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Detecta-se em textos como Esperando Godot (1952), Dias Felizes (1961), Comédia
(1962) e Eu Não (1973), senão uma quebra explícita da quarta-parede, pelo menos um
desconcertante revelar-se da plateia para o palco. Os personagens – e não os atores –
entrevêem (ou muito rapidamente ou intermitentemente e de modo difuso) a plateia.
Estes momentos de (quase) descoberta perturbam o fluxo dramático, pois rompem o
ilusionismo, criando um mal estar que se impõe como exigência de reflexão.
No segundo ato, depois da saída de Pozzo e Lucky e enquanto observa Estragon dormir,
Vladimir monologa um triplo raciocínio que identifica hábito e inconsciência,
contrapondo-os a desespero:
“Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã,
quando pensar que estou acordado, o que direi desta jornada? Que esperei Godot com
Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite? Que Pozzo passou por aqui, com
o seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisso tudo?
(Tendo pelejado em vão com as botas, Estragon volta a se encolher. Vladmir o observa)
Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa)
Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento,
com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto de nossos gritos.
(Escuta) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha para Estragon) Para mim também,
alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso
continuar. (Pausa) O que foi que eu disse?” (Beckett, 2005, p.186)
Assim como observa Estragon dormir, haverá, de acordo com Vladimir, alguém que o
está observando no mesmo estado. E mais, alguém, que também como ele não fará
questão de alertar sobre o desespero de uma realidade refugiada no
hábito/inconsciência. E se este alguém for a plateia, como tudo indica, o ciclo habitual
pode ser rompido.
Mas não o é totalmente. Vladimir, que poderia ter revelada (seguindo o fio de seu
raciocínio) sua realidade ontológica – o ser personagem preso às regras do palco e
eternamente diante do mudo escrutínio da plateia –, simplesmente apaga toda a reflexão
desfiada até ali com um “O que foi que eu disse?”, e volta a comprometer-se com a
espera por Godot.
Enquanto este lugar não se oferece claramente, mais desestabilizações são testadas. Em
Dias Felizes a personagem Winnie, enterrada até a cintura num aclive desertificado,
narra o episódio em que um casal, Cooker ou Shower (ela não recorda exatamente o
nome), passa diante dela, constrangendo-a com seu assombro e interrogações.
Mas para além do espelhamento entre o casal citado e o público, acontece em Dias
Felizes o mesmo deslocamento detectado em Esperando Godot: a plateia é conduzida
de seu posto habitual para dentro do palco. “Estranha sensação – diz Winnie – de que
alguém está me olhando. Estou vívida, depois esmaecida, vívida de novo, depois
esmaecida e assim por diante, indo e vindo, passando e repassando no olho de alguém”.
Na intermitência do piscar dos olhos, ou no empenho mental para a significação, que
oscila entre sentido e não-sentido, aí Winnie se percebe situada e, ao fazê-lo, revela a
presença da plateia para a plateia. Ou, em outra variante, questiona a função da plateia
para a própria plateia.
Esta função e o problema desta função tornam-se, com Comédia e Eu Não, mais
explícitos.
O refletor, ou “olho sem mente” (como o designa o homem), espelha a função dos
espectadores e revela conjuntamente sua irracionalidade e sua crueldade. Na época da
crise do drama ou de sua superação, a função da plateia no jogo cênico entra em crise ou
se transforma. A irracionalidade neste caso deve ser compreendida como o exercício
habitual (inquestionado) de um certo comportamento dramático – postar-se no escuro
confortavelmente com a proteção da quarta-parede – e de uma certa expectativa
dramática – que os personagens se exponham totalmente, permitindo que a peça encerre
um significado. Beckett problematiza o hábito ao drama, característico de um público
paradoxalmente situado na época de sua superação.
Os fragmentos de frases lançados em jorro pela boca não compõem uma história, mas
descrevem em flashes eventos da vida de uma mulher: nascimento prematuro, pais
desconhecidos, convívio com outras crianças órfãs, depoimento em um tribunal,
compras no mercado, mudez continuada até os setenta anos quando tudo fica escuro e
inexplicavelmente as palavras começam a jorrar de sua boca, sem controle e sem
sentido.
Esta não-história pode ser dividida em dois registros: aquele que dá conta dos eventos
ocorridos antes da boca começar a falar; e aquele que a descreve falando no escuro,
incomodada por um raio ou lume de intensidade lunar, perseguida por um zunido
incessante em seus ouvidos e crânio, e confrontada por um olhar fixado em sua direção,
que a faz morrer de vergonha.
Como nas peças citadas, em Eu Não o público é provocado em seu papel dramático. A
boca incontinente e envergonhada mostra-se escrava de uma mecânica cuja essência é
estar obrigado a revelar-se. Se um olhar a fixa, é imperativo que ela “trabalhe”. A
situação fica mais explícita, sobretudo se se lembrar que há um outro personagem no
palco fazendo a mediação com a plateia e espelhando-a. O personagem, chamado
Ouvinte, ouve e assiste a boca e expressa, com um gesto de braços, seu desespero (2).
Tal gesto é acionado toda a vez em que a boca, no exercício de sua fractonarrativa,
recusa-se a assumir-se como sujeito do próprio relato, e replica a impaciência da plateia.
Afinal, para que o jogo dramático aconteça é necessário que o personagem se exponha a
si mesmo (ainda que não queira e que não possa e não entenda e pareça sofrer com
isso).
Contudo, em textos como Aquela Vez (1974), Passos (1975), Solo (1979), Rockaby
(1980) e Improviso de Ohio (1981) Beckett restaura a quarta parede e parece abandonar
a via metalinguística, na qual incorporava elementos técnicos do drama às próprias
fábulas para os problematizar.
e Clov como o personagem de uma história em andamento, criada pelo próprio Hamm e
assistida concomitantemente pela plateia.
Improviso de Ohio e Rockaby podem ser entendidos como dramas da mente similares a
Fim de Partida: eles também se pratica a esquizogenia com intento de preencher uma
falta (do ente querido em Improviso; de um outro ser em Rockaby) e também detecta-se
um mecanismo centrípeto que conduz a plateia para o registro mental dos personagens.
Note-se que aquilo que a plateia contempla no palco é a reprodução do final da história
que está sendo lida. Os quadros que se admiram – um homem que lê para o outro, e
depois (quando o livro termina) um homem olhando para o outro – reproduzem imagens
do livro. A encenação, portanto, está contida no livro e, por isso, encontra-se
paradoxalmente mais distante da plateia do que a narrativa, uma vez que seu grau de
ficcionalidade fica submetido a uma ficção primeira que a engloba, a história narrada.
É para esta distância, para esta camada mais profunda, que a plateia é encaminhada ao
contemplar a cena até o fim. Beckett conduz o público para o que chama de profundezas
da mente ou abismos de consciência. Não se trata aqui de efeito de estranhamento ou
distanciamento, mas de imersão. A arquitetura da peça permite um deslocamento da
plateia para o lugar mais íntimo e grave do personagem.
No primeiro caso, fica-se sabendo que Mulher, no final de um longo dia, diz a si mesma
para parar de ir de um lado para o outro, de ficar para cima e para baixo à procura de
outra criatura, outra criatura como ela mesma, e volta para dentro de casa, onde senta-se
à janela, com as persianas erguidas, observando outras janelas e procurando por todos
os lados, em cima e embaixo por alguma outra alma como ela, até que no final de outro
longo dia, observando as outras janelas, mas todas com as persiana fechadas, diz para si
mesma que é tempo de parar com isso, cerrando então a persiana e descendo por uma
escada íngreme.
No segundo registro, cujo relato coincide com a cena, a Voz explica que Mulher sentou-
se na velha cadeira de balanço que pertencera a sua mãe (a mãe louca que, vestida de
preto, foi embalada na cadeira até a morte) e sentiu-se envolvida pelos braços da cadeira
e, assim, depois de tanta procura, pôde fechar os olhos e tornar-se para si mesma a sua
outra, a sua outra alma viva, e balançou-se dizendo para a cadeira: pare os seus olhos,
foda-se a vida, balance-a daqui.
Notas:
(2) A rubrica original da peça pedia que o gesto do Ouvinte, um erguer de braços,
demonstrasse uma “impotente compaixão”. Contudo, quando dirigiu a peça em 1978,
Beckett pediu que o ator cobrisse a cabeça com as mãos em desespero, como se não
pudesse mais ouvir aquela verborragia. (Brater, Enoch; 2013, p.34)
Referências bibliográficas:
Beckett, Samuel; The Complete Dramatic Works, London: Faber and Faber, 1990.
Brater, Enoch; Beyond Minimalism: Beckett’s Late Style in the Theater, New York:
Oxford University Press, 2013.
Recomendação de leitura:
Brater, Enoch; Beyond Minimalism: Beckett’s Late Style in the Theater, New York:
Oxford University Press, 2013.
Vasconcellos, Cláudia Maria de; Teatro Inferno: Samuel Beckett, São Paulo: Terracota,
2012.
Conversa com Rubens Ruche sobre a dramaturgia de Beckett, por Manuel Fabricio A.
de Andrade e Suely Master: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/sonoridades-
beckettianas/
Conversa com Ana Kfouri e Isabel Cavalcanti sobre o Projeto Beckett, por Cassiana
Lima Cardoso: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/duo-beckett/