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FORTALEZA-CE
2019
1. ENREDO E CONTEXTO POLÍTICO SOCIAL DA OBRA
Em São Petersburgo, onde é vivida a estória, passa por um momento de fortes agitação
política em torno dos questionamentos à monarquia Czarista, o que leva o autor a passar em torno
de 10 anos exilado em um campo de trabalho forçado na Sibéria, em que muito se inspira esta obra.
Sua obra facilmente cindida entre seu período pré e pós Sibéria, pode-se dizer que o período em
cárcere marca seu amadurecimento como autor, sendo suas obras mais notórias, como é o caso de
Crime e Castigo, pós-encarceramento.
O livro é em vários aspectos um diagnóstico de sua época, período que precede a revolução
russa e é ainda profundamente influenciado pelas ideias da revolução francesa. É também o século
em que a obra “A Origem das Espécies” de Charles Darwin é publicada, assim como a revolução
industrial, trazendo sérios questionamentos relacionados à existência de Deus, fato constante em
muitas de suas obras e de seus contemporâneos, como Nietzsche.
São Petersburgo que virava uma grande metrópole sob influência da revolução industrial na
Europa, estava em um período de crescimento demográfico precário, que submetia milhares à
miséria, assim, os personagens construídos pelo autor vivem neste conturbado período da história
Russa e vivenciavam as perturbações da vida precária de uma metrópole decadente.
O autor que foi muito criticado por sua escrita pouco rebuscada, se comparada ao seu
contemporâneo Liev Tolstoi, Dostoievski punha em suas obras um verdadeiro culto ao sofrimento,
apresentando a miséria e a “loucura” do período. Ligado ao niilismo realista da literatura moderna,
Dostoievski apresenta personagens controversos, limítrofes e muitas vezes até escatológicos ou
pornográficos, explorando a realidade da prostituição, do alcoolismo, dos jogos de azar e adultério
questionando os padrões morais e religiosos.
O personagem disserta:
“os legisladores e os fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e
continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc. etc., todos, desde o primeiro até o
último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis novas,
aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados” (p. 241)
Desta forma o personagem começa a arquitetar a morte da velha sob a justificativa de que a
velha é “um piolho” (ou formigas dependendo da tradução) na compreensão de que são animais
laboriosos mas desimportantes, e que estaria a fazer um bem a todos que a ela deviam, logo ele
constrói uma narrativa que justifica sua ação e passa a concepção do ato. Na oportunidade ele
comete a ação, porém é pego de surpresa pela irmã da usurária a quem ele não tinha intenção de
ferir e com uma manobra niilista, na perspectiva de sua superioridade intelectual como pessoa
extraordinária que não pode ser delatado ele se torna um duplo homicida.
Ao realizar a ação planejada, Raskólnikov passa a sentir culpa profunda e ao não conseguir
lidar com a realidade dantesca de ter tirado uma vida humana, o personagem sofre, mas sofre não
somente por sua ação, talvez principalmente, por sentir que ao sofrer ele distancia-se das pessoas
extraordinárias, como Napoleão, que não tem estes sentimentos pela convicção de que faziam isto
por um bem maior.
Seu sofrimento é intensificado por não ser ele um ser extraordinário como havia concebido,
sua ruptura ética se dá apenas na concepção e execução do ato, após a realização sua culpa lhe
impõe um paradoxo mental em que se é excepcional então porque sente culpa e se sente culpa e não
é excepcional, não teria justificativa para o crime. O personagem se acovarda frente a inexistência
de Deus e isso o leva ao delírio.
2. CRIME CASTIGO E A RELAÇÃO COM CONTEMPORANEIDADE
Nos dias de hoje, a juventude apresenta uma íntima relação com o tempo presente, o aqui e
o agora. O tempo está acelerado. Tudo muda muito rápido e a vida se apresenta como efêmera.
Nunca foi mais vivo o questionamento sobre a existência de Deus, “Deus ex machina”, como é
proposto pelo personagem, do que hoje. O tempo também funciona como uma chave-analítica para
esta obra, com a revolução industrial, o tempo parou de ser medido exclusivamente pelo viés
biológico: o dia e a noite, as estações do ano. Ele passou a ser o tempo da máquina e do relógio,
neste período é possível traduzir a sociedade e seus códigos com a aceleração do movimento da
evolução da personagem, como no livro.
Segundo Lowy (2015), o Brasil e a Europa têm vivido uma enorme ascensão eleitoral das
forças de extrema-direita, racistas, xenófobas, fascistas e/ou semifascistas. Enquanto setores da
população seguem silenciados e invisíveis, cresce a “banalização do mal” (ARENDT, 1999). Em
momentos de crimes de ódio como os assassinatos de Dandara1 e de Marielle Franco2, os inúmeros
feminicídios e crimes cometidos por “justiceiros” são completamente ignorados e até amplamente
aceitos. O nível de apatia demonstrado pela nossa sociedade não é compatível com a vida altiva de
um ser humano.
As mulheres, os LGBTT, os pobres e os negros são reificados diariamente pelo discurso que
perpassa a mídia e o nosso cotidiano. A visão dos jovens não é tão diferente: aqueles a quem os
justiceiros agridem são “elementos”, marginais”, ou poderiam ser piolhos e formigas como
categoriza Raskólnikov. A violência praticada pelo protagonista está justificada na desumanização
da vítima, já que ela era um problema, algo a qual a sociedade deve ser liberta, o que ele estava
fazendo era um bem, não algo que condiz com a retirada de uma vida humana.
Para Hannah Arendt, o conceito de violência se separa dos conceitos de poder, de autoridade
e de dominação. Para a autora, a violência é algo racional, mostrando a violência por meio de três
situações chaves: a desnaturalização, propondo que a violência não é algo inerente ao ser humano; a
despersonificação, entendendo que a violência não é um sujeito em si; e a desdemonização,
colocando que a violência não é o mal em si mesmo. Assim, a violência se contrapõe ao poder, por
não promover causas. Antes, seria um instrumento racional de dominação. Assim, o ato violento de
um assassinato pode não ser visto como um mal, como propõe o protagonista de crime e castigo,
mas um instrumento para alcançar um fim. Dessa maneira, é também a violência racional motivada
contra setores da sociedade.
Ao mesmo tempo em que não é asseverada como algo bom, a violência motivada engendra
algum constrangimento social àqueles agentes de violência. Do mesmo modo, a “culpa” ou o
“remorso” da sociedade, que apesar de existir em alguma parcela sobre a morte dos corpos que são
vistos como dignos de violência, é quando se violenta algo que destoa do elemento marginal como é
o caso do assassinato da irmã “inocente” da usurária para a proteção de sua identidade ou no
assassinato de crianças por policiais em comunidades sob a justificativa de confundi-los com
bandidos, é que há uma manifestação real da população em geral.
Nesse sentido, tal violência possui uma dimensão racional, com uso instrumental e
legitimado, conforme fortalece uma ordem social, assim ela é aprovada e até apoiada por parte da
sociedade. A violência contra a mulher, por exemplo, pode ser tolerável ou abominável, conforme a
internalização de determinadas regras de conduta social, cuja “[...] recorrência é operada de modo
que seja assegurada a coesão social [...]” (FREITAS, 2003 p. 90), os que lincham e matam não são
seres humanos, são “elementos”, são “marginais”. A desumanização do sujeito da violência é a
chave para a perpetração deste processo.
O fato é que partindo do pressuposto de normalidade daqueles atos, as pessoas “de bem” em
nossa sociedade contribuem para a perpetuação da violência contra os jovens, seja por colaboração
ativa, no caso de perpetração da violência, ou por omissão, eximindo-se da responsabilidade sobre
aqueles atos.
Desse modo, retira-se parcialmente a culpa do sujeito, a violência não vem de psicopatas
que se regozijem com dor e o sofrimento alheio, mas de pessoas perfeitamente normais. Judith
Butler, observa que, em determinados enquadramentos, nem todas as vidas são qualificadas
enquanto vidas, dependendo das relações de poder em que estão envolvidas. Determinadas
condições de vulnerabilidade e precariedade servem, neste contexto, para legitimar a violência. No
caso da violência cometida por Raskolnikov a lógica é oposta, dada a precariedade e
vulnerabilidade em que se encontrava o executor do ato ele constrói racionalmente a justificativa e
arquiteta o assassinato de sua credora.
A autora observa como a norma opera para tornar apenas certos sujeitos reconhecíveis. Este
mesmo fato é muito facilmente identificado em séries ou filmes violentos, onde as principais
vítimas são aqueles que não teriam quem sentir sua falta, os sem família, sem visibilidade, os que
estão às margens. Assim, aplicando esse pensamento ao enquadramento de relações, estes sujeitos
marginais são desqualificados enquanto sujeitos de direitos, sendo suas vidas ou mortes
determinadas pelas suas relações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARONOVICH, L. Os muitos preconceitos do Golpe. In: Golpe 16 – Org. ROVAI, R. São Paulo:
Edições Fórum, 2016.
BUTLER, J. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2015.
CARVALHO, A.; GUERRA, E. O Brasil no século XXI: nos circuitos da crise do capital. In:
Revista de Políticas Públicas. São Luiz: 2016.
FREITAS, G. J. de. Ecos da violência: narrativas e relações de poder no Nordeste canavieiro. Rio de
Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política UFJR, 2003.
LOWY, M. Conservadorismo e extrema direita no Brasil e na Europa. In.: Serv. Soc. Soc. São
Paulo, 2015.