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Assim como a historiografia oficial que nos foi imposta, a prática artística
também ainda é muito engessada na perspectiva eurocêntrica. E isto se dá por um
elemento que, embora muito importante, é frequentemente dispensado das análises
sobre as influencias das práticas artísticas: o poder. E entre tantas manifestações
de poder existentes, o que será abordado a seguir é o poder dito “brando”, ou
“suave”, quase sempre disfarçado de abstrato, mas com efeitos visivelmente
concretos.
Se conhece por soft power (ou poder brando) o poder simbólico de um país,
responsável direto por seu prestígio no cenário internacional. Isto inclui os
elementos e práticas – clichês ou não – que configuram seu patrimônio cultural,
tanto o material quanto o imaterial. Diferentemente do hard power, que consiste
nos recursos físicos de um país – extensão territorial, acesso ao mar, reservas de
água potável e fontes de energia, infraestrutura, população, exércitos e capacidade
bélica –, o poder brando se caracteriza pelo acervo simbólico e pela capacidade
criativa de seus habitantes – ou seja, a sua capacidade de sedução.
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A guerra por prestígio se deu principalmente por uma geopolítica de
colonização linguística na qual os estadunidenses lograram impor seu idioma como
língua franca – tendo vencido os franceses nessa disputa logo após a Segunda
Guerra Mundial. Sobre isto, Lacostei comenta que
Há toda uma parafernália estrategista por parte dos poderes estatais que
financia bolsas de estudos, prêmios artístico-literários e cine produções que
atendam aos interesses da manutenção do discurso do seu patrocinador. Em outras
palavras, tais incentivos econômicos visam à manutenção do status quo. Hoje é
sabido que autores como George Orwell e Hannah Arendt tiveram incentivos a
publicação e tradução de suas obras devido a suas colaborações com os serviços
de inteligencia, que consistiam em impregnar suas obras com discursos ideológicos
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favoráveis aos países que lhes premiavam, bem como denunciar outros artistas e
escritores simpáticos ao comunismoiii.
E o poder brando deveria ser levado mais a serio pelos países ditos
periféricos do que geralmente é. Especialmente pela importância dada a ele pelas
potencias hegemônicas. Exemplo claro disso é a balança de poder entre os Estados
Unidos da América e a ex-União Soviética durante a Guerra Fria: embora existisse
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um “empate técnico” em razão do poder duro (hard power) – ou talvez até mesmo
um maior poder deste tipo por parte dos soviéticos – os estadunidenses
conseguiram desequilibrar a balança a seu favor por haver concentrado maior poder
brando – e por isto muitos consideram os EUA como o país vencedor da Guerra
Fria.
COLONIZAÇÃO CULTURAL
2Tradução minha
3E enfatizo as aspas em “ex-colônias políticas” porque ainda são colonias culturais e ideológicas
sob muitos pontos de vista. E não se descarta a possibilidade de serem vistas como colonias
políticas, embora não mais de modo oficial, por sua submissão às ordens de suas antigas ou
novas “metrópoles”.
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Certas práticas coloniais, algumas adotadas para dividir e reinar,
outras por conveniência administrativa, exacerbaram as divisões entre os
indianos. O censo feito pelos britânicos, por exemplo, usava classificações
que reforçavam as distinções de castas entre a maioria hindu. [Bem como]
as diferenças políticas hindu-muçulmanas. (…) Por fim, ao introduzir
costumes, convenções e valores europeus, o governo colonial britânico
inadvertidamente estimulou o surgimento de diversos movimentos
revivalistas hindus. (GANGULY & MUKHERJI, 2014: 132)
Por mais que alguns mexicanos se irritem com os clichês ditos sobre seu país
no exterior – e que percebam que o que mais fascina indivíduos de outro país não
é exatamente o que agrada o cidadão mexicano – é inegável o poder que produtos
da cultura popular televisiva sejam responsáveis pelo reconhecimento do México no
mundo, mais que os elementos das culturas originais.
Há crianças no Brasil que nem sabem onde fica o México, mas sonham em
passar as férias em Acapulco devido ao episódio do programa Chaves (“El Chavo
del Ocho”) que foi filmado lá. Visitei em 2013 o hotel que serviu de locação para as
filmagens e constatei que é o lugar onde os brasileiros se hospedam naquela
cidade. Os funcionários do hotel falam português, e há, inclusive, promoção de
eventos dedicados à nostalgia, como “O Dia do Chaves”, onde funcionários e
hóspedes – brasileiros predominam neste dia – se vestem de Chaves, Kikos,
Chiquinhas e Donas Florindas. As novelas mexicanas são sucesso absoluto no
Brasil. “A Usurpadora” já foi reprisada 11 vezes, sempre com alta audiência, até a
data em que este texto foi escrito. RBD, Thalía, Bolaños, Cantinflas, tacos, tequila,
sombreros, máscaras de lucha libre, praias paradisíacas e desertos de cactáceas
formam um imaginário coletivo acerca do país que se traduz em carisma. E não há
bomba atômica ou poder econômico que consigam superar a forca do carisma sem
uso de forca ou medo.
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cultura, que é no processo estacionada à margem da nova dinâmica
cultural, sem ser agregada à nova cultura colonizadora e transformando-
se aos poucos em vestígio histórico. (COELHO, 1997: 92)
Se por um lado cabe aos Estados periféricos elaborar políticas que deem
conta desta missão, por outro, cabe aos artistas a busca por uma estética própria
que se desvincule das estéticas e, principalmente, dos formatos mainstream que
circulam nos espaços culturais. E é justamente a arte contemporânea que abre
maiores possibilidades para que novas formas de expressão venham à tona.
Bourriaud comenta a respeito:
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na apresentação de novas formas de expressão, também possuem um papel
fundamental neste processo, com abertura de convocatórias, residências artísticas
e um processo curatorial bastante sui generis, por mais que seu objetivo final seja
o lucro financeiro.
CONCLUSÃO
Por outro lado, a feira ArtRio, no Rio de Janeiro, reorientou o foco da sua
curadoria na edição de 2019xv para ampliar a participação de artistas brasileiros,
que em edições anteriores perdiam um considerável espaço para artistas
estrangeiros.
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E essa pluralidade não deve estar atrelada unicamente a ideia de
multiculturalismo, ideia que Bourriaud aponta (equivocadamente, a meu ver) como
solução para o problema do fim do modernismoxvi. A alienação do contexto indicada
por ele pode gerar uma “pasteurização” de fato, sem um discurso identitário. E é
importante que a arte se apresente como produto de um contexto – geográfico,
temporal e identitário, não importando se o artista faz parte daquele contexto ou se
apropriou dele para dá-lo visibilidade. A “guerra discursiva” não se dá somente entre
países, como no caso da análise do poder suave, mas também internamente, por
antagonismos de classe que resultam em contingencias históricas.
4 Tradução minha
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o pensamento, pois sem isto não há possibilidade de um projeto próprio, nem de
ganho do mencionado poder brando.
11
i
LACOSTE, Yves. [Org.] A geopolítica do inglês. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
MADEIRA FILHO, Acir Pimenta. Instituto de cultura como instrumento de diplomacia. Brasília:
ii
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vi
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ix
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x
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xi
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xvi
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169-170
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