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Nadir Zago

Do acesso à permanência no ensino superior:


percursos de estudantes universitários de
camadas populares *
populares*

Nadir Zago
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação

Introdução gualdades de escolarização entre classes sociais (Van


Zanten, 1999, p. 51), como também a uma renova-
Nas últimas décadas, fenômenos relacionados a ção nas pesquisas, contribuíram para que os estudan-
transformações no contexto social, político e educa- tes ocupassem um novo lugar nos estudos sociológi-
cional (entre eles, o prolongamento da escolaridade cos em educação. Dessa renovação, destacam-se
e a elevação das taxas de desemprego, especialmen- estudos voltados para os processos escolares, envol-
te entre os jovens), a mudanças no campo da socio- vendo, entre outras questões, as estratégias familia-
logia com a recomposição da problemática das desi- res de escolarização, as variações nas configurações
escolares entre grupos sociais e no interior de um
mesmo grupo.
* Este artigo é produto de pesquisa que venho desenvolven- Entre os trabalhos produzidos nessa direção, cito
do há alguns anos, sobre escolarização nos meios populares, vol- algumas tendências de pesquisas que elegem a pro-
tada especialmente para as trajetórias escolares nos ensinos fun- blemática do estudante universitário de origem popu-
damental e médio e, mais recentemente, no ensino superior. Efe- lar. Nas últimas duas décadas, estudos no campo da
tuei um recorte dessa temática, centrando-me em questões rela- sociologia da educação produzidos no Brasil e no
cionadas às desigualdades educacionais com longa tradição na exterior vêm fornecendo indicadores teóricos impor-
sociologia da educação e à presença de estudantes de origem po- tantes para problematizar o que tem sido chamado
pular na universidade. A pesquisa contou com auxílio do Conse- “longevidade escolar”, casos “atípicos” ou “trajetó-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) rias excepcionais” nos meios populares. Trata-se de
e com a participação de duas estudantes do Curso de Pedagogia uma linha inovadora, haja vista ser relativamente re-
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bolsistas de cente na disciplina o interesse pelos casos que fogem
iniciação científica do CNPq: Letícia M. dos Anjos e Joelma M. à tendência dominante, voltada para o chamado fra-
de Andrade. casso escolar nesses meios sociais.

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Do acesso à permanência no ensino superior

Entre alguns exemplos dessa contribuição recen- tam explicar como algumas pessoas conseguem es-
te destaco, em relação à produção estrangeira, os tra-
1
capar disso. Tanto já foi repetido que pobreza gera
balhos de Laurens (1992), Zéroulou (1988), Terrail pobreza e por vezes desvio, que se tornou muito difí-
(1990)2 e, no Brasil, Viana (1998), Portes (1993), Sil- cil, e mais complicado, explicar como alguns rompem
va (2003) e Mariz, Fernandes e Batista (1999). Parte esse círculo vicioso” (Mariz, Fernandes & Batista, 1999,
dessa produção define-se, mais explicitamente, na li- p. 324). Por isso mesmo, segundo Zaluar e Alvito (1999,
nha de investigação da relação família-escola e na p. 21), estudar a favela requer “combater certo senso
busca de explicações dos processos que possibilita- comum que já possui longa história”.
ram aos jovens romper com a tradição freqüente no Nessa mesma linha de problematização, identi-
seu meio de origem: uma escolaridade de curta dura- ficaram-se pesquisas com universitários moradores da
ção. Diferente de uma tradição sociológica fundada favela, cujo objetivo foi conhecer que elementos mo-
unicamente na relação entre a posição de classe e os tivam esses jovens a desenvolver estratégias integra-
resultados escolares, esses estudos apóiam-se em um doras que se contrapõem ao processo de exclusão.
conjunto de situações possíveis de explicar as traje- Observam Mariz, Fernandes e Batista (1999, p. 324-
tórias de êxito escolar. Além das variáveis clássicas 325) que “o aparecimento desses universitários indi-
da sociologia (tais como a renda, ocupação e escola- ca uma tendência de mudança nas favelas, e que co-
ridade dos pais), o interesse volta-se para outros ele- nhecer o perfil desses indivíduos e sua visão de mundo
mentos constitutivos das trajetórias escolares bem- pode ajudar a entender que mudança é essa, que fato-
sucedidas, como as práticas dos pais e dos filhos no res contribuem para ela e que direção parece estar
processo de escolarização. tomando”. Nesse sentido, concordam que estudar es-
Esses estudos deram visibilidade às ações em- ses casos, identificando “o que permite a alguns fugir
preendidas pelos sujeitos sociais, contrariando uma ao círculo vicioso que leva à exclusão e à marginali-
visão patologizante das famílias ou, ainda, um conhe- dade, pode ser tão ou mais útil para propostas de po-
cimento durante muito tempo dominante nas ciências líticas sociais quanto apontar esse círculo vicioso”
sociais, apoiado em uma caracterização genérica dos (idem, ibidem).
meios populares, freqüentemente associada à passi- A reduzida representatividade no ensino supe-
vidade e ao imediatismo nas reivindicações, entre rior por parte dos habitantes da favela3 pode igual-
outras denominações igualmente estigmatizadoras mente ser verificada entre a população incluída nos
(Sader & Paoli, 1988). Ou ainda, quando se trata de níveis mais baixos de renda.4 Não se está falando, por-
áreas urbanas mais discriminadas, como as favelas
na sociedade contemporânea, as ciências sociais têm
focalizado os problemas que são também os mais di- 3
Silva (2003, p. 124) lembra que, conforme os dados do
vulgados pela mídia, como criminalidade, violência Censo de 1991, menos de 1% (0,53%) dos moradores da Maré, uma
e tráfico de drogas. São poucos os estudos que “ten- das maiores favelas do Rio de Janeiro, possuía curso superior, en-
quanto o percentual da cidade do Rio de Janeiro era de 16,7%.
4
Dados referentes ao vestibular de 2001 da Universidade
1
Embora não se inclua na última geração de trabalhos, não Federal de Santa Catarina (UFSC), local da pesquisa, reforçam
poderia deixar de citar a autobiografia de Richard Hoggart (1970). essa afirmação. Considerando a relação entre renda e aprovados
Conforme observa Jean-Claude Passeron, no prefácio do livro, no exame de seleção, verificou-se que entre aqueles com renda de
esse trabalho contribui para a desmistificação de algumas das ilu- até um salário mínimo (SM), representando 0,77% do total de ins-
sões intelectuais inerentes à sociologia das classes populares. critos, a aprovação foi de 0,58%, enquanto entre aqueles com ren-
2
Uma revisão dessa bibliografia francesa pode ser encon- da de um a três SM, representando 6,59% dos inscritos, o índice
trada na tese de doutorado de Viana (1998). de aprovação foi de 4,05%. Tomando-se outras faixas de renda

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tanto, de “minorias”, mas de uma grande maioria ex- cas” (Bori & Durham, 2000, p. 41) deve ser acompa-
cluída do sistema de ensino superior brasileiro, so- nhada de estudos que permitam conhecer as reais con-
bretudo se considerarmos que na faixa etária de 18 a dições dessa escolarização. Essa observação remete à
24 anos apenas 9% freqüenta esse nível de ensino, pesquisa sociológica voltada para a condição do estu-
um dos percentuais mais baixos do mundo, mesmo dante universitário, tendência com a qual me identifi-
entre os países da América Latina. A expansão quan- co. Estudos como o de Grignon e Gruel (1999) traçam
titativa do ensino superior brasileiro não beneficiou a um quadro bastante detalhado de vários aspectos da
população de baixa renda, que depende essencialmen- condição do estudante: financiamento dos estudos,
te do ensino público. A universidade pública expan- moradia, transporte, alimentação, saúde, condições e
diu-se no período compreendido entre 1930 e 1970, hábitos de trabalho, relações com o meio de origem e
mas desse período até os dias atuais as políticas com o meio estudantil, cultura e lazer. Reconhecendo
mercantilistas do ensino superior fortaleceram o se- os limites da teoria da reprodução, argumentam os au-
tor privado, que hoje detém aproximadamente 90% tores que uma pesquisa representativa do conjunto da
das instituições e 70% do total de matrículas (INEP, população de estudantes permite observar diferentes
2004, p. 8-19). A ampliação do número de vagas foi dimensões do êxito e do fracasso, e os efeitos cumula-
considerável nos últimos anos,5 mas sua polarização tivos da escolarização anterior.
no ensino pago não reduziu as desigualdades entre Como eles, outros sociólogos vêm pesquisando
grupos sociais. “Estudo recente do Observatório Uni- as formas marginais de inserção de estudantes no en-
versitário da Universidade Cândido Mendes revela que sino superior, reforçando a tese dos excluídos do in-
25% dos potenciais alunos universitários são tão ca- terior, ou seja, das práticas mais brandas ou dissimu-
rentes que ‘não têm condições de entrar no ensino ladas de exclusão (Bourdieu & Champagne, 2001).
superior, mesmo se ele for gratuito’” (Pacheco & Desse modo, uma análise sobre a presença de catego-
Ristoff, 2004, p. 9). Uma efetiva democratização da rias sociais antes excluídas do sistema de ensino le-
educação requer certamente políticas para a amplia- vanta necessariamente a questão: o acesso à universi-
ção do acesso e fortalecimento do ensino público, em dade, sim; e depois? Não basta ter acesso ao ensino
todos os seus níveis, mas requer também políticas superior, mesmo sendo público, conforme indicam os
voltadas para a permanência dos estudantes no siste- resultados da pesquisa que realizei. Assim, torna-se
ma educacional de ensino. redutor considerar indiscriminadamente os casos de
A constatação de que “existe um grupo de estu- estudantes que têm acesso ao ensino superior como
dantes pobres e muito pobres que estão conseguindo de “sucesso escolar”. Evidentemente, caberia
ultrapassar barreiras ao longo de suas trajetórias esco- explicitar o que se quer dizer com “sucesso escolar”.
lares, ingressar e permanecer nas universidades públi- Ele representa o acesso, ou vai além para definir tan-
to a chamada “escolha” pelo tipo de curso quanto as
condições de inserção, ou seja, de “sobrevivência”
entre os aprovados, 20,38% faziam parte do grupo de renda de no sistema de ensino? É nesse quadro de questiona-
três até sete SM, enquanto para 74,43% dos aprovados a renda mentos que me apóio para a interpretação dos resul-
estava acima dessa faixa, estes assim distribuídos: 25,51% entre tados da minha pesquisa.
dez e vinte SM; 15,52% entre vinte e trinta; e, para 14,78%, acima Este estudo está voltado para estudantes univer-
de trinta SM. (UFSC, 2001). sitários oriundos de famílias de baixo poder aquisiti-
5
Progressão do número de matrícula no ensino superior: vo e reduzido capital cultural, e sua temática diz res-
44 mil em 1950; 1,6 milhão em 1995 (Trindade, 2002, p. 26). Em peito às desigualdades relacionadas ao acesso e à
2003, são 3.887.771 estudantes matriculados, e desse total, permanência no sistema de ensino superior. Ao com-
2.750.652 (70%) em instituições privadas (INEP, 2004, p. 19). binar uma análise crítica sobre as formas de inserção

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Do acesso à permanência no ensino superior

na universidade com a mobilização do estudante, ou Comprovadamente, não há uma relação direta


seja, suas preocupações e práticas, foi possível entre as características socioculturais da família e a
desnaturalizar a categoria estudante e, ao mesmo tem- aprovação no vestibular, pois a maioria dos candida-
po, mostrar as contradições entre uma maior deman- tos é reprovada em decorrência da distorção deman-
da da população pela elevação do nível escolar e as da/oferta de vagas. O vestibular de 2001 da UFSC
políticas de acesso ao sistema de ensino. contou com um total de 35.242 inscrições, para 3.802
Para entender melhor essas questões realizei, vagas, o que representa 89% de não-ingressantes no
entre 2001 e 2003, uma pesquisa de campo tendo como ano em questão. No entanto, considerando indicado-
local a UFSC, única universidade federal desse esta- res relacionados à origem social e ao passado escolar
do.6 Nesta, como em outras universidades públicas dos inscritos e aprovados, os resultados evidenciam a
do país, o vestibular é altamente competitivo e a rela- forte desigualdade de acesso ao ensino superior e a
ção candidato/vaga vem-se ampliando ao longo dos seletividade fundada na hierarquia dos cursos univer-
anos. Em 1970, a relação entre candidatos inscritos e sitários.10
vagas oferecidas na UFSC era de 1,46; essa relação A análise desse material serviu de pano de fundo
sobe para 5,93 em 1980 e 6,36 em 1990; quinze anos para a segunda etapa da pesquisa, que teve por objeti-
depois, esse índice é consideravelmente mais eleva- vo conhecer, para além do acesso, as condições de
do, atingindo 10,54 em 2005.7 permanência no ensino superior, bem como as estra-
Os resultados da pesquisa nessa instituição fo- tégias de investimento adotadas ante a realidade do
ram obtidos mediante uma metodologia de natureza estudante e a exigência do curso.
quantitativa e qualitativa, baseada em dados sobre os Essa etapa consistiu em uma pesquisa de campo,
candidatos ao vestibular e em entrevistas com uni- em que foram realizadas entrevistas em profundida-
versitários originários de escolas públicas. de com 27 estudantes. Para essa coleta de dados fo-
Na primeira etapa do estudo, apoiei-me em da- ram selecionados universitários que reuniam condi-
dos referentes aos candidatos ao vestibular de 2001.8 ções desfavoráveis quanto ao capital econômico e
Esse material possibilitou traçar um perfil dos inscri- cultural familiar, e que freqüentavam fases mais adian-
tos e aprovados segundo a origem familiar (renda, tadas do curso (a partir da 4ª fase),11 em diferentes
ocupação e escolaridade dos pais) e histórico escolar áreas de conhecimento (ciências da saúde, ciências
dos candidatos (rede e turno de ensino nos níveis fun- jurídicas, ciências humanas e sociais, ciências eco-
damental e médio, tipo de ensino médio), entre ou- nômicas, e tecnológica), para conhecer a realidade
tras informações relativas à origem social e ao vesti- também no que diz respeito à variável curso. Na se-
bular (curso de inscrição, número de vestibulares qüência deste artigo, estarei apoiada predominante-
prestados etc.).9 mente no material das entrevistas, relacionado à con-
dição do estudante.

6
O estado de Santa Catarina conta com mais uma universi- 10
Uma análise mais completa dos dados encontra-se em
dade de caráter gratuito, a Universidade do Estado de Santa Zago, Anjos e Andrade (2002).
Catarina (UDESC). 11
O ano de realização do vestibular não foi um critério que
7
Cf. UFSC (2005). levamos em consideração nessa seleção. No entanto, entrevistar
8
Cf. UFSC ( 2001). estudantes que já haviam freqüentado alguns semestres do curso
9
Os dados foram fornecidos pela Comissão Permanente fez parte da metodologia da pesquisa, que teve entre seus objeti-
do Vestibular (COPERVE), órgão responsável pela realização do vos levantar informações sobre a permanência desse grupo social
vestibular da UFSC. no ensino superior.

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Em um breve resumo sobre o perfil desses 27 em um estudo feito com universitários provenientes
estudantes, destaco: dez são do sexo masculino e das camadas médias intelectualizadas, para os estu-
dezessete do feminino, a maior parte com idade entre dantes entrevistados a decisão pelo ensino superior
19 e 26 anos (seis tinham acima de 30 anos), dezenove não tem, como para aqueles, a conotação de uma quase
são solteiros, doze (quase a metade deles) são de ori- “evidência”, um acontecimento inevitável. Chegar a
gem rural. Todos são originários de escolas públicas: esse nível de ensino nada tem de “natural”, mesmo
vinte cursaram todo o ensino fundamental e médio porque parte significativa deles, até o ensino funda-
nessa rede e sete tiveram parte da escolaridade na rede mental e, em muitos casos, ainda no ensino médio,
privada, como bolsistas ou como estudantes do ensi- possuía um baixo grau de informação sobre o vesti-
no supletivo. Seus pais são pequenos agricultores bular e a formação universitária. Essa lacuna não é
(doze casos) ou têm ocupações no ramo da constru- uma característica comum ao meio estudado. Silva
ção civil, entre outras atividades de baixa remunera- (2003, p. 128) encontrou o que chamou ausência de
ção. As mães ocupam-se da agricultura familiar, em um capital informacional sobre o sistema do vestibu-
alguns casos são do lar ou conjugam essa atividade lar, os cursos e as instituições que os oferecem.
com trabalho doméstico remunerado. Pais e mães, em Entre a decisão de prestar o vestibular e o mo-
sua quase totalidade, freqüentaram apenas os primei- mento de inscrição há um longo caminho a ser per-
ros anos do ensino fundamental. corrido, acompanhado de um grande investimento
Apoiado em uma análise sociológica de natureza pessoal, independentemente dos resultados escolares
predominantemente qualitativa, sem desconsiderar os anteriores. Eles não são apenas ex-alunos da rede pú-
problemas estruturais que produzem as desigualdades blica, mas estudantes com um passado de bons resul-
escolares, o estudo com universitários de origem popu- tados escolares, sobretudo se considerarmos que 23
lar possibilitou conhecer, entre outras questões, a dinâ- nunca foram reprovados. Do total de 27, apenas qua-
mica que permeia a vida cotidiana e a formação univer- tro relatam fenômenos recorrentes como a reprova-
sitária, como também as estratégias e o custo pessoal ção e a interrupção temporária dos estudos. No en-
daqueles que procuram permanecer no sistema de ensi- tanto, apesar desses indicadores, as entrevistas
no apesar das condições adversas de escolarização. revelam vários elementos sobre a seletividade quanto
A categoria “estudante”, como lembram Grignon ao acesso e à permanência no ensino superior. Ingres-
e Gruel (1999), recobre uma diversidade muito gran- sar em uma instituição com forte concorrência no
de de situações e, por isso mesmo, revela-se insufi- vestibular pressupõe, sem dúvida, uma formação an-
ciente para caracterizá-la. Os estudantes não são to- terior favorável, mas sabe-se que os critérios de ava-
dos estudantes no mesmo grau e os estudos ocupam liação que definem os resultados formais de escolari-
um lugar variável em suas vidas. Tal constatação en- dade não são equivalentes entre os estabelecimentos.
contra toda sua expressão quando se analisam a esco- Portanto, um certificado escolar recobre uma forma-
lha pelo curso e as condições de acesso e de perma- ção bastante diversificada.
nência no ensino superior, como mostrarei a seguir. Já se tornou senso comum a afirmação de que as
políticas públicas voltadas para a educação básica não
O acesso ao ensino superior têm contribuído para garantir um ensino de qualida-
e os antecedentes escolares de. Com um histórico escolar pouco competitivo e o
alto grau de concorrência no vestibular,12 todos os
A desigualdade de oportunidades de acesso ao
ensino superior é construída de forma contínua e du-
rante toda a história escolar dos candidatos. Muito 12
Conforme já foi indicado, em virtude da forte concorrên-
diferente do que observou Nogueira (2003, p. 132) cia candidato/vaga, 89% dos inscritos foram excluídos do processo

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Do acesso à permanência no ensino superior

entrevistados tinham uma apreciação muito crítica Parece um sonho ter conseguido entrar aqui... Eu pen-
sobre suas chances objetivas. A falta de esperança era sava que pra mim era uma coisa impossível. (Estudante de
de tal ordem que o primeiro vestibular foi considera- pedagogia)
do um “exercício”, “uma experiência” para se fami-
liarizarem com o sistema de provas e poder assim as- Eu me julgava incapaz de passar. É muito difícil um
segurar um diferencial na próxima seleção. Essa estudante de colégio público entrar na universidade. [...]
interiorização do improvável não constitui um traço Eu não me achava com capacidade de entrar numa federal.
de um grupo singular. Uma matéria publicada na Fo- (Estudante de serviço social)
lha de S.Paulo de 18 de agosto de 2002, apoiada em
dados do vestibular de universidades públicas do Rio Para preencher a lacuna da formação básica, há
de Janeiro e São Paulo (Universidade de São Paulo – uma forte demanda pelos cursinhos pré-vestibular, es-
USP, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Uni- tratégia bastante generalizada entre os egressos do en-
versidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Uni- sino médio. Os dados referentes aos inscritos no vesti-
versidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Uni- bular da instituição pesquisada, em 2001, reforçam essa
versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), observação: dos 35.278 inscritos, 19.160 (54%) haviam
argumenta que a baixa auto-estima faz estudantes de freqüentado algum tipo de cursinho, e das 3.802 vagas
escolas públicas desistirem de entrar na universidade oferecidas pela mesma instituição, 2.376, ou mais da
antes mesmo de tentar o vestibular. Acrescenta a ma- metade delas (62%), foram preenchidas por candida-
téria que “o fenômeno, conhecido por educadores es- tos com essa formação complementar, índice que sobe
tudiosos do assunto como auto-exclusão, acentuou- para 80% ou mais nos cursos mais concorridos.
se nos últimos anos, apesar do aumento significativo Para tornar-se mais competitivos, os jovens dis-
do número de alunos formados no ensino médio pú- postos a investir em sua formação fazem esforços
blico” (Folha de S.Paulo, 2002). consideráveis para pagar a mensalidade do cursinho,
Na pesquisa realizada nota-se, com certa freqüên- geralmente freqüentado em período noturno e em ins-
cia, que quando a previsão do fracasso não se confir- tituições com taxas mais condizentes às suas possibi-
ma e o estudante é aprovado no primeiro vestibular, lidades financeiras, ou em cursos pré-vestibulares gra-
ou mesmo após outras tentativas frustradas, não raro tuitos. Essa formação suplementar é, portanto, bastante
ele duvida de sua capacidade e atribui o resultado desigual entre os candidatos do vestibular.
obtido à ocorrência de “uma chance”, “uma sorte”. O Considerando esses dados relacionados à forma-
êxito no vestibular é sempre recebido com surpresa, ção básica, as dificuldades no momento da escolha da
e foi dessa forma que reagiram quando identificaram especialidade a ser seguida no curso superior são gran-
seus nomes na lista dos aprovados: des. O ensino superior representa para esses estudan-
tes um investimento para ampliar suas chances no mer-
Eu até nem acreditei, a hora que eu vi assim, eu disse: cado de trabalho cada vez mais competitivo, mas, ao
não pode, não pode. (Estudante de agronomia) avaliar suas condições objetivas, a escolha do curso
geralmente recai naqueles menos concorridos e que,
do vestibular de 2001, na instituição pesquisada. Das 3.802 vagas segundo estimam, proporcionam maiores chances de
disponíveis, 2.756 (72%) foram ocupadas pelos candidatos que aprovação.13 Essa observação suscita uma reflexão so-
tinham realizado o vestibular ao menos duas vezes. Dados atuais bre o que normalmente chamamos “escolha”. Quem,
sobre a situação no Brasil reforçam essa disparidade: a relação
candidato/vaga no setor privado atingiu índice de 1,6, enquanto
nas universidades públicas (estaduais e federais) essa relação che- 13
A relação candidato/vaga do vestibular de 2005 de alguns
ga a 10,7 (Pacheco & Ristoff, 2004, p. 8). dos cursos da UFSC dá uma idéia da concorrência segundo as

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de fato, escolhe? Sob esse termo genérico escondem- elementos constitutivos de cada uma das trajetórias
se diferenças e desigualdades sociais importantes. analisadas não teriam possibilitado um percurso mais
O comércio dos cursinhos pré-vestibular, aliado longo de escolarização se não houvesse a mobilização
a uma série de investimentos familiares, contribui para do estudante. Fazem parte dessa pesquisa estudantes
a elitização do ensino superior. Certos cursos têm seu de cursos mais concorridos como medicina, odonto-
público formado essencialmente por estudantes oriun- logia, direito, certas áreas das engenharias, mas in-
dos de escolas públicas, enquanto em outros ocorre cluí-los nesta pesquisa, justamente porque são raros,
situação inversa, sugerindo a intensificação da seleti- não foi uma tarefa simples. Nesses casos, apesar das
vidade social na escolha das carreiras. A origem so- repetidas reprovações no vestibular, a opção foi insis-
cial exerce forte influência no acesso às carreiras mais tir na mesma área e investir novamente na preparação
prestigiosas, pois a ela estão associados os antece- para o exame. Fernanda14 foi uma dessas estudantes
dentes escolares e outros “tickets de entrada”. É am- do grupo. Moradora de uma favela, desafiou o impro-
plamente conhecida a tese de que “quanto mais im- vável, mas não abriu mão, após três vestibulares na
portantes os recursos (econômicos e simbólicos) dos universidade pública, do curso de medicina. “Para mim
pais, mais os filhos terão chances de acesso ao ensino era uma questão de honra”, sintetiza.
superior e em cursos mais seletivos, mais orientados Um dos maiores problemas que enfrentam os
para diplomas prestigiosos e empregos com melhor estudantes em questão reside na qualidade do ensino
remuneração” (Grignon & Gruel, 1999, p. 183). público, do qual dependem para prosseguir sua esco-
Desse modo, falar globalmente de escolha signi- laridade. Sabemos que a ampliação do número de
fica ocultar questões centrais como a condição social, vagas nos níveis fundamental e médio não eliminou
cultural e econômica da família e o histórico de esco- os problemas relacionados à qualidade do ensino.
larização do candidato. Para a grande maioria não exis- Como observa Oliveira (2000, p. 92),
te verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação,
um ajuste às condições que o candidato julga condi- Em breve, todos terão oito anos de escolarização, mas
zentes com sua realidade e que representam menor ris- nem todos terão acesso aos mesmos níveis de conhecimen-
co de exclusão. Foi de acordo com essa avaliação que to. Muitos, nem mesmo a patamares mínimos. Elimina-se,
dezoito entrevistados decidiram suas escolhas. Esse assim, a exclusão da escola, não a exclusão do acesso ao
dado corrobora a afirmação de Grignon e Gruel (1999), conhecimento, criando-se condições historicamente novas
segundo a qual os estudantes de origem popular difi- para demandas por qualidade de ensino.
cilmente se aventuram fora do seu meio de origem.
Acrescentam os autores: “podemos supor que o su- Os efeitos dessa exclusão do conhecimento apa-
cesso improvável se paga com um acréscimo de recem com toda a força na escolha do curso, e faz-se
ascetismo” (p. 172-173, grifado no original). Mas a sentir igualmente quando o estudante ingressa no en-
correspondência entre a condição social e a escolha sino superior, sobretudo nas primeiras fases do curso.
pela carreira é tendencial, e não absoluta. Os vários Muito expressiva é a síntese feita por esta estudante
de agronomia. De origem rural, teve dificuldades nos
primeiros semestres do curso, conforme relata, pelas
carreiras: medicina (55,76), jornalismo (20,00), nutrição (18,45), lacunas de sua formação nas matérias básicas. Ela re-
ciências biológicas – diurno (18,90), direito – diurno (20,46) e sume essa relação entre o passado escolar e as exi-
direito – noturno (15,26), arquitetura e urbanismo (16,61), odon- gências da formação atual com a seguinte metáfora:
tologia (15,21), engenharia mecânica (12,23), geografia – diurno
(8,30), pedagogia (5,34), biblioteconomia – noturno (3,13). Fon-
te: <http://www.vestibular2005.ufsc.br>. Acesso em: 20. jun. 2005 14
Os nomes de estudantes apresentados no texto são fictícios.

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Do acesso à permanência no ensino superior

“É a mesma coisa que pegar um filme pela metade, vitória”, expressão recorrente nas entrevistas. Como
não tem como entender inteiro”. disse Mauro, 32 anos, ex-pedreiro, estudante de ciên-
Como ela, outros entrevistados enfrentaram di- cias da computação: “Para mim é uma vitória, de onde
ficuldades, especialmente nas disciplinas de biologia, eu saí, do chão onde eu andei, tudo o que eu fiz pra
física e cálculo. Situação semelhante ocorre com chegar até aqui, eu me sinto vitorioso”.
Walter, estudante de matemática, que foi reprovado e Se o ingresso no ensino superior representa para
teve dificuldades em certas disciplinas. Na universi- esse grupo de estudantes “uma vitória”, a outra será
dade ele compreendeu que o êxito escolar dos níveis certamente garantir sua permanência até a finalização
anteriores não traduzia sua real formação: do curso. Originários de famílias de baixa renda, es-
ses estudantes precisam financiar seus estudos e, em
Eu me sentia um ótimo aluno [...] aqui eu vi que tudo alguns casos, contam com uma pequena ajuda fami-
que a gente sabia não era nada. [...] Quando o professor fala liar para essa finalidade. Provenientes de outras cida-
“vocês já viram isso no 2º grau”, aquilo pra mim é como se des ou estados, pouco mais da metade tem suas
fosse uma facada. As matérias são dadas como se todos despesas acrescidas pelo fato de não morar com a fa-
tivessem feito o cursinho, como se todos tivessem o mes- mília. Nesses casos, residem na casa do estudante uni-
mo 2° grau. versitário (quando há vaga), ou com parente, ou ainda,
dividem casa ou apartamento com colegas. O papel
As lacunas deixadas na formação precedente mar- estratégico dos irmãos – sobretudo aqueles que con-
cam implacavelmente a vida acadêmica, e os depoi- seguiram superar a condição familiar – no percurso
mentos nesse sentido são muito significativos, como o escolar dos entrevistados mereceria um capítulo à par-
deste entrevistado do curso de engenharia elétrica: te, dada sua importância tanto em forma de ajuda ma-
terial quanto simbólica.
Eu me vejo completamente fora da realidade da en- Com um “pé-de-meia”15 para os primeiros tem-
genharia. Os professores dizem que apenas português e in- pos na universidade, os jovens dão início a seus estu-
glês não basta para a engenharia, mas eu conheço pouquís- dos de nível superior sem ter certeza de até quando
simas palavras em inglês. poderão manter sua condição de universitários. Para
viabilizá-la, tentam obter uma renda mediante algu-
Além do inglês, sente dificuldades em álgebra e ma forma de trabalho em tempo completo ou parcial.
outras matérias. Fundamentado em sua própria expe- No momento da pesquisa, do total de 27 estudantes,
riência, avalia: “aquela base eu não vou conseguir re- 21 tinham renda entre um e dois salários mínimos.
cuperar”. A concomitância trabalho-estudo no ensino su-
Como já disse Gouveia, ainda nos anos de 1960, perior não é uma realidade só dos países em desen-
“qualquer tentativa de democratização do ensino su- volvimento e não se reduz aos filhos de famílias com
perior será inócua enquanto persistirem as desigual- renda modesta. Esse dado é, no entanto, muito gené-
dades existentes nos níveis anteriores, primário e se- rico, pois, como já foi observado, há variações entre
cundário” (1968, p. 232). Quatro décadas depois, tal os incluídos na categoria estudante. Em relação ao
conclusão revela toda a sua atualidade. trabalho, cabe enumerar o tipo de atividade, a carga
horária, a proximidade ou não com o curso, o resulta-
O financiamento dos estudos:
um estudante parcial
15
Em vários casos, muito tempo antes de ingressar na uni-
Considerando toda a luta empreendida por esses versidade o estudante prepara-se constituindo uma reserva finan-
estudantes, o acesso à universidade representa “uma ceira, popularmente chamada “pé-de-meia”.

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Nadir Zago

do financeiro, entre outras variáveis. Se tomarmos rea- garantem a sobrevivência. No grupo feminino, oito têm
lidades diferentes em termos de políticas públicas para carteira assinada nos seguintes ramos de atividades:
o ensino superior, como é o caso da França, pesqui- atendente de enfermagem, professora de educação in-
sas realizadas nos anos de 1990 revelam que uma fantil, copeira e atendente de auxílio à lista em empre-
minoria trabalha no início do curso, mas a situação sa de telecomunicações. As demais, em número de
inverte-se nas últimas fases. As taxas de estudantes nove, estão nas mesmas condições de bolsistas, em
exercendo uma atividade remunerada varia, então, de atividades de extensão, monitoria ou estágio remune-
20%, aos 18 anos, a 66,7%, aos 26 anos e mais rado, conforme convênio entre a universidade e ou-
(Grignon & Gruel, 1999, p. 67-69). As mudanças es- tras instituições.16 Segundo cada caso, a renda obtida
tão também na carga horária de trabalho e no tipo de é completada, seja com pequena ajuda familiar, seja
ocupação, progressivamente mais voltada para a for- com atividades complementares como jardinagem,
mação. Os recursos financeiros dos pais são desiguais, atendimento na área de informática, ou ainda no ramo
mas parte dessa desigualdade é compensada por polí- dos serviços domésticos.
ticas públicas daquele país, mesmo sabendo-se que Conforme os dados, do total de 27 estudantes, 18
estas não excluem as disparidades sociais. Em resu- obtiveram uma bolsa de trabalho, estágio, monitoria
mo, a atividade remunerada não tem uma função uni- ou iniciação científica. A flexibilização de horário con-
camente de sobrevivência material. A ela associam- cedida por essas formas de admissão processadas no
se o desejo de autonomia em relação à família e a interior da universidade transforma-se em uma vanta-
constituição de um currículo mais favorável quando gem para o estudante. Existe ainda a possibilidade de
o jovem deixa a universidade, como também foi veri- utilizar computador, internet, espaço físico para estu-
ficado em nosso estudo. dar, além de estar em contato permanente com a insti-
No Brasil, percursos escolares de longa perma- tuição, pois sabemos o quanto essa condição pode re-
nência na escola e ingresso tardio no mundo do traba- presentar para a sua vida acadêmica. Em geral esses
lho são privilégios para uma parcela reduzida de sua estudantes permanecem toda a jornada na universida-
população, embora, como mostram pesquisas recen- de e apropriam-se com maior intensidade da cultura
tes, essa relação venha sofrendo mudanças ao longo acadêmica. Não é sem razão que declaram seus proje-
das últimas décadas (Hasenbalg, 2003). No grupo tos de prosseguir os estudos na pós-graduação.
pesquisado, em todos os casos, durante o ensino mé- O que se pode observar é que, embora todos de-
dio e em vários deles ainda no ensino fundamental, a pendam do trabalho para garantir sua sobrevivência
escolaridade esteve associada ao trabalho e à sobrevi- material, desenham-se perfis diferentes na relação
vência. Desde o início do curso superior, os entrevis- estudo-trabalho, com repercussões que julgo signifi-
tados, em sua totalidade, exercem algum tipo de ativi- cativas na condição do estudante e na constituição de
dade remunerada em tempo integral ou parcial. Alguns suas carreiras universitárias. A categoria “estudante
são trabalhadores-estudantes, com uma atividade que médio” não existe, porque não há uma condição “es-
absorve muitas horas diárias, e por isso mesmo esta- tudante em geral”: as diferenças são relacionadas ao
belece forte concorrência com os estudos. Outros têm próprio curso, sua estruturação em termos de carga
uma carga horária mais flexível, em serviços presta-
dos dentro da própria universidade, em forma de bol-
sa de treinamento, estágio ou iniciação científica, em 16
Não é considerada, para efeito desta análise, a relação
tempo parcial de vinte horas semanais. Após terem entre as ocupações dos estudantes na universidade e a variável
exercido ocupações em diferentes ramos de atividade gênero. No entanto, um estudo nessa dimensão pode revelar as-
do setor privado, nove do grupo de dez estudantes do pectos importantes sobre as políticas adotadas nas instituições
sexo masculino estão nessa situação e, por meio dela, públicas no que concerne à condição do estudante.

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Do acesso à permanência no ensino superior

horária, nível de exigência, entre outras realidades tudantes de medicina, direito, agronomia e, em menor
relacionadas às condições materiais, culturais e so- proporção, por alunos dos cursos de pedagogia, histó-
ciais do estudante. Ao denominar “um estudante par- ria, filosofia, letras e outros menos concorridos, e que
cial” reporto-me ao lugar que o estudo e, de modo apresentam, portanto, menor grau de heterogeneidade.
geral, o mundo universitário têm para os entrevista- Os sentimentos de pertencimento/não-pertenci-
dos. mento ao grupo dependem muito do curso, da confi-
guração social dos estudantes de uma determinada
Outras facetas da desigualdade turma. Assim, Everaldo, que faz filosofia no período
noturno, vê-se entre pares: estudantes com expectati-
O tempo investido no trabalho como forma de vas semelhantes às suas, sem muita diferença social.
sobrevivência impõe, em vários casos, limites acadê- “Não tem rico na filosofia”, disse, e não sente discri-
micos, como na participação em encontros organiza- minação. Os colegas mais velhos, com uma situação
dos no interior ou fora da universidade, nos trabalhos financeira mais estável, “respeitam muito os colegas
coletivos com os colegas, nas festas organizadas pela mais novos”, argumenta. Nessa mesma direção colo-
turma, entre outras circunstâncias. Vários estudantes ca-se Lourdes, estudante de letras, do período notur-
se sentem à margem de muitas atividades mais dire- no: “Me senti muito bem na universidade, a maioria
tamente relacionadas ao que se poderia chamar in- dos alunos vinha do interior, quem faz alemão são
vestimentos na formação (congresso, conferências, pessoas mais simples”; e conclui que foram “os dife-
material de apoio), como relata Ana, estudante de ser- rentes” que tiveram de se adaptar. Para Irene, na pe-
viço social: “Não participo da comunidade universi- dagogia há um grupo com o qual estabelece relações
tária [...] eu só trabalho, aí você é automaticamente de cumplicidade. Como ela, a maioria trabalha e es-
colocada de lado. [...] Estes três semestres foram le- tuda. Há, portanto, cursos cujo público tende a se ho-
vados nas coxas, literalmente, pra dar conta de tudo. mogeneizar, confirmando uma situação que tem sido
Essa é uma realidade cruel”. Como Ana, muitos estu- denominada de democratização segregativa (Duru-
dantes fizeram desabafos semelhantes. Bellat, 2003). No outro pólo estão os cursos que con-
Não raro, às dificuldades econômicas associam- gregam uma população mais elitizada, tais como me-
se outras, relacionadas ao quadro complexo da con- dicina, direito, odontologia, entre outros. Cursando
dição estudante. Há uma luta constante entre o que medicina encontravam-se duas estudantes participan-
gostariam de fazer e o que é possível fazer, materiali- tes da pesquisa, Fernanda e Glória, cujas histórias re-
zada em uma gama variada de situações: carga horá- velam bem esse sentimento de não se sentirem, em
ria de trabalho, tempo insuficiente para dar conta das razão do distanciamento social e dos seus reflexos na
solicitações do curso e outras, de ordem social e cul- vida estudantil, parte do grupo. A saída que encontra-
tural, condicionadas pelos baixos recursos financei- ram para se diferenciar foi fazer um outro caminho: o
ros (privar-se de cinema, teatro, espetáculos, eventos da militância estudantil.
científicos, aquisição de livros e revistas etc.). Refu- Como bem observam Grignon e Gruel (1999, p.
giar-se no isolamento é a saída encontrada, como re- 2): “A vida dita material não impõe somente limites
velaram vários estudantes. práticos à atividade estudantil; ela intervém moral-
Uma análise sobre a condição de estudante não se mente no conjunto da vida intelectual [...]”.
pode furtar de considerar os efeitos relacionados à na-
tureza do curso. Pela grande seletividade social na E para finalizar...
porta de entrada, o status social do público varia forte-
mente segundo a área de conhecimento. A existência Como tentei mostrar neste trabalho, a presença
de um certo “mal-estar discente” foi relatada pelos es- das camadas populares no ensino superior não oculta

Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 235


Nadir Zago

– conforme também observam Bourdieu e Champagne HOGGART, Richard. La culture du pauvre. Paris: Minuit, 1970.
(2001) – as reais diferenças sociais entre os estudan- INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
tes. Os resultados da pesquisa indicam efeitos dessas Anísio Teixeira. Censo de educação superior. Brasília: INEP,
diferenças verificados na composição social dos cur- 2004.
sos e no exercício da vida acadêmica, nas suas mais LAURENS, Jean-Paul. 1 sur 500: la réussite scolaire en milieu
variadas dimensões. Uma análise que vai além do le- populaire. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1992.
vantamento dos dados brutos, como renda familiar MARIZ, Cecília L.; FERNANDES, Sílvia Regina Alves; BATIS-
do estudante, ocupação e escolaridade dos pais, para TA, Roberto. Os universitários da favela. In: ZALUAR, Alba;
conhecer mais de perto a condição do estudante, mos- ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. 2. ed. Rio de Ja-
tra como à “sobrevivência” material associam-se ou- neiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 323-337.
tros custos pessoais, mas nem por isso menos doloro- NOGUEIRA, Maria Alice. A construção da excelência esco-
sos, tal como evidenciou a pesquisa, entre outras lar – um estudo de trajetórias feito com estudantes universitá-
realizadas com estudantes oriundos de meios sociais rios provenientes das camadas médias intelectualizadas. In:
similares. Estudar essa população para entender as NOGUEIRA, Maria Alice; ROMANELLI, Geraldo; ZAGO,
transformações nas demandas e nas práticas escola- Nadir (Orgs.). Família & escola: trajetórias de escolarização
res, assim como no perfil dos estudantes na socieda- em camadas médias e populares. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
de contemporânea, representa uma necessidade para p. 125-154.
a pesquisa e as políticas educacionais em todos os OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Reformas educativas no Bra-
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ZAGO, Nadir; ANJOS, Letícia Merentina dos; ANDRADE, Joelma escolarização em camadas médias e populares (Petrópolis: Vozes,
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SEMINÁRIO DE PESQUISA EM EDUCAÇAO DA REGIÃO em sociologia da educação (Rio de Janeiro: DP&A, 2003). E-mail:
SUL, 4., 2002, Florianópolis. Anais... Florianópolis: ANPEd, 2002. nadirzago@uol.com.br
1 CD-ROM.
ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Introdução. In: ______. (Orgs.). Recebido em novembro de 2005
Um século de favela. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. p. 7-24. Aprovado em janeiro de 2006

Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 237


Resumos/Abstracts/Resumens

res las fuentes de las dificultades parti- main sources of information: 1) of a jovens em municípios de regiões
culares de la escuela y de la enseñanza quantitative nature: the data on metropolitanas
en los barrios populares. students enrolled in the university Reúne os resultados preliminares do
Palabras claves: socialización; modo admission exam; 2) more qualitative projeto de pesquisa “Juventude, escola-
de socialización escolar; socialización data obtained from interviews with 27 rização e poder local”, que examina
en familias de clases sociales popula- students. This study permits us to show iniciativas públicas desenvolvidas pelo
res; socialización y escolarización; the contradictions between a greater Executivo municipal em 74 municípios
relación escuela-familia demand for higher levels of education de regiões metropolitanas do Brasil
and the policies of access and (Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordes-
Nadir Zago permanence to the Brazilian system of te) no período entre 2001 e 2004. As
Do acesso à permanência no ensino higher education. principais ações são investigadas tendo
superior: percursos de estudantes Key-words: higher education; social como eixos analíticos o conjunto de
universitários de camadas populares and educational inequalities percepções sobre juventude que anco-
O presente artigo trata da problemática Del acceso a la pernanencia en la ram as iniciativas e as formas que são
das desigualdades educacionais, com enseñanza superior : trayectos de propostas pelo poder público para a
longa tradição na sociologia da educa- estudiantes universitarios de clases interação com os segmentos juvenis.
ção, e sobre a presença de estudantes sociales populares Palavras-chave: juventude; políticas
de origem popular no ensino superior. El presente artículo trata de la proble- públicas; poder local
O eixo central da análise contempla as mática de las desigualdades educati- Youth and local power: a balance of
desigualdades de acesso e de perma- vas, con larga tradición en la public initiatives directed at young
nência no ensino superior. Os resulta- sociología de la educación, y sobre la people in municipalities pertaining
dos apresentados estão apoiados em presencia de estudiantes de origen po- to metropolitan regions
uma pesquisa, com duas fontes princi- pular en la enseñanza superior. El eje Presents the preliminary results of the
pais de informação: de natureza quan- central del análisis son las desigualda- research project “Youth, schooling and
titativa, apoiada nas estatísticas dos des de acceso y de permanencia en la local power” which examines public
candidatos inscritos no exame de aces- enseñanza superior. Los resultados que initiatives developed by municipal
so à universidade; em dados mais apro- fueron presentados están apoyados en governments in 74 municipalities
fundados, obtidos em entrevistas com una pesquisa, con dos principales pertaining to metropolitan regions in
27 estudantes. A discussão do trabalho fuentes de información: 1) de Brazil (Southeast, South, Central West
permite mostrar as contradições entre naturaleza cuantitativa, apoyada en and Northeast) in the period between
uma maior demanda da população pela las estadísticas de los candidatos 2001 and 2004. The principal actions
elevação do nível escolar e as políticas inscriptos en el examen de acceso a la are investigated taking as analytic axes
de acesso e de permanência no sistema universidad; 2) en datos más profun- the set of perceptions on youth which
de ensino superior brasileiro. dos obtenidos en entrevistas con 27 anchor the initiatives and the forms
Palavras-chave: ensino superior; desi- estudiantes. La discusión del trabajo which are proposed by the public
gualdades sociais e educacionais permite mostrar las contradicciones power for interaction with this segment
From access to permanence in entre una mayor demanda de la of the population.
higher education: the trajectories of populación, devido a la elevación del Key-words: youth; public policy; local
university students of popular origin nivel escolar y las políticas de acceso y power
This article deals with the problem of de permanencia en el sistema de la Juventud y poder local: un balance
inequalities in education, a theme dear enseñanza superior brasileña. de iniciativas públicas dirigidas para
to the sociology of education, and of Palabras claves: enseñanza superior; jóvenes en municipios de regiones
the presence of students of popular desigualdades sociales y educativas metropolitanas
origin in higher education. The central Reune los resultados preliminares del
axis of this analysis is that of the Marilia Pontes Sposito, Hamilton proyecto de investigación “Juventud,
inequalities of access and permanence Harley de Carvalho e Silva, Nilson escolarización y poder local” que exa-
of those students in higher education. Alves de Souza mina iniciativas públicas desarrolladas
The results are based on the Juventude e poder local: um balanço por el ejecutivo municipal en 74
conclusions of a research based on two de iniciativas públicas voltadas para municipios de regiones metropolitanas

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