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Cuiabá-MT
2017
CINTIA LOPES BRANCO
Cuiabá-MT
2017
CINTIA LOPES BRANCO
.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof.ª Dra. Imar Domingos Queiróz (Orientadora – PPGPS/UFMT)
_______________________________________________________
Prof. Dr Edson Benedito Rondon Filho (PPGS/UFMT)
________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Passos (PPGE/ UFMT)
________________________________________________________
Prof.ª Dra. Leana Oliveira Freitas (PPGPS/ UFMT - suplente)
Keywords: Prison system. State of exception. Bare Life. Homo Sacer. Mato Grosso.
LISTA DE FIGURAS
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 18
5 CONSIDERAÇÕE FINAIS.............................................................................180
6 REFERÊNCIAS......................................................................................... 191
6.1 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 191
6.2 REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS.......................................................... 203
6.3 FORMULÁRIOS RESPONDIDOS......................................................... 212
18
1 INTRODUÇÃO
2Segundo Wacquant, a onda punitiva é o avanço do Estado Penal enquanto política adotada para
gerir a miséria nos EUA, a partir da década de 1980.
19
Além disso, outro fenômeno ficou evidente nesse processo nacional, qual seja,
a inexorável criminalização de uma parcela específica da população, os pobres. O
perfil da massa carcerária no país demonstra que 61,67% dos presos são
negros/pardos, 55,07% jovens – de 18 a 29 anos – e 75,08%3 têm até o ensino
fundamental completo, em sua maioria presos por crimes ligados ao tráfico de drogas.
Em Mato Grosso, o sistema carcerário conta com 8.264 vagas, dispostas entre
44 cadeias públicas, 4 Centros de Detenção Provisória, uma Colônia Penal -
atualmente desativada - e 6 penitenciárias, as quais somam 3.081 vagas. Do total de
10.138 presos, 75,5% são negros, número maior que a média nacional; 54,82% estão
com idade entre 18 e 29 anos; 73,05% têm até o ensino fundamental completo e
5,34% são analfabetos. Embora os números se assemelhem ao perfil nacional, o que
causa espanto é o número de presos provisórios, 5.672 detentos, o que equivale a
55,9%. Destes, 478 (8%) estão no sistema penitenciário há mais de 90 dias.4
Refletir sobre tais questões é de suma importância num momento em que se
discute nacionalmente a implantação de penas alternativas, aparatos tecnológicos de
controle social e de segurança privada, visando a maximização do Estado Penal –
notoriamente marcado pela adoção de práticas de tolerância zero, a qualquer tipo de
crime, e pelo endurecimento de penas – com a premiação por metas à polícia, de
acordo com número de apreensões, e estímulos a atos de exceção. Além disso, com
o avanço da ideologia neoconservadora, direitos caros à Constituição estão sendo
postos em pauta sob uma revisão neoliberal, como é o caso da redução da maioridade
penal, hoje tramitando no Congresso Nacional, o que demonstra a nova concepção
de crime e de criminoso.
Tal momento sui generis exige um processo de reflexão, principalmente ao
confrontar as condições existentes nas penitenciárias com o perfil dos presos do
Brasil: jovens, pobres, pretos e pardos, com baixa escolaridade e moradores de
periferia. Torna-se urgente entender esse processo de criminalização da pobreza e
como os direitos referentes ao cárcere tacitamente vêm sendo destruídos, e, ainda, a
forma como a ideologia neoliberal fixando a ideia de que esse nicho populacional é
composto por seres descartáveis, de “vida indigna de ser vivida” (AGAMBEN, 2007).
3 A taxa de aprisionamento indica o número de pessoas presas para cada cem mil habitantes. O
objetivo de utilizar essa medida é permitir a comparação entre locais com diferentes tamanhos de
população e neutralizar o impacto do crescimento populacional, permitindo a comparação a médio e
longo prazo. (BRASIL, 2015, p. 13).
4 Dados do Ministério da Justiça referentes a dezembro de 2014. (BRASIL, 2015, p. 21).
21
Tal escolha se justifica também por constatar que cerca de 55,9% dos presos
em Mato Grosso são provisórios, ou seja, aguardam o julgamento, por motivo de
segurança, em privação de liberdade, além do que, aproximadamente, 5% não têm
acesso à assistência jurídica. Sendo assim, utilizar-se-á o vocábulo preso, de acordo
com o Direito, sem o sentido de condenado ou de criminoso, atendendo ao direito
constitucional da presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de
Direito.
Cabe alertar que o indivíduo privado de liberdade se encontra sob tutela do
Estado, o que lhe garante, segundo o artigo 5º da Constituição de 1988, a
individualização da pena no cumprimento da sentença em estabelecimentos distintos,
de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, e o respeito a sua
integridade física e moral, dentre outros direitos e garantias fundamentais.
A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal, é produto de um
momento sui generis no cenário social brasileiro. Em vias de uma abertura política,
depois da ditadura que durou 21 longos anos e que delegou ao futuro marcas
indeléveis, a LEP surgiu atrelada ao ideal de Welfare Penal6, um processo de
humanização dos estabelecimentos e das relações desenvolvidas em seu bojo.
Entretanto, tal matéria não prosperou. Primeiramente, porque o que propiciou
um Welfare Penal em outras partes do mundo foi a concretização do Welfare State7,
que, no Brasil, pouco se materializou. Segundo que, embora a LEP seja um grande
avanço no campo jurídico, seu curto espaço de implantação encontrou grandes
obstáculos: a implantação do regime de acumulação flexível e do neoliberalismo, os
quais, à medida em que avançavam, desregulamentavam a proposta da LEP. Por
último, alicerçado também na mentalidade neoliberal, ações de cunho humanista
passaram a ser encaradas como perda de tempo e de recursos, especialmente
quando destinadas àqueles que se encontravam atrás das grades. Para a sociedade
neoliberal, ao praticar o crime, o criminoso perde seu valor jurídico de portador de
direitos, passando a existir enquanto “vida nua” (AGAMBEN, 2007), o que naturaliza
6 Uma estrutura “penal-previdenciária” híbrida, que combinava o legalismo liberal do devido processo
legal e da punição proporcional com um compromisso correcionalista de reabilitação, bem-estar e o
saber criminológico especializado (GARLAND, 2014, p. 93).
7 O conceito de Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social, é a concepção de que o homem é
portador de direitos sociais, ou seja, de um conjunto de bens e serviços que lhe são garantidos pelo
Estado.
23
Cria-se uma paranoia social, e estimula-se uma vingança que não tem
proporção com o que acontece na realidade da sociedade. Através da
história, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sífilis,
prostitutas, alcoólatras, dependentes químicos, indígenas, negros,
9 Teoria norte-americana para o enfrentamento e combate ao crime que apregoa ser a desordem fator
condicionante para elevação dos índices criminológicos. Segundo esse modelo de política de
segurança pública, os pequenos crimes, se não reprimidos e devidamente punidos pelo Estado,
levam aos crimes maiores e à desordem social.
10 Um dos princípios do Movimento de Lei e Ordem é o de separar a sociedade, tendo, de um lado, as
pessoas merecedoras de proteção legal, e, de outro, os delinquentes. Aos últimos devem ser
reservados os rigores da lei e toda a severidade legal, independentemente do tipo de crime cometido.
24
11O Massacre do Carandiru, como ficou conhecido mundialmente, tendo ocorrido no dia 2 de outubro
de 1992, na Casa de Detenção do Complexo do Carandiru, zona norte de São Paulo, quando a
Polícia Militar foi chamada para conter uma rebelião no pavilhão nove. Foram mortos 111 detentos.
25
Gotha (2012), quando tratou de forma breve sobre a regulamentação do trabalho nas
prisões.
É inegável que, ao longo dos anos e até mesmo pelas reorganizações
produtivas do capital, a prisão assumiu diversos significados e funções. Foucault
(1987) foi o primeiro a escrever, de forma mais contundente, sobre a função
disciplinadora, de domesticação dos selvagens e dos corpos dóceis. Considerado um
filósofo pós-moderno, embora rejeitasse tal título, é aqui um referencial fundamental,
adotado exatamente por demonstrar o processo de ressignificação da estrutura
prisional dentro do capital e o impacto social por ela gerado. Outra referência é o
trabalho de Goffman (2015), que conceitua a prisão como “instituição total”, tratando
também do estigma (2013) que acompanha o preso e sua família.
A partir desse ponto, e diria exatamente pelo impacto e influência da obra dos
dois últimos autores citados, o tema perpassou por constantes debates. Assim,
Wacquant e Agamben são indispensáveis para demonstrar como a prisão vem se
adequando às novas condições sócio-históricas do capital. Wacquant será primordial
para explicar o avanço da teoria da “lei e ordem” e da maximização do Estado Penal
em todo mundo, bem como o processo de criminalização da pobreza. Agamben
(2010) se faz essencial por conceituar o “estado de exceção” enquanto condição para
tornar legal e regra aquilo que não é. Na realidade prisional é necessário compreender
como as medidas de exceção funcionam, se proliferam e são aceitas socialmente
enquanto necessárias, embora, na maioria das vezes, representem atos bárbaros,
violadores da dignidade da pessoa humana. É mister compreender que as medidas
de exceção só são possíveis a partir de outro conceito apresentado por Agamben
(2007), o da “vida indigna de ser vivida”, demarcando o limite em que a existência
deixa de ser politicamente relevante para o Estado, podendo, nessa medida, ser
eliminada.
O interesse de investigar as condições de vida nas penitenciárias vem da
vivência de coordenar, entre 1997 e 2000, a Educação de Jovens e Adultos e a
Educação Prisional na 9ª Delegacia de Ensino do Rio Grande do Sul, na cidade de
Cruz Alta, órgão estadual responsável pela elaboração e execução de políticas
educacionais em oito municípios. A experiência de conhecer uma unidade prisional
ficou marcada n’alma. O som da batida da tranca ainda provoca arrepios. A penúria,
o lamento, a miséria, mas, principalmente, a constatação, já aquela época, de que ali
27
Finalmente, cabe ressaltar que tal estudo é, antes de tudo, uma construção
coletiva, calcada na análise e discussão daqueles que contribuem para a construção
dos direitos das pessoas privadas de liberdade, os que entendem que o crescimento
do Estado Penal, a falência da estrutura prisional, a ausência de políticas sociais que
demarquem a atuação do Estado no sistema penitenciário, as precárias condições de
vida, o enfraquecimento da assistência jurídica ou a inexistência dela, o estigma que
envolve o preso e sua família, a falta de políticas de acompanhamento e apoio aos
egressos, entre outros aspectos, perpetuam o ciclo de criminalidade, anunciando uma
tragédia sem precedentes.
Desse modo, a dissertação se constitui em exercício analítico e reflexivo sobre
a vida no cárcere, o crime e o criminoso e sobre o percurso onde o aparato repressor
do Estado se funda a partir de medidas de exceção, tendo como referência as
unidades penitenciárias de Mato Grosso.
30
[...] a fim, pois de o pacto social não ser um vão formulário, nele
tacitamente se inclui a obrigação, a única que pode fortificar as outras;
que, se qualquer um se recusa a obedecer à vontade geral, todo o
corpo o force à obediência [...]. (ROUSSEAU, 2004, p. 34).
13 Segundo Foucault (1987), a estrutura panóptica utilizada por Jeremy Bentham para a concepção
arquitetônica de penitenciária ideal foi inspirada em um zoológico de Versalhes do séc. XVII, cujo
conceito era reunir o maior número de animais em um único espaço, fator que facilitaria a observação
individualizada, a classificação e a organização.
33
[...] As pessoas não só têm que saber, mas também ver com seus
próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mas também
porque devem ser testemunhas e garantias da punição, e porque até
certo ponto devem tomar parte nela. Ser testemunha é um direito que
eles têm e reivindicam; um suplício escondido é um suplício de
privilegiado [...]. (FOUCAULT, 1987, p. 49).
Um dos códigos mais antigos, o Código de Hamurabi 14, com a conhecida Lei
de Talião, vedava a punição excessiva de forma privada por parte da vítima. A
reparação deveria ser de maneira equivalente à infração cometida, e era estipulada a
partir da tipologia do crime cometido e do status de vida pública do criminoso. Segundo
Bouzon (1987, p. 32):
Se uma dívida pesa sobre um awilum e ele vendeu sua esposa, seu
filho ou sua filha ou (os) entregou em serviço pela dívida, durante três
anos trabalharão na casa de seu comprador ou daquele que os tem
em sujeição, no quarto ano será concedida a sua libertação.
(BOUZON, 1987, p. 131).
14 Conjunto de leis escritas de origem mesopotâmica, datada de, aproximadamente, 1772 a. C..
35
o encarceramento. Mais uma vez, o cárcere era apenas um local para manter, sob
custódia, aqueles que sofreriam as punições, definidas pelos governantes, sempre de
acordo com o status social do réu.
Os delitos variavam de blasfêmia, heresia, traição, inadimplência e vadiagem.
As punições eram variavam entre amputação, forca, guilhotina e desmembramento,
todas executadas publicamente e assistidas por multidões. Tais exemplos de
punições públicas eram comuns na Idade Média, sendo o suplício amplamente
valorizado enquanto mecanismo capaz de tornar exemplares as regras de conduta
social. Além disso, tais castigos não atingiam apenas o infrator, mas toda a sua família,
que permanecia, em alguns casos, durante anos estigmatizada socialmente.
Na Idade Moderna, com a miséria que assolava diversos Estados nacionais
durante a implantação dos novos processos de manufaturas e o crescimento das
cidades, o número de expropriados aumentou drasticamente e com eles a
criminalidade. Trabalhadores de todo o mundo eram submetidos a condições
precárias de labor e de vida, assim como a ausência de estruturas mínimas que
assegurassem a dignidade humana. Com essa realidade de exploração constante e
sistemática, o crime se apresentava como uma via de sobrevivência:
No início do século XX, a função da prisão mais uma vez se desloca, dessa
vez em consonância com o Welfare State, na busca pela humanização do cárcere e
enquanto espaço de promoção da reinserção social, o welfare penal. Tal movimento
chegou tardiamente no Brasil, por volta da década de 1970, deixando como fruto a
LEP, uma tentativa de promover a dignidade nas prisões e assegurar direitos mínimos
às pessoas privadas de liberdade, porém, embora a LEP seja um marco jurídico, a
prisão nunca deixou de ser um espaço destinado aos sobrantes, vista como último
recurso para contenção da barbárie social alimentada diariamente pelo capitalismo.
Portanto, as instituições prisionais nascem da necessidade da sociedade
capitalista disciplinar os corpos e viabilizá-los ao mercado de trabalho, enquanto
massa disforme e manipulável, ao mesmo tempo em que se garante a manutenção
da propriedade privada e dos meios de produção sob o domínio de poucos, mantendo
sobre controle, mesmo que a um alto custo, a harmonia social.
Além disso:
A Vida de Santo Elói, obra que cobre o período 588-660, traz uma
passagem lapidar: “Deus teria podido fazer todos os homens ricos,
mas quis que houvesse pobres neste mundo para que os ricos
tivessem uma oportunidade de redimir seus pecados” (MIGNE, 1885,
87, col. 533). Trata-se da dialética da pobreza. (REZENDE FILHO,
2009, p. 4).
Rezende Filho (2009) ressalta ainda que, a princípio, a Igreja atribuía seus bens
como patrimônio dos pobres e, nesse contexto, o bispo era figura chave na prática da
45
caridade, o que pode ser verificado em algumas resoluções dos Concílios da Igreja
Católica, como o de Orleans (511), quando ficou estabelecido que parte dos
rendimentos dos bispos fossem destinados a suprir as necessidades dos pobres, e o
de Mâcon (585), quando ficou proibido que os bispos utilizassem cães para impedir a
aproximação dos necessitados.
Com o passar do tempo, a figura do monge, reconhecidamente caridosa,
assumiu o papel desempenhado pelo bispo na assistência aos necessitados,
entretanto, com a miséria que assolou a Europa feudal, o número de pobres, não
apenas da cidade, mas também do campo, se agigantou:
subsistência, restando apenas a venda de sua mão de obra. Dessa forma, esses
homens livres passam a compor o proletariado urbano, “[...] Sendo livre, o homem
deve saldar todas suas obrigações em dinheiro, uma vez que as obrigações em
trabalho traduzem a marca da servidão [...]” (REZENDE FILHO, 2009, p. 5).
É nesse contexto que o pobre passou a ser considerado abjeto, sem valor,
indigno e culpado por sua condição. A miséria, que promove o crime e a violência,
passou a ser sinônimo dos indivíduos que compõem esse nicho social, a pobreza.
Naquele período, são criadas instituições assistenciais específicas para atender aos
pobres, preferencialmente em lugares afastados, longe do convívio com os demais.
Segundo Rezende Filho (2009, p. 6):
Vale ressaltar que, além dos que vivem na pobreza e na extrema pobreza,
outras parcelas da população serão duramente atingidas com as medidas neoliberais
do atual governo. A título de exemplificação, é o caso dos aposentados e servidores
públicos, que sofrerão um processo de pauperização – que pode chegar a 20 anos –
colocando-os lado a lado com a orla de excluídos.
Nesse cenário, o caos se instaura e se propaga aos olhos de todos, não como
reflexo de uma sociedade drenada pelo capital, mas como produto aleatório de uma
classe social, de um certo “tipo de gente” que mora em determinados locais e sob
circunstâncias questionáveis:
Wacquant (2011) deixa claro que, junto com a matriz neoliberal importada dos
EUA, a ideologia se manifestou na sociedade brasileira, estabelecendo novas
relações sociais, com valores, hábitos e normas assentados na ótica de
contrarreforma do Estado. Essa perspectiva encontrou terreno fértil em uma história
nacional alicerçada na expropriação de terras, no trabalho escravo e na constituição
de uma classe mandatária que percebe os inativos (ou pouco ativos) da produção
enquanto obstáculo e fonte de gastos incalculáveis para o Estado.
Em uma primeira análise, constatamos como a mídia e seus diversos canais
criam um cenário de guerra social, onde os “cidadãos de bem” vivem acossados por
20 Segundo o site da Empresa, “Ao combinar mais de 80 anos de experiência com sua abrangência
global, a Gallup conhece mais sobre as atitudes e comportamentos de funcionários, clientes e
pessoas ao redor do mundo do que qualquer outra organização. Atuando em três áreas principais ---
Consultoria Estratégica, Desenvolvimento da Liderança e Global Analytics --- a Gallup provê análises
e assessoria para ajudar líderes e organizações a resolverem seus mais importantes problemas.
Disponível em < https://goo.gl/uctBgG>. Acesso em 23 nov. 2015.
21 Com sede em Paris, a organização tem por missão: “promote policies that will improve the
economic and social well-being of people around the world” (Promover políticas que melhorem o bem-
estar econômico e social das pessoas ao redor do mundo).
52
aqueles que escolheram uma “vida fácil”. Tal discurso, a princípio, se apresenta como
resultado de livres escolhas individuais, daqueles que optaram viver no bem e
daqueles que decidiram pelo oposto, o bom versus o mau, o produtivo versus o
improdutivo, o mocinho versus o bandido. Porém, o que passa despercebido, e que
não é alvo de abordagem por parte da mídia, é que tais motes trazem no âmago
relações mais bárbaras: o branco versus o negro, pardo, indígenas; o rico versus o
pobre; o dono dos meios de produção versus os ‘donos’ de uma mão de obra
desqualificada e abundante:
que foi prejudicado tem o direito de castigar, comum a todos os homens, e pedir
reparação. Embora essa concepção jusnaturalista aparenta ter sido superada no
século XIX, se monstra ainda presente na sociedade brasileira, exemplo disso são os
justiçamentos e as chacinas, que apesar de serem crimes, contam com o apoio de
uma grande parcela da população. Encarados como um mal necessário, esses atos
bárbaros servem para diminuir o valor jurídico do criminoso e legitimar as condições
desumanas de vida no cárcere:
A manchete surpreende pelo teor e pela exposição pública das crianças 23. Na
reportagem, fica evidente o julgamento de valor, tanto na linguagem e nos recursos
linguísticos utilizados para dar ênfase ao tom pejorativo, quanto nas duas fotos em
que expõe as crianças, maculam sua existência e determinam previamente seu fim.
Culpa de todos nós nada… nem da sociedade. ‘naum’ existe esse tal
vítima da sociedade…. tem que pegar esses 4 e já mata… esses são
os que vão mata, estuprar… (MTNOTÍCIAS.NET, Sorriso, 19 nov.
2016).
De acordo com Baierl (2004, p. 37), “O medo tem sido utilizado como estratégia
de manipulação para subjugar, controlar, escravizar e dominar as pessoas. Frente às
situações de uso do medo as pessoas se sentem aterrorizadas, fogem do perigo ou
se entregam”. O mesmo autor demonstra também que o objeto de medo varia de
acordo com a condição social, estabelecendo-se gradualmente de acordo com o grau
de exposição ao objeto, pois, quando mais rotineiro, menos inseguro o indivíduo se
sente frente a situação:
58
Costa (1994, p. 86, apud BAIERL, 2004, p. 68) vai além e elucida, de forma
precisa, o nascimento do medo social:
Importante observar que não apenas a população mais abastada vive com medo,
ao contrário, a maior parte da população vive e convive com a insegurança, porém
seu medo e sua falta de proteção não são televisionados, tampouco representam
preocupação para o restante da sociedade. Muitas vezes sem condições de construir
um abrigo inviolável, quiçá seguro, com muros e grades, sem controle de sua rotina
diária e acesso a espaços privilegiados, veem no reconhecimento de grupos e facções
– constituídas no vácuo de atuação do Estado – a garantia do ir e vir em espaços
controlados. A violência, não apenas física, passa a fazer parte do cotidiano de
homens e mulheres que, por sua condição social, se submetem ao poder paralelo
para garantir sua segurança:
R.S (2012)24
24R.S. ex-detento, 39 anos, sobre a experiência de viver 12 meses em uma penitenciária de São
Paulo. Disponível em < https://goo.gl/99YDdF>. Acesso em 5 maio 2017.
66
25 A II Caravana Nacional de Direitos Humanos, que teve como tema a realidade prisional brasileira,
esteve em seis estados: Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e
Paraná. Ao todo, entre presídios, penitenciárias e delegacias, foram 17 as instituições visitadas. O
conjunto de estabelecimentos inspecionados reuniu cerca de 15 mil presos, o que nos confere uma
amostra bastante significativa. Foram 9 dias de trabalho ininterrupto, com visitas que se estenderam,
muitas vezes, noite a dentro. A Caravana foi organizada em uma relação estreita de colaboração com
muitas pessoas e entidades. Deve-se destacar, não obstante, o papel desempenhado, em todas suas
fases, pela Pastoral Carcerária da CNBB. O trabalho anônimo e a dedicação de seus integrantes no
cotidiano da vida prisional escrevem uma das páginas mais honrosas da militância pelos Direitos
Humanos no Brasil.
26 Disponível em < http://goo.gl/97xgaj>. Acesso em 7 jun. 2016.
67
como, por exemplo, o nome da unidade pesquisada. Com o resultado das buscas com
base em vários outros sites de notícias, a procedência da informação, para somente
depois utilizá-la.
Com tais procedimentos foi possível verificar as condições de funcionamento
das unidades investigadas e estabelecer um quadro geral do sistema penitenciário do
estado, espaços que se apresentam sem as condições básicas asseguradas por lei,
o que, aliada à superpopulação, transforma o espaço de privação de liberdade em um
calvário que desvela o lado selvagem do ser humano para a garantia da sobrevivência.
Foucault (1987) conceitua a estrutura prisional como um espaço de dominação
e domesticação dos corpos indóceis:
Entretanto, com o passar das décadas, essa conceituação ficou mais distante
da realidade. Atualmente, a estrutura prisional se destina ao espaço de contenção
daqueles considerados nocivos à sociedade, não apenas enquanto representação de
perigo iminente, mas, principalmente, como prejudiciais à ordem social e,
consequentemente, à atual estrutura econômica:
68
28 Frase proferida pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em 13 nov. 2012. Disponível em <
https://goo.gl/esn5J2 >. Acesso em 5 jun. 2017.
29 Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013. Disponível em <https://goo.gl/jzUSi7>. Acesso
em 31 mar. 2017.
70
30 Pela virtude mais que pelo ouro, lema do estado de Mato Grosso.
31 A expressão “em se plantando tudo dá” remete à Carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei
Dom Manuel, em 1500, ao descrever o Brasil.
32 Balanço da Violência no Campo, Comissão Pastoral da Terra - CTP -Disponível em
expiação dos crimes dos considerados selvagens, fracassados, inúteis e, por essa
razão, dispensáveis.
35 Presidente do Sindicato dos Agente Penitenciários de Mato Grosso em declaração sobre a situação
da PCE e de outras unidades do estado, em 8 jan. 2017. Disponível em < https://goo.gl/pZgsPt >.
Acesso em 5 jul. 2017.
36 A LEP determina, em seu Art. 90, que “A penitenciária de homens será construída em local
afastado do centro urbano, à distância que não restrinja a visitação”. Em 6 de junho de 1994, foi
promulgada a Lei Ordinária n. 6.447/1994, que dispõe sobre a criação e instalação de penitenciárias
em áreas urbanas, de autoria do então Deputado Estadual Jorge Yanai: “Art. 1º Fica proibida a
criação e instalação de penitenciárias em áreas urbanas e/ou em suas proximidades, no Estado de
Mato Grosso” (Lei nº 6.447, de 06 de junho de 1994. p. 1). Disponível em <https://goo.gl/6AZ8UU>.
Acesso em 1º abr. 2017.
73
No mesmo ano foi celebrado convênio entre Estado e Federação para reforma
e reestruturação da mesma Penitenciária40. A PCE foi interditada em 2001 e reativada
em 2002, numa obra que ultrapassou R$ 4 milhões de reais – valor significativo, se
comparado com a construção, três anos depois, da primeira escola modelo, referência
para Mato Grosso e para o país, que teve um custo estimado de R$ 1,2 milhões. 41 A
obra da penitenciária Paschoal Ramos consistia em “reforços nas paredes,
0 0
43%
57%
Condenados Provisórios
3%
7%
90%
Fonte: Formulário respondido pela direção da instituição, Cuiabá, 06 de março de 2017 e dados da
Corregedoria Geral da Justiça de Mato Grosso.
Nos últimos doze meses, nove presos foram a óbito. Ao final, não foi possível
computar o total de mortos na história da unidade. A direção do PCE declarou não
haver denúncia de maus-tratos e torturas, assim como alegou que as celas obedecem
aos padrões estabelecidos na legislação. As celas consideradas adequadas pela
unidade o seriam, não fosse o fato de a unidade operar com 146% acima de sua
capacidade, o que, para o juiz de Execução Penal, Geraldo Fidelis, beira ao crime de
tortura43 (PONTO DA CURVA, 13 jun. 2016).
Em dezembro de 2016, matéria jornalística, veiculada no portal G1, dava conta
da lotação das celas que, projetadas para abrigar até 8 presos, alojam perto de 30.
Para denunciar a situação, os detentos fizeram um abaixo-assinado ao Juiz de
Execução Penal da Comarca de Cuiabá:
O abaixo-assinado foi feito pelos presos dos quatro raios, além do raio
dos evangélicos, do módulo onde ficam os trabalhadores, e do raio 5,
para presos que cumprem penas mais rigorosas. O documento foi
encaminhado ao juiz Geraldo Fidélis nesta semana44. (G1, 10 dez.
2016).
pelo Regime Jurídico Único, enquanto os funcionários ou trabalhadores são ligados a iniciativa
privada e regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas.
49 Disponível em <https://goo.gl/UTZExP>. Acesso em 27 fev. 2017.
50 Disponível em <https://goo.gl/hvbdvn>. Acesso em 27 fev. 2017.
51 Comando Vermelho Rogério Lemgruber, mais conhecido como Comando Vermelho e pelas siglas
CV e CVRL, é uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 na prisão
Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro como um conjunto de presos
comuns e presos políticos, militantes de grupos armados, sendo os presos comuns membros da
conhecida Falange Vermelha. Disponível em <https://goo.gl/gvMLWT>. Acesso em 28 fev. 2017.
80
7%
93%
52A unidade não deu maiores informações, porém presume-se que a referida marmitaria é a mesma
que o governo contratou por meio de licitação para fornecer alimentação ao sistema penitenciário.
81
56Presidente da Comissão de Direito Carcerário da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Mato
Grosso (OAB-MT), em 29 mar. 2015. Disponível em <https://goo.gl/KD4fui>. Acesso em 6 jul. 2017.
83
0,80%
4,90%
1,30%
3%
13%
21%
56%
5%
18%
77%
O que nos leva a afirmar, baseados nos estudos de MAIA (2009), que
cada unidade prisional deste Estado e mesmo do país tem uma vida
própria, muitas vezes autônoma dos poderes constituídos. O que
determina a forma, as reformas, a vida cotidiana vai depender mais de
como se dá a disputa de forças dentro da unidade e se a gestão tem
uma habilidade de negociar do que qualquer outro tipo de interferência
central. (ALMEIDA, 2013, p. 31).
devido à falta de um acompanhamento mais eficaz, uma vez que são simplesmente
encarcerados e ali abandonados à própria sorte.
Em 2008, uma denúncia feita à Procuradoria Geral de Justiça, apontava que o
diretor do CRC à época, estava envolvido na fuga de três traficantes. A denúncia
também citava situações de corrupção, dentre elas a venda de regalias dentro da
unidade e desvio de verbas:
Para integrar uma ala evangélica, o detento deveria cumprir uma série de
exigências, que iam desde comparecer aos cultos a pagar por regalias. Aqueles que
se negassem a fazer isso sofriam retaliações que iam desde a perda do colchão para
dormir até ameaças de agressões ou de morte:
67 Idem.
68 Disponível em < https://goo.gl/A4XXP1>. Acesso em 22 abr. 2017.
90
69 Idem.
70 Disponível em <https://goo.gl/1nSfrJ>. Acesso em 22 abr. 2017.
91
19%
81%
71 Ana Maria do Couto, May foi uma mulher à frente do seu tempo. Nascida em Cuiabá, no dia 13 de
setembro de 1925, viveu sua vida intensamente e serviu de referência para o movimento feminista de
Mato Grosso. May, apelido de infância que lhe acompanhou durante a vida, era formada em
Educação Física (UFRJ), Contabilidade (ETCC) e Direito (UFMT), tendo sido a primeira professora de
Educação Física concursada no estado, a primeira locutora de notícias estaduais, a primeira mulher a
presidir a Câmara Municipal de Cuiabá e a primeira delas a presidir um time de futebol no país,
dentre tantos outros feitos. Morreu aos 46 anos, vítima de um câncer, no dia 17 de outubro de 1971.
(OLHAR DIRETO, 8 mar. 2013). Disponível em <https://goo.gl/TLtL7Y>. Acesso em 11 jul. 2017.
72 Diretora da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, May, em 25 dez. 2016. Disponível em
maus-tratos. Este ranking, no entanto, não representa uma grande conquista, apenas
coloca a penitenciária feminina no segundo patamar menos pior para se estar, quando
privado de liberdade.
Com 180 vagas, atualmente abriga 206 detentas em regime fechado. A unidade
já passou por um período mais conturbado, quando abrigou uma população total de
450 mulheres, com, aproximadamente, 17 presas por cela, oriundas das cadeias do
interior, interditadas por péssimas condições. Atualmente, funciona com 14% acima
de sua capacidade, o que representa, aproximadamente, 6 detentas por cela, número
pequeno se comparado à lotação nas demais unidades prisionais, ainda em
desacordo com o previsto pela legislação. Os crimes são diversos, com destaque para
o tráfico de drogas. Entretanto, chama atenção o número de condenações por estupro
e atentado violento ao pudor, pouco divulgados nos meios de comunicação.
Figura 11. Tipos de crimes Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, May
100
90
90
80
70
60
50
40
30
20 20
20 15
10 10 10 10 10
10 5 4
0 0 0 2 0
0
Homicídio Latrocínio Roubo Furto Tráfico Consumo de Estupro Atentado
Droga violento ao
Provisório Condenado pudor
Figura 13. Perfil étnico das detentas da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto,
May
3%
10%
87%
que, com dados mais recentes, sejam explicadas as causas dessa diminuição e se a
situação apresentou alteração, procedimentos não possíveis de realizar nesse estudo.
Nenhuma das detentas da unidade frequentou, mesmo que parcialmente, um
curso superior. Cerca de 43%, não concluíram o Ensino Médio e 50% sequer
chegaram a ele. Desses números, mais de 1% permanece analfabeta, mesmo
havendo aulas regulares na unidade, como ilustrado pela Figura 14.
Figura 14. Escolaridade das detentas da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto,
May
0 1%
0
5%
26%
44%
24%
Figura 15. Situação das detentas da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, May
33%
67%
Provisórias Condenadas
As detentas podem receber até R$ 200,00 por semana dos visitantes, para
gastos na unidade com produtos e serviços na cantina, na panificadora ou no salão
de beleza. Dos produtos vendidos, parte do lucro fica com as elas e parte vai para a
melhoria da estrutura prisional. A entrada de valores periódicos nas penitenciárias do
Estado garante um comércio paralelo e lucrativo, que funciona à margem do sistema,
porém, não escondido dele.
Na fila, do lado de fora da unidade, enquanto os visitantes esperam, é comum
negociações entre familiares, para que determinado visitante, que não entrará com
dinheiro, leve determinado valor para outra detenta. Esses acordos entre visitantes
demonstram relações de confiança, desenvolvidas a partir de adversidades, deixando
claro, por gestos ou por declarações, que nesses meios o inimigo não é o outro, mas
sim a polícia, os agentes penitenciários, as figuras que representam a manutenção da
ordem.
As situações mais delicadas são das detentas que nunca recebem visitas –
cerca de 60%, ou seja, 120 mulheres, segundo dados fornecidos pela unidade. Elas,
além de não terem contato com amigos e parentes, não recebem comida, roupa e
dinheiro, como é o caso das duas detentas estrangeiras, ambas bolivianas,
condenadas por tráfico internacional de droga. O fato de não receberem visitas e,
consequentemente, não terem acesso aos benefícios que as famílias proporcionam,
as coloca dependentes de um Estado que, embora legalmente responsável pela
integridade das pessoas privadas de liberdade, não lhes garante condições dignas de
vida – tornando-as reféns das relações estabelecidas com as demais detentas ou,
ainda, como vítimas das organizações criminosas que atuam dentro da unidade:
75 A Fundação Nova Chance (FUNAC) é uma instituição de Mato Grosso autorizada, pela Lei nº
291/2007 e institucionalizada pelo Decreto 1.478 de 29 de julho de 2008, vinculada à Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos (Sejudh/MT).
76 Salário mínimo nacional em vigor a partir de 1º de janeiro de 2017.
101
Figura 16. Trabalho Prisional na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, May
14%
86%
14%
27%
59%
80 Segundo o Jornal Online Só Notícias (21 dez. 2015) o Delegado Dr. Osvaldo Florentino Leite
Ferreira, conhecido como Ferrugem, trabalhou muitos anos na região de Peixoto de Azevedo e
ganhou reconhecimento por prender um criminoso, “Rambo”, que atuava na região e no município de
Castelo dos Sonhos (PA). O jornal ainda informa que “mesmo ficando tetraplégico e obrigado a usar
cadeira de rodas, após levar um tiro durante uma operação, continuou trabalhando e recusou a
aposentadoria.
81 Declaração do então secretário Estadual de Justiça e Segurança Pública, Célio Wilson de Oliveira,
sobre a vinda do Ministro da Justiça para inaugurar a Penitenciária “Ferrugem”, em 23 jan. 2006.
Disponível em < https://goo.gl/VGiFiD>. Acesso em 6 jun. 2017.
105
[...] O Certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa
de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um
respeito silencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez
apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém
mais quer pensar nelas.
Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus
carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida [...] (CALVINO, 1990,
p. 105-106).82
82 Zygmunt Bauman faz a comparação da eliminação dos “dejetos sociais” com o conto da cidade de
Leônia, de Italo Calvino, em sua obra Vidas Desperdiçadas, 2004, p. 7-11.
83 Idem.
106
Dos 849 detentos que vivem na penitenciária, com idade que varia entre 18 a
60 anos, pouco se tem registro. Não foram disponibilizados dados oficiais e inteligíveis
sobre sua etnia, idade, escolaridade e reincidência criminal, dentre outros, fator que
inviabiliza estudos e pesquisas que contribuiriam na elaboração de alternativas para
o sistema prisional:
Figura 18. Situação dos detentos da Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite
Ferreira
49%
51%
Provisórios Condenados
Quanto aos presos não julgados, não foram disponibilizadas informações dos
supostos crimes que os levaram à prisão provisória e nem o tempo que permanecem
aguardando o julgamento, o que dificulta qualquer estudo sobre a situação carcerária
do estado e sua relação com a atuação da justiça. Cabe ressaltar que a situação dos
presos provisórios de Mato Grosso em nada difere do que ocorre no restante do país:
8590 dias é o “prazo previsto para encerramento da instrução preliminar do procedimento do Júri e
pouco superior à soma dos prazos do procedimento ordinário para encerramento da instrução e
prolação da sentença”. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen considera
que, de uma forma geral, e desconsiderando as peculiaridades do caso concreto, é lícito concluir que
esse é um prazo razoável para encerramento da instrução.
108
50
7
116
60
27 23
40
112
São vários os fatores que fazem com que a Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino
Leite Ferreira seja vista como uma bomba relógio. O primeiro deles é a falta de
atividades laborais (Figura 20) e de oficinas profissionalizantes, o que faz com que a
maioria dos detentos fiquem na ociosidade e, assim, sem possibilidade de
desenvolver qualquer atividade que possa ajudá-los no processo de reinserção social.
Figura 20. Trabalho Prisional na Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira
12%
88%
4%
10%
5%
81%
94 O Major PM Eldo Sá Corrêa era diretor do Presídio do Carumbé e foi feito refém durante a Chacina
de 1989, episódio em que a Polícia matou 12 pessoas ao invadir a penitenciária, após encerradas as
negociações que duraram mais de 48 horas. O Major, à época com 60 anos, foi libertado antes da
invasão policial, mas morreu três dias após, em decorrência de um mal súbito. (PRISIONAL, 1º jul.
2011). Disponível em <https://goo.gl/GS76QP>. Acesso em 11 jul. 2017.
95 Suziene de Souza Cavalcante, bacharel em Direito, escritora, cantora e compositora, que atua há 7
De acordo com o jornal O Estado de São Paulo – Estadão - (07 jan. 2017),
estima-se que há 27 facções criminosas atuando em todos os estados do país, duas
delas, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), disputam
o apoio dos outros 25 grupos locais pelo comando do crime organizado. Mato Grosso,
embora não esteja na rota principal do tráfico, tem suas facções atuando no tráfico de
drogas na fronteira com a Bolívia, e que também consolida o poder do grupo na
fronteira com o Paraguai. O PCC é o grupo com maior poder em Mato Grosso
atualmente, entretanto, a disputa de espaços com o CV tem trazido instabilidade para
seu sistema prisional:
Figura 22. Perfil étnico dos detentos da Penitenciária Major PM Eldo Sá Correa
1%
16%
36%
24%
23%
1%
18%
45%
13%
14%
5%
2%
2%
28%
72%
Provisórios Condenados
101 Com o objetivo de garantir e promover os direitos fundamentais na área prisional, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) realiza, desde agosto de 2008, o Mutirão Carcerário. Em síntese, a linha
de atuação nos Mutirões é baseada em dois eixos: a garantia do devido processo legal, com a
revisão das prisões de presos definitivos e provisórios; e a inspeção nos estabelecimentos prisionais
do Estado. A iniciativa reúne juízes que percorrem os estados para analisar a situação processual das
pessoas que cumprem pena, além de inspecionar unidades carcerárias com o objetivo de evitar
irregularidades e garantir o cumprimento da Lei de Execuções Penais. Disponível em
<https://goo.gl/ikPd7A>. Acesso em 8 maio 2017.
102 Idem.
103 Disponível em < https://goo.gl/y5z5y6>. Acesso em 8 maio 2017.
121
0,3%
3%
7%
89,7%
16%
84%
108 O Major PM Zuzi Alves da Silva atuou durante 45 anos junto a Polícia Militar e esteve no Comando
da Polícia Civil de 1975 a 1981. Faleceu em 18 mar. 2003. (POLÍCIA JUDICIÁRIA CIVIL, 3 jul. 2015).
Disponível em < https://goo.gl/c2sCkL>. Acesso em 11 jul. 2017.
109 Fala de Nilson dos Santos Penteado, Diretor da Penitenciária Major PM Zuzi Alves da Silva, sobre
os a assistência religiosa garantida aos detentos da unidade (ÁGUA BOA NEWS, 6 jan. 2016).
Disponível em < https://goo.gl/AnCtXv>. Acesso em 11 jul. 2017.
125
município próspero da porção média do Vale do Araguaia. Com capacidade para 360
detentos, opera 40% acima de sua capacidade, abrigando o total de 504 homens.
Segundo dados fornecidos pela Direção da unidade, a idade dos detentos varia
entre 18 e 60 anos, sendo que a maioria se autodeclara parda e tem o ensino
fundamental incompleto. Embora não tenha fornecido o número de defensores
públicos que atuam na região, a direção informou que não há presos sem assistência
jurídica, se tornando, assim, a única penitenciária do estado a apresentar tal situação.
Quanto à saúde, a direção informou que 1 médico e 1 odontólogo atendem na
unidade, além disso, há programas de tratamento e prevenção de doenças crônicas
e infectocontagiosas, porém, não revelou se abriga presos em sofrimento mental.
Em setembro de 2006 ocorreu a primeira rebelião, quando mais de 321
detentos se amotinaram exigindo, além da transferência de 40 presos de Água Boa
para o PCE, em Cuiabá, a flexibilização das regras de segurança, como a permissão
de entrada de alimentos na unidade, a exemplo do que ocorrera em outras
penitenciárias do Estado:
Em janeiro de 2007 ocorreu nova rebelião, dessa vez com 170 presos que
aproveitaram o momento do banho de sol para fazer dois agentes penitenciários de
reféns. A rebelião atingiu três raios da unidade113 e se estendeu por 3 dias.
Dentre várias reivindicações, os presos exigiam a transferência de alguns
detentos para Cuiabá, seus locais de origem e onde residiam os familiares. Segundo
a matéria jornalística do Mídia News, de 5 de janeiro de 2007: “Os presos pedem ainda
melhorias no tratamento dentro do local e regalias, como a liberação de mais visitas. Tem
rebelado pedindo também a progressão de pena e a troca da direção do presídio114.”
Mesmo em situação precária e sem estrutura física de uma unidade de segurança
máxima, a penitenciária de Água Boa seguiu funcionando até o ano de 2011, quando foi
embargada pelo juiz da Comarca local, sob alegação de insalubridade, visto que os
despejo do esgoto da Penitenciária eram lançados em um rio da região, sem o devido
tratamento:
Além dos agentes penitenciários, o Diretor, João Fernando Feitosa dos Santos,
também foi afastado por possível conivência com o ocorrido.
9%
16%
8%
67%
Fonte: Formulário respondido pela direção da instituição, Água Boa, 21 de setembro de 2016.
Ainda conforme os agentes, o preso foi atraído para uma cela onde
acabou esfaqueado. Os presos passaram a noite esquartejando o corpo
da vítima e despejaram os pedaços na rede de esgoto. O crime foi
descoberto no outro dia, quando os agentes perceberam que o preso
havia desaparecido e encontraram partes do corpo no esgoto122. (G1, 22
nov. 2016).
O fato de a magistrada afirmar que “no geral os presos estão com sua dignidade
pessoal preservada”, leva à reflexão da situação de vida nas penitenciárias de Mato
Grosso. O que significa condições condizentes com a dignidade humana? Há níveis
do que seria degradante ou não, dependendo do público envolvido? Em que momento
a Justiça passou a normatizar a partir de padrões conjunturais e não legais? Até que
ponto o caos do sistema penitenciário do Estado será mantido sob a perspectiva de
que estamos bem, por não estarmos tão mal?
Com a célebre sentença: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis,
mas se as que lá existem são bem executadas, pois boas leis há por toda a parte”
(MONTESQUIEU, 2000), Montesquieu, o filósofo francês, em sua obra, sintetiza o
abismo que pode existir entre a letra da lei e sua concretude. Essa constatação
adquire maior impacto já que vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde a
participação política e o contrato social – celebrado a partir da proteção jurídica – são
as garantias de democracia representativa, de igualdade jurídica e da liberdade civil.
Quando a base jurídica que sustenta esse Estado se transforma em algo frágil e
seletivo, a ruína é uma questão de tempo, logo se manifestará no prejuízo daqueles
que socialmente possuem menos dispositivos para garantir a materialidade de seus
direitos:
124 Publicação do deputado federal Major Olímpio (SD-SP), em rede social na qual faz placar com as
mortes de presidiários em Manaus e Roraima. Disponível em < https://goo.gl/nGaFeu>. Acesso em 13
jul. 2017.
125 Segundo Teixeira (2009, p. 86) “a jurisdicionalização representaria a mediação pelo sistema de
justiça nas relações e situações que caracterizam o cotidiano do cumprimento da pena [...]”
133
Tal marco legal trouxe à luz a figura do preso que, mesmo em privação de
liberdade, é possuidor de direitos:
Para compor essa sessão, serão apropriados dois conceitos cunhados pelo
filósofo italiano Giorgio Agamben: estado de exceção, como medida de
excepcionalidade utilizada para conter as crises criadas pelo capitalismo, e homo
sacer, o ser sacrificável, o indivíduo que perde seu valor jurídico ao ponto de se tornar
matável.
Utilizado em situações de excepcionalidade, o estado de exceção, ou um dos
muitos outros nomes que o adjetivam – estado de sítio, estado de emergência,
ameaça à ordem pública, ameaça à segurança nacional – vem sendo empregado
mundialmente como ferramenta para a governabilidade, onde o Estado suspende o
direito para resolver aspectos que considera danosos ao seu funcionamento:
128No mês de maio de 2017 ocorreu o “Ocupa Brasília”, manifestação convocada por centrais
sindicais e movimentos populares pedindo a renúncia do presidente Michel Temer e a convocação de
eleições diretas (EL PAÍS, 25 maio 2017). Disponível em <https://goo.gl/J6PH14>. Acesso em 12 jul.
2017.
136
mercado produtivo, embora não se tenha garantia por quanto tempo – contra eles, os
excluídos, seres descartáveis de menor ou nenhum valor, que, em nome do bem
comum ou de um objetivo maior, podem ser sacrificados, assumindo a condição
definida por Agamben como Homo Sacer:
129Declaração do Secretário de Segurança Pública de Mato Grosso criticando a atuação dos órgãos
de defesa dos Direitos Humanos, que, segundo ele, deveriam, antes de tudo, proteger um “pai de
família”: “Quem está sendo culpado pelos crimes são as vítimas e não os bandidos” (OLHAR
DIRETO, 12 fev. 2015). Disponível em < https://goo.gl/qvf7g9>. Acesso em 14 jul. 2017.
139
atingidos pela sentença ou pela lei”, garantindo a não distinção de natureza racial,
social, religiosa ou política:
[...] ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou
ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe
e posição social. [...] Há uma clara demonstração de que não somos
todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma
orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores
marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de
rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou
contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade
livre. A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de
suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do
criminalizado. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 73).
Figura 28. Faixa etária das pessoas privadas de liberdade em Mato Grosso130
1%
6%
15%
33%
19%
27%
Figura 29. Raça, cor ou etnia das pessoas privadas de liberdade em Mato Grosso131
Coluna1
0,20% 0,10%
16,20%
83,50%
Figura 30. Estado civil das pessoas privadas de liberdade em Mato Grosso132
1,6%
2,5%
2,1%
10,4%
43,3%
40,1%
131 O Infopen considera raça como o grupo definido socialmente em razão de características físicas e,
etnia, por grupo definido pelo compartilhamento histórico, religioso ou cultural. A categoria negra
inclui pretos e pardos. 74% de pessoas com informação (BRASIL, 2015, p. 51).
132 72% de pessoas com informação (BRASIL, 2015, p. 54).
141
1%
8% 11%
8%
14%
19%
40%
homens - Brasil
3%
8%
25%
14%
3% 2%
12%
21%
tráfico
mulheres - Brasil
quadrilha ou bando
3% 0%
2% roubo
8%
furto
7% receptação
1%
homicídio
8%
latrocínio
7% 63% desarmamento
violência doméstica
1%
outros
homens e mulheres - MT
21,5%
3,4% 0 27,3%
7,8% 0
18,9%
17,4%
13,1%
0
134Assim como destacado acima, a Figura consolida os registros informados de todas as ações
penais pelas quais respondem as pessoas privadas de liberdade em todo o Brasil, por gênero. Há
pessoas que estão sendo processadas ou já foram condenadas por mais de um crime. Desse modo,
não se pode estabelecer um paralelo entre essa distribuição percentual por crimes e os quantitativos
de pessoas presas (BRASIL, 2015, p. 70).
143
que pode chegar a 1 servidor para 7,7 pessoas em privação de liberdade. Segundo
Sá e Alves (2009, p. 2), não se trata da elaboração de um parecer padronizado, mas
sim de programas adequados ao perfil (ou perfis) dos presos”, assim como da difícil
tarefa de acompanhar o desenvolvimento de tais programas e a evolução do preso.
De acordo com o Relatório da situação atual do sistema penitenciário: comissão
técnica de classificação (Brasil, 2008 p. 8), Mato Grosso conta com CTC em seus
estabelecimentos penais, porém, essas atuam somente na deliberação sobre exames
criminológicos:
Um dos princípios do Digesto de Justiniano, do ano de 533, “[...] o ônus da prova recai sobre
136
137PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 Ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p. 209.
147
138A Penitenciária Major PM Zuzi Alves da Silva e o CRC não informaram o número de presos
provisórios.
148
1400 1302
1250
1200
1000 943
891 896 892
800
600 522
435 414
400 327 349 353
146 180
200
60 26
0
PCE Maria do Couto May Dr. Osvaldo Florentino Major PM Eldo Sá CorrÊa
Leite Ferreira
4.1.3. Da superlotação
A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre
de dormir sob pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão.
FRANCE, 1906, p. 118
141 O massacre, considerado como extermínio por entidades de defesa dos Direitos Humanos,
ocorreu em janeiro de 2017, no Complexo Prisional Anísio Jobim, em Manaus, quando presos da
facção Família do Norte se aliaram ao CV e entraram em conflito com o PCC. Durante a rebelião 56
pessoas foram executadas e 87 presos fugiram.
142 No ano de 2013, o Brasil aprovou a Lei 12.847 que institui o Sistema Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura (SNPCT), bem como criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(CNPCT) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Já o Decreto n.
8.154, de dezembro de 2013, regulamentou o funcionamento do SNPCT, sua composição e o
152
Tais práticas de abuso e violência são constantes, não apenas pela pouca
formação, como também pela rotatividade de funcionários:
funcionamento do CNPCT, assim como dispôs sobre MNPCT. (BRASIL. Relatório de Visita a
Unidades Prisionais de Manaus-AM, 2016). Disponível em <https://goo.gl/wu88yd>. Acesso em 13
jun. 2017.
153
Sob a argumentação de que o Estado não era capaz de controlar o que ocorre
no sistema prisional, argumentos pró-privatização dos estabelecimentos penais
proliferam, incentivados por discursos de ódio e de intolerância, difundidos pela mídia,
agravando o cenário de insegurança e medo, além de contribuir na legitimação no
deslocamento da atuação do Estado em benefício da privatização enquanto solução
154
definitiva para o problema. Não é coincidência que, assim como ocorreu nos EUA, o
Poder Legislativo – comprometido com interesses privados – sejam promovidas
revisões na legislação penal, fazendo vigorar forte repressão às drogas, a chamada
“Guerra às drogas”, e a diminuição da maioridade penal. De acordo com Costa e
Duarte (2017),
Nessa medida, tudo o que lhes ocorrer ainda é pouco na satisfação da vingança
pessoal que cada indivíduo “de bem” clama como direito seu.
4.1.4.1 Da alimentação
152O Jumbo CDP é uma empresa pioneira no envio de jumbo para unidades prisionais. Com sede na
cidade de São Paulo, o Jumbo CDP surgiu com o intuito de beneficiar e minimizar o drama vivido por
familiares e amigos de pessoas que foram detidas. Hoje já são mais de 2 anos de experiência e
comprometimento neste ramo, tornando o trabalho sério e de extrema qualidade reconhecido e até
mesmo indicado por diversas unidades prisionais. Disponível em < https://goo.gl/bLPNjy>. Acesso em
20 maio 2017.
160
Fonte: Site Jumbo CDP - Loja Especializada na Lista de Jumbo dos CDP de SP, 2017.
Fonte: Site Jumbo CDP - Loja Especializada na Lista de Jumbo dos CDP de SP, 2017.
Nada poderia ser mais utópico, visto que nas penitenciárias estudadas,
incluindo as construídas após a promulgação da LEP, as condições presentes no
Artigo 88 nunca foram contempladas. E, mesmo se a partir de agora se designasse
uma cela para cada condenado, não haveria estrutura física para abrigá-los, mesmo
construindo novas unidades. Essa é uma conta que nunca fechará, posto que o
aprisionamento é em número maior ao que se liberta:
confirmação de quantas delas estão em uso e em quais unidade, assim como são
estabelecidos os critérios para semelhante aprisionamento. Tampouco foi possível
verificar se os containers são novos ou se foram reaproveitados, como o que ocorreu
em Santa Catarina, quando o governo daquele estado comprou as estruturas do setor
de construção civil e os adaptou para uso como celas móveis.
O juiz Luis Lanfredi, coordenador do Mutirão Carcerário de 2011, em visita à PCE
e à CRC, revelou que cada uma das unidades possui uma cela móvel, com capacidade
para 120 presos. Segundo ele:
162
Medidas de Segurança são sanções penais destinadas aos indivíduos inimputáveis e, por vezes,
semi-imputáveis, tendo como objetivo a prevenção especial, por intermédio do tratamento curativo do
agente.
169
ilusória, já que desde a planta as instalações (uma unidade com seis leitos e um
ambulatório) não supririam as necessidades. Segundo Zanizor Rodrigues da Silva,
psiquiatra e diretor do Hospital Adauto Botelho:
Algumas entidades que atuam na defesa dos Direitos alertam que, embora as
condições de vida nas penitenciárias sejam precárias, o objetivo maior dessas
organizações é combate ao encarceramento em massa e a seletividade punitiva, pois
entendem que o cárcere é a maior das violações.
A criminologia feminina contribuiu no avanço da discussão de gênero relativa à
questão penal, pois, segundo Silva (2011, p. 21) “[...] situou as categorias de
patriarcalismo ao lado do capitalismo, as relações de gênero ao lado da luta de classes
e as formas de dominação masculina sobre a mulher ao lado da dominação classista”.
Em suas reflexões, Netto e Borges (2013, p. 321) explicam o surgimento dos
mecanismos de controle atribuídos a cada gênero e o que se pretendia consolidar,
seja para recuperação, seja enquanto exemplo para a sociedade:
“O que é isso? Foi uma paulada que tomei”! respondeu o jovem que
tinha marcas roxas pelo corpo. Este diálogo foi entre o Relator e um
preso de 22 anos, que estava na cela de “castigo”, e que revelou que,
frequentemente, agentes penitenciários batem e torturam. (BRASIL,
2009, p.158).
Embora existam acordos internacionais que visam coibir atos desumanos, eles
não se concretizaram na prática, como é o caso das revistas vexatórias que, embora
proibidas continuam a acontecer cotidianamente.
Em outubro de 2001, de acordo com o Portal da Transparência do Governo
Federal (BRASIL, 2001), foi estabelecido convênio, no valor de R$ 12.500, para
instalação de detectores de metais na PCE e também na Penitenciária Ana Maria do
Couto May171. No ano de 2014, o Ministério Público do Estado pediu ao Poder
Judiciário a regulamentação de procedimentos para a visita na Penitenciária Central
do Estado, visando “[...] abolir a prática rotineira e indiscriminada de revista íntima
vexatória realizada junto aos familiares dos presos”172. (SÓ NOTÍCIAS, 9 jul. 2014).
175 Idem.
178
dentro das unidades geridas pelos servidores ou, como no caso da penitenciária de
Sinop, pelo Conselho de Comunidade, a proibição de entrada de determinados
produtos o que obrigatoriamente faz com que os produtos sejam adquiridos nestes
locais, são práticas que devem ser abolidas do cotidiano prisional. A construção de
um espaço privado no interior de um espaço público, sem regulamentações,
representa um caminho ilegal, perigoso e de exceção no que tange ao trato da coisa
pública.
Ainda sobre o trabalho no cárcere, resta dizer que, em momento algum, essas
atividades podem servir a interesses de outrem, apenas para fins de recuperação do
preso e a serviço da coletividade. Propostas de implementação de fábricas nas
penitenciárias, com incentivos fiscais aos empresários, para a exploração da mão de
obra prisional, desregulamentada, barata e abundante, pode representar uma brutal
violência aos trabalhadores. Tratar o ambiente carcerário como espaço de produção,
sendo esse um ambiente onde leis não vigoram, em que os presos não têm o mesmo
valor jurídico que os demais cidadãos livres e onde prevalecem medidas de exceção
podem coloca-los em situação análoga ao trabalho escravo.
180
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Era a brecha que o sistema queria.
Avise o IML, chegou o grande dia.
Depende do sim ou não de um só homem.
Que prefere ser neutro pelo telefone.
Ratatatá, caviar e champanhe.
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo...
quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!
O ser humano é descartável no Brasil.
Como Modess usado ou Bombril.
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis.
Esconde o que a novela não diz.
Ratatatá! Sangue jorra como água.
Do ouvido, da boca e nariz.
O Senhor é meu pastor...
perdoe o que seu filho fez.
Morreu de bruços no salmo 23,
sem padre, sem repórter.
sem arma, sem socorro.
Vai pegar HIV na boca do cachorro.
Cadáveres no poço, no pátio interno.
Adolf Hitler sorri no inferno!
O Robocop do governo é frio, não sente pena.
Só ódio e ri como a hiena.
Rátátátá, Fleury e sua gangue
vão nadar numa piscina de sangue.
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento176.
JOCENIR PRADO, Diário de um Detento, 1997.
176De autoria do ex-detento Jocenir Prado, a música Diário de um Detento fala do Massacre ocorrido
no maior presídio da América Latina, o Carandiru, em 2 de outubro de 1992, quando 111 presos
foram assassinados pela polícia do estado de São Paulo. A música faz parte do álbum Sobrevivendo
no Inferno, do grupo de Rap Racionais MC’s.
181
Guimarães – sob o número 111, clara alusão as 111 vítimas do massacre, até a
possível origem do PCC, dentre outras consequências que ultrapassam a lógica
jurídica – que anulou o júri que condenou os PMs envolvidos, mesmo tendo essa
decisão sido proferida por júri popular – destruindo-se os princípios constitucionais, a
soberania da decisão do júri popular – e legitimando o extermínio enquanto prática do
Estado. Após mais de 20 anos da tragédia, nenhum agente condenado.
Repleto de significados, muitas vezes sinalizados pela mídia como mera
casualidade, o Massacre do Carandiru demarcou o exato momento em o Estado de
exceção transformou os cidadãos em homo sacer, legitimando a barbárie como forma
de contenção – ou extermínio – da massa de excluídos da sociedade. Desde então,
o estado penal vem se ampliando, alicerçado na construção do perigo iminente que
representa o outro, na insegurança social e na violência urbana, amplamente
difundidas pela mídia.
Uma das questões constatadas pelo presente estudo diz respeito à
maleabilidade dos princípios constitucionais quando aplicados à determinada camada
da sociedade. Sim, a Justiça é seletiva! Para aqueles que dispõem de condições de
garantir sua ampla defesa, os direitos existem e são efetivados em seus processos
judiciais. No entanto, para aqueles que dependem da proteção jurídica do Estado, os
princípios constitucionais – como o de não culpabilidade, ônus da prova ao acusador
e a condenação somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória
– existem apenas nas letras da lei, não integrando a realidade daqueles que não
podem pagar por justiça.
O caos do sistema penitenciário de Mato Grosso é intensificado pela
superlotação, produto da política de criminalização da pobreza e da não garantia dos
direitos constitucionais, fazendo com que presos provisórios se acumulem nos
cárceres do estado. Segundo o Código Penal, as prisões cautelares devem ocorrer
somente em situações excepcionais, quando se qualifica como necessária a
contenção da pessoa cuja livre locomoção põe em risco interesses maiores. Essa
medida cautelar pode ser preventiva, temporária ou em flagrante, mas nunca com
caráter pré-punitivo, devendo somente ser usada em casos em que as medidas
cautelares diversas da prisão não garantem o objetivo final. O número de pessoas
privadas de liberdade e que aguardando julgamento nas penitenciárias de Mato
Grosso demonstra que as prisões cautelares deixaram de se caracterizar enquanto
183
177 Ato ou efeito de remir-se, liberação de pena, de ofensa, de dívida; perdão, quitação, resgate.
178 Sentimento de misericórdia, de indulgência; compaixão.
188
remição de pena por meio de estudos bíblicos ferem qualquer princípio de isonomia,
colocando em xeque a laicidade do Estado.
O encarceramento em massa em um espaço reconhecidamente falido
demonstra a não superação de tal modelo. O mais cruel é perceber, através dos
números, que, mesmo desacreditada enquanto forma de recuperação dos infratores,
a prisão continua a ser o destino para jovens, pretos, pardos e pobres relegados ao
cárcere, os quais têm como única opção de manutenção da vida sua submissão ao
poder paralelo ou à conversão religiosa. A lógica neoliberal reafirma, atrás das grades,
que a recuperação ou é fruto do empenho individual ou do poder divino. Tal paradoxo
só é passível de ser esclarecido se a política de encarceramento em massa praticada
pelo Estado for encarada como uma política de genocídio, aplicada contra alguns.
Nada mais, no entendimento desta pesquisadora, explicaria essa lógica cruel de
encarcerar sem perspectiva de reinserção social, mas no aguardo de um milagre que
traria a salvação e a sobrevivência.
A pesquisa demonstrou pontos nevrálgicos do sistema penitenciário de Mato
Grosso, além da superpopulação e privação de liberdade de pessoas ainda não
julgadas, situações por diversas vezes mencionadas. O fato de o estado não dispor
de estrutura que possibilite a separação de presos provisórios dos condenados, e por
tipo de crimes possibilita a organização e a cooptação das facções, colocando cada
vez mais em xeque a estrutura prisional. O fato de Mato Grosso não ter
estabelecimentos para progressão para o regime aberto e uma colônia penal em
funcionamento, favorecem a não progressão da pena e a manutenção de
superpopulação em unidades sem condições dignas de vida. A não existência de um
hospital de custódia, coloca em situação de extrema vulnerabilidade aqueles em
sofrimento mental, uma vez que, mesmo se tratando de questão de saúde
estabelecida em lei, são eles relegados a uma vida de sofrimento e abandono.
Percebe-se que, embora a LEP vigore, o cárcere é alvo de denúncia de maus
tratos, com espaços destinados aos castigos desumanos, algo que coloca os detentos
em uma condição animalesca. A existência de corredores da morte e de tortura não
são os únicos pontos que demonstram que homens e mulheres encarcerados
perderam seus valores jurídicos, mas sim todos os atos deles recorrentes, fazendo do
cárcere um espaço de exceção. Existir em um território onde linchamentos e
189
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