ao mesmo tempo defesas “normativas” de uma determinada forma
democrática e de suas práticas políticas imaginadas ou observadas. Como distinguir
a realidade como ela é, se qualquer narrativa incorpora, implícita ou explicitamente,
uma determinada seleção do material empírico, a qual é sempre orientada por
teorias carregadas pela investigação?
Para seguir adiante, existe outra ideia a ser explorada aqui. Trata-se da
dicotomia entre a “democracia representativa” e a “democracia participativa”, ou,
simplesmente, entre os conceitos de “representação” e “participação”. Apesar de ser
uma ideia comum, há boas razões para considerá-la analiticamente infrutífera e,
portanto, inadequada para as interpretações empreendidas sobre a eventual
democratização da política externa nos dois países sob escrutínio. A oposição
“representação” versus “participação” consolidou-se como uma autoimagem
persistente da teoria democrática, em especial após os processos de contestação
política do final dos anos 60, que repercutiram na multiplicação de abordagens
inspiradas pela concepção participativa. Durante as décadas de 70 e 80, este foi o
eixo mais bem definido da teoria democrática, gerando uma espécie de ideia fixa no
campo intelectual. Até hoje, ainda é comum encontrar a repetição da fórmula –
experimente lançar a expressão em um buscador na internet e verá milhões de
ocorrências, em textos acadêmicos ou não – mesmo que as discussões dentro da
ciência política tenham avançado, sobretudo nos últimos vinte anos. Hoje, existe um
maior pluralismo teórico, que resulta da atenção recebida e do suporte dado a outras
teorias democráticas, não se justificando a restrição à referida oposição. Ademais,
houve transformações interessantes nas elaborações intelectuais e nas experiências
práticas em torno das próprias ideias de “representação” e de “participação”. O
restante do capítulo explora esses movimentos recentes, que podem ser observados
no pensamento político democrático, ou seja, nas visões sobre a democracia e sobre
as formas de organização política de uma sociedade liberal.
93

Ainda sobre a frequente fórmula “representação vs. participação”, uma das


genealogias possíveis dessa dicotomia remete à elaboração de Rousseau, que opôs
o “autogoverno” ao “governo representativo”. Do lado do autogoverno, a “democracia
direta” ou “participativa”; do lado da “democracia representativa”, uma forma
“aristocrática” de governo. Ainda que Rousseau considerasse necessária a
existência de representantes, para ele a sua escolha deveria ser realizada mediante
sorteio – mecanismo, por excelência, do seu modelo democrático, que se relaciona à
função educativa da participação e a todo o seu esquema de pensamento. Mesmo
que não se possa inferir a influência de Rousseau44 sobre todas as teorias
democráticas destes últimos três séculos, é interessante perceber a semelhança
estrutural entre a dicotomia, persistente na literatura dos anos 70 e 80, e a
elaboração do filósofo iluminista.
Nesta pesquisa, optou-se por substituir a dicotomia representação-
participação por uma exposição teórica mais plural, baseada em três perspectivas.
Por que aquela imagem dual é inadequada, quais são as razões para deixá-la de
lado nos debates sobre a democracia?
Em primeiro lugar, como ocorre com as oposições em geral, esta também não
favorece o diálogo acadêmico. Isto porque, ao opor os conceitos de “participação” e
“representação”, os teóricos buscam em geral confrontá-los, desvalorizando o pólo
oposto. Em outras palavras, oposição gera polarização, enquanto a intenção deste
trabalho intelectual é provocar o diálogo entre as perspectivas, a partir do confronto
de seus argumentos e preferências institucionais às quais estes discursos teóricos
conferem legitimidade. Esta atitude plural é assumida como preferível às outras

______________________________________________
44
A teoria democrática tem sido mais um terreno fértil para a estruturação de oposições duais, como
“democracia formal vs. democracia substantiva”, “agregação vs. deliberação”, além daquela que é destacada
nesta seção. Embora não convenha explorar excessivamente a persistência das oposições no pensamento
ocidental, cabe realçar que ela está presente desde suas raízes clássicas, por exemplo, nos fragmentos
atribuídos ao filósofo antigo Heráclito de Éfeso, para quem a realidade corresponde a uma guerra de opostos
(ou, nos termos de um dos fragmentos atribuídos a ele, “aquilo que está separado se reúne consigo mesmo;
há harmonia na tensão contrária”), até os tempos mais modernos, por exemplo, em Hegel, que adaptou o
fragmento do seu antecessor, na sua concepção dialética. Comentando esta persistência, o historiador Carlo
Ginzburg foi muito feliz, ao afirmar o seguinte: “A espécie humana tende a representar a realidade em termos
de opostos. O fluxo das percepções, em outras palavras, é decomposto na base de categorias nitidamente
contrapostas: luz e sombra, calor e frio, alto e baixo. (...) Para eles [os seres humanos], a realidade, enquanto
refletida pela linguagem e, consequentemente, pelo pensamento, não é um continuum, mas um âmbito
regulado por categorias descontínuas, substancialmente antitéticas” (1989: 97-8).
94

estratégias possíveis, por se abrir espaço para a discussão de determinados


problemas e conceitos comuns, apesar do fato de que suas definições e propostas
são diferentes.
Esses conceitos comuns, em particular aqueles que auxiliam na compreensão
empírica e na avaliação crítica dos processos concretos de formulação da política
externa, serão identificados no Capítulo 2.
As perspectivas analisadas na primeira parte do capítulo são reorganizadas,
na forma de uma síntese estruturada em torno de três desses conceitos, todos
considerados centrais para a construção da democracia: representação, participação
e deliberação. Em vez de situar cada um desses conceitos no âmbito exclusivo de
uma das teorias disponíveis, o que substituiria o diálogo possível por uma
concorrência pelo predomínio de apenas um conceito ou teoria, em detrimento dos
demais, a discussão elaborada tem o objetivo de, em primeiro lugar, identificar como
cada perspectiva teórica enxerga cada um desses três conceitos, para, em seguida,
proceder à elaboração de uma breve síntese teórica das perspectivas selecionadas.
Não existe democracia sem instituições representativas, por isso toda perspectiva
teórica precisa lidar com os problemas associados ao conceito de “representação”.
Igualmente, considera-se neste trabalho que não existe democratização sem
“participação” ou sem “deliberação” democráticas. A diferença é o alcance e o modo
de exercício de cada um desses direitos ou liberdades, de acordo com a perspectiva
teórica utilizada.
Outra razão, derivada da anterior, consiste na tentativa de se evitar que a
ciência política insista em ser o campo da “tirania das falsas polaridades”. A
expressão, cunhada por Stephen Holmes para descrever a teoria política, é utilizada
por Michael C. Williams (2005), que analisa algumas “falsas polaridades” existentes
no pensamento político. Por trás das aparentes contradições, muitas vezes esconde-
se uma verdadeira identidade, pois uma das partes depende de sua oposição para a
construção do seu próprio significado. O argumento é resumido por Williams a
seguir:

“Estas divisões não são completamente carentes de plausibilidade, entretanto elas


frequentemente levam a equívocos profundos e têm levado a conjuntos de
oposições reificadas (e frequentemente caricaturizadas), em vez de um quadro para
o engajamento substantivo nas questões teóricas e políticas envolvidas” (M.
Williams, 2005: 140)
95

O argumento do autor, embora aplicado a outras oposições


(realismo/liberalismo, racionalismo/construtivismo e modernismo/pós-modernismo),
sustenta-se sobre a motivação seguinte: é não apenas possível como também
necessário superá-las, se o que se pretende é promover o diálogo entre as posições
teóricas.
O raciocínio de Williams é endossado por esta pesquisa: buscar elementos
conceituais comuns e identificar os eventuais pontos de divergência teórica parece
ser uma estratégia mais eficiente do que reforçar oposições tradicionais.
As oposições, com a sua lógica de exclusão mútua, terminam por reforçar
uma das partes envolvidas na relação, em detrimento da outra. Existe uma
assimetria constitutiva no recurso à oposição teórico-conceitual, um dos lados
predomina e o outro apenas legitima a dominação, por ser excluído. Este argumento
foi explorado, por exemplo, por Koselleck, quando ele desenvolveu a noção de
“conceito antitético assimétrico”45. A ideia é utilizada em seus trabalhos com a
intenção metódica de “questionar a estrutura argumentativa das figuras dualistas
que ocorrem na linguagem, a maneira como as posições contrárias foram negadas”
(2006:195). Sua caracterização e argumentos aplicam-se a inúmeras construções
lingüísticas e, portanto, intelectuais, como aquela que vem sendo tratada aqui:

“O que caracteriza os conceitos antitéticos desiguais é que eles determinam uma


posição seguindo critérios tais que a posição adversária, deles resultante, só pode
ser recusada. Nisto reside a sua eficácia política, mas ao mesmo tempo também a
dificuldade para serem aplicados ao conhecimento científico. Nas palavras de Kant,
‘dividir em duas partes um conjunto de coisas heterogêneas não leva a nenhum
conceito determinado’. Para que as divisões históricas sejam reconhecidas em suas
assimetrias lingüísticas, elas precisam ser investigadas em suas estruturas comuns
– e diferenciáveis.” (Ibid.)

O historiador alemão estudou os conceitos usados por grupos como meio de


negar reconhecimento a outros. Segundo o autor, essas formações conceituais

______________________________________________
45
Essa noção foi desenvolvida na obra Futures Past, uma reunião de ensaios publicados entre 1965 e 1977,
cuja leitura fornece uma boa visão geral do projeto intelectual da história conceitual alemã (Begriffsgeschichte),
desenvolvida junto com Otto Brunner e Werner Conze – sobretudo este último. A obra foi publicada no Brasil
em 2006 e faz parte de um movimento intelectual de recepção da ideias dessa metodologia e de seus
pressupostos teóricos, na academia brasileira, em especial entre cientistas políticos e historiadores.
96

ocorrem na forma de pares de contraconceitos assimétricos: cada um dos pares é


constituído por um conceito positivo, utilizado para nomear o próprio grupo, ou seja,
a própria identidade coletiva, o “Nós”, e um conceito negativo, atribuído ao “Outro”,
que embora sinta que o conceito é a ele dirigido, não se sente propriamente
reconhecido nele. Neste caso, a denominação democracia “representativa” ou
“participativa”, quando dirigida ao opositor, torna-se um rótulo de acusação, isto é, a
opção oposta significa a própria negação da democracia. A terceira razão para o
combate a essa dicotomia advém da sua clara inadequação aos debates mais
recentes da teoria política, na medida em que, hoje em dia, representação e
participação são vistas, cada vez mais, como “formas complementares de cidadania”
(Nadia Urbinati e Mark Warren, 2008)46. Sendo assim, somente se pode fazer jus às
tendências desse campo intelectual abandonando a antiga ideia de uma oposição, a
qual supõe que os dois conceitos se opõem e excluem mutuamente. Além disso,
como observam os cientistas políticos brasileiros João Feres Jr. e Thamy
Pogrebischi (2010: 143), a teoria política contemporânea,

“reconhecendo os dilemas colocados pela representação política e atestando a


insuficiência dos modelos vigentes para a solução dos mesmos, passa a orientar
seus esforços na criação de novas formas de democracia que buscam superar os
limites da representação por meio da participação ou da modalidade mais
contemporânea desta, a deliberação”.

A superação da oposição referida tampouco é completa novidade, pois já é


bastante explorada na literatura mais recente sobre a teoria democrática.
Frequentemente cita-se a contribuição do cientista político David Ploke (1997),

______________________________________________
46
Em artigo no qual analisam o lugar ocupado pelo conceito de “representação” nas principais vertentes da
teoria democrática contemporânea, os autores apontam para algumas tendências, entre as quais se destaca
uma nova apreciação da representação e da participação, tratadas atualmente como “formas complementares
de cidadania”. As demais tendências identificadas pelo trabalho citado são as seguintes: primeiro, a ciência
política passou a enfatizar o fato de que a representação eleitoral compete com outras formas não-eletivas de
representação, informais ou fruto de inovações institucionais que se multiplicam no mundo contemporâneo;
segundo, um maior questionamento quanto ao caráter de justiça [no inglês, fairness] das configurações
institucionais e das políticas públicas, em particular para as minorias e as mulheres; em terceiro lugar, há um
interesse renovado da teoria democrática pelos seus elementos normativos – isto é, também se questiona a
dicotomia entre democracia como “ideal” e democracia “como ela é”, ou entre uma teorização idealista e uma
teorização realista, no sentido de remeter à “realmente existente”; além da quarta e última tendência, à qual já
se chamava a atenção do leitor antes.
97

frequentemente citado pela literatura como um “ponto de inflexão” no debate. Seu


trabalho é uma defesa veemente do conceito de “representação”, sendo que o título
do artigo em tela é “Representation is democracy”, expressando a valorização da
representação política, no qual o autor insiste que essa instituição é sim
democrática47.
Ao mesmo tempo, Ploke se insere no movimento de ressignificação da ideia
de “representação”, ou seja, uma tentativa de evitar que o bebê seja atirado fora,
junto com a água da bacia, no momento em que a democracia representativa é
posta em cheque por modelos alternativos, a partir dos anos 1970, por teóricos da
participação, e a partir dos anos 1990, por teóricos da deliberação. A defesa da
“representação” como uma prática democrática fundamental insere-se em uma
literatura contemporânea, que pretende revisar criticamente o conceito e as práticas
a ele associadas (cf. Hannah Pitkin, 1967 e 2004; Jane Mansbridge, 2003; Nadia
Urbinati, 2006; Nadia Urbinati e Mark Warren, 2008). Além dessas novas tendências
intelectuais democráticas, a passagem do século XX para o século XXI foi marcada
por uma pluralização do debate teórico na ciência política, a qual, por sua vez, é
indissociável da emergência de questionamentos sociais à democracia
representativa liberal, ainda que não possa ser a eles reduzida, nem seu papel na
cultura política deve ser supervalorizado, seja quando legitima determinadas ordens
político-institucionais, seja quando se trata de formulações críticas, as quais,
motivadas pelo ímpeto de mudança, propõem reformas das instituições
democráticas. No momento em que a alternativa democrática é o caminho trilhado
pela maior parte de países do mundo, pela primeira vez na história, considerando,
ad argumentandum tantum, a ideia mínima de regimes com liberdades públicas e
eleições periódicas, é justamente nesse momento que ocorre uma profunda
reconfiguração dos debates teóricos sobre democracia. A dicotomia entre

______________________________________________
47
Na sua expressão, repetidamente citada pela literatura, “o oposto da representação não é a participação. O
oposto da representação é a exclusão. E o oposto da participação é a abstenção” (D. Plotke, 1997: 19). Apesar
de seu trabalho marcar uma descontinuidade na literatura e haver contribuído para superar a antiga oposição
entre representação e participação, o autor insiste em articular novas oposições. Como o que se pretende aqui
é o diálogo teórico, insiste-se em não promover oposições, mas realçar diferenças entre as formas de definir
esses dois conceitos – mais o de deliberação – e as suas implicações políticas e normativas.
98

democracia representativa e democracia participativa dá lugar a uma variedade de


abordagens teóricas, fruto da multiplicação das perspectivas filosóficas e da própria
agenda democrática. A insistência das perspectivas críticas postula significados de
democracia alternativos e soma-se à percepção generalizada de que é preciso
reconfigurar a própria democracia representativa. O resultado é uma nova paisagem
na teoria democrática, mais plural e com uma agenda mais complexa. As duas
citações a seguir sintetizam a formação desta nova consciência, a partir da
convergência de duas tendências questionadoras principais:

“Em busca da superação de modelos minimalistas de democracia e da natureza


paradoxal da representação política, a teoria política vem sendo, nos últimos anos,
enriquecida por uma extensa literatura que propõe formas participativas e
deliberativas de democracia. Em busca da superação de compreensões
majoritaristas da democracia e das formas tradicionais de exercício da soberania
popular, a teoria política contemporânea vem sendo alimentada por um crescente
debate em torno da sociedade civil na consolidação das democracias
contemporâneas. Essas duas agendas identificáveis na produção teórica recente
sobre a democracia não são desconectadas: ambas buscam questionar o escopo e
os limites da democracia representativa” (J. Feres Jr. e T. Pogrebinschi, 2010: 137)

Na sequência, os autores não deixam de realçar a mencionada revisão crítica


do conceito de “representação”, que é parte da guinada crítica à própria democracia
representativa, tal como concebida e praticada na atualidade:

“Ao passo que seus limites são postos em questão, a democracia representativa
recebe nova injeção de ânimo por parte de uma literatura que busca reconceituá-la,
revalidando sua natureza, alargando seu escopo e provendo-lhe novas formas de
aplicação. Seja para fazer frente às propostas participativas, seja por reconhecer a
inviabilidade prática delas, seja para responder às demandas do pluralismo e do
multiculturalismo, a democracia representativa vem recebendo novas teorizações
que ampliam seus limites modernos.” (Ibid.)

Como também já foi observado, o pensamento político do final do século XX


descartou as alternativas à democracia. Este é justamente o sentido da expressão
“arquilexema”, mencionada no início do capítulo: um conceito capaz de remeter
todas as demais formas de governo à “ilegalidade”. O fim do bloco soviético, que
representava uma alternativa concreta à democracia liberal, favoreceu a formação
de uma convergência acadêmica marcante em torno da democracia, apesar das
infindáveis divergências existentes no interior da teoria contemporânea, marcada
pela polifonia de perspectivas. Como destacou recentemente outro historiador das
ideias, Olivier Nay: “o pensamento político no final do século XX, no seu conjunto,
quase não mostra ambição revolucionária”. Para ele, “longe das teorias críticas dos
99

anos 1950-1970, os autores contemporâneos estão decididos a sustentar o quadro


democrático” (2007[2004]: 481). A nota predominante na absoluta maioria das
críticas políticas é reformista, não revolucionária. Trata-se de “aperfeiçoar a
democracia”, “democratizar a democracia”, entre tantas outras ideias afins, todas
elas reconhecendo a centralidade do conceito como referencial normativo, todas
sustentando a ideia de democracia, mesmo que seja para criticar outras concepções
e práticas também ditas “democráticas”, desde outras perspectivas, é claro. O
mesmo historiador sustenta que, “apesar das imperfeições, [a democracia liberal] é
vista como o sistema institucional mais eficaz para proteger os direitos da pessoa,
controlar as elites políticas e regular de maneira pacífica os conflitos sociais”.
Em síntese, segundo ele, “as novas filosofias políticas estão preocupadas
com o equilíbrio das vontades, (...) estão abertas para os indivíduos, mas também
para os grupos, (...) e tentam definir as condições éticas que permitam a realização
de acordos em democracia” (Ibid.). O autor enfatiza o consenso em torno da
democracia no pensamento político atual e classifica as teorias contemporâneas em
“duas sensibilidades”. A sua formulação é interessante para a apresentação da
abordagem analítica proposta a seguir, no Capítulo 2, na medida em que o autor
situa as perspectivas selecionadas nesta tese no âmbito mais geral da teoria
democrática contemporânea. Quais são as duas “sensibilidades filosóficas” do
pensamento político contemporâneo, apresentadas pelo historiador francês? A
primeira delas refere-se às “filosofias procedimentalistas”, as quais “têm por ambição
esquematizar as regras e os procedimentos de deliberação que permitem, na
sociedade democrática, a expressão da pluralidade de opiniões, a competição livre
dos argumentos e o regulamento pacífico das desavenças”. A segunda sensibilidade
corresponde ao chamado “comunitarismo”, cuja preocupação reflexiva central
consiste em uma crítica à democracia liberal em termos de sua incapacidade para
lidar com as desigualdades, que atingem especialmente as “comunidades”, e não
necessariamente os indivíduos, como na visão dominante da episteme liberal.
100

Assim, os princípios da justiça social48 “devem necessariamente levar em conta a


dimensão coletiva da vida humana e o pluralismo de valores” (O. Nay, 2007[2004]:
507). O centro da experiência democrática, pela visão comunitária, reside na
comunidade entendida como um grupo de pessoas unido pelos valores
compartilhados; enquanto isso, na visão procedimental, o que vincula a sociedade
democrática é o compartilhamento de regras destinadas ao reconhecimento e à
garantia de direitos, ao controle do poder político das instituições do Estado e da
sociedade e à tomada de decisões a respeito das políticas públicas.
Note-se que, no âmbito das “filosofias procedimentalistas”, o autor refere-se
apenas às teorias deliberativas da democracia – onde estão os procedimentalistas
mínimos, ou realistas? Onde estão os defensores de procedimentos participativos?
A explicação pode ser a seguinte: como ele explora cronologicamente as ideias
políticas discutidas em seu livro, essas perspectivas, usadas nesta tese, haviam sido
tratadas em trechos anteriores de sua obra, que incluem as teorias até a década de
1970. Esta é a razão pela qual a teoria contemporânea é identificada com a noção
de “deliberação”. Assim, pode-se acrescentar que as outras duas perspectivas
teóricas também são “procedimentalistas”, além de serem contemporâneas, no
sentido de que, para os estudiosos, e mesmo nos discursos não acadêmicos, estas
concepções de democracia também são as referências principais. Não seria o
procedimentalismo mínimo, que se sustenta em Schumpeter, uma perspectiva
“contemporânea” do pensamento democrático? É claro que sim. Tanto a perspectiva
realista, como a participativa, e, neste acréscimo feito agora, a deliberativa, todas as

______________________________________________
48
Além destas duas sensibilidades, ainda há outras correntes, como a dos defensores do “multiculturalismo” e
do “libertarianismo”, cujos caminhos e autores exemplares são explorados pelo autor no capítulo que
denomina como “a questão democrática na aurora do século XXI”. Resumidamente, pode-se afirmar que a
primeira corrente é representada por autores que focalizam as suas reflexões teórico-normativas sobre a
preocupação de conciliar os princípios fundamentais da “liberdade individual” e da “igualdade de
oportunidades” com o “reconhecimento da diversidade das culturas” – assim, autores multiculturalistas, como
Charles Taylor, Will Kymlicka e Michael Walzer, se diferenciam dos “comunitaristas” por não contestarem
diretamente a cosmovisão liberal. Por fim, a perspectiva identificada com o “libertarismo” é lida pelo autor como
uma defesa da “liberdade absoluta”, que por sua vez remete à noção de extensão das regras do mercado para
todos os demais âmbitos da vida social: seus defensores estão “convencidos da exatidão das teses neoliberais
que vêem nas regras do mercado o fundamento da liberdade e da justiça” (cf. O. Nay, 2007[2004]). Estes
últimos, ainda que com diferentes orientações ideológicas, têm um compromisso com o combate à expansão
do estado sobre a esfera individual, caminho que oprime os indivíduos e a própria sociedade formada por eles.
Entre os autores mais progressistas, está o filósofo Noam Chomsky, enquanto Robert Nozick seria um
representante da versão mais à direita no espectro político da teoria democrática.
101

três perspectivas teóricas selecionadas se inscrevem no procedimentalismo das


filosofias contemporâneas49.
O autor não é explícito em sua definição do que são as tais “sensibilidades
filosóficas”, o que não retira o interesse na sua categorização das tendências
intelectuais recentes. Cabe lembrar que, para Nay, as reflexões sobre a democracia
constituem o coração da teoria política neste princípio de século. A principal utilidade
da sua categorização é situar as perspectivas selecionadas no âmbito mais geral da
teoria democrática contemporânea. Na tentativa de definir o que seriam estas
“sensibilidades” a que se refere o autor, pode-se dizer que parece remeter às
preocupações centrais que aglutinam as reflexões de um determinado conjunto de
perspectivas: ela se refere aos “procedimentos democráticos” e, portanto, às
instituições e ao seu desenho? Ou ela se refere ao sentido de “comunidade” e,
portanto, à busca de identificação e defesa dos valores democráticos fundamentais
de uma unidade política? E assim por diante. No caso deste trabalho, interessam as
filosofias “procedimentalistas”, sobretudo a preocupação dessas filosofias com a
construção das instituições democráticas.
A reflexão sobre o direito ocupa um lugar central nas filosofias
procedimentalistas da democracia. No entanto, a ênfase deste trabalho é estendida
não apenas ao plano doméstico, como é o foco destas teorias, mas também no
plano das instituições internacionais regionais, por meio da análise de suas relações
com as instituições democráticas nacionais. Afinal, pretende-se analisar as
articulações não apenas entre democracia e políticas públicas (no caso, política
externa), mas também entre instituições políticas nacionais e instituições regionais.
Considera-se que é preciso que as diferentes perspectivas teóricas (ou
modelos) de democracia enfrentem as dificuldades associadas a cada um dos
conceitos e às práticas correspondentes e eles. Os defensores da democracia

______________________________________________
49
No âmbito da “deliberação”, o autor discute também a contribuição da teoria democrática de John Rawls –
Uma Teoria da Justiça, entre outras obras – e de outros autores, como Ronald Dworkin, Michael Walzer e
Amartya Sem, mas estas perspectivas são deliberadamente deixadas de fora nesta tese. Esses três
importantes autores, e suas respectivas teorias e conceitos, provavelmente aumentariam a complexidade da
abordagem analítica, de forma desnecessária. Neste caso, pareceu mais interessante explorar as
possibilidades de aproximação (e de distanciamento) diante das outras perspectivas selecionadas (realista e
pluralista), mais do que explorar as variações internas.
102

representativa precisam enfrentar a questão das demandas por “participação”, assim


como os defensores da democracia participativa precisam lidar com o conceito de
“representação”, e assim por diante. Qualquer perspectiva teórica precisa lidar com
os conceitos de “representação”, “participação” e “deliberação”, este último central
na teoria deliberativa da democracia, a qual ganhou força desde os anos 90 e
compõe o terceiro eixo teórico explorado neste trabalho. A questão não é dispensar
este ou aquele conceito, tampouco associá-lo a uma concepção particular de
democracia, tornando-o refém de uma teoria. Existem inúmeros conceitos que são
fundamentais para qualquer discurso sobre a democracia – por exemplo, os
conceitos de “cidadania”, de “direitos fundamentais”, de “igualdade” etc. A própria
ideia do que é o “político” e do quê fundamenta normativamente a democracia, isto
é, quais são os seus fundamentos de legitimidade, são problemas e conceitos
políticos são centrais a qualquer perspectiva teórica.
O diálogo teórico proposto substitui aquela oposição dual por uma tríade. Isto
não significa uma solução para todos os problemas enfrentados na análise da
democratização das políticas públicas em geral, mas pelo menos são tornadas
visíveis não apenas determinadas oposições entre três perspectivas, mas também
algumas aproximações possíveis entre elas. Simbolizadas como vértices de um
triângulo analítico, conforme Figura 1 abaixo, as perspectivas selecionadas da teoria
democrática contemporânea permitem pensar e articular não apenas as distâncias
entre si, mas também os seus pontos de convergência. Isto ocorre devido às
propriedades desta forma geométrica, pois cada par de vértices possui sempre um
ponto em que a aproximação é máxima, justamente o ponto médio da reta entre
eles, que por sua vez é o ponto mais distante do outro vértice.

democracia deliberativa

democracia realista (ou representativa) democracia pluralista (ou


participativa)

Figura 1 – Perspectivas selecionadas da teoria democrática contemporânea


103

Naturalmente, o triângulo analítico não esgota as possibilidades de


perspectivas sobre a democratização. A própria identificação das perspectivas
teóricas resulta de um processo de escolha daquele que conduz a pesquisa e a
assume a seu próprio risco: não é possível esgotar, de maneira enciclopédica, as
incontáveis perspectivas intelectuais e políticas em torno da democracia. Tampouco
parece adequado utilizar apenas uma perspectiva como padrão de avaliação e como
referência para a determinação das dimensões a se observar nos casos concretos –
tome-se como exemplo a estratégia de adotar o procedimentalismo mínimo e a partir
dele criar adjetivações infindáveis. Uma justificativa para selecionar apenas estas
três perspectivas é a parcimônia, pois a introdução de discussões que transcendem
o problema dos procedimentos democráticos complicaria a possibilidade de diálogo
teórico – argumenta-se que esse diálogo é mais facilmente obtido, quando há
algumas semelhanças iniciais ou pontos de contato entre os discursos teóricos.
Assim, é maior a probabilidade de um diálogo frutífero, o que não significa
desconhecer que as teorias selecionadas também representam visões contrastantes
da democracia, e de outros conceitos centrais, como “cidadania”, “política”, “direito”,
“processo político”50.
Antes de apresentar as três perspectivas teóricas trabalhadas no restante da
tese, convém fazer uma última observação metodológica preliminar. São bastante
conhecidas as controvérsias em torno da propriedade de se utilizar como unidade
epistemológica noções como as de “perspectivas”, “tradições”, “paradigmas”, ou
“escolas” de pensamento, de um lado, ou de se prender a “autores” ou mesmo suas
“obras” particulares51. No capítulo a seguir, busca-se escapar destas controvérsias

______________________________________________
50
Em um artigo publicado no Brasil em 1995, Habermas apresenta “três modelos normativos de democracia”: a
“concepção republicana”, a “concepção liberal” e a “concepção deliberativa”. Esta classificação será retomada
adiante, na seção 2.3, quando se abordar a concepção de sua preferência, a última. De fato, são inúmeras as
apresentações tripartites da teoria democrática contemporânea, esta tese não traz nenhuma novidade neste
sentido. Por outro lado, considerando a apresentação de O. Nay, comentada no corpo do texto, estas
autoimagens da teoria democrática denotam a predominância do procedimentalismo na teoria democrática
contemporânea. Mesmo que já não seja o mesmo que a simples predominância da concepção procedimental
mínima, como se viu na literatura de política comparada, na seção 1.1, supra, e como ocorre nas relações
internacionais, por exemplo, na “teoria da paz democrática”.
51
Esta controvérsia é antiga e atravessa as diversas disciplinas das ciências sociais. Para uma discussão
interessante sobre a suposta opção entre “paradigmas” ou “escolas”, de um lado, e “autores” ou “figuras”, de
outro, no estudo das relações internacionais, cf. O. Waever (1996) e I. Neumann e O. Waever (1997). Sobre os
104

entre “perspectivas” e “autores”, conjugando os dois métodos de análise do


pensamento político. Primeiro, as inúmeras elaborações teóricas encontradas na
teoria democrática contemporânea são reagrupadas em três “perspectivas”: (1) a
“perspectiva realista” (também denominada “elitista”), (2) a “perspectiva pluralista”
(também denominada “participativa”), e, finalmente, (3) a “perspectiva deliberativa”.
O segundo método de análise realça as particularidades do pensamento sobre a
democracia entre alguns autores ou “figuras”, cujas contribuições também serão
úteis para a análise dos casos estudados – as ideias de Max Weber acerca da
“burocratização” e da “responsabilidade política” na democracia, ou a visão particular
sobre o conceito de “esfera pública” de Jürgen Habermas, são alguns exemplos que
os diferenciam dentro de suas respectivas vertentes teóricas.

______________________________________________
problemas associados à utilização da ideia de “paradigmas” nas ciências sociais em geral, assim como neste
campo de estudos, ver S. Smith (1995). Em virtude da forte associação que se faz entre o conceito de
paradigma e a teoria da ciência apresentada por T. Kuhn na sua conhecida obra A Estrutura das Revoluções
Científicas (2000[1970]), prefere-se evitar a sua utilização nesta tese. Mesmo reconhecendo que a ideia de
“perspectivas” também não é imune a críticas.
105

2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS E SEUS CONCEITOS FUNDAMENTAIS:


REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO

O que pretendo aqui fazer é devolver ao riso colérico dos que riem da Filosofia
Política outro tipo de riso, que incide sobre a vetusta postulação de uma distinção
funda e de, no limite, uma incomunicabilidade entre uma reflexão de corte filosófico e
normativo e o trabalho, a meu juízo fundamental, que se realiza na dimensão
empírica da disciplina. Se minha exposição for minimamente bem-sucedida,
pretendo deixar claro que todos perdemos com essa distinção. Ela é obscura,
obscurantista e não faz justiça a essas duas áreas de trabalho, que são
fundamentais para a constituição da nossa disciplina. Uma dá sentido à outra. Uma
não pode existir sem a outra.
Renato Lessa.

Democracia e democratização política significam muitas coisas diferentes,


quando elaboradas a partir de pontos de vista diversos. Muitas vezes, estes
significados distanciam-se, ou mesmo se opõem, porém outras vezes eles se
aproximam. As perspectivas teóricas organizadas neste capítulo visam à construção
de um esquema conceitual que ajude a conferir sentido aos processos políticos
estudados. Elas auxiliam na produção de interpretações sobre os casos analisados
e fornecem finca-pés para a apresentação da análise que dá sequência ao trabalho,
nos dois últimos capítulos, bem como para as conclusões produzidas ao final. Isto
porque elas produzem argumentos sobre as implicações políticas das instituições
democráticas e de seus processos, isto é, o que se deve esperar de uma
democracia, em termos de regras, papeis ou expectativas de comportamento dos
agentes políticos mais relevantes. “Quem são os agentes políticos mais relevantes?”
é outra questão à qual essas teorias dão respostas divergentes, entre outras
diferenças exploradas nas três primeiras seções.
Além disso, as perspectivas teóricas apresentadas nesta obra possuem dois
aspectos interdependentes, cujos significados e relações recíprocas devem ser
acentuados desde logo. Por um lado, as teorias assumem determinadas premissas
ou suposições sobre aquilo que constitui a realidade democrática. Este é o elemento
106

ontológico das teorias, isto é, são identificados tanto os diversos elementos que
constituem a realidade como os modos como esses elementos, entidades ou
processos sociais estão conectados entre si. Por outro lado, as teorias também
assumem determinadas preferências normativas sobre como a democracia “deve
ser” organizada, mesmo quando afirmam estar apenas constatando o modo como
ela é, pois sempre são fornecidas bases para a elaboração de juízos sobre a
realidade. O elemento ontológico e o normativo estão sempre presentes nos
diversos discursos teóricos. Embora eles possam ser analiticamente distintos, na
prática nunca são completamente independentes entre si. As teorias não são
capazes de simplesmente descrever ou explicar um determinado estado de coisas,
pois elas sempre nos apresentam certas possibilidades existentes para a ação
humana, para a intervenção na realidade social. Sendo assim, as teorias são
construções intelectuais que sempre apontam, para além de seus elementos
explicitamente descritivos ou explicativos, certos horizontes práticos e éticos.
As escolhas realizadas ao longo da investigação refletem a preocupação
central do pesquisador com os problemas da democratização política em geral, e,
em particular, com as relações entre democracia, política externa e integração
regional, na Argentina e no Brasil das últimas duas a três décadas. Como as
instituições e estruturas políticas existentes distribuíram a capacidade de influir nas
decisões públicas entre os diversos agentes políticos de cada sociedade?
Propõe-se uma aproximação teórica alimentada pela seleção de um conjunto
de perspectivas e autores do pensamento político. Em tese, este quadro teórico
poderia ser utilizado como estrutura facilitadora para a compreensão do impacto das
instituições sobre outras políticas públicas – por que não poderiam servir para
analisar áreas como as políticas de orçamento, de educação ou de saúde pública?
Diferente do que ocorre com os estudos de política externa, existem muitos estudos
sobre a democratização dessas políticas, em ambos os países. Também poderia ser
interessante investigar outras áreas da vasta agenda de política externa destes ou
de outros países. Pode-se pensar na análise futura de outros temas, como as
políticas de segurança e defesa, de proteção ao meio ambiente, entre outras.
107

Deve ficar claro, no entanto, que as perspectivas utilizadas servem como uma
ferramenta metodológica, como um instrumento analítico, mas não há “modelos” a
serem testados, se a expressão é tomada no sentido de um conjunto de proposições
formais testáveis52. Os conceitos e teorias apenas auxiliam na análise e
reconstrução interpretativa dos processos investigados, assim como na elaboração
de uma narrativa histórica que faça sentido, que seja capaz de descrever e explicar
as dinâmicas políticas e suas relações com as instituições domésticas e regionais53.
Sem conceitos e teorias não existe qualquer possibilidade de interpretar
cientificamente a realidade política. São ferramentas fundamentais para as análises
politológicas em geral, considerando a complexidade dos fatos, os quais não se
apresentam organizados em categorias, mas como um continuum de fatos54.
As teorias são tomadas como mapas conceituais que ajudam na identificação
dos agentes e processos mais relevantes e na geração de hipóteses interpretativas.
Elas não têm a capacidade de explicar todas as trajetórias particulares de
comunidades concretas, no entanto, podem sugerir padrões de generalização a
serem confirmados pela história. Pela posição adotada aqui, deve ficar estreme de
dúvidas que se utiliza esta noção flexível de “perspectivas”, pois, como dito, ainda
que geralmente sejam descritas como “teorias”, elas não o são, no sentido mais
formal do termo. A ideia não é a retificação das teorias, não é tomá-las como a
própria realidade empírica ou histórica, mas defender uma atitude de abertura

______________________________________________
52
Não é este o tipo de abordagem proposto neste trabalho, não são identificadas variáveis mensuráveis nem
desenvolvidos testes empíricos das teorias discutidas aqui. “Perspectivas” são definidas simplesmente como
estruturas conceituais ou discursos teóricos que auxiliam na reorganização e interpretação da realidade
propriamente dita.
53
O estudioso inglês Edward H. Carr, um dos pioneiros no estudo moderno da política internacional, estava
consciente do papel dos conceitos históricos e alertou os demais estudiosos a respeito da necessidade de
categorias analíticas para reorganizar a realidade no plano intelectual. Em uma famosa citação, ele diz que
“um fato é como um saco, não fica de pé até que se põe algo nele”. São as teorias que fornecem isto,
comenta Ngaire Woods, ainda que seja necessário lembrar que “diferentes tipos de teoria demandam fatos de
maneiras diferentes” (Woods, 1997: 9).
54
Esta caracterização da realidade como um continuum de fatos sobre os quais são construídos conceitos e
interpretações é inspirada na elaboração de Antônio Jorge R. da Rocha: “o mundo em que vivemos não se
encontra organizado em categorias. Ao contrário, a realidade internacional constitui-se como uma enormidade
de fatos, que se apresentam como um continuum, com todas as suas complexidades e contradições, sobre os
quais é possível formular uma quantidade ainda maior de interpretações” (2002: 39).
108

intelectual em relação às diversas perspectivas que constituem o pensamento


político contemporâneo.
Existem duas razões principais, que justificam a opção por uma atitude
epistemológica plural. Em primeiro lugar, a complexidade e a dinâmica de um mundo
em incessante transformação demandam um posicionamento aberto, pois nenhum
discurso teórico é capaz de apreendê-las satisfatoriamente, quando solitário. Nas
palavras do professor argentino Roberto Russell (1992: 16), quando organizou um
livro a respeito dos enfoques teóricos e metodologias de análise predominantes no
estudo da política externa de países da região: “o pluralismo teórico é a única
resposta possível às múltiplas realidades de um mundo complexo e em
transformação”. Em segundo lugar, há boas razões para acreditar que uma filosofia
plural seja a única saída viável para compreender dinâmicas históricas específicas,
como é o caso das dinâmicas políticas e institucionais subjacentes às políticas de
integração regional, recorte empírico desta pesquisa. Cada discurso teórico tem as
suas lacunas e limitações expostas, quando confrontado com os demais. Assim, o
que se nega é a universalidade pretendida por qualquer discurso teórico, ao mesmo
tempo em que se reconhece o seu direito à existência. A opção por uma atitude
plural não implica em reconhecer que cada uma das perspectivas teóricas possui
uma verdade particular, mas que cada uma delas pode pretender mapear
conceitualmente as interações políticas numa sociedade democrática. Como
nenhuma abordagem teórica é capaz de explicar, por si só, a complexa dinâmica de
cada período histórico, de cada lugar particular, é razoável sustentar que apenas
uma abordagem que adote um pluralismo teórico será capaz de orientar os
investigadores sociais em seus intentos específicos de produção de conhecimento
sobre a democratização de políticas públicas.
A primeira perspectiva selecionada se refere ao realismo dos teóricos das
elites (seção 2.1). Essa vertente da teoria democrática pode ser associada a um
conjunto de autores que, em diferentes momentos e contextos históricos, produziram
textos que se apropriaram da crítica à concepção de democracia representativa
liberal. Suas raízes remotas estão nos “clássicos” da teoria das elites, os italianos
Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto e o inglês Robert Michels, embora nenhum dos
três fosse um defensor da democracia, pois esses teóricos baseiam seus
argumentos nas dinâmicas políticas que impedem a plena realização dos ideais
democráticos. Os dois primeiros, sobretudo, foram os principais responsáveis pela
109

afirmação de uma crítica realista aos supostos efeitos da democratização do acesso


ao voto. Nessa perspectiva, como se sabe, a extensão do direito ao voto via sufrágio
universal e o aumento da competição partidária não afastam uma regularidade da
história política: uma minoria sempre se organiza e mantém o controle sobre a
maioria desorganizada. A democracia é vista como apenas uma nova forma de
legitimar a perene dominação das elites sobre a massa de governados.
Sob influência destes autores pioneiros da crítica realista à democracia, um
conjunto de formulações elitistas se afirmou ao longo do século XX. Dois são os
autores explorados nesse caminho denominado realista/elitista: a visão de Max
Weber, que sob a influência de Mosca elaborou o conceito de democracia
plebiscitária, um tipo ideal híbrido entre a dominação racional-legal e o que ele
designa como uma reinterpretação não-autoritária da dominação carismática; e a
visão de Joseph Schumpeter, que, influenciado tanto por Weber como
provavelmente por Pareto, formulou a já referida teoria competitiva da democracia,
perspectiva teórica que curiosamente deu argumentos para a defesa da democracia
representativa liberal restrita a um método de seleção dos que têm o direito de
decidir, isto é, um conjunto de procedimentos que regulam a competição pelo
governo. Em comum, as três visões selecionadas, a visão oligárquica dos teóricos
das elites clássicos, a concepção plebiscitária e a teoria competitiva, todas elas
apontam para certos limites do processo de democratização em termos de seus
efeitos políticos efetivos.
A segunda perspectiva apresentada aqui também possui variações internas
que foram agrupadas sob o rótulo de “perspectiva pluralista (ou participativa)”. Trata-
se de modelos de democracia bastante conhecidos dos cientistas políticos, os quais
são designados pelos nomes dados pelos autores que as formularam originalmente:
a teoria econômica da democracia, de Anthony Downs; o pluralismo liberal do
conceito de poliarquia55, elaborado por Robert Dahl e Charles Edward Lindblom; e,

______________________________________________
55
Quando se trata da obra de Robert Dahl, cabe destacar que o seu pensamento modificou-se ao longo dos
mais de cinquenta anos de produção acadêmica. É comum, na literatura, distinguir entre a concepção inicial e
mais densa de poliarquia (R. Dahl e C. E. Lindblom, 1956, e R. Dahl, 1971), que incluía a existência de canais
de participação na definição das políticas públicas, e a concepção reelaborada no final do século XX, quando
enxugou o elemento participativo e admitiu que determinados grupos possuem acesso privilegiado à esfera de
110

por fim, a teoria da democracia participativa, tal como formulada por Carole
Pateman, que retoma argumentos dos filósofos da democracia direta, como Jean-
Jacques Rousseau e John Stuart Mill. Estas três visões ampliaram o número e a
natureza dos agentes envolvidos nas instituições políticas, em comparação com as
perspectivas realistas do elitismo, seja nas visões mais liberais e procedimentais
mínimas, seja nas visões mais próximas a um socialismo democrático substantivo.
Entre os autores examinados nessa perspectiva, alguns incorporam a
dimensão participativa, como é o caso da formulação original do conceito de
poliarquia (Dahl, 1971) e da formulação de Carole Pateman (1970). De todo modo,
todas as visões tratadas nesta seção apontam para uma ampliação do espectro
restrito da teoria das elites realista, no sentido de incluir uma pluralidade de atores
políticos que pertencem a uma dada comunidade política (partidos, sindicatos,
associações etc.). Nesse sentido, é ampliado, pelo menos a princípio, o rol dos
atores políticos com capacidade de interferir no jogo político-institucional.
A principal referência teórica da democracia deliberativa é Jürgen Habermas.
As contribuições deste filósofo, ao longo de décadas de produção intelectual,
elevaram a perspectiva deliberativa a alternativa teórica de destaque, sobretudo a
partir da elaboração melhor definida do modelo, desde as duas últimas décadas do
século passado. Habermas ocupa o centro desse movimento intelectual, embora
haja outros teóricos deliberativos, alguns dos quais mencionados nesta seção. Em
parte por esta razão e, sobretudo, para evitar uma extensão desproporcional do
texto, a seção é estruturada a partir do pensamento habermasiano. Isso significa
que são enfatizados os conceitos-chave, argumentos e problemáticas de Habermas,
que são acompanhados de referências a alguns outros teóricos deliberativos, além
dos comentários de um par de estudiosos do tema. Coerente com as premissas
filosóficas de sua teoria sociológica e crítica das instituições, em particular com a sua
teoria da ação comunicativa, Habermas defende a construção da democracia a partir
de procedimentos racionais de argumentação. Esta é a saída fornecida por ele para
resgatar a legitimidade das instituições democráticas, uma vez que o processo
deliberativo em torno das decisões públicas garante também a aceitação racional

______________________________________________
tomada de decisão. Pode-se referir a esta segunda fase como “neopluralismo”, como ocorre na literatura, ou
modelo “neopoliárquico”, para diferenciar da primeira fase.
111

daqueles que, interessados, envolvem-se no próprio processo de construção


comunicativa e consensual das políticas públicas56.
Para concluir esta breve introdução de capítulo, é preciso reconhecer que
algum autor pode não se encaixar tão bem dentro dessas perspectivas. Na prática,
as fronteiras que delimitam cada uma delas não devem ser interpretadas como uma
linha divisória de caráter absoluto. Os processos político-institucionais identificados
não são mutuamente exclusivos. Por isso, em lugar de concebê-las como entidades
analíticas absolutamente estanques, considera-se que estas posições podem
sobrepor-se em alguns argumentos. A forma escolhida para simbolizar as relações
entre elas foi um triângulo, pelas razões que já foram exploradas, mas bem
poderiam ser representadas na forma típica da teoria dos conjuntos, isto é, como
conjuntos bem delimitados, ainda que com espaços de interseção.
De qualquer modo, cabe ressaltar, por fim, que as pesquisas sociais resultam
em representações da sociedade, que por sua vez são elaboradas a partir de um
diálogo entre ideias e evidências, aquilo que o metodologista das ciências sociais
Charles Ragin (1994) denomina como o “processo da pesquisa social”, isto é, o
diálogo entre as ideias, ou as teorias sociais, e as evidências, ou simplesmente os
dados. As ideias ajudam os pesquisadores sociais a conferirem sentido às
evidências, enquanto estas são utilizadas para estender, revisar ou testar ideias
sobre a sociedade. Para ele, trata-se de apresentar o modo como as ideias moldam
o entendimento das evidências e como as evidências afetam as ideias, o que é feito
por meio de “quadros analíticos” e de “imagens”. Em suma, a ideia motriz é
desenvolver um enquadramento analítico que auxilie na interpretação de fenômenos
e processos considerados significativos para a compreensão e representação das

______________________________________________
56
Entre os teóricos, também foram pesquisadas as discussões originadas das contribuições de Joshua Cohen
(1989), John Dryzek (2004, 2008), Amy Guttman (1995), Seyla Benhabib (1996) e Nancy Fraser (1993). Esses
autores poderiam ser agrupados em espécies de “vertentes” da perspectiva deliberativa, como ocorreu nas
duas seções anteriores, o que não se fez principalmente por uma questão de concisão e em benefício da
clareza que se espera haver obtido no texto como está. Além disso, cabe destacar o valor de cada texto da
literatura sobre Habermas e sobre outros defensores da democracia deliberativa, os quais ajudaram a
compreender as nuances dessa perspectiva, como, entre outros, os trabalhos de Leonardo Avritzer (1996,
2000, 2004), Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer (org.)(2002), Walter Reese-Schäfer (2009),
Fábio Wanderley Reis (1999, 2004), Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (org.)(2000), e Vera
Coelho e Marcos Nobre (org.)(2004), entre outras.
112

trajetórias das políticas de integração regional dos países estudados, desde a


perspectiva das relações entre essas políticas e as instituições democráticas
subjacentes.

2.1 A perspectiva realista de democracia

A primeira vertente que se enquadra na matriz realista/elitista é a visão


oligárquica. Seus representantes principais são três pensadores de uma mesma
geração – G. Mosca (1858-1941), V. Pareto (1848-1923) e R. Michels (1876-1936) –
conhecidos como precursores da teoria das elites e pioneiros da própria ciência
política. Os três apontaram no sentido da impossibilidade de realização do ideal
democrático. São na verdade visões críticas à democracia liberal, que afirmam a
tendência à formação de oligarquias, isto é, ao governo da minoria sobre a maioria.
Esta é uma “lei geral” ou “lei objetiva” da política, conforme a expressão que
manifesta a pretensão de conferir suporte teórico-científico às suas proposições. A
democratização do voto por meio da adoção do sufrágio universal é enxergada
como apenas uma nova maneira de legitimar as velhas formas de controle político
da maioria por uma minoria.
Em seguida, é reconstruída a ideia de democracia presente no pensamento
político de M. Weber (1864-1920), consubstanciada na sua definição de democracia
plebiscitária. Baseado num realismo calculado e num sentido procedimental das
instituições, a democracia é concebida como um método de controle político sobre o
processo de crescente burocratização, típico das sociedades políticas modernas. Em
uma elaboração que remete às formas de dominação e legitimação (tradicional,
carismática e racional-legal), o autor defende uma reinterpretação antiautoritária da
dominação carismática e sustenta a importância do parlamento no sentido de
controlar politicamente a burocracia e de servir de celeiro para o desenvolvimento de
líderes carismáticos capazes de levar adiante projetos políticos nacionais, ou seja, o
interesse nacional, conceito caro ao realismo político de Weber.
A terceira perspectiva que se pode enquadrar na matriz realista/elitista é a
teoria competitiva da democracia, de J. Schumpeter (1883-1950). A democracia é
concebida como um método de seleção de governantes, como um conjunto de
113

procedimentos destinados a regulamentar tanto a competição pelo poder político


como a oposição ao governo. Schumpeter sofreu influência direta dos teóricos das
elites “clássicos” e de Weber, ainda que seu pensamento possua especificidades,
em particular a conhecida analogia schumpeteriana entre democracia e mercado
econômico, desenvolvida na ideia de um mercado eleitoral, disputado pelos políticos
e seus partidos.
As primeiras discussões modernas sobre a democracia remontam ao século
XVIII. A oposição entre a teoria da soberania popular, da democracia direta de
Rousseau, e a teoria da soberania nacional, do modelo de governo representativo
de Sièyes, foi um marco recorrente daquele primeiro período. No século XIX, o
pensamento político europeu manteve a preocupação em discutir a questão
democrática, discussão marcada pela ascensão das grandes ideologias modernas
que se encontravam em disputa, nos diversos contextos nacionais. Mas foi no final
do século XIX que teve início uma reconstrução das matrizes teóricas e ideológicas
do pensamento democrático, particularmente influenciada pelas pretensões
científicas que estiveram na origem das diversas disciplinas das ciências sociais
modernas. Uma série de fatores deu origem a esta nova fase nas reflexões político-
filosóficas e político-científicas sobre a democracia.
A conjuntura do fim de século inscreve-se no período da primeira onda
democrática, cujas experiências históricas adotaram regimes de competição eleitoral
entre partidos políticos (para Huntington, essa onda ocorreu entre 1828 e 1926).
Mais importante, talvez, tratava-se do momento do processo de extensão da
cidadania política, com a adoção do sufrágio universal nas democracias existentes.
Conforme o conhecido argumento de Thomas H. Marshall, era a segunda fase de
expansão dos direitos de cidadania, após a incorporação dos direitos civis. Com o
caso inglês em mente, Marshall escreveu que a extensão dos direitos de cidadania
na Inglaterra, isto é, os três elementos da cidadania foram estabelecidos
gradualmente: cidadania civil, com o reconhecimento da igualdade de todos perante
a lei e dos direitos do homem, no século XVIII; cidadania política, no século XIX, com
a expansão do sufrágio universal; e a cidadania social e econômica, que ele associa
aos Estados de bem-estar social do século XX (T. H. Marshall, 2009[1950]).
O trio de autores precursores da teoria das elites (Mosca, Pareto e Michels)
ajudou a dar suporte intelectual à ofensiva política que reagia à democratização do
direito ao voto. Como formulou Albert O. Hirschman (1991), o processo de extensão
114

da cidadania, que não se restringiu à experiência inglesa, mas se reproduziu nas


diversas sociedades que se democratizaram, gerou um conjunto de discursos
carregados de argumentações reacionárias, as chamadas “retóricas da
intransigência”. Em livro homônimo, Hirschman demonstra que os três alinhavam-se
aos argumentos que percebiam “futilidade” nos processos de afirmação dos direitos
políticos, isto é, aqueles que garantem a participação popular no exercício do poder
político, no sentido de que a extensão da cidadania política não modificaria certas
regularidades da política57.
O período final do século XIX também assistiu ao processo de constituição
das ciências sociais como disciplinas autônomas, o qual foi alimentado pela
afirmação de indivíduos e de instituições em lugares diversos e deu origem à
elaboração das primeiras teorias e estudos que fundaram as diferentes disciplinas.
Embora tenha ocorrido em diferentes contextos acadêmicos e políticos, essas
disciplinas eram conectadas por alguns elementos comuns, como a difusão ampla
de metodologias positivistas e epistemologias empiristas. A formação das ciências
sociais modernas sob a predominância do positivismo filosófico e científico resultou
num processo de diferenciação e especialização das diversas ciências sociais
modernas.
Pois este é o contexto político e epistemológico no qual se inserem as ideias
dos teóricos das elites (ou pensamento oligárquico), o contexto das lutas em torno
da extensão do sufrágio e das afirmações das diversas ciências sociais como a
ciência política, a sociologia, a economia, a história e a geografia. No pensamento
político, especificamente, os teóricos das elites argumentam que existem algumas

______________________________________________
57
O livro de Hirschman associa a cada uma destas três fases de afirmação histórica dos direitos de cidadania
uma onda reacionária. Assim, há três movimentos de reação aos progressos históricos representados pelas
sucessivas afirmações dos direitos civis pela Revolução Francesa; a segunda onda reagiu à extensão dos
direitos políticos, ocorrida durante todo o século XIX; e a terceira onda, contemporânea à Conferência de 1949
que deu origem ao livro, refere-se à crítica ao welfare state. A análise dos discursos reacionários realizada pelo
autor parte da construção de uma categorização das “três teses reativo-reacionárias principais”, denominadas
pelo autor como as teses da perversidade, da futilidade e da ameaça: “De acordo com a tese da perversidade,
qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem econômica, social ou política, só serve para
exacerbar a situação que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformação
social serão infrutíferas, que simplesmente não conseguirão ‘deixar uma marca’. Finalmente, a tese da ameaça
argumenta que o custo da reforma ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa
realização anterior.” (A. Hirschman, 1991: 15-16)
115

leis sociais imutáveis, entre elas o permanente controle oligárquico do poder político,
apesar dos supostos avanços democráticos.
O que eles pretendem elaborar é uma crítica científica aos efeitos negativos
do envolvimento das massas no processo político. Aliás, datam desse mesmo
período as primeiras teorias científicas que, amparadas por descobertas médicas e
psicológicas, enfatizavam o quanto o comportamento humano é motivado por forças
irracionais. Essas descobertas, amparadas em pesquisas positivistas, curiosamente
apontavam para o elemento humano irracional e, assim, forneciam argumentos e
evidências para a contestação das crenças iluministas na racionalidade do
comportamento humano, no progresso e na perfectibilidade do homem.
A partir do suposto epistemológico de que existem leis sociais imutáveis, as
quais podem ser conhecidas objetivamente através da observação, os teóricos das
elites procuram menosprezar as possibilidades de mudanças políticas advindas da
expansão do sufrágio universal. A constatação da prevalência de leis objetivas que
governam o mundo político, como o domínio da maioria pela minoria, tem como
corolário a futilidade da extensão da cidadania política. É inútil expandir o direito ao
voto, sendo irracional a massa, pois ela estará sempre sujeita às manobras das
elites políticas governantes. Nesse sentido, os pensadores italianos Gaetano Mosca
e Vilfredo Pareto afirmaram que as mudanças políticas introduzidas pelas novas
regras democráticas não modificariam as leis constantes que governam a política.
Influenciado pelos dois, Michels condensou a sua versão da história política na “lei
de ferro da oligarquia”.
Mosca postula que as sociedades são divididas entre os governantes, uma
classe política minoritária detentora do poder, e os governados, constituídos pela
vasta maioria da sociedade, destituída do poder político. Em sua opinião, todas as
formas de governo estão sujeitas a esta dicotomia fundamental. Seu libelo contra as
instituições democráticas as vê como meras hipocrisias que dissimulam a real
política da classe governante, onde uma minoria decide no lugar da massa
desorganizada, que apenas legitima a desigualdade fundamental reinante na
sociedade. Com isso, ele desqualificava o pensamento de filósofos que haviam
abordado o problema das formas de governo, de Aristóteles a Maquiavel e
Montesquieu. A formação de uma classe dirigente resulta da capacidade de
organização das minorias que detêm o poder, a classe política:
116

“o representante não é eleito pelos votantes, mas, em geral, se faz eleger por eles.
(...) Seja qual for o caso, uma candidatura é sempre obra de um grupo de pessoas
unidas por um propósito comum, uma minoria organizada que, fatal e
58
inevitavelmente, impõe sua vontade à maioria desorganizada” .

A democracia é um ideal impossível, uma vez que a maioria nunca governa,


podendo, no máximo, entronizar outra minoria em substituição à prevalecente em
um dado momento histórico. Da primeira para a segunda edição de seus Elementos
de Ciência Política, de 1896 e de 1923, Mosca precisou a incidência de seu conceito
de classe política, antes restrita ao governo. Na versão mais recente, a classe
dirigente engloba “o conjunto efetivo das forças que dirigem a sociedade em todos
os níveis”. De qualquer modo, a distinção ontológica fundamental das duas classes
de cidadãos permaneceu a mesma, sendo bastante conhecida e influente no
pensamento político contemporâneo:

“a dos governantes e a dos governados. A primeira, que é sempre a menos


numerosa, cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder e goza as
vantagens que a ela estão anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa, é
dirigida e regulada pela primeira, de modo mais ou menos legal ou de modo mais ou
menos arbitrário e violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os meios
materiais de subsistência e os que são necessários à vitalidade do organismo
político.” (Mosca apud Bobbio, 1997: 385)

A ideia não era exatamente nova. O próprio Mosca reconhece ter lido e cita
Saint-Simon, Taine e a dupla Marx e Engels. A sua contribuição reside na
formulação da ideia como lei científica, alegadamente amparada em observação
paciente, sistemática e imparcial dos fatos políticos na história. A explicação do autor
para essa lei, isto é, sua teoria propriamente dita, atribui o postulado universal do
domínio da minoria ao fato de ela ser organizada, entendendo por organização o
conjunto de relações de interesses que vinculam os dirigentes ou a apropriação do
aparelho estatal em benefício próprio, como resume Bobbio:

“Mosca não se limitou a enunciar o princípio segundo o qual existe, em toda


sociedade, uma classe política composta por um número restrito de pessoas, mas
procurou também uma explicação do fenômeno, insistindo repetidamente sobre a
observação de que a classe política encontra sua própria força no fato de ser
‘organizada’, entendendo por organização, tanto o conjunto de relações de interesse

______________________________________________
58
Gaetano Mosca apud Hirschman, 1991: 51.
117

que induzem os membros da classe política a coligarem-se entre si e a constituírem


um grupo homogêneo e solidário contra a mais numerosa, dividida, desarticulada,
dispersa e desagregada classe dirigida, como o aparelho ou máquina estatal da qual
se serve a classe política como instrumento para a realização de seus próprios fins.”
(Bobbio, 1997: 385-386)

A contribuição de Mosca foi importante, mas o termo “elite” foi incorporado ao


imaginário da ciência política definitivamente a partir da elaboração de Pareto.
Diferente de Mosca, Pareto adquiriu um considerável prestígio internacional, devido
a laços familiares e políticos e à sua trajetória biográfica. Ele reelaborou a teoria da
dominação da elite como uma constante da história, sendo também fundamental
para ele a dicotomia existente nas sociedades entre a elite e a não-elite. Qualquer
que seja a mudança em direção à maior participação da população no exercício do
poder, não se modifica uma lei histórica básica que ele denominou como a “teoria da
circulação das elites”, “a luta empreendida por certos indivíduos para apropriar-se da
riqueza produzida por outros é o grande fato que domina toda a história da
humanidade”. Para ele, “importa muito pouco se a classe governante é uma
oligarquia, uma plutocracia ou uma democracia”. Apesar do procedimento eleitoral
de escolha dos governantes, as possibilidades de espoliação das massas podem ser
até maiores, na medida em que as elites governantes passam a ser legitimadas
como os representantes da maioria.
O terceiro teórico das elites sempre mencionado é o sociólogo Robert
Michels, que foi influenciado pelos dois anteriores e postulou a sua teoria, cuja
expressão máxima é a conhecida “lei de ferro da oligarquia”. Em sua obra mais
conhecida, Sociologia dos Partidos Políticos59, Michels sustenta que as
organizações necessárias nos sistemas democráticos, como os partidos, sindicatos
etc., são sempre controladas por uns poucos indivíduos, gerando uma tendência à
oligarquização. Modifica-se a forma do poder político, mas não a sua natureza. Ele
baseia seus argumentos numa análise sociológica dos partidos políticos de massa e
conclui que todo tipo de organização política caminha para a sua burocratização: “a
organização é a mãe do predomínio dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários

______________________________________________
59
Trata-se do livro Political Parties, publicado originalmente na Alemanha em 1910 e na Inglaterra em 1911. No
Brasil, há uma tradução publicada pela Editora UnB, de 1982.
118

sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes. Quem diz organização diz
oligarquia” (1982: 238).
Pode-se reconhecer a influência dos elitistas anteriores, mas também
reverbera a abordagem de Max Weber, de quem foi amigo, em particular o
argumento do inevitável processo de racionalização do mundo ocidental e a
consequente expansão do controle burocrático das decisões políticas. Para Michels,
as oligarquias tendem a perpetuarem-se no poder e agem sempre em interesse
próprio, não importando as tentativas de estender a participação ou o controle
popular do governo. Em resumo, a democracia é impraticável, se concebida nos
termos do ideal participativo ou do governo direto das massas. Hirschman comenta o
trecho onde Michels “cita com aprovação a expressão italiana ‘Si cambia il maestro
di cappella / Ma la musica è sempre quella’ (Troca-se o maestro de capela / Mas a
música é sempre aquela)”, dizendo: “trata-se de um exato equivalente de Plus sa
change, plus c’est la même chose, com a rima de lambujem” (Hirschman, 1991: 55).
No entanto, há uma sutil diferença entre o pensamento de Michels e o de Mosca,
para quem o domínio da minoria é explicado pelo fato de ser organizada. Pelo
raciocínio de Michels, é a própria organização que causa a formação de uma
oligarquia, não há uma classe dominante prévia à organização.
Para concluir a apresentação da tríade de teóricos realistas da democracia, N.
Bobbio (1997) observa que, se por um lado suas teorias conferiram suporte científico
ao exercício do poder por uma minoria em detrimento da maioria, por outro lado elas
impulsionaram a elaboração de reinterpretações da teoria do poder da minoria. São
reinterpretações “liberais” e “democráticas” das proposições elitistas, ou seja,
interpretações democráticas da lógica explicativa das elites, as quais depositam fé
na possibilidade de realização da democracia, certamente em maior medida do que
acreditavam esses três precursores analisados. Entre os intérpretes “liberais”,
enquadram-se as argumentações que viam na competição entre uma classe política
no governo e uma classe política na oposição as bases de um regime pluralista,
enquanto isso os intérpretes “democráticos” sustentaram, a partir do pós-guerra, isto
é, após a derrocada do nazismo e do fascismo, que “as melhores elites são aquelas
que se formam através da luta e estão em permanente concorrência entre si, como
afirmam as doutrinas liberais, as quais, sendo eleitas e controladas periodicamente
pelos cidadãos, não se ‘impõem’ mas se ‘propõem’, como afirmam as teorias
democráticas” (Bobbio, 1997: 387).
119

A seguir, são apresentadas sucessivamente as concepções de democracia


plebiscitária, de Max Weber, e de democracia competitiva, de J. Schumpeter, as
quais encerram a análise e discussão dos representantes da perspectiva
realista/elitista do pensamento democrático.
A visão de democracia em Max Weber mantém-se alinhado à argumentação
elitista, ainda que a sua valorização dos métodos racionais de seleção das elites
adicione novos elementos teóricos, os quais diferenciam a sua perspectiva teórica
dos autores mencionados acima. No trecho a seguir, são focalizadas as suas
contribuições dadas em um conjunto selecionado de textos: Parlamento e Governo
na Alemanha Reordenada (1993[1917]) e alguns trechos da obra póstuma Economia
e Sociedade (2004[1921]), mas certos elementos de sua interpretação sociológica
da política também são encontrados na conhecida conferência aos estudantes de
1918, cujo título é A Política como Vocação (2007). Para o autor, a democracia é um
método de controle político do poder burocrático decorrente da modernização, em
primeiro lugar. A democracia plebiscitária, em Weber, é caracterizada como uma
forma de legitimação racional-legal da dominação política, a qual por sua vez
incorpora também elementos típicos da legitimação e dominação carismáticas, no
entanto mediados por uma reinterpretação não-autoritária do carisma.
Entusiasta do conhecimento científico e da autonomia intelectual dos
professores diante das injunções políticas de seu tempo, Weber realçou as
especificidades provenientes da natureza diversa das ciências sociais e culturais,
quando comparadas às ciências da natureza. Para ele, era preciso fundamentar-se
em uma visão de conhecimento social que incorporasse a metodologia particular
dessas ciências, em cujo cerne situa-se a busca de uma interpretação empática da
realidade social. No pensamento científico weberiano, ocupa lugar central a noção
de “tipos-ideais”, ferramenta metodológica conformada por três etapas detalhadas a
seguir.
Em primeiro lugar, deve-se realizar a compreensão empática de uma
determinada ação que se pretende interpretar. Isto implica em uma abordagem do
comportamento social investigado desde o ponto de vista dos próprios agentes
sociais envolvidos. O segundo passo metodológico consiste na realização de uma
compreensão explicativa, o que se faz situando aquela ação social no conjunto de
práticas sociais reconhecidas em um determinado contexto histórico. O terceiro e
último método caracteriza-se pela construção de tipologias ideais. Weber esclarece
120

que, ao criar tipos ideais, o investigador não está representando ou reproduzindo a


própria realidade empírica. Trata-se, na verdade, de “conceitos limites”, um
“instrumento conceitual específico utilizado para apreender o elemento
individualizante que qualifica a ação social no seu condicionamento histórico”. Em
outros termos, trata-se de uma ferramenta que visa à unificação do horizonte
conceitual com o seu substrato empírico.
Um exemplo conhecido desta estratégia cognitiva é a sua classificação dos
tipos puros de dominação legítima. A dominação, por sua vez, é definida como “a
probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de
determinado grupo de pessoas”, enquanto “a legitimidade de uma dominação deve
ser considerada apenas uma probabilidade de, em grau relevante, ser reconhecida e
praticamente tratada como tal”. É também bastante conhecida a tipologia weberiana
tripartite referida aos tipos-ideais de dominação legítima:

“Há três tipos puros de dominação legítima. A vigência de sua legitimidade pode ser,
primordialmente:
1-) de caráter racional: baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e
do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para
exercer a dominação (dominação legal), ou
2-) de caráter tradicional: baseada na crença cotidiana da santidade das tradições
vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições,
representam a autoridade (dominação tradicional), ou, por fim,
3-) de caráter carismático: baseada na veneração extracotidiana da santidade, do
poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
reveladas ou criadas (dominação carismática).” (Weber, 1997: vol. 1: 141, com grifo
no original)

São conceitos fundamentais de seu pensamento político e, em particular, são


tipos fundamentais para a interpretação da política democrática presente em sua
obra. Ao contrário de certos críticos da representação popular, contemporâneos do
autor, Weber reflete sobre as condições necessárias para um sistema de governo ao
mesmo tempo eficiente e democrático. Ou seja, ele não deixa de acreditar nas
instituições representativas e sua capacidade de frear os excessos do controle
burocrático sobre as decisões, ainda que ele defenda, ao mesmo tempo, a
necessidade de líderes políticos capazes de se sobressair no parlamento e de
conduzir a nação alemã ao que considerava ser o seu destino.
O livro Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada, de 1917, que tem
um significativo subtítulo: Crítica política da burocracia e da natureza dos partidos.
Nesta obra, o pensador alemão realiza uma análise teoricamente orientada da
conjuntura política de seu país e da viabilidade democrática no pós-guerra, a partir
121

do legado histórico da era de Bismarck, chanceler da Alemanha entre 1862 e 1890 e


responsável pela unificação nacional sob hegemonia prussiana. Munido de noções
tipicamente realistas, como “grandeza da nação”, “poder do Estado”, “potência” e
“importância do Estado alemão no âmbito externo”, Weber reflete sobre o legado de
Bismarck, acerca do qual possui uma visão negativa, em especial por haver deixado
como herança um enfraquecimento do parlamento alemão vis-à-vis o fortalecimento
do poder executivo e das burocracias.
É conhecida a tese weberiana de que o processo de racionalização,
característico das diversas sociedades modernas, tem como uma de suas
consequências o incremento da burocratização. Embora indispensável para o
funcionamento da democracia, sobretudo quando se leva em conta os temas da
crescente complexidade da sociedade moderna, preocupavam-lhe especialmente a
concentração do poder político nas mãos de funcionários não-eleitos e as
tendências niveladoras da sociedade decorrentes da burocratização. O estudioso
Gabriel Cohn destaca a importância da relação entre governo e burocracia, para
Weber:

“O problema, então, consistiria na relação entre governo e burocracia. Talvez esteja


aí a chave para a leitura do texto [Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada].
(...) Especialmente importante entre essas consequências do estilo bismarckiano de
centralizar o poder de decisão era a proeminência da burocracia na condução dos
negócios públicos. (...) Trata-se, portanto, de assegurar o controle político da
burocracia e não o inverso. Na busca de soluções para esse problema, que via como
decisivo, Weber exibe a peculiaridade de sua concepção de construção institucional.
Nela, a dimensão central da luta assume a forma da competição, como contrapartida
política à concorrência econômica. O modelo weberiano de relações entre os centros
de poder na sociedade não é de equilíbrio estático, mas de confronto dinâmico.”
(Cohn, 1993: 16)

A preocupação de Weber consiste em garantir o controle político da


burocracia, no lugar do controle burocrático da política. Este é o desafio político
principal da democracia, o qual ele procura discutir a partir de uma visão pragmática
da política, esta última concebida em termos de um conflito permanente pelo poder
político, isto é, uma visão afim com as reflexões inspiradas no conceito de reälpolitik,
baseada em considerações de ordem prática.
É claro que o pensamento de Weber não se resume a isso, pois além dessa
visão da política como luta permanente e guiada pelas necessidades práticas, ele
associa à democracia um sentido procedimental, definindo-a como um sistema
racional de escolha de lideranças políticas. Na sua concepção, a democrática admite
122

um alto grau de autonomia governamental nas decisões. A participação popular


resume-se ao processo de escolha, isto é, à legitimação do governante via eleições
caracterizadas pelo sufrágio universal.
O parlamento é concebido como um órgão de representação política, o que
se articula em parte por meio do papel dos partidos políticos, e é também na arena
parlamentar que devem surgir as lideranças aptas a conduzir o governo. Neste
ponto, é bom reforçar a ênfase conferida por Weber aos mecanismos seletivos
racionais. Existe uma singularidade na argumentação elitista do autor: é que a sua
teoria das elites está amparada por uma noção de que existe racionalidade nos
mecanismos de seleção, isto é, de que os melhores são selecionados para liderar.
Nesse sentido, a importância do parlamento é resumida em três funções: primeiro, é
o órgão de representação de interesses; segundo, ele é o celeiro de onde são
selecionados os potenciais líderes; e, finalmente, ao parlamento cabe exercer o
controle político da burocracia.
Numa tentativa de síntese, pode-se dizer que a dinâmica das decisões em
uma democracia plebiscitária resulta da interação dos três elementos a seguir: 1)
uma burocracia profissional, guiada pelo princípio de eficiência administrativa e pelo
espírito corporativo do conjunto de funcionários e obediência hierárquico-funcional;
2) um parlamento que seja o espaço de confronto de interesses, de compromissos,
de representação política e de formação e seleção de líderes; e 3) uma liderança
carismática, capaz de angariar o apoio popular e de exercer a decisão responsável.
O governo, por sua vez, é definido como o centro de poder propriamente
político, que não se confunde com a mera gestão administrativa do Estado, esta
realizada pela burocracia dos funcionários não eleitos. A noção de democracia
plebiscitária remete ao fato de que a população é chamada periodicamente para
participar da seleção dos governantes, legitimando-os e conferindo-lhes o capital
político para tomar as decisões necessárias à execução dos projetos nacionais. É
nesse sentido que as eleições se afirmam como o procedimento central dessa
concepção de democracia. Nelas esgota-se o envolvimento cidadão, uma vez que o
líder eleito possui autonomia decisória. Como cabe ao líder carismático angariar o
apoio popular e exercer a decisão política responsável, é ele quem pode romper, por
um lado, com o imobilismo que caracteriza a gestão burocrática das decisões,
guiada pelas relações de hierarquia em vez das relações de responsabilidade diante
dos cidadãos, e, por outro lado, romper com as limitações práticas do parlamento
123

enquanto instância de controle das tendências à burocratização e ao nivelamento


social.
Na democracia plebiscitária, ocorre uma reinterpretação antiautoritária do
carisma, tema ao qual Weber dedicou uma seção do livro Economia e Sociedade. O
princípio da autoridade carismática, originalmente autoritário, “pode ser
reinterpretado como antiautoritário”, o que se dá pela legitimação ou aceitação da
liderança carismática via eleições, o procedimento plebiscitário central da
democracia na leitura weberiana. “O senhor é agora um líder livremente eleito”,
destaca o teórico. Enquanto na dominação carismática, “a vigência efetiva da
autoridade carismática repousa, na realidade, inteiramente sobre o reconhecimento
dos dominados – condicionado por ‘ratificação’ –, que, no entanto, constitui um
dever para com a pessoa carismaticamente qualificada e por isso legitimada”, na
democracia plebiscitária “com a crescente racionalização das relações dentro da
associação, ocorre facilmente de: esse reconhecimento ser considerado
fundamento, em vez de consequência, da legitimidade (legitimidade democrática)”. A
existência de eleições como fundamento da autoridade do líder democrático modifica
a lógica presente na dominação carismática, pois “o funcionário eleito significa por
toda parte a interpretação radicalmente modificada da posição de mando do líder
carismático, no sentido de ‘servidor’ dos dominados” (Weber, ibid.). Ele resume
assim o conceito de democracia plebiscitária, um tipo de democracia de líderes:

“em seu sentido genuíno, é uma espécie de dominação carismática oculta sob a
forma de uma legitimidade derivada da vontade dos dominados e que só persiste em
virtude desta. (...) Onde quer que se procurasse legitimar essa forma de dominação,
foi mediante o reconhecimento plebiscitário pelo povo soberano” (Weber, 1997: vol.
1: 176-7).

Weber sustenta, ademais, que um presidente com poder político real é mais
eficaz do que um primeiro-ministro para fazer frente ao parlamento e propor políticas
de alcance nacional, o que ele explica pela sua legitimidade advinda do processo
eleitoral, abrindo a possibilidade de obter o apoio das grandes massas no confronto
com outros centros de poder, como observa G. Cohn (1993). O estudioso de Weber
que prefaciou a edição brasileira do Parlamento e Governo adiciona que:

“Com base nisso Weber passou a defender em todas as instâncias, incluindo a sua
participação na elaboração da Constituição republicana de Weimar (1919), a figura
do presidente por eleição direta, investido de amplos poderes de iniciativa e decisão
124

em virtude da sua condição de portador do apoio ‘plebiscitário’ da massa dos seus


eleitores.” (Cohn, 1993: 17)

É também este profundo conhecedor de Weber quem chama atenção para o


fato de que “a introdução da figura do líder carismático neste ponto das cogitações
weberianas não é ocasional”, mas fruto da sua visão de que o carisma é a “grande
força revolucionária da história”, é “disruptivo” e “eminentemente anti-imobilista”.
Vale transcrever a análise de Cohn a este respeito:

“A posição de Weber era inteiramente favorável ao exercício irrestrito dos


mecanismos democráticos de representação e competição eleitoral. Ademais se
preocupava, na melhor tradição liberal, com as garantias das liberdades individuais.
Dada a sua concepção, contudo, o presidente eleito em condições de democracia
plebiscitária tenderia a agigantar-se perante o Parlamento, a pôr a seu serviço as
máquinas partidárias e a exacerbar aquilo que para Weber estava assente, a saber,
que a soberania popular esgotava-se, na prática, na escolha formalmente livre do
dirigente. Entretanto, não era um ditador que Weber tinha em vista, e sim um
estadista apto a usar a sua ampla latitude de ação para iniciativas voltadas para os
grandes interesses nacionais, com responsabilidade pelas consequências.” (Cohn,
1993: 19)

O tema da responsabilidade política do estadista reaparece na discussão que


Weber faz sobre “a direção democrática da política externa”, que ocupa todo um
capítulo da obra Parlamento e Governo e recolhe justamente o pensamento de
Weber sobre a relação entre gestão democrática e política externa, ou melhor, sobre
o controle político da burocracia, no âmbito específico da política externa. No
capítulo quatro, Weber avalia criticamente os comportamentos equivocados da
burocracia profissional, que teriam resultado no aumento da oposição internacional
e, ao cabo, ao isolamento da Alemanha no cenário internacional60. Na sua análise
da relação entre democracia e política externa, estes equívocos eram atribuídos à
estrutura política do Estado alemão, “que coloca burocratas em cargos que deveriam
ser ocupados por pessoas de responsabilidade política própria” (1993[1917]: 93).

______________________________________________
60
O autor se refere à divulgação pública de uma série de pronunciamentos pessoais, “em parte, agressivos”, do
líder alemão: de um telegrama indignado contra ataques britânicos no norte da África, que favoreceu o
enfrentamento entre Alemanha e Inglaterra na Guerra dos Böeres; de discursos, textos e gravuras que
advertiam contra o “perigo amarelo” vindo do extremo oriente, que favoreceu – sempre no argumento de
Weber – os comportamentos de oposição à Alemanha, da parte do Japão, em 1914, e da China, em 1917; dos
discursos de Damasco, que difundiram a simpatia alemã pela cultura islâmica e o seu interesse político na
integridade da Turquia; e o discurso de Tânger, que empenhou a palavra do líder alemão em favor do sultão
marroquino, confrontando diretamente interesses da França na região.
125

Subjacente a esta crítica está a distinção weberiana entre os políticos e os


burocratas. Enquanto os primeiros são movidos pelo sentido de responsabilidade de
um dirigente político, os burocratas o são pelo sentido do dever de subordinação de
um funcionário. À responsabilidade política e à possibilidade de inovação dos
políticos Weber opõe o dever de obediência e o imobilismo da burocracia. O autor
critica duramente a “direção burocrática e conservadora” da política externa alemã e
reafirma claramente a distinção ideal-típica entre políticos e burocratas:

“O abismo que separa o político do burocrata é especialmente claro aqui. O


burocrata deve sacrificar suas próprias convicções às exigências da obediência. O
dirigente político tem que rejeitar publicamente a responsabilidade por negociações
políticas que estejam em desacordo com suas convicções, devendo mesmo
sacrificar o cargo por elas. Isto, porém, nunca aconteceu entre nós.” (Weber,
1993[1917]: 99-100)

São os funcionários eleitos que possuem responsabilidade política própria. É


em virtude disso que neles é depositada a própria soberania do estadista, conceito
que atravessa toda a análise sociológica weberiana da autoridade política. Nos dois
trechos a seguir, trazidos a título de conclusão sobre o pensamento weberiano,
Gabriel Cohn analisa, primeiro, os termos da relação entre o líder e seus seguidores,
e depois o sentido procedimental que assume o seu modelo de democracia
plebiscitária:

“embora os seguidores (os eleitores, na ordem política democrática) não sejam


soberanos, o líder não pode ignorá-los, sob pena de perder todo apoio. Mas sua
relação com eles não é de compromisso imperativo. Seu caráter é instrumental.
Longe de deter a soberania, o povo é um meio para o líder chegar ao poder. Onde
fica, então, a soberania? No líder, é claro. E como ela é exercida? Na capacidade,
que o líder tem, de decidir perante quem é responsável, e no poder de agir de
acordo com isso. O líder político digno deste nome, o estadista de fato, sabe que lhe
cabe responder no futuro pelas consequências de seus atos, quando o conjunto
deles permitirá avaliar se esteve ou não à altura da sua tarefa.
(...) Para ele, a democracia é um procedimento, um meio na luta pelo poder. Valor
seria a liberdade mais do que a igualdade, e nisso se revela o liberal mais do que o
democrata. Um liberal singular: elitista, competitivo, adepto do mais implacável
realismo político na busca dos objetivos do poder com todos os meios que não firam
as liberdades individuais, sempre pronto a levar suas questões ao extremo limite.
Enfim, um realista capaz de escrever que, se é verdade que a política bem-sucedida
sempre é a ‘arte do possível’, não menos verdade é que amiúde alcançar o possível
envolve ‘buscar o impossível’ que o transcende. Para ele, valia o verso do seu
contemporâneo Rilke: ‘Quem fala em vencer? Perseverar é tudo’” (Cohn, ibid.).

Dentre as perspectivas teóricas abordadas neste capítulo, a que


provavelmente recebe mais atenção dos estudiosos é a teoria competitiva da
democracia, formulada no início dos anos 1940 por Joseph Schumpeter, pensador
mais conhecido ainda por suas contribuições no campo da economia. O capítulo
126

anterior já cotejou a concepção schumpeteriana com as demais e buscou


demonstrar que a definição procedimental mínima ocupa lugar central nos esforços
de conceituação e nas inovações conceituais dos estudos empíricos, pois ela é uma
referência central na concepção hegemônica de democracia. Para o teórico
austríaco: “o método democrático é aquele arranjo institucional para se chegar a
decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de
uma luta competitiva pelo voto popular” (1974[1942]: 269). Democracia enquanto
método de seleção dos governantes, democracia enquanto procedimentos que
regulam a competição das elites pelo poder. Este é o ponto de partida para se
discutir essa vertente teórica61.
A obra Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, veio a público em um
contexto no qual os conflitos ideológicos entre as diversas concepções de sociedade
política alcançaram o ponto máximo, com a Segunda Guerra Mundial e as clivagens
internas aos países. Ela tem como propósito oferecer o que ele denomina como
“outra teoria da democracia”, uma teoria que servisse de alternativa viável às
concepções predominantes desde o século XVIII, segundo ele impraticáveis.
Schumpeter critica a “teoria clássica” de democracia – à qual opõe a sua “teoria
competitiva” –, porque nela a legitimidade deriva de alguma noção que ele considera
inadequada, como as noções vagas e impróprias de “bem comum”, “vontade do
povo” ou “vontade geral”. Tais coisas não existem, pois elas significam coisas
distintas para diferentes indivíduos ou grupos. Para ele, o equívoco fundamental
parece ser pressupor a existência de um bem determinado, compreendido e
compartilhado por todos de forma inequívoca.
O autor inverte a linha de argumentação típica da teoria da soberania popular,
de que as eleições são um instrumento para realizar o propósito fundamental
suposto na democracia, isto é, “dar o poder ao povo”. Na visão de Schumpeter, a
finalidade principal dos procedimentos democráticos é selecionar aqueles que têm o
poder de decidir, “dar o poder aos que governam”. Dirigindo-se ao leitor, ele sintetiza

______________________________________________
61
Como o pensamento schumpeteriano já foi bastante aprofundado no Capítulo 1 (em especial, na subseção
1.2.1), aqui é dada ênfase apenas aos elementos não apresentados lá. Eventualmente, pode haver a repetição
de alguma ideia, mas que pareceu conveniente inseri-la na apresentação dos novos elementos.
127

esta inversão teórica, referindo-se à argumentação clássica para propor uma visão
alternativa de democracia:

“Se recordará que nossas principais dificuldades acerca da teoria clássica


centravam-se na afirmação de que ‘o povo’ tem uma opinião definida e racional
sobre toda questão singular e que leva a efeito essa opinião – em uma democracia –
elegendo ‘representantes’ que cuidarão para que essa opinião seja posta em prática.
Assim, pois, a eleição dos representantes é considerada como um fim que se
subordina ao fim primário do sistema democrático, que consiste em investir o
eleitorado do poder de decidir as controvérsias políticas. Suponhamos que
invertemos a ordem destes dois elementos e colocamos em segundo lugar a decisão
das controvérsias pelo eleitorado, e, em primeiro lugar, a eleição dos homens que
hão de efetuar a decisão.” (1974[1942]: 343)

Para Schumpeter, a democracia se resume às regras que garantem a “livre


apresentação de candidaturas”, assim como num mercado econômico deve ser livre
a iniciativa de empreender economicamente. São muitas as analogias econômicas,
isto é, de certa visão da economia, baseada em uma filosofia utilitarista e assentada
sobre a noção de uma sociedade de indivíduos. A liberdade a que se refere o autor
é uma liberdade formal. O sentido empregado equivale à liberdade que possui
qualquer indivíduo de “instalar uma nova fábrica têxtil”. É exatamente esta a
analogia que utiliza para esclarecer o sentido que possui a ideia de liberdade em sua
teoria competitiva. Schumpeter afirma também que a “relação entre a democracia e
a liberdade não é absolutamente rígida e pode ser alterada”; para ele, esta é uma
questão importante, do pondo de vista do intelectual, mas, ao mesmo tempo, “isto é
tudo o que se pode dizer sobre esta relação” (1979[1942]: 346). Ainda que a sua
perspectiva pressuponha a existência de um conjunto de liberdades públicas, como
se esforçou por demonstrar, por exemplo, G. O’Donnell (1999), entre tantos outros
cientistas políticos, o fato é que não disse muito além do que foi referido aqui. Do
contrário, não seria necessário que tantos autores se esforçassem para extrair de
sua obra as liberdades pressupostas em seu modelo.
No seu esquema teórico, cabe ao cidadão comum, que não possui “os
recursos análogos àqueles necessários para empreender, no ramo de tecidos”, a
participação que se restringe, na prática, ao ato de votar periodicamente para
escolher os governantes da vez. Como o cidadão comum é incapaz de realizar
escolhas que vão além da seleção dentre os candidatos lançados pelos partidos
políticos, a sua participação possui apenas um caráter legitimador do processo de
constituição de governos. O cidadão comum não sabe decidir sobre os assuntos
políticos domésticos nem sobre assuntos de política externa. Schumpeter chega a
128

rejeitar explicitamente qualquer forma de manifestação política que extrapole o


direito ao voto. Até o simples envio de correspondências aos representantes é visto
como uma intromissão indevida dos governados nas ações dos governantes. Ou
seja, qualquer tentativa de influenciar as políticas públicas pode ser vista como um
abuso das liberdades públicas, que se dá em detrimento da própria democracia que
as garante.
Somada a um conjunto mais ou menos extenso de liberdades fundamentais,
pressupostas em seu modelo teórico e necessárias para a realização do processo
eleitoral, a manutenção de eleições livres e competitivas é uma condição para a
existência de uma democracia. Ao contrário do que era a concepção mais comum
até então, sobretudo entre os discursos socialistas de seu tempo, contra os quais
Schumpeter opunha a sua argumentação, o processo eleitoral não é um caminho
intermediário para se construir uma democracia, ele é a própria democracia: onde
existem as liberdades públicas fundamentais e a livre disputa eleitoral entre as elites
políticas, aí se encontra um regime que merece ser classificado como democrático.
Enquanto as “filosofias da democracia do século XVIII” pressupõem um povo
com capacidade racional de decisão, Schumpeter questiona a capacidade do eleitor
de observar e interpretar fatos para produzir inferências racionais. No centro da
argumentação está a ideia da “irracionalidade das massas”, pedra angular da
legitimação da democracia enquanto o “governo dos políticos”. A mesma ideia de
uma divisão ontológica fundamental, entre elites e não-elites, governantes e não-
governantes, enfim, típica dos argumentos elitistas. (Como dito, o pensamento
político dele foi profundamente influenciado pelos teóricos elitistas “clássicos” – em
especial, de Pareto, autor sobre o qual Schumpeter chegou a dedicar um de seus
trabalhos – e pelo pensamento de Weber).
É conhecida a formulação schumpeteriana, explícita e insistente, sobre as
qualidades do “homem médio”: carente de racionalidade, sem qualquer vontade
efetiva e com senso de responsabilidade reduzido. Em parte, o autor inspirou-se nos
estudos de Pareto sobre os elementos irracionais e extrarracionais do
comportamento humano e nos textos de psicólogos sociais conservadores, como na
psicologia das multidões de Gustave Le Bon. Schumpeter considera que os
indivíduos são capazes de adotar decisões racionais referentes à sua realidade
próxima, a dos interesses privados, âmbito de sua família, de seu trabalho, de suas
atividades cotidianas, mas quando esses mesmos indivíduos se afastam do contexto
129

mais próximo, em que está habituado e, portanto, apto a reconhecer os efeitos


favoráveis e desfavoráveis de seus comportamentos, a sua racionalidade deve ser
questionada.
Quando passa da esfera privada para o campo político, os indivíduos operam
em um nível mental mais baixo. Isto se aplica para os assuntos domésticos ou de
política externa. No trecho a seguir, Schumpeter faz referência também aos
assuntos de política externa de um país, âmbito decisório a ser afastado da
influência dos indivíduos comuns e de sua racionalidade limitada para assuntos
públicos:

“O senso de responsabilidade reduzido e a ausência de vontade efetiva [com


relação à condução dos assuntos públicos], por outro lado, explicam a ignorância do
cidadão comum e a falta de bom senso em assuntos de política interna e externa.
(...) O cidadão típico, em consequência, desce para um nível inferior de rendimento
mental logo que entra no campo político. Argumenta e analisa de uma maneira que
ele mesmo reconheceria como infantil na sua esfera de interesses reais. Torna-se
primitivo novamente. O seu pensamento assume o caráter puramente associativo e
afetivo.” (1974[1942]: 318-319)

Em resumo, para Schumpeter são suficientes apenas dois componentes


fundamentais, para que se reconheça o caráter democrático de um sistema político:
maior grau de liberdade política e natureza competitiva da política, ou, em outros
termos, liberdade e eleições livres, justas e competitivas62. Analisando as
implicações dessa teoria democrática competitiva para o processo de tomada de
decisões governamentais, em termos do seu grau de autonomia em relação à
sociedade, conclui o cientista político Carlos Pio (2001: 13): “de acordo com a teoria
democrática competitiva, da qual Schumpeter é o expoente máximo, o Estado
democrático disporia de um elevado grau de autonomia em relação à sociedade nas
suas decisões quotidianas”.

______________________________________________
62
Estes dois elementos da teoria de Schumpeter possuem continuidade na obra de R. Dahl (1971) – daí falar-
se, com frequência, na “tradição Schumpeter/Dahl” – entre outros autores posteriores. Normalmente, quando a
literatura aborda as duas dimensões do primeiro, é indicada a sua continuação nas dimensões da poliarquia
(contestação e participação), conceito cunhado por Dahl para designar as democracias realmente existentes,
recusando assim qualquer concepção ‘idealista’ de democracia. O conceito deste último implica também a
necessidade de existirem as liberdades civis e políticas, como os direitos à expressão, assembleia e
associação, condição para a realização do debate político e a condução das campanhas eleitorais. Neste
trabalho, preferiu-se separá-los, embora se considere que ambos são tomados como referência para a
concepção procedimental mínima, como se insistiu no capítulo anterior.
130

Nesta chave teórica procedimental mínima, a legitimidade dos tomadores de


decisão deriva do próprio processo de constituição dos governos democráticos, e
assim, teoricamente, o problema da legitimidade (das decisões) é reduzido ao
problema da legalidade (do governo eleito), para usar os termos de Hans Kelsen,
das primeiras décadas do século XX. O pensamento de Kelsen procurou dar uma
solução metodológica para o problema do relativismo moral. O raciocínio foi
sintetizado por ele da seguinte maneira: “quem considera inacessíveis ao
conhecimento humano a verdade absoluta e os valores absolutos não deve
considerar possível apenas a própria opinião, mas também a opinião alheia”
(2000[1929]: 105). Por isso, a democracia supõe uma concepção de mundo
relativista, na medida em que dá a qualquer convicção política igual possibilidade de
expressão, recusando a possibilidade de se acessar qualquer valor ou verdade
absolutos, permite que se busque sempre o convencimento dos homens por meio da
livre concorrência de opiniões.
No capítulo anterior foi bastante explorada a metáfora de Schumpeter, sobre
mercados econômicos e democracias, na qual os empresários estão para os
consumidores como os políticos estão para os eleitores: a democracia é reduzida
assim a um mercado eleitoral. Não se pretende retomar esta ideia aprofundada
antes, mas ela serve como transição para a seção seguinte, pois é uma metáfora
persistente na segunda metade do século XX, tanto para aqueles que deram
seguimento à perspectiva realista da democracia enquanto esfera de competição ou
luta pelo poder entre elites, como para aqueles autores que, apesar de adotarem um
discurso mais coerente com a perspectiva pluralista, também a utilizam de forma
recorrente.

2.2 A perspectiva pluralista de democracia

Nesta seção, são exploradas três vertentes que possuem diferenças internas,
como ocorre nas outras duas perspectivas de democracia, mas cujas semelhanças
entre si justificam apresentá-las separadamente das demais, com o rotulo variável
de “pluralismo” ou “participativismo”. Todas elas ampliam o número e a natureza dos
agentes envolvidos nas instituições políticas, em comparação com as perspectivas
131

realistas do elitismo. Primeiramente, é apresentada a teoria econômica da


democracia, de Anthony Downs. Depois, o pluralismo liberal do conceito de
poliarquia, cuja figura de referência mais imediata é Robert Dahl. Finalmente, a
democracia participativa é associada aqui ao pensamento de Carole Pateman,
autora que, ao retomar argumentos dos filósofos da democracia direta, como Jean-
Jacques Rousseau e John Stuart Mill, reinaugurou a reflexão contemporânea sobre
a participação.
A primeira formulação examinada, elaborada por Anthony Downs (1930- ),
em sua obra Uma teoria econômica da democracia, publicada originalmente em
1957, busca dar uma explicação racionalista para o comportamento dos atores
envolvidos no processo político-eleitoral. É construída uma analogia aos mercados
econômicos, porém enquanto no modelo schumpeteriano a massa é irracional, na
teoria econômica o mercado eleitoral consiste no lugar de encontro de agentes
racionais: a oferta de políticas públicas por parte dos partidos (e políticos), que
necessitam delas para chegar ao governo, casa-se com a demanda de vantagens
ou utilidades por parte dos eleitores. Apesar disso, a democracia substancial
permanece irrealizável na prática, em virtude da desigualdade produzida pela
incerteza, complexidade e distribuição desigual das informações.
A analogia microeconômica e os supostos da teoria da escolha racional
encontram-se na raiz do modelo difundido por Downs. Essa primeira perspectiva
pluralista tem a pretensão de formular um modelo de democracia, o qual é gerado a
partir da utilização do individualismo metodológico e da premissa epistemológica do
comportamento racional, egoísta e autointeressado dos agentes políticos em sentido
amplo. As políticas públicas são realizadas visando às eleições e não o contrário.
Isto porque os partidos e candidatos que concorrem pelos cargos eletivos participam
de um mercado eleitoral, constituídos por eles, que ofertam políticas públicas, e
pelos eleitores, que as demandam. Assim, o mercado eleitoral é o lugar de encontro
de políticos em busca de votos e eleitores que aspiram vantagens e na base do
modelo de Downs está a racionalidade dos agentes, tanto os políticos como os
eleitores. Isto tudo em uma realidade análoga à dos mercados econômicos, isto é,
uma situação complexa, caracterizada pela incerteza e pela distribuição desigual das
informações necessárias à participação dos indivíduos na tomada de decisões
governamentais.
132

Essa perspectiva inverte a relação entre as eleições e as políticas públicas. A


argumentação teórica de Downs assenta-se na “hipótese fundamental” de seu
modelo: “os partidos formulam políticas a fim de ganhar as eleições, e não ganham
as eleições a fim de formular políticas” (1999: 50). Para ele, eleitores e partidos
atuam racionalmente no âmbito do mercado eleitoral: os partidos estão para as
empresas como os eleitores para os consumidores. Os primeiros buscam maximizar
seus ganhos – votos ou lucro – assim como os eleitores/consumidores, que buscam
maximizar suas vantagens (utilidades), sempre em termos individualistas. A política
é uma competição econômica, em que a disputa de rendas e interesses privados
predominam sobre qualquer noção de bem público ou de bem coletivo.
Os agentes são racionais e egoístas, sendo esta uma das diferenças entre o
modelo econômico de democracia de Downs e outras abordagens da escolha
racional, as quais admitem a ocorrência de comportamentos altruístas, cooperativos.
No entanto, não convém entrar nestes debates internos à perspectiva racionalista da
política63. Para os fins analíticos propostos, importa saber que o autor tem a
pretensão de apresentar um modelo que incorpore uma regra de comportamento ao
mesmo tempo generalizável e realista, “semelhantes às regras tradicionalmente
usadas no caso de consumidores e produtores racionais”.
A perspectiva de Downs, ao usar uma visão mínima e competitiva da
democracia, termina por convergir parcialmente com a perspectiva de Schumpeter,
com a diferença de que assenta sua justificativa sobre a premissa teórica da
racionalidade individual. Por um lado, também é uma visão restrita da arena política,
uma vez que ela limita os procedimentos democráticos ao âmbito político-
institucional das eleições periódicas, assim como o austríaco formulara no início dos
anos 40. Aliás, a analogia shumpeteriana dos mercados de democracias é levada ao
paroxismo na formulação de Downs, que explora a linguagem e os raciocínios

______________________________________________
63
São muitas as classificações feitas sobre esta literatura complexa, que abrange muitos subcampos e
perspectivas teóricas. Foge ao propósito deste trabalho explorar essas diferenças, mas vale mencionar a
leitura de F. Reis, que aparece a seguir, no corpo do texto, e a conhecida leitura de Lars Udehn (1996), que
diferencia os teóricos da escolha racional, mais propensos a aceitar comportamentos cooperativos, e os
teóricos da escolha pública, que trabalham com a prevalência dos interesses privados sobre qualquer
altruísmo político.
133

típicos da teoria microeconômica, mais do que fizera Schumpeter. Por outro lado,
também é uma visão competitiva da arena política democrática. A democracia é
vista como o resultado do conflito permanente dos indivíduos e grupos políticos que
disputam os cargos governamentais, com as vantagens em termos de prestígio,
poder e riqueza deles extraídos. Assim como em Schumpeter, também, o que existe
é um conflito entre os interesses dos indivíduos e grupos em condição de disputar o
governo, no qual os agentes são guiados por esses interesses particulares. Não há
qualquer visão de solidariedade social, de interesse coletivo, de bem público, pois
essas noções são meros artifícios ideológicos utilizados como recursos políticos na
busca de interesses sempre particulares. Apesar destas afinidades, parece mais
adequado diferenciar as perspectivas de Downs e Schumpeter, colocando o primeiro
ao lado de autores pluralistas, tanto pela extensão da racionalidade aos eleitores,
em vez de restringi-la às elites governantes, como pela pretensão epistemológica de
construir um modelo racionalista e empírico da democracia.
Ultrapassada esta questão mais abstrata, que revela os limites da
categorização de autores dentro de determinadas perspectivas, segue a exposição
da estrutura do modelo, segundo o próprio autor:

“Nosso modelo se baseia no pressuposto de que todo governo procura maximizar o


apoio político. Presumimos ainda que o governo exista numa sociedade democrática
em que se façam eleições periódicas, que seu objetivo principal é a reeleição, e que
a eleição é o objetivo daqueles partidos agora alijados do poder. Em cada eleição, o
partido que recebe o maior número de votos (embora não necessariamente a
maioria) controla todo o governo até as próximas eleições, sem quaisquer votações
intermediárias, seja pelo povo como um todo, seja pelo parlamento. O partido
governante, portanto, tem liberdade ilimitada de ação, dentro dos limites da
constituição.” (1999: 33)

É importante o fato de que Downs recupere a racionalidade dos eleitores,


ideia ausente nas teorizações que predominaram na teoria democrática moderna,
desde as suas primeiras formulações dos séculos XVIII e XIX até as vertentes da
primeira metade do século XX. Durante todo esse período, foi hegemônica a ideia de
irracionalidade das massas, como foi mencionado. Todos os autores examinados na
seção anterior trabalham com este suposto teórico. Ao defender a ideia da
racionalidade dos indivíduos, o autor também confere renovada legitimidade aos
processos eleitorais, na medida em que considera que as escolhas eleitorais como o
resultado de um processo de escolhas racionais.
134

Ao mesmo tempo, surgem paradoxos que resultam da relação entre a


racionalidade individual e a racionalidade coletiva. Nesta linha de raciocínio, uma
das questões centrais que essa perspectiva coloca é a da relação entre as ações
individuais e suas consequências coletivas. F. W. Reis (1999) situa a teoria de
Downs nos debates da ciência política norte-americana. Segundo ele, a teoria
econômica da democracia traduz um dos resultados possíveis do confronto entre as
perspectivas econômica e sociológica, mais especificamente o que se passou a
conhecer como “teoria da ‘escolha racional’ (rational choice), que se especifica no
campo da política, de acordo com certo uso terminológico, como a teoria da ‘escolha
pública’ (public choice)” (1999: 11). Ele também situa duas vertentes, “escolha
pública positiva” e “escolha pública normativa”, sendo a primeira mais interessada
“nas ações individuais e suas consequências coletivas” e a última na articulação
entre “preferências individuais e decisões coletivas”.
Esta classificação reproduz a divisão bem estabelecida na ciência política,
sobretudo norte-americana e em seus âmbitos de influência, entre uma esfera
empírica e outra normativa da teorização política. A perspectiva de Downs se
encaixa na esfera empírica, pois sua pretensão cognitiva é apresentar uma
modelagem teórica capaz de explicar o funcionamento da democracia e de seus
processos, com ênfase, como já está claro, no processo eleitoral, como cerne da
democracia. É mais uma versão procedimental da democracia, construída sobre
bases epistemológicas que remetem a uma vertente da teoria econômica. Essa
perspectiva introduz como novidade a ideia, já destacada anteriormente, de que
todos os agentes que participam do mercado eleitoral agem de maneira racional.
Políticos e eleitores, não apenas os primeiros. O que existe, no entanto, é uma
divisão social do trabalho, uma distribuição das funções sociais. A argumentação do
teórico é clara:

“Em geral, é irracional ser politicamente bem-informado porque os retornos


provenientes dos dados simplesmente não justificam seu custo em tempo e em
outros recursos escassos. Portanto, muitos eleitores não se dão ao trabalho de
descobrir seus verdadeiros pontos de vista antes de votar, e a maioria dos cidadãos
não está suficientemente bem-informada para influenciar diretamente a formulação
daquelas políticas que a afeta. Esses resultados demonstram que a verdadeira
igualdade política é impossível mesmo nas democracias, desde que (1) exista a
incerteza; (2) haja divisão do trabalho e (3) os homens ajam racionalmente.”
(1999[1957]: 277)
135

Por outro lado, esta é uma visão que restringe a democracia ao processo de
escolha majoritária, o problema do “winner takes it all”, em sua formulação
anglófona, ou, em português, “quem vence leva tudo”. Isto significa que o modelo
teórico de Downs tende a sub-representar ou simplesmente excluir as minorias,
dando todo o poder à maioria e incorrendo no risco da “tirania da maioria”, tal como
advertira toda uma tradição que remonta a John Locke, no século XVIII. Sendo
assim, é introduzida uma assimetria fundamental no modelo de Downs, o que o
próprio autor parece admitir implicitamente quando reconhece que a verdadeira
igualdade é impossível mesmo nas democracias, que “a democracia substancial é
irrealizável”, como ele afirma. Em conclusão, assim como a incerteza é um elemento
característico da democracia, também a desigualdade se constitui em pedra angular
do modelo democrático de sua autoria.
Agora as perspectivas associadas ao teórico norte-americano Robert Dahl.
Mais precisamente, são tratadas outras duas versões do pluralismo, ambas
associadas e ele em virtude do fato de que houve uma modificação substancial do
seu pensamento político. Esta mudança tem a ver diretamente a questão da
democratização das políticas públicas. Por isso, decidiu-se discutir em separado o
modelo poliárquico, esboçado ainda nos anos 1950, mas cuja referência principal é
a obra Poliarquia, de 1971, e a sua reformulação, realizada a partir do final dos anos
1970 e durante as décadas seguintes, nomeado modelo neopoliárquico.
Resumidamente, são tratadas algumas questões mais teóricas dessa contribuição,
tendo em mente este fato de que, ao longo de sua trajetória, é possível identificar
essas duas linhas teóricas. Se elas não chegam a entrar em confronto direto, ao
menos são emblemáticas de duas perspectivas diversas sobre os processos
políticos implicados nas democracias.
Esses dois modelos de poliarquia, para usar o conceito que o autor construiu
para designar as democracias reais, diferenciam-se por terem diferentes
perspectivas sobre o processo de tomada de decisões em políticas públicas. Ou, em
outros termos, o “pluralismo” e o “neopluralismo” divergem em termos das diferentes
expectativas do autor quanto às implicações das instituições democráticas. Como
mencionado em nota anterior, na concepção inicial era incluída a condição de haver
canais de participação nos processos decisórios das políticas públicas e
mecanismos para assegurar a contínua responsividade governamental, enquanto a
concepção reelaborada nas últimas décadas do século XX excluiu os elementos
136

participativo e responsivo, assimilando teoricamente a ideia, mais alinhada ao


elitismo, de que determinados grupos possuem acesso privilegiado à esfera de
tomada de decisão. Assim como ocorre em Downs, o pensamento neopoliárquico de
Dahl também introduz a assimetria ou a desigualdade fundamental no seu modelo
de democracia real.
No capítulo anterior, foram apresentadas duas ideias que convém retomar
aqui. Em primeiro lugar, aqueles que sustentam a concepção hegemônica de
democracia dão como referência a dupla Schumpeter/Dahl ou algum dos dois em
particular. Aproveita-se este espaço para discutir as diferenças e aproximações entre
eles. Em segundo lugar, demonstrou-se a situação paradoxal existente nos estudos
comparativos: embora a noção de poliarquia – dos anos 50 e do livro homônimo de
1971 – seja a principal referência do autor utilizada na literatura dos estudos de
democratização, quase sempre lhe é subtraída a condição associada à igualdade de
participação nas decisões. Talvez a explicação esteja no fato de que esta operação
também foi efetuada pelo autor, a partir do final dos anos 70, quando reformulou a
própria perspectiva. O curioso é que a maioria da literatura use como referência a
primeira fase da sua obra e, ao mesmo tempo, ignore o elemento participativo, em
geral sem tecer quaisquer considerações a respeito. O que importa mais, para os
propósitos deste capítulo, é reorganizar o cerne da argumentação realizada em cada
uma destas duas fases de sua elaboração teórica.
A primeira fase do pensamento de Dahl teve início nos anos 1950, com a
publicação de duas obras: Politics, Economics and Welfare (1953), em co-autoria
com Charles Edward Lindblom, e Um Prefácio à Teoria Democrática (1956). Na
primeira obra, os autores defendem o conceito de poliarquia, para designar os
regimes existentes “realisticamente”, diferenciando-o do conceito de democracia,
reservado às noções “idealistas” ou “axiomáticas”: o que existe, argumentam, são
regimes poliárquicos. O primeiro conceito foi escolhido por ser considerado um meio
adequado de descrever uma “democracia representativa moderna”, como lembrou
recentemente o próprio Dahl (2001[1998]: 104), já que a palavra poliarquia tem
origem na justaposição de dois vocábulos gregos que resultam no significado de
“governo de muitos”. A ideia escolhida permite distinguir esta organização política da
monarquia, ou “governo de um”, e da oligarquia ou aristocracia, o “governo de
poucos”, conceitos da doutrina aristotélica clássica, embora Aristóteles haja
reservado ao “governo de muitos” justamente o conceito de democracia. Esta foi
137

basicamente a adaptação de Dahl e Lindblom à doutrina clássica. Na prática, eles


formularam um modelo com pretensão cognitiva alegadamente realista, em oposição
à carga idealista, axiomática, que associam ao conceito de democracia e, por
extensão, a quaisquer outras concepções normativas.
Esta ideia de uma contraposição entre uma abordagem normativa ou ética e
uma possível abordagem empírica ou descritiva da democracia é reproduzida no
livro seguinte de Dahl (1956). Embora as condições necessárias para identificar uma
poliarquia tenham recebido a sua elaboração mais conhecida na obra seguinte,
convém transcrever o trecho em que a separação entre as abordagens empírica e
normativa é sustentada explicitamente:

“Dei a estes ensaios o título Um Prefácio à Teoria Democrática porque, na sua


maioria, formulam questões que precisariam ser solucionadas por uma teoria
satisfatória de política democrática. Não têm a intenção de sugerir todas as questões
que necessitariam de solução, ou mesmo as mais importantes, mas apenas algumas
que julguei interessantes e que, alimento esta esperança, sejam importantes.
É estranho, talvez, que após tantos séculos de especulação política, a teoria da
democracia continue a ser – se estou certo nesta minha suposição básica –
sumamente insatisfatória, seja ela considerada de caráter essencialmente ético ou
basicamente como uma tentativa de descrever o mundo real.
Desde o começo, uma das dificuldades que temos que enfrentar é que não há uma
teoria democrática, ou de democracia – mas várias. Sugere este fato que melhor
faríamos em estudar algumas teorias representativas de democracia a fim de
descobrir que tipos de problemas colocam; tal o procedimento que adotamos nestes
ensaios, embora nenhum esforço tenha sido feito para estudar todas ou a maioria
das teorias tradicionais.” (1989[1956]: 9)

No livro de 1971, Poliarquia, são esclarecidos alguns conceitos centrais da


teoria pluralista de Dahl. O pressuposto básico é o de que “uma característica-chave
da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus
cidadãos, considerados como politicamente iguais” (2005[1971]: 25). Para isso, é
preciso preencher uma série de condições, entre as quais está a oportunidade plena
dos indivíduos “de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do
governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da
fonte da preferência” (Dahl, ibid.). Este é o elemento participativo da formulação
original de Dahl, que escapa às conceituações principais da política comparada e às
adjetivações derivadas delas. (As outras duas condições democráticas são as
oportunidades plenas de formular e de expressar, individual ou coletivamente, as
preferências cidadãs).
138

Apesar de relativamente conhecida, cabe transcrever a


Tabela 1 elaborada pelo autor, chamando a atenção para a oitava garantia
necessária para se atender ao caráter democrático da conduta do governo:

Tabela 1 – Alguns requisitos de uma democracia para um grande número de


pessoas
São necessárias as seguintes
Para a oportunidade de:
garantias institucionais:
1. Liberdade de formar e aderir a
organizações
2. Liberdade de expressão
I. Formular preferências 3. Direito ao voto
4. Direito de líderes políticos
disputarem apoio
5. Fontes alternativas de informação
1. Liberdade de formar e aderir a
organizações
2. Liberdade de expressão
3. Direito ao voto
II. Exprimir preferências 4. Elegibilidade para cargos políticos
5. Direito de líderes políticos
disputarem apoio
6. Fontes alternativas de informação
7. Eleições livres e idôneas
1. Liberdade de formar e aderir a
organizações
2. Liberdade de expressão
3. Direito ao voto
4. Elegibilidade para cargos políticos
5. Direito de líderes políticos
disputarem apoio
III. Ter preferências igualmente
5.a. Direito de líderes políticos
consideradas na conduta do governo
disputarem votos
6. Fontes alternativas de informação
7. Eleições livres e idôneas
8. Instituições para fazer com que as
políticas governamentais dependam
de eleições e de outras manifestações
de preferência.
Elaboração: Robert Dahl (1971).

Em suma, na versão inicial do modelo poliárquico, Dahl define o Estado como


uma arena onde são formuladas, expressas e consideradas as preferências dos
indivíduos e coletividades que compõem uma sociedade. Os agentes estatais não
possuem autonomia na definição das políticas públicas, como ocorre nos modelos
139

democráticos anteriores. Isto significa que as condutas do Estado devem refletir as


preferências da sociedade política, elas devem resultar de “um processo infinito de
barganha”. Apesar de ser uma referência da concepção procedimental mínima, Dahl
põe ênfase na ampliação do espectro político, na maior inclusão política no próprio
processo decisório, enquanto Schumpeter enfatiza a competição eleitoral, que por si
só legitima as escolhas adotadas a posteriori pelos tomadores de decisão.
Para que sejam democráticas, as decisões devem expressar as preferências
não apenas dos burocratas e líderes políticos do governo, mas também das
inúmeras organizações políticas, como os partidos, associações, sindicatos etc.
Assim, na primeira fase de sua obra, o autor sustentava ainda a principal crítica
pluralista aos teóricos elitistas: a divisão ontológica fundamental entre cidadãos e
governantes. A sociedade é conformada por uma pluralidade de associações e de
interesses, os quais devem ser incluídos nas regras democráticas. Em trabalhos
publicados desde os anos 1950 até o princípio dos anos 70, Dahl embutira na
definição de poliarquia uma referência ao processo de tomada de decisões (no
inglês, policy process): deve haver instituições constituídas para “tornar as decisões
governamentais dependentes dos votos e demais expressões de preferência” (Dahl,
2005[1971]: 3).
Na concepção reelaborada pelo autor nas últimas décadas do século XX,
foram excluídos o pressuposto de responsividade e o elemento participativo, o que
significou a assimilação teórica da ideia, cara ao elitismo democrático, de que
determinados grupos possuem acesso privilegiado à esfera de tomada de decisão.
Ao fazer esta concessão teórica e normativa, o autor deixou de reconhecer no
Estado uma arena para o infinito processo de barganhas de preferências,
concebendo-o como a expressão dos interesses dos grupos bem posicionados
politicamente. Assim como ocorre em Downs, o pensamento neopoliárquico de Dahl
também introduz a assimetria ou a desigualdade fundamental no seu modelo de
democracia real. Como observa M. H. C. Santos (2001), após expor a releitura feita
pelo próprio Dahl, durante os anos 80:

“o oitavo atributo contido em Poliarchy, referente à dependência das instituições que


formulam políticas governamentais em relação ao voto e outras expressões de
preferência – ou seja, accountability das burocracias –, desaparece nos livros mais
recentes do autor, tanto no... [Democracy and its Critics, de 1989] como em
Dilemmas of Pluralist Democracy, de 1982. De fato, Dahl retira a oitava condição de
Poliarchy e a embute, por assim dizer, na primeira condição desses dois livros mais
recentes, a saber: ‘o controle sobre decisões governamentais referentes à política
140

pública está constitucionalmente investido em autoridades eleitas’ (Dahl, 1982: 10;


1989: 221). Este ponto é de grande relevância para a discussão em pauta.” (Santos,
2001: 744)

Os elementos participativos necessários para cumprir o pressuposto teórico


da contínua responsividade dos governos diante dos cidadãos praticamente
desapareceram da versão neopoliárquica. O resultado é a construção de um modelo
democrático de “baixa intensidade” e, se era possível considerar a vertente inicial
como uma crítica ao realismo/elitismo até então predominantes na teoria
democrática, a partir do reconhecimento da assimetria no acesso às instâncias
decisórias torna-se maior a aproximação do pluralismo em direção ao elitismo e ao
minimalismo procedimental. Assim concebido, o modelo democrático de Dahl perde
a sua vitalidade crítica em relação à democracia representativa elitista e cede
espaço para os argumentos em prol da “democracia participativa”, cujas
contribuições serão examinadas a seguir.
Pode-se dizer que a incorporação destas vertentes participativas ao debate
teórico – assim como das perspectivas deliberativas, discutidas na próxima seção –
adquire os sentidos de contestação política e de ruptura teórico-normativa. Trata-se
de pensar a democracia em novas bases, renovando os discursos e os mecanismos
democráticos a partir do reconhecimento das implicações e dos problemas derivados
da adoção da concepção procedimental mínima. Para a apresentação da teoria da
democracia participativa foram selecionadas algumas contribuições de Carole
Pateman (1970) – enfatizando os seus argumentos inspirados, por um lado, em
filósofos dos séculos anteriores, como Jean-Jacques Rousseau e John Stuart Mill, e,
por outro, em reflexões do início do século XX, como G. H. Cole – e, depois,
algumas contribuições de John Dewey para esta perspectiva.
Naturalmente, para além destas referências teóricas exploradas aqui existem
outras, as quais se fundamentam em argumentos similares. O estudo dos
mecanismos de participação – e de deliberação – tem ocupado um espaço
crescente entre os cientistas políticos, o que se pode comprovar pelo crescente
número de trabalhos individuais e coletivos que buscam investigar os mecanismos
141

concretos de fortalecimento de uma esfera pública política constituída por novas


regras e práticas, as quais já se fazem presentes em diversas áreas de políticas
públicas64. Entre esses mecanismos, destacam-se os “conselhos, orçamento
participativo, mecanismos deliberativos no interior das agências de regulação,
conferências, legislação participativa e audiências públicas” (Vera Coelho e Marcos
Nobre, 2004). Estes autores enfatizam a hipótese veiculada por boa parte dessa
prolífica literatura: “a criação de novos mecanismos de participação e deliberação
mais diretas e ativas nos processos de definição de políticas poderá levar a formas
mais eficazes de resposta a carências e necessidades sociais”, e, adicionalmente,
“um adensamento dos processos de formação política da opinião e da vontade que
se refletem qualitativamente no desempenho institucional dos novos atores” (Ibid.)65.
A sequência abaixo explora principalmente os teóricos da democracia participativa,
com ênfase nos autores mencionados no parágrafo anterior.
O livro Participação e Teoria Democrática, de Carole Pateman (1970), é uma
referência central neste modelo de democracia. Reconhecendo que qualquer teoria
seleciona os fenômenos a serem explicados e os que são relevantes para a sua
explicação, ela assume que todo discurso teórico possui uma posição normativa, ao
menos implicitamente. O trabalho foi publicado no contexto em que a “participação”
era alçada a mote de reivindicações políticas e promessas governamentais, portanto
bastante influenciado pelas críticas ao isolamento elitista dos processos decisórios.
A autora faz uma discussão de teóricos clássicos da democracia e aqui interessa
apresentar um conjunto de conceitos e argumentos teóricos elaborados por eles: de

______________________________________________
64
Entre as publicações coletivas, vale consultar as discussões teóricas e os estudos empíricos contidos no livro
organizado por Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer (Democratizar a Democracia, 2002), que
enfatizam experiências participativas em países em desenvolvimento, e o livro organizado por Sonia Alvarez,
Evelina Dagnino e Arturo Escobar (Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latinoamericanos, 2000), cujo
foco é no papel dos movimentos sociais e de suas políticas culturais na região. Este último traz discussões
sobre a democracia participativa e traz algumas questões teóricas relevantes para a democracia deliberativa.
65
Cf., a respeito dos novos mecanismos de participação e deliberação, os trabalhos contidos na obra organizada
por Coelho e Nobre (2004), uma dessas obras dedicadas ao estudo das experiências de participação e
deliberação no Brasil, intitulada Participação e Deliberação: Teoria Democrática e Experiências Institucionais
no Brasil Contemporâneo. Não se poderia deixar de observar que, embora esses estudos e mecanismos
hajam se estendido a diversas áreas de políticas públicas, as relações entre democracia e política externa ou
entre democracia e integração regional são lacunas manifestas na literatura pesquisada. Mesmo com o
aumento dos estudos de política externa, a sua relação com as instituições democráticas ainda é raramente
explorada.
142

Rousseau, a ênfase no processo de interação contínua entre instituições políticas e


qualidades psicológicas (individuais e sociais) e a hipótese das funções da
participação política (educação dos cidadãos, aceitação das decisões e integração
social); de Mill, a mesma ênfase rousseauniana sobre a função educativa da
participação, além da defesa da extensão da participação ao ambiente produtivo e
ao nível local; e, de Cole, principalmente as críticas à representação e a síntese
entre argumentos democráticos e socialistas.
Rousseau é “o teórico por excelência da participação”, sendo há dois séculos
e meio um filósofo central para a teoria democrática moderna, em particular por sua
compreensão da natureza do sistema político, exposta na obra O Contrato Social
(1750)66. Em primeiro lugar, a “democracia direta” é fundamentada no ideal de
igualdade política, o qual por sua vez necessita da existência de certas condições
materiais mínimas. Se, em um dado sistema político, os indivíduos não possuem
independência material e segurança, para os quais é necessário que ele possua
alguma propriedade, não pode haver igualdade política. A situação ideal, para ele, é
aquela em que “nenhum cidadão fosse rico o bastante para comprar o outro e em
que nenhum fosse tão pobre que tivesse que se vender” (Rousseau apud Pateman,
1992[1970]: 36). Essas condições devem estar presentes para que os indivíduos
possam se reunir em uma sociedade na qualidade de indivíduos livres e
independentes, qualidades fundamentais para a preservação da interdependência
social.
Presentes as condições materiais mínimas, então o filósofo passa a enfatizar
a importância da participação individual de cada cidadão. A instituição da
participação ativa e direta serve como uma proteção adicional à série de arranjos
institucionais que caracteriza uma sociedade política. Mais importante ainda, ela
também tem efeito psicológico sobre os que participam, sendo capaz de assegurar
alimentação contínua entre o desempenho ou funcionamento das instituições
políticas e as qualidades e atitudes psicológicas dos indivíduos que interagem nos

______________________________________________
66
Como o pensamento de Rousseau já é bastante conhecido, evita-se aqui a tarefa de explorar mais a fundo
cada um dos principais conceitos utilizados pelo filósofo. O que mais interessa são os seus argumentos
centrais, e, naturalmente, as interpretações e inovações que impulsionou nesta perspectiva participativa.
143

arranjos institucionais dos quais fazem parte: “O exame (...) da teoria política de
Rousseau nos proveu do argumento de que há uma inter-relação entre as estruturas
de autoridade das instituições e as qualidades psicológicas dos indivíduos, e (...) de
que a principal função da participação tem caráter educativo” (Pateman, 1992[1970]:
42). O maior destaque é dado por Rousseau à função mencionada, embora ele
atribua uma tripla função exercida pela instituição: educação, aceitação das
decisões públicas e integração.
Assim, em primeiro lugar, os indivíduos aprendem ao participarem da tomada
de decisões, pois se habituam a distinguir as duas vontades que cada qual carrega
em si, a vontade individual e a vontade geral. A ideia de “educação” é utilizada no
sentido amplo do termo, pois “o sistema ideal de Rousseau é concebido para
desenvolver uma ação responsável, individual, social e política, como resultado do
processo participativo” (1992[1970]: 38). O aprendizado resulta da necessidade de
cada indivíduo levar em consideração outros interesses, se quiser a cooperação dos
demais, nas suas decisões políticas. O indivíduo é educado a distinguir os interesses
privados dos públicos. A ideia de Rousseau envolve uma noção de progresso:
quanto mais os indivíduos participam, maior discernimento eles adquirem, chegando
ao ponto de “não sentir quase nenhum conflito entre as exigências da esfera pública
e da esfera privada” (Ibid.). Quando os cidadãos são envolvidos diretamente nas
decisões, desenvolve-se uma dependência de cada um em relação a todos os
demais: eles aprendem que cada cidadão é “impotente para realizar qualquer coisa
sem a cooperação de todos os outros, vistos coletivamente como o soberano, e a
participação independente constitui o mecanismo pelo qual esta interação é
reforçada” (Pateman, 1992[1970]: 36).
As outras duas funções da democracia participativa também são importantes.
A aceitação das decisões públicas vincula-se, em primeiro lugar, à própria noção de
“liberdade”, definida por Rousseau como “a obediência à lei que alguém prescreve a
si mesmo”. Para Rousseau, “a participação pode aumentar o valor da liberdade para
o indivíduo, capacitando-o a ser (e permanecer) seu próprio senhor” (Pateman,
1992[1970]: 40). A participação permite que as decisões coletivas sejam aceitas
mais facilmente pelo indivíduo, pois a autoridade normativa é reconhecida como
legítima, considerando a conexão direta e ativa entre o indivíduo e a instância
decisória, isto é, o indivíduo aceita as regras porque participou de sua elaboração.
144

A terceira função da participação é a de integração, uma vez que ela “fornece


a sensação de que cada cidadão isolado ‘pertence’ à sua comunidade”. Como
observam Feres Jr. e Pogrebischi (2010), os defensores dessa perspectiva
compartilham a defesa de “nexo estreito entre os conceitos de democracia e
comunidade” e a compreensão de que “o aspecto comunitário da democracia
participativa responde, em alguma medida, pelo compartilhamento de uma
experiência comum”. Este vínculo forte entre os conceitos de democracia e de
comunidade é compartilhado não apenas pelas diversas vertentes participativas,
mas também pelas perspectivas deliberativas, exploradas na próxima seção.
Pateman também explora as posições e argumentos de John Stuart Mill,
como a ênfase, similar à rousseauniana, sobre a função educativa da participação.
Em particular, ela incorpora duas discussões extraídas do autor e que inspiram a
teoria democrática da autora: primeiro, a diferenciação entre a função educativa e a
função empresarial do Estado; segundo, a defesa da extensão da participação ao
ambiente produtivo; e, finalmente, a importância concedida pelo teórico à
participação nas instituições locais67.
Conforme a interpretação da autora, J. S. Mill critica as ideias de Jeremy
Bentham sobre as funções do Estado, as quais supõem que o “bom governo” deve
ser apenas uma série de arranjos para proteger os interesses materiais da
sociedade. Esta é a “parte meramente empresarial dos arranjos sociais”, que ignora
outra, a função educativa, pois o Estado possui uma função moral, e esta educação
se faz por meio da participação. O mais fundamental é outro aspecto – ter influência
sobre a mente humana, isto é, mudar a mentalidade. Quanto maior o progresso

______________________________________________
67
A autora observa que, no início de sua produção, J. S. Mill seguiu fervorosamente o pensamento de seu pai
(James Mill) e de Jeremy Bentham, criticando-as mais tarde. Assim, ele forneceu um exemplo das diferenças
entre as teorias da democracia representativa e da participativa (a autora utiliza as expressões “governo
representativo” e “democracia participativa” e dá preferência aos textos dessa última tendência). Ademais,
cabe observar que Mill adota uma postura elitista ao discutir as complexidades da implantação de um sistema
de participação nas grandes e complexas sociedades modernas. Do mesmo modo que James Mill e Bentham,
J. S. Mill defendia um governo por uma “minoria instruída” (e aqui a ideia de instrução se refere à educação no
sentido limitado ou acadêmico). A grande dificuldade política se encontra na relação entre a “elite governante”
e a “multidão”: como garantir a prestação de contas da elite e conciliar isto com a prevalência do seu domínio
sobre o sistema político. Neste ponto, revela-se uma das inúmeras ambiguidades que existe em sua obra, pois
é uma formulação típica do pensamento elitista que predominou nas sociedades europeias até meados do
século XX.
145

neste campo, melhor é o governo – o aspecto material mantém sua importância,


mas é deixado em segundo plano por J. S. Mill. O critério para a avaliação do
governo é “o grau em que eles promovem o avanço mental geral da comunidade,
entendendo-se por isso o avanço em intelecto, em virtude e em atividade prática e
eficiência” (Mill, 1910 apud Pateman, 1992[1970]). A função “educativa” dos
governos e instituições políticas assume o primeiro plano, pois determinadas
características devem ser desenvolvidas nos indivíduos, como condição necessária
para a condução de um bom governo no sentido empresarial. Trata-se de um
pensamento análogo ao de Rousseau, embora reformulado no contexto das
sociedades industriais do começo do século XX. Em ambos, a função educativa da
participação é alçada à condição de sua principal justificativa e torna sustentável o
próprio sistema político teorizado.
A segunda discussão interessante que diferencia Mill – sempre conforme a
interpretação de Pateman – está presente na sua defesa da extensão da
participação ao ambiente da indústria. Assim como no governo local, a indústria é
vista por ele como uma área em que o indivíduo pode adquirir experiência na
administração dos assuntos coletivos. Evidentemente, esta discussão está inserida
no contexto de ascensão do socialismo, cujo valor principal era seu potencial como
meio de educação. Cabe ressaltar que, apesar de reconhecer o potencial moral das
defesas e das práticas socialistas que eram contemporâneas a ele, Mill manteve-se
desconfiado das experiências centralizadoras, embora aprovasse “esses esquemas
socialistas que dependem da organização voluntária em pequenas comunidades e
os quais buscam uma aplicação nacional dos seus princípios através da
automultiplicação das unidades” (apud Pateman, 1992[1970]: 50). Para ele, em
resumo, a participação deveria ser estendida à indústria68.
As organizações industriais cooperativas conduziriam a uma “transformação
moral”, traduzida não apenas em uma educação política, mas também em ganhos

______________________________________________
68
Esta é outra tendência associada às discussões sobre a ampliação da participação nos dias de hoje. Na
Argentina dos anos 90 e 2000, multiplicou-se o número de casos de indústrias ocupadas por trabalhadores, as
chamadas empresas recuperadas ou ocupaciones de fábricas, dezenas delas tendo obtido sentenças judiciais
favoráveis, após a pior crise econômica de sua história.
146

de produtividade. O autogoverno do local de trabalho é defendido por Mill, que


sustenta uma mudança nas relações “políticas” (aqui o termo é empregado por ele
em sentido amplo) dentro da indústria capitalista. De acordo com Pateman, o que
Mill tem em mente é uma democratização das relações entre empresários
(superiores) e trabalhadores (subordinados), que se transforma em uma relação de
cooperação ou de igualdade, com a escolha de uma administração (isto é, um
governo) via eleições por todos os “empregados”, assim como nas instituições locais
e nacionais são escolhidos os representantes políticos de todos os cidadãos. Carole
Pateman chega a afirmar que, no pensamento democrático de J. S. Mill, “a
participação no local de trabalho – um sistema político – pode ser encarada como a
participação política por excelência” (1992[1970]: 51).
Para finalizar estas breves ideias de Pateman sobre o pensamento de Mill, há
outra discussão que o destaca de Rousseau e diz respeito ao nível privilegiado para
a participação, que é o das instituições locais. O indivíduo aprende a se
autogovernar pelo envolvimento com as questões mais próximas de sua realidade
cotidiana, ainda que sem se restringir aos seus interesses particulares. O autor faz
referência à insuficiência de haver “apenas” eleições nacionais, quando não é
garantida a participação ao nível local: “O ato político que apenas se repete com o
intervalo de alguns anos, e para o qual não teve o preparo nos hábitos cotidianos do
cidadão, deixa seu intelecto e suas disposições morais inalteradas” (J. S. Mill apud
Pateman, 1992[1970]: 46).
Sobre a extensão da democracia ao ambiente da indústria e ao nível local,
outra referência teórica utilizada por Pateman é representada pelo pensador
socialista do início do século XX, G. D. H. Cole. Assim como Mill, Cole percebe
esses dois âmbitos políticos como instâncias privilegiadas para o “aprendizado
democrático”. Ele é conhecido também por formular críticas à representação,
instituto considerado enganoso tanto porque pressupõe que o indivíduo pode ser
representado enquanto indivíduo, e não em relação a determinadas funções
específicas, como porque os indivíduos não possuem controle real sobre os
representantes após as eleições, negando-se assim o direito à participação política
efetiva. Em outras palavras, o sistema de representação é incapaz de realmente
“representar” os eleitores, pois, uma vez eleitos os representantes, aos indivíduos
não resta outra decisão a não ser aceitar as suas decisões e se deixar governar.
147

Esta visão de Cole pode ser lida como uma proposta de sintetizar o
socialismo e a democracia participativa, sendo influenciada simultaneamente por
Marx e Rousseau, sobretudo. O resultado é a valorização do autogoverno ou das
gestões participativas, não apenas nas instituições políticas, mas também no mundo
da produção, com a substituição do princípio de hierarquia típico das empresas
capitalistas por alguma forma de autogestão da indústria:

“Para Cole, assim como para Rousseau, não poderia haver igualdade de poder
político sem uma quantidade substancial de igualdade econômica, e sua teoria nos
oferece algumas interessantes indicações sobre a maneira de se alcançar a
igualdade econômica daquela sociedade ideal de camponeses proprietários de
Rousseau na economia moderna. Segundo Cole, ‘a democracia abstrata das urnas’
não envolvia uma igualdade política real; a igualdade de cidadania implícita no
sufrágio universal era apenas formal e obscurecia o fato de que o poder político era
dividido com muita desigualdade.” (Pateman, 1992[1970]: 56)

John Dewey foi o autor escolhido para finalizar esta seção sobre a
democracia participativa, por duas razões principais. Por um lado, ele é um dos
autores modernos mais resgatados pelas perspectivas participativas
contemporâneas, ao lado dos mencionados por Pateman e de tantos outros não
mencionados aqui. Por outro lado, a complexidade do pensamento de Dewey
permite situá-lo entre as posições e argumentos tanto dos teóricos da participação
posteriores como daqueles mais alinhados aos modelos deliberativos atuais. Apesar
de haver publicado principalmente nas quatro primeiras décadas do século passado,
ele pode metaforicamente ser representado aqui como uma charneira ou dobradiça,
conexão de fato existente na literatura contemporânea, entre os artífices intelectuais
da participação e da deliberação.
São destacados aqui os elementos do pensamento do autor considerados
mais relevantes para a vertente da democracia participativa: a crítica à identificação
entre a ideia de democracia e as instituições governamentais formais, o vínculo que
Dewey identifica entre os conceitos de democracia e comunidade política e,
finalmente, a defesa da extensão da participação a todos os âmbitos da
comunidade, os quais não se restringem, mas certamente incluem o processo de
tomada de decisões sobre políticas públicas.
A obra intitulada The Public and Its Problems pode ser descrita como um
esforço teórico e metodológico de compreensão do público e dos problemas
relacionados ao Estado democrático. A democracia é tratada como uma questão
prática, em vez de um problema para investigações teóricas preocupadas somente
148

com a observação das instituições existentes. Nos próprios termos do autor, “a


formação dos Estados deve ser um processo experimental”, uma vez que não há
uma forma de Estado que possa ser considerada como a melhor. Em termos
filosóficos, o autor recusa a distinção entre a filosofia política e a ciência política,
como se fosse possível reservar à primeira todo o campo dos significados e da
interpretação, ignorando que existe uma relação de dependência entre ideias e
ações, doutrinas e fatos políticos. Nesta linha de raciocínio, o autor propõe uma
distinção pragmática de duas categorias de fatos: os que são o que são
independentemente do desejo e empenho humanos, e os fatos que são em alguma
medida dependentes dos interesses e propósitos humanos, e que por isso mesmo
podem sofrer alteração devido a mudanças nesses dois fatores humanos. Ora, os
fatos políticos são inseparáveis do desejo e do julgamento humanos. No caso
específico da política, destaca-se a relação entre os fatos e as interpretações
elaboradas pelas teorias políticas, principalmente porque neste campo pode-se
perceber a relevância prática das diversas filosofias ou doutrinas políticas.
Para compreender a sua categorização que distingue o público e o privado,
pode-se reconstruir o seu raciocínio, pois o primeiro não equivale aos assuntos
envolvidos apenas nas interações que envolvem instituições e agências estatais.
Primeiramente, Dewey defende a perspectiva filosófica de que a investigação não
pode começar pela fase da ação humana à qual se atribui o poder causal, que no
caso do Estado refere-se às forças de sua formação:

“Se o fazemos, nós estaremos provavelmente sendo envolvidos em mitologia.


Explicar a origem do Estado dizendo que o homem é um animal político é viajar em
um círculo verbal. É como atribuir a religião a um instinto religioso, a família a um
instinto marital e parental, e a linguagem a uma dotação natural que impele o
homem a falar. Tais teorias meramente reduplicam em uma então chamada força
causal os efeitos que se quer explicar.” (Dewey, 1954[1927]: 9).

Para ele, deve-se iniciar a investigação pelos atos que são realizados, em vez
de focalizar causas hipotéticas desses atos, para então considerar as suas
consequências. Nesse sentido, o autor adiciona que se deve introduzir a observação
das consequências exatamente na qualidade de consequências, em conexão com
os atos dos quais elas decorrem, o que ele denomina “inteligência”. Nas suas
palavras, o ponto de partida da reflexão política é o “fato objetivo de que as ações
humanas possuem consequências sobre outros, de que algumas delas são
percebidas, e de que sua percepção leva ao esforço subsequente de controlar a
149

ação de modo a assegurar algumas consequências e evitar outras” (1954[1927]: 12).


Assim, Dewey identifica a existência de dois tipos de consequências, nas quais
reside a distinção entre o privado e o público: a primeira categoria de consequências
refere-se àquelas que afetam as pessoas diretamente envolvidas na transação e a
segunda é relativa às consequências que afetam outras pessoas, além das
imediatamente envolvidas.
O autor distingue entre a democracia enquanto “ideia”, da democracia
enquanto “sistema de governo”, distinção a partir da qual ele recusa a identificação
entre a ideia de democracia e as instituições governamentais formais. Dewey afirma
que, uma vez estabelecida uma “democracia política”, termo que ele reserva aos
sistemas de governo, são constituídos agentes que passam a representar o público,
o qual somente atua por meio desses agentes públicos. De acordo com a hipótese
do autor, ao contrário da afirmação frequente de que alguns governos são
representativos e outros não, “todos os governos são representativos, pois têm a
intenção de manter os interesses [no inglês, to stand for the interests] que o público
possui no comportamento de indivíduos e grupos” (1954[1927]: 76). Contudo, ele
observa que os representantes continuam sendo homens comuns, mantendo
consigo traços ordinários da natureza humana, como interesses privados ou o
vínculo com algum grupo em particular. Para que seja efetivamente representativo, é
preciso que o público esteja adequadamente organizado, de forma a ser capaz de
assegurar que os seus interesses sejam mantidos.
Para o autor, as mesmas forças que originaram as instituições democráticas,
como representantes do Executivo e do Legislativo eleitos pelo sufrágio universal,
também trouxeram à tona condições que impedem os ideais sociais e humanos que
demandam a utilização do governo como a instrumentalidade genuína de um público
inclusivo e fraternalmente associado. Como analisam Feres Jr. e Pogrebischi, “a
primeira lição da teoria da democracia de Dewey (...) é não confundir e jamais
identificar a ‘ideia de democracia’ com os seus ‘órgãos e estruturas externas’”:

“A ‘ideia de democracia’ seria tão vasta e tão plena que não poderia ser
exemplificada através do Estado. Nenhum Estado, nenhuma forma de Estado seria
suficiente para exemplificar a ideia de democracia em sua integridade porque a
democracia transcenderia o Estado: ela se encontra, simultaneamente, em todos os
modos de associação humana dentro da comunidade. Para que a ideia de
democracia seja realizada, por conseguinte, ela precisa produzir efeitos sobre a
família, a escola, a religião, a indústria, além de outras formas de associação
humana.
150

Por sua vez, a ‘democracia política’, isto é, a democracia como um sistema de


governo, com seus arranjos políticos e instituições formais, consistiria meramente
em um mecanismo destinado a assegurar canais efetivos de operação para a ‘ideia’
de democracia.” (2010: 144)

Para que seja concretizada nas relações humanas, a democracia precisa


alcançar todos os modos de associação humana, da família à indústria, da escola à
religião, e é a partir desta ideia que o autor associa o conceito de democracia ao
conceito de comunidade: “(...) a democracia não é uma alternativa a outros
princípios da vida associativa. Ela é a ideia da própria vida em comunidade. Ela é
um ideal no único sentido inteligível de um ideal: ou seja, a tendência e movimento
de alguma coisa que existe levada ao seu limite final, vista como completada,
perfeita” (Dewey, 1954[1927]: 148). Como foi observado acima, são elementos
comuns às perspectivas participativas tanto a defesa do nexo entre democracia e
comunidade como a compreensão do aspecto comunitário da democracia
participativa pelo compartilhamento de experiências e decisões em comum.
A extensão da participação dirige-se a todos os âmbitos da comunidade, os
quais certamente incluem o processo de tomada de decisões sobre políticas
públicas. Em paralelo às funções cotidianas como membros da comunidade, “os
indivíduos possuem a função especificamente política (...) de participar de forma
‘direta’ e ‘ativa’ na regulação dos termos da vida associativa e na busca do bem
comum”, isto é, “a participação na definição, formulação e implementação de
políticas públicas” (Feres Jr. e Pobrebischi, 2010: 147) 69.

______________________________________________
69
Os autores elaboram uma extensa lista dos elementos que consideram comuns às diversas abordagens
contemporâneas da democracia participativa, que inclui quase todos os argumentos explorados acima. Como
são vinte e quatro itens, alguns deles talvez não tenham sido tratados antes e parece valer à pena a
transcrição completa: “1) A defesa de um engajamento cívico, por meio do qual os cidadãos participem do
processo de tomada de decisões políticas no plano nacional e façam parte do processo de formulação de
políticas no plano local; 2) A defesa de que tal engajamento se dê por meio de uma participação direta e ativa
dos cidadãos na tomada de decisões políticas e na administração do espaço social no qual se inserem; 3) A
suposição de que tal participação direta e ativa dos cidadãos não seja passível de mediações, ou seja, que se
dê sem o intermédio de representantes eleitos com a finalidade de agir em seu nome; 4) A expectativa de que
a participação direta e ativa dos cidadãos no processo de tomada de decisões conduza à construção de
consensos que possam eventualmente ser substitutos à prevalência da regra da maioria; 5) A suposição de
que os cidadãos devem agir diretamente em seu próprio nome, fazendo valer seus interesses por meio da
ação coletiva; 6) A compreensão de que tal ação coletiva depende da coordenação da ação individual de cada
cidadão; 7) A compreensão de que a ação individual de cada cidadão envolve a sua atividade cotidiana, isto é,
pressupõe a prática de alguma atividade a ser exercida coletivamente; 8) A suposição de que é no exercício
cotidiano de suas atividades que os cidadãos se educarão para a democracia participativa; 9) A suposição de
que a educação é um componente importante da democracia participativa, devendo ser compreendida como
151

Se o teórico norte-americano John Dewey é considerado fonte de inspiração


para os teóricos da democracia deliberativa, isto se deve à ênfase que concede à
comunicação. A melhoria dos “métodos e condições de debate, discussão e
persuasão” é o principal desafio na concretização do ideal democrático, o que se
aplica tanto para as instituições representativas inevitáveis em qualquer sistema de
governo como para a institucionalização da participação política. Para ele, o maior
problema do público é a descoberta e a identificação de si mesmo – objetivo que
não pode ser cumprido sem a livre divulgação do conhecimento, sem a garantia da
livre associação ou sem a liberdade de argumentar, discutir, consultar e persuadir
racionalmente. Por outro lado, a organização do público, indispensável para a
construção da vida comunitária característica de uma sociedade democrática,
depende da intercomunicação estabelecida em procedimentos compartilhados. Em
conclusão, para Dewey a ciência política possui um papel fundamental nesse
desiderato, ao fornecer o conhecimento da realidade social e os métodos para a
solução dos problemas diagnosticados.

2.3 A perspectiva deliberativa e suas variações

______________________________________________
algo que vai além da instrução escolar formal; 10) A suposição de que o engajamento cívico e a participação
direta e ativa são componentes constitutivos de uma educação para a democracia; 11) A suposição de que,
por mais que a educação desempenhe um papel importante na democracia participativa, ele não é o de
condição ou requisito para a sua realização: a participação política deve estar ao alcance de qualquer cidadão
ordinário, sendo o homem comum o principal sujeito político da democracia participativa; 12) A presunção de
que a auto-organização e a autoadministração dos cidadãos são feitas com base na interação social; 13) A
presunção de que tal interação social se dá a partir de graus diferenciados de elementos comunicativos,
discursivos e deliberativos; 14) A suposição de que a interação social depende, em diferentes graus, de uma
interação face a face; 15) A suposição de que tal interação face a face deve ser estabelecida a partir da
associação dos cidadãos, a ser feita a partir de diferentes graus de institucionalização; 16) A suposição de que
tal associativismo deve dar-se por razões locais e particulares, por meio da agregação dos interesses de
grupos de pessoas que se relacionem justamente por causa da similitude de tais interesses; 17) A suposição
de que o associativismo não deve ter causas essencialmente políticas (por mais que a sua prática leve a uma
determinada forma de organização política, a democracia participativa), bastando para tanto a autogestão dos
interesses daqueles que se associam em torno de um tema (associações científicas, culturais, religiosas etc.)
ou de um espaço (escolas, universidades, fábricas, bairros etc.); 18) A suposição de que tal associação deve
dar-se em diferentes níveis da vida coletiva, não se restringindo ao domínio político; 19) A reivindicação de que
o domínio político não deve se restringir às instituições formais do Estado; 20) A reivindicação normativa de
que aquilo que se chama de política deve transcender o Estado, envolvendo diferentes espaços públicos que
facultem a organização da sociedade civil; 21) A suposição de que tais espaços públicos tenham, muitas vezes
e em diferentes graus, aspectos comunitários; 22) A defesa de um nexo estreito entre os conceitos de
democracia e comunidade; 23) A compreensão de que o aspecto comunitário da democracia participativa
responde, em alguma medida, pelo compartilhamento de uma experiência comum; 24) A aposta de que à
ênfase nas ideias de práxis, atividade e ação corresponde a ênfase no caráter empírico das teorias da
democracia participativa.” (Feres Jr. e Pogrebinschi, 2010: 148-150)
152

A perspectiva democrática de Habermas procura reconstruir, por meio da


teoria do discurso e da centralidade do procedimento deliberativo, os conceitos do
direito e do Estado democrático de direito. Na sua visão, direito e democracia estão
sujeitos aos mesmos procedimentos de validação discursiva, sendo a deliberação
pública o fundamento de legitimidade das decisões coletivas de caráter normativo. O
propósito principal da obra Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade,
publicada originalmente em 1992, é apresentar uma “teoria reconstrutiva da
sociedade” que, situada entre uma teoria sociológica do direito e uma teoria filosófica
da justiça, seja capaz de promover uma reconstrução da normatividade do sistema
de direitos e da ideia de Estado de direito. Nesta seção, como anunciado, são
abordadas as ideias que configuram a vertente habermasiana, as quais são
acompanhadas de comentários sobre outras vertentes teóricas da democracia
deliberativa e sobre os debates gerados a partir das ideias do autor priorizado.
A proposta de Direito e Democracia é formular um modelo teórico sistemático,
baseado em conceitos desenvolvidos em livros anteriores, com destaque para o
Teoria da Ação Comunicativa70. Referindo-se a Direito e Democracia, Walter Reese-
Schäfer observa que a elaboração da obra deve muito às discussões que Habermas
travou no interior de um grupo de estudos composto por teóricos do direito de
Frankfurt. Observa, ademais, que o projeto teórico contido nela pode ser
compreendido como “um caso de aplicação da Teoria da Ação Comunicativa”, uma
vez que nesta última, publicada originalmente em 1981, já estava contida “a tensão
que existe entre facticidade e validade”. Isto ajuda a compreender o posicionamento
de Habermas, que pretende “mediar uma teoria sociológica do direito, que parte dos
fatos do sistema do direito, com uma teoria filosófica da justiça” (Reese-Schäfer,
2009):

______________________________________________
70
Quanto aos livros anteriores, vale mencionar Mudança Estrutural da Esfera Pública (1962) e O Discurso
Filosófico da Modernidade (1985, esp. Capítulo XI), entre outros da imensa obra de Habermas. Depois da
publicação de Direito e Democracia, outros livros deram prosseguimento ao seu pensamento filosófico-político-
democrático, como Verdade e Justificação (1999) e A Ética da Discussão e a Questão da Verdade (2003).
153

“A mediação consiste numa teoria política da democracia deliberativa e da


sociedade civil, pois não são as instituições rígidas constitucionalmente mapeadas
do Estado, mas a soberania da deliberação pública que pode prover uma abertura
suficiente. A teoria normativa da justiça corre o risco de não discernir
suficientemente os fatos graves da realidade política, a teoria sociológica está sob
suspeita de positivismo. A atração do projeto de Habermas consiste em superar,
através de uma teoria integrativa e interdisciplinar, essa dupla redução.” (Ibid.)

Aliás, é o próprio Habermas quem situa o seu esforço intelectual e político


entre estes dois pólos, ou melhor, na tensão existente entre facticidade e validade,
tensão presente tanto no direito como na democracia. De um lado, ele rechaça as
teorias sociológicas e políticas que extraem os princípios normativos das descrições
empíricas do poder, e de outro, aponta para as deficiências resultantes das
dificuldades das teorias normativas que, apoiadas nos princípios do direito racional
moderno, deixam de levar em conta os duros fatos da realidade que desmentem
estes mesmos princípios. Em sua visão crítica, “arrastada para cá e para lá, entre
facticidade e validade, a teoria da política e do direito decompõe-se em facções que
nada têm a dizer umas às outras” (Habermas, 2003[1992], vol. I: 23). Dada a tensão
entre facticidade e validade, a solução para a legitimação das decisões é o
encaminhamento das argumentações para o plano da ética formal. Este movimento
do pensamento habermasiano é tornado possível porque o teórico lança mão da
teoria do agir comunicativo, substituindo a razão prática pela comunicativa: uma
asserção, para ser considerada racional, deve preencher as condições necessárias
para possibilitar o entendimento com outros, a respeito de algo no mundo. Este
“algo” inclui a política legislativa, as decisões judiciais e, cabe ressaltar, as políticas
públicas. A legitimação do próprio Estado de Direito e de seu arcabouço constitutivo
depende do modo como as questões políticas são articuladas, justificadas e
compreendidas pela sociedade.
Por meio da introdução do conceito de “racionalidade comunicativa”, o teórico
apresenta uma solução ao problema da impossibilidade de se sustentar uma
concepção substantiva do bem comum, na qual a noção de “ética discursiva”,
discutida em diversos trabalhos do filósofo, assume um significado crucial em seu
projeto teórico-político. Como resume L. Avritzer (1996: 122):

“Para Habermas, a impossibilidade de se sustentar uma noção unificada de bem


comum tem como implicação a necessidade de transitar para o domínio das éticas
formais ou discursivas. Tais éticas estariam baseadas na ideia de que a
argumentação pública envolve um princípio de universalização que tem um
conteúdo ético-formal (Habermas, 1990). Desse modo, se o ponto de partida
habermasiano é a impossibilidade da associação da racionalidade com uma noção
154

substantiva de bem comum, o ponto de chegada é a constatação de um princípio de


universalização presente nas próprias regras do discurso, princípio esse capaz de
fundamentar a igualdade da prática democrática.”

A exploração da linguagem enquanto medium é a saída teórica encontrada


por Habermas para lidar com o pluralismo político e social, isto é, um
procedimentalismo ampliado, de base discursiva, é a solução para o ineludível
caráter plural das sociedades democráticas complexas. Esta ampliação do
procedimentalismo é feito com base na sua teoria do agir comunicativo. Nas
palavras de B. Santos e L. Avritzer, isto é feito por meio de um “princípio de
deliberação societária que Habermas denomina de princípio D: ‘apenas são válidas
aquelas normas-ações que contam com o assentimento de todos os indivíduos
participantes de um discurso racional’”. Os estudiosos acrescentam que, “para ser
plural, a política tem de contar com o assentimento desses atores em processos
racionais de discussão e deliberação” (Santos e Avritzer, 2002: 52). Em uma
democracia deliberativa, para concluir, uma norma é valida apenas depois da sua
submissão a um processo social de validação discursiva, no qual a pretensão de
validade dessa norma está sujeita ao debate púbico concebido como processo livre
e igualitário de inclusão do cidadão na formação argumentativa.
Habermas busca conciliar a preservação dos valores democráticos à forma
administrativa do Estado moderno. Em sua elaboração teórica, não chega a
desprezar a importância do sistema político-administrativo, mas ele deixa de ser o
centro da sociedade, sendo concebido como mais um sistema comunicativo de
ações, entre outros sistemas sociais coexistentes, com destaque para o mercado e a
sociedade civil. A esfera do sistema político ou do Estado, organização política onde
se situa o “poder administrativo”, é concebida em pé de igualdade ao lado dessas
duas esferas: a “esfera do mercado”, relativa ao sistema econômico de comércio, ou
simplesmente designada como o “dinheiro”; e a “esfera pública”, que se diferencia do
sistema administrativo do Estado e do sistema econômico da sociedade burguesa,
constituída pela “sociedade civil”, ou simplesmente a “sociedade dos cidadãos”.
Como recorda Reese-Schäfer, “essa tríade de Estado, mercado e sociedade civil
assume o papel do modelo de Estado, sociedade burguesa e esfera pública,
conhecido de Mudança Estrutural da Esfera Pública”, e, assim, “ao lado dos recursos
dinheiro e poder administrativo, entra em cena o terceiro: solidariedade, ou seja,
poder comunicativo” (2009: 94). Embora inspirado na obra anterior, de 1962, na qual
155

Habermas analisa processos de decadência da esfera pública burguesa, a obra


Direito e Democracia inova ao trazer um conceito normativo de esfera pública.
Referindo-se à obra mais recente, o estudioso constata que:

“(...) Habermas fez a tentativa, mais de 30 anos depois de seu pioneiro [Mudança
Estrutural da Esfera Pública, 1962], de delinear um conceito normativo de esfera
pública como base da teoria da democracia. Uma vez que, em conceitos anteriores
de esfera pública, nunca ficou totalmente claro se com isso não era estilizada
nostalgicamente uma determinada forma que, há muito tempo, entrou para a história
das ideias, de esfera pública do Iluminismo, que provavelmente nunca existiu desse
modo, Habermas completa aqui o passo rumo a uma ideia da democracia
deliberativa, na qual os processos de formação de opinião recebem tratamento
equivalente aos da decisão administrativa. Com isso, ele se atém às instituições já
presentes em 1962. A democracia deliberativa é, ao mesmo tempo, parâmetro
normativo do presente e projeto utópico-real do futuro.” (W. Reese-Schäfer, 2009:
91)

Ao discutir o conceito de política deliberativa, Habermas se preocupa em


fornecer um conceito procedimental que sirva de guia para as pesquisas empíricas,
e, para tanto, o autor discute as conexões ou “pontes que permitem passar dos
modelos normativos de democracia para os das teorias sociais da democracia, e
vice-versa” (Habermas, 2003[1992]: 10). Ele recusa a contraposição entre ideal e
realidade, uma vez que o conteúdo normativo associado ao direito e à democracia já
está inserido na própria facticidade social dos processos observáveis. Por isso, são
insuficientes os modelos de democracia empiristas, para os quais a validade das
regras democráticas é extraída da constatação empírica de sua estabilidade no
tempo. Esses modelos reduzem a legitimidade democrática do poder e do direito, ao
utilizar o raciocínio típico de que “assim como o poder em geral se manifesta na
superioridade empírica do interesse mais forte, o poder do Estado se manifesta na
estabilidade da ordem por ele mantida: a estabilidade vale como medida para a
legitimidade” (2003[1992]: 12).
O autor critica a “estratégia deflacionária” de Norberto Bobbio, uma das
referências mais citadas na defesa da concepção procedimental mínima, examinada
exaustivamente no primeiro capítulo desta tese. De acordo com Habermas71, o

______________________________________________
71
Vale transcrever o trecho no qual Habermas esboça a concepção de Bobbio, citando-o diretamente: “Tendo
tais constatações céticas como pano de fundo, Bobbio tenta determinar, com muita precaução, as regras do
jogo democrático: ‘Eu parto da premissa segundo a qual a única maneira de conduzir uma discussão razoável
156

cientista político italiano utiliza uma sequência de constatações céticas que servem
para esvaziar, degrau por degrau, as supostas promessas do conceito “clássico” de
democracia. Para Habermas, a definição proposta por Bobbio “não toca no cerne de
uma compreensão genuinamente procedimentalista da democracia”. O pensador
alemão dá as seguintes razões para recusar tal definição e cita um pensamento de
John Dewey, de O Público e Seus Problemas:

“A chave desta concepção consiste precisamente no fato de que o processo


democrático institucionaliza discursos e negociações com o auxílio de formas de
comunicação as quais devem fundamentar a suposição da racionalidade para todos
os resultados obtidos conforme o processo. Ninguém melhor do que John Dewey
para destacar essa ideia: ‘Os críticos têm razão em afirmar que a regra da maioria,
enquanto tal, é absurda. Porém, ela nunca é pura e simplesmente uma regra da
maioria: os debates anteriores, a modificação dos pontos de vista para levar em
conta as opiniões das minorias... Noutras palavras, a coisa mais importante consiste
em aprimorar os métodos e condições do debate, da discussão e da persuasão’. A
política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma
formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e integradora
graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados. Por isso, o nível
discursivo do debate público constitui a variável mais importante. Ela não pode
desaparecer na caixa preta de uma operacionalização que se satisfaz com
indicadores amplos.” (Habermas, 2003[1992], vol. II: 27-28 – com grifo no original)

Um conceito central da sua ideia procedimental deliberativa de democracia é


o de “esfera pública”, a qual “pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (Habermas, 2003[1992], vol. II:
92). No entanto, a esfera pública não pode ser concebida como uma instituição, nem
como uma organização, porque “ela não constitui uma estrutura normativa capaz de
diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma
organização, etc.”, muito menos como um sistema, pois ainda que “seja possível

______________________________________________
sobre a democracia, entendida como uma forma de governo distinta de todas as outras formas autocráticas,
consiste em considerá-la através de uma série de regras... que estabelecem quem está autorizado a tomar
decisões envolvendo a coletividade e que tipo de procedimentos devem ser aplicados’. As democracias
preenchem o necessário ‘mínimo procedimentalista’ na medida em que elas garantem: a) a participação
política do maior número possível de pessoas privadas; b) a regra da maioria para decisões políticas; c) os
direitos comunicativos usuais e com isso a escolha entre diferentes programas e grupos dirigentes; d) a
proteção da esfera privada. A vantagem dessa definição minimalista consiste no seu caráter descritivo. Ela
abrange o conteúdo normativo de sistemas políticos já existentes nas sociedades ocidentais. Por isso, Bobbio
pode chegar à seguinte conclusão: ‘O conteúdo mínimo do Estado democrático não se modificou: ele é
constituído pelas garantias das liberdades de base, pela existência de partidos que concorrem entre si, por
eleições periódicas com sufrágio universal, por decisões tomadas coletivamente ou resultantes de
compromissos ... ou tomadas sobre a base do princípio majoritário, ou como resultado de debates públicos
entre as diferentes facções, ou entre os aliados de uma coalizão governamental’.” (Habermas, 2003[1992], vol.
II: 26-27)
157

delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes


abertos, permeáveis e deslocáveis” (Ibid.). Em vez disso, para ele “a esfera pública
constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo
entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo,
não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana”.
Ainda que Habermas trate de muitos temas, como as regras do Estado de
direito, a lógica da separação de poderes, a racionalidade do conceito moderno de
jurisdição, entre outros temas, a sua teoria democrática se diferencia, em especial,
pelo lugar ocupado pela ideia de sociedade civil. Esclarece o autor que, “hoje em
dia, o termo ‘sociedade civil’ não inclui mais a economia constituída através do
direito privado e dirigida através do trabalho, do capital e dos mercados de bens”
(Habermas, 2003[1992], vol. II: 99). No sentido habermasiano, o núcleo institucional
da sociedade civil “é formado por associações e organizações livres, não estatais e
não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública
nos componentes sociais do mundo da vida”. Trata-se de uma definição inspirada na
realidade contemporânea, em que o conceito assumiu significado diverso do que
possuía, por exemplo, na obra de filósofos dos séculos XVIII e XIX. Isto porque, na
atualidade,

“A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais


captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas,
condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo
da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os
discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de
interesse geral no quadro das esferas públicas. Esses ‘designs’ discursivos refletem,
em suas formas de organização, abertas e igualitárias, certas características que
compõem o tipo de comunicação em torno da qual se cristalizam, conferindo-lhe
continuidade e duração.” (Ibid.)

Habermas introduz ainda o conceito de racionalidade comunicativa, de


natureza intersubjetiva, o que ressalta a importância da dimensão cultural da vida
democrática, ao lado da racionalidade sistêmica, esta última de natureza cognitivo-
instrumental. Assim, o teórico vai além da noção instrumental de racionalidade,
associada a Max Weber, em cujo pensamento a burocratização é vista como parte
necessária do processo de racionalização ocidental, permanecendo a racionalidade
“estruturada em torno da lógica estratégico-competitiva e de uma forma impessoal
de coordenação da ação” (Avritzer, 1996: 121). À racionalidade instrumental
weberiana, racionalidade meio-fins, portanto, é adicionada essa outra forma de
158

racionalidade, a racionalidade comunicativa, que não estrutura o que Habermas


denomina como a “esfera do Estado”, mas um ambiente discursivo mais amplo, que
se refere à própria “esfera pública”. No trecho a seguir, Habermas destaca que a
sociedade civil deve contribuir para uma racionalização discursiva das decisões,
direcionando as ações do poder administrativo do Estado:

“A teoria do discurso coloca em jogo uma outra ideia: para ela processos e
pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade
funcionam como a comporta mais importante para a racionalização discursiva das
decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei.
Racionalização significa mais do que simples legitimação, porém menos do que a
constituição do poder. O poder disponível administrativamente modifica sua
composição durante o tempo em que fica ligado a uma formação democrática da
opinião e da vontade, a qual programa, de certa forma, o exercício do poder político.
Independentemente disso, somente o sistema político pode ‘agir’. Ele constitui um
sistema parcial, especializado em decisões que obrigam coletivamente, ao passo
que as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma rede ampla de
sensores que reagem à pressão de situações problemáticas da sociedade como um
todo e estimulam opiniões influentes. A opinião pública, transformada em poder
comunicativo segundo processos democráticos, não pode ‘dominar’ por si mesma o
uso do poder administrativo; mas pode, de certa forma, direcioná-lo” (Habermas,
2003[1992]: 23).

Neste sentido, o poder comunicativo não pode dominar, mas deve prover
certos direcionamentos, através da influência no âmbito da sociedade civil.
Habermas defende um conceito de democracia “incompatível com o conceito de
sociedade centrada no Estado” e analisa as aproximações e diferenças entre os três
modelos de democracias – tema ao qual dedicou um artigo em 1994 –, os modelos
liberal, republicano e deliberativo. A discussão destes “três modelos normativos de
democracia” é um caminho interessante para compreender as relações entre as
perspectivas e a inserção da teoria deliberativa nos debates democráticos. O autor
começa comparando os dois modelos de democracia, o liberal e o republicano, para
contrapor o modelo deliberativo que ele sustenta. Na citação a seguir, ele sintetiza a
sua descrição da política e do processo democrático, de acordo com cada um destes
dois modelos:

“Segundo a concepção liberal o processo democrático cumpre a tarefa de programar


o Estado no interesse da sociedade, entendendo-se o Estado como o aparato de
administração pública e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma
economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu trabalho social.
A política (no sentido da formação política da vontade dos cidadãos) tem a função
de agregar e impor os interesses sociais privados perante um aparato estatal
especializado no emprego administrativo do poder político para garantir fins
coletivos. Segundo a concepção republicada a política não se esgota nessa função
de mediação. Ela é um elemento constitutivo do processo de formação da sociedade
como um todo. A política é entendida como uma forma de reflexão de um complexo
de vida ético (no sentido de Hegel). Ela constitui o meio em que os membros de
159

comunidades solidárias, de caráter mais ou menos natural, se dão conta de sua


dependência recíproca e, com vontade e consciência, levam adiante essas relações
de reconhecimento recíproco em que se encontram, transformando-as em uma
associação de portadores de direitos livres e iguais.” (Habermas, 1995: 39-40, grifo
no original)

Em sua análise do pensamento democrático de Habermas, Avritzer identifica


duas questões que o contextualizam, ambas tratadas de modo insatisfatório pelas
teorias anteriores – mais especificamente, pelo realismo de M. Weber e J.
Schumpeter e pelo pluralismo de A. Downs e R. Dahl. De um lado, a questão do
papel da burocracia, ou “o problema da expansão da burocracia e da contradição
entre democracia e ampliação da dimensão estatal”, e de outro lado, a questão da
extensão do “conceito de normatividade do plano individual em direção à
organização da sociedade” (1996: 119-121). Ambas as preocupações são
delimitadas por Habermas como parte da problemática da racionalidade. A resposta
dada por Habermas, no entanto, é fundamentalmente distinta das que são dadas
pelos teóricos anteriores, por introduzir uma nova forma de racionalidade, diversa da
racionalidade instrumental weberiana, que tem continuidade em Schumpeter e nas
perspectivas influenciadas pelo método da escolha racional, como é o caso dos
outros dois teóricos, entre tantos outros estudiosos.
Para concluir esta breve exposição de Habermas, vale transcrever o trecho
em que Avritzer destaca as críticas do filósofo à perspectiva teórica de Dahl.
Conforme o estudioso brasileiro, “a forma como Dahl relaciona as características
necessárias ao nível da sociedade para o desenvolvimento das poliarquias aponta
na direção dos limites da sua teoria”. Mais especificamente, dois seriam esses
limites:

“o primeiro deles é que não fica claro que tipos de práticas seriam necessárias para
se alcançar o tipo de sociedade empiricamente constatada enquanto favorecedora
da democracia. O segundo problema é que a teoria dahlsiana, ao postular
empiricamente os fundamentos societários da democracia, não consegue converter
a sua teoria da democracia em uma teoria da democratização devido à ausência de
uma concepção sobre as práticas capazes de tornar uma sociedade normativamente
desejável.” (Avritzer, 1996: 118)

O autor adiciona a esses dois limites da teoria de Dahl um terceiro, que se


refere à irrelevância do conceito de “cultura política”, “amplamente ausente da
estrutura da análise dahlsiana em A Democracia e seus Críticos” (Avritzer, Ibid.). Em
sua opinião, ele deixa de lado esta dimensão coletiva ou intersubjetiva da
democracia, o que é compreensível, afinal, trata-se de uma teorização que se vale
160

de um individualismo metodológico. Por isso, Dahl limita o aspecto normativo de sua


teoria à reintrodução do princípio da autonomia moral, isto é, a democracia se
justifica pela possibilidade de “viver sob a legislação de nossa própria escolha, [o
que] facilita o desenvolvimento dos cidadãos como seres morais e sociais
capacitando-os a defender e ampliar os seus direitos, interesses e preocupações
mais fundamentais” (R. Dahl, 1989 apud Avritzer, 1996: 117)72.
Habermas não é o único, tampouco foi o primeiro teórico da deliberação. A
título de conclusão, podem-se citar algumas contribuições alternativas e críticas à
perspectiva habermasiana, embora também associadas à democracia deliberativa.
Ao que tudo indica, Bernard Manin foi o responsável pelo impulso em prol da
deliberação democrática, em artigo publicado originalmente em francês, mas
traduzido para o inglês em 1987. O autor distinguiu dois sentidos do conceito de
“deliberação”, enquanto “processo de discussão” e como “processo de decisão”,
sendo o segundo sentido dependente do primeiro, tanto em termos teóricos como
práticos, quando se trata de conferir legitimidade às decisões democráticas. Para
ele, a deliberação é considerada livremente conduzida na medida em que “cada
pessoa, que pode ou não estar convencida por um dado argumento”, tem à sua
disposição a escolha entre diversas alternativas: “é por isso que se faz necessário
que os indivíduos tenham uma escolha genuína entre diferentes alternativas, todas
as quais devem parecer realisticamente possíveis” (Manin, 1987: 357).
A partir da fixação do conceito de deliberação no centro das discussões
democráticas, Manin contribuiu para alterar radicalmente a perspectiva comum das
teorias liberais e do pensamento democrático, sustentando que “a fonte da
legitimidade não é vontade predeterminada dos indivíduos, mas sim o processo de
sua formação, isto é, a própria deliberação” (1987: 364). Ou seja, a legitimidade das
normas e decisões democráticas resulta não da expressão da vontade geral

______________________________________________
72
Em nota de rodapé, Avritzer identifica um trecho que seria uma exceção à notável ausência dos elementos
culturais na teoria de Dahl: “(...) crenças, atitudes, e predisposições formam uma cultura política ou talvez
diversas culturas políticas no interior das quais os indivíduos são socializados em vários níveis. Um país com
uma cultura política fortemente favorável à poliarquia será capaz de superar crises que podem levar ao
rompimento da poliarquia em um país com uma cultura política menos favorável” (Dahl apud Avritzer, Ibid.). O
que não fica claro, na opinião de Avritzer, é “quais são as condições, no nível da sociedade, capazes de levar
à constituição de uma cultura política favorável à poliarquia”.
161

rousseauniana, mas da deliberação para a formação da vontade de todos. A


liberdade individual consiste, antes de tudo, na possibilidade de chegar a decisões
por meio de um processo de exame e comparação entre as várias soluções
propostas, em torno das quais são elaboradas argumentações que caracterizam a
deliberação pública. O autor justificava assim o seu projeto, destacando o papel do
processo deliberativo na formação da vontade:

“Se as decisões políticas são caracteristicamente impostas a todos, parece razoável


buscar, como uma condição essencial para a legitimidade, a deliberação de todos
ou, mais precisamente, o direito de todos a participar na deliberação. Devemos,
então, desafiar a conclusão fundamental de Roussau, Sièyes e Rawls: uma decisão
legítima não representa a vontade de todos, mas é a que resulta da deliberação de
todos. É o processo pelo qual a vontade de todos é formada que confere
legitimidade ao resultado, em lugar da soma das vontades previamente formadas.”
(1987: 351-352)

Outro autor que contribuiu, ainda nos anos 80, para a formação da massa
crítica deliberativa foi Joshua Cohen. A intenção de Cohen é caracterizar o
procedimento deliberativo em termos ideais e intuitivos, para relacioná-lo a uma
visão mais substantiva da democracia deliberativa. Para ele, a noção de democracia
deliberativa está enraizada no ideal intuitivo de uma associação democrática na qual
a justificação dos termos e condições da associação advém do argumento e da
razão pública compartilhada por cidadãos iguais. De acordo com o teórico, “os
cidadãos em tal ordem compartilham um compromisso à resolução dos problemas
de escolha coletiva através da argumentação pública, e consideram as instituições
básicas [dessa ordem] como legítimas, na medida em que elas estabelecem o
enquadramento para a livre deliberação pública.” (J. Cohen, 1989). A legitimidade
dos resultados, isto é, das decisões em matéria de políticas públicas, é reconhecida
por sua perspectiva teórica na medida em que essas decisões recebam o
assentimento refletido dos indivíduos, o que é feito por meio da participação em uma
deliberação autêntica, à qual podem concorrer todos aqueles sujeitos à decisão em
questão.
O raciocínio teórico do autor segue duas etapas, no artigo mencionado:
primeiramente, ele estabelece as cinco características principais de uma “concepção
formal” ou de um “ideal formal de democracia deliberativa”. As cinco características
formais são as seguintes, sendo as condições substantivas aquelas transcritas na
citação seguinte:
162

“A concepção formal de uma democracia deliberativa possui cinco características


principais:
D1. Uma democracia deliberativa é uma associação dinâmica e independente, cujos
membros esperam que assim continue em direção ao futuro indefinido.
D2. Os membros da associação compartilham (e é conhecimento comum que eles
compartilham) a visão de que os termos apropriados dessa associação fornecem um
enquadramento para ou são o resultado da sua deliberação. Isto é, eles
compartilham um compromisso de coordenar suas atividades dentro de instituições
que tornam a deliberação possível e de acordo com as normas às quais eles
chegam por meio da deliberação. Para eles, a deliberação livre entre iguais é a base
da legitimidade.
D3. Uma democracia deliberativa é uma associação pluralística. Os membros
possuem preferências, convicções e ideais diversos a respeito da conduta de suas
próprias vidas. Ao mesmo tempo em que compartilham o compromisso à resolução
deliberativa dos problemas de escolha coletiva (D2), eles também possuem objetivos
divergentes, e não pensam que algum conjunto particular de preferências,
convicções ou ideais é mandatório.
D4. Porque os membros de uma associação democrática consideram os
procedimentos deliberativos como a fonte de legitimidade, é importante para eles
que os termos dessa associação não meramente sejam os resultados de suas
deliberações, mas também sejam manifestadas a eles como tal. Esses membros
preferem instituições nas quais as conexões entre a deliberação e os resultados são
evidentes, a instituições nas quais essas conexões são menos claras.
D5. Os membros se reconhecem uns aos outros como possuidores de capacidades
deliberativas, isto é, as capacidades requeridas para entrar no intercâmbio público
de razões e para agir sobre o resultado de tal argumentação pública.” (J. Cohen,
1989)

Depois de apresentar essas cinco características, ele afirma que há três


aspectos gerais de instituições ou procedimentos deliberativos: a necessidade de
decidir sobre uma agenda; de propor soluções alternativas aos problemas da
agenda, as quais são baseadas em razões; e de concluir pela definição de uma
alternativa. Nos seus próprios termos, “uma teoria da democracia deliberativa visa a
dar substância a este ideal formal pela caracterização das condições que devem ser
alcançadas, se uma ordem social é para ser manifestamente regulada pelas formas
deliberativas de escolha coletiva”, Cohen propõe o que chama de parte mais
“substantiva” da sua teoria:

“Uma concepção democrática pode ser representada em termos dos requisitos


estabelecidos em tal procedimento. Em particular, os resultados são
democraticamente legítimos se, e somente se, eles podem ser objeto de um acordo
livre e argumentado entre iguais. O procedimento deliberativo ideal é um
procedimento que captura este princípio.
I1. A deliberação ideal é livre se ela satisfaz a duas condições. Primeiro, os
participantes consideram a si mesmos vinculados somente pelos resultados de suas
deliberações e pelas pré-condições daquela dessa deliberação. Sua consideração
das propostas não é constrangida pela autoridade de normas ou requisitos
anteriores. Segundo, os participantes supõem que eles podem agir a partir dos
resultados [deliberados], tomando o fato de que certa decisão foi atingida pela
deliberação e é razão suficiente para cumpri-la.
I2. A deliberação é argumentada na medida em que as partes são requeridas a
postular as razões para avançar as propostas, apoiando-as ou criticando-as. Elas
dão razões com a expectativa de que essas razões (e não, por exemplo, o seu
poder) configurarão o destino das propostas. Uma deliberação ideal
I3. Em uma deliberação ideal, as partes são iguais formalmente e substantivamente.
Eles são formalmente iguais porque as regras que regulam o procedimento não
163

distinguem os indivíduos. Todos com capacidades deliberativas têm igual assento


em cada estágio do processo deliberativo. Cada um pode incluir temas na agenda,
propor soluções e oferecer razões em suporte ou como crítica às propostas. E cada
um possui voz igual na decisão. Os participantes são substantivamente iguais
porque a distribuição de poder e de recursos existente não moldam suas chances de
contribuir para a deliberação, nem essa distribuição exerce um papel de autoridade
sobre a deliberação. (...)
I4. Finalmente, a deliberação ideal visa a alcançar um consenso motivado
racionalmente – encontrar razões que são persuasivas a todos que estão
comprometidos em agir sobre os resultados de uma avaliação livre e argumentada
das alternativas, entre iguais. Mesmo sob condições ideais não há promessa de que
haverá razões consensuais. Se não houver, então a deliberação se conclui com uma
votação sujeita a alguma forma de voto majoritário. Entretanto, o fato de que ela
pode se concluir assim não elimina a distinção entre as formas deliberativas de
escolha coletiva e as formas que agregam preferências não-deliberativas. As
consequências institucionais são provavelmente diferentes nos dois casos, e os
resultados da votação entre aqueles que estão comprometidos a encontrar razões
que sejam persuasivas a todos irão provavelmente diferir dos resultados de uma
agregação que procede na ausência deste compromisso.” (Cohen, 1989)

Em sentido semelhante aos de Habermas e de Cohen, Seyla Benhabib, uma


das mais influentes teóricas deliberativas contemporâneas, defende que “a
legitimidade em sociedades democráticas complexas deve ser pensada como
resultando da deliberação livre e desimpedida de todos sobre assuntos de interesse
comum” (1996: 68). Nesse sentido, a autora sustenta que a ideia fundamental da
democracia deliberativa:

“é a de que somente podem ser ditas válidas (isto é, moralmente vinculantes)


aquelas normas (isto é, regras gerais de ação e arranjos institucionais) que poderiam
receber a anuência de todos aqueles afetados por suas consequências, se tal
acordo fosse alcançado como o resultado de um processo de deliberação que tenha
as seguintes características: 1) a participação na deliberação é regulada pelas
normas de igualdade e simetria; todos têm as mesmas chances de iniciar atos de
fala, questionar, interrogar e abrir o debate; 2) todos têm o direito de questionar os
tópicos fixados no diálogo; e 3) todos têm o direito de introduzir argumentos
reflexivos sobre as regras do procedimento discursivo e o modo pelo qual elas são
aplicadas ou conduzidas. Não há prima facie regras que limitem a agenda da
conversação, ou a identidade dos participantes, contanto que cada pessoa ou grupo
excluído possa mostrar justificadamente que são afetados de modo relevante pela
norma proposta em questão” (S. Benhabib, 1996: 70).

Por fim, cabe mencionar uma defensora contemporânea da democracia


deliberativa, cuja visibilidade na literatura tem crescido à medida que aumentam as
críticas “internas”, por assim dizer, ao pensamento habermasiano. É bem conhecido,
por exemplo, o debate entre Nancy Fraser e Habermas em torno da extensão do
conceito de “espaço público”, desde a década de 1990. Na opinião de Fraser, a
concepção de “público” de Habermas é limitada. Em sua argumentação, Fraser
argumenta que a análise de Habermas está inscrita na tradição liberal de esfera
pública, e por isso traz consigo
164

“uma premissa normativa subjacente, a saber, que o confinamento institucional da


vida pública a uma esfera pública única e totalmente abrangente é uma situação
positiva e desejável, ao passo que a proliferação de uma multiplicidade de públicos
representa um afastamento da democracia, em vez do avanço em sua direção”
(Fraser, 1993 apud Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998: 42).

Em seu lugar, Fraser propôs o conceito de “contrapúblicos subalternos”,


definidos como “arenas discursivas paralelas onde membros dos grupos sociais
subordinados inventam e circulam contradiscursos, de modo a formular
interpretações oposicionais de suas identidades, seus interesses e suas
necessidades” (Fraser, Ibid.). Isto implica em uma ampliação do olhar do analista
político da democratização. Se Habermas propôs uma ampliação do espaço do
Estado para o espaço público, mais abrangente do que o primeiro, Fraser propõe a
ampliação do olhar, para as múltiplas arenas que são construídas ou apropriadas
pelos movimentos sociais para avançar suas políticas culturais.
Portanto, é possível identificar pelo menos duas perspectivas dentro da
tradição deliberativa impulsionada pelo pensamento de Habermas. De um lado, a
ampliação do político é efetuada no sentido de incorporar uma noção de “espaço
público”. A definição das políticas públicas não deve se limitar à lógica meramente
burocrático-estatal, mas sim incluir uma “esfera pública”, arena discursiva mais
ampla, na qual são deliberadas as questões que interessam aos diversos atores e
movimentos sociais. De outro lado, a partir das críticas elaboradas à limitação da
esfera pública aos movimentos sociais que se desenvolveram nas democracias dos
países desenvolvidos, uma segunda tradição deliberativa propõe uma ampliação
ainda maior da arena discursiva, para incluir “públicos alternativos” ou
“contrapúblicos subalternos”, para mencionar o conceito desenvolvido por Fraser.
Cabe adicionar que, ao contrário da primeira tradição, em que a esfera pública é
associada a um valor positivo, no caso da tradição encampada por Fraser esses
contrapúblicos nem sempre são virtuosos, podendo ser muitas vezes novos espaços
com suas próprias lógicas de exclusão e marginalização. De qualquer modo, o que
essas duas vertentes impulsionadas pelo debate Fraser-Habermas têm em comum é
a defesa de uma reconceituação ou ampliação do “político”, significando uma ruptura
significativa nos caminhos que vinham sendo seguidos pelo pensamento
democrático desde o final da Segunda Guerra Mundial, como se buscou explorar
nestes dois primeiros capítulos.
165

Pela análise da literatura teórica selecionada, parece razoável argumentar


que os conceitos de representação, participação e deliberação não precisam
permanecer restritos a diferentes teorias, mas sim precisam ser todos incluídos em
cada uma das perspectivas teóricas analisadas nos dois primeiros capítulos. Cada
uma delas precisa trabalhar estes conceitos, como outros conceitos políticos
associados à ideias de democracia ou democratização. Nestes últimos parágrafos,
faz-se um esforço de síntese sobre estas diferentes visões da teoria democrática, o
qual é organizado sinopticamente no Quadro 2, que aparece na página final deste
capítulo.
Pela perspectiva realista, como é feita a representação democrática? Por
meio do voto majoritário, nas eleições presidenciais, e por meio da escolha de
representantes legislativos aos quais compete exercer o controle político da
burocracia, nos termos de Weber. Assim, as decisões estão concentradas nos
governos e burocracias submetidas formalmente à chefia política dos governantes
indicados pela escolha majoritária, enquanto o Legislativo deve funcionar como um
contrapeso à concentração do poder no Executivo. A participação social consuma-se
com o ato de votar, escolhendo os líderes executivos e os legisladores, sendo
possível identificar diferentes posições dentro do realismo, mas que coincidem neste
ponto de partida. Como se viu, para os elitistas o sufrágio universal, não modificaria
a prevalência da minoria sobre maioria, para Weber a manifestação majoritária dava
conteúdo não autoritário à liderança carismática, e Schumpeter chegava ao extremo
de afirmar que outras formas de participação seriam antidemocráticas. Para os três
argumentos realistas, as demais formas de participação devem ser restringidas. A
deliberação está restrita, na prática democrática, aos círculos decisórios do
Executivo, ou, no máximo, ao Legislativo, quando for o caso de haver envolvimento
efetivo dos parlamentos nas decisões de políticas públicas. Aqueles que
efetivamente tomam as decisões apenas traduzem os resultados de suas escolhas
em justificativas que são apresentadas ao público.
Pela perspectiva pluralista, nas vertentes da teoria econômica de Downs ou
do neopluralismo de Dahl, é também o voto majoritário que confere legitimidade às
decisões de políticas públicas, uma vez que as eleições conferem uma espécie de
folha em branco para os grupos políticos vitoriosos, que representam politicamente a
maioria, tornando formalmente presente a sua ausência de fato. Nas vertentes mais
ligadas a Pateman ou à elaboração inicial de Dahl, a representação dos diversos
166

grupos e interesses sociais é produzida pelo aumento da inclusão política nas


instituições decisórias, o que lhes confere eventualmente capacidade de influência
sobre essas decisões e responsividade pelas escolhas de políticas públicas
adotadas. A ideia de participação já costuma ocupar o centro das atenções destas
últimas vertentes, não se admitindo a sua restrição às eleições periódicas com
sufrágio universal, pois estes teóricos sustentam a ampliação dos mecanismos de
participação política, de forma a se incluir politicamente a pluralidade de interesses
sociais. A deliberação, nestas instituições, torna-se mais inclusiva, na medida em
que as instâncias decisórias são concebidas como arenas para o processamento
dos interesses plurais diversos, os quais são objeto de negociação com vistas a
agregar essa pluralidade política. É no interior dessas arenas deliberativas que
agentes estatais e não-estatais podem sustentar suas preferências políticas.
Pela perspectiva deliberativa, nas versões de Habermas, Manin, Cohen e
Benhabib, entre outros, a representação é realizada, na prática, por meio da
apresentação das diferentes opiniões, juízos e preferências da sociedade civil, isto
é, pode-se conceber uma espécie de representação de discursos. A participação
nas esferas deliberativas é fundamental tanto para a tomada de decisões como para
a aceitação das decisões, pois é por meio do direito a participar das discussões
feitas na esfera pública que a sociedade civil pode apresentar as suas preferências
fundamentadas em argumentos aptos a persuadir a todos interessados nas políticas
públicas em questão. Finalmente, o conceito de deliberação ocupa o centro das
atenções dos teóricos desta perspectiva. O procedimento deliberativo, um processo
livre, inclusivo e igualitário de argumentação racional, é considerado a experiência
democrática decisiva e tomada como o meio privilegiado para a tomada de decisões
em políticas públicas.
167

3 PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE


ARGENTINA E BRASIL

“Contemporary social scientists typically take a ‘snapshot’ view of political life, but
there is often a strong case to be made for shifting from snapshots to moving
pictures. This means systematically situating particular moments (including the
present) in a temporal sequence of events and processes stretching over extended
periods. Placing politics in time can greatly enrich our understanding of complex
social dynamics.”
Paul Pierson

Este capítulo retoma o contexto histórico das últimas décadas do século XX,
no qual se inserem as trajetórias de política externa analisadas no próximo capítulo,
com a preocupação de descrever condições políticas e socioeconômicas que
antecederam e, em alguma medida, deram origem às iniciativas de integração
exploradas no próximo capítulo. Nessas condições antecedentes são identificadas
algumas semelhanças e diferenças dos casos da Argentina e do Brasil, em relação a
dois conjuntos de questões: primeiro, os processos de liberalização e
democratização política ocorridos nos anos 70 e 80, as características e trajetórias
das instituições e organizações políticas consideradas mais relevantes naquele
contexto e a formação dos primeiros governos civis pós-ditatoriais; segundo, os
principais desafios políticos e econômicos enfrentados pelos governos de Raúl
Alfonsín, na Argentina (1983-1989), e José Sarney, no Brasil (1985-1990),
terminando o capítulo com uma discussão sobre os padrões de tomada de decisão e
o início da implantação das medidas neoliberais nestes dois países. Considera-se
que as condições antecedentes são fundamentais para a análise das trajetórias das
políticas de integração regional subsequentes, pois essas trajetórias não se
desenvolvem no vazio, mas em realidades políticas plenas de experiências
passadas e estruturas historicamente construídas, cujo peso jamais se pode
desprezar.
Os anos 1980 foram escolhidos como o período para iniciar a análise das
condições antecedentes por se considerar que naquela década ocorreram as
168

dinâmicas políticas decisivas para o término das ditaduras de ambos os países. Mas
o principal objetivo é recompor as trajetórias políticas da Argentina e do Brasil
durante o período que precede as novas experiências de integração dos dois países,
a partir dos anos 90. Como dito, pretende-se descrever as condições políticas,
econômicas e sociais em que se encontravam os dois países em meados dos anos
80, quando retornam à democracia, mesmo reconhecendo que algumas dinâmicas
lhes são anteriores. Por isso, eventualmente serão mencionados eventos, processos
ou personagens de décadas anteriores. Mas como não se pode retornar ad infinitum
na história política das sociedades analisadas, é preciso tomar a difícil decisão do
momento inicial da análise. Neste caso, a decisão foi recompor as respectivas
trajetórias políticas dos regimes militares, a partir dos momentos de crise. Assim, são
apresentadas aqui as principais condições subjacentes aos processos de transição à
democracia dos dois países e aos primeiros governos civis após o último período de
regime militar – Argentina, 1976-1983, e Brasil, 1964-1985. Entende-se que essas
transições foram capazes de reconfigurar as arenas políticas de ambos os países,
mesmo quando houve alguns elementos de continuidade com relação às
experiências ditatoriais ou mesmo em relação às experiências anteriores às últimas
ditaduras.
A análise a seguir leva em conta o fato de que se está lidando com
similaridades e diferenças, ao utilizar a estratégia comparativa, que implica na
reconstrução narrativa e analítica dos percursos seguidos pelos dois países nestas
últimas duas décadas. Naturalmente, há muitos elementos em comum na história
destes dois países, o que desde há muito justificou a construção de ideias como a
de “vidas paralelas”, entre outras congêneres. No entanto, como resulta da narrativa
construída aqui, há diferenças profundas dentro destas amplas similaridades, como
aponta a citação seguinte, escolhida para ser o ponto de partida da análise
subsequente:

“A partir de 1976, a Espanha representou o caso típico de uma transição pactuada,


tendo como ponto alto o Pacto de Moncloa (...) [Esse pacto] transformou-se mesmo
num padrão de referência para as futuras transições em outras partes do mundo,
como se insistiu no Brasil daqueles anos.
Mas a cópia do modelo espanhol não poderia concretizar-se. Outras eram as
condições na América Latina, em particular no chamado Cone Sul, variando também
de país a país. Transição ‘concertada’ no Chile, apesar das chagas deixadas pela
brutal repressão, em que Pinochet e as Forças Armadas conservaram parte de seu
poder; transição ‘lenta, gradual e segura’ no Brasil, que, não por acaso, recebeu as
denominações indefinidas de ‘distensão’ e, a seguir, de ‘abertura’; brusca transição
na Argentina, determinada, em grande medida, pelo desastre da Guerra das
169

Malvinas. O caso argentino está, pois, diretamente relacionado ao fracasso


relâmpago de uma aventura guerreira, característica ausente nos casos brasileiro e
chileno. Ao mesmo tempo, a longa e complicada transição brasileira relaciona-se
com a relativa legitimidade do regime militar brasileiro, não obstante sua crise, a
fraqueza das organizações partidárias e sociais, e também com a realização de
eleições e a existência de instituições como o Congresso – respectivamente, válvula
de escape e canal capazes de absorver conflitos.”(Fausto e Devoto, 2004: 453-454)

A primeira diferença entre os processos de democratização dos dois países


refere-se à capacidade dos militares de controlar politicamente a transição de
regime. No Brasil, os militares conseguiram manter o controle durante o processo de
liberalização, tornando-a “lenta, gradual e segura”, como pretendia a fórmula
cunhada no início do processo, em 1974. Já no caso da Argentina, os militares
encontravam-se deslegitimados, interna e externamente, sobretudo pela desastrada
guerra perdida para a Grã-Bretanha, entre abril e junho de 1982, mas também pelas
violações massivas de direitos humanos e pelos crescentes protestos diante dos
resultados da gestão econômica do país e das restrições às liberdades
democráticas. Tudo isso fez com que as primeiras eleições diretas na Argentina
ocorressem em outubro de 1983, sendo que a transição fora lançada em julho do
ano anterior, pelo último presidente de fato, o general Reynaldo Bignone,
empossado naquele mesmo mês, pela Junta Militar, com este propósito. No caso do
Brasil, a trajetória de abertura foi muito mais irregular, com retrocessos que
coincidiram com o próprio lançamento da liberalização em meados dos anos 70,
demorando mais de dez anos até que ocorressem as primeiras eleições para
presidente – e elas foram indiretas, por meio dos parlamentares eleitos ainda
durante a ditadura. As primeiras eleições diretas ocorreriam apenas no final de 1989,
portanto seis anos depois da escolha direta no país vizinho.
As dinâmicas políticas dos processos de transição dão o tom da primeira
seção (3.1). A realidade que contextualiza os dois percursos de retorno à
democracia serve de pano de fundo para a apresentação das características da
arena política de cada um dos países. Inicia-se esta parte pelas trajetórias das
transições democráticas, realçando as semelhanças e diferenças entre os casos.
Há que se ressaltar, todavia, como já foi sugerido, que existem muitos
elementos de continuidade entre os períodos, em cada um dos casos. Por exemplo,
os partidos que dominaram a cena política brasileira durante o governo Sarney, e
mesmo depois dos anos 80, haviam sido criados em 1979, quando teve fim o
bipartidarismo instituído pelos militares em 1965. Ou, no caso argentino, o exemplo
170

da presença política constante das Forças Armadas durante todo o período Alfonsín,
não somente pressionando pela obtenção das Leis do Ponto Final e da Obediência
Devida, mas também organizando sucessivos levantes contra o presidente eleito,
até que uma insurreição militar colaborou para a sua renúncia antecipada, em 1989.
Portanto, procura-se apresentar os acontecimentos e processos mais relevantes
para a compreensão tanto do momento crítico do final da década/início dos anos 90
como das trajetórias posteriores (cabe lembrar que o próprio processo de integração
regional no Cone Sul teve origem no programa de integração e cooperação
econômica bilateral, firmado entre os dois presidentes, em 1985).
A primeira seção explora também as semelhanças e diferenças em outras
condições políticas que contextualizaram os períodos dos presidentes Raúl Alfonsín
e José Sarney. Em particular, são examinados os respectivos caminhos da transição
de regime, os sistemas partidários nacionais e as coalizões de sustentação do
governo, tanto parlamentares como de governadores dos Estados federados. Além
disso, a primeira subseção examina as semelhanças nas estratégias de cada um
dos governos para lidar com a profunda crise econômica, que era compartilhada por
praticamente todos os países da região e que serviu como um pretexto para a
aproximação bilateral entre Argentina e Brasil.
Apesar das diferenças, os governos Alfonsín e Sarney enfrentaram desafios e
demandas sociais basicamente semelhantes: por um lado, avançar o processo de
democratização, construindo condições de governabilidade em meio à crise
econômica e aos alarmantes indicadores sociais herdados; por outro, controlar a
inflação crescente, que chegaria a um quadro de hiperinflação na segunda metade
da década, lidando ao mesmo tempo com a dívida externa e o desequilíbrio fiscal,
enquanto as suas economias permaneciam estagnadas. Nos dois casos, tratava-se
de recuperar a confiança interna e externa. As novas democracias tinham ainda o
desafio de lidar com as lideranças militares, tema que seria mais presente no caso
argentino do que no brasileiro, mas em ambos os casos era preciso solucionar a
questão de como lidar com as violações de direitos humanos que caracterizaram as
respectivas ditaduras, embora também com especificidades que apontam para graus
mais acentuados de repressão violenta na Argentina, relativamente ao Brasil.
Os dois países passaram por processos eleitorais importantes na década de
80: destaque para as eleições presidenciais e legislativas na Argentina, em 83,
tendo as parlamentares se repetido em 85, 87 e 89, ano coincidente com as novas
171

eleições presidenciais; no Brasil, o destaque é para as últimas eleições durante a


ditadura, quando já havia a abertura para o multipartidarismo, em 82, e para as
primeiras eleições legislativas sob o governo civil de Sarney, em 1986, que formou
uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração da Constituição Federal
vigente, a qual foi promulgada pelo Congresso no último trimestre de 1988. A
primeira escolha direta para a presidência ocorreu apenas em 1989, quando
Fernando Collor de Mello derrotou Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno.
Em linhas gerais, pode-se dizer que os resultados das urnas, assim como as
características dos respectivos sistemas partidários, fizeram com que os dois
presidentes – Alfonsín e Sarney – enfrentassem condições de governabilidade
bastante diversas. Vale lembrar que, nesses presidencialismos, o governo busca
compor uma maioria estável, o que é alcançado por meio de distribuição de cargos e
emendas orçamentárias, basicamente.
Com efeito, a arena política enfrentada por Alfonsín pode ser caracterizada
como uma conjuntura bastante difícil, a qual incluía uma oposição parlamentar
musculosa, especialmente no Senado, onde não tinha maioria – isto para não falar
da oposição sindical, empresarial e as sucessivas sublevações militares. Além disso,
o principal partido de oposição controlava a maioria das províncias federadas, cujos
governadores são responsáveis pela elaboração das listas de candidatos em cada
uma das unidades da federação. Enquanto isso, o presidente Sarney manteve uma
sólida coalizão parlamentar nas duas casas do Congresso, tanto pelas dimensões
dos dois principais partidos da base como pelo apoio de praticamente todos os
governadores, que também influenciam nas suas respectivas bancadas estaduais.
Assim, mesmo que ambos tenham enfrentado um conjunto de desafios comuns, as
condições políticas dos primeiros governos civis nesses dois países foram bastante
diferentes.
Cabe ressaltar um tema que será retomado no último capítulo com maior
ênfase. No que se refere ao processo de tomada de decisões em política externa,
historicamente o Brasil se diferenciou do país vizinho por possuir uma organização
diplomática forte à qual cabia, mesmo durante a ditadura militar de vinte e um anos,
a prerrogativa de formular e realizar a política externa, fator que é sempre associado
à maior continuidade na trajetória internacional desse Estado, quando confrontado o
caso da Argentina, onde as oscilações históricas constantes são também
associadas, na literatura pesquisada, à influência política sofrida pela chancelaria,
172

da parte do chefe do Poder Executivo. Nos dois casos, porém, predomina o


Executivo – via presidência ou via chancelaria, conforme o caso – diante dos seus
parlamentos e dos partidos políticos, sem falar do alijamento quase completo da
sociedade, mesmo quando se tratam de seus setores mais organizados
politicamente, como os setores empresariais e sindicais. Este trabalho pôde valer-se
do crescente número de estudos, o qual acompanha e ao mesmo tempo demonstra
o aumento do interesse social sobre quem governa as relações internacionais
desses países e como são tomadas as decisões quando o assunto é política
externa. Nesse ponto, a situação de hoje é bastante diferente de um par de décadas
atrás, quando ainda eram relativamente raros os estudos acadêmicos sobre relações
internacionais e política externa em ambos os países.
Para a organização do material encontrado sobre os casos, são utilizadas
contribuições conceituais e teóricas do institucionalismo histórico. E é por valorizar
os momentos de alternância de rumos que esta literatura tende a “distinguir períodos
de continuidade e situações críticas, vale dizer, momentos nos quais mudanças
institucionais importantes se produzem, criando desse modo ‘bifurcações’ que
conduzem o desenvolvimento por um novo trajeto” (Hall e Taylor, 2003: 201). O
principal problema consiste em explicar o que provoca as situações críticas. Em
geral, os teóricos insistem no impacto das crises econômicas e outros eventos de
repercussão significativa, como crises políticas cujos níveis de tensão disparam
verdadeiras crises institucionais, enfim, fatos que possam gerar a percepção da
necessidade ou oportunidade de uma reorientação do processo histórico.
Para finalizar esta introdução de capítulo, convém explorar alguns conceitos
úteis para a análise dos casos em tela. Esses conceitos, assim como os argumentos
teóricos a eles inerentes, foram desenvolvidos pelo institucionalismo histórico, uma
das vertentes do denominado neoinstitucionalismo na ciência política. Assim, parece
conveniente chamar a atenção para alguns de seus aspectos mais salientes, pelo
menos, aos olhos da pesquisa desenvolvida nesta tese.
O primeiro ponto diz respeito ao contexto de origem do institucionalismo
histórico, que se afirmou como alternativa às leituras predominantes nas décadas de
60 e 70, as quais repercutiam também nos estudos sobre a América Latina, como
visto no primeiro capítulo. Quais eram as perspectivas predominantes na ciência
política? De um lado, o enfoque de grupos centrado na análise das estratégias e
recursos políticos, campo dominado pelas abordagens da escolha racional, mesmo
173

que não se limitando a elas; de outro, os enfoques dados pelas leituras estrutural-
funcionalistas inerentes às teorias da modernização.
Pode-se dizer que o institucionalismo histórico valorizou algo de cada uma
daquelas perspectivas e, evidentemente, propôs alternativas teóricas. Em síntese,
valorizou, no primeiro enfoque, a ênfase nos conflitos entre grupos rivais pela
apropriação dos recursos escassos como elemento essencial à vida política: os
agentes, de fato, disputam os recursos disponíveis, o que não raro inclui o próprio
poder de transformar as instituições a seu favor. Ao mesmo tempo, seus argumentos
convergem com a tese estruturalista de que as instituições políticas e econômicas
são fatores estruturantes do comportamento coletivo e, consequentemente, dos
resultados sociais e políticos. Desse modo, não são assumidos os riscos do
determinismo estrutural-funcionalista, mas sustenta-se, igualmente, que é preciso
dar atenção às instituições, as quais também são alvo de conflitos resultantes da
tentativa dos agentes de privilegiar interesses específicos, em detrimento de outros.
Outro ponto a destacar acerca do institucionalismo histórico diz respeito à
visão do Estado como “um complexo de instituições capaz de estruturar a natureza e
os resultados dos conflitos entre grupos” (Hall e Taylor, 2003: 194). Na área de
política comparada, a ênfase dos inumeráveis trabalhos recai sobre a investigação
do impacto das estruturas ou complexos institucionais em diferentes contextos
nacionais. Para essa literatura, as instituições importam para a análise política
especialmente porque distribuem o poder de modo desigual entre os agentes,
conferindo acesso desproporcional de determinados agentes ou organizações ao
processo de tomada de decisões. Essas ideias, de “agência” e de “organizações”
(políticas ou não), são trabalhadas adiante, mas primeiro deve-se precisar a
significação do conceito central de “instituições”. Importa dizer, para concluir, que o
Estado não é visto como uma entidade unitária ou abstrata, mas como uma rede
complexa de instituições, de regras – dentro do qual há incontáveis organizações, é
bem verdade, mas estes dois conceitos não se confundem.
O conceito de “instituições” foi definido por Hall e Taylor como “os
procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais ou oficiosas inerentes à
estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política”’. Trata-se
de uma definição satisfatória, com destaque para o fato de que ela é suficientemente
específica. Na mesma linha, a definição paradigmática de Douglas North (1990) diz
serem as instituições “as regras do jogo em uma sociedade, os constrangimentos
174

arquitetados pelos homens e que moldam a interação humana”. Para ele, as


instituições são fundamentais porque “estruturam os incentivos às trocas humanas,
sejam elas políticas, sociais ou econômicas”. Sendo assim, as mudanças
institucionais moldam a maneira como as sociedades evoluem através do tempo, e,
portanto, compreender essas mudanças institucionais é essencial para compreender
as mudanças históricas em sentido mais amplo.
North é também um dos principais responsável pela distinção analítica,
frequente na literatura e também utilizada neste trabalho, entre “instituições” e
“organizações”. Se, como se viu, o conceito de instituições se aplica ao conjunto de
regras (no inglês, rules) – sejam elas formais ou informais, destaca o autor – que
estruturam uma sociedade, o conceito de organizações remete aos próprios agentes
(no inglês, players), ou grupos de indivíduos unidos pelo propósito comum de atingir
determinados objetivos:

“As organizações incluem os corpos politicos (partidos políticos, o Senado, um


conselho municipal, uma agência regulatória), econômicos (firmas, sindicatos,
proprietários rurais, cooperativas), sociais (igrejas, clubes, associações atléticas) e
educacionais (escolas, universidades, centros de treinamento vocacional). Elas são
grupos de indivíduos unidos por algum propósito comum de atingir objetivos” (North,
1990: 5)

Para o acadêmico, a separação analítica entre as regras subjacentes


(instituições) e as estratégias dos agentes (individuais ou coletivos) é pré-requisito
necessário para a construção de uma teoria das instituições e, portanto, para uma
análise institucional, ainda que os dois conceitos estejam relacionados, pois as
instituições, em conjunto com as demais condições estruturais, fornecem o conjunto
de alternativas disponíveis para os agentes, ao mesmo tempo em que estes são os
propulsores das mudanças institucionais.
É preciso reconhecer que o tema das mudanças institucionais é central para a
abordagem adotada. Para finalizar estes poucos conceitos e argumentos do
institucionalismo histórico, destaca-se a ideia de “dependência de trajetória” (no
inglês, path dependence). Nas últimas décadas, esta ideia passou a ser cada vez
mais utilizada em ciência política, após o seu desenvolvimento nas ciências
econômicas. O objetivo era auxiliar na compreensão das trajetórias políticas (e
econômicas) de um dado país, ou de qualquer outra unidade de análise (por
exemplo, firmas ou setores econômicos). Em síntese, o conceito refere-se à noção
de que os fatores existentes em um determinado momento histórico influenciam as
175

trajetórias do desenvolvimento histórico subsequente. A explicação utiliza o


argumento de que, uma vez adotada determinada trilha institucional, aumentam os
custos de reversão desse caminho, ou seja, existe um feedback positivo
característico de determinados processos sociais – entre os quais os processos
políticos são terreno particularmente fértil para a verificação de situações deste tipo.

3.1 O processo de transição democrática e a formação dos primeiros


governos civis: instituições e organizações políticas, em meio à crise
socioeconômica dos anos 1980

Na literatura sobre transição, o caminho brasileiro recebe inúmeras


denominações que carregam alguns significados próximos, assim como a trajetória
argentina também é adjetivada a partir de um conjunto de expressões
características. O contraste entre as expressões relativas a cada um dos casos é
nítido: no caso do Brasil, fala-se em “transição por negociação”, “transição longa e
cerceada”, “transição lenta, gradual e segura” (expressão oficial, assim como
“abertura” e “distensão”), “jogo de transição”; enquanto isso, no caso da Argentina,
fala-se em “transição brusca”, “transição por implosão do regime”,
“desestabilização/desembaraço”, entre outras tantas existentes para cada um dos
casos. Essas expressões trazem conjuntos de significados opostos: o ritmo da
transição brasileira foi lento, o da transição argentina imprevisto e rápido, os
detentores do governo de fato no Brasil puderam controlar um processo incremental,
enquanto os líderes argentinos perderam a capacidade de governar e, instáveis,
destrinçaram-se do poder político como puderam – e não puderam moldar tanto a
arena política democrática nascente, como foram capazes os ditadores brasileiros.
A despeito deste contraste evidente entre as expressões comumente
utilizadas para denominar os dois casos de democratização em tela, parece mais
interessante explorar aqui algumas características adicionais de cada um dos casos,
em especial aquelas mais relevantes para a análise da relação entre democracia e
integração regional, problemática central desta investigação.
A trajetória política de cada país apresenta particularidades em termos da
tensão entre ruptura e continuidade, tensão que está profundamente associada às
176

experiências e representações do passado, mais recente ou mesmo de décadas


anteriores, e às perspectivas em torno do futuro das instituições democráticas.
Assim, parece razoável afirmar que não se pode ver um caso de transição
simplesmente como uma ruptura, pois, por mais que o regime esteja deslegitimado e
enfraquecido, sempre resta algum espaço para estratégias de manutenção de poder
e de manipulação da agenda política futura. Do mesmo modo, parece razoável
supor que não se pode fazer uma transição, por mais negociada que ela seja e por
mais poder que ainda detenha o regime autoritário, simplesmente lançando mão de
subterfúgios que garantam a continuidade, pois sempre há um impulso de
renovação que não se pode conter em um processo desta natureza. Cada
experiência tem as suas peculiaridades e compará-las pode fornecer alguns
elementos para compreender a incorporação da estratégia de integração regional às
políticas externas nos dois casos, a partir de meados da década de 80.
Ao discutir recentemente o caso da Argentina, o cientista político Aboy Carlés
(2004) reconhece que “a tensão entre ruptura e continuidade constitui um registro
recorrente dos estudos sobre transições de regimes autoritários”. O autor destaca,
citando Marcus Novaro e Vicente Palermo73, que estes

“sublinham a circunstância de que no caso argentino o que impedia ao pólo civil


avançar em acordos e reformas que rompessem com o antigo regime não era
precisamente a força da continuidade militar, e sim a autolimitação que o próprio
pólo civil se impunha sob o temor da desagregação da autoridade da transição. A
isso se somavam múltiplas circunstâncias (recomposição após a cumplicidade nas
Malvinas, reorganização partidária etc.) que impediam às forças políticas aproveitar
os vazios deixados pelos militares em sua retirada”.

O mesmo cientista político, Aboy Carlés, traz um resumo de quatro


características particulares da transição argentina, onde são destacadas as
dificuldades associadas à necessidade de recompor-se, o pólo civil, da cumplicidade
em relação à invasão das ilhas:

“O processo de transição aberto a meados de 1982 tinha então características muito


singulares. Em primeiro lugar, a abertura política não era o resultado da ainda

______________________________________________
73
A obra citada é a seguinte: Marcos Novaro e Vicente Palermo (2003). La Dictadura Militar 1976/1983. Del
Golpe de Estado a la Restauración Democrática. Buenos Aires: Paidós.
177

precária estratégia dos partidos políticos de oposição ao regime, mas a


consequência do descalabro militar em uma guerra externa. Em segundo lugar, a
invasão havia contado com a cumplicidade da amplíssima maioria dos dirigentes
políticos e sindicais do país, quer dizer, daqueles atores supostamente
predestinados à construção de um horizonte pós-ditatorial. Em terceiro lugar, o
descalabro bélico deixou o governo militar numa situação de suma debilidade para
tentar articular uma saída negociada. Em quarto e último lugar, podemos dizer que,
para uma opinião pública que havia acompanhado majoritariamente a invasão das
Malvinas, o resultado da contenda significou um verdadeiro revulsivo que colocou o
futuro eleitorado cara a cara com uma cumplicidade que era preciso deixar para trás,
aprofundou a oposição antiditatorial e desestruturou as frágeis lealdades para com
os dirigentes partidários e sindicais que, majoritariamente, haviam estado à cabeça
dessa cumplicidade” (Aboy Carlés, 2004: 37-8 – sem grifo no original)

Com a invasão das Malvinas, os líderes do regime pretenderam gerar coesão


social e apoio ao governo de fato, o que de fato ocorreu, em um primeiro momento.
No entanto, a estratégia produziu um efeito perverso, isto é, no sentido oposto do
pretendido, uma vez que a derrota acentuou o repúdio à corroída ditadura militar,
cujas elites reagiam desesperadamente às denúncias de tortura e desaparecimento
de milhares de pessoas e à crise econômica que também se aprofundaria depois de
meados de 1982.
A citação de Aboy Carlés indica, entre outras coisas, a “cumplicidade da
amplíssima maioria dos dirigentes políticos e sindicais”, isto para não falar das
massivas demonstrações populares de apoio à ação militar, que interromperam, ao
menos durante a guerra, a oposição à ditadura.
Geralmente argumenta-se que o fim do regime foi ocasionado por uma
divisão interna dos militares. Esta é a hipótese mais elitista, que se restringe a
explicar a queda do autoritarismo como o desenlace das divergências entre os
líderes militares da “linha-dura”, responsáveis pela decisão de atacar o arquipélago,
e os “moderados”, supostamente mais favoráveis a negociar com os setores civis um
caminho para a volta à democracia. Entre os primeiros, estaria o general Jorge
Videla, que governou o país por cinco anos, conforme estabelecido pela Junta
Militar, ainda em março de 197674. Em março de 1981, um militar mais “moderado”,

______________________________________________
74
A Junta era formada por Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro-general Orlando Ramón
Agosti. Depois de um período de maior cooperação entre as três forças armadas, a liderança política do
regime foi assumida pelos militares do Exército, que disputavam a hegemonia no interior do regime, sobretudo,
com a Marinha. A substituição de Videla por outro militar do Exército (Viola) deixou insatisfeitos os setores
dominantes da Marinha, preteridos quando supostamente seria o seu “turno” – por esta narrativa, o ataque às
Malvinas, amplamente apoiado pelos marinheiros, também serviam para recuperar as feridas internas
deixadas por decisões dos anos anteriores.
178

mas também do Exército, o general Roberto Eduardo Viola, assumiu o governo, para
renunciar menos de nove meses depois, em novembro. Sob a presidência do
general Leopoldo Galtieri, quem ordenou o ataque às ilhas, quatro meses depois de
assumir, o controle do país haveria voltado aos militares considerados da “linha-
dura”, mais favoráveis à repressão interna e às causas nacionalistas, o que, sempre
por esta hipótese, explicaria a ação de impacto envolvendo a disputa sobre o
controle territorial das Malvinas.
O problema principal é que esta interpretação deixa de computar o que levou
à suposta divisão no interior das lideranças militares e, para isso, é preciso ter em
mente o encadeamento dos fatos que precederam a própria ofensiva militar de abril
de 82. Em consequência desta carência, a hipótese também não consegue explicar
satisfatoriamente o timing do ataque militar que, frustrado tragicamente após a
chegada das tropas enviadas pela premiê britânica, abriria o processo de transição
do regime autoritário na Argentina.
É nesse sentido que, ao analisar comparativamente o papel dos movimentos
de trabalhadores nos “caminhos para a democratização” de diversos casos
nacionais, Ruth Collier observa que, “desde os anos 40, quando Perón chegou ao
poder sobre os ombros do suporte da classe trabalhadora, a questão laboral esteve
no centro da política argentina” (1999: 120). O próprio golpe de 1976, articulado
pelos militares com o apoio de importantes setores civis antiperonistas, foi justificado
pelos líderes das três forças armadas como uma resposta necessária ao ativismo
dos sindicatos no período de 1973 a 1976 e à debilidade governamental para manter
a ordem pública naquele contexto, marcado também por conflitos entre grupos
armados, de extrema esquerda ou direita.
Com essa justificativa, os militares realizaram inúmeras intervenções nos
principais sindicatos de trabalhadores – como ocorreu em inúmeros setores da
sociedade argentina, como as universidades e escolas secundárias. O mais grave,
obviamente, foi a extrema violência real que caracterizou a chamada “guerra suja”, a
qual produziu a eliminação da vida de uma enorme quantidade de lideranças
sindicais, incluídas no fratricídio de cerca de 30.000 pessoas, feito este que não
pode ser interpretado sem a consciência da importância da questão laboral na
política nacional. Um dos objetivos centrais do regime era “desproletarizar” a
Argentina.
179

Sobremais disso tudo, basta analisar os momentos anteriores à invasão do


arquipélago para concluir que a iniciativa intencionava conferir nova legitimidade a
um regime em crise, pois ela ocorreu como reação à crescente mobilização das
forças de oposição. Pensemos no contexto do governo Viola, cujo grupo mais
próximo era considerado “moderado”. O governo empossado em março de 81 era
favorável a políticas econômicas menos ortodoxas – enquanto os anos anteriores
haviam sido marcados pela adoção radical do pensamento neoliberal, tema que
ainda será retomado adiante – e era também defensor de relações “normais” com os
partidos políticos e com os líderes sindicais mais conciliadores. Como afirma a
investigadora mencionada:

“Inicialmente dividida sobre a possibilidade de cooperar com o governo Viola e ainda


dividida institucionalmente, ambas as correntes do movimento sindical entraram em
acordo sobre uma posição abertamente oposicionista e pró-democrática quando se
tornou claro que a conciliação e o diálogo prometido por Viola poderiam não estar a
caminho” (Collier, 1999: 123-4)

A partir desta postura pragmática dos sindicalistas, foram realizadas ações


coletivas relevantes para a explicação da iniciativa militar. Em julho de 1981, a
Central Geral dos Trabalhadores (CGT) promoveu uma greve geral e liderou a
oposição popular, criando um clima de instabilidade que fazia crer que “a sociedade
civil estava saindo do controle” (G. Munck apud R. Collier, 1999). Em novembro, a
CGT convocou outra mobilização de massa, cuja intensidade surpreendeu não
apenas os militares, mas até os próprios opositores ao regime – dois dias depois,
Viola renunciou. Após um curto interregno, assumiu o general Galtieri, que
governaria até pouco depois da derrota em Malvinas.
No dia 30 de março de 1982, realizou-se a maior demonstração popular de
contestação ao regime, desde 1976, a qual foi violentamente reprimida pelas
autoridades policiais. Esse protesto, especificamente, que se somava a uma série de
eventos de resistência dos anos anteriores, foi liderado pelos trabalhadores
organizados, pelos grupos de direitos humanos, como as insistentes Mães da Praça
de Maio, e pelos partidos políticos, então reunidos em torno da “Multipartidária”.
Entre os trabalhadores, tiveram destaque a CGT e a organização “Intersetorial CNT-
20”, uma agremiação laboral formada no período final do regime. A manifestação
demonstrou que era possível voltar a resistir ao regime, apesar do clima de terror
180

instaurado pela violência oficial sistemática e pela dura repressão às manifestações


públicas.
Três dias depois, portanto no dia 02 de abril, os militares oportunamente
colocaram em prática o plano, ao que tudo indica preexistente, de conquistar a
soberania das ilhas à força. Assim, a hipótese de uma transição gerada apenas pela
divisão no interior das elites militares argentinas não se sustenta sozinha, pois
mesmo que existissem facções antagônicas, política e ideologicamente, até então a
ditadura não dava quaisquer sinais de pretender desincumbir-se do comando político
do país. Com o país em crise econômica, o aumento da mobilização na capital e em
várias províncias colocava em xeque a possibilidade de qualquer das facções
militares existentes seguir governando.
Alternativamente, há duas hipóteses mais inclusivas. De um lado, a primeira
hipótese explica o ataque com o argumento de que a referida divisão foi o resultado
das diferentes posições existentes no interior do regime a respeito de como lidar
com essa mobilização crescente da sociedade, em especial a dos trabalhadores. A
outra hipótese sustenta uma relação mais direta e considera que o ataque foi uma
resposta do regime à participação dos movimentos de direitos humanos, dos
sindicatos e do alinhamento interpartidário, elementos mais visíveis da oposição
democrática. De qualquer modo, os protestos haviam produzido grande repercussão
nacional e internacional, inclusive pela reação violenta que ensejaram. Por qualquer
uma das hipóteses, os protestos sociais foram o principal fator político de
desestabilização do regime autoritário instaurado seis anos antes, influenciando
direta ou indiretamente a dinâmica final do regime – esta última desencadeada
fatalmente pela derrota militar.
Ainda sobre o caso da transição argentina, não parece adequado classificá-la
como uma “transição por negociação”, em razão do fato objetivo incontestável de
que os militares não deixaram o poder imediatamente após a Guerra das Malvinas –
passaram-se cerca de dezesseis meses entre a rendição diante da Grã-Bretanha,
em junho de 82, e as eleições presidenciais e legislativas, realizadas em outubro de
83. O que os militares puderam negociar, de fato, não foi mais do que certas
questões relacionadas ao cronograma e às regras eleitorais.
Mais do que o tempo de duração entre a crise aguda do regime e a transição
do poder aos civis, a dinâmica política específica desse período demonstra que os
militares estavam politicamente debilitados. Durante esse período de transição, os
181

militares já não encerravam mais o poder de vetar o caminho da transição. Isto não
significa, no entanto, que eles não hajam pretendido e tentado, persistentemente,
moldar a arena política pós-ditadura.
Assim, depois da rendição e da devolução do controle das ilhas à Grã-
Bretanha, os militares tinham como principal interesse garantir que o novo regime
não puniria os responsáveis pelas impressionantes violações de direitos humanos.
Tratava-se de um interesse vital, o tema mais sensível de todos: a questão da justiça
com relação às violações massivas de direitos humanos.
Essa questão repercutiria nos governos seguintes: tanto no período Alfonsín,
no primeiro governo Menem e, já no século XXI, nos mandatos sucessivos de Néstor
Kirchner e Cristina Kirchner. A questão militar, a questão da justiça pelas violações
aos direitos humanos, não pôde ser equacionada durante a ditadura, como ocorreu
no Brasil, em que os militares fizeram aprovar uma Lei de Anistia, ainda em 1979,
condição imposta pelos militares para que o processo de abertura política seguisse o
seu curso75.
Outra diferença importante entre os dois casos – além da capacidade de
controlar o processo de liberalização demonstrada pelos militares brasileiros – diz
respeito ao envolvimento das altas hierarquias militares argentinas com o aparato
repressor, as quais se mantiveram no comando da repressão, isto é, os generais,
almirantes e brigadeiros principais coordenaram todo o esquema de violação
sistemática dos direitos humanos. No caso brasileiro, esta é uma questão que
permanece em aberto, sendo que se contradizem as versões sustentadas pelos
militares às demandas por investigação e abertura dos arquivos do período. Pela
versão oficial, houve uma autonomia considerável do aparelho repressivo, que
inclusive é considerado um dos fatores centrais do início do processo de transição,
uma vez que a repercussão pública das violações, em meados dos anos 70,

______________________________________________
75
A questão dos direitos humanos, tanto na Argentina como no Brasil, seria um assunto para outras tantas teses
de doutorado, razão pela qual a temática é apenas tocada neste trabalho, sem o aprofundamento merecido.
Apesar da relevância política e da rica trajetória do tema nos dois países, a questão não é crucial para o
estudo das relações entre democratização, política externa e integração regional. Não se pode aprofundar o
tema aqui, mas as diferenças entre os casos de Argentina e Brasil neste assunto merecem ser exploradas
comparativamente, em outros estudos.
182

fortaleceu as pretensões de descomprimir o regime, por parte dos chamados


“moderados”. Apesar da quebra de hierarquia militar, uma vez que os principais
esquemas de repressão eram liderados por coronéis, o que fortalecia os argumentos
dos menos repressores, os generais da “linha-dura” ainda lograram indicar os
últimos presidentes e mantiveram bastante controle político do processo de abertura.
No entanto, mesmo que se assumisse a versão oficial, a hipótese mais elitista não
se sustenta completamente sem a análise complementar dos movimentos pró-
democracia que cresceram a partir de meados dos anos 70.
Mas, de volta ao caso argentino, cabe ressaltar a sensibilidade do tema do
apoio civil à iniciativa militar no arquipélago. A maioria das lideranças políticas e
sindicais havia acorrido às praças, palanques e meios de comunicação de massa em
apoio à ação do regime. O tema esteve presente nas eleições presidenciais de 1983
e foi explorado pelo candidato vitorioso, da Unión Cívica Radical (UCR). Raúl
Alfonsín encontrava-se em uma situação privilegiada naquele contexto: além de ser
um notório opositor ao regime, ele foi um dos poucos dirigentes políticos que, na
condição de líder da oposição interna à condução da UCR, não apenas deixara de
participar da cumplicidade mencionada, como também se recusara a compor uma
delegação enviada pelo partido para encontrar-se com o Ministro do Interior e para a
posse do governador militar instalado na sede administrativa da ilha. No tema dos
direitos humanos, ele também gozava de uma posição privilegiada, pois havia
impetrado inúmeros pedidos de habeas corpus em favor de presos políticos, quando
o simples ajuizamento do pedido era razão para o desaparecimento dos advogados
impetrantes.
O resultado das eleições presidenciais trouxe um fato inédito na história
contemporânea argentina: uma derrota do peronismo. Desde os anos 40,
considerando todas as eleições em que o partido que representou esse movimento
não esteve proscrito, o peronismo sempre se sagrou vencedor. Diferentemente do
caso brasileiro, a primeira disputa eleitoral após a ditadura teve como protagonistas
os dois partidos principais do período anterior ao autoritarismo: a recém mencionada
UCR e o Partido Justicialista (PJ), ou peronista. Tratava-se de dois partidos
183

“históricos”, o que marca uma diferença notável com relação aos partidos que
dominaram a arena política no Brasil pós-85, a maioria deles partidos “novos”76.
Antes do sistema de partidos brasileiro, cabe desenhar os traços gerais do
desenvolvimento histórico dos principais partidos argentinos. Vale ressaltar que a
UCR e o PJ foram os principais partidos, não apenas dos trinta anos que separam o
imediato pós-guerra à última ditadura (1946-1976), mas também depois da
redemocratização, até os dias de hoje.
Cada um desses dois partidos tem a história do seu nascimento vinculada a
um momento de “democratização”. No caso da UCR, o partido foi criado ainda na
última década do século XIX, a partir de uma série de divisões da classe dominante
na segunda metade daquele século, época da dominação oligárquica sobre a
política republicana moderna, estabelecida pela Constituição de 1853. Até a
Reforma Eleitoral de 1912, que estabeleceu o sufrágio universal e pretendeu dar
mais transparência ao processo antes marcado pelas fraudes e manipulações dos
caudillos locais e nacionais, a UCR foi o principal defensor dos ideais democráticos,
liderando os setores favoráveis à reforma para combater a corrupção, a manipulação
e o controle oligárquico que caracterizava o sistema político argentino.
Embora os políticos da UCR fossem relativamente moderados, as primeiras
eleições presidenciais demonstraram a eficácia política da defesa da ampliação do
voto e do discurso republicano e popular dos radicais: o partido venceu as três
primeiras eleições presidenciais sob as novas regras – governos de Hipólito
Yrigoyen (1916-1922), Marcelo T. Alvear (1922-1928) e novamente, com Yrigoyen,
que governou até o golpe militar de 1930. Este foi um período excepcional na
história argentina, pois somente em 1989 haveria outra transmissão de governo
entre presidentes eleitos nas urnas, quando Alfonsín renuncia para a entrada do
então já eleito Carlos Menem (PJ). Portanto, a UCR é um partido com tradição na
história política argentina e que já havia conquistado a presidência, antes da vitória

______________________________________________
76
No caso brasileiro, as exceções apenas confirmam a regra, como é o caso do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), que perdeu parte de seus quadros das décadas de 60 e 70 para os novos
partidos, e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que já não era realmente o mesmo partido do período
anterior e jamais recuperou o espaço que teve na experiência democrática de 1946-1964, como se verá
adiante.
184

de Alfonsín, em duas outras oportunidades, com Arturo Frondizi (1958-1962) e com


Arturo Illía (1963-1966), ambos com seus mandatos inacabados em virtude de
golpes militares.
Até o surgimento do peronismo, nos anos 40, a UCR foi o único partido “que
alcançou a dimensão do moderno partido nacional e de massas”, como afirma o
historiador Luis Alberto Romero, e que, moderado por “uma longa oposição, (...)
pôde funcionar eficazmente mesmo longe do poder” (Romero, 2001: 56). Ao longo
das décadas, a UCR consolidou-se como um partido complexo, desenvolvido com
base em uma extensa rede de comitês locais, chegando até a Convenção e ao
Comitê Nacional. Como um partido complexo, sempre foi caracterizado por divisões
e conflitos internos, chegando a lançar mais de um candidato à presidência, em
oportunidades em que o peronismo esteve banido de concorrer – como foram os
casos, por exemplo, das eleições de 1958, entre os candidatos radicais Arturo
Frondizi, pela UCR Intransigéncia (UCRI), e Ricardo Balbín, pela UCR del Pueblo
(UCRP), e das eleições de 1963, entre Arturo Illía (UCRP) e Oscar Alende (UCRI).
Estas duas correntes do radicalismo (UCRP e UCRI) dominaram as disputas
internas entre os anos 50 e meados da década de 70, quando se forma uma nova
tendência dentro do partido, em torno do Movimento de Renovación y Cambio, cujo
líder principal era o jovem político Raúl Alfonsín.
No momento da transição democrática dos anos 80, as principais correntes
internas à UCR eram duas, as quais tiveram atitudes diversas diante da última
ditadura militar. A primeira corrente da UCR era denominada Línea Nacional, ou
simplesmente balbinistas, por sua ligação com Ricardo Balbín, candidato a
presidente em quatro oportunidades anteriores (1951, 1958, março de 1973 e
setembro do mesmo ano). Esse primeiro grupo teve uma posição compreensiva
frente à ditadura – o próprio Balbín chegou a afirmar que “o general Videla é o
general da democracia” – com homenagens a líderes militares e apoio político
consistente. A segunda corrente da UCR, agremiada em torno do movimento
liderado por Alfonsín, que passou a ser denominada como alfonsinismo. Seu líder
havia se afirmado paulatinamente na estrutura interna do partido, embora tenha
perdido as duas internas que disputou para as duas eleições presidenciais de 73. Ao
contrário da maioria dos balbinistas, muitos dos quais apoiaram o golpe de 1976, os
seguidores de Alfonsín haviam mantido uma posição ativa contra a ditadura e em
defesa dos direitos humanos, o que foi capitalizado pela campanha de 83.
185

A atitude de Raúl Alfonsín, de oposição ao regime, havia sido mantida mesmo


durante a cumplicidade dos dirigentes políticos e sindicais e da opinião pública em
geral após o ataque às Malvinas. Alfonsín, assim como alguns políticos e intelectuais
próximos a ele, notabilizou-se pelo repúdio à ocupação do arquipélago pelos
militares, destacando-se da maioria das lideranças políticas e mesmo dos líderes
dos trabalhadores, que também vinham fazendo oposição crescente ao regime.
Quando eclodiu a guerra, o então presidente da UCR, Carlos Contín, antigo militante
da UCRP que assumira o cargo depois da morte de Balbín, declarou que era preciso
“postergar as reivindicações de democratização”, diante do conflito – apesar de a
UCR, ainda sob a liderança de Balbín, haver participado da formação da
Multipartidária, em julho de 81.
Passada a guerra, o alfonsinismo assumiu a liderança do partido, impondo-se
sobre a Línea Nacional, e Alfonsín, que sempre assumira uma posição de esquerda
mais próxima à social-democracia, foi escolhido o candidato da UCR à presidência,
deixando para trás o outro pré-candidato, Fernando De La Rúa, um herdeiro do
balbinismo centrista, um intelectual que havia sido candidato a vice-presidente na
chapa derrotada em setembro de 1973, contra Juan D. Perón.
O que se fez foi uma breve exposição da trajetória da UCR e da situação em
que se encontrava essa agremiação histórica no momento da redemocratização,
quando voltou a alcançar a presidência pela via eleitoral. O outro partido em
condições de disputar as eleições majoritárias com chance de vitória era o PJ, que
também teve a sua origem ligada a um momento de redemocratização, mais
especificamente o fim do regime militar instaurado em 4 de junho de 1943,
encabeçado sucessivamente pelos generais Pedro Pablo Ramírez e Edelmiro J.
Farrel – a primeira vitória de Juan D. Perón ocorreu nas eleições de fevereiro de
1946.
A história do PJ mescla-se com a história do movimento peronista, elemento
estruturante da sociedade argentina desde a Segunda Guerra Mundial, por sua
penetração e persistência, em diferentes âmbitos sociais, como é o caso destacado
dos sindicatos de trabalhadores. Ou seja, o peronismo enquanto movimento é um
elemento central da vida política argentina, em sentido amplo, e não apenas da
arena político-eleitoral. Desde a sua criação, em 1946, pelo então coronel Perón, o
partido hoje denominado Justicialista tornou-se decisivo na história argentina.
Nenhum outro partido desse país e dificilmente algum em outro país possui as
186

características e a trajetória singulares do PJ. Além disso, trata-se de um partido tão


ou mais complexo que a UCR, tanto em termos de suas instâncias internas e
vínculos com os movimentos sociais, como em suas divisões internas.
Demais disso, o partido demonstrou possuir, ao longo de quase quarenta
anos, maioria eleitoral inquestionável. Nas quatro campanhas presidenciais em que
não foi vetado de participar, o partido triunfou: com Perón, em 1946 e novamente em
1952; com Héctor Cámpora, em março de 1973; e novamente com Perón, em
setembro do mesmo ano, que, no entanto, morreu no exercício do cargo, tendo-lhe
sucedido a esposa e vice-presidente María Estela Martínez Perón, popularmente
conhecida como “Isabel” ou “Isabelita”, a qual governou o país até o golpe de março
de 1976. Nas demais eleições, quando foi eleito algum candidato radical, o
presidente escolhido precisou contar com o “voto peronista” para derrotar os
adversários.
Além do mais, depois da derrota para Alfonsín em 1983, o PJ ainda venceria
outras quatro vezes a disputa pela presidência – duas com Carlos Menem, eleito em
1989 e reeleito em 1995, uma com Néstor Kirchner, em 2003, e mais uma com
Cristina Kirchner, em 200777, sem falar do seu predomínio em diversas eleições
legislativas nacionais e para a maioria das governadorias das províncias.
Os últimos anos de presidência peronista – 1973 a 1976 – foram marcados
por altos graus de instabilidade e mesmo de violência política, um passivo com o
qual o partido precisava lidar nas eleições de 1983, pois aquele período
excepcionalmente tempestuoso fazia parte da memória coletiva e este tema foi
explorado pelos adversários do PJ, na campanha presidencial, inclusive porque
parte dos conflitos ocorreram entre forças peronistas, de governo e de oposição, de
extrema-direita e de extrema-esquerda. É difícil resumir os inúmeros significados

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77
Depois da crise que levou à renúncia do presidente radical De La Rúa, em 20 de dezembro de 2001, outros
líderes do partido também se tornaram presidentes pela via institucional – com Rodríguez Saá, eleito pelo
Congresso após a renúncia do presidente De La Rúa, em meio à crise de dezembro de 2001, e com Eduardo
Duhalde, pelo mesmo processo indireto, após a renúncia do primeiro. Entre a renúncia e a eleição indireta de
Rodríguez Saá, em 23 de dezembro, o então presidente do Senado, Federico Ramón Puerta, também do PJ,
governou interinamente o país; quando Rodríguez Saá renunciou, em 30 de dezembro, governou o país o
então presidente da Câmara dos Deputados, o também justicialista Eduardo Camaño, responsável pela
condução temporária do país até a escolha de Duhalde, que presidiu o país entre 2 de janeiro de 2002 e 25 de
maio de 2003, quando a presidência foi transferida para Néstor Kirchner.
187

que aquele período de três anos possui para as gerações que participaram
politicamente daquele período, as mesmas que passariam pelos sete anos seguintes
de ditadura, cabendo aos sobreviventes do período a tarefa de completar a transição
democrática, depois do autodenominado Proceso de Reorganización Nacional
(1976-1983). No entanto, para compreender as trajetórias de algumas tendências e
personalidades políticas nas décadas posteriores, é preciso narrar no mínimo
algumas características do período da chamada “segunda experiência peronista”, na
década de 70.
As eleições de março de 73, que levaram o peronista Cámpora à Casa
Rosada, haviam sido negociadas com a cúpula militar que conduzia o país desde o
golpe de 1966 (contra o presidente Arturo Illía): Perón poderia retornar ao país, mas
não participaria das eleições. Assim, o momento da posse de Cámpora praticamente
coincidiu com o retorno de Perón do longo exílio no exterior, desde a sua deposição,
em 1955.
Para ser mais preciso, a posse ocorreu em 25 de maio e o ex-presidente
voltou do exílio no dia 20 de junho, um dia conhecido como “massacre de Ezeiza”,
referência ao enfrentamento de peronistas de extrema-esquerda e extrema-direita,
que se enfrentaram no momento em que aguardavam o retorno do suposto líder
comum, com o resultado de mais de 200 mortos.
No dia 13 de julho, renunciaram o presidente e o vice (Solano Lima), e,
convocadas as eleições, venceu em setembro a chapa Perón-Perón, com María
Estela na vice-presidência, candidatura que impôs mais uma derrota ao radical
Ricardo Balbín: 62% a 21%, com uma vantagem maior do que a obtida por
Cámpora, contra o mesmo adversário (49,5% a 21,3%). Depois de assumir a
presidência em 12 de outubro, Perón viria a óbito no dia 1º de julho de 1974.
O curto governo de María Estela, que não chegou a completar dois anos, foi
marcado pelo aumento da polarização e dos enfrentamentos violentos, em diversas
regiões do país. Durante os menos de dois anos em que presidiu, a situação política
agravou-se, com os conflitos armados internalizando a lógica da Guerra Fria e
enfrentando-se nas cidades e no interior do país.
Para completar o quadro, existiam as necessidades de enfrentar a crise
econômica e de evitar que os diferentes setores, com suas estratégias conflituosas,
freassem-se mutuamente – nos dois casos, a estratégia utilizada concentrou poder
188

nas mãos do Estado, que buscava disciplinar as demandas empresariais e sindicais,


combinando persuasão, autoridade e violência aberta.
Como ressalta Romero (2001: 196), “os três anos da segunda experiência
peronista, verdadeiramente prodigiosos pela concentração de acontecimentos e
sentidos, encerraram – de maneira desgraçada e tenebrosa – toda uma época da
história argentina”78. De fato, a primeira metade da década foi marcada por uma
escalada de violência que serviria de justificativa para o golpe de 76: a partir do ano
de 72, aumentara significativamente a violência das organizações guerrilheiras,
destacando-se entre as principais os Montoneros e as Fuerzas Armadas
Revolucionárias, ambas de orientação peronista, as quais se fundiram em 1973 e
afastaram-se do peronismo oficial, e a organização trotskista Ejército Revolucionário
del Pueblo, às quais se juntaria, mais tarde, o grupo de extrema-direita Triple A
(Alianza Anticomunista Argentina), que foi criado e manejado, como hoje se sabe,
por pessoas do primeiro escalão do governo argentino – em particular, com o ex-
secretário particular e ministro de Perón, José López Rega, figura proeminente do
governo entre 1973 e 1976. De acordo com o Archivo Nacional de la Memória,
instituição oficial criada em dezembro de 2003, durante aqueles três anos houve
cerca de 900 desaparecimentos forçados e 1500 homicídios com motivações
políticas, além de mais de 3000 prisões políticas. Ao que tudo indica, trata-se do
momento mais violento e conturbado da história argentina, excetuado o último
período ditatorial.
Por fim, a presidente María Estela afastou-se do governo em meados de
1975, quando tinha escassas condições de governabilidade, alegando necessitar de

______________________________________________
78
A “época” a que se refere abrange as três décadas anteriores ao golpe de 1976, isto é, desde a ascensão
política de Perón, ainda no governo militar de 1943, como encarregado da Direção Nacional do Trabalho, logo
tornada Secretaria, plataforma institucional que projetaria publicamente o coronel e a partir da qual ele
dedicou-se a estabelecer vínculos com os dirigentes sindicais – Perón seria eleito presidente no imediato pós-
guerra, com o retorno das eleições presidenciais. Conforme ressalta o trabalho comparativo de Ruth Collier e
David Collier (1991), a criação desse partido foi a estratégia utilizada para lidar com a incorporação das
demandas dos trabalhadores (party mobilization), o que diferencia o caso da Argentina da estratégia utilizada
no Brasil, a partir do primeiro governo Vargas, onde essa incorporação se deu pela outorga estatal de direitos
(state incorporation). Segundo os autores, a estratégia utilizada em cada um dos oito casos estudados
(Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, Venezuela, México e Uruguai) teve profundas repercussões sobre a
trajetória posterior da arena política e de sua polarização, que resultou em golpes de estado na maior parte
deles, nos anos 60 e 70.
189

um tratamento de saúde. O afastamento ocorreu em um momento em que cresciam


as divisões no interior do governo, do partido justicialista e da sociedade em geral.
Quem assumiu o governo naquele momento foi uma então poderosa figura do PJ,
Ítalo Luder, membro da primeira geração de peronistas, dos anos 40 e 50, um dos
principais juristas responsáveis pela elaboração da simbólica Constituição de 1949.
No entanto, ele conduziu a Presidência por poucos meses, e, quando devolveu o
posto a María Estela, a situação já se encaminhava para mais um golpe de Estado
conduzido pelas três forças armadas, o golpe de março de 76.
Pois bem, depois dos sete anos de ditadura militar, as primeiras eleições
presidenciais opunham estes dois partidos históricos. Como dito anteriormente, a
UCR e o PJ predominaram durante todo o período que se estende por estas duas
últimas décadas: numericamente, as duas forças políticas concentraram 91,9% dos
votos presidenciais totais, em 1983, e uma média de 80% das preferências para o
legislativo nas quatro eleições da década (J. Torre, 2005). Do lado da UCR, o
candidato Alfonsín foi indicado para a disputa após a desistência do outro pré-
candidato, De La Rúa, quem se tornaria o próximo presidente eleito desse partido,
em 1999, depois dos dez anos de governo Menem. O PJ, assim como os seus
adversários do radicalismo, costurou uma ampla coalizão eleitoral, denominada
Frente Justicialista de Liberación (FREJULI), e lançou como candidato Ítalo Luder,
que havia governado interinamente o país nos anos 70. Com o predomínio das duas
maiores legendas das últimas décadas, sobrou pouco espaço para outros partidos,
tanto à esquerda como à direita79.
A campanha de 83 caracterizou-se pela renovação dos canais de
comunicação política no país. Se historicamente os próprios dirigentes políticos dos

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79
Ao comentar a situação desprivilegiada das tendências que escapavam à nota centrista ou de centro-
esquerda, as quais predominaram nas eleições de 83, o historiador argentino Romero resumiu assim:
“Radicais e peronistas costuraram amplos apoios e deixaram pouco espaço para outros partidos. À direita,
seguiu sendo difícil unificar forças diversas, muitas das quais se haviam comprometido demais com o
Processo, para resultarem atrativas. O engenheiro [Álvaro] Alsogaray constituiu um novo partido, a Unión del
Centro Democrático (UCeDe), que começou a beneficiar-se com o impulso mundial em direção às concepções
ortodoxamente liberais, mas a sua costura maior se daria anos depois. A esquerda padeceu tanto pela dura
repressão dos anos do Processo como pela desatualização de suas propostas, muitas das quais foram
tomadas pelo radicalismo alfonsinista, ainda que o Partido Intransigente haja logrado reuniu um amplo
espectro de simpatizantes, em boa medida nostálgicos da política de 1973” (J. L. Romero, 2001: 240).
190

respectivos partidos argentinos eram os responsáveis pela condução das


campanhas, a contratação de um publicitário e a centralização da campanha na
imagem do candidato são fatos que inauguraram uma nova etapa na busca por
adesão eleitoral. Neste embate midiático, as circunstâncias também favoreceram a
candidatura de Alfonsín.
Como destaca a literatura, o publicitário contratado pela UCR buscou
personalizar a disputa, centrando na imagem do candidato e nas características
pessoais do futuro presidente. A sua imagem pessoal foi aproveitada como símbolo
dos novos valores, tanto pluralistas como republicanos, os quais alegadamente
deveriam dar o tom da renovada arena política democrática. A mobilização popular
direta era buscada diuturnamente pelo candidato, em grande atos públicos, muitas
vezes inovadores, como a famosa “saudação de Alfonsín” e seu “abraço à distância”,
fatos produzidos a partir da exploração de um gesto do próprio candidato em um
grande parque da capital, em 7 de dezembro de 1982, ainda no início do processo
eleitoral então conduzido pelo presidente Reynaldo Bignone, o último general a
governar o país. Na campanha, tiveram impacto massivo, por exemplo, os cartazes
e bótons com a frase “Ahora Alfonsín”, ou com as cores nacionais, branco e celeste,
e as iniciais “RA”, de Raúl Alfonsín e de República Argentina.
A campanha explorou habilmente alguns atributos associados a sua trajetória
política pessoal – desde os primeiros passos, em 72, quando impulsionou a
renovação interna da UCR, passando pela enérgica resistência ao regime militar e
pela atuação advocatícia em prol dos presos políticos, até a sua ascensão
vertiginosa após o episódio das Malvinas, derrotando os herdeiros internos da
tendência de Ricardo Balbín, como De La Rúa. Ao final, a chapa vitoriosa impôs-se
com uma diferença grande, apesar de muitos prognósticos em contrário, os quais
afetaram boa parte dos dirigentes partidários e líderes sindicais, a maioria destes
alinhados com a Frente Justicialista, além dos meios de comunicação de massa.
Houve um acontecimento que foi crucial para a escalada de Alfonsín à vitória,
o qual teria repercussões diretas nas eleições, pois aumentou a resistência ao PJ, e
dentro do partido peronista, pois obrigou o partido a empreender uma renovação
interna. O acontecimento foi o seguinte: em um momento no qual as pesquisas pré-
eleitorais apontavam a estagnação das intenções de votar em Alfonsín e o
crescimento do índice de Luder, a UCR denunciou os nomes dos envolvidos em um
“Pacto Militar-Sindicalista”, segundo o qual não seriam julgados os responsáveis
191

pelas violações sistemáticas de direitos humanos, seria mantida integralmente a


cúpula do Exército e seriam evitadas quaisquer intervenções do novo presidente
sobre a reorganização das Forças Armadas e sobre a determinação dos gastos de
defesa80.
A denúncia atingiu fortemente o núcleo do partido, sobretudo os líderes de
origem sindical, além de atingir também a própria imagem pessoal do candidato, em
particular por sua ligação com a experiência revulsiva de 1975-1976 dos últimos
anos do justicialismo na Casa Rosada. De acordo com as pesquisas de opinião
veiculadas amplamente nos meios de comunicação, a maioria dos entrevistados
considerava que o Pacto era real e negativo para o país. As desconfianças públicas
diante do acerto prospectivo entre militares e sindicalistas pesaram ainda mais sobre
o candidato peronista quando, em setembro de 83, um mês antes das eleições, o
governo militar promulgou a denominada “Lei de Pacificação Nacional”, pela qual se
impedia a abertura de quaisquer processos de revisão da repressão ilegal. Enquanto
Alfonsín apressou-se a assumir o compromisso de revogar a lei em caso de vitória, o
também advogado Luder expressou publicamente que considerava os efeitos da lei
irreversíveis.
Para completar o quadro de debilidades do candidato peronista, se ele devia
expressar a possibilidade de articulação entre o velho e o novo peronismo, como se
dizia na época, o fato era que Luder possuía escassos recursos até dentro do
próprio partido, que se encontrava bastante marcado por divisões internas herdadas
dos anos 7081.

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80
Como analisa Aboy Carlés (2004: 40), as primeiras versões sobre a preparação do acordo apareceram pela
voz de uma dirigente de um setor peronista, ainda em outubro de 82. No entanto, foi apenas em março de 83
que os principais diários do país informaram sobre a ocorrência de uma série de reuniões entre os militares do
alto comando e os dirigentes sindicais peronistas. Alfonsín, por sua vez, tornou sua a denúncia, em 26 de
março, ao declinar os nomes de alguns dos envolvidos no pacto.

81
É também Aboy Carlés quem resume as dificuldades internas do peronismo, dividido e forçado a conviver com
a incômoda herança setentista: “Assim, enquanto o radicalismo definiu a sua fórmula presidencial para as
eleições de 30 de outubro na primeira semana de julho de 1983, o peronismo não lograria fazê-lo até dois
meses depois. O período esteve caracterizado pelo violento enfrentamento entre os partidários de Antônio
Cafiero e Herminio Iglesias na província de Buenos Aires, que resultaria favorável ao segundo. O Congresso
Nacional Justicialista ratificou a viúva de Perón [a ex-presidente María Estela Perón] na presidência partidária,
encumbrando na primeira vice-presidência (a condução efetiva) o questionado líder das 62 Organizaciones
192

Enquanto isso, a imagem de Alfonsín era associada à renovação radical e à


possibilidade de superar o voto majoritário peronista. Para se contrapor ao
peronismo e à sua força eleitoral, o candidato vitorioso construiu um discurso que
valorizava a paz, os valores do pluralismo e do republicanismo. Os discursos de
Alfonsín eram encerrados com a elocução do Preâmbulo da Constituição de 1853. A
campanha prometia uma nova argentina, marcada pela paz e pela justiça social. Os
valores liberal-republicanos representavam uma ruptura apenas parcial, pois tanto a
UCR como a FREJULI valeram-se de suas raízes históricas populistas, mesmo que
o primeiro partido haja sido “incomparavelmente eficaz para incorporar a
problemática dos direitos humanos em chave liberal e a lógica do ‘governo da lei’”
(M. Novaro e V. Palermo, 2004: 22-23).
A despeito desta vantagem adquirida pelos radicais, ambos os partidos
buscaram conciliar o discurso populista com a ideologia liberal e republicana: o
consenso del año 83, como é chamado na Argentina – assim como o consenso
gerado pela “Nova República”, no Brasil, tratado a seguir – aceitava politicamente
esta alegada “incongruência” entre os discursos do nacional-populismo, do
pluralismo liberal e do respeito republicano pelas instituições. Nos dois casos, o
período subsequente foi marcado pela dissonância entre as altíssimas expectativas
depositadas sobre o regime político e as instituições estatais e as escassas
possibilidades de intervenção do Estado sobre a dura realidade socioeconômica
herdada das ditaduras. De um lado, as exultantes expectativas e o otimismo
generalizado, de outro, os escassos recursos ou capacidades do Estado e,
consequentemente, as acanhadas possibilidades de resolução dos problemas
sociais e econômicos, ou seja, uma combinação perfeita para a posterior desilusão
democrática, que caracterizaria o desenlace final tanto do governo Alfonsín como do
governo Sarney.
Como se disse no início deste trecho, a tensão entre ruptura e continuidade é
um registro recorrente dos processos de transição. No caso brasileiro, o maior
controle da liberalização política pelas elites militares é uma característica sempre
ressaltada pela literatura, assim como na maioria das vezes narra-se o processo
como uma negociação entre as elites. O objetivo perseguido aqui é analisar a
______________________________________________
[sindicais peronistas], Lorenzo Miguel”. E conclui o analista: “As faces mais questionadas da última experiência
do peronismo no poder ocupariam os primeiros planos da campanha eleitoral”.
193

trajetória da transição brasileira, comparando-a com o caso argentino e destacando


as condições institucionais e das organizações de maior peso político. Busca-se ter
em mente aquela tensão característica de qualquer caso de transição, isto é, a
tensão dos respectivos legados históricos e as mudanças que imprimem novos
rumos à história política desses países, desde então.
Quanto ao Brasil, vale iniciar sublinhando que, embora tenha havido um maior
grau de controle pelo regime, o processo de liberalização foi desencadeado pelas
reações internas e internacionais às mortes do jornalista e professor Wladimir
Herzog, em outubro de 1975, e do operário José Manuel Fiel Filho, em janeiro de
1976, ambas ocorridas sob a presidência de Ernesto Geisel, iniciada em 1974. A
confirmação pública das denúncias de violações sistemáticas dos direitos humanos
disparou reações no país e externamente, forçando os militares a iniciar uma
estratégia de abertura política que lhes garantisse controlar o processo político
gradualmente. Pressionado, o governo Geisel anunciou o “Plano de Abertura” no
ano de 1976, iniciando oficialmente um processo que não foi tão “seguro” como
sugeria o discurso presidencial.
A sucessão que levou o general Geisel à Presidência significou o retorno dos
militares considerados “moderados”. Ao seu lado, figuravam outros “moderados”,
que também haviam apoiado incondicionalmente o golpe de 64, como o seu irmão e
também general Orlando Geisel, o general Golbery do Couto e Silva, que também
haviam participado ativamente da articulação do golpe, o secretário de Geisel, Heitor
de Aquino Ferreira, e o general João Baptista Figueiredo, a quem Geisel logrou
transmitir a faixa presidencial. Os “moderados” haviam sido afastados do círculo
mais alto do poder militar, ocupado pela “linha dura” depois do AI-5, em 1968,
momento de abrutecimento do regime, sob as presidências dos generais Costa e
Silva (1967-1969) e Ernesto Garrastazú Médici (1970-1974).
Apesar da tendência mais “moderada” dos irmãos Geisel, de Golbery e de
Figueiredo, entre outras figuras conhecidas do período, a autodenominada
“abertura” ou “distensão” foi uma “batalha, pontilhada de marchas e contramarchas,
no caminho da abertura” (Fausto e Devoto, 2004: 455). O próprio presidente não
abandonou os chamados “linha dura” à própria sorte, “demonstrando sua autoridade
e seu inflexível anticomunismo” (Ibid.). Apesar de se encontrarem divididos quanto à
maior ou menor repressão e à continuidade ou afastamento do poder nacional,
principais critérios a diferenciar as duas tendências do regime, a opção pela abertura
194

“lenta, gradual e segura” foi hegemônica e pôde ser mantida durante cerca de oito
anos, e, mesmo assim, com eleições indiretas em 1984 (um ano a mais que o tempo
total da ditadura argentina).
Fausto e Devoto citam um conjunto de acontecimentos que evidenciam a
atuação reiterada de setores mais repressores do regime, que procuraram reverter a
lenta trajetória de abertura a todo custo: entre os episódios, são citados o
fuzilamento de dirigentes da cisão chinesa do Partido Comunista do Brasil (PC do
B), partido que sobrevivia na clandestinidade, em São Paulo (dezembro de 1976); a
cassação de vários deputados, nos diferentes níveis da federação; a misteriosa
morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, também em 1976, cuja atribuição à
repressão é objeto de controvérsia até hoje. Trata-se, obviamente, de uma lista
meramente exemplificativa, à qual poderiam ser somadas inúmeras outras ações,
como os atentados à Associação Brasileira de Imprensa (agosto de 1976) e à Ordem
dos Advogados do Brasil (agosto de 1980), ou tantos outros de menor repercussão,
mas que demonstravam a resistência de setores ligados às Forças Armadas diante
da abertura parcial do regime ditatorial.
Ao mesmo tempo, o governo Geisel evidenciava as contradições do próprio
regime militar. Na visão dos “moderados”, como Geisel, Golbery e Aquino Ferreira,
até para que o princípio da hierarquia fosse preservado, era necessário “neutralizar a
linha-dura, abrandar a repressão e, ordenadamente, promover a ‘volta dos militares
aos quartéis’” (Fausto, 2003: 490). Incomodava a cúpula presidencial em torno de
Geisel a falta de controle sobre parte das próprias Forças Armadas, que se
aglutinava em centros de poder não necessariamente submissos à ordem
hierárquica. O desafio estratégico dos últimos dois governos militares seria controlar,
ao mesmo tempo, as pretensões de continuidade de parte dos militares, as
pretensões políticas da oposição e as demandas crescentes da sociedade civil, esta
última em acelerado processo de reorganização e de mobilização militante.
Por outro lado, a capacidade do regime de impedir qualquer mudança brusca
rumo à redemocratização do Brasil pode ser explicada, pelo menos em parte, pela
mencionada legitimidade do regime junto à sociedade, inclusive junto aos setores
econômicos e às classes médias, os quais se beneficiavam do chamado “milagre
econômico”, período em que a economia brasileira alcançou recordes históricos de
crescimento e destacou-se mundialmente por sua rápida industrialização. Ademais,
paralelamente à relativa legitimidade do regime, cabe destacar a existência de
195

outros fatores políticos adicionais, como aqueles destacados por Fausto e Devoto na
última epígrafe: “a fraqueza das organizações partidárias e sociais, a realização de
eleições e a existência de instituições como o Congresso”.
De fato, os dois últimos elementos (realização de eleições e funcionamento
do parlamento) afiguraram-se como elementos capazes de absorver conflitos,
contendo as demandas da oposição democrática. Por outro lado, quanto à alegada
fraqueza das organizações partidárias e sociais, é preciso refletir um pouco mais
criticamente sobre a citação acima, sobretudo quanto às organizações sindicais
brasileiras, que nos anos 80 passaram por um processo de reorganização e
inovação, iniciado no final da década anterior.
As eleições e o funcionamento do Congresso diferenciam o caso brasileiro do
argentino, no qual as instituições republicanas sofreram limitações mais amplas,
mesmo que os dois regimes tenham coincidido nas limitações às liberdades
individuais e coletivas. Salvo curtos períodos em que o Congresso Nacional foi
suspenso – posto em “recesso”, como em 1966, por um mês, ou em 1977, por mais
duas semanas– o sistema político funcionou, ainda que sob um bipartidarismo,
imposto pelo regime em 1965, quando o Ato Institucional n.o 2 extinguiu os partidos
políticos então existentes, os quais foram substituídos por apenas dois, como
resumem os historiadores Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota (2008: 817):

“Inventou-se então o bipartidarismo da ditadura, quando foi permitida a formação da


Aliança Renovadora Nacional (ARENA), governista e logo majoritária,
arregimentando muitos ex-membros da UDN, do PSP e de partidos menores; e o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que, reunindo as oposições, deveria atuar
como uma frente liderada por veteranos do PSD (como Tancredo Neves e Ulysses
Guimarães), aliados a integrantes do PTB e de partidos menores, mas sem
contestar o regime. O Poder Executivo continuava a exercer poderes ditatoriais, para
suspender direitos políticos, cassar mandatos de deputados e senadores, e fechar o
Congresso sempre que achasse necessário. O AI-2 determinava, ainda, que os
crimes contra a segurança nacional seriam julgados por Tribunais militares.”

É evidente que as restrições ao exercício da representação parlamentar eram


essenciais, e não foram poucas as cassações legislativas de políticos que
desafiavam a censura imposta formalmente. Porém, em que pesem as restrições
impostas à atividade política, as eleições serviam para canalizar as demandas
sociais e para aliviar parcialmente as tensões do regime com os setores
democráticos.
Ao mesmo tempo, as eleições também serviram para fortalecer a demanda
por democracia, sobretudo a partir do crescimento vertiginoso do MDB, que obteve,
196

ao longo dos anos 70, importantes vitórias nas urnas. Alimentado por essas vitórias
e apoiado por setores importantes da sociedade civil na luta pelo retorno à
democracia, o partido oposicionista oficial ganhou espaço e ousou lançar um
“anticandidato”, o então deputado Ulysses Guimarães, ex-PSD, um político que
havia apoiado inicialmente o golpe, mas que logo havia passado à oposição
emedebista, “candidato” com o seu vice, Barbosa Lima Sobrinho, intelectual e
político de destaque nas décadas anteriores da história brasileira. Tratava-se de uma
expressão de descontentamento com o regime, oportunamente aproveitada por
algumas lideranças da oposição que reivindicavam o retorno à democracia e o
restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais.
Assim, quando da escolha indireta de Geisel, em janeiro de 1974, o MDB
havia oposto 76 votos aos 400 favoráveis à eleição do general. Vale recordar que,
antes disso, o marechal Castello Branco (1964-1967) fora escolhido por um
Congresso mutilado, e que, nas escolhas dos generais Costa e Silva, em 1967, e
Médici, em 1970, o MDB havia optado pela abstenção. No entanto, este escore de
400 a 76 não refletia a verdadeira ascensão da oposição no eleitorado, que se
tornaria irreversível a partir das eleições legislativas de outubro.
Nas eleições legislativas de outubro de 1974, portanto dez meses após a
escolha indireta de Geisel, o MDB impôs à ARENA uma derrota importante, obtendo
16 das 22 vagas disputadas para o Senado Federal e 160 das 364 abertas para a
Câmara dos Deputados. O governo ainda mantinha a maioria parlamentar, mas o
desempenho eleitoral do MDB era ameaçador. A primeira limitação mais imediata,
imposta pela vitória do “Movimento”, foi a perda da capacidade de aprovar reformas
constitucionais, pela perda dos dois terços necessários, pela Constituição vigente. O
partido obteve 48% dos votos para deputado federal contabilizados em todo o país
(Fausto, 2003: 491). Ademais, a derrota do governo era maior nas grandes cidades,
como apontam as estatísticas: o partido foi vitorioso em 79 das 90 cidades com mais
de 100 mil habitantes, sendo que as outras 11 cidades estavam concentradas na
Região Nordeste.
Entre os senadores eleitos pelo MDB naquele ano, alguns se tornariam as
principais figuras quando o movimento em prol da democratização chegou ao ápice,
dez anos depois (Orestes Quércia, eleito em São Paulo; Itamar Franco, em Minas
Gerais; Paulo Brossard, no Rio Grande do Sul). Mesmo alguns parlamentares da
base de governo e membros do Ministério aderiram à demanda por anistia e
197

democracia – como foi o caso do deputado Teotônio Vilela (ARENA e ex-UDN),


senador pelo partido desde 1966, e do Ministro da Indústria e Comércio de Geisel,
Severo Gomes, que juntos fizeram “uma dobradinha brilhante e operosa, militando
no sentido da abertura do regime”, como destacam Lopez e Mota (2008: 843).
Neste contexto, os militares e civis que estavam no poder trataram de reduzir
a velocidade da abertura política, introduzindo uma mudança nas regras eleitorais.
Como haveria eleições municipais em 1976, e a derrota da ARENA era dada como
fato certo, o regime fez aprovar no Congresso uma lei, de autoria do então Ministro
da Justiça, Armando Falcão. A conhecida Lei Falcão, de julho daquele ano, impediu
o acesso dos candidatos ao rádio e à televisão, o que havia ocorrido normalmente
nas eleições de 1974. Embora ambos os partidos fossem expostos à restrição
eleitoral, o principal objetivo era minimizar o crescimento da oposição emedebista.
Apesar da Lei, o MDB foi vitorioso em 59 prefeituras, dentre as 100 maiores cidades
brasileiras, conquistando também maioria em grande parte das respectivas Câmaras
Municipais.
O aumento da oposição político-partidária somava-se às pressões dos
trabalhadores organizados e de outras organizações prestigiadas, como a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e inúmeras organizações, tema tratado
adiante, quando se analisa o papel dos trabalhadores e dos demais setores
organizados da sociedade civil no processo de redemocratização.
A oposição política e social crescente, somada às pressões internacionais
também crescentes82, levou o governo Geisel a fechar o Congresso em 1977 e

______________________________________________
82
Especialmente a partir do começo da década de 70, aumentaram as pressões externas sobre o governo
brasileiro, envolvendo a temática dos direitos humanos. Esses constrangimentos eram impostos por
organizações não-governamentais e por governos, sobretudo de países europeus, mas também dos Estados
Unidos. Neste último caso, a partir da segunda metade dos anos 70, o governo de Jimmy Carter incorporou à
política externa dos Estados Unidos a crítica aos regimes responsáveis pela violação massiva de direitos
humanos, sobretudo os direitos civis e políticos, a despeito das inúmeras contradições incrustadas nas ações
estadunidenses no período e desde então. As críticas do governo norteamericano atingiam tanto os países
alinhados à União Soviética quanto as ditaduras latinoamericanas, tradicionais aliados dos Estados Unidos.
Nos anos 80, o governo Reagan aprofundaria essa política, pressionando também pela redemocratização.
Para uma comparação dos conteúdos de direitos humanos nas políticas externas dos países europeus e dos
Estados Unidos, desde o pós-guerra, cf. K. Sikkink, 1993.
198

decretar o “Pacote de Abril”. Ou seja, no ano seguinte ao lançamento do


mencionado “Plano de Abertura”, o próprio chefe do Executivo suspendeu as
atividades congressuais e modificou as regras eleitorais, visando à manutenção da
maioria governista. Para aumentar a diferença, ainda favorável à ARENA, foram
introduzidas novas mudanças nas regras eleitorais. Primeiro, o “Pacote” estabelecia
que um Senador de cada unidade da federação fosse escolhido pela via indireta,
pela maioria parlamentar, isto é, pelo partido governista. A manobra institucional
rendeu ao ARENA 21 das 22 vagas, todas indicadas indiretamente em 78 – os
chamados “senadores biônicos”. Com isso, o governo pôde manter a maioria no
Senado, onde quatro anos antes o MDB conquistara 16 das 22 cadeiras disputadas.
Em segundo lugar, o “Pacote” modificou os critérios de representação proporcional
na Câmara dos Deputados, aumentando o número de representantes dos Estados
do Nordeste, em detrimento dos Estados do Centro Sul, favorecendo as bases
eleitorais da ARENA, tal como as estatísticas anteriores revelavam com clareza.
Apesar da mudança, a configuração da Câmara dos Deputados já mostrava que a
vantagem do governo seria cada vez mais estreita, com 228 governistas vs. 196
opositores. Pode-se especular que, sem as mudanças institucionais impostas pelo
Executivo, dentro de pouco tempo a ditadura perderia a maioria parlamentar forjada
desde 196583.
Lopez e Mota (2008) registram que o poder militar enfrentou, entre o final de
1974 e os últimos meses de 1977, o seu maior conflito interno, quando as elites
comandantes enfrentavam-se quase abertamente. Os autores citam o conceito
cunhado pelo jornalista e historiador Elio Gaspari, “ditadura encurralada”, para
descrever a situação do poder militar naquele período: o Exército encontrava-se
dividido entre, de um lado, o general Geisel, o seu secretário Heitor de Aquino e o
poderosíssimo general que coordenou o processo de transição, o chefe da Casa
Civil Golbery do Couto e Silva, que representavam o “poder republicano”, e, de outro
lado, a linha mais dura, que representava a “anarquia militar” e que se reunia em

______________________________________________
83
Além dessas mudanças nas regras das eleições legislativas, outra imposição do pacote editado após o
fechamento do Congresso foi o prolongamento do próprio mandato presidencial.
199

torno do então ministro do Exército Sílvio Frota84. Assim como na Argentina, os


militares dividiam-se quanto às alternativas, mais repressoras ou mais tendentes à
abertura política, e, assim como no país vizinho ocorreria anos depois, a divisão era
consequência do aumento da oposição dos agentes políticos e da sociedade civil
organizada, em prol da democracia.
As pressões internas e externas cresciam, ameaçando a legitimidade do
regime e forçando-o a avançar um tanto mais no processo de liberalização. Isto não
significa que a oposição dos setores militares da “linha dura” não fosse uma
constante até o momento final da ditadura. Os círculos militares mais tendentes ao
endurecimento permaneceram inconformados e, vez por outra, politicamente
atuantes. Mesmo depois da revogação do AI-5, da promulgação da Lei de Anistia e
da permissão para criação de novos partidos, tudo isso em 1979, ainda houve uma
série de (re)ações violentas, como o atentado frustrado ao Riocentro, no evento do
Dia dos Trabalhadores de 1981. Ademais, como se disse antes, parte da resistência
do regime residia em um fator que já foi mencionado antes: a autonomia
considerável do aparelho repressivo, diante de cúpulas militares que já não
possuíam total controle sobre o que se fazia nos “porões da ditadura”, para usar o
chavão da época.
Pouco a pouco, as resistências oficiais e oficiosas à transição foram dando
lugar à crescente demanda dos políticos oposicionistas e dos movimentos sociais
mencionados. Por isso, a questão da apontada “fraqueza das organizações
partidárias e sociais” como um fator que favoreceu a capacidade dos militares de
controlar a democratização deve ser considerada cum grano salis. A análise do
processo de transição brasileiro, desde o ponto de vista do papel exercido pelos
partidos políticos e por incontáveis entidades da sociedade civil organizada, traz

______________________________________________
84
Trata-se de um capítulo extremamente rico da história brasileira, período que tem passado por um notável
processo de revisão historiográfica, nos últimos lustros. Em razão disso tudo, optou-se por evitar o
aprofundamento da questão aqui, traçando apenas as linhas mais relevantes para a comparação com a
transição argentina. Neste caso, a conexão similar existente entre o aumento da mobilização democrática da
sociedade e mesmo dos partidos, embora em diversos graus, e o aprofundamento das divisões internas às
elites militares ditatoriais, causado pela divergência de alternativas para lidar com o movimento pró-
democracia.
200

também alguns elementos que seriam característicos da primeira fase da “Nova


República”.
Uma característica do sistema de partidos da fase democrática, a qual
diferencia o caso brasileiro do argentino, é a existência de novos partidos, não
partidos “históricos”. O bipartidarismo deu lugar à liberdade para a criação de
partidos em 1979, dentro dos limites legais estabelecidos pela Emenda
Constitucional aprovada pelo Congresso em outubro do ano anterior85. Os principais
partidos políticos anteriores à ditadura não mais existiam quando ocorreu a
transição, como foi o caso da Argentina, onde o PJ e a UCR eram agremiações
históricas. Do ponto de vista do sistema partidário brasileiro, o ano de 1979 foi um
divisor de águas, como afirma Scott Mainwaring (2001), o que diferencia o Brasil dos
demais países do Cone Sul:

“Após a última experiência de regime autoritário no Cone Sul, os sistemas partidários


eram relativamente semelhantes aos do período pré-autoritário, e os mesmos
partidos reapareceram como organizações de grande influência. Mudanças
importantes ocorreram nos três países da região, mas, de início, o sistema pós-
autoritário trazia algumas semelhanças com o que o antecedeu. No entanto, no
Brasil, apesar das continuidades no estilo predominante de partidos catch-all,
nenhuma das grandes organizações do período pré-autoritário sobreviveu” (2001:
132).

O sistema partidário que vigeu de 1946-1964 seria uma realidade distante em


1979, quando foi aprovada a Nova Lei Orgânica dos Partidos, e dali em diante. Os
partidos anteriores não eram pontos de referência para os eleitores, ainda que
houvesse uma notável continuidade entre algumas das principais figuras políticas do
período ditatorial e o sistema político estabelecido no pós-guerra, com destaque

______________________________________________
85
A Emenda Constitucional n.o 11 revogou o AI-5, que havia incorporado à própria Constituição as restrições
ditatoriais às liberdades públicas. Lembra Boris Fausto (2003) que, logo depois de modificar as regras
eleitorais contidas no Pacote de Abril, “o governo iniciou em 1978 encontros com líderes do MDB, da ABI e
representantes da CNBB para encaminhar a restauração das liberdades públicas”. A partir de 1º de janeiro de
1979, data de vigência inicial da Emenda, “o Executivo já não poderia declarar o Congresso em recesso,
cassar mandatos, demitir ou aposentar funcionários a seu critério, privar cidadãos de seus direitos políticos. O
direito de habeas corpus foi também restaurado em sua plenitude”. Junto a essa liberalização do regime
autoritário, como registra o historiador, criou-se o instituto das “salvaguardas”, pelas quais o Executivo
mantinha o poder de decretar o estado de emergência e medidas de emergência, em virtude da necessidade
de “restabelecer a ordem pública e a paz social em locais determinados, atingidos por calamidades ou graves
perturbações”. Como registra Fausto, para concluir: “essas restrições levaram o MDB a abster-se na votação
da emenda” (Fausto, 2003: 494).
201

para os políticos da UDN, do PSD e, em menor medida, do PTB86. Nesse sentido, é


curioso o contraste entre o caso brasileiro e os demais países da região – não
apenas do Cone Sul, mas da América Latina, como atesta Mainwaring, citando
inúmeros trabalhos. De acordo com ele, três fatores ajudam a explicar o
desaparecimento dos partidos anteriores:

“Em primeiro lugar, como diz Kinzo (1990), a vigência de novos partidos com alguma
legitimidade, certa importância e capacidade de organização, ao longo dos treze
anos do bipartidarismo do regime militar (1966-1979), ajudou a desfazer a identidade
dos partidos anteriores. Em 1979, quando foram extintos, a ARENA e o MDB já
contavam com um tempo de vida quase tão longo quanto o dos partidos do período
1945-1964. (...) Em segundo lugar, os partidos existentes antes do golpe de 64
tinham identidades e raízes pouco sólidas na sociedade, e suas ligações com as
elites políticas eram muitas vezes superficiais. Não fosse isso, a ARENA e o MDB
não teriam conquistado respeitabilidade suficiente para fazer esquecer as antigas
identidades. (...) Por fim, a longevidade do regime e a rapidez da mudança
demográfica propiciaram modificações de vulto no sistema partidário brasileiro. O
governo militar durou mais tempo no Brasil do que nos países vizinhos e, por isso,
as ligações das elites e dos eleitores com os partidos preexistentes tiveram mais
tempo para se debilitarem.” (Mainwaring, 2001: 132-3 – sem grifo no original)

Por outro lado, como destaca o próprio Mainwaring, “o governo esperava que
a nova legislação eleitoral estimulasse a fragmentação da oposição, mas que, ao
mesmo tempo, fosse suficientemente restritiva para impedir a formação de partidos
de esquerda fortes”. Assim, quando o regime militar aprovou o retorno ao
multipartidarismo, uma dos objetivos era enfraquecer o Movimento Democrático
Brasileiro, cuja crescente identificação com os eleitores, demonstrada pelas urnas
sucessiva e amplamente, poria em risco a estratégia de abertura controlada
impressa pelo grupo hegemônico nos governos Geisel e Figueiredo. A nova lei
extinguiu os dois partidos existentes e obrigou as novas organizações a conter, em
sua legenda, a expressão “partido” (Fausto, 2003: 506). O objetivo dos militares e de
sua base civil no Congresso foi alcançado com êxito, pois “as expectativas do

______________________________________________
86
Muito embora não houvesse mais a UDN, o PSD ou o PTB, partidos que deram os contornos fundamentais da
ordem política estabelecida após o primeiro e longo período getulista, por outro lado as principais lideranças,
sobretudo dos dois primeiros partidos, faziam parte da “República Civil-Militar” instaurada a partir de 1964
(Lopez e Mota, 2008). Esta é uma ambiguidade explicitamente incrustada no caso da transição democrática
brasileira, que contrasta visivelmente com a relação entre as elites civis e as militares na Argentina. Esta
relativa continuidade do poder civil, mesmo enfraquecido diante do autoritarismo oficial, como era o caso do
Brasil, não ocorreu na Argentina, como se tratou acima. Aliás, nunca é demais realçar, boa parte das
lideranças políticas argentinas foi eliminada pela sangrenta ditadura, na aterradora conta dos mais de trinta mil
desaparecidos e mortos pelo Proceso.
202

governo de manter a integridade da ARENA como partido e de dividir a oposição


logo se tornariam realidade” (Mainwaring, 2001: 130).
Nos últimos anos da ditadura, conviveram os dois partidos que sucederam a
ARENA e o MDB – o Partido Democrático Social (PDS) e o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) – e as novas agremiações, que, mesmo quando
reivindicavam a continuidade, mítica ou real, com partidos ou movimentos pré-64,
eram na realidade estruturas partidárias novas. Tanto o PDS como o PMDB eram
herdeiros minguados do bipartidarismo, naturalmente com maior prejuízo para o
segundo, que passou de quase 190 deputados antes da reforma para 115 em
janeiro de 1982. Setores liberais do primeiro juntaram-se a uma facção conservadora
do MDB para fundar o centrista Partido Popular (PP), que em sua curta existência foi
o segundo maior partido da oposição, com 69 deputados. Como as regras eleitorais
para as eleições de 1982 exigiam o voto em candidatos do mesmo partido para
todos os cargos em disputa, o PP fundiu-se ao PMDB, de longe o partido mais
heterogêneo e mais poderoso da oposição nos anos finais da ditadura (os demais
novos partidos a conquistar assentos na Câmara, em 1982, foram os seguintes: o
Partido Democrático Trabalhista (PDT – 23 deputados), o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), com treze deputados federais, e o Partido dos Trabalhadores (PT),
com oito cadeiras). As vinte e cinco cadeiras do Senado disputadas naquele ano
foram assim distribuídas entre os partidos: PDS (15), PMDB (9) e PDT (1).
Embora houvesse nascido na situação paradoxal de oposição oficial da
República, o PMDB legitimou-se junto à sociedade brasileira como a principal frente
política de oposição ao regime, apesar das restrições ainda vigentes depois de
1979. Durante os últimos anos do regime militar, o PMDB tornou-se o principal canal
político de manifestação do descontentamento crescente com o regime (o qual se
acentuou, à medida que as debilidades econômicas derivadas do fim do “milagre”
tornavam-se mais evidentes). O partido amalgamava desde liberais e lideranças
oligárquicas tradicionais, até socialdemocratas e socialistas, o que descaracterizava
qualquer predominância de certa tendência ideológica; mas não havia dúvidas de
que o partido era o representante principal da frente democrática, até que se
fortalecessem os novos partidos, criados depois de 1979.
O desempenho eleitoral ascendente e o acúmulo de experiências
administrativas qualificavam as lideranças do PMDB, e dos demais partidos de
oposição, como lideranças dos setores sociais favoráveis à democratização. De fato,
203

basta observar os principais personagens da campanha pelas eleições diretas, no


final de 1984, ápice da reivindicação democrática no Brasil, e lá estão incontáveis
políticos, que militaram durante a ditadura ou que retornaram ao país com a anistia,
entre deputados, senadores, e, pelo retorno às eleições para os governos municipais
e estaduais, também prefeitos de capitais e governadores das principais unidades
da federação87.
Naquele momento, os políticos do PDS foram mais facilmente associados à
ditadura militar, o que lhe dificultavam as condições de sustentação na arena
eleitoral. Ao longo da década de 80, o partido perderia vertiginosamente o seu poder
eleitoral, como demonstra o seu desempenho nas eleições para a Câmara (de 235
deputados eleitos em 1982, para apenas 32 em 1986). Neste meio tempo, às
vésperas das eleições indiretas de janeiro de 1985, o partido sofreu a sua maior
fratura: a saída de importantes lideranças partidárias para a fundação do Partido da
Frente Liberal (PFL), entre as quais o ex-presidente do PDS, José Sarney, o então
vice-presidente da República, Aureliano Chaves, e o ex-presidenciável Marco
Maciel, que se tornaria vice-presidente por duas vezes nos anos 90 – os fundadores
provinham da “Frente Liberal”, parcela do PDS que se opunha à candidatura do
político paulista Paulo Maluf, que afinal seria indicado para concorrer às eleições
indiretas.
Em suma, diferentemente dos demais países da região, no Brasil
predominaram partidos novos, mesmo quando se tratava dos sucessores da ARENA
e do MDB, nestes casos, resultado das perdas de quadros partidários que saíram
para criar suas próprias siglas como o PDT, o PTB, o PT, o efêmero e poderoso PP,
o PFL, além dos ainda não mencionados: PCB (Partido Comunista Brasileiro, que se

______________________________________________
87
O retorno às eleições diretas para governador ocorreu em 1982. Antes disso, o Poder Executivo nomeava os
governadores e os submetia à aprovação pelas Assembleias Estaduais. Nas eleições para governador, em
1982, adotou-se o voto vinculado, obrigando o eleitor a escolher candidatos do mesmo para todos os cargos.
O resultado das eleições favoreceu os dois partidos herdados do AI-2, sobretudo o PMDB. O partido
conquistou nove Estados, incluindo Minas Gerais e São Paulo (Tancredo Neves e Franco Montoro,
respectivamente). O outro partido em situação similar, o PDS (ex-ARENA), conquistou a maioria dos Estados,
em um total de doze. Entre os partidos novatos, criados em 1979, apenas o PDT conquistou um cargo de
governador: Leonel Brizola, eleito no Rio de Janeiro. Naquele momento, não eram ainda escolhidos os
governadores do Distrito Federal, nem dos então existentes quatro Territórios Federais (Roraima, Rondônia,
Amapá e Fernando de Noronha). Nestas cinco unidades, até a Constituição de 1988, os governadores
continuaram sendo indicados pelo Poder Executivo.
204

tornaria Partido Popular Socialista (PPS) nos anos 90), o PC do B (Partido


Comunista do Brasil), o PSB (Partido Socialista Brasileiro), contrastando o caso
brasileiro com os demais casos da região.
Revendo a trajetória do Brasil, apesar de todo o “controle” do regime durante
a liberalização, é difícil imaginar como a ditadura poderia manter o controle da arena
política, depois de haver gradualmente perdido o seu poder no Congresso. Em 1974,
o governo havia perdido os dois terços necessários para reformar a Constituição; em
1978, a maioria havia sido mantida pela explícita manipulação das regras do jogo; e,
finalmente, no início dos anos 80 o governo perdera a sua maioria e, ainda que
houvesse logrado dividir a oposição em diversos partidos, também a sua base já não
era mais tão controlável como havia sido nos mais de quinze anos anteriores.
Além disso, vale destacar o papel da militância e dos líderes desses partidos
nos inúmeros constrangimentos impostos ao regime militar nos últimos anos, cuja
trajetória de liberalização seria irreversível, mesmo com toda a capacidade de
controle do processo pelas elites da ditadura. Mesmo que a campanha pela
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional pelas eleições diretas, que ficou
conhecida pelo nome do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), não tenha
alcançado o seu objetivo, a oposição conseguiu massacrar o candidato lançado pela
ditadura: 480 votos para a chapa da “Aliança Democrática” (Tancredo Neves, do
PMDB, e José Sarney, do PFL), contra 180 votos para Paulo Maluf e Flávio Marcílio,
ambos do PDS. Entre as propostas da Aliança estava a convocação de uma
Assembleia Constituinte, o que ocorreria no primeiro ano do governo Sarney e cujos
parlamentares seriam escolhidos em 1986.
Em síntese, desde que o governo foi pressionado e lançou a abertura, ainda
em meados dos anos 70, até o desenlace final do autoritarismo e a transmissão do
poder político aos governantes civis, em 1985, os partidos políticos foram parte
importante da história da redemocratização. Em um primeiro momento, com a
ascensão do partido oposicionista e a defecção de alguns governistas, a partir dos
resultados eleitorais colhidos em 1974, 1976 e 1978. No multipartidarismo pós-79, os
novos partidos mantiveram-se como representantes importantes da mobilização pró-
democracia. As lideranças partidárias foram cruciais na dinâmica final do regime e
seus líderes valeram-se dessa plataforma institucional para, dentro das instâncias
parlamentares ou nas ruas, aumentarem a identificação com os eleitores, ainda que
as entidades da sociedade civil, inclusive os sindicatos de trabalhadores e,
205

tardiamente, algumas representações empresariais, tenham exercido,


conjuntamente, um papel importante nesse processo.
Embora não se deva exagerar na ênfase dada à identificação entre os
eleitores e os partidos, isto tampouco significa que se deva desprezar
completamente o poder dessas organizações, inclusive de mobilizar grandes
protestos populares, resultado de ações coletivas com outras organizações (e
personalidades públicas) que impulsionavam abertamente o processo de
democratização. Como aponta a literatura, a identificação eleitoral por meio do voto
de legenda é uma exceção no Brasil, e, como demonstra Mainwaring (2001), seria
cada vez mais incomum a partir de 1979. A aproximação era muito mais
condicionada pelo objetivo comum à sociedade e aos partidos e políticos de
oposição (o restabelecimento da democracia), e pela visibilidade dos políticos na
mobilização democrática, que se utilizaram do apoio dos principais veículos de
comunicação em massa. Na intensa campanha pelas eleições diretas, lá estavam as
lideranças e a militância partidárias, com suas bandeiras, slogans e ideologias, ainda
que depois de relativamente pouco tempo, como aconteceu também na Argentina, o
quadro geral apontasse para uma descrença generalizada nos partidos e nos
políticos em geral, para uma profunda crise da representação política, resultantes da
desilusão sobre as reais possibilidades de participação e deliberação públicas,
temas tratados nos dois capítulos anteriores.
No caso da Argentina, provavelmente em razão do resgate de legendas que,
além de serem históricas, também possuíam identidades mais consolidadas na
sociedade, a identificação da cidadania com os partidos era ainda maior do que no
Brasil. No momento da transição, em 1983, a taxa de filiação partidária era
incrivelmente alta: um em cada quatro eleitores argentinos era membro de partido
político! Vivendo um momento histórico excepcional, “os partidos políticos passaram
a ocupar o centro da vida política na Argentina, cercados pela confiança e pelo
fervor dos cidadãos” (J. Torre, 2004: 153). Ainda que o padrão haja se modificado
com o tempo, os primeiros momentos da nova democracia indicavam a centralidade
dos partidos e a estabilização da competição política em torno do PJ e da UCR.
(Ninguém podia prever o descrédito em que cairiam as instituições na Argentina, em
particular os partidos políticos e a classe política em sentido mais amplo, quando, no
final de 2001, eclodiu a crise mais profunda de sua história).
206

No Brasil, ainda que a taxa de filiação partidária dos eleitores não fosse nem
próxima dos 25% registrados na Argentina, a etapa final da ditadura foi marcada
pela intensa mobilização popular, que deu inumeráveis demonstrações favoráveis às
eleições diretas para presidente, como os históricos comícios pelas diretas e, depois,
pela candidatura da “Aliança Democrática”. A respeito dessa mobilização, vale
discutir o papel das organizações sindicais e de outras entidades da sociedade civil
organizada na transição brasileira, comparando-as com as suas congêneres no país
vizinho.
A dinâmica argentina, como se viu, foi fortemente condicionada pela derrota
na Guerra das Malvinas; no Brasil, não houve qualquer episódio comparável, mas,
como dito, ao aumento da oposição de parte dos setores políticos civis que
apoiavam o regime, o qual instabilizou o antes tranquilo controle da arena político-
partidária, correspondeu o aumento da mobilização popular. Neste contexto, o papel
do movimento sindical brasileiro difere do caso argentino, pois os trabalhadores não
foram protagonistas, como os sindicatos argentinos nos meses anteriores à Guerra,
apesar dos trabalhadores brasileiros haverem expandido a contestação com greves
gerais e manifestações públicas, mas parte de um movimento democrático mais
amplo. Ademais, o movimento sindical brasileiro entre os anos 1970 e 1980
apresenta características interessantes para a reflexão sobre a trajetória posterior da
relação entre os trabalhadores, os empresários e as próprias instituições estatais.
Em primeiro lugar, uma consequência do desenvolvimento industrial brasileiro
durante os anos 70 foi o surgimento de um movimento operário politicamente ativo,
mesmo que ainda se encontrasse inserido nas ambíguas relações com as
instituições estatais de inspiração corporativista, herdadas do período de
incorporação getulista dos trabalhadores – sem mencionar as incontáveis
intervenções, de maior ou menor duração, que caracterizaram a gestão autoritária
da questão laboral no Brasil.
Vale anotar que tanto o corporativismo estatal como as intervenções
autoritárias são características que aproximam a Argentina e o Brasil. No entanto,
existem diferenças maiúsculas, dentro destas semelhanças mais gerais. Uma
consequência marcante da ditadura argentina foi o enfraquecimento do movimento
sindical, resultado de uma decisão deliberada de “disciplinar os movimentos de
trabalhadores”, de desproletarizar a sociedade, nas expressões oficiais enunciadas
à época do modelo econômico neoliberal, implantado sob a gestão do lendário e
207

controverso ministro da Fazenda, José Alfredo Martínez de Hoz, no final dos anos
70. Estes objetivos foram alcançados à custa da notável desindustrialização da
economia argentina, tema retomado adiante.
Um traço distintivo do movimento sindical brasileiro, vis-à-vis o quadro político
do país vizinho, foi o desenvolvimento de um “novo sindicalismo”, que produziria
uma bifurcação histórica importante, de peso comparável apenas às mudanças no
direito sindical a partir da Constituição de 1988. No que diz respeito à transição
democrática, especificamente, os sindicatos de trabalhadores passaram a intervir na
cena política a partir do ano de 1977, como parte da reação social ao que era
percebido como um recuo de Geisel e Golbery diante da linha mais dura do
autoritarismo.
Como analisa Ruth Collier (1999), desde a repressão mais forte aos
trabalhadores, em 1968, o movimento sindical havia desenvolvido novas formas de
resistência, como a mobilização e as greves limitadas a determinadas fábricas ou
setores produtivos. Ao longo dos anos 70, essa atuação política tinha como centro
principal as indústrias da cadeia produtiva automobilística, sediadas na região do
ABC paulista, e seus objetivos eram principalmente associados a campanhas
salariais e por políticas de geração de emprego. A partir da segunda metade dos
anos 70, como o período de alto e prolongado crescimento econômico do país foi
interrompido, uma das bases de legitimação do regime ruiu e as ações em prol da
democracia adquiriram maior visibilidade. Como afirma a autora, a partir do Pacote
de 1977, “o movimento laboral irrompeu na cena política com militância renovada e
atividade grevista” (R. Collier, 1999: 135).
O papel do movimento das organizações de trabalhadores na democratização
brasileira pode ser resumido em três aspectos principais. Em primeiro lugar, mesmo
que os trabalhadores não tenham efetivamente dado início à contestação ao regime
no final dos anos 70, suas ações coletivas, em especial por meio de greves de
grande repercussão, intensificaram o movimento e estimularam a adesão das
demais organizações da sociedade civil. Em 1978, mais de 250.000 metalúrgicos
mantiveram uma greve de repercussão nacional, durante mais de dois meses. No
ano seguinte, em uma onda de protestos provavelmente sem igual na história
brasileira, os registros apontam que mais de 3.000.000 de trabalhadores estiveram
envolvidos em mais de cem greves. Em 1980, em um quadro de maior organização
e notável coordenação com outros movimentos populares urbanos, continuaram as
208

greves e as reivindicações pela abertura. O episódio do atentado frustrado no


Riocentro, em 1981, ocorreu diante da tradicional mobilização do 1º de maio. Por
fim, no ano de 1983, no contexto da crise econômica acentuada pela crise
(mexicana) da dívida, novamente mais de 3.000.000 de trabalhadores desafiavam a
repressão governamental abertamente.
Os trabalhadores eram parte de um movimento amplo de oposição, como se
disse acima. No entanto, cabe ressaltar, como a maioria da oposição social era feita
por meios “verbais”, a estratégia de incluir o tema da abertura nas reivindicações
sindicais trazia essas ações para frente do movimento, explicitando que o retorno à
democracia deveria incluir uma agenda mais ampla do que aquela avançada, até
então, pelos partidos políticos e por outras organizações sociais. Assim, o ativismo
sindical modificava os termos do debate, como destaca o trecho seguinte, em que
Ruth Collier cita o trabalho de Margareth Keck, The Worker’s Party and
Democratization in Brazil:

“Enquanto os líderes políticos e os intelectuais opositores vinham discutindo modos


de estabelecer ligações com os setores populares, ‘as ondas de greves massivas de
1978 e 1979 mudaram o contexto do debate. O problema... deixou de ser apenas
uma questão a ser debatida entre intelectuais; ele tornou-se, em vez disso, uma
matéria para a negociação entre constituencies cada vez mais organizadas. Muitos
líderes da classe trabalhadora não desejavam mais deixar o ato de interpretação
para outros – eles queriam criar uma oportunidade organizacional para os
trabalhadores falarem por si” (Keck, 1989 apud R. Collier, 1999: 136)

O segundo aspecto destacado aqui diz respeito à sua frente político-


partidária, representada pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT). O partido
surgiu da reunião de metalúrgicos e outros sindicalistas, tanto urbanos como rurais,
além de outros setores da esquerda brasileira, com destaque para setores da Igreja
Católica e da classe média profissional. Como destaca Boris Fausto, “adotando uma
postura contrária ao PCB e ao culto à União Soviética, o PT evitou definir-se sobre a
natureza do socialismo”, o que estava relacionado à existência, nos seus quadros,
de correntes ideológicas opostas: “em uma das pontas ficavam os simpatizantes da
social-democracia; na outra, os partidários da ditadura do proletariado” (2003: 506).
209

O PT manteve fortes vínculos com o sindicalismo, com especial destaque para o


sindicalismo do ABC paulista, sob a liderança e destaque crescente de Lula.
Os militares lograram interromper a ascensão eleitoral do “trabalhismo”, que
chegou à presidência pelas mãos do PTB de João Goulart, com o golpe de 196488.
No retorno ao multipartidarismo, as elites políticas (e judiciais) haviam impedido que
a sigla criada por Getúlio Vargas fosse restaurada por Leonel Brizola (por meio de
uma decisão judicial do TSE, que em 1980 concedeu o direito a uma sobrinha de
Vargas), que optou então pela criação do PDT. O PT modificava o cenário político,
tendo profundas ligações com o “novo sindicalismo”, alterando o cenário estratégico
tanto do governo como da oposição:

“Um novo ator em cena, o PT teve um impacto nos projetos tanto do governo como
da oposição. Com respeito ao primeiro, ele frustrava a tentativa do governo de
exorcizar a esquerda. Ao mesmo tempo, ele minava a estratégia da oposição, e
especialmente do partido líder da oposição, o PMDB, o sucessor do partido de
‘oposição oficial’ dentro do sistema bipartidário original do governo.” (R. Collier,
1999: 137)

Um terceiro aspecto da participação dos trabalhadores na luta democrática


refere-se ao desafio que os sindicatos apresentavam ao controle estatal realizado
pelas regras corporativistas. O fenômeno da renovação sindical brasileira denotava
uma diferenciação de posições no campo sindical: embora ambas as posições
fossem favoráveis à democratização, elas divergiam em termos táticos. De um lado,
o chamado “sindicalismo combativo” colocava em primeiro plano a mobilização dos
trabalhadores, considerada mais importante mesmo do que o irregular processo de
abertura. Esta primeira orientação tinha como núcleo propulsor os sindicatos do ABC
e era bastante próxima ao PT (dessa linha surgiria, em 1983, a Confederação Única
dos Trabalhadores (CUT), símbolo maior do sindicalismo de combate). Do outro
lado, encontrava-se o denominado “sindicalismo de resultados”, com menor
definição ideológica e, critério diferenciador central, defensor de uma luta sindical

______________________________________________
88
Cabe aqui o desabafo contido na análise de Darcy Ribeiro, citado em Lopez e Mota (2008: 720-1): “A
representação parlamentar de 1945 a 1962 progride da seguinte forma: o PSD cai de 151 (51,8%) deputados
para 118 (28,8%); a UDN, de 91 (26,9%) para 77 (22,9%); enquanto o PTB cresce de 22 (7,6%) para 116
(28,4%). Aí nos derrubaram, senão seguramente faríamos a maioria em 1965”.
210

mais limitada, a qual não pusesse em risco o processo de abertura e que, acima de
tudo, alcançasse ganhos concretos e imediatos para os trabalhadores. Esta linha,
que representava sindicatos importantes, como os metalúrgicos de São Paulo, era
mais favorável a negociações políticas com o Estado e com os empresários, daria
origem à nova Central Geral dos Trabalhadores (CGT), em março de 1986, já sob o
regime democrático.
Como se verá no capítulo 4, ao longo do tempo essas duas vertentes do
movimento sindical entrariam em oposição, somando-se a elas, como aconteceu
também na Argentina, as novas organizações sindicais criadas principalmente no
início dos anos 90. O próximo capítulo explorará também as diferenças existentes
entre o caso argentino e o brasileiro, em especial a maior permanência institucional
no primeiro, em contraste com a importante renovação do sindicalismo brasileiro.
Por ora, cabe ressaltar que, naquele contexto da transição democrática, os
sindicatos argentinos experimentavam uma forte desmoralização diante da
sociedade (recorde-se o impacto que teve a denúncia do Pacto Militar-Sindical,
durante a campanha presidencial de 1983), enquanto no Brasil o sindicalismo, em
especial os setores associados à renovação sindical, usufruíam de uma imagem
positiva junto à cidadania, mantendo assim o seu relativo peso político. Enquanto no
Brasil os trabalhadores eram associados à democracia que se pretendia restaurar,
na Argentina parece que se tratava de restaurar a democracia “apesar dos
sindicatos”.
Finalmente, cabe destacar o papel desempenhado pelos movimentos de
outros setores organizados da sociedade civil, como as organizações mencionadas
antes (OAB, ABI, CNBB, SBPC). Àquelas organizações mais formais, juntavam-se
inúmeras e combativas personalidades, de diversas origens, assim como
determinados órgãos da mídia e também representantes do setor empresarial, neste
último caso a retirada do apoio dado pelos empresários ao Golpe de 64 e ao regime,
implícita ou escancaradamente, foi estimulada pela redução dos níveis de
crescimento durante os anos do chamado “milagre econômico” Vale lembrar que,
apesar da participação da sociedade civil haver aumentado significativamente a
partir de 1975, sempre houve, nestes setores, algumas iniciativas contrárias ou
mesmo de desafio ao regime, mas nada tão sistemático, generalizado e aberto como
após os protestos pelas mortes denunciadas naquele momento.
211

A partir de abril de 1977, quando foi lançado o “Pacote” endurecido de Geisel,


a reação da sociedade civil intensificou-se. No entanto, a gestação dessa reação
social à ditadura deu-se nos anos anteriores, especialmente depois das mortes de
Herzog (1975) e Fiel Filho (1976). De acordo com a observação aguda de Lopez e
Mota, “após 1975-1976, a sociedade civil começou a organizar-se de modo mais
sistemático, ao notar que havia risco de um retorno à ditadura cruenta dos tempos
do general Garrastazu Médici [1970-1974], aumentando a pressão sobre o regime,
para acelerar a abertura” (Lopez e Mota, 2008: 847). Durante o longo período de
1977 a 1984, culminando com a intensa campanha nacional pelo retorno das
eleições diretas para a escolha do Presidente da República, a atuação de
representantes dos diversos setores organizados da sociedade civil, por meio de
uma miríade de instrumentos e estratégias, foi crescente.
A campanha congregou os partidos, sindicatos e sociedade civil, que
organizaram, conjuntamente, os inúmeros comícios realizados nos anos de 1983 e
1984. No ano de 1983, essas organizações agiram coletivamente, por exemplo, no
comício de novembro de 1983, como registra Boris Fausto “uma primeira
manifestação em frente única, que reunia o PT, PMDB, PDT, CUT, Conclat
[Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, que havia se reunido pela primeira
vez em janeiro de 1981] e outras organizações”, embora de repercussão mais
limitada e onde predominavam os petistas. Em janeiro de 1984, as principais figuras
do PMDB entraram na campanha aberta e sistematicamente, incluindo os
governadores da legenda, como Franco Montoro (SP), Tancredo Neves (MG) e José
Richa (PR), entre outros. Na cidade de São Paulo formou-se um comitê, que se
encarregou de realizar o sempre citado comício da Praça da Sé, em 27 de janeiro de
1984, com mais de 1.000.000 de pessoas reivindicando.
Sob a liderança dos políticos de oposição e com a adesão em massa de
trabalhadores e da sociedade civil, o movimento pelas diretas mobilizou segmentos
da população brasileira em uma dimensão provavelmente jamais vistas – assim
como, depois dela, seria difícil a ocorrência de qualquer mobilização pública
comparável ou algum momento em que os partidos teriam capacidade similar de
mobilização. Não obstante tudo isso, diferentemente do envolvimento da sociedade
civil na Argentina, as organizações brasileiras não contaram com um episódio como
a Guerra das Malvinas, que enfraquecesse de forma definitiva o governo autoritário.
Apesar das denúncias de violações dos direitos humanos, de corrupção sistemática,
212

e da situação de crise socioeconômica, que piorava à medida que os anos 80


avançavam, (em tudo características da agenda política próximas à do país vizinho),
as Forças Armadas achavam-se em uma situação menos desmoralizada do que
ocorreu na Argentina.
Mas o capítulo final da história dependeria de mais uma manobra institucional
efetuada pelo governo e por sua base parlamentar, o PDS, que optara pela tentativa
de chegar à Presidência pela via indireta, pois as suas chances nas urnas eram
próximas a zero, diante de qualquer candidato apresentado pelos partidos de
oposição. Quando foi apresentada uma Proposta de Emenda Constitucional (a
“Emenda Dante de Oliveira”), as normas constitucionais determinavam a
necessidade de aprová-la nas duas Casas do Congresso. A esta altura, as
pesquisas de opinião do IBOPE apontavam que 84% dos entrevistados apoiavam a
aprovação da proposta. A manobra política efetivou-se com o esvaziamento do
plenário da Câmara no momento da votação, como relata com vivacidade a citação
seguinte:

“Ela foi votada sob grande expectativa popular. Em Brasília, Figueiredo impôs o
estado de emergência, executado pelo general Newton Cruz. O general, entre outras
façanhas, tentou impedir um ‘buzinaço’ no dia da votação (25 de abril de 1984),
saindo em seu cavalo branco e chicoteando o capô dos automóveis dirigidos pelos
desobedientes motoristas.
A Emenda Dante de Oliveira não passou. Faltaram na Câmara dos Deputados
somente 22 votos. Precisava de 320 votos de um total de 479 congressistas e
recebeu 298. Desses votos, 55 eram de deputados do PDS que, apesar das
pressões do governo e do partido, votaram a favor da emenda. De qualquer forma,
tendo em vista a composição do Senado, era muito problemático que a emenda
passasse [naquela Casa], caso fosse aprovada pela Câmara.” (B. Fausto, 2003:
509-510)

O resultado completo da votação foi o seguinte: 298 a favor das eleições


diretas, 65 votos contra (todos do PDS), 3 abstenções e 113 deputados não
participaram da votação plenária na Câmara (isto é, a manobra concretizou-se
também por uma “retirada” massiva dos deputados do PDS). A derrota política da
Emenda Dante de Oliveira foi a derrota da ampla oposição democrática que preferia
as eleições diretas, mas foi apenas o primeiro passo da trajetória de desilusão
democrática vivida pelos brasileiros.
Logo em seguida, com a convocação do Colégio Eleitoral para a eleição do
sucessor civil do regime, o candidato eleito, Tancredo Neves, não pôde assumir em
razão de doença e chegou ao poder, em 15 de março de 1985, o seu candidato a
vice, José Sarney. A desilusão provinha do fato de que, depois da morte de
213

Tancredo Neves, quem chegava à Presidência, pelas linhas transversas da história,


era justamente uma das principais figuras da base governista da ditadura. A
desilusão cidadã prosseguiria nos anos seguintes, em paralelo à experiência
argentina durante o governo Alfonsín, com a dura assimilação do fato de que, em
ambos os países, combinaram-se as altas expectativas depositadas sobre o regime
democrático e o Estado com as debilidades estruturais da economia e das próprias
instituições governamentais. Assim como na Argentina, também no Brasil havia uma
perfeita combinação para a crise de legitimidade da democracia recém
restabelecida.
Por que a posse de José Sarney era um fator que arrefecia o fervor
democrático? Sarney encarnava um representante das oligarquias tradicionais,
tendo iniciado a trajetória política como suplente de deputado federal em 1954, pelo
PSD, para nas eleições seguintes migrar para a UDN, exercer o mandato de
deputado, de 1958 a 1962, quando foi líder do governo Jânio Quadros. Com o golpe
de 64, participou da criação da ARENA e foi indicado governador do Maranhão com
o apoio do general Castelo Branco, em 1966 (sua posse foi retratada no filme de
curta-metragem Maranhão 66, do cineasta Glauber Rocha, que contrapunha as
imagens da posse de Sarney com as do povo local, em situações de carência
extrema). Durante os anos 70, Sarney foi Senador pela ARENA, partido do qual foi
líder (assim como Tancredo Neves havia liderado o MDB) – com a criação dos
novos partidos, Sarney liderou o PDS durante o governo Figueiredo. As esperanças
democráticas, assim como ocorreria paulatinamente no país vizinho, eram
substituídas pelas frustrações populares e de muitos setores que se haviam
mobilizado, em torno do partido de oposição ou de movimentos sociais mais amplos.
Em lugar do candidato originalmente oposicionista, chegava à Presidência uma
liderança tradicional que havia dado suporte parlamentar ao regime militar, levando
consigo grupos que também haviam sustentado.

3.2 Os governos civis de Raúl Alfonsín e José Sarney e a adoção do


neoliberalismo no início dos anos 90
214

Em vez de Tancredo Neves, quem tomou posse em seu lugar foi Sarney, já
filiado ao PMDB. Seis dias depois da posse, para consternação nacional, morria
Tancredo, que teve o seu corpo acompanhado por multidões em São Paulo, Brasília,
e Belo Horizonte, até o sepultamento em sua cidade natal, São João del Rei (MG).
Ao assumir a Presidência, o Ministério de Sarney confirmaria o seu alinhamento aos
políticos provenientes, sobretudo, da UDN, e, em menor medida, do PSD, sete ex-
udenistas e dois ex-pessedistas, o que demonstrava que perdiam terreno os grupos
que haviam sido mais próximos a Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, “antigos
próceres do PSD” e lideranças destacadas do processo de transição. As figuras
políticas centrais do Ministério eram políticos com experiência, muitas vezes
lideranças políticas ligadas às oligarquias tradicionais, e a orientação ideológica
hegemônica inclinava-se para a centro-direita89.
Durante todo o período Sarney, a principal base de sustentação do governo
foi a sólida e poderosa aliança entre PMDB e PFL. Cabe lembrar que, a partir do
momento em que o vice-presidente eleito migrou para o primeiro partido, seu
movimento foi acompanhado por um número significativo de políticos do PDS – o
que explica também a notável perda de espaço do herdeiro da ARENA, que caiu de
235 deputados eleitos em 1982 para apenas 32, quatro anos depois, e de 15 dos 25
senadores eleitos em 1982 para apenas dois senadores.
Nos dois países, o governo busca construir uma maioria estável por meio da
divisão de cargos e concessão de emendas orçamentárias, o que torna menos
importante a identificação ideológica ou partidária do que a lógica de se estar com o
governo, que exerce hegemonia política, dada também a centralidade do Poder
Executivo, ou de se estar contra ele, buscando instabilizá-lo para quem sabe
angariar os frutos políticos do fracasso governamental. Desse ponto de vista,

______________________________________________
89
A associação dos nomes dos Ministros às suas origens partidárias pré-65 é feito pelos dois historiadores: “No
ministério, eram udenistas o potiguar Aluízio Alves (Administração), os baianos Antônio Carlos Magalhães
(Comunicações) e Roberto Santos (Saúde), o catarinense Jorge Bornhausen (Educação), o mineiro Aureliano
Chaves (Minas e Energia), o paulista Roberto de Abreu Sodré (Relações Exteriores) e o carioca Raphael de
Almeida Magalhães (Previdência Social). Do PSD, minoritários, eram o goiano Íris Rezende (Agricultura) e o
maranhense Renato Archer (Ciência e Tecnologia). A chefia da Casa Civil ficou com o professor
pernambucano Marco Maciel, ligado ao senador pessedista Nilo Coelho (então já falecido), que se unira à
UDN às vésperas do golpe de 1964” (Lopez e Mota, 2008: 878).
215

Alfonsín e Sarney enfrentaram realidades distintas, na sua relação não apenas com
o Congresso, mas também com os governadores, líderes dos Poderes Executivos
dos Estados (ou Províncias, na Argentina). As relações com os poderes organizados
da sociedade, como o poder corporativo dos militares, sindicatos, empresários,
meios de comunicação, Igreja Católica e, para finalizar, as organizações do
movimento de direitos humanos, seriam bastante mais difíceis para o mandatário
argentino do que para o brasileiro – em cada um destes quadrantes, é bom frisar. A
história comparada do período aponta para um contraste evidente entre, de um lado
da fronteira, o governo hegemônico do presidente Sarney, do outro, a instabilidade
ingovernável para o presidente Alfonsín.
Por outro lado, não obstante as diferenças entre as respectivas realidades
políticas domésticas, Alfonsín e Sarney assumiram o poder político com dois
desafios em comum pela frente: avançar o processo de democratização e controlar a
crise socioeconômica. Quanto ao primeiro, tratava-se de produzir uma dinâmica
favorável à interrupção do pêndulo democracia-ditadura-democracia, que marcou a
história contemporânea desses países, desde os anos 1930, com mais oscilações
no caso argentino; quanto ao segundo desafio, tratava-se de recuperar as
capacidades estatais, mais debilitadas no caso argentino, mas não menos delicadas
no caso do Brasil, recuperando as economias nacionais e os decaídos indicadores
sociais herdados das décadas de instabilidade e de modernização capitalista. Em
ambas as agendas, convergiam as expectativas majoritárias tanto dos setores
organizados da sociedade como da população em geral, as quais, por sua vez,
alinhavam-se às promessas acenadas pelos presidentes durante as campanhas, isto
é, de consolidar a democracia e de controlar a crise econômica e social90.
No tema da política para lidar com a questão militar, isto é, com as lideranças
militares remanescentes, avançando no tema do controle civil e democrático das
Forças Armadas e definindo-se a respeito da questão das violações de direitos
humanos durante o autoritarismo, assoma-se outra semelhança entre os primeiros

______________________________________________
90
Recorde-se que, no Brasil, embora as eleições fossem indiretas, os candidatos da “Aliança Democrática”
(Tancredo Neves e José Sarney) e seus aliados realizaram uma série de comícios nas principais cidades do
país, entre o fim de 1984 e o início do ano seguinte.
216

governos civis: Alfonsín e Sarney puseram em prática a estratégia de “autolimitação


do poder civil” nesta questão.
Na Argentina, o governo Alfonsín conseguiu evitar uma ruptura do regime
democrático, mas, para isso, terminou por, em primeiro lugar, submeter-se às
exigências dos militares, descumprindo os compromissos assumidos a respeito do
julgamento dos responsáveis pelas violações de direitos humanos, ao negociar a
aprovação das Leis de Obediência Devida e do Ponto Final, que na prática
anistiavam os responsáveis pela repressão e atribuíam a responsabilidade apenas
aos comandantes das Forças Armadas; em segundo lugar, Alfonsín terminou por
sacrificar a integridade temporal do próprio mandato, pois se encontrava sob forte
pressão pela ocorrência de mais uma sublevação militar quando renunciou em
198991.
No Brasil, a opção de Sarney foi semelhante, embora sem os sobressaltos
espetaculares que caracterizaram o governo Alfonsín. O presidente brasileiro, assim
como a sua base de sustentação política, era a expressão viva da “conciliação pelo
alto” e, na questão dos direitos humanos, Sarney optou pela estratégia de manter a
anistia geral aprovada pelo Congresso em 1979 e não quis saber de enfrentamentos
com o poder militar (entre os anos 80 e o final dos anos 2000, enquanto a questão
dos direitos humanos permaneceu altamente politizada no cenário argentino durante
todo o período, no caso do Brasil o tema não teve destaque comparável até o
segundo mandato do governo Lula).
Para enfrentar ambos os desafios, mas principalmente para lidar com a crise
econômica, era necessário recuperar a credibilidade interna e externa, era
necessário criar condições de governabilidade, as quais supunham apoio de
autoridades econômicas internacionais, de organizações multilaterais e de governos
estrangeiros, como o norteamericano, para poder colocar em prática políticas
econômicas e sociais que melhorassem os alarmantes indicadores sociais herdados
das décadas de modernização econômica e de instabilidade política, nos dois

______________________________________________
91
Sobre a questão da relação entre civis e militares durante a transição e nos primeiros anos do governo
Alfonsín, ver o excelente livro de Horácio Verbitsky, autor que se especializou na questão dos direitos
humanos na Argentina, intitulado Civiles y Militares – Memória Secreta de la Transición, publicado em 2003.
217

países. A explosão dos juros e a consequente multiplicação da dívida externa, o


crescente déficit fiscal, a fuga massiva de capital financeiro das economias
latinoamericanas e o quadro inflacionário combinado com a recessão econômica
definiram o contexto final da crise do modelo nacional-desenvolvimentista e do
Estado protecionista, o qual na prática encontrava-se debilitado para intervir. As
questões mais urgentes das respectivas gestões presidenciais gravitavam em torno
da dívida externa, da estabilização econômica e da necessidade de retomar o
crescimento, combatendo ao mesmo tempo a desigualdade social herdada das
décadas anteriores de desenvolvimento capitalista para não descumprir as
promessas e assim frustrar as expectativas democráticas de justiça social.
Quando Alfonsín assumiu a Casa Rosada, a economia argentina encontrava-
se numa crise agudíssima. Desde 1981, predominava o desgoverno e a situação
beirava o caos – este não foi o contexto do aumento da mobilização popular que
precedeu o ataque militar às Malvinas? A “grande transformação” neoliberal posta
em marcha desde meados dos anos 70 modificou as normas básicas do
funcionamento da economia argentina desde 1930. A ruptura neoliberal iniciada em
meados de 1975, com o plano econômico conhecido como Rodrigazo, foi um dos
eventos finais do governo interrompido de Isabelita. No entanto, as prescrições
neoliberais foram executadas de forma mais consistente e radical pelo regime
autoritário subsequente, a partir de meados de 1977. Naquele momento, elas foram
precocemente postas em prática (em comparação não apenas aos demais países da
região, mas do mundo), e tiveram como uma de suas consequências o
enfraquecimento da capacidade do Estado de intervir na realidade socioeconômica.
O novo modelo econômico implantado no final dos anos 70, centrado na
desindustrialização e financeirização da economia argentina, na abertura unilateral e
no endividamento público, havia piorado a situação dos setores produtivos, que
estavam estagnados havia anos92. Sem exagero, todos os analistas do período

______________________________________________
92
O setor industrial argentino teve um desenvolvimento bastante diverso do brasileiro nos anos 70 e 80: de
acordo com dados da CEPAL, entre 1970 e 1980 o crescimento industrial médio anual da Argentina foi de 1,6
%, enquanto o do Brasil foi de 9,0% (apesar da crise do “milagre econômico”, a partir de meados da década);
nos primeiros cinco anos da década de 80, o setor industrial sofreria um encolhimento maior na Argentina (-
3,2% a.a.) do que as indústrias no Brasil (-0,6% a.a.). Às vésperas da criação do MERCOSUL, os números de
218

constatam que a “economia real” argentina encontrava-se destruída e o que restou


estava mais concentrado e desnacionalizado, dado o aumento da presença do
capital estrangeiro93.
À distância no tempo, é curioso notar que, apesar do enfraquecimento do
Estado e da necessidade de realizar reformas mais profundas, alegação dos setores
mais liberais da sociedade e mesmo do governo, a política econômica do primeiro
ano de governo orientou-se de acordo com as fórmulas intervencionistas e
distributivas bem conhecidas na Argentina do passado. Ou seja, buscou restaurar
algo do modelo que havia sido profundamente transformado, desde meados dos
anos setenta. A explicação é que o governo pretendia não criar divisões na
sociedade e, ainda por cima, com as políticas anticíclicas ele podia ajustar-se às
próprias promessas de campanha do primeiro mandatário – as políticas adquiriam
um sentido democrático, equitativo e justo, como alegava o discurso oficial. Vistas de
hoje, no entanto, as políticas baseadas nos princípios do pensamento estruturalista
de estímulo à demanda, baseadas em concessão de aumentos salariais e de
benefícios de assistência social, no controle estatal do crédito, do câmbio e dos
preços, entre outras medidas voltadas para o fortalecimento do mercado interno,
pareciam não levar em conta as transformações estruturais, em particular a
deterioração do aparato produtivo, a magnitude do déficit e o aumento progressivo
da dívida externa. Aquele retorno a um passado conhecido e compartilhado por
experiências tanto de radicais como do peronismo duraria cerca de quinze meses,
desde a posse até fevereiro de 1985, quando tem início a segunda parte da gestão
econômica de Alfonsín.

______________________________________________
fechamento da década confirmariam a tendência dos primeiros anos, apesar da redução do ritmo da
desindustrialização, nos dois países: média de -1,4% na Argentina, para o período de 1980-1990, e de -0,2%
no Brasil. Apesar dessas diferenças, o peso proporcional do setor industrial em ambos os países, em 1990, era
semelhante: 27,8% do PIB (Argentina) e 27,9% do PIB (Brasil).
93
Entre as obras e artigos pesquisados para este trabalho, as melhores análises da implantação do
neoliberalismo foram feitas pelo economista argentino Jorge Schwarzer (1986, 1998, 2004). Em seus
trabalhos, Schwarzer concilia a análise das estruturas de longo prazo à análise das dinâmicas políticas e
institucionais impulsionadas pelas imbricações entre o poder econômico e o poder político-social, base do ele
denomina “o establishment argentino”. Além dos três trabalhos destacadas acima, vale remeter ao livro sempre
citado de Jorge Sábato (1998), La Clase Dominante en la Argentina Moderna: Formación y Características, e
ao de Daniel Aspiazu e Eduardo Basualdo (org.) (1987). El Nuevo Poder Económico em la Argentina de los
Años Ochenta. Jorge Schvarzer realizou inúmeros trabalhos em conjunto com Jorge Sábato, desde o início
dos anos 1980 até o seu falecimento, em 2008. Daniel Aspiazu e Eduardo Basualdo também possuem uma
série de trabalhos voltados para a história econômica e política da Argentina, entre os quais Sistema político y
modelo de acumulación en Argentina (de Eduardo Basualdo). Por fim, é preciso citar os trabalhos de Aldo
Ferrer (1989, 1998, 2003), os quais também contribuíram para a formação deste texto.
219

As políticas econômicas da primeira parte, na gestão do primeiro Ministro da


Economia, Bernardo Grinspun, duraram pouco porque fracassaram no objetivo
crucial de estabilizar a economia, sem o quê tudo o mais perdia o sentido. O governo
não tinha capacidade de promover as transferências de recursos aos grupos
empresariais que tinham acesso ao crédito e ao mesmo tempo atualizar o
pagamento ao menos dos juros da dívida externa94. Internamente, se no primeiro
ano de governo a maioria dos agentes políticos e econômicos haviam se mantido na
defensiva, dando suporte à forte liderança presidencial, a partir do início de 1985 a
oposição ao governo cresceu e a crise social alcançou níveis alarmantes, desatando
os conflitos distributivos que se conservaram relativamente latentes na primeira parte
do governo. O quadro inflacionário era a fachada mais visível da fragilidade das
políticas econômicas: no ano de 1983, foi registrada a segunda maior inflação da
história argentina até então (343%) – a mais alta fora atingida em 1976 (444%),
sendo que nos sete anos de regime militar a inflação anual foi sempre superior a
100%. Em 1984 e 1985, a situação ficou ainda pior: primeiro subiu para o índice de
626% e depois para 672%95.
Foi neste contexto inflacionário, de déficit fiscal e deterioração das contas
externas pela explosão dos juros e pela saída de capitais, que Alfonsín fez uma
substituição ministerial, substituindo um quadro de perfil mais político, como

______________________________________________
94
Em sintonia com o Chanceler Dante Caputo, e sob ordens da Presidência, Grinspun promoveu uma política de
enfrentamento com o Fundo Monetário Internacional e os credores externos, exigindo auditoria na dívida, o
que era consistente com a política de desconfiança com relação aos Estados Unidos. Na segunda metade do
governo, após a gestão de Grinspun, tanto a política de enfrentamento com o Fundo como a desconfiança nas
relações com os Estados Unidos sofreriam transformações.
95
As informações estatísticas atualizadas sobre a Argentina estão no livro de Pablo Gerchunoff e Lucas Llach
(2007), obra rica em análises aprofundadas da trajetória argentina durante o século XX, “o ciclo da ilusão e
desencanto” com as políticas econômicas, como indica o título (El Ciclo de la Ilusión y el Desencanto: Um Siglo
de Políticas Econômicas Argentinas). No livro de Mónica Peralta Ramos (2007), também são encontradas
análises bastante interessantes da economia política das políticas econômicas argentinas, mesma abordagem
do livro de Gerchunoff e Llach, porém sobre o período de 1930 a 2006. Merecem destaque as análises de
Mónica Ramos sobre a herança do Proceso de Reorganización Nacional (capítulo IV), que expõe as
continuidades e rupturas das “duas gestões econômicas” de Alfonsín (dos ministros Bernardo Grinspun e Jean
Sourrouille), e sobre os principais desafios políticos da gestão econômica do governo radical (capítulo V), este
último, assim como outros trabalhos sobre o período (e.g., L. Romero, 2001, capítulo VIII, seção 2), está
subdividido em seções que correspondem a duas questões: a questão militar e a questão sindical.
220

Grinspun96, por um profissional de perfil técnico, Juan Sourrouille, recém aproximado


à política e pouco conhecido da complexa estrutura partidária da UCR. A nova
equipe econômica do governo lançou um plano de estabilização heterodoxa, o
“Programa de Reforma Econômica”, logo rebatizado pela imprensa como o “Plano
Austral”. A mudança também sinalizava uma mudança de estratégia do governo, que
nos primeiros dois anos havia tentado conduzir as questões pela ampla mobilização
pública a favor dos argumentos que justificavam as decisões políticas fundamentais,
isto é, pela mobilização da cidadania sob a liderança pessoal de Alfonsín. A partir
das dificuldades enfrentadas nos fronts político, militar e sindical, o governo procurou
aumentar a sua identificação com intelectuais de prestígio e de técnicos. As eleições
legislativas de outubro de 1985 aproximavam-se e o governo pretendia, com o novo
ministro e o seu plano de estabilização, evitar uma derrota para o peronismo e,
quem sabe, conquistar a maioria no Senado, onde era minoritário desde o início do
mandato. O novo ministro, Sourrouille, assumiu o cargo em fevereiro de 1985 e,
quatro meses depois (14 de maio), foi anunciado o novo plano econômico.
Se a gestão do ministro Grinspun caracterizou-se pela tentativa de retorno ao
modelo protecionista e de estímulo à demanda, a nova gestão sinalizou, desde a
primeira mensagem ministerial e outras declarações oficiais, a necessidade de
valorizar o setor agrícola e de promover uma reestruturação industrial, o que seria
perseguido por meio de uma abertura gradual e unilateral do mercado argentino.
Antes de anunciar o plano, a equipe econômica trabalhou secretamente na sua
elaboração, enquanto pôs em prática um conjunto de medidas que aparentemente
davam continuidade ao intervencionismo anterior, mas que tinham o propósito de
“cristalizar uma determinada estrutura de preços relativos antes da aplicação do
novo plano de estabilização” (M. Ramos, 2007: 205-6). O apelo liberal ao setor
agrícola exportável e à reestruturação industrial forçada pela abertura não eram

______________________________________________
96
O ministro Bernardo Grinspun era uma figura política bem conhecido nos quadros políticos do radicalismo,
que havia participado da gestão radical de Arturo Illía, entre 1963 e 1966. Além de sua atuação no governo e
no partido, Grinspun é considerado um dos principais representantes do pensamento estruturalista ligado à
CEPAL e à figura de Raúl Prebisch. Neste ponto, havia convergência teórica entre Grinspun e o ministro Juan
Sourroille, que lhe sucedeu no cargo em fevereiro de 1985. Depois de ser ministro entre 1983 e 1985,
Grinspun exerceria ainda o cargo de Secretário de Planificação Econômica, entre 1987 e 1989, durante a
gestão de Sourrouille.
221

novidade na política argentina, embora desta vez a tentativa de estabilização


econômica fosse feita por meio de um plano heterodoxo, mais uma vez elaborado
pelas elites tecnocráticas, desviando-se de quaisquer negociações com os setores
econômicos atingidos e mesmo com as bases políticas de sustentação ao governo.
O presidente Alfonsín deparou-se com uma realidade política repleta de
obstáculos políticos e institucionais, uma realidade bastante pedregosa, por assim
dizer. Diante disso, ele optou por governar ativamente, buscando apoiar-se na
legitimidade pessoal obtida pelo voto majoritário dos eleitores, na liderança de
intelectuais e técnicos novatos na política e, em menor medida, nos setores mais
jovens e ligados à Junta Coordinadora Nacional (UCR)97, que demonstraram grande
capacidade de mobilizar os estudantes em favor das causas governamentais. Com
isso, ele descartou a opção pelas soluções consensuais e negociadas, em parte
porque os setores organizados encontravam-se na defensiva, em parte porque via
no exercício do voluntarismo pessoal um modo de ganhar a adesão da cidadania e
converter os setores resistentes a seu favor. Em alguns momentos, como durante o
período inicial pós-eleições ou enquanto durou o sucesso relativo do Plano Austral, a
estratégia rendeu bons resultados políticos. No entanto, na maioria das vezes, o
poder da cidadania mostrou-se insuficiente para impedir as derrotas governamentais
diante dos poderes corporativos e da oposição político-partidária, os quais imporiam

______________________________________________
97
A Junta Coordinadora Nacional, ou simplesmente Coordinadora, foi fundada em 1968 por um setor interno ao
radicalismo, e, naquele contexto de conflitos armados e profunda polarização política, articulou-se à
organização estudantil Franja Morada, que chegou a liderar a Federação Universitária Argentina e participou
de inúmeras ações de oposição ao regime militar de 1966-1973, como o Rosariazo e o Cordobazo. Nos anos
80, a Coordinadora aproximou-se do Movimiento Renovación y Cámbio, liderado por Raúl Alfonsín e políticos
próximos a ele desde o início dos anos 70. Como dito no corpo do texto, a Coordinadora exerceu um papel
importante até meados do governo Alfonsín. No entanto, eles se dividiriam e alguns de seus membros seriam
responsáveis pela aproximação, no final dos anos 90, com setores mais tradicionais do radicalismo, ligados ao
balbinismo, o que daria origem à Alianza, chapa eleitoral articulada pela UCR e pela FREPASO. A Alianza
chegou à presidência com a dupla Fernando De La Rúa (UCR, balbinista) e Carlos “Chacho” Álvarez
(FREPASO, ex-membro do PJ, que participou da frente parlamentar independente Grupo de los 8, os quais
afastaram-se do partido após o indulto aos militares concedido por Carlos Menem, em 1989). A FREPASO, por
sua vez, teve como base a “Frente Grande”, criada em 1993 para coligar um conjunto de organizações e
setores partidários: egressos do PJ que se opuseram ao presidente Carlos Menem pelo indulto e pelo modelo
neoliberal, como a Frente del Sur, liderada por Fernando “Pino” Solanas, e o Grupo de los 8; o Partido da
Democracia Cristã; o Partido Comunista; o Partido Intransigente; militantes do ativo movimento de direitos
humanos, com destaque para a liderança de Graciela Fernández Mejilde; entre outros políticos, que se
alinhavam em torno de plataformas como a democratização das políticas públicas e a realização da justiça
social. Por algum tempo, após 1993, a FREPASO alcançaria a posição de segunda força política nacional,
obtendo resultados mais favoráveis do que o radicalismo (isto é, a UCR, com as fraturas pós-Alfonsín).
222

duros golpes ao governo, ao mesmo tempo em que a estratégia de Alfonsín


contribuía para criar fissuras em suas próprias frentes de apoio inicial.
Os objetivos principais do plano econômico eram deter a inflação e, embora
isto não fosse enunciado, controlar os comportamentos estimulados pela
instabilidade dos preços, como as condutas especulativas. Mónica Ramos (2007)
resume as medidas que prepararam o terreno para o plano e as que o compunham:

“O Plano Austral, aplicado em junho de 1985, consistiu em uma drástica redução do


déficit fiscal através de um aumento dos impostos à exportação e das tarifas
públicas, da introdução de um esquema compulsório de poupança que, na prática,
constituiu outro imposto a mais, e da melhoria da arrecadação impositiva. Ademais,
o plano incluiu uma desvalorização de 15%, seguida por um congelamento do tipo
de câmbio, da maioria dos preços e dos salários. (...) estas medidas serviram para
congelar a estrutura de preços relativos vigente no momento do plano, claramente
desfavorável para o setor assalariado e favorável para a indústria. Por outro lado,
criou-se uma nova moeda, o austral. Cada unidade era equivalente a 1.000
unidades do antigo peso. Esta foi simplesmente uma mudança de numerário
destinada a ter um impacto de tipo psicológico. Ademais, anunciou-se o
compromisso do governo de não imprimir mais dinheiro para financiar o seu déficit
orçamentário, o que deixava como recursos disponíveis a melhoria da arrecadação
impositiva e o endividamento externo; na prática, este último foi o que primou. Ao
mesmo tempo, o plano continha o anúncio de uma diminuição das taxas de juros de
30% para 6% mensal e introduzia um mecanismo de deságio, que consistiu em uma
tabela que convertia de pesos a austrais os valores das obrigações financeiras que
venciam depois de 14 de junho.” (Ramos, 2007: 207-208)

A opção pelo voluntarismo presidencial intelectualizado e burocrático


manifestou-se em diversas esferas das políticas públicas, sendo o “Plano Austral”
apenas uma de suas expressões, embora crucial para manter a legitimidade do
governo. A estratégia do governo baseava-se na convicção da equipe econômica de
que qualquer tentativa de conter a inflação, para ser bem sucedida, precisava de um
pacote de medidas de impacto. Qualquer política gradualista era descartada, pois os
tomadores de decisão (assim como ocorria no Brasil, no mesmo período)
compartilhavam a visão de que havia, em economias historicamente inflacionárias,
uma forte inflação inercial, quer dizer, a inflação tendia a perpetuar-se, por
“coordenar os comportamentos dos agentes econômicos”, para se usar o jargão
repetido à época. Como destacavam os analistas favoráveis à via heterodoxa, tanto
nos casos históricos de outros países, sendo o exemplo mais estudado o da
Alemanha em 1923, como nas estabilizações transitórias da Argentina, era preciso
223

lidar com as expectativas inflacionárias98. Assim, convencidos teoricamente da


adequação das medidas aos resultados pretendidos – isto é, controlar a inflação em
primeiro lugar, para atacar os problemas de fundo do déficit fiscal e da emissão
monetária – coube à esfera tecnocrática do governo, depois da gestação insulada do
plano, anunciá-lo e justificá-lo ao público argentino, ansioso por uma solução para o
descontrole inflacionário e das contas públicas.
Depois de um período inicial em que o plano funcionou relativamente bem, a
inflação voltou a aumentar, mesmo que não aos patamares anteriores: a inflação
mensal caíra de cerca de 30% no semestre que antecedeu o pacote, para oscilar em
torno de uma média mensal de 4%, no segundo semestre de 1985. Uma pesquisa
de opinião de outubro mostrava que 68% dos entrevistados consideravam o Plano
Austral “bom” ou “muito bom”, enquanto apenas 9% julgavam-no “ruim” (cf.
Gershunoff e Llach, 2007: 400). O governo pôde colher os frutos políticos nas
eleições de outubro de 1985, em que a UCR obteve uma vitória na Câmara e
acentuou a crise do peronismo (43% dos votos para a UCR e 34% para o PJ),
mesmo que no Senado a vantagem ainda fosse do PJ. Assim como ocorreria com o
Plano Cruzado, no Brasil, o Plano Austral desempenhou a sua função político-
eleitoral mais imediata, embora sem a mesma expressão retumbante do resultado
colhido pelo governo brasileiro em 1986.
No médio prazo, porém, o retorno da inflação, mesmo que em níveis de um
dígito, combinado aos atrasos das tarifas e do dólar, ocasionava uma deterioração
salarial e dos preços congelados. Diante do dilema de prorrogar o congelamento e

______________________________________________
98
Quem analisa com detalhes as bases teóricas dos tomadores de decisão são os economistas Gershunoff e
Llach, no trabalho citado acima (2007). Quanto aos precedentes argentinos de estabilização, afirmam os
autores: “Em casos como o argentino, purgar a memória inflacionária havia resultado muito mais complexo, e
havia sido necessário congelar tudo o que fosse possível, desde o tipo de câmbio e as tarifas públicas até os
preços privados e os salários. O êxito inicial dos planos de Gómez Morales (1952), de Gelbard (1973) e de
Krieger Vasena (1967) tornava-se evidência favorável ao enfoque da equipe de Sourrouille. Ao mesmo tempo,
a insuficiência de programas que confiassem exclusivamente em instrumentos ortodoxos sem atuar
diretamente sobre as expectativas restava demonstrada pelo fracasso das tentativas estritamente monetaristas
de 1962-63 (Alsogaray), 1977 (Martínez de Hoz) e 1982 (Alemann)”. Dá-se importância ao tema,
aprofundando-o, porque estas questões práticas e teóricas também tiveram um peso central nos sucessivos
planos econômicos implantados no Brasil, no mesmo período. Assim como na Argentina, predominaria o
insulamento burocrático e a tentativa governamental de “coordenar” as condutas dos agentes econômicos,
estabelecendo políticas e transformando instituições “desde cima”, nos moldes teorizados pelo “modelo
burocrático-autoritário” do Estado. Ademais, as figuras de Alsogaray e Alemann voltariam à cena política com a
ascensão de Carlos Menem e do modelo neoliberal renovado no início dos anos 90.
224

“flexibilizar” o plano, o governo anunciou a segunda opção em abril de 1986. Como


observam Gershonoff e Llach (2007: 402), “não era um retorno ao ponto de partida,
porque o índice mensal de inflação era dez vezes menor, mas a diferença entre a
etapa que se abria com a flexibilização e a que havia sido concluída em junho de
1985 era menos de natureza do que de grau”. A situação fora amenizada, a
princípio, mas não haviam sido transformados os fundamentos estruturais da crise.
Para piorar, viria o retorno ao descontrole inflacionário: a inflação anual de 1986
atingiu o patamar de 90% e, em 1987, ela voltava a ultrapassar a barreira dos três
dígitos, com 131%.
O ano de 1987 foi crucial para a decadência do governo Alfonsín. Como
registra a literatura, desde meados de 1986 a política de estabilização já era vista
como fracassada e dali em diante ela careceu de uma estratégia estruturada. Assim,
diante do acúmulo de fracassos e do descontrole da economia nas questões-chave
da inflação, do déficit fiscal e da dívida externa, durante o ano de 87 foram dados
vários sinais (por autoridades econômicas do governo) de que seria necessário
aderir às politicamente complicadas “reformas estruturais”. Em julho, as equipes do
Ministério da Economia e do Ministério de Obras e Serviços Públicos anunciaram um
conjunto de medidas de transformação profunda do setor público99. A maioria dos
projetos governamentais de “reforma” não passou de ideias que não ultrapassaram o
próprio governo ou não passou pela necessária aprovação legislativa, pois o
governo não tinha o suporte parlamentar necessário e ainda enfrentou oposição
cerrada em cada um dos itens propostos.
Em 1988, o índice de inflação repetiria o do primeiro ano de governo (343%),
simbolicamente mostrando que a curva do processo conduzira ao mesmo ponto,
como se o país patinasse sem sair do lugar nos cinco primeiros anos de governo.
Faltando menos de um ano para as eleições presidenciais, o governo ainda tentou
atacar o problema com um novo plano, em setembro de 1988, denominado “Plano

______________________________________________
99
Cerca de um ano antes, o governo anunciara em Houston, nos Estados Unidos, um plano para a reativação
dos investimentos estrangeiros, em especial no setor petrolífero. Naquele mesmo ano de 1986, o governo
sinalizou outras propostas liberalizantes, que seriam aprofundadas em 1987, a partir do anúncio ministerial
conjunto: uma profunda reforma fiscal, a privatização de empresas estatais (como, por exemplo, as Aerolíneas
Argentinas e parte da Empresa Nacional de Teléfonos, a ENTEL) e a desregulamentação da economia.
225

Primavera”. Porém, as medidas foram ineficientes e, em 1989, instaurou-se o quadro


de hiperinflação, o qual, combinado às sucessivas demonstrações de fraqueza do
governo diante dos poderes corporativos, como os militares, os empresários e os
sindicatos, estes últimos de orientação predominantemente peronista, levou à
derrocada de Alfonsín da Casa Rosada e à transmissão antecipada da Presidência
da República para o presidente eleito Carlos Menem, do PJ. O ano de 1989
terminou com um índice de inflação anual de 3079%, que no ano seguinte, primeiro
do governo Menem, cairia apenas para 2314%. A crise, ou melhor, a longa
decadência econômica argentina dos anos 70/80 atingira o seu ápice.
Dois fatores adicionais favoreceram a descrença dos cidadãos argentinos
diante da política democrática durante o primeiro ciclo civil pós-1976: a questão
militar e a questão sindical. Ambas as corporações mostraram-se fortes o suficiente
para afastar as pretensões governamentais de cumprir o prometido à sociedade, e
para mostrar à cidadania, organizada ou não, que as expectativas depositadas sobre
as instituições democráticas não passava de uma “ilusão democrática”. As imagens
de “frustração” ou de “desilusão” ou de “fracasso” etc. são uma constante na
literatura politológica argentina, lugares comuns exaustivamente explicados e
revisitados. Entre as razões do insucesso de Alfonsín no aprofundamento da
democracia, não se pode desprezar o peso dos dois poderes corporativos
destacados a seguir.
Na questão militar, ou da justiça pelas violações de direitos humanos, a
trajetória do governo Alfonsín colecionou capitulações atrás de capitulações, apesar
de seu histórico como enérgico defensor dos direitos humanos e da ênfase dada ao
tema na campanha eleitoral. Todo o mandato foi marcado por levantes militares e
pela politização do tema e, mesmo com a participação dos cidadãos e das
organizações de direitos humanos, mais fortes até o final de 1985, dando suporte ao
presidente nos momentos cruciais, Alfonsín terminou optando pela estratégia de
conciliação com os sublevados e com os demais defensores da anistia aos
responsáveis pelas violações. Desde o início, multiplicaram-se as denúncias
públicas, pelos meios de comunicação e por um informe criteriosamente preparado
pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP),
constituída pelo próprio governo em 15 de dezembro de 1983, assim como se
multiplicaram as ações judiciais contra militares de diversas patentes e das três
Forças Armadas.
226

Embora os militares tenham terminado o regime desmoralizados e divididos, a


pretensão das instituições republicanas de avançar na responsabilização penal teve
como consequência a reunião do estamento militar. A solidariedade corporativa
começou a se impor no ano de 1984, tão logo o Congresso revogou a “lei” de anistia
instituída pelo regime militar100. O Poder Executivo propôs e aprovou uma reforma
do Código de Justiça Militar, a qual encaminhava o julgamento das ações da
ditadura à Justiça comum (Câmara Federal de Apelações), como uma segunda
instância competente para julgar os recursos contra as decisões proferidas pela
Justiça Militar, a qual possuía a jurisdição para conhecer e julgar em primeiro grau
as referidas ações. Por meio de decretos do Poder Executivo, determinava-se
também o julgamento de guerrilheiros e de todos os ex-comandantes das três
Forças Armadas, inclusive os Generais-Presidentes101. A partir daí, houve uma
afinação do discurso militar, que justificava os atos cometidos pela alegada
existência de uma situação de guerra, a “guerra suja”, contra os “guerrilheiros,
terroristas e demais subversivos”.
Após o juízo dos chefes militares, a Justiça começou a receber as ações
judiciais contra oficiais de diversas patentes, o que gerou um clima de tensão nos
quartéis. Diante disso, o governo negociou no Congresso a aprovação da chamada
Lei do Ponto Final, que estipulava um prazo final de sessenta dias, contados a partir
da promulgação da Lei (24 de dezembro de 1986), para o início das ações penais de

______________________________________________
100
A chamada “Lei de Pacificação Nacional” (Lei n. 22.924, de 22 de setembro de 1983), foi instituída durante o
mandato do presidente de fato, general Reynaldo Bignone, e estabeleceu a anistia geral para todos “autores,
“partícipes”, “instigadores”, “cúmplices” ou “encobridores” de delitos com “finalidade terrorista ou subversiva” e
estende o benefício aos que os cometeram com a “finalidade de prevenir, conjurar ou pôr fim às referidas
atividades terroristas ou subversivas” (Art. 1º da “Lei”, que, do ponto de vista constitucional, como reconhecem
juristas e depois reconheceria a própria Corte Suprema e também a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, não é propriamente uma Lei, até porque, no caso argentino, o Congresso encontrava-se fechado).
Após a transição de regime, o Congresso aprovou, Alfonsín sancionou, e o Congresso então promulgou a Lei
n. 23.040, em 27 de dezembro de 1983. A nova legislação derrogou a Lei de Pacificação Nacional, por
considerá-la inconstitucional, declarando-a nula de forma insanável.
101
Por determinação do Poder Executivo, via Decreto, podiam figurar como réus os membros das três primeiras
Juntas Militares: os Generais de Exército Jorge Videla, Eduardo Viola e Leopoldo Galtieri; os Brigadeiros da
Aeronáutica Orlando Ramón Agosti, Omar Domingo Rubens Graffigna e Basilio Lami Dozo; e os Almirantes
Emilio Eduardo Massera, Armando Lambruschini e Jorge Isaac Anaya. O julgamento ocorreu em 9 de
dezembro de 1985 e a Câmara Federal de Apelações acordou a seguinte decisão: Videla e Massera foram
condenados à prisão perpétua, Viola, a dezesseis anos de prisão, Agosti, a quatro anos e meio, e
Lambruschini recebeu uma pena de oito anos de prisão. Todos eles foram considerados inabilitados para o
exercício de qualquer cargo público. Graffigna, Galtieri, Anaya e Lami Dozo foram absolvidos pela Justiça.
227

responsabilização penal dos envolvidos. Em lugar de apaziguar os setores


favoráveis à anistia completa e os favoráveis à prevalência dos direitos humanos, o
gesto coordenado por Alfonsín desagradou a ambos e, ainda por cima, acelerou
tanto o ritmo das citações judiciais como a reação dos militares nos quartéis e nos
meios de comunicação.
O aprofundamento da tensão chegou ao ponto máximo na Semana Santa de
1987. Militares carapintadas aquartelaram-se no Campo de Mayo, a 30 km do centro
da capital federal, sob a liderança do Tenente-Coronel Aldo Rico, membro do grupo
de “heróis das Malvinas”, exigindo uma solução política para a questão das citações
judiciais e uma reconsideração da conduta do Exército durante a ditadura. A
população foi convocada e saiu às ruas, em apoio ao governo civil e para impedir um
eventual golpe de Estado – a reação da sociedade civil, desta vez, foi “unânime e
massiva”, como se refere Romero, que narra com clareza o desfecho do episódio e a
decepção cidadã diante da capitulação presidencial:

“Durante as quatro tensas jornadas houve muitas negociações, mas estas não se
concretizaram até que Alfonsín – quem presidia a grande concentração cívica na
Praça de Maio – não se entrevistou com os amotinados no Campo de Maio. Chegou-
se a um estranho acordo. O governo sustentou que faria o que já havia decidido
fazer – o que seria a Lei de Obediência Devida, que exculpava massivamente aos
subordinados – e os amotinados não impuseram nenhuma condição e aceitaram a
responsabilidade de sua ação. Mas para todos pareceu uma claudicação, em parte
porque assim apresentaram tanto os ‘carapintadas’ amotinados como a oposição
política, que não quis assumir nenhuma responsabilidade no acordo. Porém, pesou
muito mais o desencanto, a evidência do fim da ilusão: a cidadania era incapaz de
dobrar os militares. Para a sociedade, era o fim da ilusão da democracia. Para o
governo, o fracasso de sua tentativa de resolver de maneira digna o enfrentamento
do Exército com a sociedade, e o começo de um longo e desgastante calvário.”
(Romero, 2001: 251)

Logo depois do levante, o governo negociou novamente com o Congresso e


depois sancionou a Lei de Obediência Devida (Lei n. 23.521, de 04 de junho de
1987), que estabeleceu a presunção, sem admissão de prova em contrário, de que
os oficiais que cometeram delitos durante a “guerra suja” do Proceso de
Reorganización Nacional o fizeram por obediência hierárquica, sendo portanto
isentos de responsabilização penal. O objetivo do governo era satisfazer as
demandas dos revoltosos e apaziguar os ânimos das cúpulas militares, que haviam
dado demonstrações inequívocas de conivência com os oficiais amotinados. A
promulgação da lei era mais um capítulo da autolimitação do poder civil diante das
demandas corporativas provenientes, sobretudo, do Exército, mas também
reverberadas por representantes da Marinha e da Aeronáutica.
228

Mas a questão militar ainda não se deu por encerrada. Dois novos eventos
determinariam a desmoralização final do governo Alfonsín, em certa medida
extensiva às próprias instituições democráticas, nos termos imaginados pelo
discurso do “Consenso de 83”. Em janeiro de 1988, Aldo Rico escapou do cárcere
onde cumpria prisão administrativa e voltou a liderar um amotinamento, desta vez
em um quartel em Monte Caseros, na província nordestina de Corrientes: o levante
militar teve menor repercussão e o respaldo da cúpula também foi reduzido,
resultando na perseguição e prisão do Tenente-Coronel. Em dezembro do mesmo
ano, houve um novo levante militar, que terminaria com quatorze mortos e com a
prisão do Coronel Mohamed Alí Seneldín, considerado o líder dos carapintadas. Por
fim, como se verá adiante, Alfonsín, em meio a tanta instabilidade e à onda de
saques que se instalou no país em consequência da aguda crise econômica,
renunciaria ao mandato presidencial, após antecipar em mais de seis meses as
eleições, previstas para 10 de dezembro de 1989, para 14 de maio do mesmo ano,
enquanto os militares envolvidos nos levantes militares, assim como os ex-
comandantes condenados pela Justiça, foram todos anistiados em 1990, no primeiro
ano do governo Carlos Menem.
A situação sindical na Argentina, a partir do fim da ditadura, era bastante mais
precária do que no Brasil. Em seu desfavor, os líderes sindicais tinham perdido
gradualmente a sua legitimidade diante da sociedade, encontravam-se divididos e,
derrotados os peronistas em 1983, agremiação onde haviam predominado os
dirigentes atrelados aos sindicatos, também a sua frente política estava debilitada.
Do ponto de vista institucional, a situação não era menos precária, fosse pela
desconstrução da legislação trabalhista no período anterior, pelas intervenções
ainda vigentes na transição ou pela falta de legitimidade interna dos dirigentes
sindicais. O enfraquecimento político e institucional das organizações sindicais levou
o governo e a sociedade em geral a subestimarem a capacidade de resistência às
mudanças pretendidas.
Primeiramente, o governo utilizou uma estratégia de confrontação e enviou ao
Congresso uma proposta de lei que, como argumentava o Ministro do Trabalho
Antonio Mucci, visava à democratização dos sindicatos. Os críticos à “Lei Mucci”,
entre eles membros da Igreja, do empresariado e até do próprio governo, alegavam
que, em lugar de democratizar, o propósito da legislação proposta era enfraquecer
ainda mais os sindicatos. É uma questão controversa até os dias de hoje entre os
229

cientistas políticos e no debate público argentino. O fato é que o projeto enviado


previa as eleições internas diretas, secretas e obrigatórias, a representação de
minorias, o limite das reconduções dos dirigentes e, um dos pontos mais
polemizados pelos líderes dos sindicatos e pelos políticos peronistas associados, a
fiscalização dos processos eleitorais pelas instituições estatais. Aprovado na
Câmara dos Deputados em março de 1984, o projeto de reforma institucional foi
derrotado no Senado, obtendo um voto a menos do que o necessário para a sua
aprovação. A derrota resultou da mobilização dos sindicatos, reunidos em solidária
oposição ao projeto, e da aliança destes com o principal adversário político do
governo, o peronismo, apesar da forte crise interna após as eleições e da gradual
separação entre o peronismo político e o sindicalismo, efetuada pela chamada
“renovação peronista”, movimento de renovação no interior do PJ que tinha como
principais expoentes Antonio Cafiero e Carlos Menem.
Em segundo lugar, os sindicatos fizeram dura oposição ao Plano Austral, à
medida que se tornava evidente a redução drástica da massa salarial, apesar de
beneficiar os setores industriais, unindo-se às expressões de descontentamento
social promovidas por aposentados, empresários, Igreja e organizações de
esquerda. O recurso às greves gerais foi maior do que a do período anterior, devido
à vigência plena das liberdades públicas, mas principalmente pela acentuação da
crise econômica herdada da ditadura. Entre 1984 e 1988, foram treze greves gerais
organizadas pela CGT – a única exceção, nesse período, foram os meses
posteriores a junho de 1985, quando o governo obteve o respaldo que lhe daria
vitória nas eleições de outubro.
Depois de tentar conduzir uma estratégia de negociação, que às vezes
recebia a adesão dos líderes sindicais, que, no entanto, muitas vezes abandonavam
as negociações e partiam para o enfrentamento com o governo, finalmente o
governo desenhou uma estratégia para lidar com os sindicatos, quando se
aproximavam as eleições legislativas de 1987, no momento mais crítico do governo
até então.
Enfraquecido politicamente e pela própria crise, o governo aproximou-se de
um grupo de sindicatos importante, o chamado “Grupo dos 15”, nomeando um
Ministro indicado por estas agremiações, Carlos Alderete, e negociando a aprovação
de uma nova legislação sindical. Na prática, o governo cedia em quase todos os
pontos e o projeto foi moldado pelas preferências deste grupo de dirigentes sindicais
230

que participaram das negociações com as instâncias governamentais. As eleições


adiaram a aprovação da lei e, logo após a derrota, Alfonsín substituiu o Ministro, mas
manteve o compromisso e lutou pela aprovação da Lei n. 23.551, promulgada pelo
Congresso em abril de 1988.
A reconstituição do poder sindical e a impunidade do poder militar
demonstravam os limites do processo de democratização diante dos poderes
corporativos. Conforme a interpretação de Marcos Novaro e Vicente Palermo (2003),
os fortes condicionantes econômicos e a debilidade das instituições estatais diante
desses constrangimentos estruturais demonstravam que as supostas consequências
distributivas da democracia não passavam de ilusão. Eles observam que, no caso
argentino, havia uma “dissonância aguda entre as expectativas e possibilidades”
(2003: 16), originada na circunstância paradoxal da transição argentina:

“A transição democrática argentina, considerada à luz de seus equivalentes da


região nos anos oitenta, mostra um traço peculiar: ela apresenta-se ao mesmo
tempo como altamente incondicionada, pois não mediaram pactos nem restrições
significativas impostas pelo poder autoritário de saída aos atores democráticos, e foi
fortemente condicionada pelos legados que estes receberam daquele, seguramente
mais negativos do que aqueles que tocaram a sorte de todas as novas democracias
latinoamericanas.”

No caso do Brasil, convém destacar alguns elementos do governo Sarney,


para comparar à experiência argentina. Os desafios principais referiam-se ao campo
econômico, uma vez que a coalizão parlamentar de apoio à presidência dava-lhe
boas condições para governar. A hegemonia governamental tornou-se possível a
partir das eleições de 1986, explicada em grande medida pelo desempenho
favorável do Plano Cruzado, um plano de estabilização heterodoxa, assim como
ocorrera, no ano anterior, no país vizinho. As eleições gerais de 15 de novembro
serviram não somente para renovar o Congresso Nacional, até então conformado
pelos resultados das eleições de 1982.
Os novos eleitos também exerceriam a função de estabelecer um novo marco
constitucional, nos termos da Assembleia Nacional Constituinte, a qual foi
convocada por meio de Emenda à Constituição de 1967 (EC n. 26, de 27 de
novembro de 1985).
As eleições parlamentares coincidiram as eleições para governadores e o
desempenho da base governamental nas eleições foi impressionante, com destaque
para o próprio partido do presidente Sarney, pois o governo manteve uma sólida
231

coalizão parlamentar nas duas casas do Congresso, tanto pelas dimensões dos dois
principais partidos da base como pelo apoio de praticamente todos os governadores,
que também influenciam nas suas respectivas bancadas estaduais.
Sob o impacto dos efeitos de curto prazo gerados pelo Plano Cruzado, o
PMDB saiu-se como o grande vitorioso: elegeu 200 dos 479 cargos de deputado
federal, conquistou 38 dos 49 senadores eleitos naquela oportunidade e, para coroar
a vitória, elegeu nada menos do que 22 dos 23 governadores de Estado.
Portanto, principais desafios do governo civil estavam no front econômico: o
tratamento da dívida externa e a estabilização econômica. Tratava-se de desafios
similares aos da Argentina, enfrentados inicialmente com planos heterodoxos de
estabilização dos preços e salários e com as mesmas estratégias de negociação da
dívida.
Os planos eram semelhantes e, ao mesmo tempo, dependiam das tentativas
de melhorar as condições para o pagamento da dívida externa junto aos credores e
às autoridades econômicas internacionais102. Os fracassos de Alfonsín e Sarney
foram seguidos de uma adesão à crítica ao Estado protecionista nacional-
desenvolvimentista, como é discutido adiante.
Na questão da dívida externa, cabe destacar a pretensão do governo
brasileiro de uma alteração no tratamento da questão da dívida externa, similar ao
que pretendiam os argentinos.
Assim, quando em fevereiro de 1987 o governo Sarney decretou a moratória
da dívida, ele pretendia convocar os credores para uma renegociação da dívida.
Tratava-se de uma moratória em razão da falência econômico-financeira e não uma
atitude política ou ideológica de contestação aos serviços da dívida, como no caso
da moratória decretada pelo México em agosto de 1982. Tanto é que, no campo
diplomático, o então presidente enviou representantes nacionais aos Estados Unidos
para realizarem contatos diretos com o governo norte-americano de Ronald Reagan.

______________________________________________
102
De acordo com dados do Banco Mundial, os dois países investigados foram atingidos de forma avassaladora
pela crise da dívida: em vinte anos (1975-1994), a dívida externa argentina decuplicou e a brasileira
multiplicou-se por cinco (Rapoport e Madrid, 1998: 286).
232

A intenção brasileira era angariar o apoio dos EUA no sentido de atuar politicamente
junto a bancos privados.
Não é preciso repetir os inacreditáveis registros inflacionários da época, basta
dizer que, em alguns momentos, a inflação mensal chegava a atingir os três dígitos.
Esse problema derrotou todas as tentativas governamentais de contê-lo, desde o
lançamento do efêmero, mas politicamente eficiente, Plano Cruzado, em 1986, até o
derradeiro Plano Verão, em 1989, já às vésperas das eleições presidenciais.
No entanto, apesar de encontrar-se com uma economia menos destruída do
que a Argentina, um fator determinante do fracasso governamental foi a debilidade
do Estado brasileiro, envolto nos problemas associados não apenas à hiperinflação,
mas, sobretudo, à crise fiscal que persistia desde a crise da dívida, uma realidade
compartilhada por todos os países da região, que eram devedores e que foram
severamente atingidos pela escalada dos juros nos Estados Unidos, desde 1979,
pela moratória do México, desde 1982, e pela escassez de financiamento externo, já
que os empréstimos, sobretudo para as economias de industrialização recente,
simplesmente desapareceram dos mercados financeiros.
Em termos de padrão de tomada de decisões, a realidade não se modificou
muito com relação ao período anterior, no sentido de que as decisões permaneciam
centralizadas nas mãos das elites políticas e tecnocráticas. Isto para não falar da
continuação das práticas clientelistas, que persistiam em ambos os países, ou
mesmo dos incontáveis casos de corrupção, que eram tão comuns no Brasil como
na Argentina, países também semelhantes neste aspecto. Muitas das críticas
democráticas feitas por acadêmicos ou pelos órgãos de comunicação de massa,
aliás, apontavam como estes padrões haviam sido acentuados com a concentração
de poder feita durante as ditaduras.
O que se percebia, no caso brasileiro, assim ocorria no país vizinho, era uma
descrença generalizada com relação à capacidade da cidadania de se impor às
pequenas elites políticas e econômicas, as quais eram mediadas por uma cúpula
tecnocrática cujos processos de tomada de decisão careciam de transparência e
accountability. No plano discursivo, a crítica predominante opunha o Brasil dos
coronéis e caciques ao Brasil que se desejava, com o aprofundamento das
instituições democráticas representativas e das formas de participação popular nas
decisões.
233

Essas críticas eram similares às que eram feitas na Argentina, sobretudo


quando se enfatizava o papel dos caudillos, fossem eles de expressão nacional,
onde estava a cúpula dos partidos, fossem esses caudillos representados pelas
lideranças oligárquicas regionais, fundamentais no caso argentino, uma vez que as
listas partidárias de cada província são controladas pelos respectivos governadores
e líderes dos diversos partidos.
No caso do Brasil, de acordo com a síntese de Lopez e Mota (2008: 886),
“[Floresceu] uma cultura política e financeira neoclientelista, acolitada por fortes
empreiteiras, construtoras de grandes obras do Estado e de material bélico
(operando inclusive no Exterior, como no caso do Iraque e de vários países árabes,
na África etc.), adotando práticas monopolistas corriqueiras no cenário nacional”103.
Não se deve confundir o relativo distanciamento dos empresários do processo de
liberalização do regime com o seu alijamento das políticas públicas ou do Estado em
si. Ao contrário, as relações entre empresários e Estado no Brasil evidenciam níveis
muito mais altos de proximidade e de continuidade do que as encontradas na
história contemporânea argentina.
Do ponto de vista político, historicamente a prioridade estratégica dos setores
empresariais e sindicais argentinos foi influenciar as decisões estatais que lhes

______________________________________________
103
Continuam os historiadores, na longa citação a seguir, que poderia sobrecarregar o corpo do texto, mas que
expressa com um estilo próprio dos autores a percepção generalizada dos caminhos da modernização
burocrático-autoritária no Brasil, com ênfase nas heranças incorporadas pelo milagre econômico ocorrido sob a
ditadura militar: “Esses ‘novos donos do poder’, aconchegados e acobertados no estamento burocrático-militar,
passaram a atuar à luz do dia, com toda a galhardia de uma nova classe social, como ocorreu em outros
países em que novas burguesias arrivistas ocuparam gradativamente o lugar das aristocracias declassés. No
caso do Brasil, o que mais chocava era o fato de essa nova classe emergente – que incluía seus guardiões, os
austeros militares que assumiram o poder em nome da restauração moralizadora (Castello Branco e Geisel,
expressões de uma classe média educada e discreta) – ter agora se tornado promíscua com o capital. Nova
formação societária, agora incluindo militares-administradores que, em trajes civis de executivos, não
resistiram às ‘gentilezas’ no convívio com as multinacionais, empreiteiras, indústrias de automóvel, de
autopeças, de material bélico, companhias de seguros, de aviação, etc. Nova classe promíscua e deslumbrada
com o capitalismo e com as colunas sociais dos jornais e revistas, o mesmo capitalismo, agora selvagem (a
expressão daqueles anos), que pagou contos do DOI-CODI e financiou a igualmente selvagem Oban – a
temida Operação Bandeirantes (e seu ‘assessor’ de maleva memória, o delegado Sérgio Paranhos Fleury,
condecorado ‘por seus préstimos’ pelo então governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, que também
prestigiou a inauguração da sede da Oban). Não raro tais empresas multinacionais utilizaram-se de ‘altos
funcionários’ recrutados nas beiradas da aristocracia declassée paulista para, com algum domínio da língua
alemã, inglesa ou francesa, atuarem como relações públicas nesses jogos do capitalismo associado e
dependente. Semelhante ao que ocorrera na Alemanha nazista ou na França da Ocupação, processava-se
aqui a velha cumplicidade de estamentos pretéritos com as novas frações da mal-formada classe burguesa.”
(Lopez e Mota, 2008: 886-887)
234

atingissem. Esta estratégia coincidente em alguns momentos favoreceu aos


primeiros, em outros os trabalhadores organizados, e em não poucos momentos
essa relação de forças resultou numa espécie de “empate social”. Em qualquer das
hipóteses, uma característica da trajetória política argentina desde meados do
século XX foi a debilidade estatal diante dos setores econômicos organizados, com
exceção do período ditatorial de 1976 a 1983, quando houve a exclusão de ambos
do processo de decisão, em claro contraste com a maior permanência institucional
no caso brasileiro, expressa na maior capacidade do Estado de intervir sobre a
economia.
A despeito dessa diferença em termos de capacidades estatais ou de
autonomia do Estado diante das forças sociais mais poderosas, ressalte-se a relativa
semelhança, pelo menos até meados dos anos 80, no caso do Brasil, e meados dos
anos 90, no caso da Argentina, entre as regras do sistema corporativo criado nos
tempos da primeira experiência peronista e o criado no Brasil, a partir da introdução
da legislação corporativista pela primeira experiência varguista. O retorno à
democracia, nesses dois países, assim como em outros países latinoamericanos,
teve como uma de suas consequências o restabelecimento das instituições e direitos
constitucionais anteriores às respectivas ditaduras. No entanto, no caso argentino
isto significou a reintrodução de “estruturas sindicais fortemente centralistas,
participação direta no Partido Justicialista e negociações coletivas de tipo político e
por setor” (Wolfram Klein, 2000: 76), enquanto no caso brasileiro, mais do que o
retorno à democracia, foi a Constituição promulgada em 1988 que restabeleceu as
liberdades sindicais, “foram eliminadas partes do sistema corporativista de relações
trabalhistas, concluindo assim as reformas que o ‘novo sindicalismo’ havia iniciado
no começo dessa década” (Klein, 2000: 87).
É notável o contraste entre os casos, já que no Brasil as mudanças
introduzidas em 1988 incorporaram mais novidades institucionais do que no país
vizinho, as quais, somadas à própria renovação sindical, resultariam em estruturas
sindicais mais representativas e democráticas, isto sem eliminar por completo o
sistema de administração tripartite dos conflitos entre capital e trabalho (Estado,
sindicatos e empresários), o que se explica em parte pela forte presença do Estado
no âmbito econômico. Como observa o pesquisador Renato Boschi (2007) mesmo
no auge do neoliberalismo, o Estado brasileiro nunca realmente desistiu de seu
papel histórico como o principal agente na arena econômica. A despeito do fim da
235

hegemonia das ideias desenvolvimentistas, a tradição estatal deixou marcas


características na vida econômica brasileira, sendo persistente a importância do
Estado sobre as dinâmicas do mercado.
Cabe acrescentar que, no caso da Argentina, durante quase quarenta anos o
modelo nacional-desenvolvimentista permitiu ao país obter significativa expansão de
seu parque produtivo, em especial no setor industrial, que se articulou com as elites
burocráticas e políticas. No entanto, a partir do final dos anos 60, os conflitos
políticos presentes entre os diversos setores sociais e o Estado levaram a
sucessivas mudanças de trajetória neste modelo, sendo a mais acentuada a
implantação do modelo neoliberal durante o governo militar. Como sintetizam Mônica
Hirst, Gabriel Bezchinsky e Fabian Castellana (1994):

“É fundamental ter presente que as sucessivas mudanças de orientação na política


econômica argentina nos anos 60 estão profundamente ligadas ao nível de conflito
político observado no âmbito do Estado e da sociedade neste período. É neste
contexto que o terceiro governo peronista (1973-1976) encerra a última etapa do
modelo de substituição de importações, e que o governo militar inaugura um
processo de liberalização da economia. Em ambos os casos, perdedores e
ganhadores são identificados, em função do jogo de alianças realizado entre setores
das elites política e econômica com determinados segmentos militares.”

Foi diante desta realidade, comum aos dois países e a praticamente todos da
região, que ocorreu o questionamento do antigo modelo de desenvolvimento
prevalecente na América Latina, o paradigma nacional-desenvolvimentista.
Caracterizado por um amplo envolvimento governamental no gerenciamento da
economia, cabia aos governos não apenas regulamentar as atividades econômicas,
mas também participar ativamente do processo de desenvolvimento, provendo o
planejamento da industrialização, financiamento público, infra-estrutura e incentivos
à iniciativa privada. Tratava-se de um conjunto de novas políticas no campo
econômico, ou nova geração de políticas – com destaque para as novas políticas de
estabilização monetária e abertura comercial104. O questionamento deste modelo de

______________________________________________
104
Sobre a gênese e o desenvolvimento do “paradigma nacional-desenvolvimentista” e do modelo de
substituição de importações na América Latina, pode-se consultar o relato histórico desenvolvido por A. Cervo
(2001). Sobre as ideias e instituições do nacional-desenvolvimentismo na Argentina e no Brasil, ver o
excelente estudo de K. Sikkink, Ideas and Institutions: Developmentalism in Argentina and Brazil, livro
publicado em 1991, análise comparada que se refire ao momento histórico do final dos anos 50.
236

desenvolvimento econômico lançou um desafio: formular uma nova concepção do


papel do estado, em um contexto de profundas mudanças mundiais que
apresentavam duas ordens de questões, como resumiu Eli Diniz: internamente,
havia os desafios de enfrentar a crise econômica e de consolidar o regime
democrático e, no plano internacional, uma nova relação de forças políticas e as
restrições decorrentes “da globalização da economia e do predomínio das redes
financeiras internacionais” (1998: 4).
Mas foi apenas nos anos 90 que praticamente todos os governos da região
impulsionaram as reformas institucionais orientadas para o mercado, que resultaram
em uma reestruturação institucional de suas economias, reduzindo e transformando
a intervenção do Estado nas economias nacionais105. O resultado foi a estruturação
de uma nova ordem econômica mundial, no sentido de um novo padrão que pode
ser identificado como “convergência através das fronteiras nacionais”, na expressão
de Thomas Biersteker, (2000[1992]: 118). A difusão das políticas neoliberais entre os
países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento marcou uma ruptura com os
respectivos padrões estabelecidos no pós-guerra, em todos os casos. O contraste
entre o período de cerca de trinta anos que separam o fim do conflito mundial e o
novo contexto, do final dos anos 70 e início da década seguinte, é bastante claro.
Depois da Segunda Guerra, o Estado teve uma ascensão sobre o mercado,
expandindo mais e mais o seu domínio sobre o que era então território do mercado.
A prevalência do Estado sobre o mercado, por assim dizer, para que se destaque a
importância crescente que adquiriram as decisões públicas diante das inúmeras
decisões privadas de agentes econômicos atuantes nos diversos mercados, então
predominantemente nacionais, foi impulsionada por revoluções e por duas Guerras
Mundiais, pela Grande Depressão, e pela ambição de políticos e governantes,
interessados em consolidar as bases sociais da intervenção estatal. Além disso,

______________________________________________
105
Também existe uma vasta literatura sobre a difusão das políticas neoliberais, desde a sua inclusão nas
reformas levadas adiante pelos governos da conservadora Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, e do
republicano Ronald Reagan, nos Estados Unidos, até a sua difusão pelos países em desenvolvimento, como é
o caso das economias latinoamericanas. Sobre o surgimento das ideias neoliberais e uma breve síntese
histórica de sua adoção desde o princípio dos anos 80, cf. a análise realizada por Perry Anderson (1995) e o
livro, mais recente e bem mais completo, de David Harvey (2005). As coletâneas organizadas por W. Smith, C.
Acuña e E. Gamarra (1994) e por R. Gwynne e C. Kay (2002[1999]) põem maior ênfase nas conversões
latinoamericanas e nas suas determinantes encontradas na economia política dos países da região. Para uma
análise do caso brasileiro, no contexto da conversão latinoamericana, ver o interessante livro de Emir Sader
(2003).
237

estas bases foram fortalecidas pelas demandas do público nas democracias dos
países desenvolvidos, sobretudo, por maior proteção social, pela busca do
progresso e do incremento das condições de vida. Este processo, que também se
verificou, embora por suas próprias trajetórias históricas particulares, nos países em
desenvolvimento, mesmo que não se tenha construído nada comparável aos
Estados de bem-estar social que foram institucionalizados nos países europeus,
como já foi mencionado no capítulo anterior. Por trás disso tudo, estava a convicção
de que o mercado havia se excedido, de que havia falhas de mercado, de que havia
muitas necessidades e serviços que o mercado não poderia fornecer, de que os
riscos e os custos humanos e sociais eram muito altos e de que o potencial para
abusos era muito grande. Como destacam D. Yergin e J. Stanislaw (2002[1998]), em
livro onde analisam as “batalhas de ideias” que estiveram associadas às próprias
lutas constitutivas da economia política mundial, nas últimas décadas do século XX:

“Posteriormente às traumáticas turbulências da primeira metade do século XX, os


governos expandiram suas responsabilidades e obrigações já estabelecidas diante
de suas populações e assumiram novas. O ‘conhecimento governamental’ [no
inglês, ‘government knowledge’] – a inteligência coletiva dos tomadores de decisões
no centro [político] – era considerado como superior ao ‘conhecimento do mercado’
[‘market knowledge’] – a inteligência dispersa dos tomadores de decisões privadas e
dos consumidores no mercado.” (2002[1998]: xii)

No extremo, a União Soviética, a República Popular da China e outros


Estados comunistas buscaram suprimir a inteligência do mercado e a propriedade
privada, substituindo a primeira pela “planificação central” e a propriedade privada
pela “propriedade estatal”. Como eles sentenciam, criticamente: “Os governos
deveriam saber tudo” (Ibid.). Longe desta posição extrema, por sua vez, em muitos
países industrializados no Ocidente e em boa parte do mundo em desenvolvimento
– o que inclui o modelo de substituição de importações que predominou na América
Latina – adotou-se o que esses autores denominaram “economia mista”, realidade
na qual os governos estabeleciam o seu conhecimento e exerciam um papel
fortemente dominante, sem eliminar completamente, no entanto, os mecanismos
típicos de economia de mercado, isto é, uma economia caracterizada pela liberdade
econômica, pela livre concorrência e pela propriedade privada dos meios de
produção. Neste padrão, cabia aos governos reconstruir, modernizar e impulsionar o
crescimento econômico. Ademais, eles deveriam garantir equidade, oportunidade e
um modo de vida digno, o que na prática significava a institucionalização e a
238

manutenção de uma rede mais ou menos extensa de proteção estatal, de acordo


com o país e sua respectiva trajetória histórica de desenvolvimento institucional.
Quando se trata das novas políticas que, na América Latina, romperam com
este padrão mantido até o final dos anos 70 – e, em alguns países, como o Brasil,
até o final da década seguinte – em geral aponta-se como referência as
recomendações contidas no chamado “Consenso de Washington”. A expressão, que
se notabilizou no discurso político, foi cunhada pelo economista norte-americano
John Williamson, em 1990, com o intuito de identificar o conjunto de políticas
consideradas necessárias para a recuperação econômica da América Latina,
políticas que eram inspiradas na teoria econômica neoclássica. Estas ideias
refletiam o posicionamento do governo dos Estados Unidos e dos principais
organismos internacionais multilaterais sediados na capital norte-americana: Fundo
Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID). Na verdade, boa parte dos ajustes estruturais contidos no
Consenso já eram impostos, como condições sine qua non – as ditas
“condicionalidades” – à concessão de empréstimos ainda durante os anos 80, e
assim já faziam parte do conjunto de políticas econômicas estruturadas nos
principais países da região.
A agenda neoliberal incluía recomendações sobre dois aspectos básicos: de
um lado, novas políticas macroeconômicas; de outro, um conjunto de reformas
estruturais. Segundo Williamson, esta agenda poderia ser resumida em dez pontos:
disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização
econômica, taxas de câmbio unificadas e competitivas, liberalização do comércio,
abertura a investimentos estrangeiros diretos, privatização das empresas estatais,
desregulamentação dos mercados e garantia dos direitos de propriedade. Esta
agenda foi posta em marcha pelos diversos governos da região, embora haja
diferenças entre os processos realizados em cada um dos países cuja compreensão
239

requer a investigação das respectivas configurações políticas nacionais e de suas


trajetórias particulares106.
Entre os novos governos dos dois países, houve uma convergência liberal,
embora o caso do governo Menem tenha sido um caso típico de desvio pós-eleitoral,
isto é, o então candidato fez uma campanha espelhada nos moldes clássicos do
peronismo, prometendo enfaticamente um “choque produtivo” no país, mas voltou-se
ao neoliberalismo depois de um tempo de mandato, enquanto no Brasil o caso do
governo Collor foi diferente, isto é, durante as campanhas prometeu mesmo um
“choque de capitalismo”, o qual perseguiu até os limites das suas possibilidades
políticas. Menem realizou o que a autora Susan Stokes (2001) denominou de uma
policy switch. Segundo ela, algumas das reformas estruturais na América Latina
foram realizadas “por surpresa”: o caso argentino simboliza a expressão
emblemática deste tipo de conversão política.
A fórmula de governo escolhida por Menem conjugava um combate à crise
hiperinflacionária e um programa de reformas orientadas para o mercado. Na
prática, o líder peronista realizou uma adoção “apressada e radical” do pacote
neoliberal contido nas recomendações do Consenso de Washington (Haslam, 2003).
O lançamento das reformas estruturais fez o governo Menem distanciar-se de sua
coalizão eleitoral, e em particular do Partido Justicialista (Novaro, 2003: 54-55). No
lugar da aliança com o peronismo, e para fugir da pressão de sua base política
tradicional, o primeiro governo Menem estabeleceu uma aliança com políticos de
centro-direita e liberais, além de grupos e setores empresariais interessados nas
reformas estruturais.
Assim, o grupo que compunha o primeiro gabinete ministerial de Menem
representava “uma ruptura com relação à forma de competição pelo poder que
existiu no passado, entre os subsistemas de partidos políticos, por um lado, e de

______________________________________________
106
Cf., a respeito das diretrizes do Consenso, sua aplicação e resultados nos principais países da região, as
análises realizadas “Depois do Consenso”, já nos anos 2000, reunidas na coletânea organizada pelo próprio J.
Williamson e P-P. Kuczynski (2004). É interessante notar que, no diagnóstico dos autores, ao contrário do que
se afirma, o desempenho ruim das economias da região e a persistência dos problemas tradicionalmente
enfrentados pelos países da região não deve ser creditado às reformas estruturais e às políticas do Consenso,
mas sim à sua realização incompleta. De acordo com eles, seria preciso realizar uma “segunda geração de
reformas”, isto é, terminar o trabalho que, em geral por razões políticas, deixou de ser feito.
240

representação corporativa de empresários e operários, por outro” (Cervo, 2000: 34).


O peronismo instalado no poder com a ascensão de Menem representava um
rompimento com as elites política e corporativa que disputavam o controle estatal na
Argentina durante as décadas anteriores. A gestão das reformas administrada pelo
presidente argentino priorizou objetivos de curto prazo, optando por políticas de fácil
implementação e que produzissem resultados palpáveis imediatos.
Outro movimento importante do governo Menem foi a aproximação com
economistas ortodoxos (neoliberais) e com os organismos financeiros internacionais.
O objetivo era duplo e consistia em: por um lado, ganhar a confiança dos agentes
financeiros internos e internacionais; e por outro, garantir o apoio da opinião pública,
que no início da estabilização econômica concedeu bastante apoio ao conteúdo e à
seqüência das reformas (Novaro, 2003: 56). As reformas estruturais foram
realizadas, sobretudo, através da predominância do Poder Executivo, manifestada
no uso intensivo dos Decretos de Necessidade e Urgência. De acordo com
Przeworski, citado em Diniz (1998: 16), houve o uso abusivo do poder de decreto
presidencial, restringindo a informação e o debate, e reduzindo assim a efetividade
dos mecanismos de cobrança e acentuando o déficit de responsabilidade política
(accountability).
Neste primeiro momento, o governo argentino conseguiu implementar um
conjunto significativo das reformas propostas no Consenso de Washington:
melhorou o desempenho fiscal, liberalizou o comércio e deu boas-vindas ao
investimento estrangeiro, reformou o sistema previdenciário, privatizou a maioria das
empresas estatais, liberalizou e fortaleceu o sistema financeiro, aprovou uma lei de
insolvência bem recebida pelos mercados e conseguiu a renegociação da dívida do
setor público (Williamson, 2004: 3). A hiperinflação foi substituída pela estabilidade
dos preços e houve uma elevação da renda per capita de 46% entre os anos de
1990 e 1998. Uma das principais peculiaridades do caso argentino diz respeito ao
regime cambial utilizado, que estabeleceu a paridade cambial entre o peso argentino
241

e o dólar. O “currency board”107 (ou caixa de conversão) atingiu sua meta de sair da
hiperinflação, mas ao longo da década de 1990 passou a ser cada vez mais avaliado
como um sistema que gerava uma rigidez excessiva, resultando em uma
sobrevalorização da moeda argentina, o que atingiu a competitividade internacional
de sua economia (Williamson, 2004: 4).
A partir de 1994, sob o efeito da crise mexicana, a situação Argentina passou
a ficar cada vez mais complicada. A situação política havia se agravado nos
primeiros anos após a vigência da Tarifa Externa Comum, impulsionada pelos sinais
de debilidade econômica e de crise social. Ironicamente, a crise mexicana havia
fortalecido a campanha do presidente Menem, que concorria à reeleição autorizada
por emenda constitucional aprovada no ano de 1994. Os efeitos da crise na América
Central foram sentidos em plena campanha, quando o presidente teve sua
campanha associada à ordem e à estabilidade (Romero, 2004). Na expressão do
autor, o momento da reeleição foi o zênite do prestígio presidencial, que dali em
diante entraria em declive. Os anos de 1995 e 1996 foram anos críticos para o
governo, pois começaram a aumentar as oposições políticas e sociais ao
menemismo, inclusive com inúmeros protestos violentos em diversas partes do país.
As três centrais sindicais (CGT, MTA e CTA) voltaram a realizar greves gerais, uma
vez esvaídos os efeitos positivos dos primeiros três anos de convertibilidade.
Fortalecia-se também a oposição política, alimentada pela boa colocação
obtida pela FREPASO, que ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais, com
chapa encabeçada pelos ex-peronistas José Octavio Bordón e Carlos “Chacho”
Álvarez (29%, contra os 50% da inquestionável vitória de Menem), assim como pelas
denúncias de corrupção no governo que se multiplicavam paralelamente à
deterioração econômica. FREPASO e UCR incentivaram os cidadãos a realizar
protestos de forte apelo simbólico, como um apagão voluntário de cinco minutos e os
primeiros panelaços (cacerolazos). A partir de 1996, começariam também outras
novas modalidades de protesto, que persistem até os dias atuais, como a montagem

______________________________________________
107
Segundo Eichengreen (2000[1996]: 239), existe uma semelhança notável entre o “currency board” e o
padrão ouro: ambos resultam em uma taxa de câmbio fixa, mas no primeiro caso a moeda doméstica é
atrelada diretamente à moeda estrangeira, enquanto no segundo o é ao preço doméstico fixo do ouro.
242

de barracas brancas em frente ao Congresso e os cortes de estradas e pontes de


acesso às principais cidades. Surgiram naquele momento as primeiras articulações
de piqueteros108. A mobilização de desempregados e de outros cidadãos trouxe de
volta à realidade argentina a “política de rua”, sendo imitados por estudantes, que
também cortavam ruas e avenidas, por produtores rurais, que começaram a realizar
os chamados tractorazos, entre outros setores da sociedade civil, os quais
reeditavam o estado de efervescência dos anos 70, porém com o auxílio da
constante cobertura dos meios de comunicação, em especial da televisão, “que era
o veículo fundamental para que a ação tivesse transcendência e eficácia, pois a
espetacularização foi chave no novo protesto” (Romero, 2004: 292).
A polarização doméstica aumentou a partir de meados de 1996, o que teria
implicações diretas sobre as relações argentino-brasileiras. Primeiro, aumentou a
oposição ao ministro da Economia, Domingo Cavallo, cuja legitimidade sustentava-
se no sucesso inicial da estabilização econômica, mas que não pôde mais sustentar-
se no governo após as sucessivas denúncias de corrupção. O novo ministro indicado
foi Roque Fernández, economista ortodoxo que pôs em prática medidas restritivas
no âmbito fiscal, resistindo eficazmente às pressões do campo político e dos
movimentos sociais de oposição, fora as resistências de outros setores do próprio
governo, que se preocupavam com as eleições legislativas do ano seguinte e com a
articulação de uma frente de oposição mais robusta, com a aproximação entre a
FREPASO e a UCR, por um lado, e com a formação de uma vertente oposicionista
dentro do próprio PJ, liderada pelo político de Buenos Aires, Eduardo Duhalde, que
logo após a reeleição de Menem anunciara que seria candidato em 1999.

______________________________________________
108
A partir de 2001, no esteio da mais profunda crise da história argentina, estes grupos adquiriram maiores
graus de organização e de capacidade de mobilização, tornando-se também mais heterogêneos entre si, em
termos de composição social e de orientação política. Em trabalho de 2007, calculava-se que os piqueteros
somavam cerca de 300 mil argentinos, representando 10% dos beneficiários dos subsídios que começaram a
ser estipulados pelos governos posteriores à crise: “[Eles] podem ser divididos em três grupos: dialoguistas,
moderados e duros. Cada um destes setores, por sua vez, reúne outros subgrupos de diferentes origens e
ideologias. Como explica o sociólogo e especialista em assuntos sindicais, Julio Godio, a característica em
comum de todos os grupos é serem formados, em sua maioria, por desempregados com certa tradição
política, situação que os diferencia dos ‘pobres estruturais’, sem nenhuma experiência política, e que
pertencem ao mundo da marginalidade social e econômica.” (Epsteyn e Jatobá, 2007: 43).
243

No caso brasileiro, a erosão do paradigma nacional-desenvolvimentismo


tornava inviável o financiamento da matriz protecionista e autárquica do modelo
(Diniz, 1998: 11). Porém, a Assembléia Constituinte promulgou um texto que
estabeleceu uma estrutura jurídico-constitucional que privilegiava a afirmação de
direitos, chocando-se com a tendência neoliberal já dominante naquele momento.
Sader (2003: 137) afirma que esta característica institucional atrasou a aplicação das
políticas de ajuste no Brasil, fazendo com que mesmo um político moderado como o
Presidente José Sarney (1985-1990) tivesse como lema a expressão “Tudo pelo
social”, e conclui: “Estas tendências brasileiras atrasaram a aplicação no Brasil das
políticas de ajuste fiscal, atraso que foi acentuado pela ruptura do governo de
Fernando Collor por denúncias de corrupção”, em 1992.
Ainda assim, o governo Collor de Mello conseguiu implementar um conjunto
de reformas contidas nas recomendações do Consenso de Washington, sobretudo
com a abertura dos mercados e a privatização. No Brasil, as reformas foram
realizadas através de uma acentuada concentração do processo decisório na cúpula
tecnocrática, e, em especial, pela precedência do Poder Executivo em relação ao
Legislativo, com o uso amplo das Medidas Provisórias como instrumento de
transformação institucional. Ainda de acordo com Diniz (1998: 14), predominou de
forma paradigmática no Brasil o modelo de insulamento burocrático. A autora cita o
governo Collor como exemplo de voluntarismo e personalismo no exercício do poder
presidencial: o Plano Collor I, por exemplo, optou pela via coercitiva, em detrimento
da negociação política.
A concentração do poder decisório nas mãos do Poder Executivo,
característica das reformas no Brasil, foi acentuada a partir de 1994, com o Plano
Real, quando as Medidas Provisórias foram utilizadas em uma escala muito superior
a todos os demais governos anteriores, desde a redemocratização109. Além disso,

______________________________________________
109
Após um período de relativa estagnação no processo de liberalização, as reformas foram retomadas por
Fernando Henrique Cardoso, primeiro como Ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, sucessor de
Collor, e depois como presidente, durante dois mandatos (1994-1998 e 1998-2002). Poucos meses antes das
eleições presidenciais que levaram Cardoso ao Palácio do Planalto, o governo lançou mão de um plano de
estabilização econômica, o Plano Real, completando a liberalização comercial e a privatização (inicialmente do
setor siderúrgico e petroquímico) do início da década de 1990. Conforme o comentário de Kuczynski (2003:
22), “isto alinhou a maior economia da região com as políticas dos outros países principais”.
244

“nenhuma das MPs examinadas pelo Congresso foi rejeitada” (Diniz, 1998: 15). Esta
característica do processo de liberalização brasileiro explica em grande medida a
própria trajetória das reformas, avançada pelas lideranças executivas em detrimento
de outras instâncias como a representação parlamentar ou quaisquer instituições
que fossem mais inclusivas do ponto de vista democrático. Assim como na
Argentina, as reformas orientadas para o mercado no Brasil foram marcadas pelas
regras institucionais e por suas formas características de distribuir o poder de
agência e transformação das próprias instituições e políticas existentes, conforme ao
argumento de dependência da trajetória.
245

4 AS TRAJETÓRIAS DE INTEGRAÇÃO REGIONAL DE ARGENTINA E


BRASIL: POLITIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA

Este capítulo discute a relação entre os padrões de tomada de decisão em


política externa nos dois países investigados e os processos de integração regional
do MERCOSUL e da ALCA, tendo em mente as diferentes perspectivas teóricas
sobre democracia. Para cumprir tal propósito, são estabelecidos dois objetivos
específicos. Em primeiro lugar, trata-se de descrever as trajetórias recentes de
Argentina e Brasil nestes dois esquemas de integração regional, a partir de uma
periodização explicitada a seguir. Em segundo lugar, investiga-se o papel das
instituições sobre essas trajetórias de integração envolvendo os dois países. Por um
lado, as instituições domésticas condicionaram a distribuição da capacidade
decisória entre os diversos agentes e organizações políticas, e, por outro, as
próprias instituições criadas têm a capacidade de redistribuir o acesso às decisões,
reforçando padrões previamente existentes ou redistribuindo o poder decisório entre
os agentes.
A ênfase da narrativa construída recai sobre as dinâmicas políticas e
institucionais subjacentes à incorporação do regionalismo às respectivas estratégias
de inserção internacional, desde meados dos anos 80. Ao descrever essas
trajetórias de integração na história recente, busca-se analisar a relação entre
envolvimento regional e politização da agenda externa, com o propósito de fornecer
elementos que ajudem a esclarecer a interrogação sobre a eventual democratização
da política externa, formulada inicialmente. O caminho escolhido foi o confronto entre
os padrões decisórios observados pela literatura selecionada e as discussões
teórico-conceituais apresentadas na presente tese. O regionalismo transformou os
padrões de tomada de decisão em política externa nestes países, aproximando-os
das expectativas das perspectivas teóricas discutidas (realismo, pluralismo e
deliberativismo)? Os temas foram assim distribuídos pelas duas seções que
compõem o capítulo:
Primeiramente, na seção 4.1 analisa-se o processo de institucionalização do
MERCOSUL, desde a aproximação bilateral iniciada na década de 80 até o processo
de negociação que, após incorporar os dois sócios menores do bloco, definiu as
246

principais instituições que conferiram personalidade jurídica ao MERCOSUL, no final


de 1994.
Na seção 4.2, analisa-se a tentativa de criar uma Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), cujas negociações tiveram início em 1994 e geraram enorme
politização doméstica nos países da região, até que, em 2005, elas resultaram em
um impasse negociador e foram suspensas, principalmente pelas divergências não
conciliadas entre os EUA e os países do MERCOSUL, liderados por Argentina e
Brasil.
O novo regionalismo é um fenômeno reproduzido em todo o mundo, desde
meados dos anos 80, e que costuma ser interpretado em seu contexto mais amplo,
por ocorrer simultaneamente à intensificação da globalização comercial, financeira e
produtiva. A globalização econômica, que se acentuou nos anos 90, pode ser
considerada como um processo convergente ou contraditório ao regionalismo, de
acordo com diferentes hipóteses teóricas.
Seja como for, regionalismo e globalização são processos que modificaram –
e seguem modificando – a realidade política e econômica dos países estudados,
sobretudo nas duas últimas décadas110. Em suma, o aumento simultâneo da
integração internacional e da integração regional desses países transforma a arena
política tradicionalmente denominada como doméstica ou interna, ao produzir
mudanças institucionais e políticas que põem em xeque a separação entre o interno
e o externo111.

______________________________________________
110
Para uma análise mais aprofundada das hipóteses alternativas sobre a relação entre integração regional e
globalização, consultar M. Lima e M. Coutinho (2007). De acordo com os autores, “um dos grandes debates
envolvendo os processos de globalização e regionalização está em saber se são fenômenos distintos ou
conseqüentes”. Entre os primeiros, “existem os que acreditam tratar-se de dois processos separados que
podem ser vistos tanto como complementares quanto como antagônicos”, enquanto “as hipóteses
consequentes concordam que esses processos estão conectados e que há uma relação entre eles”,
subdividindo-se os que afirmam que “o regionalismo significa um passo no sentido da globalização” e os que
sustentam que “a globalização impulsiona o regionalismo” (2007: 125-126).
111
Com efeito, o questionamento dessa fronteira tem se tornado uma constante nos estudos de relações
internacionais e política comparada, desde os anos 1970, pelo menos. A título de exemplo, meramente, pode-
se citar os trabalhos de Peter Gourevitch (1978), Robert Putnam (1988), Robert Keohane e Helen Milner
(1996). Para uma discussão desta literatura e de suas principais referências, consultar James Fearon (1998)
ou a parte inicial do livro da própria H. Milner (1997).
247

Sendo assim, o fenômeno do novo regionalismo – assim como a globalização,


em sentido amplo – é considerado aqui como de grande importância para a
discussão sobre a democratização da política externa enquanto política pública. Isto
porque as instituições regionais têm efeitos sobre a distribuição da capacidade
decisória entre os diversos agentes ou organizações no interior dos países
envolvidos, como as diversas burocracias e autoridades políticas, os parlamentos
nacionais, as organizações dos diversos setores produtivos mais diretamente
atingidos pela integração (empresariais ou de trabalhadores), ou, eventualmente,
outros agentes, como as Organizações Não-Governamentais (ONGs) e outros
grupos da sociedade civil. Por outro lado, a criação dessas instituições regionais
também gera variadas transformações institucionais e políticas nos países
envolvidos, como a reorganização dos diversos agentes, estatais ou não, os quais
passam a considerar o plano regional na definição de suas preferências políticas e
estratégias de inserção internacional, ou mesmo a sua inclusão nas instituições do
bloco.
Como analisa A. Vaz em estudo sobre o MERCOSUL, a revalorização do
regionalismo “veio a ocorrer após cerca de duas décadas de esquecimento quase
completo e ceticismo generalizado de formuladores de política, da opinião pública e
de acadêmicos quanto à factibilidade e às perspectivas das iniciativas de integração
regional” (2002: 24). A observação aplica-se tanto à Europa como a outras regiões,
incluindo a América Latina, pois em todos os lados as experiências de integração
regional experimentaram longas fases de estagnação. O autor refere-se ao termo
“europessimismo”, sentimento surgido após o fracasso dos intentos de aprofundar o
processo de integração a partir de 1973 (com a adesão da Inglaterra, Irlanda e
Dinamarca) e cuja expressão denotava “as clivagens e os impasses que marcavam
o processo de integração no âmbito da CEE” (Ibid.). Na América Latina, as principais
iniciativas de integração regional também se encontravam inoperantes naquele
contexto de crise do capitalismo mundial, após a ruptura do padrão ouro-dólar
estabelecido em Bretton Woods e as crises sucessivas do valor do petróleo e,
especialmente, de crise da dívida externa dos países da região. Como lembra o
autor, “o comércio entre os países da ALADI havia crescido a taxas superiores às do
comércio internacional, mas cerca de dois terços dele não eram alcançados pelos
instrumentos da associação, o que explicita a sua inoperância” (Vaz, 2002: 25).
248

A partir de meados da década de 1980, o panorama modificou-se


sensivelmente, com a retomada do processo de integração europeu e a
incorporação do regionalismo econômico às estratégias políticas e econômicas das
principais potências mundiais e dos países em desenvolvimento. O panorama no
início dos anos 90, quando é fundado o MERCOSUL e é proposta a ALCA, apontava
para a importância crescente do fenômeno em tela, que voltou a despertar grande
interesse político e acadêmico. Naquele momento crítico, configuravam-se três
grandes âmbitos regionais: o primeiro, no marco do relançamento do processo
europeu de integração, a partir do Ato Único, de 1987, e da posterior transmutação
da Comunidade Econômica Europeia em União Europeia, em 1992; o segundo, em
torno da liderança japonesa exercida sobre o conjunto de economias de
industrialização recente no Sudeste Asiático; e o terceiro, a partir da incorporação do
tema à agenda externa dos Estados Unidos, que tradicionalmente resistiam a
participar de esquemas regionais, preferindo a liberalização no sistema multilateral
do GATT. Neste último caso, além das iniciativas bilaterais com Israel (1985) e
Canadá (1988) e da influência norte-americana sobre a criação da Cooperação
Econômica da Ásia-Pacífico (APEC), em 1989, três iniciativas atingiam diretamente
as Américas, e, portanto, os interesses argentinos e brasileiros: o lançamento da
Iniciativa para as Américas (IPA), em junho de 1990, a criação da Área de Livre
Comércio da América do Norte (NAFTA), em dezembro de 1992, e o patrocínio da
idéia de uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), cujas negociações
seriam lançadas na Cúpula das Américas de Miami, em dezembro de 1994.
Apesar de não serem grandes potências, Argentina e Brasil não ficaram
alheios à tendência mundial de formação de blocos. Aliás, como anota Vaz, “a
percepção de um ordenamento econômico mundial calcado em movimentos
regionais passou também a condicionar as estratégias de inserção internacional dos
países em desenvolvimento” (2002: 26). Cabe sublinhar que o cenário era
caracterizado, por um lado, pelos riscos oriundos do protecionismo dos países de
capitalismo avançado e de uma possível fragmentação do sistema multilateral do
comércio, dadas as dificuldades da Rodada Uruguai, e, por outro, pelas políticas
domésticas de cunho recessivo que aumentavam as dificuldades de cooperação nos
esforços de integração econômica. Do ponto de vista dos países latinoamericanos, o
desafio de integração regional, com a retomada de esquemas já existentes, como o
Mercado Comum Centro-Americano (MCCA) ou a Comunidade Andina de Nações
249

(CAN), ou a criação de novos esquemas, como o MERCOSUL, devia servir como


um caminho alternativo para o desenvolvimento econômico. Para esses países, o
regionalismo visava a estimular os investimentos estrangeiros na região, os quais
eram necessários à modernização produtiva das economias nacionais, aumentando
assim os níveis de competitividade dessas economias e permitindo uma maior
articulação com as principais economias mundiais.
A ideia de utilizar os esquemas de integração regional como plataforma para
a inserção internacional estava na origem do conceito de “regionalismo aberto”,
propugnado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Como indica a expressão, os esquemas deviam estar abertos à adesão de terceiros
e ser guiados pela ideia de liberalização do comércio mundial. Em visão
retrospectiva e criticando essa noção muito repetida, analisam M. Lima e M.
Coutinho (2007: 127):

“Na década de 1990, os acordos de livre-comércio foram o principal instrumento do


assim chamado ‘regionalismo aberto’, que expressava a ideia, bastante valorizada
no momento, de abertura de mercados e globalização financeira e produtiva de um
regionalismo não-exclusivo, isto é, uma modalidade de integração regional que seria
criadora de comércio e não provocaria seu desvio. Ainda que na prática essa
distinção conceitual tenha de mostrado de difícil diferenciação, ela acabou por
legitimar o expressivo movimento de abertura comercial que, a partir do início
daquela década, marcou a mudança da inserção econômica dos países periféricos
no bojo das reformas de mercado então implementadas. Regionalismo aberto é uma
expressão contraditória, já que o primeiro sinaliza uma preferência pela região, e o
segundo nega ou qualifica essa mesma orientação.”

Foi neste contexto que, aprofundando e estendendo um processo de


integração bilateral iniciado em meados dos anos 80, Argentina e Brasil uniram-se
aos vizinhos Paraguai e Uruguai, tendo se recusado o Chile, para criar o
MERCOSUL, em março de 1991, fato que representou a adesão dos dois países à
tendência de incorporação do regionalismo como parte essencial das suas novas
estratégias de inserção internacional. Pelos entendimentos originais que deram
origem ao bloco, haveria uma liberalização gradual e automática do comércio
regional, ainda que com algumas restrições relativas a setores específicos da
economia, como ocorreu, por exemplo, com o setor automotivo e o de açúcar (R.
Markwald e R. Iglesias, 2000). Durante toda a década de 90, a temática da
integração regional permaneceu presente na agenda de política externa de
Argentina e Brasil, acima de tudo, com os temas do MERCOSUL e da ALCA. Ou
então, com os temas das negociações bilaterais dos países-membros do primeiro
250

(formato “4 + 1”), das aproximações entre blocos, como MERCOSUL-União


Europeia, vindo também Argentina e Brasil a participar da criação da Comunidade
Sulamericana de Nações, criada em 2004, entre os países membros do MERCOSUL
e da Comunidade Andina de Nações (CAN), mais o Chile, a Guiana e o Suriname –
embora estes últimos processos estejam fora dos níveis de análise selecionados
nesta tese.
De volta ao tema mais geral do novo regionalismo, à sua ascensão na agenda
das relações internacionais correspondeu o aumento do interesse teórico e empírico
sobre ele. Multiplicou-se a literatura sobre integração regional, investigando-se as
suas causas, criticando-se as perspectivas teóricas da integração mais usuais (como
o funcionalismo, o neofuncionalismo e o intergovernamentalismo) ou analisando-se
as trajetórias históricas dos diversos blocos econômicos. A respeito das vertentes
explicativas do fenômeno, observam Lima e Coutinho (2007) que são muitas as
causas apontadas para o surgimento da nova onda regionalista nos anos 1990:

“Em geral, há críticas dirigidas às explicações convencionais de processos de


regionalização precedentes. Sobretudo o neofuncionalismo e o
intergovernamentalismo são alvo de grandes objeções, entre outros motivos, pelo
fato de nenhum deles explicar satisfatoriamente por que o novo regionalismo se
desenvolve somente no final dos anos 1980, e não antes. Em lugar dessas
interpretações anteriores, a hipótese dominante transforma a globalização em
variável explicativa do regionalismo, apesar de ainda persistirem esforços menos
estruturalistas do que esses sobre o tema, incluindo explicações com base em
trajetórias dependentes.” (2007: 129-130)

O trabalho de Vaz (2002) é um exemplo que, contrastando com as


abordagens estruturais e sistêmicas, aborda a experiência histórica de
institucionalização do MERCOSUL de olho na sua trajetória, em seu momento crítico
e na forma como as sucessivas decisões, em especial aquelas definidas pelos dois
sócios maiores do bloco, condicionaram a trajetória que o bloco seguiu em sua fase
de transição. Em suas conclusões gerais, afirma o pesquisador:

“Mesmo considerando a importância das variáveis estruturais e sistêmicas presentes


nas inúmeras análises que explicam o impulso ao regionalismo econômico
observado em diferentes partes, muito particularmente na América Latina e no Cone
Sul no começo da década de 1990, as mesmas não alcançam as condições, as
definições e injunções que levaram a que o MERCOSUL comparecesse, nos
cenários regional e internacional, a partir do início de 1995, não apenas como
mecanismo de integração consubstanciado em uma área de livre comércio e uma
união aduaneira imperfeitas, mas também como um ente dotado de personalidade
jurídica internacional. Seus traços foram sendo definidos, ao longo de diferentes
etapas do período de transição, por meio das formas com que a Argentina e o Brasil
lograram articular-se para responder a fatores exógenos, às externalidades de seu
relacionamento e às injunções domésticas, no contexto de um projeto cujo substrato
251

comum estava referido, em sentido imediato, à liberalização comercial.” (Vaz, 2002:


275)

Um elemento fundamental da explicação contextualizada do processo de


integração do MERCOSUL, para ficar neste primeiro âmbito, foi a transição de
modelos econômicos discutida no final do capítulo anterior, a transição do modelo
nacional-desenvolvimentista e de sua estratégia de industrialização via substituição
de importação pelas novas orientações predominantes na maior parte dos países
latinoamericanos, aquelas voltadas à liberalização de suas economias. Apesar da
importância, no caso da criação do bloco, de razões não estritamente econômicas,
como o interesse na preservação das respectivas democracias e na superação
definitiva das rivalidades bilaterais, assumo a ênfase de Lima e Coutinho (2007)
sobre a importância do encapsulamento internacional das agendas liberais
domésticas e sintetizam a importância da transição de regimes para a explicação do
seu timing:

“A resposta regionalista como resposta aos desafios impostos pela globalização


representa uma mudança no modelo de desenvolvimento em que os países
abandonam práticas intervencionistas e estatizantes voltadas para a expansão do
mercado interno e do capital nacional, que são características dos anos 1960-70, e
adotam, em contraposição, políticas neoliberais que transferem para o mercado,
principalmente aos setores exportadores, a tarefa de promover o desenvolvimento.
Essa transição de modelos é o que permite aos Estados se imaginarem finalmente
dentro de uma região, integrando suas economias com o objetivo de proteger-se;
Estados, por sinal, bastante enfraquecidos com a crise fiscal que começa a
despontar com mais força logo no início dos anos 1980.” (Lima e Coutinho, 2007:
130)

Outro aspecto que chama a atenção é a articulação entre o envolvimento


destes países em esquemas de integração e em outras negociações comerciais, de
um lado, e o aumento da politização doméstica da agenda externa desses Estados,
de outro. Os processos de aumento da interdependência econômica internacional e
de liberalização econômica, aliados à incorporação do tema da integração regional
nas agendas externas dos países, deram origem à inédita politização doméstica das
questões de política externa. Neste sentido, os investigadores Hirst, Bezchinsky e
Castellana (1994), em trabalho onde são analisadas as reações empresariais na
Argentina diante do MERCOSUL, resumem a relação entre estes dois lados da
moeda:

“A politização corresponde a um aspecto inevitável e desejável em qualquer situação


de integração regional. Trata-se de um processo que aumenta a partir do
252

envolvimento crescente de grupos de interesse, de transações e de vinculações que


a integração estimula. À medida que se avoluma o número de segmentos produtivos
que participa de uma associação econômica entre um conjunto de países, expande-
se também a quantidade de diferenças de interesses presentes em cada caso. São
estas desigualdades que geram a politização de um processo de integração. Em
outras palavras, a politização é o movimento pelo qual os interesses se contrapõem
neste processo” (Hirst, Bezchinsky e Castellana, 1994).

Evidentemente, embora a politização possa levar a mudanças institucionais


no processo de tomada de decisões em matéria de política externa, isto não ocorre
como uma necessidade. O objetivo aqui é justamente avaliar em que medida este
elemento inerente aos processos de integração regional chega a significar alguma
mudança no sentido da democratização da política externa, isto é, se as práticas de
representação, participação e deliberação predominantes durante as etapas
analisadas a seguir significaram alguma mudança nos padrões historicamente
reconhecidos pela literatura disponível. Pode-se concluir esta introdução citando um
trecho da tese recente de Juan Claudio Epsteyn, onde o pesquisador argentino
identifica a relação entre negociações internacionais e politização doméstica da
política externa, embora comparando as trajetórias de Brasil e Estados Unidos. A
adoção da regra da reciprocidade nos acordos comerciais (e nos novos blocos
econômicos), no contexto da transição de modelo de desenvolvimento, “contribuiu
de maneira inédita para a politização da agenda externa” no primeiro país analisado
por ele. Conforme observa o autor,

“à diferença do que ocorria no contexto dos processos regionalistas dos 60, 70 e


princípios dos 80 – incluindo as primeiras rodadas do GATT – os novos processos
de negociação de meados dos 80 e princípios dos 90 comprometiam o país a tomar
parte do intercâmbio mútuo de concessões com os demais sócios. Junto à
emergência de toda uma série de novos temas com repercussões domésticas, a
aceitação do critério de reciprocidade implicou para o Brasil a necessidade de
adaptar-se a um novo paradigma de negociação externa. A percepção, por parte dos
empresários nacionais, dos eventuais custos distributivos domésticos resultantes da
participação do país nos novos esquemas de integração comercial dos 90 é um dos
fatores chave para entender o processo de politização da política externa.” (2009: 8-
9).

4.1 A institucionalização do MERCOSUL: da aproximação Brasil-Argentina à


criação do Bloco

No início dos anos 80, ou mais precisamente desde o dia 12 de agosto de


1980, os governos de onze países latinoamericanos estabeleceram um novo marco
253

jurídico para a integração, a Área Latino-Americana de Integração (ALADI).


Inspirados em ideias econômicas difundidas pela Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL), a criação da ALADI representava a segunda tentativa dos
países da região de conciliar a busca de desenvolvimento econômico nacional, em
geral pela estratégia ainda predominante de Industrialização por Substituição de
Importações, com a busca de integração regional. No entanto, diferentemente da
experiência anterior, da Área Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), criada
em 1960, a nova instituição substituía-se a ênfase puramente comercial da tentativa
anterior pela noção de complementaridade econômico-produtiva e por níveis mais
profundos e diversificados de cooperação econômica. A adoção de uma série de
resoluções normativas pelo Conselho de Ministros da ALALC, na mesma ocasião em
que se firmou o Tratado de Montevidéu, que criou a ALADI, reforçava a ideia de um
relançamento da integração latinoamericana. O surgimento da ALADI expressava a
vontade política de superar as frustrações com os poucos resultados efetivos
produzidos pela ALALC em seus primeiros vinte anos de existência: os governos de
Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru,
Uruguai e Venezuela insistiam na criação de uma organização voltada ao
aprofundamento da integração regional.
Com relação aos dois países estudados, a inédita aproximação
integracionista bilateral teve início com a Declaração de Iguaçu, assinada pelos
presidentes Alfonsín e Sarney no último dia de novembro de 1985. Após a
Declaração, intensificaram-se as negociações diplomáticas que resultariam na
assinatura da Ata de Integração Brasil-Argentina, cerca de sete meses depois,
acordo que instituiu o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), um
marco jurídico que propiciou a articulação bilateral a partir da negociação de uma
série de acordos setoriais. Cerca de dois anos depois, em 29 de novembro de 1988,
foi firmado mais um acordo entre os governos dos dois países, o Tratado de
Integração e Cooperação Econômica, instrumento convencional que conferiu
obrigatoriedade jurídica ao objetivo de conformar um espaço econômico comum, no
prazo de dez anos, isto é, um mercado comum binacional deveria estar em
funcionamento dentro de uma década.
Pode-se dizer, entretanto, que o auge do processo de integração bilateral foi
atingido apenas em julho de 1990, quando a Ata de Buenos Aires firmada pelos
presidentes Menem e Collor reduziu aquele prazo para dezembro de 1994. Para dar
254

seguimento ao objetivo, foi assinado, dentro do marco jurídico da ALADI, o Acordo


de Complementação Econômica n. 14, em dezembro de 1990, que incorporou os
vinte e quatro protocolos adicionais setoriais firmados no período precedente. Alguns
meses depois, nos primeiros dias de março de 1991, os novos presidentes e
chanceleres de Argentina e Brasil celebraram o instrumento jurídico que deu origem
ao Mecanismo Permanente de Consultas para a Harmonização das Políticas
Externas. Naquele mesmo período, foram incorporados ao processo de integração o
Uruguai e o Paraguai, tendo o Chile, como dito antes, recusado o convite para ser
membro pleno do bloco, até que, no mês de março de 1991, Argentina, Brasil,
Uruguai e Paraguai celebrariam o Tratado de Assunção, marco inicial do
MERCOSUL e da fase de transição até o funcionamento da União Aduaneira, por
meio da Tarifa Externa Comum (TEC), e das demais instituições regionais.
O período que se estende de 1985 a 1991 representou a fase de maior
entendimento na história das relações entre Argentina e Brasil. Quais foram os
principais fatores que explicam esta aproximação? Pode-se citar a superação do
contencioso sobre o aproveitamento do potencial hidrelétrico do Alto Paraná, em
1979, a existência de uma série de acordos bilaterais, de natureza comercial,
econômica, tecnológica e militar, no âmbito da recém criada ALADI, e a intensa
atividade diplomática brasileira solidária aos argentinos durante o violento episódio
da Guerra das Malvinas. Neste contexto, a questão nuclear foi um fator fundamental,
tema marcado pela determinação bilateral de cooperar e de superar as hipóteses de
conflito direto entre os dois países. Esses fatores ligados à trajetória recente das
relações diplomáticas dos dois países sem dúvidas favoreciam a aproximação, mas
dois fatores são considerados especialmente importantes para explicá-la: a
convergência política propiciada pelos governos civis e pró-democráticos e o desafio
comum de superação da crise socioeconômica que assolavam as duas sociedades.
Os entendimentos iniciais de Argentina e Brasil orientavam-se, acima de tudo, pela
pretensão de articular consolidação democrática e retomada do crescimento à
integração bilateral. A ideia é recapitular a trajetória dessa aproximação,
identificando os agentes políticos principais, os mecanismos institucionais que eles
utilizaram e os respectivos padrões de tomada de decisão em política externa.
A Declaração de Iguaçu, de novembro de 1985, é considerada um marco
histórico nas relações bilaterais. Os precedentes diplomáticos recentes eram
favoráveis e os novos presidentes aproveitaram os respectivos bons momentos
255

internos para impulsionar a ideia de integração Argentina-Brasil. Por ocasião da


inauguração da “Ponte Presidente Tancredo Neves”, entre Foz do Iguaçu e Puerto
Iguazú, os dois presidentes emitiram essa declaração conjunta, a qual expressava a
intenção de dotar o ato inaugural de um significado simbólico para a integração
bilateral. Os dois mandatários coincidiam “na análise de dificuldades por que
atravessa a economia da região”, mais especificamente no diagnóstico dos
“complexos problemas derivados da dívida externa, do incremento das políticas
protecionistas no comércio internacional, da permanente deterioração dos termos de
intercâmbio e da drenagem de divisas que sofrem as economias dos países em
desenvolvimento” (Art. 7º).
A Declaração expressava ainda outros pontos de convergência das
orientações de política externa dos dois governos, três deles merecendo destaque
especial. Primeiro, a demanda comum de renegociação da dívida externa, alinhados
que estavam na defesa das ideias conhecidas como “Consenso de Cartagena”: o
reconhecimento das exigências de crescimento da economia dos países devedores,
a necessidade de aliviar o peso do serviço da dívida e a consideração da
corresponsabilidade de devedores e credores. Segundo, a reiteração do apoio do
Brasil à pretensão de soberania argentina sobre o arquipélago das Malvinas, apoio
que vinha acompanhado do reconhecimento do primeiro mandatário argentino pela
atuação diplomática brasileira junto à Grã-Bretanha. Os dois governantes
acrescentavam que o tema das Malvinas devia ser resolvido, pacificamente, nos
âmbitos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados
Americanos (OEA). O terceiro ponto de convergência declarado era o apoio de
Argentina e Brasil às posições defendidas pelo Grupo de Apoio a Contadora,
composto também por Uruguai e Peru, para persuadir o governo norteamericano da
intenção de invadir a Nicarágua em apoio ao grupo dos Contra, que reagiam à
revolução popular sandinista de 1979, um tema sensível nas relações de Argentina e
Brasil com o governo Ronald Reagan, especialmente até 1986. A questão
centroamericana, até por envolver os Estados Unidos, era um tema controverso em
ambos os países e na região como um todo.
Por fim, a Declaração conferia destaque à convergência democrática dos dois
governos. Nos termos do pronunciamento conjunto, os êxitos alcançados nos
respectivos processos de consolidação democrática proviam “condições
particularmente propícias para o aprimoramento de seus vínculos nos mais diversos
256

setores, assim como para colaboração mais íntima e estreita no plano internacional”
(Art. 16). Em outro trecho, a consolidação democrática é associada ao primeiro dos
pontos citados acima (Consenso de Cartagena), onde a posição dos dois governos
quanto à renegociação da dívida é vista como uma condição para o “bem-estar dos
povos” argentino e brasileiro e para o “avanço do processo democrático”. A seguir, é
transcrito o último artigo da Declaração de 1985, onde os mandatários associam
democracia à integração regional e sublinham o compromisso em torno dos valores
democráticos:

“Art. 32. Por último, os Presidentes José Sarney e Raúl Ricardo Alfonsín reafirmaram
enfaticamente que o processo de democratização que vive o continente deverá
conduzir a uma maior aproximação e integração entre os povos da região.
Afirmaram, igualmente, que, para os latino-americanos, a democracia deve
necessariamente significar paz, liberdade e justiça social; comprometeram-se a não
poupar esforços para que convivam neste continente sociedades que privilegiem os
princípios de dignidade humana, cooperação, solidariedade, paz e bem-estar.
Concluíram assinalando que as relações bilaterais brasileiro-argentinas serão
exemplo deste ideário.”

No plano prático, os entendimentos presidenciais estabeleceram uma


“Comissão Mista de Alto Nível para Cooperação e Integração Econômica Bilateral”,
encarregada de examinar e propor programas, projetos e modalidades de
integração. A Comissão, presidida pelos Ministérios das Relações Exteriores e
composta de representantes governamentais e de setores empresariais, indicados
pela Chancelaria, foi constituída no primeiro trimestre de 1986. O acordo
presidencial delegou aos “canais diplomáticos” a definição da data de instauração,
composição, mecanismos e demais procedimentos da Comissão. Os entendimentos
de Alto Nível, no entanto, não deveriam impedir o avanço da cooperação em outros
setores – nominalmente, nos campos da integração física, energética e de ciência e
tecnologia – os quais deveriam ser conduzidos por agentes do segundo escalão dos
Ministérios, isto é, Secretários dos Ministérios dos Transportes, das Comunicações,
da Ciência e Tecnologia etc.
Foi característica marcante do processo de integração bilateral a
concentração das decisões necessárias para impulsionar a integração no Poder
Executivo, entre Presidências e Ministérios, em especial nos de Relações Exteriores,
apesar da menção, algo genérica, é verdade, à “firme convicção” dos mandatários
de que a integração bilateral deveria contar “com a indispensável participação de
todos os setores de suas comunidades nacionais”, os quais eram retoricamente
257

convocados a “unir-se a este esforço”. Apesar do esforço retórico, na prática o


processo decisório restringiu-se à esfera burocrático-governamental, sendo
excluídos tanto os representantes parlamentares como as organizações que
representavam os empresários ou os trabalhadores, de ambos os países.
No ano seguinte, o processo intergovernamental foi impulsionado pela
assinatura da Ata para a Integração Brasil-Argentina, que instituiu o Programa de
Integração e Cooperação Econômica (PICE), em 29 de julho de 1986. O Programa
resultava dos acordos acertados nos meses anteriores e estabelecia tratamento
preferencial recíproco frente a terceiros países, isto é, uma zona tarifária
preferencial. Movido ainda por uma lógica desenvolvimentista e por um conjunto de
princípios expressos, o PICE aspirava à integração comercial intrassetorial e à
coexistência harmônica dos diversos setores econômicos dos dois países. O setor
de bens de capital seria “o núcleo dinâmico do Programa, (...) [e], por meio do
comércio bilateral administrado, tornar-se-ia a força motriz de uma integração
simétrica, gradual e equilibrada”, como recordam M. Hirst, G. Bezchinsky e G.
Castellana (1994: 11). O mecanismo impulsionador da integração eram os
Protocolos firmados entre os dois governos: entre 1986 e 1989, nos seis encontros
presidenciais foram assinados vinte e quatro acordos setoriais, com destaque para
os temas seguintes: comércio de trigo, abastecimento alimentício, automóveis e
autopeças, cooperação tecnológica, inclusive no sensível tema das tecnologias
nucleares para fins civis, siderurgia, cooperação militar, biotecnologia, informática,
transportes marítimos e terrestres, cooperação aeronáutica, assuntos financeiros,
cooperação energética, entre outros. O Programa de Integração, portanto, era já
uma realidade complexa e abrangente, baseada na concepção de comercio
administrado pelo Estado, ou seja, não deveria haver superávits excessivos para
qualquer dos lados, para não desequilibrar as delicadas relações comerciais
bilaterais.
Os princípios que norteavam o Programa de Integração refletiam o realismo
com que o tema era tratado pelos governos: (i) flexibilidade, permitindo ajustes em
termos de objetivos e ritmos de execução; (ii) gradualismo, avançando ano a ano,
por etapas, no processo de integração e cooperação econômica; (iii) simetria,
harmonizando as políticas específicas que pudessem interferir na competitividade
dos respectivos setores econômicos; e, por fim, (iv) equilíbrio dinâmico de
benefícios, propiciando uma integração setorial uniforme e garantindo os ganhos
258

recíprocos equilibrados. Na expressão de um diplomata brasileiro que assessorou


diretamente o presidente Sarney, citado por outro que também o assessorou,
tratava-se já da “implantação de um espaço preferencial de entendimento
democrático e de integração econômica que veio a desembocar no MERCOSUL”
(Rubens Ricupero apud Seixas Corrêa, 2000: 374). Assim, a condução
intergovernamental do processo e os princípios acima eram as regras estruturantes
da integração entre Argentina e Brasil, no final dos anos 80.
Um ano e meio após a Ata de Integração, os presidentes assinaram o Tratado
de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, em 29 de novembro de 1988,
compromisso jurídico que previa o estabelecimento de um espaço econômico
comum (o “Mercado Comum Brasil-Argentina”), no prazo de dez anos. Era um passo
ousado, ainda mais considerando que, até poucos anos antes, as relações entre os
países eram marcadas pelas hipóteses de conflito e pelas desconfianças mútuas,
traço histórico carregado desde as respectivas independências nacionais. Desde o
início, os presidentes empenharam-se pessoalmente em avançar no campo da
cooperação nuclear, capítulo à parte das relações argentino-brasileiras e que, como
dito, foi fundamental para superar as suspeitas recíprocas e estimular a
convergência política e econômica. Aliás, o peso da diplomacia presidencial foi
crucial na condução da política externa em sentido mais amplo, e nos campos
específicos da cooperação nuclear e da integração econômica. Alfonsín e Sarney
lideraram pessoalmente o processo, sendo frequentes os encontros presidenciais e,
nesses encontros, iam-se somando os protocolos de integração setorial e os
acordos de cooperação econômica.
O objetivo aqui é analisar os padrões de tomada de decisão em política
externa que predominaram durante os primeiros governos civis, comparando-os
entre si e às respectivas trajetórias históricas anteriores, durante as últimas ditaduras
militares. Primeiramente, cabe assinalar que, em perspectiva comparada, os
respectivos processos de transição democrática possuíam conexões diversas com
as suas relações internacionais, mais imbricadas no caso argentino do que no
brasileiro, onde a política internacional teve pouco ou quase nenhum impacto sobre
a transição em si. Além do peso da transição sobre as orientações políticas
posteriores, cabe adicionar o fato de que as respectivas políticas externas possuíam
também graus diversos de politização doméstica, sendo historicamente menor no
Brasil do que o era na Argentina.
259

No caso argentino, a mudança de regime foi fonte de rupturas essenciais com


os conteúdos da política externa dos anos de ditadura. Quanto ao processo
decisório, observou Roberto Russell que, embora o Ministério das Relações
Exteriores e Culto tenha recuperado seu papel de ator central no processo de
elaboração e execução da política externa, o poder de decidir “concentrou-se
basicamente na cúpula desta agência estatal, integrada por funcionários de origem
política” (Russell, 1987b: 16). Assim, se durante a ditadura todo o Ministério era
excluído das decisões sobre política externa, durante o período democrático esta
exclusão não atingia mais a agência como um todo, mas apenas os burocratas, em
favor dos funcionários indicados politicamente. A institucionalidade do processo
decisório na Argentina aponta para um contraste agudo diante do caso brasileiro.
No Brasil, a mudança de regime não afastou as continuidades com o projeto
de política externa anterior, sobretudo dos últimos dois generais-presidentes, Geisel
e Figueiredo. Para a política externa, 1974 é um marco mais importante de
reorientação do que 1985, dado o grau de convergência entre as elites políticas e
burocráticas, civis e militares, em torno de princípios e orientações de política
externa. Em observação comparativa sobre os processos de redemocratização e
seu impacto sobre a política externa, Mônica Hirst afirmou que, ao contrário do que
ocorreu em países vizinhos (como a Argentina e o Uruguai), “onde foi dedicada
especial atenção à política externa e às necessidades de sua transformação, no
Brasil anunciou-se desde as vésperas da Nova República que este era um terreno
que não sofreria maiores modificações” (Hirst, 1987b: 34). Do ponto de vista da
distribuição do poder decisório, a organização diplomática reunida no Itamaraty
manteve a prerrogativa histórica de formular e pôr em prática a política externa, fator
que explica a maior continuidade na trajetória dessa política.
Nos dois casos, entretanto, os presidentes envolveram-se pessoalmente na
condução da política externa, inaugurando uma nova modalidade de comportamento
presidencial, que não tinha precedentes de destaque em toda a história republicana
destes países. Nesse sentido, no Brasil, ainda que exista um padrão histórico
marcado pelo amplo grau de prevalência da burocracia diplomática no Brasil, a
260

diplomacia presidencial passou a ocupar um lugar de destaque desde o início da


atual fase democrática, embora o conceito tenha assumido destaque
posteriormente112. O fato é que o presidente Sarney, assim como outros sucessores,
utilizou amplamente a diplomacia presidencial, o que teve como consequência a
diminuição relativa do centralismo e do insulamento burocrático do MRE. No trabalho
publicado em 1987, Hirst já apontava, precocemente, a “diversificação dos atores
estatais no processo decisório e na implementação da política externa do Brasil” e
analisava que, “da mesma forma como o primeiro mandatário assumiu gradualmente
maior firmeza na condução da política interna do país, também passou a expressar
maior determinação na defesa dos interesses do Brasil no plano internacional”
(1987b: 37). No mesmo sentido, Seixas Corrêa (2000) destaca a sistemática atuação
diplomática do presidente Sarney, com ênfase na sua atuação regional113. Pode-se
citar como exemplos, além do caso da aproximação com a Argentina, o papel do
presidente Sarney no reatamento com Cuba ou o seu envolvimento diplomático na
questão da Nicarágua.
No Brasil, este processo de diversificação dos atores estatais envolvidos nas
questões internacionais é um dado ainda mais sobressalente do que no país vizinho.
Primeiro, pelo papel do Ministério da Fazenda, o que é compreensível, naquele
contexto em que a crise econômica e as negociações da dívida externa ocupavam o
centro da agenda internacional destes países. Porém, outros atores estatais

______________________________________________
112
A este respeito, a obra sempre citada é o livro pioneiro do diplomata brasileiro Sérgio Danese, Diplomacia
Presidencial, que a define como “a condução pessoal de assuntos de política externa, fora da mera rotina ou
das atribuições ex officio, pelo presidente, ou, no caso de um regime parlamentarista, pelo chefe de Estado
e/ou chefe de governo” (1999: 51). De acordo com a leitura de Danese, a novidade é explicada pela
“frequência e abrangência com que se recorre à figura dos chefes de Estado e de governo para fazer
diplomacia em áreas, temas e situações em que, até há relativamente pouco tempo, era comum recorrer-se
aos chanceleres ou a plenipotenciários” (1999: 70).
113
Observa Seixas Corrêa, ao comentar o envolvimento pessoal do presidente nas questões regionais, que
“com cada um dos interlocutores regionais, estabeleceu-se um programa de consultas e de cooperação que
permitiu ao Brasil – não obstante as limitações impostas pela crise econômica e pelo estancamento do fluxo de
financiamentos para projetos de infraestrutura – assegurar uma presença diferenciada e uma relevância
objetiva. Para tanto, certamente pesou o fator da chamada ‘diplomacia presidencial’. Ao final do seu mandato,
o presidente Sarney orgulhava-se de ter visitado todos os países da América do Sul (além do México e Costa
Rica), alguns mais de uma vez, tendo recebido em Brasília praticamente todos os seus colegas da região.
Alterando a prática anterior, o presidente passou também a prestigiar pessoalmente a posse de diversos
presidentes latinoamericanos, estabelecendo com seus colegas uma relação de trabalho e de confiança
fundamental para o êxito de seu projeto diplomático regional.” (2000: 373).
261

avançavam agendas próprias, como os exemplos do Ministério da Ciência e


Tecnologia, criado em 1985, e mesmo das Forças Armadas, burocracias
profundamente envolvidas em questões internacionais – no caso do MCT, na política
de informática, outro tema sensível da agenda bilateral com os Estados Unidos, e na
política nuclear; e, no caso dos militares, desde questões de comércio da produção
bélica nacional até a própria questão nuclear. O envolvimento militar nas questões
de política externa diferencia as realidades de Brasil e Argentina, pois neste último o
retorno à democracia teve como consequência a diminuição radical de sua
importância, considerando que haviam ocupado o lugar central na tomada de
decisões sobre política externa (e interna) durante os anos de ditadura e que a
corporação militar encontrava-se no ponto mais baixo de seu prestígio político e
social.
No país vizinho, além da diplomacia presidencial do presidente Alfonsín e do
controle presidencial das nomeações da cúpula decisória do Ministério, também
merece destaque o “maior ativismo externo das agências econômicas estatais,
fundamentalmente, dos operadores do Ministério da Economia, o que modificou
qualitativamente o papel tradicional destes atores em matéria internacional” (Ibid.).
Naquela fase, em lugar de gerar conflitos com o trabalho da Chancelaria, os
principais agentes de ambos os ministérios complementavam-se no esforço
direcionado à modificação progressiva das condições das negociações econômicas
internacionais.
Quanto ao Congresso, nos dois países revela-se um padrão de similar
alijamento parlamentar do processo decisório da política externa. Na Argentina,
como observa Russell, “o retorno à vida parlamentar não se traduziu na participação
significativa do Congresso em questões de política externa” (Russell, 1987b: 18).
Embora em alguns momentos, até pelo impacto das variáveis externas sobre o
processo político interno, hajam ocorrido manifestações parlamentares sobre
questões específicas, como a dívida externa, Malvinas, ou a crise centroamericana,
os padrões parlamentares predominantes foram o desinteresse ou desconhecimento
dos temas de política externa. No Brasil, manteve-se um padrão parlamentar
semelhante, relembrando o famoso slogan “a política externa não dá votos”: “a
política externa nunca foi um tema de maior importância para a classe política
brasileira, tendo uma presença marginal no debate legislativo” (Hirst, 1987b: 38).
Conforme as conhecidas conclusões do estudo de M. Lima e F. Santos (1998), que
262

analisa a participação do Legislativo na política de comércio exterior, mas cujo


argumento parece aplicar-se até com maior clareza a outras esferas da política
externa, apesar da previsão constitucional de envolvimento legislativo em assuntos
externos, desde o golpe de 1964 teve início uma diminuição das atribuições do
Congresso, sendo o Brasil “um caso de transição, lenta, gradual e inesperada de um
sistema de delegação para a abdicação congressual”.
Com relação à interferência política dos setores empresariais na política
externa argentina, observa Russell que “a imperiosa necessidade de superar a crise
e de estabelecer as condições para o crescimento econômico sustentado gerou
novas modalidades de coordenação entre o setor público e o privado”. Os
empresários compunham delegações oficiais em viagens ao exterior, seja em busca
de oportunidades para fazer negócios, seja simplesmente para demonstrar o
compromisso democrático dos setores incluídos nessas viagens. Ou então,
pequenos grupos de líderes empresariais eram chamados para compor comissões
bilaterais ou conselhos de cooperação, como era o caso da Comissão de Alto Nível
mencionada acima. Porém, eram indicações políticas ad hoc e, portanto, sujeitas às
preferências governamentais e sem critérios pré-definidos de representatividade ou
regras específicas de participação. Além disso, tratava-se de órgãos consultivos e
não de tomada de decisões em matéria de política externa. Assim, as novas
modalidades de articulação entre o setor público e o privado às quais se refere
Russell não serviam, por exemplo, para expressar politicamente as resistências e
suspeitas de alguns setores internos diante do voluntarismo integracionista do
governo114.

______________________________________________
114
No trabalho citado, escrito no contexto inicial da aproximação bilateral, analisa o autor que “os argumentos
sustentados por alguns setores empresariais destacaram tanto os problemas derivados dos distintos níveis e
graus de desenvolvimento alcançados por Argentina e Brasil, como as dúvidas e temores existentes frente às
restrições financeiras e fiscais com que opera a economia argentina e, ademais, as diferenças entre ambos os
países em matéria de financiamento, regulações e custo do trabalho. (...) Apesar destas críticas, a marcha das
negociações, que foi acompanhada por uma crescente articulação entre os setores empresariais e o governo,
parece indicar um maior e crescente apoio do grosso do empresariado argentino aos acordos de integração.”
(Russell, 1987: 23-24). Naturalmente, considerando a difícil fase final do governo Alfonsín, em especial após o
fracasso do Plano Primavera, de 1988, este apoio dos empresários não teria continuidade no restante do
período.
263

No caso do Brasil, a articulação entre governo, burocracia e empresários,


particularmente relevante nas questões de integração regional, deu-se em termos
similares à Argentina, isto é, sem qualquer caráter sistemático e sujeito à
informalidade do acesso ao poder, e isto com um dado adicional e significativo: o
menor grau de politização doméstica da política externa, explicado tanto pelas linhas
de continuidade dessa política como pela relação de confiança e articulação entre os
setores empresarias brasileiros e as diversas agências governamentais,
historicamente bastante mais precária na Argentina que no Brasil. Vale transcrever
as conclusões (conjuntas) de R. Russell e M. Hirst sobre os “atores e agências” no
processo decisório da política externa durante os primeiros anos de democracia, na
Argentina e no Brasil:

“Desde a instalação do governo democrático, a política exterior argentina foi


desenhada, fundamentalmente, pelo próprio presidente, seu chanceler e um estreito
círculo de autoridades do Executivo. A recuperação relativa da Chancelaria no
manejo da política externa do país, diante do limitado papel que desempenhara
durante o governo militar, não se traduziu, porém, na participação ativa de seus
funcionários principais na elaboração da mesma. Neste sentido, seu papel segue
sendo marginal, fato que evidencia a debilidade desta burocracia, ainda incapaz de
evadir-se do impacto que sobre ela exerceram as marchas e contramarchas do país
nos últimos anos.
No Brasil, as principais forças que integram o Executivo são: um presidente e um
chanceler débeis e uma burocracia forte, coesa e profissional, o que constitui a
principal garantia de continuidade da política externa. Com respeito ao âmbito
interburocrático, é interessante sublinhar que no Brasil existe, atualmente, uma
maior diversificação de funções e atribuições entre os diferentes ministérios na
condução dos assuntos internacionais do país, que permite, provavelmente, um
processo decisório menos centralizado do que parece existir na Argentina.” (Russell
e Hirst, 1987: 60)

Em 1988, como se dizia acima, Sarney e Alfonsín firmaram o Tratado de


Integração, Cooperação e Desenvolvimento, impulsionando o processo de
integração das esferas estatais e dos setores econômicos envolvidos nos acordos. A
estrutura institucional estabelecida pelo Tratado era relativamente simples: uma
Comissão de Execução, copresidida pelos presidentes da Argentina e do Brasil, e
composta por quatro ministros de cada governo, a serem indicados por Decreto
Presidencial; e uma Comissão Parlamentar Conjunta de Integração, composta por
doze parlamentares de cada país, indicados pelo Poder Legislativo. A coordenação
dos trabalhos da Comissão de Execução do Tratado coube aos Ministros das
Relações Exteriores, sendo este acompanhado dos seguintes representantes
ministeriais: pela Argentina, os outros três eram o da Economia, o de Obras e
Serviços e o de Educação e Justiça; pelo Brasil, foram indicados inicialmente o
264

ministro da Economia, o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e o Chefe do


Gabinete Militar, em 1989, mas, no ano seguinte, a composição foi modificada pelo
presidente Collor, sendo indicados os ministros da Economia, Fazenda e
Planejamento, da Infraestrutura e da Agricultura e Reforma Agrária. As principais
decisões concentravam-se na instância interburocrática da Comissão de Execução,
enquanto à Comissão Parlamentar Conjunta coube o papel meramente consultivo e
a missão quase protocolar de analisar os acordos internacionais, antes da sua
submissão para a ratificação pelos Congressos Nacionais.
O Tratado foi aprovado, por unanimidade, pelo Poder Legislativo de cada um
dos países e entrou em vigor no dia 23 de agosto de 1989, quando houve a troca
dos instrumentos de ratificação pelos presidentes, por ocasião da primeira visita
oficial de Carlos Menem, empossado no mês anterior. O encontro dos presidentes
Menem e Sarney foi importante na trajetória de integração bilateral, pois, com o
apoio dado pelos Congressos e pelo novo presidente argentino, o processo de
integração dava sinais de ser não apenas uma política de governo, mas uma política
de Estado. No dia 24, os presidentes emitiram um Comunicado Conjunto, onde o
apoio à integração era reiterado por ambos os lados. Eram destacados, ainda, vários
outros pontos mais específicos: (i) que todos os setores sociais de ambos os países
teriam “participação ampla no processo de integração”; (ii) que o Tratado era
considerado pelos mandatários como um fator de aceleração da integração
latinoamericana, uma vez que estava aberto à adesão de terceiros115; (iii) que seria
intensificada a cooperação tecnológica e empresarial, especialmente em setores
econômicos de ponta; (iv) que seriam estimuladas grandes obras de engenharia e
infraestrutura; e (v) que ambos os países assumiam os compromissos de utilizar e
desenvolver a energia nuclear com fins exclusivamente pacíficos de impulsionar o
processo de cooperação neste campo, inclusive com o intercâmbio de produtos da
industria nuclear.

______________________________________________
115
Cabe destacar que, nos termos do próprio Tratado, a integração bilateral era aberta à participação de outros
países da ALADI, desde que decorrido o prazo inicial de cinco anos: “Art. 10. A solicitação de associação por
parte de Estado-membro da Associação Latino-Americana de Integração - ALADI a este Tratado, ou a um
Acordo específico dele decorrente, poderá ser examinada pelos dois Estados-Parte após cinco anos de
vigência deste Tratado ou do Acordo específico a que o Estado-membro da ALADI solicite sua associação”.
265

O período seguinte foi marcado por uma intensa atividade


intergovernamental. Entre o final de 1989 e março de 1991, quando foi firmado o
tratado constitutivo do MERCOSUL, somaram-se pelo menos três mudanças que
seriam fundamentais para a criação do bloco: primeiro, a convergência política
resultante da vontade dos novos governos eleitos de realizar as reformas estruturais
prescritas pelo neoliberalismo, modificando assim o padrão de inserção internacional
de Argentina e Brasil; segundo, a definição bilateral, por meio de uma articulação
política que se produziu ao longo do ano de 1990, das regras que deveriam
estruturar o processo de integração, as quais teriam consequências sobre todo o
processo posterior de constituição do bloco multilateral; e, finalmente, dando novos
rumos a um processo então em curso, a incorporação do Uruguai e do Paraguai às
negociações do Tratado de Assunção, após a opção do Chile de não aderir, naquele
momento, ao MERCOSUL.
A adesão dos novos governos aos preceitos neoliberais tornava inequívoca a
intenção política de transformar o modelo de desenvolvimento econômico das
décadas anteriores. Neste contexto, a aceleração do processo de integração
econômica era percebida como um caminho para, por um lado, vincular a agenda
doméstica à agenda de política externa, encapsulando, por meio de compromissos
internacionais, as reformas estruturais pretendidas, as quais encontravam
resistência de setores políticos internos, e, por outro lado, tornar o projeto de
integração uma espécie de plataforma para a nova inserção internacional, alinhando
suas respectivas políticas externas ao projeto liberal e renovando as credenciais
internacionais a respeito da credibilidade dos desígnios governamentais. A transição
de modelos econômicos, desencadeada pelas pressões políticas e interesses
internacionais e domésticos, mas, sobretudo, pela crise do modelo nacional-
desenvolvimentista, é um fator chave na explicação do processo de formação do
bloco. Tanto o governo argentino como o governo brasileiro recém empossado
adotariam, embora com ritmos, intensidades e contextos domésticos particulares, as
políticas do Consenso de Washington.
A segunda mudança fundamental que merece destaque foi a definição
bilateral dos princípios, valores e instrumentos em torno dos quais o MERCOSUL
seria instituído. Essa definição, como analisa Vaz (2002), resultou dos
entendimentos firmados entre Argentina e Brasil, sócios maiores do bloco, mas teria
um peso fundamental nas etapas posteriores do processo de integração. Nesse
266

sentido, ao longo do ano de 1990 foram firmados a Ata de Buenos Aires (em julho),
que estabeleceu um “Grupo de Trabalho” binacional (o Grupo Mercado Comum,
GMC), instância subordinada à preexistente Comissão de Execução do Tratado de
1988, e o Acordo de Complementação Econômica n. 14 (em dezembro), o qual
incorporou as duas dúzias de protocolos setoriais então vigentes. Por meio do
primeiro compromisso, os presidentes antecipavam o prazo para a criação de um
espaço econômico comum para dezembro de 1994, fazendo-o caber dentro de seus
mandatos presidenciais.
A terceira questão definidora do bloco diz respeito justamente ao processo de
multilateralização, que já estava em curso desde os últimos anos da década de
1980, mas que também teve momentos decisivos no ano de 1990. No caso do
Uruguai, desde meados da década o governo já havia manifestado a sua intenção
de aderir à integração argentino-brasileira.
Entre julho de 1986 e maio de 1987, houve três encontros presidenciais
trilaterais (Raúl Alfonsín – José Sarney – Julio Sanguinetti), mas ainda havia forte
resistência, especialmente por parte do governo brasileiro, que não desejava repetir
as dificuldades da ALADI com relação aos países de menor desenvolvimento
relativo, temor que se estendia ao caso paraguaio116. No ano de 1988, o presidente
uruguaio manifestou interesse de aderir à integração entre Argentina e Brasil, tendo
sido adotadas duas Decisões Tripartites (a n. 1, em abril, e a n. 2, em novembro), as
quais reforçavam o sentido de integração do país ao processo bilateral, mas
preservando tanto os princípios e instrumentos definidos pelos dois países maiores
como as condições particulares deste sócio menor117. Mas isto ainda não significava

______________________________________________
116
Conforme a análise de A. Vaz (2002: 126), “o foco de maior resistência era então o Brasil, que não desejava
reproduzir, em escala menor, a experiência da ALADI, em que a presença de países de menor
desenvolvimento relativo acarretara a adoção de um regime de tratamento privilegiado, no qual o país, por sua
dimensão e diversidade econômica, devia oferecer concessões sem reciprocidade. A avaliação era a de que a
diferença em termos de desenvolvimento relativo tornava contraproducente, para o Brasil, a incorporação do
Uruguai e Paraguai, sendo que, no caso deste, a própria natureza de seu regime político representava um
elemento impeditivo”. A ditadura de Stroessner durou quase 35 anos (de agosto de 1954 a fevereiro de 1989),
tendo sido substituído pelo presidente civil Andrés Rodríguez.
117
É também A. Vaz quem analisa a solução política adotada diante das pretensões uruguaias, compartilhadas
por argentinos, que percebiam a inclusão dos sócios menores como um fator moderador da assimetria diante
do Brasil e como um modo de forçar maior abertura da economia brasileira, em especial pela pretensão
267

a incorporação plena do Uruguai ao processo de integração, fato que somente


ocorreria ao longo do ano de 1990, já sob a presidência de Alberto Lacalle, quando,
em resposta à Iniciativa Para as Américas, o Brasil modificou a sua posição e
aceitou a incorporação de outros países ao processo de integração.
No caso do Paraguai, a história repetiu-se em parte, com o governo argentino
forçando uma aproximação bilateral e tentando integrá-lo ao processo e o brasileiro
tentando evitar esta incorporação, sendo o regime ditatorial paraguaio um
complicador a mais. Após o anuncio da Iniciativa Para as Américas pelos Estados
Unidos e a transição de regime no Paraguai, porém, a sua incorporação ao bloco
tornou-se possível, porquanto desejada pela Argentina, pelo Brasil, que passou a
expressar interesse na inclusão do país, e pelo novo presidente paraguaio, Andrés
Rodrigues (o qual já vinha se articulando bilateralmente com a Argentina). No caso
do Chile, como se sabe, houve gestões similares por parte do governo argentino,
que, assim como havia feito com os outros dois sócios menores, buscou estreitar os
vínculos bilaterais e atrair o país vizinho para a integração do Cone Sul. O governo
chileno, porém, cujo novo governo democrático de Patrício Alwyin já havia
manifestado a intenção de se integrar à Argentina, terminou por recusar a adesão ao
bloco, por razões ligadas principalmente ao grau maior de abertura de sua
economia, à existência de acordos de comércio que poderiam ser atingidos pela sua
adesão e, especialmente, pelo interesse chileno de estreitar os seus vínculos com os
Estados Unidos. Assim, após intensa atividade intergovernamental de construção
diplomática de consensos, o MERCOSUL adquiria a sua formação inicial com os
quatro países e sem o Chile, que se tornaria membro-associado apenas em 1996,
juntamente com a Bolívia.
Na pesquisa citada, Vaz (2002) analisa os processos de aproximação de
Uruguai e Paraguai à integração, a qual ainda era bilateral até aquele momento. Ao
examinar a dinâmica de formação do MERCOSUL, o autor destaca os fatores
externos, como o novo regionalismo e a nova política norte-americana a partir do fim

______________________________________________
(frustrada) de incluir o Chile, que já trazia das décadas anteriores um maior grau de abertura. Quanto à
questão específica do Uruguai, o autor afirma que, pela solução adotada na Ata da Alvorada (Alfonsín-Sarney-
Sanguinetti) e nas Decisões Tripartites, tudo isso em 1988, de preservar os princípios e instrumentos definidos
bilateralmente, “acomodavam-se os interesses uruguaios, ainda que em condições distintas das desejadas
pelo país, ao mesmo tempo em que se preservava o processo bilateral como vinha sendo conduzido”. Tratava-
se de uma associação parcial, pois, “naquela fase, foram infrutíferos os esforços uruguaios de tornar trilateral o
processo de integração e de nele manter condição privilegiada, em razão de seu menor tamanho” (2002: 126).
268

da Guerra Fria, assim como as movimentações e os cálculos diplomáticos dos


quatro países que dariam origem ao bloco118.
Diante do anúncio da Iniciativa Para as Américas e da percepção das
renovadas pretensões geopolíticas dos Estados Unidos sobre as Américas,
tradicional área de influência da superpotência agora solitária, Argentina e Brasil
articularam-se para firmar o compromisso de manter uma posição comum diante das
pretensões dos Estados Unidos. No início de março de 1991, portanto alguns dias
antes da assinatura do Tratado de Assunção, os dois governos criaram o inédito
“Mecanismo Permanente de Consultas para a Harmonização das Políticas
Externas”. Não há dúvidas de que a percepção dos riscos e oportunidades da
integração hemisférica foi um fator crucial para o estabelecimento do mecanismo,
sobretudo pela dimensão da economia norte-americana, que ultrapassava três
quartos do PIB das Américas, o que lhe dava um expressivo poder de atração dos
países menores da região.
Cronologicamente, a sequência parece bastante clara. Em julho de 1990, os
Estados Unidos anunciam a IPA e os dois países estudados firmam a Ata de Buenos
Aires, ajustando o prazo para a formação de um mercado comum bilateral à
extensão dos mandatos presidenciais de Menem e Collor. Cerca de dois meses
depois, em setembro, a primeira reunião do recém criado GMC (bilateral), instância
que coordenava as negociações integrativas, foi realizada nos dias imediatamente
anteriores aos encontros de um GMC mais amplo (quadrilateral). Entre os meses de
setembro de 90 e março de 91, houve sete encontros de cada um dos GMCs,
sempre com os dois sócios maiores firmando os entendimentos que eram em
seguida apresentados aos dois menores, que apresentavam os seus interesses e
preferências aos dois países já entendidos entre si. Em suma, a preparação do

______________________________________________
118
A explicação da configuração inicial do projeto integracionista pelo autor é resumida no trecho a seguir: “A
passagem do processo negociador bilateral ao exercício multilateral quadripartite produziu-se a partir da
conjunção de fatores externos, em particular a ascensão do regionalismo econômico como traço definidor da
ordem econômica internacional, e, neste âmbito, o protagonismo dos Estados Unidos no continente americano
a partir de 1990, com outros fatores definidos na própria sub-região, como a movimentação do Uruguai
objetivando incorporar-se ao processo que o Brasil e a Argentina vinham conduzindo desde meados dos anos
80, o interesse e a movimentação do governo argentino visando estabelecer acordos preferenciais com seus
principais parceiros na região, a política pendular do Paraguai imediatamente após a queda de Stroessner e,
diante disso, o interesse e a resposta brasileira objetivando articular uma plataforma de inserção externa.”
269

projeto do Tratado de Assunção foi dependente da trajetória estabelecida


bilateralmente, pois na Ata de Buenos Aires já havia a previsão de eliminar
reciprocamente as tarifas até o final de 1994, a pretensão de fazê-lo por meio de um
cronograma de redução automática e linear das tarifas, da harmonização das
políticas macroeconômicas, e, finalmente, da fixação das condições para as listas de
exceção e para as regras de origem. A principal adaptação que se fez necessária,
por reivindicação de Uruguai e Paraguai, foi a incorporação de ritmos mais lentos de
redução tarifária, sem, contudo, romper com a regra de ouro da reciprocidade plena,
sem a qual os sócios maiores não estavam dispostos a seguir adiante. No mais, o
eixo Argentina-Brasil definiu as principais regras estruturantes do processo
negociador, cuja dinâmica posterior foi claramente dependente, pois a passagem da
integração bilateral à multilateral “ocorreu sem descaracterizar o projeto de
integração bilateral, tal como redefinido na Ata de Buenos Aires, de junho de 1990,
tendo consagrado princípios, valores e instrumentos gerados bilateralmente, [e]
ajustando-os à feição multilateral que assumiu o processo de integração com o
MERCOSUL a partir de 1991” (Vaz, 2002: 277)
Finalmente, em 26 de março de 1991, os quatro países fundaram o
MERCOSUL, assinando e depois ratificando internamente o Tratado de Assunção.
Durante o processo de negociação que se estende de 1991 a 1994, ou seja, do
Tratado de Assunção ao Protocolo de Ouro Preto, foi estabelecida uma estrutura de
negociação que, se por um lado permitia a troca de informações entre os quatro
governos e seus órgãos burocráticos, e entre esses e os representantes do setor
privado, sobretudo dos empresários e trabalhadores de cada um dos países, por
outro lado favorecia a centralização governamental-burocrática das decisões, em
detrimento da ampliação da participação dos atores não-estatais. Cabe analisar, no
restante desta seção, como se deu a dinâmica da interação entre as principais
organizações do setor privado de Argentina e Brasil, durante a chamada fase de
transição. A análise está organizada na sequência seguinte: primeiro, são
analisadas as interações das organizações empresariais e sindicais com os seus
respectivos governos nacionais, e, depois, as interações desses mesmos atores no
âmbito das instâncias negociadoras criadas ou ratificadas pelo próprio Tratado de
Assunção. Ao final, são listadas algumas conclusões parciais, referentes à análise
do processo de politização e à avaliação da eventual democratização das políticas
de integração regional desses dois países.
270

Na Argentina, de início não houve reuniões formais entre o governo e o setor


privado. Só depois da Cúpula de Las Leñas (1992), quando a integração ganhou
maior objetividade, isto é, porquanto foi adotado o mecanismo de desgravação
tarifária automática, houve alguns encontros nos quais as autoridades do Ministério
das Relações Exteriores e Culto ou do Ministério da Economia informavam os
convidados, representantes de empresas e centrais empresariais, acerca do
progresso das negociações. Nesses encontros, todavia, as autoridades
governamentais limitavam-se a expor as estratégias e políticas oficiais, justificando-
as a um grupo determinado de representantes empresariais que não tinham
oportunidade de influenciar as decisões adotadas. Os trabalhadores não eram
sequer convocados para a apresentação de informações oficiais sobre o processo
negociador em curso.
Aliás, o MERCOSUL era um tema praticamente inexistente nos debates
políticos ocorridos no interior dos sindicatos de trabalhadores argentinos, pelo
menos até 1993, o que inclui até a maior das centrais argentinas, a CGT. A temática
da realização de um tratado de livre comércio com os EUA e, depois, de uma
possível associação à NAFTA, eram assuntos mais relevantes para os sindicatos,
seja pelos interesses despertados pelo acesso ao mercado norte-americano, seja
pela percepção dos riscos potenciais dessa associação. Quanto ao MERCOSUL,
nem mesmo o órgão máximo da maior central sindical do país, o Conselho Diretivo
da CGT, debatia o tema com profundidade, limitando-se a ser informado de tempos
em tempos dos avanços nas negociações (W. Klein, 2000). Para os afiliados, não
circulava praticamente qualquer informação, nem mesmo nas centrais sindicais
menos débeis do ponto de vista administrativo e/ou financeiro. Por fim, embora os
sindicatos fizessem oposição, na maioria dos casos, ao governo Menem, essa
oposição e as críticas quase nunca eram dirigidas especificamente ao tema da
integração regional em curso.
Ao final da fase de transição, eram três os principais movimentos de
trabalhadores na Argentina, a Central General de los Trabajadores (CGT), o
Congreso de Trabajadores Argentinos (CTA) e o Movimiento de los Trabajadores
Argentinos (MTA), sendo a primeira a maior e mais tradicional delas, que se
fragmentou para dar origem às outras duas. Estima-se que, em 1991, a CGT tivesse
cerca de 2 milhões e 600 mil trabalhadores associados (isto por associação indireta,
uma vez que se trata de uma confederação sindical), e, em 1994, após a sua
271

fragmentação, esta cifra havia caído para menos de 2 milhões, embora ainda fosse
duas vezes maior do que as outras duas juntas. Trata-se também da central sindical
com maior representatividade em termos de setores econômicos envolvidos119. Em
termos ideológicos, predominavam na CGT o peronismo e as suas raízes
corporativistas. O segundo maior movimento sindical, o CTA, foi criado em 1992 e
suas bases principais eram os empregados estatais (professores) e os trabalhadores
da indústria metalúrgica. Em 1994, contava com cerca de 700 mil trabalhadores
associados, parte deles provenientes da CGT e outra parte incorporando tanto
novos associados como desempregados, um setor econômico que cada vez mais
assumiria importância no âmbito dos movimentos sociais argentinos, os
desocupados. O terceiro movimento mencionado, o MTA, outra dissidência da CGT,
foi criado em 1993 e tinha suas bases quase exclusivamente nos setores de
transportes e da indústria automotiva. Vejamos a relação, quando houve, dessas
três organizações sindicais com as dinâmicas de integração regional da Argentina.
A CGT, em que pese sua importância política no passado, possuía, na
primeira metade dos anos 90, baixa capacidade de mobilização para influenciar as
políticas de integração do governo Menem. Como não houve debate interno à
organização, ela tampouco possuía uma política de integração propriamente dita,
limitando-se a expressar apoio às posições da Coordenadora das Centrais Sindicais
do Cone Sul. Como observa Klein (2000), a primeira declaração oficial sobre o tema
ocorreu apenas em dezembro de 1991. Eram outros os assuntos prioritários para a
CGT – em particular, as políticas de imigração, a defesa do monopólio de
representação e as caixas de seguro de saúde ou obras sociales, de propriedade
dos sindicatos – e, sendo assim, a questão da integração econômica passava ao
largo do envolvimento político da CGT, que, cabe reforçar, encontrava-se em uma
trajetória descendente em sua capacidade de mobilização política e de influência
sobre as políticas governamentais.

______________________________________________
119
Conforme aponta Klein (2000), a CGT abrangia principalmente os sindicatos das seguintes atividades
econômicas: comerciários, bancários, empregados municipais e trabalhadores dos setores automotivo,
metalúrgico e de transportes.
272

O CTA, coerente à sua posição de protesto, mantinha-se mais crítico ao


MERCOSUL, assim como à abertura comercial em sentido mais amplo. Dentro da
realidade sindical argentina, representava o sindicalismo mais “combativo”, em
contraposição ao sindicalismo “de resultados”, que penetrou nas antigas CGTs, tanto
da Argentina como do Brasil. Apesar do discurso crítico, que traçava um cenário
extremamente severo das consequências da liberalização econômica para a
estrutura produtiva argentina, e consequentemente para a sociedade, o CTA era
também um ator débil demais para ter influência sobre as enfáticas orientações
neoliberais do governo. De modo similar, a terceira grande central sindical argentina,
o MTA, fundada por um grupo de peronistas antimenemistas e antiliberais, propunha
uma renovação da deteriorada imagem sindical herdada das décadas anteriores. No
entanto, apesar do viés crítico compartilhado pelo CTA e o MTA, ambos possuíam
capacidade de mobilização bastante restrita, além de não haverem se filiado à
Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul, o que os distanciava ainda mais
do processo de integração, uma vez que nenhum dos dois movimentos possuía
capacidade política, ou mesmo administrativa e financeira, para apresentar posições
consistentes, fundamentadas e especificamente voltadas para o processo
negociador.
No que diz respeito ao envolvimento dos sindicatos brasileiros no processo de
institucionalização do bloco, cabe situá-los no contexto do final da década de 80 e
primeira metade da seguinte. Já foi mencionado que no caso brasileiro houve maior
renovação institucional e também maior diversificação sindical. A bifurcação histórica
gerada pelo surgimento do “novo sindicalismo” no início dos anos 80 teve como
consequência o estabelecimento de duas tendências político-ideológicas, o
sindicalismo “combativo”, reunido em torno da Confederação Única dos
Trabalhadores (CUT), criada em 1983, e o sindicalismo “cooperativo” ou “de
resultados”, este último associado tanto à velha Central Geral dos Trabalhadores
(CGT), criada nos anos 30, como à sua tendência interna que se separaria em 1991
para dar origem à Força Sindical. Assim, durante a fase de transição ou de
institucionalização do MERCOSUL, estas eram as principais centrais sindicais no
Brasil, as quais mantiveram relações, diversas entre si, com o governo, os
empresários e com a arena político-partidária. Com relação ao processo negociador,
diferentemente do que ocorria na Argentina, onde apenas a CGT vinculou-se à
Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), no Brasil as três centrais
273

sindicais principais estiveram vinculadas à instância transnacional criada nos anos


1980.
A mais tradicional, a CGT criada na era varguista, encontrava-se, em termos
de orientação político-ideológica, dividida entre uma tendência fiel à origem
corporativista e outra mais liberal. Cabe destacar que muitos dos principais
dirigentes da Central possuíam afinidade, ou eram filiados mesmo, ao PMDB.
Embora fosse a mais antiga, nos anos 1990 a sua relevância política já havia
diminuído consideravelmente, tornando-se a menos relevante das três centrais
sindicais brasileiras. A esta altura, a CGT quase não possuía capacidade de
mobilização, era fortemente centralizada nos setores têxtil e de construção do
Estado de São Paulo e, enfim, encontrava-se em processo de dissolução, sendo a
formação da Força Sindical a expressão mais evidente desta crise do sindicalismo
corporativista no interior da CGT.
O surgimento da Força Sindical, dissidência da antiga Central que já nos
primeiros momentos teria mais associados do que a CGT, significou, naquele
contexto, a criação de uma organização sindical que talvez pudesse fazer frente à
CUT, embora a Força adotasse a linha do sindicalismo de resultados. Inspirada no
sindicalismo de empresas norte-americano, suas bases principais estavam no
desenvolvido parque industrial paulista, em especial na Confederação Nacional dos
Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM). Em termos de filiação partidária, destacava-se
das outras duas centrais pelo fato de que seu maior grupo interno, em termos
relativos, era de não-filiados a qualquer partido, seguido pelos associados ao PMDB
(até pela origem de parte das lideranças, formadas nas fileiras da CGT e envolvidas
na oposição ao regime militar quando o partido tinha forte atração a estes
segmentos sindicais), ao PDT ou ao PSDB. Diferentemente da CGT, um tanto
desgastada pelo estilo personalista e pelo apego corporativista, a Força Sindical
soube manter-se relevante no cenário político, sendo alguns de seus líderes os
interlocutores preferidos dos primeiros governos civis após a ditadura. Sua imagem
pública seria abalada na primeira metade dos anos 90, tanto por denúncias que
associaram o seu então presidente a um escândalo de corrupção envolvendo líderes
sindicais e o político Paulo Maluf, como pela filiação apressada de muitos de seus
dirigentes ao PSDB em 1994, quando ficou claro que Fernando Henrique Cardoso
seria provavelmente o novo Presidente da República. Apesar disso, manteve-se
relevante na cena pública – em contraste à decadência política da Central – a Força
274

Sindical possuía então menor potencial de mobilização dos trabalhadores do que a


CUT, símbolo maior da outra renovação sindical brasileira.
O “sindicalismo combativo” representado pela CUT é ao mesmo tempo o mais
envolvido na arena política, vinculado fortemente a partidos de esquerda (em
especial ao PT), e o que manteve maior relevância pública e potencial de
mobilização e luta. Seus objetivos eram baseados em amplas reformas sociais,
embora o ímpeto quase revolucionário de seus primeiros anos tenha dado lugar a
propostas mais moderadas ao longo dos anos. Além disso, durante os anos 1980, a
CUT foi capaz de estender e fortalecer sua estrutura institucional e formação de
quadros, apesar das disputas internas que resultaram destas redefinições. Com isso,
como assinala Klein (2000: 88), “no começo dos anos 90, a CUT era a maior e mais
poderosa central sindical da América Latina”, sendo, ademais, a central com maior
cobertura territorial e diversidade setorial do Brasil, com destaque para os
empregados estatais (40%, antes das privatizações), bancários, metalúrgicos do
ABC paulista, e empregados dos setores têxtil, químico e alimentício. O número de
filiados indiretos da CUT alcançava a cifra de 5.200.000 trabalhadores, cifra que se
manteve em ascensão desde então, sendo atualmente a quarta maior organização
sindical do mundo120.
Quanto ao envolvimento das centrais sindicais brasileiras no tema da
integração regional, nesta fase que se está analisando, cabe observar que assim
como o padrão registrado na Argentina, destacam-se o escasso interesse e a baixa
participação dos sindicatos, como padrão predominante. Antes de 1991, o tema da
integração era praticamente ausente da agenda política sindical brasileira. Após a
assinatura do Tratado de Assunção, em março daquele ano, esses sindicatos
reagiram tardiamente, apesar de serem todos filiados à CCSCS. Ressalte-se que,
assim como no país vizinho, a disponibilidade de informações consistentes era baixa
e, portanto, quase não havia debate sobre integração regional no interior das

______________________________________________
120
Conforme observa Klein, a ascensão do número de associados à CUT é explicada, em primeiro lugar, pela
migração de inúmeros sindicatos antes filiados à CGT, e, depois, pela associação de sindicatos antes
independentes ou então recém criados. O autor estima, com base em um conjunto de trabalhos e de
entrevistas, que a CUT representava então cerca de 60% dos trabalhadores sindicalizados no Brasil.
275

centrais sindicais. Por fim, também eram outros os temas de maior relevância para
as centrais sindicais naquele momento de conversão ao neoliberalismo, como as
privatizações, a reforma trabalhista, entre outros temas tradicionalmente
privilegiados pelas organizações de representação dos trabalhadores.
Dando sequência à discussão, cabe analisar o envolvimento das
organizações empresariais nas negociações do bloco, primeiro na Argentina, depois
no Brasil. Quanto às organizações argentinas, observa-se que elas tiveram um
padrão de comportamento político não muito diverso dos sindicatos, no que se refere
à integração: “pouquíssimos funcionários [dos sindicatos] mantiveram-se a par do
MERCOSUL e o fluxo interno de informações (para os associados) foi insignificante”
(Klein, 2000: 195), pelo menos até 1995, quando as instituições do bloco já estavam
em pleno funcionamento. Ressalte-se, ademais, que as organizações empresariais
argentinas caracterizam-se pela forte centralização das estruturas de decisão, pelo
escasso fluxo de informações e, finalmente, pela sua concentração regional, ou seja,
as suas atividades políticas raramente ultrapassam os limites de Buenos Aires. Em
termos de serviços aos associados, nem pensar na existência de qualquer tipo de
assessoria ou esforço de mobilização política dos empresários associados,
limitando-se as suas organizações a informar simplesmente sobre as tarifas vigentes
ou sobre trâmites aduaneiros.
Entre os empresários, a organização formal de maior peso político e
econômico é a Unión Industrial Argentina (UIA), existente desde o final do século
XIX e principal representante dos industriais. Apesar de ser bastante descentralizada
e de contar com numerosas Pequeñas y Medianas Empresas (cujo acrônimo
castelhano é PyMEs), na prática a UIA é dominada “por uma oligarquia de grandes
empresas que estão a cargo da maior parte do orçamento financeiro e que lideram
as correntes internas” (Klein, 2000: 79)121. Talvez por isso, a Argentina fosse o único
país do Cone Sul a possuir, no momento da integração regional, duas organizações
relativamente importantes de PyMEs, ambas criadas na primeira metade dos anos

______________________________________________
121
O autor identifica duas correntes internas principais: o Movimiento Industrial Argentino (MIA), tendência mais
liberal e dominante na estrutura da organização, e o Movimiento Industrial Nacional (MIN), este último mais
protecionista, sobretudo até o final dos anos 80.
276

80: o Consejo Argentino de la Industria (CAI), em geral associado a posições mais


liberais, e o Consejo General de la Industria (CGI), defensor de políticas industriais e
de proteção comercial mais ativas. Estas eram as principais organizações de
representação de interesses empresariais, do ponto de vista formal, as quais se
somavam à também tradicional Sociedad Rural Argentina.
Para além das organizações citadas e de outras de menor expressão política,
é preciso destacar o papel exercido pelos grandes conglomerados industriais e pelas
alianças ou “clubes de empresários”, cujo acesso direto às instâncias decisórias
tiveram bastante destaque no cenário político menemista. Ainda durante o governo
Alfonsín, havia esta modalidade de articulação entre as autoridades estatais e os
setores produtivos, em especial depois que a UIA e outras organizações
empresariais retiraram o apoio dado ao primeiro governo civil, em seus três
primeiros anos. O governo articulou-se a grupos menores e discricionariamente
selecionados. Depois, já no período Menem, a estratégia do governo foi esvaziar o
peso político da representação industrial, dando preferência às dinâmicas de acesso
informal às instâncias decisórias, ou quase-informal, como é o caso destes grupos
mencionados. Isto significava a persistência de padrões de articulação com o setor
empresarial com baixa transparência e exclusão discricionária, na medida em que os
benefícios estatais eram concedidos a um pequeno número de grupos econômicos,
de acordo com as escolhas da cúpula do governo122.
Entretanto, apesar do apoio dado ao governo Menem por uma parcela
significativa do establishment econômico, em especial a partir do Plano de
Convertibilidade e do avanço das privatizações, o tema da aproximação com o Brasil
tornou-se mais controverso, por um lado, pelas dificuldades associadas ao padrão
competitivo das empresas brasileiras diante da deteriorada situação do parque
industrial argentino, e por outro, pela instabilidade econômica brasileira que se
somava à percepção de empresários locais de que o Brasil preservara o seu projeto

______________________________________________
122
Cf., a este respeito, os trabalhos de Aníbal Viguera (1997) e de Carlos Acuña (1994), além da pesquisa já
citada de Hirst, Bezchinsky e Castellana (1994).
277

nacional de desenvolvimento industrial123. A politização do tema na Argentina era


amplificada pelas três adversidades apontadas por Hirst, Bezchinsky e Castellana
(1994: 13): “primeiro, as assimetrias de dimensão, condições e custos da produção
industrial (...); segundo, o estado recessivo da economia brasileira desde o início do
Programa de Liberação Comercial do ACE-14; e, por último, as distorções
cambiárias (...) produzidas pela sobrevalorização do peso argentino”. De acordo com
os autores, a escalada no processo de politização anti-MERCOSUL do
empresariado argentino ocorreu a partir da inversão do tradicional superávit
argentino no comércio bilateral, isto é, a partir do ano de 1992, quando a balança
passou a ser favorável ao lado brasileiro. Foram duas as reações do empresariado,
dadas os diferentes interesses, preferências e orientações políticas:

“Pode-se observar, então, a sobreposição de dois tipos de reações na Argentina.


Por um lado, reagiram os setores empresariais mais ameaçados, reivindicando
soluções que recuperassem a competitividade industrial do país e que significavam,
em última instância, a revisão das premissas do Plano de Convertibilidade em curso
desde 1991. Por outro, reagiram segmentos expressivos do establishment
econômico e político argentino não necessariamente comprometidos com a
produção industrial, mas diretamente interessados na manutenção do projeto
neoliberal em vigência.” (Ibid.)

No caso específico do MERCOSUL, então, o principal veículo organizacional


de expressão dos reclamos empresariais foi a tradicional UIA, a qual encontrava-se
dividida entre essas duas reações típicas, identificadas pela pesquisa citada como
“neoindustrialistas” e “neoliberais”124. O primeiro grupo concentrou seus interesses
em temáticas domésticas, demonstrando particular preocupação com a relação do
setor com o Estado e a superação da prolongada recessão. Esta primeira tendência

______________________________________________
123
Em nota anterior, foi dado destaque às médias de crescimento industrial favoráveis ao Brasil nos anos 70
(9,0% a.a. contra 1,6% da economia argentina) e menos desfavoráveis durante os primeiros cinco anos da
década seguinte (1980-1985): -0,6% a.a. para o Brasil, contra -3,2% da economia vizinha. A média da década
de 1980 foi de -0,2% a.a. contra -1,6% para a Argentina. Para ilustrar esta situação da estrutura produtiva
argentina, Hirst et alli. (1994: 7) observam que, “em meados dos anos 60, a Argentina produzia
aproximadamente 350 mil automóveis, 25 mil máquinas-ferramentas e 60 mil tratores. Em 1990, estes
números haviam se reduzido para 120 mil, 6 mil e 5 mil, respectivamente”.
124
Conforme observam os pesquisadores, a diferenciação analítica refere-se a dois universos de argumentação
e traduziam modelos econômicos alternativos, mas é, acima de tudo, uma distinção analítica, ou seja, que
“visa permitir melhor compreensão da realidade, mas que não corresponde necessariamente à sua fiel
representação” (1994: 13).
278

era representada pela maioria de dirigentes de pequenas e médias empresas e por


uma minoria de industriais vinculados a empresas de maior porte. O segundo grupo,
mais favorável ao modelo então vigente no país, demonstrou especial preocupação
com relação aos riscos de uma integração com o Brasil, um país que demonstrava
uma falta de sintonia com os demais programas de estabilização econômica, além
da instabilidade econômica brasileira que permaneceu até o Plano Real, em meados
de 1994: “seguindo esta lógica, associar-se a um Brasil que procura assegurar seu
projeto industrial à custa de uma economia desestabilizada representa uma carga a
mais para aqueles que desejam consolidar um modelo neoliberal na Argentina”
(Hirst, Bezchinsky e Castellana, 1994: 18).
No caso Brasil, observou-se uma combinação híbrida, entre organizações
empresariais anteriores e com padrões de comportamento similares aos do passado,
e novas organizações independentes das estruturas marcadamente hierárquicas
herdadas de épocas anteriores, sendo que algumas das organizações não-
corporativas já vinham surgindo gradualmente, desde os anos 70, levando à
existência de uma “estrutura dual”, conforme caracterizou Klein (2000): “a maioria
das empresas estava filiada tanto às organizações corporativistas como às
organizações independentes”, acrescentando que, mesmo assim, “em comparação
com os países vizinhos, as organizações empresariais estavam muito próximas ao
Estado” (Klein, 2000: 91). Especialmente na primeira fase de implementação das
políticas neoliberais de Menem e Collor, os empresários eram os sócios prediletos
desses governos liberais, assim como ocorrido em outros países da região, mesmo
que houvesse resignação e críticas por parte de certos setores empresariais
insatisfeitos com a abertura ou com o seu ritmo e exclusão decisória.
Outra característica peculiar é a força que possuem as principais federações
industriais de unidades da federação (FIESP, FIERGS, FIESC, FIE/PR, FIERJ e
FIE/MG, especialmente). Estas organizações, em particular a primeira, que
representa mais da metade do PIB brasileiro e que possui maior relevância política
do que a própria Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ademais, a literatura
consultada aponta para uma heterogeneidade interna à CNI, que mesclava setores
mais e menos competitivos, mais ou menos liberais, grandes grupos empresariais e
empresas de menor porte, o que dificultava tanto a construção de preferências
comuns como o seu envolvimento no processo de tomada de decisões
279

governamentais, via inclusão institucional ou via reivindicações e críticas à


oficialidade.
Um terceiro fenômeno que denota o grau de desenvolvimento das
organizações empresariais no Brasil, quando comparadas às dos países vizinhos, foi
a criação, a partir dos anos 1980, de organizações empresariais de caráter mais
ideológico, isto é, voltadas para a produção/difusão de conhecimento – cite-se, por
exemplo, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), fundado
em 89, os Institutos Liberais, fundados a partir de 1983, e o Pensamento Nacional
das Bases Empresariais (PNBE, desde 1987).
De volta ao caso argentino, pode-se dizer que os empresários e sindicatos
tomaram o MERCOSUL como um dado inescapável da realidade. Não havia sentido
em despender esforços que fossem voltados a uma reversão da trajetória de
integração com o Brasil, Uruguai e Paraguai. A profundidade dos vínculos
estabelecidos e a determinação do governo Menem de aprofundar a abertura
comercial eram os principais fatores externos a desincentivá-los de qualquer
tentativa nesse sentido. Do ponto de vista interno, demonstrou-se que havia
inúmeras limitações à atuação política dessas organizações, como o desinteresse e
a baixa circulação de informações aos associados. Entre as poucas exceções, cabe
mencionar que, em 1993, o setor privado, sobretudo as organizações empresariais,
convenceu o governo argentino de que era necessário postergar uma série de
prazos estabelecidos pelo Protocolo de Las Leñas (1992), convicção que
desembocou nas negociações dos acordos de Buenos Aires e Ouro Preto, ambos
firmados no ano seguinte.
No âmbito das instituições estabelecidas pelo processo de negociação, a
despeito da inclusão na estrutura do processo de negociação, “a participação das
organizações no plano do MERCOSUL não teve grande impacto nas políticas de
integração, nem nos objetivos de longo prazo”, como analisou o detalhado estudo de
Klein (2000: 189). Em sua opinião, elas fracassaram, pelo menos parcialmente, tanto
do ponto de vista dos sindicatos como dos empresários. Os primeiros não lograram
desenvolver um “MERCOSUL social”, apesar de sua estratégia de participação
politizada, com ações dirigidas ao público via meios de comunicação ou
manifestações e protestos, enquanto os empresários fracassaram nas inúmeras
tentativas de retardar a abertura comercial e de introduzir a discussão sobre os
fatores determinantes da competitividade internacional. No entanto, esses atores
280

privados alcançaram alguns êxitos de menor alcance, como a introdução de outros


temas no debate e a melhoria do grau de conhecimento sobre as realidades
econômicas e comerciais dos diversos setores econômicos.
Tanto as organizações empresariais como as sindicais atuaram junto às
instituições do bloco, nos Subgrupos de Trabalho (SGTs) e nos Acordos Setoriais, e
também puseram alguma ênfase na cooperação transnacional, através do Conselho
Industrial do MERCOSUL e da Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul125,
respectivamente. No âmbito dos SGTs, no entanto, as organizações empresariais e
sindicais tinham acesso apenas aos órgãos de trabalhos técnicos que se reuniam a
cada três meses, de forma itinerante. O Tratado de Assunção previa dez SGTs, mas,
em 1992, após insistentes reivindicações das centrais sindicais brasileiras, foi criado
o SGT-11, sobre “Relações trabalhistas, emprego e seguridade social”. A ênfase
comercial da fase de transição do bloco, no entanto, reduzia a relevância das
discussões realizadas neste último SGT. Na prática, a trajetória do bloco e o formato
das instituições estabelecidas em 1994 derivaram dos entendimentos políticos
intergovernamentais, concentrados nos poderes executivos nacionais, entre
presidências e burocracias. Quanto aos Acordos Setoriais, desde a Ata de Buenos
Aires (1990), portanto ainda na fase de estruturação bilateral do processo de
integração, estava prevista a possibilidade de Acordos Setoriais entre as
organizações empresariais. A ideia era que os Acordos acelerassem o processo,
criando vínculos e estipulando prazos para a suspensão das barreiras e a
eliminação das listas de exceção. A partir da fase propriamente multilateral do
MERCOSUL, esses entendimentos setoriais deveriam ser encaminhados a um SGT
específico (SGT-7, Indústria), que os examinava e encaminhava ao GMC e ao CMC.
Porém, as suas recomendações não eram obrigatórias, o que desestimulava o
envolvimento dos setores produtivos nos trabalhos. De forma semelhante acontecia
com a Comissão Parlamentar Conjunta: como as suas recomendações não eram

______________________________________________
125
A Coordenadora foi criada em 1986, por meio do apoio da Organização Interamericana de Trabalhadores
(ORIT), uma organização transnacional que reunia oito centrais sindicais representativas dos países do Cone
Sul - Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Após o surgimento do MERCOSUL, a Coordenadora
passou a priorizar o tema da integração, ainda que os governos tenham mantido os trabalhadores afastados
das principais instituições e decisões que impulsionaram a construção e consolidação do bloco.
281

obrigatórias, nem os partidos e parlamentos, nem os empresários e sindicatos


destinaram esforços a influenciar o processo de integração através dela, ou seja, a
Comissão não tinha relevância política durante o processo negociador.
A novidade institucional introduzida pelo Foro Consultivo Econômico e Social
(FCES), órgão de representação dos setores econômicos e sociais integrado por
nove representantes de cada Estado, previsto no Protocolo de Ouro Preto (1994) e
funcionando desde 1996, pode ser visto como um resultado concreto obtido pelas
organizações empresariais e sindicais. As principais atribuições do Foro eram, por
um lado, “acompanhar, analisar e avaliar o impacto econômico e social” das políticas
de integração e as suas fases de implementação, fosse a nível setorial, nacional ou
regional, e, por outro, “propor normas e políticas econômicas e sociais em matéria
de integração”, buscando ainda contribuir para uma maior participação dos atores
não-estatais no processo e promover a dimensão econômica e social do bloco.
Porém, mesmo o FCES era uma vitória parcial, pois se tratava de mais um órgão
com função consultiva, sendo as suas Recomendações ao GMC, órgão executivo do
bloco e controlado pelas respectivas burocracias, adotadas apenas quando
houvesse o consenso dos representantes governamentais dos quatro países.
W. Klein (2000) aponta algumas razões para a escassa influência do setor
privado na dinâmica da integração no MERCOSUL. Em primeiro lugar, talvez o fator
mais importante, os empresários e trabalhadores, para não mencionar o restante da
sociedade, estavam excluídos dos principais órgãos técnicos (SGT-1 e SGT-2), que
na prática aderiram aos objetivos políticos firmados pelos governos, e do CMC,
conduzido pelas autoridades diplomáticas e econômicas. Em segundo lugar, entre
as razões internas aos próprios setores econômicos figuram a frequência com que
as oposições entre empresários e trabalhadores geraram impasses e a escassa
viabilidade das propostas apresentadas aos governos, quando não padeciam de
excessiva generalidade como para servir à discussão das políticas regionais,
nacionais ou setoriais. Por último, o investigador conclui que as organizações
empresariais ou sindicais muitas vezes simplesmente elidiram da discussão os
temas excessivamente conflituosos, como a discussão das incontáveis barreiras
não-tarifárias ou a migração de trabalhadores entre os países.
Cabe acrescentar que o tema da integração regional não era, pelo menos na
fase inicial de conformação do bloco, um assunto prioritário para as principais
organizações de representação empresarial e as principais centrais sindicais, as
282

quais, tanto na Argentina como no Brasil, exibiam pouco interesse pelas


negociações, até mesmo pela percepção de que se tratava de um processo
intergovernamental ou interburocrático. O envolvimento dessas organizações
dependeu de variáveis como o tamanho e representatividade econômica das
organizações, da sua capacidade administrativa e financeira, da propensão a
participar de discussões voltadas à mudança da realidade econômica regional e
local e da habilidade social de construir alianças e entendimentos com outros atores
do setor privado. Por isso, entre as organizações que chegaram a envolver-se no
processo de negociação, o destaque foi de algumas organizações empresariais
brasileiras, em especial das regiões Sul e Sudeste, e da principal representante do
novo sindicalismo brasileiro, a CUT.
Apesar do relativo desinteresse e da baixa capacidade revelada pela maioria
dos setores atingidos pelas políticas regionais, maioria simplesmente excluída do
processo negociador, deve-se reconhecer que houve também um aprendizado
político por parte desses atores não-estatais. Por um lado, tratou-se do primeiro
momento em que os atores analisados passaram a se preocupar com o tema da
política externa e a buscar contatos internacionais. Por outro, o aprendizado também
resultou da necessidade de desenvolver relações mais estreitas e,
preferencialmente, de cooperação, com os respectivos governos nacionais –
novamente, a exceção brasileira deve ser ressaltada, uma vez que o padrão
histórico precedente já apontava para níveis mais altos de proximidade entre as
esferas empresariais e as políticas e burocráticas. Em todo caso, os setores
privados, sobretudo os empresários, e os setores públicos acentuaram o fluxo de
informações e de conhecimento mútuo, não apenas na Argentina e no Brasil, mas
também no Paraguai e no Uruguai. O aumento da exposição econômica e a
complexidade da agenda de negociação foram fatores que levaram à
internacionalização das atividades políticas e sociais das organizações. Como o
processo negociador era dominado pelos agentes estatais, esse incremento das
relações internacionais de agentes não-estatais era uma face adicional à maior
interação entre agentes públicos e privados, apesar dos baixos níveis de
transparência e de responsividade social que caracterizam o processo de integração
como um todo.
As análises empreendidas até aqui sugerem uma conclusão prévia, que
talvez pudesse sintetizar o que se afirmou nesta seção, acerca do impacto das
283

instituições sobre a capacidade de influência sobre as políticas externas de


integração no âmbito do MERCOSUL. Apoiando-se na literatura e informações
discutidas, pode-se afirmar, primeiramente, que o processo decisório foi
caracterizado, nos dois países, pela concentração nas mãos das elites
governamentais e de suas respectivas burocracias, as quais se articularam de modo
predominantemente informal e discricionário aos empresários. Os parlamentos
estiveram ausentes, na prática, de todo o processo de negociação, o que explica a
debilidade e as limitações decorrentes da instituição interparlamentar, a Comissão
Parlamentar Conjunta. Os movimentos sindicais, salvo a insistência parcialmente
eficiente para a criação do Fórum Econômico e Social, reivindicação insistida,
sobretudo, pelas centrais sindicais brasileiras e pela central sindical do Cone Sul,
tinham pouco interesse e acesso quase nulo ao processo negociador. As
debilidades e limitações da instituição criada para incluir os setores produtivos
podem ser consideradas semelhantes às da comissão de legisladores escolhidos
indiretamente. O acesso do restante da sociedade civil às negociações ou às
instituições criadas é inexistente, o que reforça o caráter interestatal das políticas de
integração. O único setor da sociedade com acesso às decisões que redirecionaram
as relações regionais foi o empresarial, portanto, mas esta articulação ficou sujeita a
critérios políticos, pouco transparentes e sem responsividade diante da cidadania
organizada ou não.
Se o processo de integração nos dois países esteve nas mãos das
respectivas burocracias e dos governos, não há como discordar das conclusões
apresentadas pela literatura e pelo foco de análise escolhido. Por mais que se
pretenda adicionar outras visões de democracia ao debate e por mais que se
busque analisar as preferências, atitudes ou comportamentos dos setores não-
estatais, as explicações das dinâmicas e dos resultados obtidos ao final do processo
negociador restringem-se às explicações dos entendimentos construídos pelos
governos e pelas burocracias. De acordo com a análise de Vaz, o que se produziu
ao final da fase de transição resultou das interações internas e internacionais dos
Executivos nacionais, isto é, presidências e burocracias diplomáticas e econômicas:

“Em relação às perspectivas burocráticas, observa-se ter havido maior convergência


entre as preferências das chancelarias no sentido de que outorgavam ao
MERCOSUL um papel indutor de mudanças e de alavancagem internacional que
transcendia o âmbito comercial no qual o bloco se consubstanciava. As burocracias
da área econômica, por sua vez, compartilhavam preferências sobre o sentido
284

liberalizante a ser impresso ao MERCOSUL e sobre a metodologia e estratégia para


promover a abertura, mas diferiam quanto à profundidade a ser alcançada na fase
de transição e quanto à forma de tratar as questões decorrentes das assimetrias
econômicas e do desenvolvimento industrial, com o Brasil defendendo uma postura
mais liberal e a Argentina (...) procurando anteparos ao livre comércio com seu sócio
maior.” (A. Vaz, 2002: 271)

As conclusões do autor, quando confrontadas às perspectivas teóricas


discutidas nesta tese, permitem inferir que a politização gerada pelas negociações
do MERCOSUL não se converteu na institucionalização de canais democráticos. Ele
explica que entre os principais fatores para a centralidade dos governos estiveram a
“hipertrofia dos Executivos” e a “consequente debilidade das instâncias
parlamentares e dos partidos políticos”, além da natureza e dos temas do processo
negociador. Sendo assim,“(...) os interesses dos setores privados foram canalizados
não pelos meios institucionais, formalmente concebidos para fazê-lo no contexto da
integração no MERCOSUL”, mas “por entidades de representação setorial que
atuaram junto às burocracias governamentais das áreas econômicas envolvidas com
os temas em negociação” (Vaz, 2002: 283). Se, por um lado, “isso tornava o
processo de definição de posições mais expedito e restrito e menos suscetível a
injunções domésticas de ordem política”, por outro lado o tornava também “mais
permeável a injunções provindas do campo econômico, o que explica, parcialmente,
a crescente ascendência das autoridades econômicas nas negociações” (Ibid.). De
qualquer modo, permanecia todo o processo concentrado nas mãos dos tomadores
de decisão governamentais, sem qualquer sinal de ampliação ou melhoria dos
canais existentes para a representação, a participação social ou a deliberação
democrática.

4.2 A nova fase das políticas de integração: entre as negociações para a


criação da ALCA (1995-2005) e o desafio de aprofundamento
institucional do MERCOSUL

A partir de 1995, os dois países enfrentariam uma nova etapa em suas


políticas de integração regional e o propósito desta seção é justamente prosseguir
na análise da politização e dos padrões decisórios dessas políticas. O foco principal
recai sobre a proposta e as negociações da ALCA, lançadas na Cúpula de Miami,
285

em dezembro de 1994. O processo negociador enfrentou pelo menos três fases até
o impasse que, em dezembro de 2005, adiou a adoção do acordo hemisférico que
criaria uma área de livre comércio entre 34 países americanos, projeto
integracionista que ainda não recobrou força, até os dias atuais. Nesse sentido, é
construída uma periodização daqueles cerca de dez anos, para a melhor
organização e análise dos processos enfatizados aqui: (i) entre 1994 e 1998, logo
após o lançamento da proposta, a primeira fase serviu para definir as regras e a
estrutura do próprio processo negociador; (ii) em 1998, foram lançadas oficialmente
as negociações para a constituição do bloco, sendo que o ano de 2001 introduziu
uma série de alterações de rumo e, quando terminou o ano de 2002, o que se tinha
definido era a implantação de uma ALCA “limitada”, decisão conjunta que derivava
das dificuldades de conciliar as posições negociadoras; (iii) finalmente, a última fase
analisada, de 2003 até o final de 2005, corresponde ao desfecho final do processo,
quando ficou explícito que seria muito difícil conciliar os dois projetos principais, um
dos EUA e outro dos países do MERCOSUL, claramente liderados pela posição do
Brasil, o que levou à suspensão das negociações, em virtude do seu esgotamento.
Paralelamente, o texto não deixa de analisar algumas dinâmicas do próprio
MERCOSUL, na medida em que elas também tiveram influência sobre as
negociações da ALCA. Desde 1995, o bloco caracterizou-se pelo funcionamento
efetivo das instituições criadas pelo Protocolo de Ouro Preto e pelo crescimento
significativo do comércio intrarregional, o que foi estimulado pela estabilidade
econômica obtida pelo Brasil após o Plano Real. Por outro lado, também surgiriam
grandes dificuldades políticas no MERCOSUL, com destaque para os desafios de
construir uma posição comum nas negociações da ALCA (e em outras frentes de
negociação comercial) e de aprofundar o arcabouço institucional do bloco. Por um
conjunto de fatores, como as diferenças nas políticas macroeconômicas e as
dificuldades decorrentes das crises financeiras internacionais que atingiram os
países em desenvolvimento, os primeiros quatro anos após o início da vigência das
instituições do bloco caracterizaram-se pela estagnação do processo institucional.
Esses desafios acentuaram-se a partir da crise da moeda brasileira de janeiro de
1999 e da profunda crise argentina de 2001-2002, que juntas puseram em crise o
próprio processo de integração. Naquele período, o bloco esteve sob risco de
fragmentação, percepção corroborada pelas diferenças diante da temática da
integração interamericana, foco principal desta seção.
286

Ao longo dos mais de dez anos de negociações para a criação da ALCA,


modificaram-se os governos eleitos na Argentina e no Brasil, além dos norte-
americanos: na Argentina, o tema manteve-se durante os dois governos Menem e os
governos De la Rúa, Duhalde e Kirchner; no Brasil, durante os dois mandatos do
presidente Cardoso e no primeiro governo Lula; e nos EUA, estendeu-se durante os
dois mandatos Clinton e todo o primeiro governo Bush, sendo suspensas no início
do segundo governo deste último. As dimensões do poder norte-americano e as
expectativas em torno da criação da ALCA geraram as mais diversas reações nos
governos e nas sociedades desses países. Se tivesse sido efetivamente
estabelecido, calcula-se que o bloco seria a maior área de livre-comércio do mundo,
tendo na passagem do século XX para o atual um PIB de cerca de US$ 8 trilhões e
uma população de cerca de 850 milhões de pessoas. Além dessas dimensões,
destaca-se a profunda assimetria existente entre os países envolvidos no projeto.
Considera-se que, nos casos de Argentina e Brasil, também tiveram peso sobre as
respectivas posições negociadoras os modelos de política externa em relação aos
EUA.
Em análise recente sobre as políticas externas de países latinoamericanos
vis-à-vis os EUA, R. Russell e J. Tokatlian (2009) constroem uma interessante
tipologia das orientações adotadas nos diferentes lugares após o final da Guerra
Fria. São espécies de tipos ideais, no sentido weberiano do termo, sendo que alguns
governos (suas políticas externas) são casos emblemáticos enquanto outros são
casos aproximados. Estes conceitos são expostos aqui como ferramentas para
iluminar as trajetórias recentes dos governos de Argentina e Brasil e, quiçá, para
provocar algum tipo de reflexão e análise sobre outros momentos ou países. É claro
que, apesar da excelência dos autores e do trabalho mencionado, nunca é demais
reconhecer que há limitações implícitas em qualquer exercício deste tipo. Os cinco
modelos de política externa, categorizados e descritos por eles, são acoplamento,
acomodação, oposição limitada, desafio e isolamento.
Nos casos de acoplamento, o país orienta-se de acordo com os interesses
estratégicos considerados vitais pelos EUA, tanto em termos globais como regionais,
o que significa na prática: aderir aos regimes internacionais, especialmente nos
temas mais sensíveis ligados à segurança global; apoiar com distância as iniciativas
de integração regional, desde que não ameaçassem a construção de uma área de
livre comércio hemisférica; apesar das boas relações políticas e culturais com os
287

países vizinhos, “o norte da política externa é Washington”. No campo econômico,


são países que se orientam pela ortodoxia neoliberal, aproximando-se das
prescrições do Consenso de Washington. A ideia de que são as forças econômicas
do mercado, mais do que a intervenção política do Estado, que levam a uma
inserção internacional mais dinâmica e frutífera está subjacente ao modelo de
acoplamento da política externa aos EUA, e, sendo assim, estes países aceitam as
regras da ordem econômica e financeira mundial. Finalmente, trata-se de um modelo
onde se defende o status quo, sem importantes reivindicações de mudanças no
sistema, e concebem os EUA como “aliado”.
A política externa de acomodação é caracterizada por um acompanhamento
seletivo e pontual aos EUA. Na prática, isto significa a busca de equilíbrio entre um
papel ativo nos regimes internacionais, preferencialmente em harmonia com
Washington, e um envolvimento no âmbito da integração orientado mais pelas
percepções sobre os próprios interesses, sem compromisso firme em favor de
mecanismos coletivos. Neste modelo, há um esforço por construir coalizões com os
vizinhos, cujo objetivo principal é melhorar as condições negociadoras diante da
assimetria dos EUA. Estes países tentam conciliar o modelo econômico vigente em
quase todos os países da região com políticas sociais compensatórias, ou seja,
procuram equilibrar as intervenções estatais seletivas às dinâmicas de mercado. Por
fim, a política de acomodação não evita algumas diferenças diante das orientações
norte-americanas, na medida em que ela eventualmente se apega à defesa de uma
série de princípios básicos aplicáveis às relações internacionais (ou especificamente
interamericanas), nem sempre seguidos pela política externa dos EUA.
Nos casos referidos ao conceito de oposição limitada, propugna-se uma
“política mista” diante dos EUA, combinando “desacordo e colaboração, concertação
e obstrução, deferência e resistência” (Russell e Tokatlian, 2009: 231). A integração
regional é percebida como essencial para incrementar o poder negociador do
conjunto de países da região frente à assimetria dos EUA e os vínculos políticos com
os demais países são considerados importantes para fortalecer o diálogo diplomático
com Washington. Assim, os vínculos com outros países da região são de grande
importância estratégica e os EUA são percebidos como uma combinação de ameaça
e oportunidade, o que eles chamam de “poder dual”. Ao Estado é atribuído um papel
chave no campo econômico, onde predominam políticas de corte heterodoxo,
neodesenvolvimentistas e mais sensíveis à questão social; e também no campo
288

político, por sua importância para o estabelecimento de compromissos capazes de


promover mudanças nas regras internacionais. Estes países assumem posições
críticas à ordem internacional vigente, buscando apoiar mudanças na estrutura
financeira e econômica internacional.
Uma política externa de desafio é caracterizada, em primeiro lugar, por
“políticas de distanciamento e rechaço aos EUA para contrabalançar seu poder,
tanto no terreno mundial como no campo regional” (2009: 232). A potência norte-
americana é percebida como um inimigo, como uma ameaça à própria segurança
nacional dos países que se posicionam como desafiantes (os casos emblemáticos
apontados são a Venezuela de Hugo Chávez, desde 2002, e Cuba, sobretudo
durante a Guerra Fria). Eles fundamentam-se na ideia de que a própria
sobrevivência no sistema internacional está em jogo, sendo o principal interesse
nacional dos países que adotam este modelo ideal-típico. Em termos de integração
regional, os países desafiantes defendem uma integração regional mais profunda e
abrangente, que abarque as dimensões econômicas, políticas, diplomáticas,
culturais e militares, evidentemente como alternativa à proposta norte-americana da
ALCA. No campo econômico, pretende-se alcançar, no médio prazo, um modelo
alternativo de desenvolvimento, enquanto, no curto prazo, são adotadas decisões
que fortalecem o papel intervencionista e a ampla regulação estatal. Outros dois
elementos fundamentais são a influência dos desafiantes na região, por meio da
propagação do seu projeto revolucionário (via recursos materiais ou simbólicos), e a
formação de alianças extrarregionais com atores que rivalizem com os EUA. Tudo
isto com o objetivo explícito de promover uma transformação na ordem internacional
ou regional, visto que são países que questionam os próprios fundamentos da
ordem política e econômica internacional.
Finalmente, a categoria isolamento aplica-se aos casos em que os governos
optam por escamotear a tendência predominante de secundar os EUA, isto é,
seguem a potência do norte, “mas com o suficiente sigilo para não chamar a
atenção”, interna e externamente. Estes países não pretendem promover quaisquer
transformações na ordem e, no âmbito da integração regional, definem-se em
termos oportunistas, isto é, “não pretendem alterar as regras do jogo hemisférico,
senão obter de Washington aquelas concessões que permitam preservar o status
quo interno” (2009: 233). Os países encaixados neste último modelo adotam um
baixo perfil político e visam a alcançar metas limitadas, tanto no sistema
289

internacional como no interamericano, vinculando-se aos EUA na condição de


cliente e atribuindo aos demais países da região uma importância marginal, quando
muito.
Antes de retornar às trajetórias e modelos particulares dos dois países
investigados, cabe concluir esta exposição dos modelos de política externa dos
países latinoamericanos com a observação seguinte. Ela leva em conta o fato de
que a assimetria diante dos EUA é um dado para todos os países da região, sendo
esses modelos diferentes formas de lidar com a dependência vivenciada por todos
eles:

“Estes cinco modelos estão atravessados por igual pela lógica da assimetria: todos
os países da região, individual e coletivamente, encontram-se condicionados pelo
predomínio do poder dos EUA. Se concebermos estes modelos a partir da situação
de dependência que caracteriza a América Latina, o primeiro modelo reconhece a
dependência, o segundo procura negociar a dependência, o terceiro aspira a reduzir
a dependência, o quarto tenta combater a dependência e o quinto deseja usufruir a
126
dependência.” (Russell e Tokatlian, 2009: 233)

De volta aos casos, pode-se iniciar dizendo que os dez anos de governo
Menem, iniciados em julho de 1989, significaram uma inflexão inédita na política
externa argentina, no sentido de um acoplamento (ou alinhamento) aos EUA. O
modelo adotado buscava construir uma “aliança especial” entre os dois países. A
nova orientação tomou como modelo ideal a aliança mantida no passado com a Grã-
Bretanha, que desde o final do século XIX até a década de 1930 ocupara o lugar de

______________________________________________
126
A seguir são transcritos os casos encaixados pelos autores na tipologia que constroem, sempre
mencionando “casos emblemáticos” e “casos aproximados”: 1) acoplamento: “os casos emblemáticos de
acoplamento são os do México (durante o governo de Salinas), Argentina (durante o governo de Menem) e
Colômbia (durante o governo de Uribe). Os casos aproximados a este modelo são os do Peru (tanto durante
os governos de Fujimori como de Toledo), Bolívia (durante o primeiro governo concluído e o segundo
inconcluso de Sánchez de Losada) e os países da América Central (salvo Belice, Costa Rica e Panamá) e a
República Dominicana”; 2) acomodação: “os casos emblemáticos são os de Chile e Costa Rica. Os casos mais
aproximados ao modelo são os de México (durante os governos de Zedillo e Fox), Peru (durante o segundo
governo de Alan García), Uruguai, Panamá e, episodicamente, Equador”; 3) oposição limitada: além do caso
emblemático do Brasil, de acordo com os autores “os casos mais aproximados são Argentina (governos de
Néstor Kirchner e Cristina Kirchner), Venezuela (durante a primeira parte da administração Chávez, entre 1998
e 2002), Bolívia (governo Morales) e Equador (governo Correa)”; 4) desafio: ”os casos emblemáticos são os de
Cuba e Venezuela (o governo de Chávez, depois de 2002); 5) isolamento: “o caso emblemático é o Paraguai,
sob os sucessivos governos do Partido Colorado. “Este modelo poderia ser estendido a outros casos na
região, em especial ao Caribe insular cada vez mais dependente dos Estados Unidos em uma ampla gama de
assuntos políticos, econômicos, sociais, militares e culturais” (Russell e Tokatlian, 2009).
290

“aliado especial” da Argentina. O alinhamento era caracterizado como “relações


carnais” pelo chanceler Guido Di Tella, que ocupou o cargo de janeiro de 1991 a
dezembro de 1999 e substituiu o primeiro chanceler de Menem, Domingo Cavallo,
também conhecido por sua proximidade com os EUA. A novidade sujeitava as
opções políticas argentinas às premissas orientadoras da ação internacional norte-
americana. O objetivo final da política externa, naqueles dez anos, era aproximar o
país das economias mais desenvolvidas e promover uma suposta reincorporación al
primer mundo127.
Uma série de iniciativas marcou o período de acoplamento argentino aos
interesses estratégicos dos EUA, como o envio de tropas ao Golfo Pérsico, para a
guerra contra o Iraque, e aos Bálcãs, durante a intervenção conduzida pela OTAN; o
apoio à intervenção dos Estados Unidos no Haiti; a modificação da posição a
respeito de Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU, para ajustar-se à
posição norte-americana. No âmbito das regras econômicas e financeiras, a
aceitação das condições impostas pelos Estados Unidos para a renegociação e
reestruturação da dívida externa. A compatibilização da política externa argentina
aos regimes impulsionados pelos EUA incluiu, entre outras medidas, o abandono do
projeto de produção do míssil balístico Condor II, devido à sua contrariedade ao
Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), criado em 1987, e a
ratificação do Tratado de Tlatelolco, que proscrevia a posse de armas nucleares na
América Latina. No plano da segurança regional, foi emblemático o apoio das
autoridades do governo Menem ao Plano Colômbia. Por fim, outro movimento
significativo que marcou a nova política externa de alinhamento político-estratégico
aos EUA foi a insistência do presidente no sentido de incluir a Argentina como
membro da OTAN, pedido que não foi aceito pela Organização. Desde 1992, o
presidente argentino manifestava-se neste sentido, tendo apresentado pedido em
1996 – quando os EUA reconheceram a condição de aliado extra-OTAN (major non-

______________________________________________
127
Conforme o pronunciamento do então chanceler Di Tella: “Nós queremos pertencer ao Clube do Ocidente.
Eu não quero ter uma relação cordial com os Estados Unidos e não queremos um amor platônico. Nós
queremos um amor carnal com os Estados Unidos. Interessa-nos, porque podemos tirar um benefício” (apud L.
Bandeira, 2003: 482).
291

NATO ally) – e voltado a solicitar ao presidente Clinton em meados de 1999, já


próximo ao fim do segundo mandato de Menem.
No governo do presidente Fernando De la Rúa (1999-2001), a orientação
estratégica de acoplamento aos Estados Unidos foi mantida, ainda que o novo
mandatário, eleito pela União Cívica Radical (UCR), oposição ao PJ de Menem, haja
se esforçado em diferenciar-se do antecessor128. Nesse sentido, a política externa
do curto governo radical buscou manter o padrão de compatibilização com os EUA,
ainda que haja se esforçado para reduzir a exposição do governo diante da
sociedade, evitando propalar ao público a continuação do alinhamento aos norte-
americanos129. Este padrão permaneceu até a renúncia presidencial em dezembro
de 2001, em meio à mais profunda crise econômica, social e política da história
argentina. Parte da explicação reside no fato de que a política externa desse
governo foi pautada, em larga medida, pela política econômica então vigente. Essa
política, por sua vez, era apoiada explicitamente pelos EUA, o que era conveniente
para o governo argentino, pois necessitava do apoio norte-americano para a
operação de “blindagem” de sua economia, por meio de empréstimos próximos a 40
bilhões de dólares, usados para respeitar os acordos com o FMI e para renegociar
as dívidas externas de curto prazo. A política externa argentina de alinhamento aos
EUA contrastava com o caso das relações Brasil-EUA durante os anos 90.
No caso do Brasil, desde a Segunda Guerra Mundial a política externa
oscilara entre dois modelos: de um lado, o modelo de “aliado especial” dos Estados
Unidos, que buscava retirar do alinhamento político com a superpotência ocidental
os maiores ganhos possíveis para o desenvolvimento nacional; de outro, o modelo

______________________________________________
128
A respeito especificamente do campo da política externa, De la Rúa não havia prometido nenhuma mudança
radical de orientação, mas, como observam R. Bernal-Meza e S. Quintanar (2001: 154), “ainda que durante a
campanha eleitoral não houvesse abertas ou manifestas declarações que fizessem presumir mudanças
drásticas na política exterior, em relação àquela seguida por Menem, a cidadania votou de forma majoritária,
evidentemente, por ‘mudanças em geral’”.
129
Algumas dessas ideias foram trabalhadas por mim e meu colega Juan Claudio Epsteyn em texto anterior (J.
Epsteyn e D. Jatobá, 2007), assim como outras ideias a seguir, que também foram extraídas do trabalho
dedicado a analisar a trajetória política da Argentina entre os anos de 2000 e 2005, mesmo período dos
demais capítulos da coletânea organizada por M. Lima e M. Coutinho (2007), sobre dez países sulamericanos.
Entre eles, vale citar também o artigo de Bruno Magalhães e Juliana Erthal (2007), sobre a trajetória
doméstica, regional e internacional do Brasil.
292

“autonomista” e a diversificação das suas relações externas, que aspirava a


manutenção de relativa neutralidade diante do conflito característico da Guerra Fria
(M. Lima, 1994; A. Cervo, 2001; A. Cervo e C. Bueno, 2002). Já nos anos 90,
embora o governo Collor (1990-1992) tenha realizado mudanças significativas em
diversos aspectos da política externa, o país manteve uma postura provavelmente
mais próxima de uma acomodação, neste primeiro momento, recusando-se a aderir
às preferências e interesses vitais dos EUA. Apesar das profundas mudanças na
ordem internacional, a diplomacia brasileira optou por uma política externa apegada
às retóricas de autonomia e de interesse nacional próprio, não sujeito aos
condicionantes estratégicos dos EUA. O contraste com a política argentina chegou a
ocasionar uma série de desentendimentos bilaterais, revelados especialmente no
caso das respectivas orientações em relação à ALCA e no da conexão argentina aos
interesses estratégicos e ações militares dos EUA.
A defesa da autonomia na política externa não significou, no entanto, uma
política de enfrentamento ou desafio. Os EUA permaneceram importantes no
contexto das relações externas do Brasil, sendo a construção de uma “agenda
positiva” com a potência uma das características de maior relevo na “nova” política
externa brasileira, que vinha de uma década marcada pelo acúmulo de contenciosos
com a potência norte-americana, sobretudo nas delicadas questões econômicas da
lei de informática, direitos de propriedade e dívida externa. A reorientação consistia
na busca do governo Collor de estabelecer uma agenda “prioritária e não conflitante
com os Estados Unidos” (M. Hirst e L. Pinheiro, 1995). Portanto, embora a defesa da
autonomia nacional não fosse um fenômeno inédito na política externa brasileira,
isso não significa que não houvesse novidades na nova política autonomista
praticada pelo Estado brasileiro.
Foram muitas as iniciativas que marcaram o empenho do governo brasileiro
em aliviar os contenciosos com os EUA, podendo-se considerar as seguintes como
as mais importantes: a pressão do Executivo sobre o Congresso para a aprovação
de uma lei de patentes que garantisse os direitos de propriedade; a assinatura do
Acordo Quadripartite com a Argentina, a Agência Brasileiro-Argentina de Controle e
Contabilidade de Materiais Nucleares (ABACC) e com a Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA); e a adesão ao Tratado de Tlatelolco, mediante a suspensão
das ressalvas opostas pelo Estado brasileiro acerca das explosões atômicas para
fins pacíficos. Com estas posturas inovadoras, o Brasil adotava medidas de alto
293

impacto político e simbólico, as quais sinalizavam claramente a vontade do governo


de reduzir os possíveis focos de tensão com os EUA, e que, ao mesmo tempo, não
geravam grandes resistências internas. Com relação a estes pontos, as posições do
estado brasileiro não foram diferentes da Argentina naquele período, pois o governo
Menem adotou medidas idênticas.
No entanto, o Brasil não apoiou as principais ações estratégicas da política
externa norte-americana, como o envio de tropas para o Golfo Pérsico ou a Lei
Torricelli, pela qual os Estados Unidos proibiam as suas empresas de realizar
negócios com o governo do ditador cubano Fidel Castro. Apesar da intenção de
reduzir o contencioso em outras áreas, além das questões nucleares e de
propriedade intelectual, como a ambiental e de informática, e da conversão ao
paradigma neoliberal, o Brasil não chegou a adotar a postura de alinhamento
automático de outros momentos históricos, como nos governos dos generais Dutra
(1946-1950) e Castelo Branco (1964-1967), nem algo parecido com a política de
alinhamento do governo Menem130.
No Brasil, após a crise política que levou à abertura de processo de
impedimento constitucional (impeachment) e à renúncia do presidente Collor, em
1992, o então vice-presidente Itamar Franco, do PMDB, assumiu a Presidência para
conduzir o país até as eleições de outubro de 1994. No plano das relações com os
Estados Unidos, como na maioria dos demais aspectos da política externa, seu
governo manteve o padrão do anterior, com a busca de autonomia diante da
potência hegemônica, ao mesmo tempo em que também se buscava desdramatizar
as relações bilaterais, de acordo com o discurso oficial. Assim, as posições do
governo brasileiro durante a crise no Haiti, quando o Brasil apoiou o embargo
econômico e político, mas se opôs à intervenção militar norte-americana, e com
relação a Cuba, sobre a qual “o governo brasileiro passou a defender abertamente a
reintegração do país ao sistema interamericano e particularmente à OEA” (Hirst e
Pinheiro, 1995), são alguns exemplos da manutenção de uma política externa

______________________________________________
130
Cf., a este respeito, o capítulo XXI do livro citado Luiz Antônio Moniz Bandeira (2003), que analisa
comparativamente também o alinhamento de Menem e a política externa do general Juan Carlos Onganía
(1966-1969), que adotaram diferentes justificativas para a adoção de uma mesma orientação política.
294

autonomista diante das preferências dos Estados Unidos, ainda que, ao mesmo
tempo, se buscasse evitar enfrentamentos com a potência vista como hegemônica.
A inovação mais importante referia-se justamente ao campo das políticas de
integração, na medida em que foi no governo Itamar que a diplomacia brasileira
lançou em 1993 a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio da América
do Sul (ALCSA), em clara oposição à então recém anunciada Área de Livre
Comércio da América da Norte (NAFTA). Talvez este curto governo de transição
tenha representado também a ascensão ou retomada de um modelo de política
externa mais bem caracterizado como oposição limitada, padrão que se manteria até
os dias atuais, ainda que estabelecido gradualmente ao longo dos governos Itamar,
FHC e, finalmente, de forma mais evidente, nos dois governos do presidente Lula.
As relações com os EUA durante os dois mandatos do presidente FHC não
seguiram uma trajetória necessariamente contínua. Inicialmente, mantiveram-se
alguns traços de adaptação conformada (ou acomodação) aos regimes
internacionais considerados cruciais na política externa norte-americana e às
tendências neoliberais que predominaram em seu primeiro período presidencial, de
1995 a 1998. Essa orientação se traduzia no alinhamento aos preceitos do
Consenso de Washington e na adesão a regimes internacionais como o Tratado de
Não-Proliferação Nuclear (TNP), além de tratados nos campos do meio ambiente e
de direitos humanos. Conforme interpretação dada por um dos diplomatas que mais
colaborou com o governo FHC, quando oficiou em sua assessoria internacional,
tratava-se de substituir a ideia de “autonomia pela distância” pela de “autonomia pela
participação” (Gelson Fonseca Jr., 1998). Vale sublinhar que apesar das boas
relações com Washington durante o primeiro mandato FHC isto jamais significou um
acoplamento aos interesses estratégicos dos EUA, tendo o governo brasileiro se
posicionado criticamente diante de uma série de iniciativas norte-americanas, como
as intervenções baseadas no capítulo VII da Carta da ONU, que tinham como
fundamento prestar assistência humanitária, como nos casos da Ruanda, Somália e
Bálcãs.
Posteriormente, em especial a partir da crise econômica iniciada em 1998,
percebida como decorrência do fracasso na aplicação da agenda neoliberal, a
diplomacia brasileira passou a adotar posturas mais críticas, as quais foram
traduzidas pelo conceito de “globalização assimétrica”. A questão mais sensível das
relações Brasil-EUA no governo Cardoso dizia respeito ao tema da integração
295

econômica, tanto pela clara pretensão de ampliar o MERCOSUL em direção à


América do Sul como um todo, como pela resistência brasileira diante da proposta
da ALCA. Brasil e os EUA tornaram-se protagonistas e polarizaram o processo
negociador, representando dois projetos distintos de ordenação econômica e política
das Américas. Ao contrário da Argentina, o Brasil opôs-se persistentemente à
intervenção norte-americana na região, prevista no Plano Colômbia, e às crescentes
críticas do governo norte-americano às ações mais autônomas no continente
sulamericano.
De volta às relações entre Argentina e EUA, foi somente no governo do
presidente Eduardo Duhalde (2002-2003), quando a herança do governo Menem
começou a ser deixada para trás, com o abandono da política de alinhamento. Logo
depois de tomar posse, o chanceler Carlos Ruckauf declarou que a Argentina não
mais buscaria “relações carnais” com os EUA, como pretenderam seus antecessores
Di Tella e Giavarini, mas que deveria ser “polígama” em matéria de política externa e
política econômica, referindo-se à pretensão de equilibrar as relações com os EUA e
com os países da Europa. Cabe lembrar que o governo dos EUA negava-se a apoiar
as demandas financeiras argentinas junto ao FMI, sob o argumento de que o país
devia cuidar de seus próprios problemas, o que aumentava os sentimentos
antiamericanos entre os políticos e cidadãos argentinos em geral. Duhalde chegou a
afirmar, entre outras declarações de impacto, que as maiores dificuldades
enfrentadas pela região sulamericana advinham da ignorância e da pouca
preocupação dos EUA com esses países, uma vez que a potência preferia priorizar
outras regiões, onde o fluxo de petróleo está em jogo. Afirmações do primeiro
mandatário com tons tão fortes seriam inimagináveis no contexto da política de
alinhamento dos anos 90.
A política externa do governo de transição de Duhalde pautou-se pela
desconexão da prioridade estratégica antes conferida às relações com os EUA, e, ao
mesmo tempo, deu lugar a uma priorização do MERCOSUL. Assim, a ascensão do
governo Duhalde teve como uma de suas consequências uma diminuição do valor
atribuído à potência norte-americana, em benefício da valorização dos países do
Cone Sul. O apoio do governo brasileiro, inclusive com críticas abertas do presidente
FHC ao abandono da Argentina pelos países desenvolvidos e instituições
multilaterais, foi um fator adicional que favoreceu a retomada dos entendimentos
bilaterais. De qualquer forma, o modelo de política externa pautado pelo
296

acoplamento aos EUA e pela adesão ao neoliberalismo chegava ao fim, abrindo


caminho para uma transição política profunda na Argentina, a qual somente seria
consolidada pelo presidente seguinte, responsável pela transformação dos rumos
internos e externos do país.
Em 2003, no momento da ascensão dos presidentes Néstor Kirchner, na
Argentina, e Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, tem-se a formação de um novo
contexto para as relações entre os EUA e os dois países sulamericanos. Entre as
mudanças, pelo menos três delas são consideradas muito importantes. Em primeiro
lugar, era perceptível uma mudança de prioridades na política externa norte-
americana, mais preocupada com outras regiões do mundo que não o continente
americano. A Doutrina Bush havia definitivamente priorizado as questões de
segurança e a região do Oriente Médio, em detrimento de qualquer relevo à sua
política hemisférica. Esta espécie de vácuo de poder dos EUA na região foi uma
condição que favoreceu a proposição de projetos políticos alternativos, sobretudo na
América do Sul. Em segundo lugar, a prevalência do unilateralismo na ação
internacional dos EUA, acentuada no governo George W. Bush (2001-2009)
produziu consequências diretas sobre a condição de exercício da hegemonia norte-
americana, entre as quais um relativo distanciamento de muitos países com os quais
mantinha boas relações no período anterior.
O unilateralismo dos EUA empurrava os novos governos eleitos para
posições menos convergentes ou mais conflitantes mesmo, tornando incômodos
modelos de política externa que, herdados dos governos dos anos 90, como era o
caso emblemático da Argentina, eram mais convergentes à potência. Por fim, as
crises socioeconômicas sofridas por estes dois países na passagem do século – no
caso brasileiro, de 1998 a 2002, e no caso argentino, de 1999 a 2002 – foram
atribuídas pelas sociedades e governos nacionais, em grande medida, à adoção
acrítica das tendências neoliberais pelos governos anteriores. As vitórias eleitorais
de políticos e/ou partidos progressistas nos países da América do Sul sinalizavam a
vontade da maioria dos eleitores de modificar as orientações prevalecentes,
sobretudo no campo das políticas econômicas e sociais, mas, em alguma medida,
297

também no campo da política externa e das negociações comerciais internacionais e


regionais131.
Kirchner e Lula conduziram suas políticas externas em tema de integração
com base em entendimentos importantes. Entre eles, vale citar o “Consenso de
Buenos Aires”, firmado no primeiro ano de mandato de ambos (16 de outubro de
2003), e, exatamente cinco meses depois (16 de março de 2004), os novos
presidentes firmaram a “Declaração de Copacabana”. O primeiro foi o marco do
relançamento do MERCOSUL, depois de cinco anos de crise e recessão. No plano
hemisférico, o acordo de outubro estabeleceu o compromisso de que os dois países
adotariam uma posição comum nas negociações da ALCA, no sentido de se oporem
à pretensão dos EUA de avançar as negociações. A Declaração de Copacabana
estendeu o compromisso de manter posição comum em outros foros internacionais,
com destaque para as relações com o FMI, onde os países demandavam tratamento
menos restritivo em matéria fiscal. A aliança em foros internacionais estendia-se até
um compromisso inédito, a incorporação de diplomatas do outro país em suas
delegações no CSNU, sempre que ocupem um assento não-permanente. Nenhum
dos dois presidentes estava disposto a cerrar fileiras e aderir à ALCA ou às posições
de política internacional dos EUA de George W. Bush. Neste sentido, os governos
de Argentina e Brasil finalmente convergiam em termos de suas relações com os
EUA. Dentro da classificação citada de Russell e Tokatlian, os dois países
convergiam em torno do paradigma de oposição limitada, coincidência propiciada
pela mudança de rumos na Argentina, que aproximou este país de seu vizinho:

“O Brasil, como caso exemplar deste modelo, apresenta uma condição única na
América Latina: a de ser um país com aspiração de liderança regional e projeção
extra-hemisférica. Isto lhe exige distanciar-se de Washington para ser reconhecido
como poder na área, mas também aproximar-se [aos EUA] para facilitar a sua
ascensão internacional. Assim, compete parcialmente com os EUA e, ao mesmo
tempo, necessita de seu respaldo às aspirações de desempenhar um papel mais
ativo na política e economia internacionais. Os casos aproximados tendem a oscilar
entre um perfil mais pragmático (a Argentina de Néstor Kirchner) e mais ideológico

______________________________________________
131
Sobre as novas relações com os EUA, após a ascensão dos governos Kirchner e Lula, em que pese sejam
períodos ainda recentes, já há um conjunto de trabalhos interessantes a consultar. Entre eles, optou-se por
indicar os seguintes. Sobre as relações entre Brasil e EUA nos governos Lula, M. Hirst (2009), M. Hirst e M.
Lima (2006) e C. Pecequilo (2010). Sobre as relações entre Argentina e EUA nos governos dos Kirchners, R.
Russell e J. Tokatlian (2009) e R. Bernal-Meza (2008).
298

(a Venezuela, sob o governo de Hugo Chávez entre 1998-2002). Os países incluídos


nesta última categoria sofreram fortes turbulências internas que explicam em grande
parte a reorientação de suas políticas externas: a derrubada do bipartidarismo
tradicional na Venezuela, o colapso político-econômico da Argentina de 2001-2002,
o quase desmoronamento do Estado na Bolívia e as reiteradas crises institucionais
no Equador desde os anos noventa. Em todos os casos, o papel dos EUA – seja por
desatenção ou ingerência – foi importante e fez que os governos emergentes das
crises buscassem um distanciamento relativo de Washington no imediato. Nos casos
aproximados, as fortalezas e debilidades relativas (posse de algum ativo estratégico
ou declínio prolongado) contribuíram significativamente para dar uma sustentação de
mais longo prazo a este modelo.”

Considera-se que as relações de Argentina-EUA e Brasil-EUA são fatores


importantes na análise de orientações diante da ALCA e da NAFTA, assim como foi
fundamental a articulação entre os países do MERCOSUL, uma vez que eles haviam
firmado o entendimento de negociar em conjunto com os EUA, como expressou o
Acordo Quadro MERCOSUL-EUA, de 19 de junho de 1991, conhecido como Acordo
do Jardim das Rosas. Em diversos momentos, os EUA demonstraram preferir
negociar bilateralmente as concessões comerciais, enquanto do lado do
MERCOSUL o Brasil foi o país que se manteve todo o tempo fiel à posição de
negociar em bloco, pois os outros países, em especial a Argentina e o Uruguai, em
diversos momentos manifestaram as negociações diretas como um caminho não
completamente descartado de suas estratégias de integração. Busca-se integrar a
análise da trajetória das negociações hemisféricas e das orientações dos sucessivos
governos de Argentina e Brasil à análise dos padrões de interação destes governos
com os demais agentes que possuíam interesse no tema da ALCA, em particular os
empresários e trabalhadores.
O lançamento da proposta da ALCA, em dezembro de 1994, deveu-se a um
conjunto de fatores, entre os quais vale citar o contexto de reordenamento liberal da
economia política mundial, o surgimento do fenômeno do novo regionalismo e o fim
da Rodada Uruguai, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Ademais, como aponta Bandeira (2003), também se pode especular que a proposta
do governo Clinton levava em conta o anúncio, por parte do governo brasileiro, cerca
de um ano antes, da sua intenção de avançar no processo de integração da América
do Sul, construindo uma área de livre-comércio que unisse o MERCOSUL, os países
do Pacto Andino, mais Chile, Guiana e Suriname (a ALCSA, Área de Livre Comércio
Sulamericana). A proposta brasileira, anunciada sob a gestão do chanceler Celso
Amorim, opunha-se nitidamente ao anúncio da formação da NAFTA:
299

“(...) a intenção do Brasil de formar um espaço econômico sulamericano, a ALCSA,


anunciada pelo presidente Itamar Franco em outubro de 1993, em evidente
contraposição à NAFTA, provavelmente concorreu, entre outros vários fatores, para
que o presidente William Clinton (1993-1996 e 1997-2001) procurasse reanimar a
Enterprise for the Americas Initiative, proposta por Bush em 1990 e que até então
não tivera desdobramento mais amplo, salvo os acordos com o Canadá e o México.
O estabelecimento dessa área de livre comércio, tendo o MERCOSUL como núcleo,
não convinha aos EUA, na medida em que se lhe afigurava um movimento de
resistência ao seu predomínio econômico e político. Tornava-se necessário,
portanto, abortar esse projeto, que daria maior bargain power ao Brasil e aos demais
Estados da América do Sul em quaisquer negociações que pudessem vir a ter com a
NAFTA, e a melhor maneira seria oferecer uma perspectiva mais atraente,
envolvendo todos os países do hemisfério.” (Bandeira, 2003: 495-496)

O lançamento da proposta, à parte os eventos e percepções que a


motivaram, era uma ação de grande repercussão internacional, pois se ancorava no
poderio político e econômico dos EUA, que atravessavam um momento
particularmente favorável no cenário internacional. Ademais, no plano regional
interamericano, as reações à proposta reforçavam as percepções sobre o enorme
poder de atração da NAFTA. Assim como nos demais países, houve reações
imediatas na Argentina e no Brasil, tanto nos diversos setores da sociedade como
entre os governos e burocracias estatais. O presidente Menem e o ministro da
Economia Domingo Cavallo especularam sobre a possibilidade de aceder ao
NAFTA, imediatamente após a Cúpula de Miami, o que deve ser interpretado no
marco da política de alinhamento aos EUA. No Brasil, as reações governamentais
foram em geral mais cautelosas, embora também houvesse setores mais favoráveis
à integração hemisférica, em detrimento do próprio MERCOSUL que vinha sendo
tão valorizado no discurso diplomático oficial. É o historiador Bandeira quem resume,
a seguir, o impacto do aceno norte-americano nos principais países do Cone Sul:

“(...) o NAFTA, com um PIB de mais de US$ 6 trilhões e um total de


aproximadamente 360 milhões de consumidores, exercia forte atração. O Chile
desde logo manifestou a intenção de incorporar-se a esse bloco. Também setores
no governo Menem, assim como nos partidos de oposição, defenderam a adesão da
Argentina e o abandono da integração com o Brasil, por julgar o MERCOSUL uma
fantasia. E até no Brasil houve críticas ao MERCOSUL, com o argumento de que se
poderia alcançar uma integração mais rápida, mais lucrativa e mais produtiva com os
EUA. O embaixador Roberto Campos, em seminário promovido pelo Itamaraty,
declarou que o MERCOSUL não tinha escala em face dos grandes blocos mundiais
e que a NAFTA era um ‘instrumento de modernidade’.” (L. Bandeira, 2003: 494)

Entre as reações defensivas, em geral buscava-se não apenas valorizar o


recém criado MERCOSUL, mas também opor ressalvas à NAFTA, com destaque
para os pronunciamentos dos dois chanceleres. Mesmo para o argentino Guido Di
Tella, que defendia a política de alinhamento à potência norte-americana, o
300

abandono do MERCOSUL era considerado “um equívoco”, uma vez que nem para o
México a NAFTA se configurava uma certeza. Além disso, ele antevia que não seria
tarefa fácil conquistar acesso ao mercado norte-americano, sobretudo devido às
resistências de setores domésticos que impediriam aquele governo de conceder
acesso aos produtos exportáveis argentinos, em particular os do setor agrícola. Por
fim, Di Tella também apontava o fato de que o Brasil, àquela altura, já representava
o principal mercado externo da produção nacional (entre os anos de 94 e 95, o Brasil
passou a responder por 34% das exportações argentinas, assumindo lugar similar
ao que ocupara a Grã-Bretanha no auge da “aliança especial” da Argentina, um
século antes). Ao valorizar o bloco, setores que coincidiam com o chanceler
polarizavam politicamente com os setores mais liberais alinhados sob a liderança
explícita do ministro Cavallo, com o próprio presidente Menem oscilando entre
declarações pró-ALCA ou pró-EUA e discursos de valorização do MERCOSUL, que
ele mesmo defendera nos anos anteriores.
No lado brasileiro, o chanceler Celso Amorim qualificou alguns aspectos do
NAFTA como “preocupantes”, como as regras de origem, que para ele poderiam
converter-se em obstáculo importante, fora os possíveis impactos da associação
entre EUA e México sobre as vendas brasileiras no mercado norte-americano. Ao
narrar as reações à proposta feita em Miami, Bandeira registra que nem o presidente
Itamar Franco, nem o novo mandatário que seria empossado em janeiro de 1995,
Fernando Henrique Cardoso, sabiam da proposta que afinal foi lançada pelo
presidente Clinton em Miami. A ocorrência da crise mexicana da dívida, cujo governo
decidiu desvalorizar a moeda em 24 de dezembro de 1994, arrefeceu os ânimos de
parte dos setores mais favoráveis à liberalização do comércio exterior brasileiro.
Bandeira (2003: 499) lembra ainda que, se por um lado o Brasil era “o país cuja
estrutura econômica menos se complementava com a dos EUA, Canadá e México”,
por outro lado “a composição do seu comércio com os sócios do MERCOSUL, bem
como com os demais parceiros da sub-região”, tinha uma estrutura “similar à do
intercâmbio entre as potências industriais e os países em via de desenvolvimento”.
Portanto, as posições defensivas predominavam entre os representantes
governamentais e da burocracia diplomática no Brasil, tendo assim permanecido na
maior parte do tempo durante o qual se negociou a criação da ALCA. Foi somente a
partir do últimos anos da década que o Brasil passou a assumir uma postura mais
301

ativa, quando começou a demandar, nos foros de negociações multilaterais e


hemisféricas, por mais acesso aos mercados agrícolas dos países desenvolvidos.
Por iniciativa do governo norte-americano de Bill Clinton, foi realizada em
Miami a Primeira Reunião de Cúpula das Américas, entre os dias 9 e 11 de
novembro de 1994, à qual atenderam os governos de 34 países americanos132, com
a singular exclusão de Cuba. A NAFTA estava em vigor desde o primeiro dia de
1994, com um prazo de 15 anos para a total eliminação das barreiras alfandegárias
entre os três países, estando aberto a todos os países das Américas. Neste
contexto, os norte-americanos propunham a extensão da área de livre comércio por
meio da criação uma nova instituição, a partir da qual os países do continente
derrubariam todas as suas barreiras alfandegárias. Em Miami tomou-se a decisão
coletiva de construir uma Área de Livre Comércio das Américas, definindo com
objetivo o seu estabelecimento até o ano de 2005.
Na estrutura de negociações da ALCA, o nível mais alto era representado
pelas Reuniões de Cúpula, ocasiões de grande repercussão pública nas quais os
Chefes de Estado e de Governo dos 34 países consolidavam os avanços obtidos
nas negociações entre esses encontros. Assim, em Santiago (1998), foram lançadas
oficialmente as negociações, definindo o prazo da chamada “primeira fase” de
negociações (três anos) e os temas dos nove Grupos de Negociação (ou Grupos de
Trabalho), assim como as presidências e vice-presidências desses Grupos; em
Quebec (2001), acertou-se a “fase final” das negociações, com prazos e
cronogramas rígidos para que o bloco entrasse em vigor até o último dia de 2005; e
a última Cúpula das Américas, em Mar del Plata (2005), selou o esgotamento do
processo negociador.
O nível imediatamente inferior às cúpulas presidenciais era representado
pelas Reuniões dos Ministros de Comércio Exterior, sendo que em Miami já restou

______________________________________________
132
Antigua e Barbuda; Argentina; Bahamas; Barbados; Belize; Bolívia; Brasil; Canadá; Chile; Colômbia; Costa
Rica; Dominica; El Salvador; Equador; Estados Unidos da América; Grenada; Guatemala; Guiana; Haiti;
Honduras; Jamaica; México; Nicarágua; Panamá; Paraguai; Peru; República Dominicana; São Vicente e
Grenadinas; Santa Lúcia; St. Kitts e Nevis; Suriname; Trinidad e Tobago; Uruguai; e Venezuela. Uma breve
descrição do processo de negociação está disponível no site oficial da ALCA (WWW.ftaa-alca.org), assim
como a íntegra das Declarações Ministeriais que resultaram das diversas reuniões, os trabalhos dos diversos
Grupos de Negociação existentes e as minutas de acordo preparadas por estes Grupos.
302

estabelecido quando e onde seriam realizadas as primeiras quatro dessas reuniões:


a Primeira Reunião Ministerial, em junho de 1995 (Denver); a Segunda, em março
de 1996 (Cartagena); a Terceira, em maio de 1997 (Belo Horizonte); e a Quarta, em
março de 1998 (San José da Costa Rica). Também na Primeira Cúpula das
Américas foi firmado um compromisso inicial de haver alcançado progresso concreto
até o final do século. Esses marcos temporais balizam a análise a seguir, assim
como as Reuniões Ministeriais e Vice-Ministeriais, programadas para ocorrer de ano
em ano, as quais também serviam para consolidar os avanços das negociações
intergovernamentais, ao mesmo tempo preparando os acordos para a realização das
Cúpulas Presidenciais.

Quadro 2 – Reuniões Presidenciais e Ministeriais para a Formação da ALCA

I Cúpula das Américas (Miami, dezembro de 1994)


I Reunião Ministerial (Denver, junho de 1995)
II Reunião Ministerial (Cartagena, março de 1996)
III Reunião Ministerial (Belo Horizonte, maio de 1997)
IV Reunião Ministerial (San José, março de 1998)
II Cúpula das Américas (Santiago, abril de 1998)
V Reunião Ministerial (Toronto, novembro de 1999)
VI Reunião Ministerial (Buenos Aires, abril de 2001)
III Cúpula das Américas (Quebec, abril de 2001)
VII Reunião Ministerial (Quito, novembro de 2002)
VIII Reunião Ministerial (Miami, novembro de 2003)
IX Reunião Ministerial (Puebla, abril de 2004)
IV Cúpula das Américas (Mar del Plata, novembro de 2005)

Os pontos de maiores dificuldades nas negociações entre os EUA e os países


do MERCOSUL eram relativamente bem conhecidos, destacando-se uma série de
difíceis concessões que cada um dos lados precisava fazer. Do lado dos EUA, os
principais desafios referiam-se às demandas dos países menos desenvolvidos pela
abertura do mercado agrícola e a eliminação dos subsídios ao setor, pela eliminação
efetiva das barreiras não-tarifárias, pela discussão das questões relativas às
medidas antidumping e outras salvaguardas comerciais e, finalmente, pela não-
inclusão das cláusulas trabalhistas e ambientais pretendidas pelo governo Clinton.
Do lado dos países do MERCOSUL, as principais dificuldades referiam-se às
demandas norte-americanas por redução das tarifas para produtos industriais, por
abertura dos mercados de serviços e financeiros, por ajustes nas suas leis de
303

patentes e pela ampliação da abrangência dos temas negociados, incluindo desde


trabalho e meio ambiente até narcotráfico, terrorismo, entre outros.
Já na Primeira Reunião dos Ministros de Comércio, em junho de 1995,
quando teve início a preparação das negociações em torno da criação da ALCA,
evidenciou-se a diferença entre a estratégia dos EUA e a dos países do
MERCOSUL, uma vez que estes últimos haviam gerado o entendimento de negociar
em bloco. Para eles, esta era considerada uma questão crucial, embora, no caso da
Argentina, até o final dos anos 90 o governo se encontrasse dividido entre setores
que coincidiam com a posição brasileira, em particular na Chancelaria e na
Presidência, e outros que apoiavam um atalho para a integração econômica com os
EUA. Fosse via adesão ao NAFTA ou mesmo via acordo bilateral de livre-comércio,
o mais evidente representante deste setor era o ministro Cavallo. No caso do Brasil,
havia maior coesão entre as instâncias governamentais e burocráticas, no sentido de
apoiar as negociações em bloco. Os negociadores brasileiros também conseguiram
firmar-se como uma espécie de intérprete dos países vizinhos, exercendo liderança
nesta questão dos alicerces (ou building blocks) da negociação, e em outras
questões, como foi o caso, por exemplo, da resistência dos governos da região à
vinculação pretendida pelos EUA entre os temas comerciais e cláusulas sobre meio
ambiente e questões trabalhistas.
Os EUA saíram derrotados na sua tentativa de modificar o formato estipulado
pela Cúpula de Miami133, de seis meses antes, mas retomariam a tentativa de excluir
o formato definido inicialmente pelos presidentes, na Terceira Reunião, em Belo
Horizonte (1997), quase gerando um impasse no lançamento das negociações. Em

______________________________________________
133
A “Declaração de Princípios”, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo na Cúpula de dezembro de
1994, foi expressa a este respeito. Assim, está na parte intitulada “Pacto para o Desenvolvimento e a
Prosperidade: Democracia, Livre Comércio e Desenvolvimento Sustentável nas Américas”: “Trabalharemos
com base nos acordos subregionais e bilaterais existentes, com vistas a ampliar e aprofundar a integração
econômica hemisférica e tornar esses acordos mais parecidos.” No documento intitulado “Plano de Ação”,
descrição mais detalhada das tarefas dos governos e das negociações que eram lançadas pela Cúpula de
Miami, é reiterado o reconhecimento dos acordos sub-regionais e bilaterais, assim como a plena
compatibilidade com as regras do sistema multilateral de comércio (OMC): “Ao procurarmos a integração
econômica e o livre comércio no Hemisfério, reforçamos o nosso sólido compromisso com as normas e
disciplines multilaterais. Endossamos a implementação plena e rápida da Rodada Uruguai, negociações
multilaterais ativas na Organização Mundial do comércio (OMC), acordos comerciais bilaterais e sub-regionais
e outros acordos comerciais compatíveis com as disposições do GATT/OMC e que não levantem barreiras a
outros países.”
304

que pese a pressão norte-americana, a Declaração adotada pelos Ministros reunidos


em Denver repetiu a fórmula enunciada pelos Chefes de Estado e de Governo na
Cúpula de Miami, expressando que as negociações teriam “como base os acordos
sub-regionais e bilaterais existentes, com vistas a ampliar e aprofundar a integração
econômica hemisférica e tornar esses acordos mais parecidos”. A manutenção do
texto na Declaração Ministerial foi considerada um triunfo do bloco, e da posição
brasileira em particular, já que os representantes dos EUA preferiam uma estratégia
de negociações que inibisse a formação de grupos de países provavelmente
resistentes, negociando bilateralmente e assim aproveitando melhor as assimetrias
que lhe favorecem. Por fim, o Plano de Trabalho adotado ao final do encontro de
Denver mantinha o prazo pré-estabelecido para a vigência do livre-comércio
hemisférico, estipulando que as negociações seriam concluídas “o mais tardar até o
ano 2005”, data que seria mantida até a suspensão das negociações, apesar de
algumas propostas e discussões sobre a antecipação do prazo, em diversos
momentos.
Desde o início do processo, inclusive naquela primeira fase, preparatória para
as negociações oficiais lançadas em 1998, as principais divergências opunham o
Brasil e os EUA, que se tornariam paulatinamente protagonistas da tentativa de se
criar a ALCA. As divergências entre os EUA e o Brasil, este pretendendo liderar os
países do MERCOSUL, foram evidentes nas discussões da Segunda Reunião
Ministerial, em março de 1996. Na cidade colombiana de Cartagena, evidenciou-se
que, além das difíceis concessões acima, Brasil e EUA tinham preferências
contraditórias sobre pontos fundamentais do próprio processo negociador. Em
primeiro lugar, eles divergiam sobre a estrutura das negociações, com o Brasil
insistindo que as negociações respeitassem os blocos regionais existentes ou em
formação, como alicerces da negociação. Em segundo lugar, discordavam quanto ao
ritmo das negociações, com os EUA (e outros países, como o Chile) tentando
diversas vezes apoiar propostas de adiantar a data de término das negociações e o
Brasil usando diferentes táticas para, no mínimo, manter a data original de 2005. E,
finalmente, eles não concordavam com relação à abrangência da ALCA, com os
EUA forçando a ampliação da agenda de negociações, enquanto o governo
brasileiro resistia à conexão das negociações comerciais com outros temas,
especialmente as relações trabalhistas e o meio ambiente.
305

Em termos de envolvimento dos setores produtivos, já durante a Primeira


Reunião de Ministros ocorreu uma inovação importante, com a realização do
Primeiro Fórum Empresarial das Américas (FEA), instância não-governamental e
transnacional criada por iniciativa dos próprios empresários, com o objetivo principal
de acompanhar as negociações. De 1995 até 2002, os FEAs foram realizados
sempre em paralelo às Reuniões Ministeriais e, ademais, passariam a espelhar, em
sua estrutura interna, os diversos grupos de negociação intergovernamentais. Além
da dimensão política do Fórum, também era uma oportunidade para o fechamento
de negócios e para a aproximação dos setores empresariais dos principais países.
Na Reunião de Cartagena (1996), o Fórum foi oficialmente reconhecido pelos
governos e incorporado à agenda dos encontros oficiais, tendo comparecido
inúmeros representantes governamentais, embora a instância não tivesse qualquer
papel deliberativo, representação ou participação nos grupos oficiais de negociação.
A novidade, enfim, não chegava a descaracterizar as negociações como um
processo entre governos que se apresentavam como representantes do interesse
nacional, mas a organização do setor privado demonstrava que os empresários não
deixariam de se articular paralelamente com o objetivo de influenciar os rumos do
processo.
Quanto às organizações empresariais brasileiras, a grande novidade foi a
criação da Coalizão Empresarial Brasileira (CEB), instância que assumiu para si as
tarefas de coordenar os setores empresariais do país e de fazer a articulação com o
governo e as instâncias do processo de negociação134. Os setores empresariais

______________________________________________
134
Apesar de haver sido criado para coordenar o processo de mobilização empresarial em torno das
negociações da ALCA, a CEB transcendeu o âmbito da integração hemisférica, assumindo o papel de
interlocutor de mais de 170 organizações empresariais em outras negociações comerciais internacionais,
como a Rodada de Doha da OMC e as negociações do MERCOSUL com a União Europeia. O esforço de
articulação empresarial foi coordenado pela CNI, que mantém a sua Secretaria Executiva. O órgão consultivo
superior da CEB é o Conselho de Orientação Estratégica, composto por 25 membros, “representando as
organizações empresariais de cúpula e entidades setoriais com relevante participação no comércio exterior
brasileiro”, conforme expressa o site oficial da CNI. Suas atribuições são listadas como segue: “formular
estratégias para ampliar a influência do setor empresarial sobre as posições brasileiras em matéria de
negociações comerciais internacionais; liderar a representação de interesses do empresariado brasileiro em
negociações comerciais internacionais; estimular a capacitação de representantes empresariais para
negociações comerciais internacionais; assegurar que a CEB represente, de fato, a mais ampla gama dos
interesses empresariais, através da mobilização de empresários e entidades empresariais de todos os setores
interessados nas negociações; apresentar as posições e recomendações empresariais aos ministros de
306

brasileiros, ao testemunhar o ativismo do Primeiro Fórum Empresarial das Américas


e o nível de convergência existente entre os empresários norte-americanos e o
governo daquele país, começaram a temer pelos resultados domésticos das
negociações hemisféricas, conforme observação de Helton Santana (2001). O autor
tem razão quando diz que a CEB resultou da percepção de que os custos da não-
mobilização em torno do processo decisório da ALCA poderiam ser maiores do que
aqueles inicialmente estimados. Os empresários também pretendiam livrar-se da
tutela do MRE e de seu “modelo de participação”, em que os líderes empresariais
eram identificados de forma discricionária, sem preocupar-se com a representação
institucional das organizações existentes ou com o grau de representatividade dos
inúmeros segmentos empresariais.
Portanto, a estratégia de criar a CEB, com uma institucionalidade própria,
voltada à elaboração e expressão das preferências empresariais, era uma reação à
centralização governamental, que chegava a atingir até mesmo a participação do
setor privado nos primeiros FEAs, quando a composição da delegação brasileira
dependia do convite oficial discricionariamente formulado pelo MRE. Assim, até a
própria participação na instância criada especificamente para articular as burocracias
envolvidas nas negociações hemisféricas e os setores interessados da sociedade
civil, a SENALCA/MRE, dependia das decisões oriundas da chancelaria e da cúpula
governamental e demorou a contar com a participação do setor privado (Santana,
2000 apud Maria Izabel Valladão de Carvalho, 2003).
Conforme registra Santana (2001), o grau máximo de mobilização política do
empresariado nacional ocorreu por ocasião do Terceiro FEA, realizado concomitante
à Terceira Reunião Ministerial, em Belo Horizonte, no mês de maio de 1997.
Responsáveis pela organização do evento paralelo às negociações interestatais, os
empresários brasileiros aproveitaram a oportunidade para expressar apoio à
metodologia de negociação do governo brasileiro, que, naturalmente, passou a
reconhecer nos empresários um aliado importante para as duras negociações
internacionais que se iniciavam:

______________________________________________
Estado das áreas envolvidas nas negociações; e representar a CEB nos mais importantes foros
internacionais”.
307

“Além de organizar o evento e deixar claro aos negociadores dos demais países do
Continente o seu apoio à metodologia de negociações brasileira, o empresariado
nacional começou a colher os frutos de sua mobilização. O governo, que criara a
Seção Nacional da ALCA (SENALCA) – órgão que tem por objetivo reunir os
representantes de diferentes áreas de governo que participam dos Grupos de
Trabalho Hemisféricos da ALCA, ou que têm interesse específico nas negociações –
, passou a incorporar representantes do setor privado em suas reuniões. Além disso,
o Executivo brasileiro começou a convidar representantes do setor privado para
acompanhar as reuniões oficiais da ALCA sob o sistema de ‘quarto ao lado’ –
embora sem poder estar presente à mesa de negociações governamentais, o setor
privado passou a acompanhar a delegação oficial brasileira recebendo relatos e
debatendo posições.” (Santana, 2001: 174)

Em trabalho sobre o período Fernando Henrique Cardoso, André Luiz da Silva


(2009) também indica que “ocorreu um razoável consenso nas propostas formuladas
pelos diversos setores empresariais e o governo brasileiro”. Ao comentar o aumento
do interesse sobre política externa no Brasil e as adaptações institucionais do
Itamaraty diante das demandas da sociedade, o pesquisador também confere
destaque à inovação representada pela criação da CEB:

“(...) foi com a criação, em 1996, da Coalizão Empresarial Brasileira (CEB) que
ocorria um ponto de inflexão nos padrões de representação empresarial que visava
a influenciar a dinâmica da internacionalização econômica do país. O setor privado
contava, então, com quatro instâncias de diálogo com o governo. Além da CEB,
havia o Comitê Empresarial Permanente (criado no governo Itamar, em 1992), a
Seção Nacional da ALCA (SENALCA) e os Grupos Interministeriais. A CEB inovava
no modelo de gestão, tinha flexibilidade e evitava sua burocratização, conseguindo
manter-se como um interlocutor válido e manter autonomia diante do governo, não
obstante muitas das suas posições serem semelhantes a este.” (Silva, 2009: 65)

Este mesmo autor observa que, no mesmo momento em que se ampliavam


os canais de debate sobre a política externa brasileira, principalmente em direção
aos interesses empresariais, ocorria também maior um aumento da centralização
decisória da política externa, por meio da atuante diplomacia presidencial do
governo FHC:

“(...) ao passo em que se ampliava o debate sobre a política externa brasileira, com
uma série de atores disputando sua orientação e formulação, verifica-se uma
centralização na sua gestão, no modelo que ficou conhecido como diplomacia
presidencial e que acabou sendo a marca da gestão Fernando Henrique Cardoso.
Considera-se essa uma questão importante para compreender a formulação da
política externa, nesta aparente contradição: se, por um lado, se ampliavam as
esferas de debate sobre a discussão da política exterior, por outro, tentava-se
centralizar sua execução na figura da Presidência da República.” (Silva, 2009: 65-
66)

Quanto aos empresários argentinos, estes se encontravam mais divididos


quanto ao tema da ALCA. De qualquer modo, reagiram politicamente com maior
atraso, quando se compara à atuação empresarial brasileira. Enquanto os
308

empresários brasileiros já se articulavam antes mesmo do lançamento oficial das


negociações, em 1998, no caso argentino as primeiras manifestações organizadas
começaram a ocorrer após esta data. É verdade que já havia indicadores, como
algumas pesquisas de opinião135 e declarações isoladas de líderes empresariais,
mas as organizações mais representativas do setor só viriam a se manifestar a partir
do final de 2000. Conforme análise de Bernal-Meza e Quintanar (2001),

“Os atores sociais, políticos e econômicos argentinos iniciaram atrasados as suas


avaliações sobre a ALCA. Foi no princípio de outubro de 2000, quando uma equipe
ad hoc da União Industrial Argentina (UIA) preparou um memorandum para a
Chancelaria argentina, no qual eram identificadas, inicialmente, as áreas de
preocupação sobre as quais o empresariado industrial desejava ser consultado.
Para o presidente da UIA, Osvaldo Rial, a discussão em torno da data de integração
argentina à ALCA é uma questão fundamental. O dirigente afirmou que ‘Deve-se
buscar o consenso dentro dos 34 países sem acelerar os tempos como pretendem
os Estados Unidos’ e que ‘pensar em adiantar as datas é um erro’”.

Quanto ao setor agrícola, que possuía mais interesse no acesso ao mercado


norte-americano, o apoio à integração hemisférica era condicionado, assim como
ocorria com o setor homólogo brasileiro, à efetiva suspensão das barreiras tarifárias
e não-tarifárias por parte dos EUA. Quando ocorreu a Reunião Ministerial de Buenos
Aires, em 2001, a reunião do FEA serviu para reforçar, desta vez com maior
participação do empresariado local, a preferência do setor, que coincidia com as
reivindicações dos brasileiros: a ALCA deveria servir para acabar com os subsídios
agrícolas, tema que os EUA e o Canadá preferiam levar para o âmbito multilateral da
Rodada de Doha da OMC. Como isto era altamente improvável, considerando as
resistências que todos sabiam existir no Congresso norte-americano, acima de tudo,

______________________________________________
135
Em março de 1998, às vésperas da Sexta Reunião Ministerial da ALCA que ocorreria em Buenos Aires, o
jornal El Clarín publicou uma matéria sobre duas pesquisas de opinião realizadas com representantes
empresariais. A primeira, organizada pela CEPAL e pela Secretaria de Indústria, solicitou que os executivos de
61 empresas atribuíssem notas, de 0 (zero) a 10 (dez), para os blocos econômicos aos quais preferiam
associar-se. O resultado publicado na matéria mostra a diferenças entre o MERCOSUL (média 7,5) e a ALCA
(média 4), sendo que os maiores índices de aceitação da ALCA concentraram-se nos setores mais
competitivos, como o alimentício, de couros e têxteis, enquanto os setores automotivo, de telecomunicações e
de bens de consumo registraram as médias mais baixas de aceitação da integração hemisférica. Noutra
pesquisa, patrocinada pela União Industrial Argentina (UIA), os dados também apontavam claramente a
preferência dos empresários: “69,8% dos empresários argentinos creem que não estão preparados para a
associação do MERCOSUL à ALCA e 90,5% consideraram que, como o MERCOSUL foi exitoso, é aí onde
deveriam concentrar-se as energias dos políticos. Mais da metade (52,9%) creem que a integração continental
deveria dar-se em um futuro mais distante do que o previsto”.
309

justo o mercado mais cobiçado pelos produtores agrícolas argentinos. Este era o
sentido dos pronunciamentos das principais lideranças empresariais do setor, já na
fase das negociações oficiais da ALCA:

“(...) o presidente da Federação Agrária Argentina (FAA), Eduardo Bussi, aderindo


ao protesto contra a ALCA, organizado pelo CTA (central sindical dissidente) em
repulsa a um possível acordo de integração MERCOSUL-ALCA, manifestou sua
oposição ao mesmo, expressando que ‘um hipotético bloco regional único deixará a
Argentina como dependente da América do Norte’ – acrescentando que – a FAA
ratifica a necessidade de fortalecer o MERCOSUL como bloco regional, mesmo com
as respectivas modificações. Se ficarmos à disposição de um único bloco como é a
ALCA, com uma economia dominada pelos Estados Unidos, vamos a caminho de
ser subserviente à economia norte-americana e aos grupos concentrados no país do
norte (...). Com uma postura em conjunto com todas as organizações gremiais e
sociais, rejeitamos a ALCA em defesa do nosso trabalho e da nossa produção.”
(Bernal-Meza e Quintanar, 2001: 159)

A perspectiva do setor agrícola brasileiro tendia a ser até mais liberal do que
os equivalentes argentinos, ainda que a ALCA só interessasse no caso de realmente
atender aos seus interesses, isto é, caso aumentasse o acesso a mercados e a
insumos para a produção local. Carvalho (2003) analisa as diferenças existentes
entre as posturas dos setores produtivos brasileiros (industrial e agrícola) em relação
às negociações multilaterais de comércio, explicando-as pelo impacto diferenciado
que as mudanças processadas na economia brasileira tinham causado sobre eles.
Para a autora, enquanto a indústria se ressentiu da liberalização econômica dos
anos 90, a agricultura obteve ganhos com o processo de abertura:

“As diferenças econômicas entre os dois setores resultaram em uma postura mais
liberalizante da agricultura vis-à-vis a indústria nas negociações multilaterais de
comércio. Dessa maneira, a agricultura passou a demandar a liberalização de
insumos industriais e bens de capital utilizados na sua cadeia produtiva, atingindo,
por conseguinte, as preferências de determinados setores industriais que não
estavam preparados para uma abertura tão rápida.” (Carvalho, 2003: 371)

A respeito do impacto dessas diferenças sobre a organização política do setor


agrícola, a cientista política destaca a importância da criação, em fevereiro de 1999,
do Fórum Permanente de Negociações Agrícolas Internacionais, resultado da
aglutinação estratégica da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a
Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG) e a Organização das Cooperativas
Brasileiras (OCB). Para Carvalho, a criação do Fórum é explicada por três fatores
principais. Primeiro, a constatação de perdas decorrentes da ausência de uma
instância de coordenação política dos interesses do setor durante a Rodada Uruguai
do GATT e a criação do MERCOSUL. Segundo, a consideração de que a CEB era
310

insuficiente para expressar as preferências do setor, uma vez que havia divergências
com determinados setores industriais, como os de bens de capital, indústria química
e de eletroeletrônicos. Apesar de valorizar a CEB, o setor agrícola tinha dificuldades
de avançar no âmbito onde predominavam os interesses industriais. E, por último,
mas não menos importante:

“(...) havia também conflitos de orientações dentro do próprio Executivo a respeito da


posição que o Brasil devia adotar no âmbito das negociações comerciais
internacionais. Por conseguinte, a criação do Fórum pretendeu reforçar a posição do
agronegócio junto aos seus aliados – o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA) – de forma a ampliar o espaço de defesa das preferências
deste setor no âmbito do Executivo, ao mesmo tempo em que respaldava as
preferências do Ministério na instância da burocracia governamental. É importante
destacar que a criação do Fórum não conduziu ao abandono da CEB pelas
organizações representativas e empresas do setor agrícola. O ambiente da CEB
ainda é reconhecido como relevante para a participação das organizações
representativas da agricultura e dos seus diferentes setores. O que se verificou, por
conseguinte, foi uma estratégia pragmática por parte da agricultura, buscando atuar
em diferentes espaços de poder de modo a maximizar os seus interesses.”
(Carvalho, 2003: 372-373)

As resistências dos setores privados, articuladas em diferentes níveis de


organização e de complexidade, somavam-se às resistências dos governos do
MERCOSUL, sendo naturalmente mais conveniente aos setores mais resistentes às
pretensões de acelerar as negociações para antecipar a criação da ALCA, que ainda
persistiam entre alguns governos, como os EUA e o Chile. Para o governo brasileiro,
era importante capitalizar as resistências domésticas em favor de sua posição, o que
lhe conferia credibilidade nas negociações. Por exemplo, quando os empresários
brasileiros manifestaram apoio à metodologia do governo brasileiro, por ocasião da
Reunião Ministerial de Belo Horizonte, em maio de 1997, a manifestação dava
credibilidade às resistências brasileiras diante das tentativas norte-americanas de
modificar a estrutura das negociações e de antecipar o prazo para a vigência da
ALCA. A precocidade da reação do empresariado brasileiro, diante do relativo atraso
do empresariado argentino, desde o início favoreceu os setores resistentes que
eram hegemônicos no governo brasileiro.
Para resistir ao imenso poder de atração do mercado norte-americano, o
governo brasileiro utilizava-se de diferentes recursos ou argumentos para conter as
pretensões dos EUA. As resistências domésticas eram oportunas para o governo
brasileiro, que aproveitava a convergência de interesses defensivos para ganhar
credibilidade internacional e aparentar, internamente, que se democratizava o
processo de formação da posição oficial, quando a interlocução possuía
311

institucionalidade débil. Sendo assim, os empresários e suas organizações


demandavam maior participação, isto é, que ela não ficasse restrita às consultas que
não eram de forma alguma vinculantes. Santana (2001) sintetiza este ponto com
clareza, após analisar a interlocução entre o governo e os empresários:

“A principal demanda do setor privado em relação às negociações do projeto ALCA


é, em síntese, a institucionalização do processo de consulta aos negociadores
governamentais brasileiros. Tal solicitação tem por base as observações feitas pelo
empresariado nacional, durante os FEAs e as Reuniões Ministeriais, de que os
sistemas de consultas entre os empresários de outros países e seus respectivos
governos funcionam efetivamente. Ocorre que as dificuldades de comunicação criam
no setor privado a sensação de que quando o governo brasileiro precisa de apoio às
suas posições negociadoras o acesso às informações é facilitado, permanecendo
assim a percepção de que o setor empresarial funciona como ‘massa de manobra’
para os negociadores brasileiros.” (2001: 174-175)

Em artigo de 2001, o cientista político Ricardo Caldas expressava a


percepção de que a gestão de que as instâncias governamentais não sabiam como
reagir à proposta norte-americana. Com relação ao MRE, especificamente, ele
avaliava que “a gestão Lampreia foi caracterizada por uma postura essencialmente
obstrucionista em relação a ALCA” e que, ao mesmo tempo, “não estimulou o
aprofundamento do MERCOSUL, inviabilizando qualquer proposta neste sentido
vinda de nossos vizinhos” (2001: 9). Quanto a este último ponto, o analista
destacava que as relações comerciais entre Argentina e Brasil haviam alcançado um
dos níveis mais baixos desde o início do processo de integração. Ademais, repetiam-
se indefinidamente os desentendimentos bilaterais, aumentando a percepção de
uma crise no MERCOSUL. Por outro lado, Caldas via como positivas as declarações
do novo chanceler, Celso Lafer, empossado em janeiro de 2001, que afirmara, em
seu discurso de posse que “o Brasil deveria negociar a ALCA de forma madura e
corajosa, procurando buscar benefícios para o país reconhecendo o interesse
legítimo dos demais países em obter benefícios para si também, pois o comércio
internacional tem de ser um jogo de soma positiva, onde todos ganhem” (Caldas,
2001: 9). Este era um sinal da nova postura, mais ativa e demandante, do governo
brasileiro diante do processo negociador. No entanto, não havia novidades
significativas no plano da institucionalidade do processo de tomada de decisões, que
permanecia concentrada nas mesmas instâncias tradicionais.
A cientista política M. Carvalho (2001: 12) analisava positivamente a intenção
do novo chanceler de “estreitar os laços do Itamaraty com a sociedade e com os
partidos políticos”, compromisso enunciado tanto no discurso de posse como em
312

artigos publicados na imprensa. A autora destacava especialmente a intenção de


revigorar o Conselho Permanente de Empresários, instituição criada pelo então
chanceler Fernando Henrique Cardoso, no início da presidência de Itamar Franco,
em dezembro de 1992, com o objetivo de “assegurar a consonância entre a atuação
do Itamaraty e os interesses empresariais na política de comércio exterior”. Desde a
sua criação até março de 2000, o número de representantes do Conselho
quadruplicou, passando de dezoito para setenta e dois membros, sendo que, destes
membros, sete não eram empresários (cinco governamentais e dois provinham de
partidos políticos da base governista, PSDB e PFL), vinte e cinco eram
representantes de organizações empresariais e trinta e nove representavam
diretamente grandes empresas isoladas ou grupos empresariais. Apesar das
expectativas otimistas expressadas pela autora, dada a ampla representatividade
dos setores incluídos, ela não deixa de destacar as deficiências associadas à
configuração institucional do órgão:

“o Conselho não é um órgão decisório ou consultivo, suas reuniões não são


deliberativas. Por conseguinte, não há um compromisso, por parte dos seus
membros de apresentarem sugestões e da parte da diplomacia de discuti-las. Em
consequência, o Conselho corre o risco de se transformar em um mecanismo formal
de legitimação de decisões tomadas anteriormente. Ademais, a combinação de uma
participação fundada na representação de interesses (as associações de classe)
com uma baseada no peso econômico e/ou regional de determinados grupos
empresariais e empresas dificulta o encaminhamento de propostas gerais do setor.
Quem fala em nome de quem?” (Carvalho, 2001: 13)

De modo semelhante, as principais centrais sindicais brasileiras e argentinas


reivindicavam a inclusão política no processo de integração, ou seja, no processo de
formação das respectivas posições negociadoras nacionais. Os sindicatos brasileiros
tentaram em vão repetir no âmbito da ALCA a experiência vivida nas negociações do
MERCOSUL, quando os governos do MERCOSUL criaram o Fórum Econômico e
Social, pressionados pela insistente demanda das centrais sindicais (principalmente
das brasileiras e, em especial, da CUT) e da Coordenadora de Centrais Sindicais do
Cone Sul. A posição dos sindicatos com relação à integração era alimentada, na
maioria dos setores econômicos, pelo temor a respeito das consequências sociais
do livre comércio com a economia mais desenvolvida do planeta. Entre os setores
sindicais argentinos, o tema da ALCA assumia grande relevo político, diferentemente
do que ocorreu no caso do MERCOSUL, analisado na seção anterior. Foram
organizadas incontáveis manifestações anti-ALCA, os quais se articulavam,
313

principalmente a partir do segundo governo Menem e do início da recessão


econômica, com os ruidosos protestos anti-neoliberalismo e de contestação ao
alinhamento aos EUA.
Essas resistências à integração somavam-se às suas demandas por maior
democratização das políticas públicas e das instituições regionais, sendo que o
produto final era um rechaço ao modo como vinham sendo conduzidas as pré-
negociações da ALCA, sem transparência para a sociedade e com a exclusão dos
setores não-governamentais. Assim como havia o Fórum Empresarial das Américas,
os setores sindicais demandavam a criação de um Fórum Sindical das Américas e
de um Grupo de Trabalho sobre questões trabalhistas:

“Diferentemente do setor privado [empresarial], que considera a ALCA um


instrumento de avanço em direção às reformas orientadas para o mercado, o setor
sindical mostra-se totalmente refratário ao projeto ALCA, tanto no que se refere ao
modo como este é conduzido, como com relação aos seus princípios fundamentais.
Para esse setor, a ALCA faz parte de um processo de integração de cunho
neoliberal que representaria para os trabalhadores das Américas tão-somente a
eliminação de postos de trabalho, redução dos salários e direitos sociais, cerceando
princípios fundamentais da democracia. Além do reconhecimento institucional de um
Fórum Sindical das Américas, à semelhança do Fórum Empresarial, como instância
de discussões e proposições sobre os rumos da integração hemisférica, os
trabalhadores reivindicavam a criação de um Grupo de Trabalho Hemisférico (GTH)
sobre questões trabalhistas.” (H. Santana, 2001)

A demanda de criação de um GT hemisférico sobre questões trabalhistas, no


entanto, foi rechaçada, por oposição principalmente do México, Costa Rica,
Colômbia e Peru. Os EUA demonstravam forte preocupação pela não inclusão das
cláusulas de trabalhistas e tentaram repetidamente inserir essas “cláusulas sociais”,
sob o argumento de que os salários mais baixos e as condições de trabalho, muitas
vezes mais precárias nos países latinoamericanos, desfavoreciam os produtores
norte-americanos. O governo e os setores produtivos daquele país temiam que se
repetisse o fenômeno provocado pela criação da NAFTA, quando houve a migração
de empresas e postos de trabalho dos dois países mais desenvolvidos do bloco para
o México. Os países latinoamericanos, por sua vez, percebiam a estratégia norte-
americana como um subterfúgio para o protecionismo do país mais desenvolvido
das Américas. Como dito, o antagonismo entre EUA e Brasil já havia sido evidente
durante a Reunião Ministerial de Cartagena, pelas divergências quanto ao ritmo, à
estrutura e à abrangência das negociações. O tema das questões trabalhistas
voltaria a aparecer em 1997, na Reunião de Belo Horizonte, além de momentos
posteriores. Como havia ocorrido um impasse em torno da inclusão ou não desta
314

questão no âmbito multilateral da Rodada de Doha em dezembro de 1996, durante o


encontro de Singapura, à pretensão norte-americana resistiram novamente a maior
parte dos países que negociavam a ALCA.
Entre a Reunião Ministerial de março de 1996 e a de maio do ano seguinte, o
antagonismo entre MERCOSUL e EUA acentuou-se e marcou a série de encontros
entre os Vice-Ministros de Comércio, conhecida como “ciclo brasileiro”. Foram três
reuniões, todas em cidades brasileiras: Florianópolis (setembro de 1996), Recife
(fevereiro de 1997) e Rio de Janeiro (abril de 1997).
Como expõe Silva (2009), na primeira das reuniões vice-ministeriais
brasileiras, em Florianópolis, o MERCOSUL adotou uma postura ativa e propôs que
as negociações ocorressem em três etapas, proposta que foi contraditada pelos
EUA: “A primeira procuraria acordos de facilitação de negócios e a segunda
procuraria aprofundar esses acordos, sendo que a negociação de acesso a
mercados ficaria para a terceira etapa” (Silva, 2009: 159). No segundo encontro, a
reunião de Recife, os negociadores brasileiros utilizaram como estratégia para
resistir à aceleração das negociações sustentada pelos EUA o fato de que o
Congresso norte-americano ainda não havia aprovado o fast track (ou via rápida),
instrumento pelo qual o Executivo recebe a delegação congressual prévia que limita
o seu poder de celebrar acordos comerciais. As declarações oficiais do governo,
incluindo as incisivas declarações do então chanceler Lampreia, destacavam que
sem clareza a respeito do mandato negociador do governo Clinton não haveria
ALCA possível. Assim, a Reunião de Recife terminou sem que fosse possível redigir
as regras do processo de negociação, tema que seria retomado na terceira reunião
do ciclo, no Rio de Janeiro. O autor resume as diferentes propostas sobre a mesa de
negociações, neste último encontro preparatório para a Reunião Ministerial de Belo
Horizonte, que viria a ocorrer no mês seguinte. É válido sublinhar a formação daquilo
que a diplomacia brasileira batizou como “consenso condicional”, reflexo do
interesse de países do MERCOSUL, que temiam pelo protecionismo via barreiras
não-tarifárias por parte dos EUA:

“As reuniões prosseguiram no Rio de Janeiro, com a III Reunião de Vice-Ministros do


Comércio Exterior da ALCA, no dia 14 de abril de 1997, na tentativa de definir as
regras básicas para a negociação do acordo. O objetivo da reunião era avaliar as
cinco diferentes propostas apresentadas (Brasil, EUA, Caribe, Canadá, e Chile) e
chegar a um documento geral, que seria assinado em maio, na Reunião de Ministros
de Comércio Exterior, em Belo Horizonte (MG). Na reunião do Rio de Janeiro, o
Chile apresentou uma proposta que previa prazos diferenciados para países ou
315

blocos regionais que não possam assumir os compromissos determinados no âmbito


da ALCA no mesmo período dos demais. Na prática, a proposta do Chile permitia
que um país, de acordo com suas condições e nível de desenvolvimento, reduza
gradualmente, por exemplo, suas tarifas de importação em um prazo determinado.
Essa reunião culminou com a construção do chamado consenso condicional
(expressão cunhada pelo Vice-Chanceler brasileiro, Sebastião do Rego Barros), com
o MERCOSUL impondo condições para um acordo em 1998. Os países do
MERCOSUL afirmaram que não iriam aceitar negociar a redução de tarifas de
importação antes de discutir com os EUA o fim das barreiras não tarifárias aplicadas
pelo país.” (Silva, 2009: 160)

Naquele mesmo momento, isto é, na primeira metade do ano de 1997,


diversas instâncias empresariais brasileiras manifestaram apoio à estratégia ou
metodologia empregada pelo Brasil e acompanhada pelos demais países do
MERCOSUL nos principais encontros do processo negociador. Na pesquisa já citada
de Silva (2009), o autor descreve a atuação política defensiva de uma série de
organizações – como a CNI/Brasil e a CEB, a Associação de Comércio Exterior do
Brasil (AEB) e o transnacional Conselho de Empresários da América Latina (CEAL)
–, de representantes de grandes grupos empresariais ou mesmo de empresas
isoladas. Observe-se que as manifestações selecionadas pelo pesquisador
concentraram-se justamente no período que precedeu a Reunião Ministerial de Belo
Horizonte, momento de intensa mobilização do empresariado brasileiro:

“Já em 19 de fevereiro de 1997, durante reunião na Confederação Nacional da


Indústria (CNI) entre representantes do setor privado e dos Ministérios da Indústria,
do Comércio e do Turismo e Relações Exteriores, ocorreu um consenso entre o
governo brasileiro e o setor privado em usar o chamado ‘custo Brasil’ como moeda
de barganha durante as negociações da formação da ALCA. Tinha como linha de
trabalho pressionar organismos internacionais a financiarem a reforma ou a
construção de obras de infraestrutura como condição para diminuir o cronograma de
redução tarifária. O acesso ao mercado brasileiro constituiria o elemento de troca.”
“Em março de 1997, (...) o presidente da seção brasileira do Conselho de
Empresários da América Latina (CEAL) defendeu (...) posição semelhante à do
governo brasileiro, alegando que a indústria nacional necessitava de tempo para se
preparar para a concorrência e afirmou, ainda, a importância do MERCOSUL nesse
processo.”
“Na mesma época, a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) também
manifestava sua posição concordando com o governo brasileiro. Segundo a AEB, a
ALCA não poderia ser antecipada até que fossem resolvidos os problemas de
acesso ao mercado norte-americano de produtos brasileiros. Também afirmava que
os benefícios para o Brasil com a ALCA seriam pequenos.”
“Em abril de 1997, por iniciativa da CNI, diversos segmentos empresariais foram
consultados para o que chamava de ‘Coalizão Empresarial Brasileira’, composta de
vários setores, da indústria aos transportes, do comércio ao setor automotivo, da
agricultura aos exportadores de suco de laranja. Exigiam, em conformidade com o
governo brasileiro, os princípios do gradualismo e da reciprocidade nas negociações
da ALCA.” (Silva, 2009: 168-169)

Outro exemplo da convergência de interesses defensivos foi a articulação


entre empresários, trabalhadores e agências governamentais, que assinaram
conjuntamente um acordo no âmbito da “Comissão das Micros, Pequenas e Médias
316

Empresas do MERCOSUL”, em reunião ocorrida em outubro de 1997, em


Montevidéu. Pelo acordo, a ALCA não deveria ocorrer antes de 2005, tendo o
documento sido “assinado por representantes do Sindicato das Pequenas e Médias
Indústrias (SIMPI), SEBRAE, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força
Sindical, BNDES e outras entidades” (Silva, 2009: 169).
Tudo isso era politicamente conveniente para a estratégia brasileira nas
negociações. Pouco antes, em maio de 1997, havia ocorrido um dos exemplos mais
claros de instrumentalização das resistências domésticas por parte do governo.
Durante a Reunião de Belo Horizonte, em um momento de especial mobilização dos
setores empresariais e sindicais brasileiros, o governo brasileiro deu vazão às
demandas sindicais, quando o chanceler Lampreia fez distribuir entre os
representantes dos demais governos presentes um documento elaborado pelos
representantes sindicais – o Manifesto dos Trabalhadores e Trabalhadoras das
Américas. O gesto provocou a reação principalmente das delegações que eram
mencionadas no documento não-oficial como aqueles países que obstruíam a
inclusão dos trabalhadores e de sua agenda nas negociações. O Brasil seguia
irredutível nos pontos que mais geravam divergência com os EUA, mas por diversas
vezes o país havia resistido à pretensão norte-americana de incluir questões
trabalhistas e ambientais. As questões que o Brasil mais fazia questão de incluir
eram outras, como o compromisso dos EUA de suspender as barreiras não-
tarifárias, o acesso ao mercado de produtos agrícolas daquele país e a discussão de
outros temas que poderiam dar lugar ao protecionismo norte-americano, como
subsídios à produção e regras antidumping.
Nos EUA, como já se sabia de antemão, a obtenção da autorização
congressual pelo governo não era tarefa fácil e, sem que o presidente Clinton
aprovasse a via rápida ocorria um esvaziamento das negociações, em consequência
da falta de credibilidade das posições ou ofertas do país. Sem o necessário mandato
negociador prévio, por parte dos EUA, os países do MERCOSUL mantiveram
posição comum sobre os temas acima durante as primeiras quatro reuniões
ministeriais. Assim, de 1995 a 1998 buscaram evitar o aumento da abrangência da
ALCA, forçando a exclusão das questões trabalhistas ou ambientais da agenda de
negociações, para que as regras não propiciassem ferramentas para o futuro
protecionismo “social” ou “ecológico” dos países mais desenvolvidos. Por outro lado,
havia a mencionada preocupação do Congresso e do Executivo norte-americanos
317

com os desníveis salariais e normativos na região, o que desequilibrava as


condições de competitividade dos empresários sediados na América do Norte, sendo
que a retórica governamental e empresarial era corroborada pela experiência
recente, quando cerca de dois milhões de postos de trabalho haviam sido atraídos
para o México, um quarto deles deslocados dos EUA e o restante do Canadá. A
oposição dos países do MERCOSUL, unida à oposição doméstica nos países mais
desenvolvidos, de alguma maneira prenunciavam a formação do impasse na
negociação do tema. Isto porque, sem a inclusão das regras trabalhistas nas
negociações oficiais previstas para serem lançadas em abril 1998, ficava muito difícil
para o Executivo dos EUA obter um mandato negociador junto ao Congresso que
fizesse concessões suficientes para os países menos desenvolvidos. Diante deste
quadro, o presidente dos EUA e seus principais gestores governamentais
intensificaram as pressões internas e externas, isto é, sobre o Poder Legislativo e
sobre os países do MERCOSUL, que eram percebidos como empecilhos ao avanço
das negociações. No plano interno, as dificuldades na obtenção da via rápida eram
acentuadas pelos impactos da crise do México, que ampliava as resistências de
inúmeros setores produtivos:

“A crise do México revitalizara a crença na ‘Latin American Inferiority’, ao criar sério


transtorno para os EUA, seu sócio no NAFTA, logo após a Cúpula de Miami, em
dezembro de 1994, e concorrera para aumentar a resistência à renovação do fast
track. Ademais, a falta de um consenso sobre a cláusula social, padrões de trabalho
e proteção ao meio-ambiente, que os EUA sempre utilizaram como barreiras não-
comerciais para bloquear o acesso ao seu mercado de produtos de outros países,
dificultava também a outorga desse mandato pelo Congresso. E Clinton sabia que
tais exigências, rejeitadas durante as negociações da Rodada Uruguai e renovadas
no Congresso norte-americano como requisitos para a celebração de acordos
comerciais, ele não teria condições de avançar os entendimentos com os países da
América Latina, pois o Brasil opusera-se à discussão desses temas na reunião de
Cartagena e, da mesma forma que outros países da América Latina, não podia
aceitar acordos com a imposição de normas que viessem a tirar a competitividade de
seus produtos ou pudessem servir como barreiras para os impedir de entrar no
mercado norte-americano, como habitualmente acontecia.” (Bandeira, 2003: 514)

Durante o período de 1996 a 1998, aumentaram também as ofensivas do


governo norte-americano. De um lado, os EUA procuravam atrair os outros países
do bloco para a sua esfera de influência, como o Chile e a Argentina.
Evidentemente, a estratégia norte-americana acentuava as divergências com o
governo brasileiro, assim como os gestos convergentes de diferentes países
sulamericanos, em especial os países-membros do MERCOSUL. A ação era
complementada, ao mesmo tempo, por meio de críticas sistemáticas à estratégia do
318

MERCOSUL, ou mais especificamente, à estratégia liderada pelo Brasil. No início de


1996, por exemplo, pouco antes da Reunião Ministerial de Cartagena, foram de
particular repercussão as declarações da então vice-ministra de Comércio dos EUA,
Charlene Barshefsky, então segunda pessoa na hierarquia da USTR, uma espécie
de vice-ministra de Comércio, que se referiu aos países do bloco dizendo que as
negociações da ALCA eram prejudicadas pela “relápsia substantiva”, “má-fé tática” e
“irresponsabilidade processual”. No início de 1997, pouco antes da Reunião
Ministerial de Belo Horizonte, a mesma funcionária, já então promovida a chefe da
agência, chamou o MERCOSUL de "mercadinho". Logo depois, Stuart Eizenstat,
subsecretário para Assuntos Econômicos do Departamento de Estado, aproveitou
um encontro internacional na Suíça e exigiu do Brasil uma abertura comercial mais
acelerada. Tornava-se clara a estratégia norte-americana de forçar transformações
no âmbito do MERCOSUL, fosse pela atração dos países menores ou pela mudança
nas posições brasileiras.
Enquanto isso, o governo argentino tinha uma oscilação pendular entre o
alinhamento aos países do MERCOSUL, ainda que o bloco começasse a dar sinais
de crise, e aos EUA, que procurava obter a autorização congressual enquanto
tentava impedir o desenvolvimento do MERCOSUL. Ainda em 1996, o MERCOSUL
anunciava as negociações com os países do Pacto Andino e a adesão do Chile e da
Bolívia como países-associados, dando sinais de ampliação do bloco. Porém, eram
reiteradas as críticas do Brasil manifestando insatisfação com as políticas argentinas
em temas comerciais, com a aplicação de medidas protecionistas pelo governo
argentino cujo modelo econômico dava sinais de crise, ou em temas relativos aos
EUA. Neste último caso, as críticas brasileiras multiplicaram-se quando o governo
Clinton reconheceu a Argentina como aliado extra-OTAN (major non-NATO ally),
também em 1996.
As divergências entre o Brasil e a Argentina voltariam a crescer no ano de
1999, quando, após a desvalorização do Real sem aviso prévio, a pressão dos
setores menos competitivos argentinos obteve, como resposta do governo argentino,
a adoção de uma série de medidas protecionistas contra os produtos brasileiros, em
especial nos setores têxtil, siderúrgico, de avícolas, calçados e celulose/papel.
Naquele contexto de fim de governo, o presidente Menem, com a economia em crise
e com sérias dificuldades para eleger o sucessor nas eleições de outubro, insistiu
junto ao presidente Clinton, sem consultar o Congresso argentino, no acesso à
319

condição de país-membro da OTAN. O gesto, também sem aviso prévio ao país


parceiro, indicava as condições precárias da dimensão política do MERCOSUL e foi
recebido com duras críticas do governo brasileiro, que chegou a apresentar um
protesto formal contra o país vizinho. A chancelaria brasileira enunciou que a
Argentina deveria optar entre a OTAN e o MERCOSUL.
Foi naquele mesmo contexto que Menem ameaçou dolarizar unilateralmente
a economia argentina, o que gerou nova reação do governo brasileiro. O porta-voz
brasileiro chegou a anunciar que “não seria conveniente” o presidente argentino
visitar o Brasil naquele momento, apesar do encontro agendado previamente. O
Brasil também apelou ao sistema de solução de controvérsias do bloco contra as
medidas protecionistas argentinas, sendo que as divergências bilaterais acabaram
dando origem ao estabelecimento de uma nova pauta de negociações internas ao
MERCOSUL. Por exemplo, foram firmados alguns compromissos, como a criação de
um Grupo de Trabalho sobre Coordenação de Políticas Macroeconômicas, a
exclusão do MERCOSUL das medidas de proteção comercial pelo governo
argentino e a abertura de negociações sobre harmonização setorial. Entre outros
temas, os países aceitaram discutir questões sensíveis como instituições
supranacionais e moeda única regionais.
De volta à trajetória das negociações da ALCA, a Terceira Reunião Ministerial
(Belo Horizonte, maio de 1997) e a Quarta (San José, março de 1998) foram cruciais
para a definição da fase oficial de negociações, lançada na Segunda Cúpula das
Américas (Santiago, abril de 1998). Em Belo Horizonte, os países liderados pelo
Brasil obtiveram vitória contra os EUA: apesar do desejo de Washington de iniciar a
derrubada das tarifas no âmbito da ALCA já no ano seguinte (1998), esses países
conseguiram mais tempo para negociar. Firmou-se o compromisso de que a
discussão dos termos do acordo seria realizada até 2002, para que, em 2003,
começassem as discussões sobre o formato definitivo do bloco. O prazo para o
início efetivo do funcionamento da área permaneceu sendo o ano de 2005. Para
irritação dos representantes do MERCOSUL, os EUA insistiram na tentativa de
modificar a estrutura das negociações, sem conseguir convencer os demais países a
ignorar os blocos já existentes ou em construção.
No ínterim que separava as Reuniões de Belo Horizonte e San José, o
governo Clinton ainda tentou promover as negociações, aumentando os contatos
diplomáticos com diversos países da América do Sul. Em outubro de 1997, o
320

presidente norte-americano viajou pela região, com o objetivo declarado de tentar


forçar o estabelecimento da ALCA até o ano de 2000, o que faria coincidir o termo
das negociações com o fim de seu mandato presidencial. Cabe adicionar que o
presidente dos EUA queria aproveitar o momentum de recuperação da produtividade
dos EUA. Em visita ao Brasil, o presidente Clinton foi recebido pelo primeiro
mandatário local e eles firmaram um acordo: pela primeira vez, o presidente dos
EUA fez um pronunciamento em apoio à manutenção do MERCOSUL, enquanto o
presidente do Brasil concordou em iniciar as negociações oficiais da ALCA no ano
seguinte, na Segunda Cúpula das Américas (Santiago).
A Quarta Reunião de Ministros de Comércio, em março de 1998, foi realizada
sob forte pressão política, uma vez que a Cúpula de Santiago estava agendada para
o mês seguinte e deveria servir para o lançamento oficial das negociações do bloco.
Essa pressão traduzia-se na busca, por parte dos representantes governamentais
em nível ministerial, de definição das regras que estruturariam as negociações em
seu estágio decisivo. Assim, em um processo caracterizado pela centralidade dos
governos e pela falta de transparência dos avanços oficiais, foram definidas algumas
questões cruciais. Em primeiro lugar, as negociações oficiais seriam realmente
lançadas no encontro de Cúpula de abril, dando início a uma “primeira fase” que se
estenderia até março de 2001, data prevista para a Terceira Cúpula das Américas,
em Quebec. Em segundo lugar, foram definidas as Presidências e Vice-Presidências
do processo, sendo que o último período das negociações seria copresidido pelos
antagonistas mais evidentes do processo, isto é, Brasil e EUA136. Em terceiro lugar,
foram definidos os nove Grupos de Negociação (ou Grupos de Trabalho) e os países
responsáveis por presidir cada um deles na primeira fase – para os países do
MERCOSUL, couberam os Grupos de Agricultura (à Argentina) e de Subsídios,

______________________________________________
136
Os períodos estabelecidos e os países correspondentes à Presidência e Vice-Presidência do processo de
negociação foram os seguintes: de 1º de maio de 1998 a 31 de outubro de 1999, Canadá (Presidência) e
Argentina (Vice-Presidência); de 1º de novembro de 1999 a 30 de abril de 2001, Argentina (Presidência) e
Equador (Vice-Presidência); de 1º de novembro de 2002 até o final das negociações, o processo seria
copresidida por Brasil e EUA.
321

antidumping e direitos compensatórios (ao Brasil)137. Finalmente, cabe sublinhar


que, por exigência dos EUA, foram incluídas as discussões sobre questões
ambientais e trabalhistas, mas apenas no âmbito de um Comitê sem poder
deliberativo, como ocorreria, a partir de 2002, com o tema do envolvimento da
sociedade civil.
A definição das regras que marcou o final da fase prévia às negociações
oficiais não descaracterizava o caráter intergovernamental do processo, para
protesto dos setores produtivos e de outras organizações não-governamentais,
articulados nacional ou regionalmente: o lugar da sociedade civil permanecia
subalterno após a definição dessas regras estruturantes, assim como ocorria no
âmbito das formulações nacionais das respectivas posições negociadoras. Apesar
disso, a Declaração Ministerial de 1998 fazia um convite à participação da sociedade
civil, embora ele nunca haja se convertido em instituições que efetivamente
incluíssem os setores produtivos ou outros das sociedades que seriam diretamente
atingidos pela eventual criação da ALCA. Lá em San José, às vésperas da Cúpula
de Santiago, assim declaravam os representantes governamentais seu convite ao
envolvimento das sociedades, em lugar da exclusividade dos governos:

“Reconhecemos e recebemos com satisfação o interesse e as preocupações


expressas pelos diferentes setores da sociedade civil com relação à ALCA. O setor
empresarial e outros setores produtivos, grupos trabalhistas, ambientais e
acadêmicos têm sido particularmente ativos nessa matéria. Incentivamos esses e
outros setores da sociedade civil a que apresentem seus pontos de vista sobre
assuntos comerciais de forma construtiva. Portanto, estabelecemos um comitê de
representantes governamentais, aberto a todos os países participantes, o qual
deverá escolher seu Presidente. O comitê receberá essas contribuições e as
analisará, bem como elevará o conjunto de opiniões à nossa consideração. Nesse
sentido, valorizamos contribuições oferecidas pelo setor empresarial por meio dos
Foros Empresariais das Américas de Denver, Cartagena das Índias, Belo Horizonte
e San José." (Declaração dos Ministros de Comércio do processo da ALCA. San
José, Costa Rica, março 1998)

______________________________________________
137
Os nove grupos criados em San José foram os seguintes: 1) Grupo de Acesso a Mercados (GNAM); 2)
Grupo sobre Agricultura (GNAG); 3) Grupo de Compras Governamentais (GNCG); 4) Grupo sobre Serviços
(GNSV); 5) Grupo sobre Propriedade Intelectual (GNPI); 6) Grupo sobre Subsídios e Antidumping e Medidas
Compensatórias (GNSADC); 7) Grupo sobre Solução de Controvérsias (GNSC); 8) Grupo sobre Políticas de
Competitividade (GNPC); e 9) Grupo de Negociações sobre Investimentos (GNIN).
322

A única instância criada para o máximo que houve no sentido de inclusão da


sociedade civil nas negociações, este Comitê de Representantes Governamentais
Sobre a Participação da Sociedade Civil (SOC) não possuía, evidentemente,
qualquer poder decisório ou capacidade de influência sobre as negociações
governamentais. As negociações oficiais continuariam a ocorrer de portas fechadas.
No âmbito deste Comitê, eram recebidas as manifestações de setores os mais
diversos da sociedade civil e foram organizadas três reuniões temáticas. O SOC
recebia contribuições e propostas dos mais diversos setores da sociedade civil.
Essas manifestações estão disponíveis no site oficial da ALCA, estando organizadas
por temas também bastante variados138. O que se pode observar, porém, é o caráter
precário da participação da sociedade civil. Trata-se de uma grande quantidade de
pequenos documentos, em geral escritos na forma de manifestos críticos ao modo
como era conduzido o processo negociador, por exemplo, quanto à agenda
predominantemente econômico-comercial ou à falta de transparência e de
participação da sociedade civil nas decisões e entendimentos dos países. No âmbito
das “reuniões temáticas”, a análise dos documentos disponíveis aponta para a
precariedade do mecanismo. Foram realizados apenas três encontros, um sobre
cada um dos seguintes temas: Agricultura (São Paulo, em 25 de junho de 2003),
Serviços (Santiago, em 23 de setembro de 2003) e Direitos de Propriedade
Intelectual (Santo Domingo, em 28 de janeiro de 2004). Além de poucos temas,
estas reuniões eram uma espécie de “seminário”, em que cerca de meia dúzia de
pessoas faziam apresentações e elas eram debatidas pelos presentes, também em
pequeno número e com pouquíssima representatividade setorial ou de origem
nacional.

______________________________________________
138
As contribuições estão classificadas nos temas seguintes: Agricultura, Sociedade Civil, Política de
Concorrência, Solução de Controvérsias, Comércio Eletrônico, Compras Governamentais, Assuntos
Institucionais, Direitos de Propriedade Intelectual, Investimento, Acesso a Mercados, Serviços, Economias
Menores, e Subsídios/Antidumping/Direitos Compensatórios. Trata-se de uma série de manifestações que, por
sua diversidade temática e de gênero textual mesmo, desafiam qualquer tentativa de classificação ou análise
mais detida. O importante para o argumento apresentado aqui é, por um lado, a falta de coerência ou
sistematicidade das “contribuições da Sociedade Civil”, e, por outro lado, ainda mais relevante, a falta de
controle social sobre a sua alegada incorporação nas discussões oficiais.
323

Pois bem, a Segunda Cúpula das Américas foi realizada no Chile e efetivou o
lançamento formal das negociações. Entretanto, a reunião de cúpula foi esvaziada
pelas dificuldades do governo dos EUA de conseguir o mandato negociador
congressual. Sem apoio no Congresso de seu país, o presidente Bill Clinton não
conseguiu apressar a integração hemisférica, como pretendia (o prazo de 2005 foi
mantido). As negociações oficiais iniciaram sem o mesmo fôlego do momento do
lançamento da proposta, quase quatro anos antes. É curioso observar que, no
mesmo mês em que a Cúpula de Santiago ocorreu, os países do MERCOSUL
assinaram um Acordo Quadro com a Comunidade Andina de Nações (CAN) para a
criação de uma área de livre comércio em 2000. Apesar da crise do bloco, seus
membros sinalizavam a intenção de ampliar a integração em direção à América do
Sul. Neste processo, como se sabe, o Brasil era o país que mais colocava ênfase na
criação de uma possível ALCSA, tendo partido da diplomacia presidencial brasileira
a iniciativa de realizar a Primeira Cúpula dos Presidentes da América do Sul, em
setembro de 2000.
Após a Cúpula de Santiago, foram retomadas as Reuniões Ministeriais e as
de Vice-Ministros de Comércio, que preparariam os entendimentos até a Cúpula
Presidencial seguinte, programada para ocorrer em Quebec no início de 2001. A
Quinta Reunião Ministerial (Toronto, novembro de 1999) e a Sexta Reunião (Buenos
Aires, abril de 2001) foram marcadas pelo aumento das pressões de movimentos
organizados e de cidadãos, locais ou estrangeiros, que passaram a realizar
protestos de grande repercussão durante os encontros oficiais. Os eventos de
Buenos Aires foram particularmente violentos, uma vez que ocorriam num momento
de aumento dos conflitos sociais e políticos naquele país, considerando que a
Reunião ocorreu no ano crítico de 2001. Os principais resultados da Reunião de
Toronto foram a solicitação formal dos ministros para que os GTs iniciassem as
discussões sobre as modalidades e procedimentos de negociação e a aprovação de
uma série de medidas de facilitação de negócios, sobretudo em torno de
procedimentos aduaneiros e de maior transparência das políticas comerciais.
Durante o ano de 2000, acentuaram-se as diferenças entre o Brasil e os EUA,
que não se resumiam à temática da integração regional, pois a agenda contenciosa
incluía outros temas sensíveis, como por exemplo, o Plano Colômbia, anunciado
definitivamente no final de agosto e que contava com o apoio da Argentina e de
outros países sulamericanos. No campo da ALCA, vale mencionar que, após troca
324

de visitas oficiais, ficava claro que as divergências bilaterais dificilmente seriam


superadas. Em março de 2000, o ministro Lampreia visitou Washington, onde se
encontrou com a secretária de Estado, Madeleine Albright, com o secretário de
Comércio, William Dale, e com a chefe da USTR, Charlene Barschefsky. Em agosto,
foi a vez da secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, desembarcar no
Brasil para discutir a ALCA. O chanceler brasileiro comunicou publicamente que o
país só assinaria o acordo do bloco em 2005, como previsto, se os EUA aceitarem
rever pelo menos dez pontos da política alfandegária. Em setembro de 2000, onze
presidentes sul-americanos desembarcam em Brasília para a mencionada Cúpula da
América do Sul, quando os participantes da reunião discutiram as suas posições
sobre a ALCA e declararam que unidos tenham melhores condições de enfrentar o
poder dos EUA na negociação do bloco. Em dezembro de 2000, durante a Reunião
de Cúpula do MRECOSUL, o presidente FHC entrou publicamente na discussão
sobre a ALCA e condenou o protecionismo dos EUA, afirmando que o Brasil
concordaria com a implantação da área, desde que os americanos aceitassem
efetivamente remover os obstáculos para a entrada de produtos dos demais países
do hemisfério.
Naquele contexto, as maiores resistências à ALCA provinham do Brasil, que
pressionavam pela manutenção do prazo original estipulado em 1994, enquanto os
EUA buscavam o apoio de outros países, como o Chile e a própria Argentina, para
efetivar uma mudança no sentido da redução do prazo para as negociações, de
2005 para 2003. O novo chefe do USTR norte-americano, Robert Zoellick, nomeado
pelo presidente George W. Bush, chegou a declarar que um dos principais objetivos
na estratégia comercial dos EUA era conformar uma área de livre comércio
hemisférica, por meio da ALCA e de acordos que estavam em negociação, como era
o caso do Chile, país-associado ao MERCOSUL desde 1996.
Também entre o final de 2000 e abril de 2001, quando seria realizada a VI
Reunião Ministerial de Buenos Aires, circulou entre os países a proposta chilena de
negociar até o ano de 2003, deixando o ano de 2004 para a ratificação do acordo
pelos parlamentos nacionais dos 34 países. A proposta chilena visava a garantir que
a ALCA entrasse em vigor no ano de 2005. O governo argentino chegou a apoiar a
proposta chilena, o que gerou reações negativas do governo brasileiro. Por meio de
gestões da diplomacia brasileira junto à chancelaria do Chile, o Brasil logrou que a
proposta fosse retirada da mesa de negociações, mantendo o prazo inicial de
325

concluir as negociações em 2005. Naquele momento, no entanto, não estava claro


se a conformação da ALCA ocorreria, devido à importância que tinham os países-
membros do bloco, os quais possuíam mais de 50% do PIB dos países da ALADI.
No mês de março de 2001, às vésperas dos encontros de Buenos Aires e Quebec, o
presidente brasileiro visitou os EUA para tratar de temas bilaterais e regionais, mas
os dois mandatários não entraram em acordo sobre a ALCA: o Brasil mantinha o
desejo de postergar a criação do bloco e os EUA insistiam num acordo rápido.
O MERCOSUL, em particular o governo do Brasil, apesar da difícil situação
econômica dos últimos anos do século XX e do início de século, prosseguia com o
objetivo de ampliar os acordos comerciais com os demais países da América do Sul.
Significativamente, três dias depois do encontro com Bush, FHC encontrou-se com o
presidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciando conjuntamente os acordos
obtidos, sendo os principais no campo da integração: a adesão da Venezuela como
membro-pleno do MERCOSUL, o compromisso de acelerar as negociações do
Acordo MERCOSUL-CAN e, finalmente, no que diz respeito à ALCA, o acordo de
resistir à pretensão de alguns países de antecipar o fim das negociações e a
vigência da área hemisférica. No mês de junho de 2001, durante a Cúpula que
comemorou os dez anos do bloco, os representantes dos quatro países-membros
adotaram uma postura mais ativa, ao aprovar a decisão de reiniciar as negociações
4+1 com os EUA, nos termos do acordo de 1991.
Na Reunião Ministerial de Buenos Aires, as posições mais extremas quanto
ao prazo cederam e ficou estabelecido que as negociações não extrapolassem o
primeiro dia de 2005, para que a ALCA pudesse entrar em vigor em 31 de dezembro
de 2005. Foram estabelecidos também cronogramas e balizas institucionais para as
negociações no âmbito dos diversos GTs. No entanto, a reunião terminou cheia de
dúvidas. Do lado de fora do encontro, os protestos violentos davam indicativos aos
líderes políticos que não seria fácil sustentar publicamente um eventual acordo.
Devido às fortes pressões públicas, os representantes ministeriais decidiram tornar
pública uma minuta do Acordo ALCA, nas quatro línguas oficiais, depois da Cúpula
de Quebec.
Pouco antes do encontro, houve desencontros entre os governos da
Argentina e do Brasil. O ministro Cavallo declarou publicamente que a preferência
argentina era por um acordo com a NAFTA ou no âmbito da ALCA, enquanto o
MERCOSUL deveria abrir mão da TEC e ser reduzido a uma área de livre comércio.
326

O fato interrompia um curto período de maior convergência entre os dois governos,


que corresponde ao primeiro ano do governo De la Rúa e penúltimo do governo
FHC. Conforme resumiu Javier Vadell (2006):

“A posição do governo argentino da Aliança era a de respeitar os compromissos do


Estado com o Mercosul, e negociar a incorporação à ALCA como o bloco
regional em conjunto. As divergências com o Brasil se superariam nos primeiros
anos do mandato De la Rúa através dos acordos de coordenação
macroeconômica, referenciados nas estatísticas harmonizadas, assinados no
encontro do Mercosul realizado na cidade de Florianópolis em dezembro de 2000.
Entretanto, em fevereiro de 2001, com o retorno do Ministro Domingo Cavallo ao
Ministério da Economia, as relações entre Brasil e Argentina deteriorar-se-iam de
maneira profunda. O ex-Ministro de Menem era uma pessoa mais próxima
dos EUA, com posturas pró-ALCA e a favor de um acordo bilateral com a potência
do Norte.”

Perguntado sobre as declarações do ministro argentino, o presidente


brasileiro demonstrou irritação e disse que o presidente De la Rúa havia lhe
garantido que o MERCOSUL negociaria em bloco. O mal-estar foi resolvido pelas
declarações oficiais do chanceler Giavarini, que ratificou a posição oficial do
governo, embora todos soubessem que De la Rúa já havia perdido a autoridade de
fato. O discurso de FHC na abertura do evento foi bastante crítico ao
encaminhamento das negociações até aquele momento, marcando também uma
postura mais ativa e demandante que já vinha sendo seguida pelo Brasil também na
Rodada de Doha e nas negociações com os países europeus. O presidente tratou
da questão da ALCA nos seguintes termos, apresentando claramente uma série de
condições para a adesão brasileira, que se apresentava como líder de uma
reivindicação coletiva dos países menos desenvolvidos:

“Assim concebemos no Brasil a possibilidade de uma ALCA. Assim temos realizado,


com êxito, a construção do MERCOSUL, que para o Brasil é uma prioridade
absoluta, uma conquista que veio para ficar, e que não deixará de existir pela
participação em esquemas de integração de maior abrangência geográfica. A ALCA
será bem vinda se sua criação for um passo para dar acesso aos mercados mais
dinâmicos. Se efetivamente for o caminho para regras compartilhadas sobre o
antidumping. Se reduzir as barreiras não tarifárias; se evitar a distorção protecionista
das boas regras sanitárias; se proteger a propriedade intelectual, promover, ao
mesmo tempo, a capacidade tecnológica de nossos povos.”

O discurso do presidente brasileiro na abertura do evento marcou uma


guinada em direção à maior assertividade nas negociações. Particularmente com
relação à questão do acesso aos mercados agrícolas internacionais, a nova
realidade contava com o fracasso neste sentido, tanto na OMC, após os eventos de
Seattle (2000), como nas negociações diretas entre o MERCOSUL e a União
327

Europeia. O que se percebia era que os países mais desenvolvidos, porém menos
competitivos neste setor, não demonstravam estar dispostos a abrir mão dos
incentivos à produção ou das restrições às importações que prejudicavam os
produtores dos países menos desenvolvidos, porém mais competitivos na
agricultura. Neste contexto, o Brasil passou a apresentar-se como um demandante,
em vez de manter-se na defensiva diante das pretensões daqueles países. Para
Albuquerque, modificava-se a mensagem enviada pelo governo brasileiro, por meio
do discurso presidencial em Quebec:

“Com isso, a diplomacia foi confrontada com a opção de participar das negociações
da ALCA em busca de maximizar os ganhos e minimizar concessões, e não apenas
retardar o mais possível as negociações substantivas. Com isso, a velha mensagem
ao empresariado e aos líderes de opinião ‘não estamos preparados para competir
com a economia americana. Com a ALCA, nossa indústria será totalmente
desmantelada. Portanto, vamos cerrar fileiras para evitar qualquer acordo comercial
com os Estados Unidos’, foi substituída por uma nova: ‘não estamos preparados
para competir na economia americana. Com a ALCA vamos ter de competir mais
abertamente. Portanto, vamos preparar-nos para aumentar nossa competitividade’.”
(Albuquerque, 2006: 512)

A posição da Argentina durante o encontro de Quebec foi consistente com a


do Brasil. Em todo o período anterior, desde a proposta até 2001, isto é, desde a
fase de pré-negociações até o início do quarto ano de negociações, em Quebec, a
Argentina havia mantido uma posição não coincidente, na medida em que amplos
setores do governo eram mais favoráveis à integração com os EUA, pela via bilateral
ou pela adesão à NAFTA, hipótese que sempre foi descartada pelo governo
brasileiro, o qual desde o início do processo sustentou a estratégia de negociar em
bloco, fosse pela ALCA ou pelo formato 4+1 (MERCOSUL-EUA). Entre os fatores
que explicam a diferença, no caso argentino, estão os listados por Raúl Bernal-Meza
e Silvia Quintanar (2001), a seguir, em conformidade com o que vem sendo dito até
aqui:

“O governo do presidente Menem nunca descartou por completo as possibilidades


de conseguir um acordo bilateral com os Estados Unidos ou de adiantar as
negociações sobre a ALCA. Estas dúvidas derivavam de três situações: em primeiro
lugar, as posições no interior do governo, entre aqueles que preferiam uma
aproximação aos Estados Unidos e à ALCA, sobrepondo as relações com o Brasil
(“comunidade epistêmica”, Cavallo, Di Tella) e aqueles que queriam manter a
prioridade do eixo sul-americano (níveis intermediários de Economia e da
Chancelaria, assim como também, em parte, o próprio Menem). Em segundo lugar,
porque alguns setores, tanto do governo como da sociedade (grupos econômico-
financeiros), consideravam que a tarifa externa comum era um impedimento para a
tomada de decisões que melhorassem a competitividade da economia argentina. Em
terceiro lugar, porque a posição dos setores que dominavam a estrutura de poder
econômico na Argentina (setor financeiro e grupos empresariais com
328

monopólios) eram claramente favoráveis aos norte-americanos e mantinham


estreitos vínculos transnacionais.” (Bernal-Meza e Quintanar, 2001: 153-154)

De qualquer modo, o ano de 2001 foi crucial na trajetória histórica da


Argentina. Em março, logo após a crise financeira na Turquia, que abalou os
mercados emergentes como vinha ocorrendo nos anos anteriores, o ministro da
Economia José Luis Machinea renunciou, em meio a discussões públicas sobre a
necessidade de novo aperto fiscal. Em seguida, assumiu um economista ortodoxo,
Ricardo López Murphy, notório defensor das políticas de ajuste estrutural, a quem
coube o anúncio do pacote fiscal – quatro dias depois, Murphy também renunciaria
ao cargo, motivado pela impopularidade do plano e pelas demissões voluntárias de
outros membros da equipe econômica. Quem foi designado para o cargo foi o antigo
ministro de Menem, Domingo Cavallo, candidato peronista derrotado nas eleições
presidenciais de 1999. Pelas vias transversas das articulações das elites políticas, a
nomeação de Cavallo, que ademais recebeu poderes extraordinários do Congresso
para ativar a política de “déficit zero” e tentar salvar o desprestigiado governo radical,
significava um atestado de conversão política do presidente De la Rúa, que durante
as campanhas havia prometido romper com o estilo menemista. Os setores
organizados da sociedade argentina e as manifestações da multidão não estavam
dispostos a suportar mais um policy switch, em especial naquele contexto
econômico e social tão crítico.
A Argentina, que durante grande parte da década de 90 havia sido
considerada um exemplo de adoção do modelo neoliberal, não conseguia mais
sustentar um dos pilares de seu modelo, a convertibilidade adotada por lei. Os
rumores de que a moeda seria desvalorizada, como havia ocorrido em tantos outros
países, como no Brasil dois anos antes, e de que o governo decretaria a moratória
da dívida, elevaram o risco-país, que ultrapassou os mil pontos em março de 2001,
beirou os dois mil em outubro (o maior índice do mundo naquele momento), e não
deixou de aumentar até maio de 2002, quando alcançou 4.900 pontos. Neste
ínterim, veio o estopim da crise. No princípio de dezembro, o FMI, àquela altura a
única fonte de financiamento externo do país, anunciou que não desembolsaria a
parcela prevista pelo acordo de “blindagem” mencionado anteriormente. Diante
disso, o ministro Cavallo decretou a mais que impopular medida conhecida como
corralito, limitação dos saques de depósitos, medida que visava a conter a corrida
bancária e a crise de confiança no próprio sistema financeiro como um todo.
329

Cercado por todos os lados, o governo argentino anunciou uma proposta de


orçamento anual que incluía, entre outras medidas, um corte de 15% nos gastos
públicos com o objetivo de tentar facilitar um acordo com o FMI. O aumento da
reação popular maciça em todo o país fomentou a instabilidade do presidente
Fernando De La Rúa, que decretou Estado de Sítio, mas, em vez de controlar a
situação, os protestos e saqueos não cessaram, por todo o país. As autoridades
policiais reprimiam duramente qualquer manifestação, o que resultou na morte de
pelo menos 29 cidadãos argentinos, notícia que tornou insustentável a continuidade
do governo De la Rúa, que renunciou em 20 de dezembro de 2001:

“Com a renúncia do presidente – e a subsequente sucessão de quatro fugazes


presidentes interinos e o vazio político-institucional produzido em um contexto de
profunda instabilidade econômica, fim da ‘convertibilidade’, cessação de
pagamentos e fuga de capitais – teve início a etapa mais aguda da crise argentina.
Em janeiro de 2002, a ‘convertibilidade’ foi oficialmente abandonada. Seguiu-se uma
profunda desvalorização do peso e uma crise generalizada do setor bancário. Ao
final desse ano, a economia havia se contraído 20% em relação ao princípio da
recessão, em 1998.” (Epsteyn e Jatobá, 2007: 41)

Mesmo que não se explore exaustivamente as razões da maior crise da


história do país, é possível indicar algumas de suas causas objetivas e seus
impactos sobre a trajetória política argentina. A crise produziu consequências
profundas sobre a arena política doméstica e sobre a política externa, provocando
uma ruptura com o modelo econômico da década neoliberal e com a política de
alinhamento aos EUA. É interessante notar que a contestação política e social que
deu origem à crise institucional teve raízes econômicas – em especial, nos mais de
três anos de recessão que a precederam, assim como no desemprego recorde de
mais de 20% e no aumento extremo da pobreza e da indigência – mas ela não foi
um fenômeno espontâneo ou conjuntural, nem mesmo transitório. As manifestações
populares continuaram, ou seja, não chegou a ocorrer um retrocesso no sentido de
uma desmobilização social. No plano partidário, as alas mais à esquerda do
peronismo ganharam espaço durante o governo Duhalde e se consolidaram no
poder durante os dois governos seguintes, de Nestor Kirchner e Cristina Kirchner.
Estes últimos representaram ainda uma ruptura em direção a políticas
neodesenvolvimentistas, no campo econômico, e à prioridade das políticas
regionais, no campo da política externa.
O duplo rechaço ao neoliberalismo e à aliança com os EUA correspondeu à
ascensão de políticas com impacto direto sobre a posição argentina com relação à
330

ALCA e ao MERCOSUL, como se percebe pelas decisões postas em prática a partir


de 2003. De acordo com Javier Vadell (2006: 204), o ministro da Economia dos
governos Duhalde e Kirchner, Roberto Lavagna, “sempre esteve ligado aos setores
produtivos dos pequenos e médios industriais [e] essa virada ‘nacionalista’
econômica teve efeitos na política regional”. A respeito da integração regional, “a
visão de Duhalde/Kirchner em relação ao MERCOSUL se afasta dos postulados do
‘regionalismo aberto’, que dependia mais dos agentes econômicos do mercado”. A
realidade dos países da região sulamericana, naquele ano de 2001 em que a crise
argentina explodiu, era bastante delicada para que os países aprofundassem as
negociações da ALCA. A crise da agenda neoliberal tinha expressão na queda dos
índices de popularidade dos governos que a tinham adotado, quando não na própria
queda dos presidentes eleitos, como ocorreu na própria Argentina. Os eventos
violentos da Reunião Ministerial de Buenos Aires, em março, repetiram-se na Cúpula
das Américas de Quebec, no mês seguinte. O encontro foi marcado por protestos
que reuniram mais de 30.000 pessoas na cidade canadense. As pressões da
sociedade civil apontavam, entre outros temas, para a questão da falta de
transparência de todo o processo. Conforme ficou acertado durante o encontro
ministerial na capital argentina, em Quebec foi publicada uma primeira minuta do
Acordo da ALCA, um extenso documento sobre a criação do bloco, com cerca de
900 páginas e mais de 800 pontos sobre os quais nenhum dos países envolvidos
estava de acordo. Foi neste contexto de crise da agenda neoliberal que ocorreu um
processo único e indicativo da notável mobilização popular contra o prosseguimento
das negociações da ALCA, no Brasil. Ao mesmo tempo, a reação do governo
também demonstra as dificuldades de converter a organização dos movimentos
sociais em resultados concretos, em termos de inclusão das demandas nas posições
oficiais do Brasil. Entre os anos de 2001 e 2002, um conjunto de entidades da
sociedade civil organizou e realizou o “Plebiscito Nacional sobre a ALCA”139. Entre

______________________________________________
139
A realização desse Plebiscito não-oficial tinha como precedente o “Plebiscito Nacional sobre a Dívida
Externa”, ocorrido em setembro de 2000. Neste caso, a iniciativa era coordenada principalmente por
organizações da Igreja Católica e foi implementada em 60 países, com o objetivo de perseguir o cancelamento
da dívida externa dos países menos desenvolvidos do planeta. Na ocasião, foram recolhidos 6 milhões de
votos, sendo que 92% dos participantes votaram pela suspensão da dívida desses países.
331

as organizações envolvidas na promoção da campanha, destacavam-se entidades


religiosas – como a CNBB e algumas Pastorais da Igreja Católica, o Conselho
Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC) –, entidades sindicais, reunidas principalmente
em torno da CUT, e outras organizações da sociedade civil, como a União Nacional
dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), assim
como partidos de esquerda, como o PSTU e alguns setores do PT140. No total, mais
de 100 entidades envolveram-se na organização da consulta popular.
A decisão de realizar o Plebiscito não-oficial sobre a ALCA foi tomada na
Plenária Nacional da Campanha Jubileu Sul-Brasil, realizada em São Paulo entre os
dias 19 e 21 de novembro de 2001. A campanha contra a ALCA durou quase um
ano e a consulta popular foi feita entre os dias 1º e 7 de setembro de 2002. Os
números do Plebiscito demonstram a dimensão da mobilização. Foram distribuídas
mais de 40 mil urnas e o processo contou com o trabalho voluntário de mais de 150
mil pessoas; do total de 5550 municípios brasileiros, 3894 deles possuíam locais de
votação, que foram distribuídos em igrejas, sindicatos, universidades, escolas, entre
outros locais de ampla circulação pública. Por fim, foram recolhidos os votos de mais
de 10 milhões de pessoas, que responderam a três perguntas: 1) o governo
brasileiro deve assinar o tratado da Alca? (98,33% optaram pela resposta “não”); 2)
o governo brasileiro deve continuar participando das negociações da Alca? (95,94%
responderam “não”); e 3) o governo brasileiro deve entregar uma parte do nosso
território - a Base de Alcântara - para o controle militar dos Estados Unidos? (98,59%
responderam “não”).
Mesmo antes do início da campanha pelos movimentos sociais, o governo já
se pronunciava contra a mesma. O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso,
curiosamente na mesma ocasião em que proferira o mencionado discurso na
abertura da Cúpula de Quebec, em abril de 2001, havia rejeitado a ideia de um

______________________________________________
140
Após envolver-se na organização do Plebiscito, a posição oficial do PT, emitida em agosto de 2002, portanto
durante a campanha presidencial da qual sairia vitorioso o seu candidato Lula, foi contrária ao mesmo. O
Plebiscito terminou por incluir uma questão sobre a Base de Alcântara, como se verá a seguir, no corpo do
texto. De acordo com uma nota oficial emitida pelo PT, a inclusão desta pergunta justificaria a mudança de
posição, embora o partido tenha reforçado que era contrário à assinatura do acordo da ALCA, nos termos em
que estavam sendo discutidos até então. A saída do PT gerou uma série de pronunciamentos críticos,
sobretudo de outros partidos de esquerda e de representantes da Igreja Católica.
332

plebiscito. Logo após dizer que as milhares de pessoas que protestavam nas ruas
da cidade canadense e no restante do continente mereciam ser ouvidas, o
presidente criticou a iniciativa dos movimentos sociais brasileiros, dizendo que se
tratava de uma prerrogativa do Poder Executivo convocá-lo, a qual deveria ser
submetida ao Congresso Nacional. No entanto, ele adicionou que o governo não iria
tomar qualquer iniciativa neste sentido, justificando a recusa com a declaração de
que “se você for submeter em plebiscito decisões do Executivo, você não faz
nenhum acordo – não só o da ALCA”. Um ano e meio depois, em plena campanha
presidencial para a sua sucessão, quando os organizadores do Plebiscito tentaram
entregar-lhe pessoalmente os resultados do processo, o primeiro mandatário
recusou-se a recebê-los.
Em 1º de novembro de 2002, ocorreu a Sétima Reunião Ministerial da ALCA,
na capital equatoriana de Quito. A partir de então até a data prevista para o término
das negociações, em 1º de janeiro de 2005, Brasil e Estados Unidos passariam a
dividir a presidência das negociações. Entre os principais pontos aprovados pelos
representantes ministeriais, destacavam-se a confirmação do calendário para a troca
das ofertas iniciais de acesso a mercados e a fixação de prazos rígidos para a
conclusão das novas minutas do Acordo. A Declaração Ministerial de Quito também
repetiu os termos contidos desde San José, com relação ao “compromisso com a
transparência” e à “necessidade de uma participação maior e sustentada dos
diversos setores da sociedade civil” (Art. 29). Não havia modificações significativas
quanto à natureza ou à condução política do processo de negociação. O máximo
que se fez foi exortar a organização de seminários regionais e nacionais
relacionados à ALCA e orientar as entidades da ALCA a emitir declarações públicas
ao fim de suas reuniões, neste último caso com objetivo de “assegurar um aumento
substancial da qualidade da informação propiciada” (Art. 33). Uma segunda minuta
do Acordo da ALCA foi publicada no site oficial, mas continuava repleta de colchetes
que indicavam não haver consenso na maior parte dos pontos.
Em agosto de 2002, depois de oito anos em tramitação no Congresso dos
EUA, foi aprovada a via rápida que o presidente anterior não havia conseguido junto
aos parlamentares. O presidente Bush comemorou a aprovação, dizendo que o
projeto aumentava as chances de sucesso nas negociações da ALCA. Mas a
verdade era que a aprovação havia sido muito difícil, sobretudo na Câmara dos
Representantes, onde o projeto de TPA obteve apenas um voto a mais do que o
333

necessário. Além disso, o ponto crucial era que o mandato concedido ao Executivo
rejeitava a revisão dos subsídios agrícolas e da legislação antidumping, e ainda
trazia uma extensa lista de 293 produtos excluídos de qualquer possibilidade de
negociação (mais de 100 deles eram agrícolas). Para os países do MERCOSUL,
sobretudo para a Argentina, o Brasil e o Uruguai, seus principais interesses estavam
fora das possibilidades negociadoras dos EUA. A partir da aprovação da TPA,
reduziram-se tanto os interesses dos governos argentinos de Duhalde e de Kirchner,
como dos governos brasileiros de FHC e Lula. A convergência entre as limitações da
TPA, o rechaço ao neoliberalismo nos países da região e a ascensão de governos
progressistas e políticas neodesenvolvimentistas a partir de 2003, entre outros
fatores, balizaram a trajetória final das negociações da ALCA até o impasse da
Quarta Cúpula das Américas, em novembro de 2005. Tudo isso aproximava a
Argentina e o Brasil, opondo-os às pretensões da política de integração hemisférica
dos EUA.
Em fevereiro de 2003, o governo dos EUA apresentou a sua proposta oficial
sobre a ALCA, em que as concessões tarifárias eram escalonadas de acordo com as
diversas regiões das Américas. Assim, eliminava-se a cláusula da Nação Mais
Favorecida, ao se admitir níveis diferenciados de preferências tarifárias que
prejudicavam o MERCOSUL com as menores concessões dentre todas as
ofertadas. Ao mesmo tempo, o governo Bush aceitava retirar todos os tipos de tarifa
alfandegária aos produtos estrangeiros, mas se negava a negociar o fim das
barreiras não alfandegárias, como subsídios, cotas e restrições, o que atingia alguns
dos principais interesses econômicos tanto de argentinos como de brasileiros. Em
março de 2003, em mensagem ao Congresso dos EUA, o secretário de Comércio,
Robert Zoellick, prometeu que os negociadores norte-americanos usariam "todos os
meios" para obter "vantagem total" na negociação do acordo. Por fim, para acirrar os
ânimos dos setores mais resistentes dentro dos países do MERCOSUL, Zoellick
afirmou que adotaria "todos os meios legais e necessários para conquistar o máximo
de vantagens para os americanos", concluindo que forçariam o que fosse possível.
Os novos presidentes de Argentina e Brasil, Kirchner e Lula, eram críticos
antigos das negociações da ALCA e assumiram seus mandatos com promessas de
valorizar o entorno regional mais próximo, com destaque para o relançamento e
aprofundamento do MERCOSUL. A ascensão destes governos, no entanto, não
significou qualquer transformação nos processos decisórios das posições nacionais
334

na ALCA, que os retirasse da alçada praticamente exclusiva de membros do Poder


Executivo e de setores empresariais com maior proximidade às elites estatais.
Apesar da retórica mais à esquerda e da alegada proximidade com a sociedade civil,
o fato é que tudo permaneceu sendo decidido exclusivamente entre as elites
governamentais e burocráticas, com baixíssimo grau de inclusão política
institucionalizada dos setores produtivos ou de quaisquer outros setores da
sociedade civil. O desfecho final das negociações da ALCA dependeu, na prática, da
dinâmica das interações intergovernamentais. O alinhamento entre a Argentina e o
Brasil consolidou-se a partir dos sucessivos encontros presidenciais, já desde o ano
de 2003. Em outubro, os dois presidentes assinaram o “Consenso de Buenos Aires”,
que, dentre outros pontos, firmavam posição comum nas negociações da ALCA. No
início de 2004, exatamente seis meses depois, Kirchner e Lula voltaram a se
encontrar e assinaram a “Declaração de Copacabana”, que ampliava o compromisso
de aprofundar a cooperação nos diversos foros internacionais.
Neste ínterim, um marco importante das negociações da ALCA foi a Reunião
Ministerial de Miami, ocorrida em novembro de 2003. Naquela oportunidade, os
ministros aceitaram a idéia de uma “ALCA light" ou “ALCA à la carte”. De acordo
com essa abordagem, a ALCA admitiria um acordo em dois níveis: (i) o primeiro
nível se daria por meio de uma espécie de "acordo-base", que será constituído de
um conjunto comum de direitos e obrigações a serem compartilhados por todos os
34 países participantes, nas nove áreas negociadas nos respectivos GTs.
Considerando as dificuldades do processo negociador até aquele momento, a
Reunião de Miami não logrou definir o grau de compromisso que deveria ser
assumido por cada país em cada um dos temas, neste primeiro nível; (ii) o segundo
nível seria constituído por uma série de compromissos adicionais, que também
seriam firmados no âmbito da ALCA, mas que incluiriam acordos bilaterais (entre
países ou entre blocos de países) e acordos plurilaterais que incluíssem parte dos
países do hemisfério. Como dito antes, esta estratégia já vinha sendo posta em
prática pelos EUA, paralelamente às negociações da ALCA, tanto que, dias antes da
Reunião Ministerial de 2003, os EUA anunciaram acordos bilaterais com Colômbia,
Peru, Equador, Bolívia, Panamá e República Dominicana, em uma clara tentativa de
isolar os países do Cone Sul.
Após Miami, as negociações traduziam de forma cada vez mais explícita o
ambiente de divergências e resistências entre os países do hemisfério, em particular
335

com relação às diferenças entre os EUA e os países do MERCOSUL. Em primeiro


lugar, a versão mitigada da ALCA, concebida a partir da constatação da
impossibilidade de avançar no processo tomando como referência a longínqua
ALCA abrangente de quase dez anos antes, significava a implosão de dois
princípios, antes contidos na iniciativa multilateral: o compromisso único (single
undertaking), pelo qual “nada estará negociado enquanto tudo não estiver
negociado”, e a cláusula da Nação Mais Favorecida, pelo qual os países são
obrigados a estender as concessões negociadas com qualquer país ou grupo de
países a todos os demais membros do bloco. Em segundo lugar, era difícil avançar
nas negociações enquanto os EUA se recusassem a incluir os temas sensíveis do
acesso ao seu mercado agrícola, dos subsídios e barreiras não-tarifárias, e da
legislação antidumping, temas que os norte-americanos reservavam à esfera
multilateral da OMC, onde também havia impasse nestes temas, pois os países do
MERCOSUL passaram a agir em sentido semelhante, reservando às negociações
multilaterais temas considerados problemáticos, como serviços, investimentos,
compras governamentais e propriedade intelectual. Os princípios do próprio
processo multilateral foram solapados pela concepção da ALCA em dois níveis, ao
mesmo tempo em que a própria agenda de negociações era também esvaziada pela
exclusão de temas considerados inegociáveis pelos principais países envolvidos.
Os dois capítulos finais das negociações hemisféricas confirmaram o
esgotamento do processo que se estendera por mais de uma década. Primeiro, a
Reunião Ministerial de Puebla, prevista para ocorrer em abril de 2004, foi suspensa,
sem que houvesse qualquer anúncio de outra reunião que a substituísse. Era
evidente que o processo de negociação havia atingido um ponto de estrangulamento
do qual dificilmente se poderia sair, sem que os países aceitassem modificar os
termos do debate. Depois, na Cúpula das Américas de Mar del Plata, em novembro
de 2005, os presidentes dos EUA, da Argentina e do Brasil protagonizariam o
capítulo final do processo, quando as negociações hemisféricas para a criação da
ALCA foram suspensas, sem qualquer previsão para a sua retomada.
336

5 CONCLUSÃO

No presente trabalho, buscou-se explorar os fenômenos da politização e da


luta pela democratização das políticas de integração regional presentes na agenda
internacional da Argentina e do Brasil desde o final dos anos 1980. Como
teoricamente são praticamente incontáveis os fatores que podem influenciar nos
comportamentos externos de qualquer Estado em particular, optou-se por um recorte
empírico bem definido. Assim, procurou-se comparar as dinâmicas políticas e
institucionais que estiveram por trás das políticas de integração regional de
Argentina e Brasil, assim como das próprias estruturas de negociação e instituições
criadas, porém em dois âmbitos específicos, os processos de institucionalização do
MERCOSUL e de negociação para a criação do que seria a ALCA. Com este
propósito em mente, foi estabelecida a meta de analisar comparativamente as
trajetórias dos processos de democratização política e de incorporação do
regionalismo às agendas de política externa desses países. Estas linhas finais não
têm o propósito de repetir as hipóteses teóricas sustentadas nos capítulos iniciais ou
os aspectos centrais das trajetórias históricas reconstruídas nos dois últimos, sob
pena de arriscar a repetição desnecessária de ideias. O objetivo aqui é apresentar
um conjunto de observações que tratem de conjugar as questões formuladas e as
teorias da democracia discutidas às narrativas construídas sobre as políticas de
integração regional na Argentina e no Brasil.
A análise empreendida tentou enfrentar o problema da crescente politização e
da eventual democratização na tomada de decisões em matéria de política externa.
Quem foram os principais responsáveis pelas trajetórias específicas destes países
no campo da integração regional? Ao se analisar quais têm sido os procedimentos
de tomada de decisão mais persistentes, o que se pode sustentar é que, apesar da
politização da política externa gerada pela importância crescente das dinâmicas de
integração regional sobre as realidades domésticas, o aumento do interesse por
parte de atores estatais ou não-estatais tradicionalmente alijados do processo de
tomada de decisões não significou a democratização política desse processo. Em
outros termos, qualquer hipótese que associasse o fenômeno do regionalismo a uma
suposta democratização das decisões de política externa deveria ser analisada com
337

reservas, pois as dinâmicas históricas demonstram que há muito mais continuidade


do que novidade em termos de padrões de tomada de decisão em ambos os países.
A hipótese de que não houve democratização decorrente da criação do
MERCOSUL ou das negociações da ALCA é sustentada pelo confronto dos padrões
decisórios vigentes às expectativas teóricas das perspectivas realistas (ou elitistas),
pluralistas (ou participativas) e deliberativas. Entretanto, cabe sublinhar que nem
todas as vertentes teóricas analisadas chegam a incorporar a questão do processo
decisório em políticas públicas como um critério para aferir a legitimidade
democrática dessas decisões políticas. Aliás, entre as perspectivas selecionadas
existe até mesmo uma vertente cética diante da democratização política,
representada pelos autores do elitismo clássico. Assim, a vertente realista de Vilfrido
Pareto, Gaetano Mosca ou Robert Michels sustenta argumentos céticos, pois eles
consideram que a democratização do acesso ao voto não exclui a dominação da
maioria pela minoria, isto é, não modifica o monopólio decisório das elites.
As outras duas vertentes realistas examinadas mantêm certo elitismo, mas
elas substituem o ceticismo dos antecessores por concepções procedimentais
mínimas de democracia, o que não necessariamente chega a incluir a questão da
tomada de decisões em políticas públicas. Evidentemente, esta última menção
remete à vertente de Joseph Schumpeter. Para ele, tem-se uma democracia quando
há a competição livre e isenta de fraudes pelo governo, consistindo a democracia em
um método para a seleção de governantes. Para a problemática postulada neste
trabalho, a teoria competitiva schumpeteriana possui baixa especificidade analítica,
pois para que haja uma democracia é necessário e suficiente haver um sistema
eleitoral competitivo e um conjunto de liberdades públicas, sem que a questão dos
processos de tomada de decisões em políticas públicas seja incluída em sua teoria
democrática. Pela análise do período, poder-se-ia considerar que se consumou a
democratização política nos países estudados desde que foram restabelecidas as
eleições diretas para as chefias de governo. Porém, a forma como se procurou
problematizar a democratização dos processos decisórios em matéria de política
externa no presente trabalho perderia sentido, pois democratizar seria o equivalente
a uma mera transição de regime, desaparecendo o sentido de democratização
enquanto processo de construção de instituições mais próximas a um ideal de
democracia.
338

Assim, entre as vertentes realistas selecionadas, a única fonte teórica com


capacidade analítica para enfrentar a questão da democratização dos processos
decisórios remete à concepção de democracia plebiscitária de Max Weber. Para o
teórico, o voto majoritário das eleições presidenciais é apenas um dos requisitos da
alegada reinterpretação não-autoritária do carisma, característica da legitimação
democrática, pois é necessário também haver o controle parlamentar da atuação
externa da burocracia. Sem peso político nos casos estudados de integração
regional, os Congressos de Argentina e Brasil permaneceram em seus papéis
secundários, para não dizer subalternos, de meros ratificadores das decisões
tomadas pelo Poder Executivo. A abdicação congressual limitou, assim, qualquer
controle político da burocracia que não fosse o exercido pela Presidência, quando
esta tomou para si a tarefa de decidir ou mesmo a de atuar no campo da integração.
Logo, nos termos da teoria weberiana não ocorreu qualquer transformação no
sentido de uma democratização da política externa nos dois países, pelo menos nos
âmbitos das políticas de integração analisadas no presente trabalho.
Por outro lado, quando se considera que, para aqueles que utilizam a
concepção procedimental mínima, os mecanismos de participação política dos
cidadãos consumam-se com a garantia do sufrágio universal e que as práticas
deliberativas devem se restringir aos círculos decisórios governamentais e
burocráticos, então não pareceria haver falta de democracia nos dois países, no que
se refere, naturalmente, aos processos analisados. Porém, ao se admitir, ad
argumentandum tantum, tal discurso teórico, seria excluída a relação entre o
regionalismo e a democratização dos processos, uma vez que estes o sufrágio direto
e a concentração burocrática das decisões são anteriores às iniciativas regionais
analisadas aqui. Portanto, este raciocínio também reduziria a ideia de
democratização a mera transição de regime, isto é, ao estabelecimento do direito de
eleger os governantes e representantes legislativos.
Para os teóricos pluralistas e da democracia participativa, a transição
democrática não esgota o sentido de democratização, exceto para as versões que
convergem com o procedimentalismo mínimo dos realistas, como nos casos da
teoria econômica, de Anthony Downs, ou da versão mais enxuta da poliarquia, da
fase mais recente de Robert Dahl. Em outros termos, é possível problematizar a
questão dos processos decisórios das políticas públicas, desde que se adote, por
exemplo, a versão mais complexa da poliarquia, a qual inclui entre os seus requisitos
339

a existência de outros mecanismos de expressão de preferência, além das eleições,


e propiciem a contínua responsividade do governo às preferências de seus
cidadãos, ou a versão participativa de Pateman ou Dewey, em que a participação
nas decisões públicas é o critério central que define uma democracia.
De qualquer modo, no entanto, de acordo com estes referenciais teóricos, não
parece haver motivos para se afirmar que as iniciativas de integração regional
analisadas tenham levado a qualquer movimento que se possa denominar como
democratização. Mesmo quando os diversos atores não-estatais buscaram organizar
e reivindicaram a inclusão nos processos de tomada de decisão, revelou-se a baixa
disposição das instâncias estatais e multilaterais no sentido de incluir estes atores
em instituições com poder de decisão. Não se produziu qualquer movimento de
ampliação da representatividade dos grupos antes marginalizados, ou não
representados, nem a formação de arenas para o processamento dos interesses
plurais existentes nas sociedades estudadas. Quando houve a criação de
instituições mais plurais, elas tinham caráter meramente consultivo, isto se aplicando
tanto às adaptações estatais, como ocorreu com maior frequência no caso do Brasil,
como às próprias instituições criadas para incluir os setores econômicos e sociais.
Também pelos caminhos das vertentes de Pateman ou de Dahl, a incorporação do
regionalismo econômico à agenda externa de Argentina e Brasil, desde meados dos
anos 80, não significou a democratização das decisões de política externa,
prevalecendo padrões decisórios anteriores ao fenômeno.
A mesma conclusão pode ser estendida às teorias deliberativas da
democracia, já que os critérios para aferição da legitimidade das decisões,
estabelecidos por teóricos como Jürgen Habermas, Joshua Cohen, Bernard Manin,
Seyla Benhabib ou Nancy Fraser, dificilmente poderiam ser encontrados nas
realidades dos processos de tomada de decisão nos dois países, quando o assunto
é política externa e, mais especificamente, integração regional. Para os teóricos
dessa perspectiva, o procedimento deliberativo é o próprio cerne da experiência
democrática e deve ser um processo livre, inclusivo e igualitário de argumentação
racional. Isto significa que os argumentos e as posições devem ser formulados em
termos capazes de propiciar a aceitação também racional pelos demais participantes
da esfera pública. A prevalência exclusivamente estatal das deliberações sobre
integração regional, tanto no âmbito do MERCOSUL, como no caso das
negociações da ALCA, põe em xeque qualquer tentativa de visualizar os
340

mecanismos de consulta à sociedade civil ou os meios de informação sobre as


decisões adotadas como procedimentos voltados à formação das posições dos
governos nacionais estudados ou das próprias instituições regionais.
Espera-se que essas três perspectivas teóricas selecionadas tenham servido
para iluminar diferentes formas contemporâneas de se enxergar a democracia e os
seus processos políticos, indo desde as concepções procedimentais mínimas, que,
na prática, terminam por reduzir a noção de democratização à de transição de
regime, até aquelas que sustentam horizontes analíticos e normativos mais
complexos ou exigentes. De qualquer modo, as linguagens do ideário político são
caminhos possíveis, senão necessários, para se discutir a ideia de democratização
(como falar dos fenômenos, sem conceitos e teorias que nos guiem?). Por trás do
pluralismo teórico que guiou a elaboração do presente trabalho estão as crenças de
que, por um lado, o confronto das teorias democráticas serve para revelar as suas
respectivas limitações analíticas e normativas, pois estes discursos adquirem sentido
apenas quando confrontados entre si, e, por outro lado, a crença de que o debate
democrático é enriquecido pela abertura às diversas perspectivas, pois cada uma
delas apresenta a sua visão sobre as implicações das instituições democráticas
sobre os processos de tomada de decisão que precedem quaisquer políticas
públicas. As teorias da democracia apresentadas aqui e as práticas e padrões de
tomada de decisão nos países estudados estão distantes demais entre si. As
instituições executivas do Estado estão distantes demais dos representantes
parlamentares e da sociedade civil como um todo. O aumento da politização
doméstica das relações internacionais dos países estudados não levou a um
aumento da democracia nos processos de tomada de decisão em matéria de política
externa e de integração regional. O máximo que se pode constatar, pelo menos até
o presente momento, é que alegar que houve qualquer sinal de democratização dos
processos decisórios em virtude do envolvimento destes países nos esquemas de
integração analisados ainda é um despropósito.
341

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