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Título: Adorável libertino

Autor: Coral Hoyle


Título original: The Virgin's heart
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991
Publição original: 1989
Género: Romance histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida

Ao deparar com Alexander Monk, depois de quatro anos sem vê-lo, o coração de Roxane disparou, emocionado. Como
podia sentir-se tâo perturbada diante daquele libertino irresponsável que matara seus sonhos de amor?
Quando rompera o noivado com ele, jurara nunca mais amar. No entanto, Alexander também fizera um juramento:
reconquistar o amor de Roxane, mesmo que para isso tivesse de enfrentar o ameaçador fantasma da Abadia: o Monge
Branco.
Prólogo

Um vulto se destacou brevemente numa área enluarada e, logo depois, um homem entrou na biblioteca de
Rammsford Abbey. O intruso deu alguns passos e observou o ambiente, fracamente iluminado pelas brasas na lareira. As-
soviou de leve.
Um grande dogue alemão enfiou a cabeçorra pela porta de vidro entreaberta que levava ao jardim de inverno. Ficou
parado como quem sabe que se encontra em território proibido.
— Aqui, Dolf!
O dono enfiou a mão na coleira, puxou o animal e fechou a porta. Dolf entrou e, ainda relutando, seguiu o dono:
passaram sobre o grande tapete de Axminster, ouviram passos se aproximando e pararam. Os passos se afastaram e restou
apenas o burburinho de vozes vindo da sala de visitas.
O dono e o cão se aproximaram das prateleiras embutidas na parede mais afastada. O homem ergueu o braço e
passou o dedo nas lombadas rachadas dos livros encadernados em couro vermelho da prateleira mais alta. Os diários de sir
Jonathan, primeiro proprietário da secular abadia, estavam preservados ali para seus descendentes. O intruso observou as
datas e apanhou o livro datado de 1665 e se aproximou da lareira.
Agachado no chão, folheou as páginas amareladas à luz fraca das brasas. Parou ao encontrar a passagem que o
interessava e leu a anotação de sir Jonathan:

"Na antiga fundação do tempo Começa a busca com a rima.


Se destemido fores, e leal, Teus passos não lamentarás".

Esta primeira indicação encabeçava o relato da caça ao tesouro organizada por sir Jonathan. Havia uma generosa
recompensa destinada a quem achasse o tesouro e o desenho de uma grande cruz cravejada de pedras preciosas, com a
indicação de que era aquele O Coração da Virgem.
O homem riu baixinho, e seus olhos brilharam.
— Esperei por isto durante toda a minha vida — murmurou ao ouvido do cachorro, que lhe lambeu a mão. O
homem esfregou a mão na manga oposta com uma careta de nojo. — Pare, Dolf!
Embora estivesse perto das brasas, o homem percebeu de repente que o ar na biblioteca se tornava gelado. Levantou
os olhos, mas as portas continuavam fechadas. Aguçou os ouvidos. As mesmas vozes continuavam a conversa na sala.
Dolf arreganhou os dentes e começou a rosnar. O homem apertou seu focinho.
— Quieto — sussurrou.
O rosnado se transformou em ganido, e o homem pôs o livro no chão, para acalmar o cão, que se encolhera todo.
— O que há, cachorro estúpido? Quer que todos saibam que estamos aqui?
— o homem sussurrou.
O dogue não lhe prestou qualquer atenção apenas olhava para o livro. De súbito, as páginas começaram a virar,
como se agitadas pelo vento. Na biblioteca não havia qualquer corrente de ar. Dolf baixou a cabeça sobre as patas, ganindo.
O homem olhou para o livro e pensou ter vislumbrado uma luz branca passando sobre a página aberta. Quando se
aproximou, sentiu um frio mais intenso, terrível. Seus olhos caíram sobre o nome Monge Branco.
— Que esquisito! — murmurou, e fechou o livro com o pé.
Olhou ao redor e decidiu que a luminosidade fraca e bruxuleante das brasas é que criava imagens estranhas.
Pôs o livro no lugar, verificou se não deixara vestígios de sua visita e dirigiu-se à porta envidraçada, para sair dali.
Quando abriu, Dolf esperou seu sinal, passou rápido a seu lado e se enfiou no estreito jardim de inverno, o antigo claustro
da abadia. Praguejando, agarrou a coleira do animal.
— Quieto, agora — murmurou. Seguiram pelo jardim de inverno, entre grandes vasos com palmeiras. Dolf quis
parar ao lado de uma planta e ganiu. — Aqui não — avisou o dono.
Ao passar por uma das janelas da sala de visitas, o homem ouviu uma voz feminina e parou.
Olhou através de uma fresta das cortinas. Na sala, uma senhora de ombros largos estava sentada, muito ereta, numa
poltrona de encosto reto. O vestido juvenil, enfeitado com muitos laços, não realçava a aparência da mulher de meia-idade e
expressão severa. Dois cavalheiros pareciam não prestar atenção às palavras dela, enquanto um terceiro, parado atrás da
poltrona, ouvia com exagerada atenção.
O intruso pensou, sarcástico, que a família Monk era orgulhosa mas libertina. Merecia alguém igual a lady Moyneton
para dirigi-la. Sabia que ela os fustigava sempre com palavras e sorriu satisfeito. Afastou-se da janela. Não podia demorar ali.
Logo a casa seria trancada para a noite. Cuidadosamente, saiu do jardim de inverno e se dirigiu à ala da administração da
propriedade e do gabinete de milorde.
Lançou uma praga contra os Monk, que viviam no luxo. Era uma injustiça do destino. Ele possuía tão pouco, e
eles viviam na fartura.
Capitulo I

Lady Alfreda Moyneton, enquanto brincava com um dos numerosos laços de seu vestido, aspirou um bocado de
ar, preparando-se para mais uma declaração.
— Alex já teve mais amantes do que até mesmo o Regente sonharia ter! — Observou com severidade o
sobrinho que segurava suas cartas do outro lado da mesa.
— Madame, a senhora está exagerando. — Os olhos escuros indicavam paciência e tédio.
— Tolice! Não estou! — Milady jogou uma carta na mesa. — Você é igualzinho a seu pai. Foi sorte sua
mãe morrer tão moça, caso contrário ela... Mas isto não vem ao caso! Por outro lado, a família teria uma opinião
melhor de seu pai, se ele não tivesse desperdiçado suas propriedades para financiar projetos nebulosos.
— Madame, tenha a bondade de evitar comentários sobre assuntos que a senhora desconhece — retorquiu
Alex, inclinando-se um pouco para a frente, e jogou na mesa um valete, como isca. — Não se pode culpar um homem
por tentar investir.
— Um homem como você só pode pensar assim. — Ela jogou um ás.—Não tem escrúpulos e se tornou
um mercador!
— Não vou pedir desculpas por me dedicar ao comércio. Mas se a senhora insiste que não tenho escrúpulos
— respondeu ele, arrastando as palavras —, deve ser verdade. Afinal, todos sabem que a senhora está sempre certa...
Descartou um dez, fazendo a tia ficar muda por instantes.
— Toda a cristandade sabe — se intrometeu o capelão de milady, depois de pigarrear — que nossa
caridosa lady Moyneton é um extraordinário exemplo de...
Pare com isto, Titler. — Ela silenciou o clérigo com um gesto. — Alexander, acho que você deve ser admirado
por sua tentativa de refazer o património de seu pai... nem que seja mediante o comércio. Mas houve aquele seu caso
inconveniente com os investidores e o plano de financiar um garimpo de diamantes no Continente Negro. Explique-
me isto!
Os dedos que seguravam as cartas se afrouxaram um pouco, e ele deslizou para frente sobre a cadeira, para se
aproximar mais da adversária.
Como empresário, preciso fazer uma distinção entre um empreendimento honesto e uma quimera. Os diamantes
serão encontrados. Continuo acreditando firmemente em minha teoria, que se fundamenta no raciocínio.
Com ar triunfante, colocou as suas cartas na mesa, todas figuras, exceto três ases. A tia, derrotada, ficou rígida
e deixou cair suas próprias cartas na mesa. O vencedor afastou a cadeira, esticou as pernas compridas e mostrou um
sorriso encantador.
Lady Moyneton fechou ruidosamente seu leque.
— Teoria? Bobagem! — Olhou para seu filho que, em silêncio, observava a noite. — Falou muito pouco a
respeito, lorde Moyneton! — E continuou, sarcástica: — Milorde, como quarto conde de Rammsford, conceda-
nos seu ponto de vista, por favor.
Lorde Moyneton afastou-se da janela para se juntar ao grupo perto da lareira.
— A senhora realmente deseja conhecer minha opinião, mamãe? — perguntou, escolhendo uma poltrona
bem longe dela.
— Quero conhecê-la, sim.
— Muito bem... — O lorde parecia determinado e continuou, escolhendo as palavras com cuidado: —
Acho que Alex, que afinal está com trinta e três anos, tem o direito de escolher como deseja viver e não precisa de
interferências. Seu comportamento é assunto que apenas ele deve decidir.
Alexander observou a tia, apesar de saber qual seria sua reação às ousadas palavras, e admirou o primo pela
coragem.
Lady Moyneton olhou para o filho como se este não soubesse o que estava dizendo.
— John, você sempre teve ideias que eu considerava bastante impróprias, aliás como seu falecido pai, que
foi um homem realmente irritante. Mas você é filho dele e, por direito de nascimento, agora é o chefe da família.
Assumiu seu título mais de um ano atrás. Desde que cheguei para visitá-lo, já repeti muitas vezes que é sua obrigação
escolher uma esposa para continuar a linhagem dos Monk.
— Não pretendo me casar com uma megera, nem por sua causa nem por causa do nome da família.
— A jovem não precisa ser uma megera — ela retrucou.
— Como John pode saber que não se trata de uma megera? — interferiu Alexander, em tom de desafio.
— As jovens da sociedade são muito espertas. Nunca revelam a verdadeira personalidade até depois do enlace.
— E aquelas senhoritas londrinas me entediam — explicou lorde Moyneton torcendo os lábios.
— Já percebi sua reticência quando se encontra com jovens da sociedade. Você é tímido como eu, mas
podemos encontrar uma maneira de contornar esta sua atitude. Aqui, nas redondezas, temos moças de procedência
vigorosa e...
— Tia Alfreda, não me faça corar — falou Alexander com um sorriso irónico. — Todas estas alusões à
procriação não são de bom gosto. Parece que estamos falando de ovelhas...
— Pois, de certa forma, é disso que estamos falando — ela confirmou.— Uma boa esposa é um pouco
como uma ovelha pronta para procriar... Só devemos esperar que exista uma que satisfaça nossas necessidades.
— Nossas necessidades? — indagou o lorde.
— Não seja impertinente, John. Sabe quanto isto me aflige. Sua futura esposa terá de ser aprovada em
vários testes antes que eu a considere à altura de ser a nova lady Moyneton. Sim, eu disse vários testes. A futura
condessa de Rammsford deve ser a melhor de todas!
— Apesar de desejar satisfazê-la, minha mãe, deve convir que é impossível casar sem ter uma noiva. —
Lorde Moyneton fingiu olhar nos bolsos do paletó. — Parece que não tenho nenhuma noiva disponível no momento.
Lady Moyneton sorriu com tamanha serenidade, que seu filho se preparou para o pior.
— Calma, meu velho — aconselhou Alexander, que sabia que o primo só temia a uma pessoa: sua mãe.
— Meu querido John... — começou a lady.
Lorde Moyneton se endireitou sobre a cadeira, assustado com aquela suavidade melosa.
— Sim, mãe?
— Fiz um plano delicioso, que não poderá falhar. Dentro de três meses você estará bem casado, e o título a
salvo daqueles seus imprestáveis primos.
Alexander percebeu que o primo lhe lançava um olhar pedindo socorro e, como gostava dele, tentou atendê-
lo.
— Posso ajudar a senhora, minha tia? Talvez poderia lhe sugerir alguns nomes de jovens apropriadas para o
plano, e que John poderia achar agradáveis.
— Só de pensar nas mulheres que você pode sugerir, me arrepia — ela retrucou. — Não, Alexander, as
coisas serão como eu desejo. Vim de Londres para isso. Vou convidar as jovens mais apropriadas da região para uniu
festa.
— A senhora pretende convidar mais gente para essa reunião de virgens deliciosas? — perguntou Alexander
erguendo uma sobrancelha. — Ou John será o único privilegiado?
Lady Moyneton franziu a testa antes de responder:
— Convidarei você e também o resto de seus poucos recomendáveis primos!
— Eu aposto, Alex — observou lorde John com um sorriso —, que você vai ter mais sucesso do que eu,
como sempre!
— Sua confiança no meu sucesso me sensibiliza, primo — respondeu Alexander, achando graça. —
Mas não é assim...
— Você, meu caro, é um caso perdido — explicou lady Moyneton ao sobrinho. — Estou dizendo o que
penso.
— Lembro que meu pai sempre disse isso — comentou lorde Moyneton. — Entretanto, o primo Richard
chegou a afirmar que a senhora vai direto ao assunto e tem raciocínio rápido!
— Richard é um sapo, uma lesma sorridente que transpira charme para facilitar seu progresso na vida. —
Lady Moyneton observou seu filho com desaprovação. — Seu pai, John, ficou muito assustado quando, depois de você,
o herdeiro, nasceu um monte de meninas. E estava certo, pois se você não tiver um filho, Richard ou seu filho serão os
herdeiros diretos...
— Vamos, console-se, querida tia — interferiu Alexander. — Se não fosse Richard, eu poderia herdar o
título e as propriedades, se John não tiver um filho. Mas ele é jovem, saudável e vai encontrar uma esposa. Não se
preocupe.
— Como não me preocupar? Vivo aflita, pensando que John pode... pode ir embora, sem cumprir sua
obrigação com a nossa linhagem. Ultimamente ele vem sofrendo acidentes perigosos, esquisitos, como se pesasse uma
maldição sobre a família!
— Quem sabe a senhora ficaria mais calma se eu investigasse isso — propôs Alexander, tentando ficar
sério. — Mas aposto que o pior perigo que John corre é o da interferência materna, minha tia.
— Você não entende nada deste assunto — respondeu lady Moyneton com um olhar furioso. — John
realmente precisa dos meus conselhos. Tem um caráter tão dócil que poderia se tornar vítima de qualquer mulher es-
perta! Eu devo escolher.
— Qualquer que seja a noiva de seu agrado — Alexander comentou, olhando para o primo —, ela terá de
tolerar todos os moradores de Rammsford Abbey, inclusive o Monge Branco. A maioria das jovens acha lindos os
fantasmas familiares, mas duvido que queiram conviver com um. Moça assim não existe...
— Ela existe — declarou a tia — e vou encontrá-la. E bom que saiba, Alex: nem você nem seus primos
devem tentar despertar o carinho das jovens herdeiras... quero dizer, das jovens'damas. Pelo menos, enquanto eu estiver
aqui.
— Herdeiras? — O conde observou a mãe, desconfiado.
— Herdeiras, mas é claro! — exclamou ela. — Não precisamos apenas de sangue bom na família.
Precisamos também de riqueza, para fortalecer nossa posição.
Lorde Moyneton se levantou e soltou um suspiro, colocando uma mão na testa, como se estivesse a ponto de
perder a paciência. Olhou para o primo com a expressão de um animal acuado.
— Isso é vergonhoso, tia — falou Alexander sem perder tempo. — A senhora está querendo impingir a
seu filho uma dama de coração frio, que irá sentir-se superior a todos daqui devido às circunstâncias em que vai entrar
para a família... Não pensa nos sentimentos de seu filho, milady? Será que a senhora não tem coração?
— O que eu tenho é bom senso e em medida suficiente para saber que um homem de posição deve ter
posses para manter seu nível e deve preservar o que herdou. Meu carinho por meu filho está em segundo lugar, depois
de meu desejo de vê-lo bem situado.
— É um sentimento admirável, milady -— arriscou o capelão.
— Quieto, Titler — ordenou a severa dama.
— Sim, milady.
O capelão baixou a cabeça. Lady Moyneton voltou a olhar para seu filho.
— Estávamos falando de sua futura esposa — disse.
Lorde Moyneton levantou-se com expressão impaciente e parou diante da lareira para aquecer as mãos
geladas.
— John, querido — ela murmurou.
Ao perceber o tom carinhoso, o lorde agarrou-se no consolo como a se preparar para a próxima investida.
— Precisamos de um observador entre nós — ela afirmou.
— Na verdade, precisamos de uma observadora — corrigiu Alexander, com um sorriso malicioso. — Mas
deve ser alguém de nossa confiança. Uma pessoa que colocará os interesses de John acima dos de seu próprio sexo.
Uma dama que não tentará fisgá-lo. Uma amiga da família, que tal?
Moyneton observou ironicamente seu primo. Alexander sorria, perdido entre as lembranças. Por fim, disse:
— Pode deixar a observadora por minha conta, tia. Sei exatamente quem deverá ser.
— Quem? — perguntaram três vozes juntas.
Que tal sua afilhada, Roxane? — perguntou Alexander, suavemente, olhando para lady Moyneton. John abriu a
boca e ficou de queixo caído. Murmurou:
— Alex, você ficou louco?
— Garanto que ela não virá — declarou lady Moyneton.
— E eu aposto que virá... — retrucou Alexander.

Capitulo II

Uma rajada do frio vento de outubro envolveu a carruagem fechada que parou na alameda de cascalho, em frente da
Rammsford Abbey. Em seu interior, a srta. Roxane Costain sorriu para seu irmão, major Howard, que parecia furioso.
— Roxane, você precisa me prometer que se portará bem. Não quero que lady Moyneton pense que não tem
compostura. Tem de parar com esses seus modos estouvados. John é um de meus mais velhos amigos. Não quero ficar numa
situação embaraçosa por que minha irmã tem ideias esquisitas, entenda!
Muito sério, pegou o chapéu e abriu a porta. Quando desceu, seus movimentos e sua postura indicaram imediatamente
tratar-se de um militar. Estendeu a mão para a irmã. Ela esticou a mão enluvada, e ele a agarrrou com força.
— Ora, está bem, Howard! — exclamou ela, desvencilhando a mão.
— Prometo que não vai se envergonhar por causa de meus modos. — Roxane aproximou o rosto do dele, sorrindo
levemente. — Vou fazer segredo — continuou com uma piscadela e baixou a voz — das minhas indocilidades e não
provocarei nenhum escândalo na tranquila Dorset, eu juro!
— Indocilidades? É assim que você define suas explosões anormais? Por Deus, Roxy, esqueceu de mencionar
suas ervas e poções. Alguém que não a conhece poderia pensar que é uma bruxa. Não admira que tão poucos homens se
interessem por você. E quando um tenta se aproximar, você o trata com tanta frieza que ele foge. — Howard enfiou o
chapéu na cabeça e bufou: — Mas, bonita como você é, qualquer dia um maluco esquece o resto... Por falar nisso, cuidado
como se veste: trate de se manter bem coberta!
Os olhos verdes de Roxane se tornaram mais escuros. Pensou que o irmão se enquadrava perfeitamente no modo de
vida do Exército: gostava de berrar ordens. Entre todos os seus irmãos, era Howard quem mais implicava com ela, mas sabia
que não era muito querida por nenhum deles. E detestava saber que a achavam esquisita.
Ela era apenas uma jovem dama com interesse um pouco fora do comum, auxiliada nisso por uma viva inteligência. Seu
rosto e silhueta também se destacavam, mas isso não dependia dela. Afinal, pertencia a uma linhagem de mulheres bonitas! Não
gostava de ser admirada apenas por causa de seu rosto e outros atributos, o que a levou, aos poucos, a ado-tar roupas
deselegantes. Para ocultar o busto bem torneado, costumava sempre usar um xale, fosse inverno ou verão. Ficava desconcertada
quando os homens a fitavam por causa de um capricho da natureza. Sem querer, apertou ainda mais a capa forrada de peles
contra o corpo.
Não acha que é melhor entrar, Howard? O criado deve achar esquisito ver que estamos conversando aqui fora,
enquanto lá dentro deve haver um bom fogo à nossa espera.
Está bem, mas lembre-se... fique comportada e em silêncio: veio para observar e ouvir. Esta é sua missão.
- Vamos — ela respondeu, e enfiou a mão sob o braço de Howard, com expressão tolerante. — Estou com
frio.
Dirigiram-se para a comprida e alta fachada de Rammsford Abbey. Acima da entrada principal havia uma torre com
ameias que se repetiam em toda a-construção, completando a unidade do conjunto com todas as outras estruturas em pedra
dourada de Hamstone. No alto da torre flutuava o grande estandarte dos Moyneton, sustentado por um mastro na parede de
pedra, indicando que o conde estava presente.
Roxane admirou-se de como a velha abadia gótica se transformara num imponente palácio de estilo italiano.
No grande átrio foram cumprimentados por Phipps, o mordomo, que recebeu as pesadas capas e informou-os que
milorde desejava vê-los para uma conversa particular, antes que subissem até seus quartos. Com toda a pompa própria do
mordomo de um conde, Phipps os precedeu até o gabinete do lorde, abriu a porta e fechou-a assim que entraram.
Lorde Moyneton parou de falar com um homem, ao lado de uma mesa cheia de papéis, no canto mais afastado do
aposento. Ajeitou a ponta da bandagem que lhe enfaixava a cabeça.
Srta. Costain! Howard! — Aproximou-se de ambos e beijou demoradamente a mão da jovem.
Enquanto o conde se endireitava, ela tocou de leve na ponta do nariz dele.
- Desde quando mereço essa reverência toda, John? — perguntou, apertando um pouco as pontas do xale.
Estou treinando — foi a resposta enigmática antes de cumprimentar o major Costain. — Foi bom você ter vindo.
- Por Deus, Moyneton, o que aconteceu com você? — Os olhos experimentados do sobrevivente de muitas
batalhas o observou com atenção. — Parece que foi à guerra sem me avisar.
— Foi só uma pancadinha. Aconteceu enquanto examinava o teto de um dos nossos celeiros. Uma viga podre
cedeu.
Voltou-se para apresentar o senhor que o acompanhava, mas induzida pela alta estatura dele, Roxane se adiantou:
— Mais um dos famosos primos Monk! — exclamou e estendeu a mão, cordialmente, para o desconhecido.
— Na verdade, este é George Smythe, meu administrador. A propriedade não progrediria sem ele — disse o
conde.
— Sinto muito — murmurou Roxane com um sorriso, enquanto o homem a cumprimentava com uma
inclinação.
— Desculpe minha irmã, senhor — comentou o major. — Ela costuma ser um pouco precipitada e vê coisas que
os outros não percebem. É um defeito que ela tem.
Lorde Moyneton observou o administrador com atenção.
— Mas foi um mal-entendido muito justificável — disse. — Meus antepassados foram muito prolíficos. Nossa
árvore genealógica está vergando por causa da fartura de seus frutos.
— Neste caso, fico feliz de não pertencer à família — falou Smythe em tom brando. — Acrescentar mais um
Monk a uma safra excessiva poderia sobrecarregar e matar a árvore...
— Estão vendo? — perguntou Moyneton com orgulho. — Smythe só pensa na agricultura. Não sei o que
faria sem ele.
Smythe agradeceu com um aceno de cabeça e pegou uns papéis.
— Com licença, senhores e senhorita. Tenho de ir ver umas coisas. — E saiu, indo para a ala da
administração.
— Vamos nos sentar? — perguntou lorde Moyneton, esfregando as mãos. — Precisamos falar de muitas coisas
e não temos muito tempo. — Levou Roxane até um sofá e sentou-se a seu lado. — Desculpe por recebê-los aqui, mas é o
único aposento que posso realmente chamar de meu. — Olhou para Howard, que tinha puxado uma cadeira para tão perto
que seus joelhos quase roçavam os deles, e perguntou: — Você já explicou?
Howard sacudiu negativamente sua cabeça.
— O que você deveria ter explicado? — perguntou Roxane para o irmão, que parecia alguém prestes a arrancar
um dente.
— Nada de muito importante.... Apenas um pedido, srta. Costain.
Ela olhou para lorde Moyneton com curiosidade.
— Sabe que eu o ajudarei na medida das minhas possibilidades —ela murmurou. Continuou, confiante: — E
me chame apenas de Roxane, afinal, crescemos juntos, não? Vamos deixar essas formalidades para quando estivermos em
presença de outras pessoas.
— É que o assunto requer um tom mais formal — explicou o lorde. —Você veio para cá, a pedido de minha
mãe, para observar as jovens que podem vir a casar comigo... — Hesitou e, depois disse: — Bem, você precisa se apaixonar
por mim!
Quê? — perguntou ela, incrédula, afastando-se.
Não é verdade — apressou-se a explicar o conde. — É só dar essa impressão, se for preciso. Ora, não consigo
explicar, mas é que estou desesperado...
— Resuma a história — bufou o major, impaciente.
Nunca poderei me considerar um homem de verdade — disse lorde Moyneton, respirando fundo —, se
permitir que minha mãe escolha a minha esposa. Sua opinião sobre as candidatas, Roxane, pode me salvar, caso elas não
sirvam. Mas talvez minha mãe não aceite sua opinião se não combinar com a dela. Então, resolvi elaborar um plano alternativo.
Caso concorde, eu vou lhe fazer demonstrações de admiração, aumentando-as dia a dia, até que todos fiquem convencidos de
que estou apaixonado por você... — Ele se calou e, depois, continuou com voz rouca: — Ficou chocada, minha amiga. Não
quer me ajudar?
Roxane viu o desespero nos olhos de John, a expectativa otimista nos olhos do seu próprio irmão e assentiu:
— Está bem. Pode contar comigo. Vou ajudá-lo no que precisar.
Lorde Moyneton soltou um suspiro de alívio.
— Então, este obstáculo não existe mais. Tem outro, mas é uma questão de somenos. — Olhou para Howard. —
Você já disse que Al...
— Sim, já falei — respondeu Howard, alarmadíssimo. — E foi uma conversa difícil. Ela proibiu que alguém
pronunciasse esse nome, lá em casa. Não quer ouvir falar nele!
— Nele? — perguntou Roxane friamente. — Estão falando de quem?
Howard afastou rapidamente sua cadeira para trás, como para se pôr a salvo. Até lorde Moyneton se afastou um pouco, mas
depois se curvou para frente e segurou as mãos dela.
~ Roxane, você é uma dama de bom senso, que não se entrega mais a explosões emocionais adolescentes. — Ficou a
observá-la por um instante e continuou: — Alex está aqui...
Foi uma reação tão natural quanto um corte verter sangue: ao ouvir aquele nome as unhas dela penetraram na carne
de lorde John. O rosto dela ficou impassível, mas a respiração acelerou-se. Com um gemido, o conde conseguiu fazê-la largar-
lhe as mãos e comentou, como se nada tivesse havido:
—Etu tinha certeza de que você receberia esta notícia com calma... como você, Alex é meu convidado e vai me
ajudar.
Howard voltou a aproximar um pouco a cadeira e puxou levemente a manga do conde, indicando que desejava lhe
falar em particular. Lorde Moyneton pediu licença e levou o major para o canto mais afastado do aposento. Tratou de falar
antes dele:
— Bem, as coisas não parecem fáceis... No entanto, só um homem apaixonado faria o que Alexander fez: a
partir de um retrato dela, mandou esculpir o rosto de Roxane e colocou-o na proa de todos os barcos de sua frota mercante. Eu
vi e tenho certeza de que é o rosto dela. Tudo vai dar certo, Howard!
— Mas não vai, e francamente, é um plano tolo — sibilou Howard, lançando um olhar para sua irmã. — Em
vez de ficar com ciúme, Alex pode torcer o seu pescoço. E, sobretudo, ela não quer nada com ele, lembre-se disto.
— Meu primo é um homem que sabe convencer.
— E minha irmã é uma megera.
— Você esquece as leis da Natureza — retrucou Moyneton e sorriu, olhando para Roxane. — Temos de deixá-
las seguir seu curso.
— Acho que a Natureza não conseguirá nada, a não ser com nossa ajuda.
— Acredito piamente que vou gostar de prestar ajuda à mãe Natureza — observou lorde Moyneton com um
sorriso malicioso. — É o mínimo que posso fazer pelo meu primo preferido.
Vendo que concordavam neste ^gonto, os dois amigos voltaram para perto de Roxane com ares de falsa inocência. Ela
fingiu ignorá-los e ficou calada durante algum tempo.
— John — disse, finalmente^ — Ele não deve saber que nosso flerte é de mentira. Não quero que ele ria de
mim. O trato deve ficar apenas entre nós.
— Por quê?
— Tenho bons motivos. Você promete?
Lorde Moyneton viu que não tinha escolha e fez que sim.
— Está bem, prometemos — falou Howard. — E você deve prometer que não dirá nada a nenhuma das moças
que vierem.
— Isto mesmo — confirmou o conde. — Se chegassem a descobrir que as estamos enganando, seria um
escândalo.
— Não costumo falar à toa e não gosto de mexericos — respondeu Roxane, erguendo o queixo.
— Você é uma amiga maravilhosa! — exclamou o lorde.
— E a esta hora poderia estar casada — interferiu Howard com a indelicadeza característica de um irmão —, se
não tivesse tentado impingir remédios aos seus admiradores, que apenas queriam pedi-la em casamento. Lembre-se: nunca
ofereça um elixir a um homem quando ele segurar sua mão e se colocar de joelhos.
Roxane lançou-lhe um olhar que o fez recuar um passo.
— Mas quando um cavalheiro geme, fica vermelho, engasga e tem todos os sintomas de estar passando mal,
agarrado à minha mão, tenho obrigação de socorrê-lo, não é?
Esta discussão poderia durar horas — disse lorde Moyneton, rindo — Gostaria de rever meus planos... A última vez
que me apaixonei, era adolescente. Vejam se são bons.
O conde explicou o que pretendia fazer para dar a impressão de que estava se apaixonando e o que Roxane deveria
fazer.
A ideia me parece ótima — comentou Howard. — Apenas espero que não aconteçam complicações. Não que
receie que Roxy não saiba representar seu papel, mas às vezes ela tem ideias esquisitas no momento menos oportuno, e as
coisas não correm como a gente esperava...
Beijou o rosto da irmã, que ia se zangar, e disse que ia ver se os criados tinham cuidado da bagagem. ,
Lorde John se levantou, ofereceu o braço a Roxane e saíram da sala com o major.
— Você deve pensar que sou um anfitrião esquisito, segurando-a aqui, enquanto a galeria de retratos da família está
à sua espera — disse o lorde, procurando ficar sério.
— Você realmente pretende me mostrar mais uma vez aquela coleção de patifes e de galos de briga? Quantas
vezes já fez isso?
— Quatro, eu acho. Temos um novo retrato de mamãe. — Olhou para o teto e continuou com expressão
impassível: — Ela jurou que é o último, mas só nos resta rezar para que não se esqueça disso. Há quadros dela, de todos os
tipos, espalhados pela abadia. E os que acha melhores estão nas paredes de nossa casa, em Londres. Agora ela deu para pre-
sentear amigos e galerias de artes com seus retratos...
— Ela deu um a papai, quando ele esteve aqui. Acho que foi por isso que ele se recusou a me acompanhar. —
Roxane respirou fundo. — Agora, pode me mostrar o novo retrato.
Enquanto se encaminhavam para a galeria, ele comentou:
Pelo menos, desta vez ela desistiu de ser pintada em tonalidades azuladas. Da última vez, precisou de semanas para
conseguir se livrar do pó azul espalhado em seus cabelos.
A galeria de retratos estava na penumbra, por causa do dia nublado. Lorde Moyneton tomou o braço de Roxane para
guiá-la. Pararam diante de uma tela enorme, que ia do chão quase até o teto.
— Então, o que acha? A imagem é extraordinariamente semelhante, nao é?
Roxane começou a olhar de baixo para cima. Lady Moyneton, mulher de proporções majestosas, aparecia num
vestido de anquinhas, lite-ra mente coberto de fitas e laçarotes. O pintor enchera a tela com sua presença. Ela predominava,
segurando uma vara, como se fosse eliminar quem quisesse lhe impedir o caminho.
— Uma pastora? Mas que... que... — Roxane não achava a palavra certa.
— Que absurdo? Mamãe acha uma obra-prima, que realça suas feições delicadas. Estou lhe mostrando agora,
assim poderá evitar de vê-lo hoje à noite, depois do jantar. Poderia interromper sua digestão. — Lançou-lhe um olhar
conspirador e murmurou: — Vamos ensaiar? — Continuou, em tom natural: — Sempre quis saber se um pintor seria capaz
de reproduzir seu espírito e beleza em uma tela, Roxane. Acho que nem o maior mestre saberia mostrar a magia de seus
olhos.
A jovem fitou-o admirada e divertida.
— Ainda é muito cedo para você bancar o espertinho — disse uma voz preguiçosa atrás deles.
Quando se voltaram, duas pernas compridas, enfiadas numa calça de couro de gamo, desceram do sofá que se
encontrava em uma alcova escura. Das sombras emergiu um homem de feições fortes, morenas, com profundos olhos negros.
— Primo — disse Alexander, devagar, olhando para lorde Moyneton, então espreguiçou-se e curvou-se diante
de Roxane, com jeito indolente. — Deve ser tedioso, senhorita, viver recebendo elogios de estimados cavalheiros... — Bocejou. —
Embora John não seja tão habilidoso como muitos dos estimados cavalheiros que infestam a corte, em Londres.
Ele não ostenta suas qualidades: prefere ocultá-las.
— Vejo que você não mudou nem um pouco, Ignatius.
Roxane conteve um sorriso ao ver como ele reagiu ao ouvir seu segundo nome. Mas, apesar de zombar dele, não
conseguia negar que se sentia muito mais viva com sua presença. Sabia que precisava ocultar essa sensação.
— Há quanto tempo não nos encontramos? Três anos? — continuou ela.
— Quase quatro — ele corrigiu. — Como é passível você ficar mais linda com o passar do tempo? —
Demorou o olhar nos lábios róseos e cheios.
Ela observou Alexander Ignatius Monk dos pés à cabeça. Tinha a aparência de um homem que não conseguira dormir o
suficiente na noite anterior.
— E por que você parece cada vez mais farrista e irresponsável com o passar dos anos?
Trocaram um sorriso de compreensão mútua.
— Você sempre teve língua de víbora — comentou Alexander, e desviou o olhar para ocultar a expressão
pensativa. Tinha muito a dizer, mas era claro que ela não desejava ouvi-lo.
Lorde Moyneton pigarreou.
- Estava mostrando à srta. Costain o mais recente retrato de mamãe. Sinto muito se o acordamos, Alex. Alexander
sorriu, mas o olhar que lançou ao lorde não era amistoso.
— Aposto que sente.
Fitou Roxane. Ela devolveu-lhe o olhar com calma.
Pode parar de fazer suposições. John é um cavalheiro. Nunca tentaria se aproveitar de uma dama. É uma
pena que não se possa dizer o mesmo de você. Em suas veias deve correr o mais puro sangue dos Monk.
Espere, o que John poderia pensar desse comentário? Suas palavras insinuam que ele é ilegítimo, só porque
é um bom rapaz!
— John sabe muito bem o que eu quis dizer. Ele pode ser menos alto que você, mas é um Monk dos pés à cabeça.
Qualquer um pode ver isto!
— Sua lógica carece de consistência. — Alexander estava achando graça. — Mas está certo....você nunca foi
constante.
Nesse momento, Phipps apareceu na galeria, encaminhando-se para os três, que continuavam diante do enorme
quadro.
— Com licença, milorde. Lady Moyneton pede sua presença para dar as boas-vindas a uma convidada que acaba
de chegar.
O conde hesitou, de cenho franzido, mas viu que não podia evitar sua obrigação.
— Alex, procure se lembrar das boas maneiras e acompanhe a srta. Costain até o quarto dela. — Olhou para
Roxane. — Me perdoe por abandoná-la em companhia deste estranho cavalheiro, mas preciso cumprir minha obrigação. Nos
veremos mais tarde. Até lá... — Curvou-se sobre a mão dela.
Roxane ficou a olhá-lo enquanto se afastava para não ter de fitar o homem a seu lado. Sabia que seus olhos negros
estavam brilhando, zombando dela por se sentir pouco à vontade em sua companhia.
Enquanto a observava, Alexander se admirava ao vê-la vestida daquele jeito. Outrora era uma moça elegante, cheia de
graça. Aquele vestido cinza e o xale enorme não combinavam com a moça que conhecera. Ela parecia se esforçar para se
transformar numa solteirona.
Roxane o encarou, cruzando os braços, com expressão agressiva. Sabia que poderia mantê-lo a distância falando
com frieza.
— Afinal, por que me olha assim? Você já me viu antes.
— Vi mas nunca como agora. Você se tornou metodista?
— Não. Estou apenas me vestindo em conformidade com minha idade.
— Que absurdo, ainda não completou vinte e quatro anos e olhe para isso! o que pretende fazer?
— Visto-me assim para desencorajar as investidas dos tratantes. Uma dama não aprecia as indesejáveis tentativas
de aproximação de libertinos. — Quer dizer que tem certeza de que sua virtude estará a salvo comigo? — perguntou
Alexander. — Eu não correspondo exatamente à sua ideia de um cavalheiro...
— Minha virtude não está em discussão. Lady Moyneton mandaria matá-lo e esquartejá-lo, se suspeitasse que
pretende proceder levianamente comigo. — Abriu o leque e seus movimentos rápidos indicavam nervosismo.
Alexander percebeu um leve aroma de limão. Não conseguia parar de fitá-la, queria tocá-la.
— Talvez valesse a pena — falou.
— Sempre tranco minha porta à noite, e sei como usar uma pistola — observou Roxane.
O perfume de limão se parecia com ela, era forte, atraente mas pudico.
— Aqui sua virtude está a salvo. Sabe que seu irmão acertaria o coração de qualquer homem que a seduzisse, e os
aposentos de tia Alfreda se encontram na mesma ala na qual está alojada. Ela escolheu algumas criadas que ficarão vigiando
a noite toda, porque deseja resguardar a reputação de suas convidadas.
— Sem dúvida, milady deve ter levado em consideração o caráter de alguns convidados, para tomar essas
precauções.
Ele se curvou, admitindo ter sido atingido, e procurou uma posição mais segura, voltando mais uma vez ao tom
displicente.
— É verdade. Parece que nenhum Monk de quatro costados poderá ter encontros noturnos. Tia Alfreda deve
gostar desse papel de Madre Superiora, protegendo suas virtuosas freirinhas. Ela pretende que todas se mantenham puras até
que John faça sua escolha.
— Ora, vamos, Ignatius! Desde quando se interessa por uma mulher pura?
Ele ficou a observá-la, sorrindo e passando um dedo sobre o lábio inferior.
— Houve um tempo... — Fitou o rosto pálido como marfim, admirou a fartura dos cabelos escuros, anelados, e
suspirou. — Mas foi há muito tempo. Mais de quatro anos.
Ela deu um passo para se afastar, e sua mão se ergueu até o peito para comprimir a crescente emoção.
— Quer parar de brincar e me acompanhar até meu quarto?
— Não receia que a leve até o meu? — Com um sorriso zombeteiro, acrescentou: — Se alguma vez perder o
rumo, lembre-se de que estou alojado na cela de porta verde.
Roxane segurou bem o xale e quando passou ao lado de Alexander, pisou-lhe o pé.
— Não precisa me acompanhar. Vou encontrar o caminho sem sua ajuda. — Quando chegou perto da saída
parou e disse: — É o homem mais atrevido que conheci até agora. Por favor, mantenha-se afastado de mim.
Alexander apoiou a mão na coxa de uma estátua de Diana colocada sobre um pedestal baixo e acariciou o mármore liso
enquanto olhava para Roxane, segurando-a com a força de seu olhar.
— Minha querida pudica, o que você precisa é ter um namoro de verdade... com um homem que sabe o que faz.
Roxane sorriu com frieza.
— Neste caso, não preciso me preocupar com o senhor. Afinal, é um mero principiante.
A gargalhada bem-humorada dele acompanhou-a enquanto se afastava pela galeria.

Capitulo III

Volte a fazer as malas, Scutt! — ordenou Roxane à criada, ao en trar em seu quarto batendo a porta. — Peça que
aprontem a carruagem.
Vamos embora!
Ina Scutt depositou uma peça fina de lingerie na gaveta do elegante móvel georgiano e fechou-a.
— Então, ele está aqui e a senhora pretende fugir. Mais uma vez? Dizem que o tempo cura as feridas, mas ao
que parece, em certos casos elas são incuráveis. — A criada continuou a tirar as roupas das malas.
Roxane se deixou cair sobre uma poltrona e observou o motivo florido do tapete. Seus olhos se encheram de lágrimas
que não chegaram a cair. Alexander podia ser comparado a um ferimento que não se fechava e doía ao menor toque.
Sabia que não adiantava fugir, que ele continuaria a persegui-la em suas recordações. Durante os anos anteriores ela
fingira ter alcançado a serenidade. Poderia esquecê-lo algum dia? Ou o amor nunca morreria?
Talvez, pensou, a única maneira de se livrar dele fosse ficar saturada de sua companhia. Talvez uma convivência
prolongada com ele fosse o remédio para acabar com seus sentimentos. De queixo erguido, decidiu não arredar pé e tomar
sua dose de Alexander Monk, mesmo que o tratamento resultasse intragável. Roxane endireitou os ombros.
— Não precisa mandar preparar a carruagem, Scutt. Pode guardar minhas roupas. Vamos ficar.
Ina Scutt guardou um vestido da patroa no armário.
— Às suas ordens, srta. Costain — respondeu, calma.
Nesse momento, soaram ruídos estranhos no corredor. Ouviu-se um grito e o estrondo de um móvel caindo. Roxane
abriu a porta, e uma criada assustada caiu em seus braços.
— Não tenho culpa, senhorita! — soluçou a mocinha enxugando as lágrimas com o avental. — Foi ela, não fui
eu! — declarou e apontou para um par de chinelos que se movimentavam embaixo de um monte de lençóis e de uma cadeira
virada.
— Posso pedir um mínimo de consideração? — perguntou uma voz petulante num ponto afastado do corredor.
— Não me sinto bem e não aguento barulho. Por favor, silêncio!
Roxane chamou Scutt. Juntas, endireitaram a cadeira e depois procuraram embaixo do monte de lençóis. Descobriram
uma cabeça cheia de cachos cor de cobre.
— Srta. Costain? Que alívio! — Elizabeth St. Clair apertou os olhos para ver. — Parece que me perdi. —
Passou a mão sobre um lençol e perguntou: — Estamos na lavanderia?
— Não — explicou Roxane. — É a ala na qual estamos alojadas.
Elizabeth enrubesceu e, ao encontrar sua bolsa, tirou dela um par de óculos. Olhou ao redor através deles, voltou a guardá-
los e levantou-se.
— Ah, minha cabeça! — suspirou outra jovem, parada numa porta mais afastada. — Eu não posso viajar,
sempre fico doente... — Comprimiu uma compressa úmida sobre as têmporas.
— Sinto muito perturbá-la, srta. Kempe — disse Elizabeth, mas não obteve resposta. A porta se fechou.
Roxane ajudou a moça míope a ajeitar suas roupas e depois viu que ela tropeçava, pisando nos lençóis.
— Srta. St. Clair, aqui não precisa disfarçar. Sem seus óculos, poderá sofrer um acidente — avisou.
A criadinha chorosa fungou ruidosamente.
— Vou perder minhas boas referências se a governanta souber disto.
Scutt examinou o vestido da criada e o achou muito apertado, com um decote exagerado.
— Que referências? — perguntou. — Qual é seu nome, moça?
— Evie. Evie Jolley.

— Muito bem, Evie. Esse seu vestido não serve — sentenciou Scutt em tom autoritário. — Você não sabe como se
deve comportar uma criada de respeito.
— Mas eu não sou uma criada e não pretendo ser! — retrucou Evie empinando o nariz. — Estou aqui por
empréstimo. Trabalho na estalagem- — E para desfazer qualquer dúvida, balançou os quadris.
Enquanto as duas criadas discutiam, Elizabeth se aproximou mais de Roxane.
— Sei que deveria usar sempre os óculos — explicou —, mas aí vão pensar que sou uma mulher intelectual e
devo confessar que não posso fazer o papel de uma mulher culta, meus conhecimentos são insuficientes. Além do mais, uma
jovem não deve criar a fama de ser culta, pode ser fatal: fica difícil encontrar marido.
O seu problema é o de muitas moças... — comentou Roxane, sorrindo. — A sociedade dá valor apenas à aparência.
E verdade — suspirou a outra. — E acho que vou ter de acabar me casando com algum senhor idoso, barrigudo. Ou,
senão, com algum homem horroroso, se continuar insistindo nesta minha vaidade: sem enxergar direito, corro o risco de
aceitar a corte de um mpnstro!
Roxane a tomou pelo braço, e ambas passaram silenciosamente pela porta da srta. Kempe, aproximando-se dos
aposentos de lady Moyneton.
— Estou dando muito trabalho — disse Elizabeth, apertando os olhos. — Se ao menos eu pudesse enxergar além
da ponta do meu nariz! Mas é impossível, especialmente num dia nublado e quando há pouca luz. É desagradável viver num
mundo de imagens borradas. — Apoiou a mão numa porta, e se esforçou para enxergar. — Acho que este é meu quarto.
Roxane abriu a porta e teve uma surpresa. Uma jovem de cabelos loiros, bonita, fazia pose diante do espelho.
Numerosos vestidos estavam espalhados sobre a cama e sobre as cadeiras. Um espartilho jazia no chão, perto do espelho.
— Por favor, desculpe — disse Roxane, segurando Elizabeth. — Este não é o quarto da srta. Clair, não é?
— Não, o quarto dela é em frente. — A moça deu um passo por cima do espartilho. — Srta. St. Clair, deveria
usar seus óculos.
Elizabeth pôs rapidamente os óculos, depois guardou-os.
— Desculpe meu engano, srta. Gallagher — disse, e apresentou as duas jovens.
— A senhorita poderia usar seus óculos quando não estamos com os cavalheiros — observou Roxane. — Nós
manteríamos segredo.
— Mas todo o mundo sabe que ela precisa de óculos — respondeu Daphne Gallagher. — É uma pena... E
apertar os olhos cria rugas. Não é mesmo, srta. Costain?
Elizabeth hesitou, tirou os óculos da bolsa e os colocou.
,— A senhorita lê muito? — perguntou Daphne, observando-a com atenção. — Parece muito instruída.
Elizabeth suspirou e tirou os óculos. Quis sair depressa, bateu contra o canto da parede e praguejou.
— Que horror! E pensar que é a filha do herdeiro de um marquesado! — exclamou Daphne. — Será que falei
algo que não devia? — Arregalou os inocentes olhos azuis.
Roxane avaliou a moça em silêncio. Pela idade e aparência, já devia ter passado a primeira temporada em Londres, e
seu comportamento inocente era como um vestido que ela usava e descartava à vontade: uma espécie de enfeite.
— Espero que não me leve a mal — disse, com certo ar de superioridade. — A srta. St. Clair sabe perfeitamente o
efeito que provoca quando usa os óculos. Não convém chamar a atenção para estas coisas, para não provocar embaraços.
Imagino que a senhorita não falou por mal.
Lágrimas brilhantes se materializaram nas pontas dos cílios de Daphne. - Nunca faria isto! Tenho um coração
muito sensível.
Seu caráter caridoso deve se tornar um exemplo para todas — respondeu Roxane enquanto se aprontava para sair.
Ah, srta. Costain — continuou Daphne. — Queria elogiar seu vestido. Minha tia — continuou com um sorriso
radioso — tem um muito parecido com este, mas não lhe assenta tão bem. Mas é claro, minha tia é um pouco mais velha
que a senhorita... já passou dos quarenta.
Roxane corou, mas ficou quieta. Depois saiu, sem dar à outra mais oportunidades de lançar dardos. Enquanto voltava
a seu quarto, Roxane sentia-se injuriada. Depois de viver por anos como uma reclusa, tinha de lidar com herdeiras novas-ricas
e com uma mocinha quase cega, que provavelmente ia morrer só para provar que enxergava. Sua tarefa de avaliar as
candidatas a esposa de lorde Moyneton ia ser difícil. Tentou apagar as impressões causadas pelas moças, porque os primeiros
encontros podem ser enganosos.
Scutt esvaziava o último baú e estava irritada.
— Nunca vi atrevimento igual numa criada — declarou. — Aquela Evie... não estou acostumada com esse tipo
de pessoa e pretendo informar a governanta. Mocinha descarada.
— Faça o que achar melhor — respondeu Roxane. — Mas não se esqueça de que se trata apenas de uma criada
temporária, emprestada para ajudar as outras.
— Se eu fosse a governanta, ficaria de olho nela. A mocinha está interessada nos cavalheiros.
— Não diga?
— Percebe-se pelo jeito de andar que não conhece os limites da decência. Anda gingando. Nunca vi nada
parecido.
Uma batida enérgica na porta obrigou Scutt a interromper suas considerações. Abriu e lady Moyneton entrou.
— Desculpe minha intrusão — disse com uma voz baixa e leve como uma brisa de verão.
Roxane não demonstrou que achava graça. Milady usava sua voz social, com modulação especial e a suavidade
reservada para a realeza, os Pares e os membros da mais alta roda. Depois de mandar embora Scutt, se apoderou da melhor
poltrona, perto da lareira.
Queria falar em particular com você, Roxane — disse. — Irei direto ao assunto. Por ser minha afilhada, você me deve
obediência e reverencia como se fosse minha filha. Entre as jovens, há uma para a qual desejo chamar a atenção de meu filho e
você poderá me ajudar. É uma moça tímida e reservada. Herdou uma quantia considerável de uma tia que era considerada...
vamos dizer, excêntrica. Essa jovem transformara meu filho num homem feliz e me dará o respeito que mereço.
— E quem é essa perfeição?
Estou vendo que você quer ser teimosa — falou lady Moyneton, franzindo a testa. — Ouça bem, Roxane. Eu vou
escolher a esposa de meu filho e decidi que deve ser a moça que está se instalando no quarto ao lado do seu. Venha comigo,
quero que a conheça. — Abriu uma porta entre os dois quartos. — Srta. Witton, quero apresentar minha afilhada.
Uma moça alta, que já não era uma criança, mas também ainda não se podia chamar de solteirona, se aproximou. Seu
sorriso tímido se transformou num riso de alegria ao ver Roxane.
— Faith Witton! — Roxane abriu os braços para sua velha amiga. Que surpresa agradável, srta. Witton, não
é? — murmurou lady Moyneton contrariada. — Parece que vocês se conhecem muito bem.
Vou deixá-las agora. — Continuou com um olhar de admoestação para Roxane: — Não desperdicem o tempo enquanto se
preparam. — Sua voz voltou a ser alta e melindrosa como a de uma moça: — Aqui temos horários campestres... meu filho
não abre mão disso. O jantar será servido daqui a duas horas. — E milady se afastou, com passinhos elegantes.
Betty, a criada da srta. Witton, entrou, precedendo os lacaios que traziam a bagagem da jovem dama. Enquanto a
criada indicava onde devia ser colocada, as duas amigas saíram do quarto. Roxane sugeriu que fossem para algum lugar
tranquilo para conversar, por exemplo para o jardim de inverno. Levou Faith para o velho claustro, onde estavam as
palmeiras exóticas de lady Moyneton. Passaram sob os leques verdes relatando o que tinha acontecido em suas vidas desde o
último encontro.
— Como isto é lindo — observou Faith, depois que ambas esgotaram o assunto.
Roxane olhou para os altos arcos de pedra e sorriu.
— Aqui é fácil imaginar cenas românticas.
— Tem razão. — O sorriso inocente de Faith refletia sua satisfação. — Eu diria até que alguém poderia
imaginar que é uma heroína, num lugar como este.
— Você seria uma heroína perfeita!
— Não zombe de mim. — Faith enrubesceu. — Eu seria uma péssima heroína. Minhas irmãs achariam essa ideia
ridícula, e com razão. Você deve se lembrar até que ponto sou covarde.
— Faith querida, você é muito rigorosa consigo mesma. Sua tez pálida, sua expressão confiante, sua inocência e
ausência de malícia são atributos perfeitos para o papel. Compreendo que tenha medo de ratos, mas e daí? Todos temos medo
desses bichinhos. — Observou Faith e depois continuou: — Confesso que estou surpresa de ver você aqui.
— Mamãe recebeu o convite de lady Moyneton e me obrigou a aceitar. Agora, estou feliz por ter vindo porque
nos encontramos depois de tanto tempo. Por que você sumiu?
— Ninguém lhe disse que me tornei uma reclusa? — perguntou Roxane com um sorriso. — Meu irmão mais
velho é amigo de lorde Moyneton, e estou aqui pela insistência de Howard.
— O major está aqui?
Sim, está, e não deixa passar a menor oportunidade para me repreender.
É injusto que você tenha de enfrentar uma porção de irmãos sem ter uma irmã sequer para ajudá-la! — E
Faith sorriu, suave. — Mas sabe enfrentá-los muito bem.
— Mas não desta vez. Salvo Bertram, que está cursando a faculdade, todos se divertem a valer censurando meus
defeitos. Estou furiosa com os quatro. É sempre "casamento". Não fazem outra coisa, só falam nisso, dia e noite. Parece que
querem se ver livres de mim. Ainda não completei vinte e quatro anos e me tratam como uma velha solteirona!
— Então, veio para não ser continuamente perturbada? Ou é por algum outro motivo?
— Imagino que ficará surpresa ao saber que Alexander Monk também foi convidado — disse Roxane,
desviando o olhar.
— Valha-me Deus! Você sabia e mesmo assim aceitou? Nunca chegarei a entendê-la — falou Faith, observando
Roxane com curiosidade.
— Gostaria de saber por que o sr.- Monk está aqui.
— Alexander deve ter seus motivos. Imagino que lady Moyneton pediu que viesse, mas ele não costumava levar
em conta o que ela desejava. Talvez tenha vindo com a ideia de ter aventuras românticas. Ele só pensa nisso!
— Neste caso, pretende roubar seu coração...
— Nada disso! Não ousaria! Aliás, Alexander Monk nunca me deu importância. — Levava Faith em direção da
porta e parou para encará-la. Um estranho brilho iluminava os olhos de Roxane. — Você está preparada para enfrentar uma
aventura? Qualquer coisa que aconteça aqui, eu garanto que está nas mãos do destino.
- Roxy, você está tão misteriosa, e isso é muito tentador. Mas você sempre foi assim, desde quando estávamos na
escola da srta. Littlebury. Bom, vou deixar mais uma vez que você me guie. Cabeças mais velhas e mais sábias sempre me
levaram para aventuras imprevisíveis, portanto pode me guiar.

Durante o jantar daquela noite, Roxane tentou imaginar o que ia acontecer ali. Era óbvio que lady Moyneton já estava
empurrando Faith para, o lado de John. Milady mandara a srta. Witton sentar-se à direita de John, junto da cabeceira da
mesa.
Roxane, de seu lugar ao centro da mesa, conseguia avaliar facilmente a importância que lady Moyneton dava a cada
convidada. Daphne estava à esquerda de John, a srta. Hortênsia Kempe perto de milady, enquanto Elizabeth St. Clair estava
entre um primo do lorde e Howard. E observando os vários primos Monk, Roxane refletiu que raramente vira tantos homens
inaceitáveis juntos. Exceto por lorde Moyneton, já sem as bandagens na cabeça e Richard, seu herdeiro, ausente por estar com
um resfriado, Roxane achou os outros cavalheiros da família um grupo pouco atrativo. Como ela sé encontrava entre o
capelão de milady e um dos primos, virou-se para o pastor a fim de conversar um pouco.
— Srta. Costain — disse o reverendo Simon Titler, com sua voz bem modulada —, é uma felicidade me encontrar
a seu lado. — E se inclinou um pouco para a frente.
Instintivamente, Roxane se afastou e colocou uma mão sobre o peito. Felizmente usava um vestido com decote
mínimo.
— A senhorita não precisa ter medo de mim. — Baixou a voz e continuou num murmúrio: — Não sou como esses
homens de vida irregular que estão à nossa volta. Não posso aprovar esses primos Monk, embora sejam meus parentes
afastados. São muito esquisitos. Aliás, aqui na abadia temos muitos tipos estranhos. Os criados... pense no jardineiro Joseph.
É um lunático.
— Um dos prazeres que a abadia oferece é seu encanto muito diferente — comentou Roxane.
— Como é agradável conversar com uma pessoa tão corajosa e compreensiva — respondeu o capelão com um
largo sorriso. — Receava que as únicas pessoas esclarecidas presentes fossem lady Moyneton e seu filho. — Suspirou aliviado.
— Fui informado de sua delicada missão...
que se refere a um determinado grupo de jovens. Não desejo acrescentar mais nada, só prometer minha total discrição.
Roxane se assustou. Será que todos ali sabiam? Olhou para Alexan-der, do outro lado da mesa. Era impossível que
todos estivessem a par do segredo e desejou que os informados pelo menos fossem discretos. Lançou um olhar desconfiado
ao pastor.
— Não se preocupe, srta. Costain — assegurou ele —, porque considero seus interesses com o mesmo carinho que
dedico aos meus próprios. Soube, por intermédio de uma dama cujo nome não desejo mencionar, que a senhorita é uma pessoa
agradável, que não se negaria a conhecer de perto um cavalheiro de mentalidade mais refinada como eu. Sua modéstia e
excelente educação tornam a senhorita ainda mais desejável por não ser uma candidata.
Roxane engoliu um pedaço de batata sem mastigá-lo e engasgou. Observou Titler com olhos cheios d'água,
estupefata por ele falar assim, praticamente sem conhecê-la.
— Sua informação é muito lisonjeira — respondeu, quando conseguiu falar de novo —, mas devo admitir que
tive um passado infeliz; Nunca poderei casar da forma que meu coração manda.
O pastor arregalou os olhos e comprimiu os lábios, depois virou a cabeça para lady Moyneton.
Esse pastor tem uma excelente opinião de si mesmo — observou o primo que estava sentado a seu lado.
Roxane virou o rosto para responder, mas ficou parada ao sentir uni forte aroma de alho. Franziu o nariz.
Peço desculpas — murmurou seu vizinho. — É meu alho. — Tirou uma cabeça de alho do colete. — Sempre
trago bastante comigo quando preciso vir aqui.
— Desculpe, não me lembro qual primo é o senhor — comentou Roxane. — Sou Roxane Costain, de
Blackmoor Hall.
— Sei que seu nome soa familiar, mas neste minuto não consigo relacioná-lo — ele disse, e inclinou a cabeça.
— Sou Cosmo Monk, às suas ordens, o gémeo mais velho dele... — e apontou para um rapaz de óculos que não se parecia
absolutamente com ele. — Foi sorte eu ter nascido antes de Philo. — Olhou para sua cabeça de alho e destacou um dente. —
A senhorita parece uma boa pessoa e vou lhe dar um destes, de coração.
— Mas para quê?
Cosmo Monk ficou a observá-la, atónito.
— Ora, isto serve para afastar bruxas, demónios e fantasmas — explicou. — Um colar de treze dentes de alho,
usado durante treze dias, cura a icterícia.
— O senhor acredita no poder de cura do alho?
— Não, eu acredito em amuletos. Até agora me mantiveram vivo e em boa saúde — afirmou Cosmo com a
maior seriedade. — Um maldito cigano lançou contra mim uma praga de morte quando alcancei a maioridade. Não fosse pela
cauda de um lagarto verde, que tenho no sapato direito, não estaria vivo e feliz.
Roxane refletiu até que ponto poderia se sentir feliz com a cauda de um lagarto verde no sapato direito. Ficou
arrepiada, mas continuou a sorrir.
O senhor não pode acreditar que vai morrer por causa de um sortilégio!
— Costumo levar isto comigo para o caso de morte súbita — disse e e mostrando um pedacinho de papel. — É o
que desejo como inscriçao em meu túmulo. Ouça. — Pigarreou. — "Aqui jazem os ossos de Cosmo, mas ninguém sabe onde
ele está. No paraíso ou no inferno? O certo é que está feliz." O que acha?
— É muito apropriado, mas só se for enterrado com a cauda do lagarto verde! — Ela inclinou a cabeça e cobriu
a boca com o guardanapo para sufocar o riso.
— Calma, calma, ainda não morri, não fique tão impressionada, srta. Costain — disse ele, achando que Roxane
chorava.
Os olhos de Roxane encontraram os de Alexander, que parecia se divertir bastante, e ela teve vontade de gargalhar.
— Srta. Costain! — exclamou Cosmo naquele instante, entendendo finalmente o significado daquele nome. —
A senhorita, por acaso, é a mesma moça que algum tempo atrás ficou noiva de meu primo Alexander durante um ou dois dias?
— Olhou para o primo e recebeu um aceno afirmativo.
Roxane voltou o olhar para Alexander, e seus olhos verdes brilharam, mas logo desviou-os ao ver que pelo jeito, ele
achava que ainda tinham contas a ajustar.
Na outra ponta da mesa lady Moyneton bateu num copo com uma colher e esperou que todos se calassem.
— Senhoritas e cavalheiros, se quiserem me fazer um favor esta noite, vamos modificar um pouco o costume
usual. Os cavalheiros poderão tomar suas bebidas fortes mais tarde. Tenho uma surpresa para todos e sei que não gostariam
de perdê-la. Por favor, venham todos comigo até a galeria dos retratos da família. — Levantou-se, fazendo farfalhar os
babados do vestido de seda. — Desejo ouvir suas opiniões.
— Que diabo, de novo! — Cosmo se apressou a esvaziar o cálice de vinho. — Mais um daqueles malditos
retratos!

Capitulo IV

Na manhã seguinte, lady Moyneton olhou para John por cima de sua xícara de chocolate.
— Não adianta discutir comigo, John. Não pretendo voltar atrás. — A decoração delicada do quarto contrastava
com seu comportamento rígido. — Por outro lado, de que outra forma poderia avaliar quem é a melhor amazona? Ouça
bem, você vai convidar nossos hóspedes para acompanhá-lo enquanto inspeciona sua propriedade.
— Mãe, tenho certeza de que elas não se interessam por isso.
Milady se endireitou, e seus ombros rígidos mostravam até que ponto estava decidida. Limpou cuidadosamente os dedos com
o guardanapo, retirando até a última migalha.
— As jovens estão muitíssimo interessadas em qualquer coisa que se refere a você. Nada anima mais o espírito de
competição de uma dama do que ver o que poderia ganhar com um mínimo de iniciativa.
— Ora, madame! — rebelou-se o lorde. — A senhora fala como se fosse uma competição esportiva!
— Só quero o melhor para você, meu filho.
— O melhor para mim ou o melhor para a senhora?
— Não acha que é a mesma coisa? O que me agrada deve, necessariamente, agradar a você.
Lorde John sorriu com mais confiança quando um pensamento engraçado lhe passou pela cabeça.
— E Roxane agrada a senhora?
— O que ela tem a ver com o assunto?
— Peço licença, madame — disse ele, retirando-se, sem responder. — Tenho muito a fazer antes do passeio.
Ao sair dos aposentos de sua mãe, lorde Moyneton foi até o quarto de Roxane e pediu a Scutt para transmitir à
patroa a seguinte mensagem: "O primeiro ato está começando".
Uma hora depois a carruagem de lady Moyneton chegou até a estrebaria, onde um certo número de criados segurava
os cavalos selados. O Sr. Smythe examinava os animais e seus arreios, especialmente as rédeas e as barrigueiras.
Quando o grupo se reuniu diante da entrada principal, o administrador foi se informando discretamente sobre as
habilidades equestres das moças e escolheu o animal adequado para cada uma. Roxane ficou com uma égua saltitante, que
achou muito apropriada. Ajeitava a saia, movimentando-se sobre a sela, quando Howard apareceu acompanhado por um
dândi muito vistoso. Ouviu que o chamava de Richard: era o primo considerado o herdeiro de John. Imaginou que, a julgar
pela aparência, seu alfaiate devia ter ficado rico tendo-o como cliente.
— Estou vendo que ficou impressionada com Richard.
Ela se virou e viu Alexander com o braço apoiado na garupa de sua montaria. Pôs-se na defensiva, mas não pôde
evitar que o coração se acelerasse. Agitou-se sobre a sela.
— Deixe-me ajudá-la. — Sem pedir licença, Alexander a segurou pela cintura com ambas as mãos, ergueu-a sem o
menor esforço e sentou-a de novo. — Está mais confortável assim?
Era isto que a deixava desconcertada: uma parte dela sempre se sentia confortável quando ele estava por perto. Será que
a guerra interior nunca chegaria ao fim? E lembrou-se do tratamento que inventara para se livrar de Alexander. Sentiu um
aperto no estômago e teve medo de tomar a primeira dose. O que aconteceria se a cura se revelasse mais fatal que a doença?
— Algo a perturba, srta. Costain? — Alexander parecia preocupado. — Espero que as conversas inoportunas
de Cosmo, ontem à noite, não a tenham deixado inquieta.
— Não. Afinal, o passado já foi. Não pode mais nos perturbar.
Ele deu um passo para trás e aspirou um bocado de ar.
— Então esperemos por um futuro pacífico — disse e, pegando a mão dela, beijou-a sobre a luva com um gesto
elegante e cavalheiresco.
Apesar da desconfiança que ele lhe despertava, Roxane sentiu-se acalentada por aquele breve contato. Descobriu,
surpreendida, que sorria para ele. Afinal, Alexander Monk era um cavalheiro ou um tratante? Antes que pudesse decidir, ele
cumprimentou-a e se afastou.
Já montado, lorde John aproximou-se dela.
— O que é isso? — perguntou, despertando-a de seu devaneio. Olhou para Alexander que estava montando, e
depois virou-se para Roxane, com um brilho risonho nos olhos. — Minha querida, não esqueça para quem você precisa
mostrar um certo carinho. Não seria oportuno que se manifestasse interessada por uma outra pessoa.
Ela baixou os olhos e, para todos que pudessem estar observando-os, fingiu-se um pouco confusa, como se lorde John
tivesse lhe feito um elogio.
Meu caro senhor — falou em voz suficientemente alta, observando-o de esguelha. — Não deve dizer essas coisas.
Não são convenientes.
Ele continuou a flertar mais um pouco e depois se afastou para pro-urar o administrador, mas a atenção especial
dedicada a Roxane foi observada por muitos, especialmente por Alexander.
O grupo começou a se movimentar pela alameda, encabeçado por lorde Moyneton e Smythe. Lady Moyneton, em sua
carruagem, tentou indicar quem deveria cavalgar ao lado de quem, mas desistiu quando os ruídos dos cascos sobrepujaram sua
voz.
Roxane ficou ao lado de Faith e logo Howard se juntou a elas. Cavalgaram tranquilamente, falando de coisas sem
importância. Se quisessem se apressar mais, teria sidoimpossível, porque as srtas. Hortênsia Kem-pe e Daphne Gallagher não
davam passagem. Ambas estavam alerta para conseguir posição ao lado de lorde Moyneton. Como nenhuma das duas pretendia
acelerar, mantinham-se lado a lado.
Ao perceber um sinal de lorde John, e assentir, Howard manobrou para emparelhar com Roxane. Com a delicadeza de
um urso, entrou di-retamente no assunto.
— O que essas duas pretendem fazer? — perguntou.
— Parece que estão bloqueando o caminho — respondeu Roxane. —Lutam pelo privilégio de cavalgar ao lado
do conde.
O major Costain fungou ao ouvir esta clara explicação do delicado ardil usado por duas damas.
— Dobre a língua, Roxy! — exclamou e, depois, como se não a tivesse censurado, acrescentou: — Estou satisfeito
em ver que você e a srta. Witton não fazem esse papel ridículo.
— Ora, Howard, você sabe que Faith é uma jovem bondosa, muito bem-educada, e que não posso ter alguém
melhor como amiga e exemplo. Mas, ainda é cedo para me elogiar, garanto que logo vou lhe dar motivos de zanga e
censura...
Howard pareceu chocado e disse, atabalhoadamente: - No Exército, você seria detida ao falar desse jeito. Tente
lembrar, Roxy, de ser muito prudente, especialmente quando conversar com Alex. - Pareceu ignorar o olhar furioso da irmã e
continuou: — Você deve-na se manter afastada dele, entendeu? Não quero que banque a tolinha com esse homem, outra vez!
Está sendo imprudente — respondeu Roxane, inclinando-se levemente para o lado do irmão. — Você sabe que nada
desperta mais minha rebeldia do que me darem ordens assim.
— Se você me contrariar, vou lhe explicar detalhadamente as obrigações de uma mulher para com sua família!
— Howard lançou-lhe um olhar severo.
— Ora, pare de ameaçar. Não está pensando que vou lhe dar ouvidos agora, depois de todos estes anos?!
Howard só conseguiu balbuciar ao ouvir essa declaração de rebeldia e ficou para trás, no fim da coluna. Levantou-se
sobre os estribos e mandou um sinal a lorde Moyneton para indicar que a primeira parte de sua tarefa estava terminada.
Os gémeos Monk, Cosmo e Philo, mantinham-se ladeando o cavalo da srta. Elizabeth St. Clair, guiando-o e
levando-o na direção certa. A jovem dama estava sem os óculos e não conseguia ver galhos e ramagens, a não ser tarde
demais para evitá-los. Num desses encontros com um galho, levou uma chicotada de folhas num olho e seu chapéu adquiriu
uma posição esquisita no topo da cabeça. A pena que o enfeitava quebrou.
A carruagem aberta de lady Moyneton, perdida sob uma montanha de peles e mantas e acompanhada pelo capelão e
Richard, fechava o cortejo. Alexander a escoltava, montado. Richard parecia estar necessitando ficar por mais tempo na cama,
mas conseguia manter-se acordado, contando à tia todos os últimos mexericos da cidade.
Howard se emparelhou com Alexander e explicou por que tinha ficado para trás, enquanto a carruagem se afastava
um pouco: não tinha paciência com a futilidade das damas...
— Só Deus sabe por que criou a mulher, mas pessoalmente nem que ro me arriscar a fazer uma suposição! —
comentou.
— A procriação, talvez? — perguntou Alexander, olhando para os quadris de Roxane, que ondulavam com os
movimentos de sua montaria.
— Deve ser isso. Estremeço ao ter de considerar qual outra finalidade essas pessoinhas caprichosas poderiam ter.
— O major ficou um pouco pensativo. — Até nossa própria irmã guarda em sua cabecinha pensamentos que não se
consegue adivinhar. Acabo de avisar Roxane para evitar falar com você. Não é por nada, mas Roxy parece meio nervosa
com a sua proximidade, e você deve se lembrar de até que ponto ela pode ficar... desinibida quando alguém a provoca. Acho justo
avisá-lo, Alex, que ela acaba de me dizer que não pretende aceitar ordens no que se refere à sua pessoa.
— Ela fez isso?
— Nunca ouvi uma mulher falar de maneira tão insolente. — Howard parecia preocupado. — Seria melhor
para todos se você se mantivesse afastado dela. Afinal, meu caro amigo, não pode estar com vontade de ser mais uma vez seu
noivo... — E soltou uma gargalhada como se essa fosse uma ideia absurda.
Alexander sorriu e ficou em silêncio, pensativo.
O cortejo atravessou o parque da propriedade e chegou à estrada que levava aos campos cultivados. Quando
alcançaram a fazenda, receberam muita atenção dos camponeses. Houve mesuras e chapéus erguidos. Lorde Moyneton e
Smythe tentaram cuidar dos afazeres normais, mas a presença do grande grupo de amazonas e cavaleiros acabou atrapa-
lhando tudo.
Depois de algum tempo o grupo se aprontou para voltar. A srta. Kempe descobriu que a srta. Gallagher se apoderara do
espaço ao lado do conde com a sutileza estratégica de um marechal e obrigava-o a suportar sua conversa juvenil. Daphne, já
acostumada com sua montaria, cavalgava graciosamente e, sem qualquer esforço, conseguia se sobressair entre as outras
amazonas. Com a roupa de montaria à última moda e a maneira perfeita de se manter na sela, era o alvo da admiração de
todos os cavalheiros.
A monopolização tão prolongada da atenção de lorde Moyneton fez surgir em Hortênsia o desejo de tomar o lugar de
Daphne a qualquer custo. Ao notar-lhe a agitação Smythe ficou para trás e perguntou-lhe se tudo estava em ordem. Depois de
algum tempo a herdeira altiva dignou-se a conversar com ele.
Todas as maquinações e manobras das jovens divertiam enormemente Roxane e Faith, que iam logo atrás das duas
rivais. As duas amigas tiveram de fazer esforço para não gargalhar ao ouvir as palavras da srta. Kempe.
— Sinto-me mal — esta afirmou — quando sou obrigada a ocupar qualquer posição que não seja a ponta.
Sempre gostei de estar na primeira fila. Não posso permitir que uma moleca usurpe meu lugar de direito. Estou cansada de
comer a poeira dos outros.
Smythe mantinha um comportamento convenientemente respeitoso. Respondeu com a devida hesitação, como era
natural por parte de um mero funcionário:
— Percebe-se logo que a senhorita é uma dama de extraordinárias qualidades. Espero não ser julgado atrevido ao
dizer que é exatamente a pessoa que milady está procurando para ser sua nora. A nobreza de seu caráter é indiscutível, srta.
Kempe.
— Sem dúvida, meu bom homem. Posso não descender de uma elevada linhagem como as outras, mas tive
educação que me foi transmitida pelas melhores preceptoras e as melhores escolas. — Ergueu altivamente o nariz
pontudo. — Desde a minha infância fui preparada para ocupar o meu lugar entre os mais elevados representantes do reino.
Fechou a boca, assustada, ao perceber com quem estava falando: um funcionário!
Smythe pareceu compreender seu susto por ter se esquecido das rígidas barreiras entre as classes.
— Srta. Kempe, pode ter certeza de que suas confidências serão consideradas um segredo com o qual me honrou.
— Hesitou antes de perguntar com modéstia servil: — Posso tomar a liberdade de dar um conselho no que se refere a
milorde? — E continuou apenas depois do aceno afirmativo da jovem: — Lorde Moyneton gosta do campo. Adora uma boa e
rápida cavalgada em suas terras. Acredito que uma dama que mostrasse apreciar estas coisas ganharia sua admiração e
simpatia.
— Que coincidência! Meu pai insistiu até que eu aprendesse a cavalgar tão bem quanto ele. Não havia obstáculo
que ele não soubesse transpor, e que Deus o tenha em paz.
— Uma amazona tão experimentada como a senhorita vai apreciar, sem dúvida, aquela campina mais adiante e
o salto audacioso que proporciona à turma mais ousada de caçadores.
Os olhos de Hortênsia Kempe lampejaram, decididos. Olhou para Daphne, que continuava flertando com o lorde,
e apertou os lábios.
Quando avistou a campina, a srta. Kempe fustigou o cavalo e passou em disparada ao lado do casal à sua frente. A
montaria de lorde Moyneton percebeu o desafio quando o cavalo da srta. Kempe resvalou a cauda em seu focinho.
— Lorde Moyneton — gritou Hortênsia, controlando seu cavalo —, estou cansada de ir a passo. Venha para
uma corrida! Ganhará o primeiro a transpor aquele muro lá à frente. — Antes que ele pudesse responder, ela saiu a galope.
Daphne estava para fustigar seu próprio cavalo quando lorde Moyneton agarrou-lhe o braço.
— Está louca? Atrás daquele muro existe uma vala.
Esporeou o cavalo, que saiu a galope, e gritou o nome de Howard e de Alexander, que saíram em perseguição à
amazona.
Hortênsia não parava de fustigar o cavalo, rindo dos seus perseguidores. Estava feliz de chamar a atenção de todos.
Ao ver o conde se aproximar, lembrou-se de puxar as rédeas: afinal, uma dama nunca devia ganhar de um cavalheiro.
George Smythe observava tudo da beirada da campina, sem quase respirar. Quando o conde acelerou para emparelhar com
ela, os olhos de Smythe brilharam. Quase engasgou quando o viu curvar-se sobre a sela, perigosamente desequilibrado, na
tentativa de agarrar as rédeas da srta. Kempe.
Agora... tem de acontecer agora, pensou, e ficou a observar, incrédulo, o lorde permanecer firme sobre a montaria.
O conde agarrou as rédeas das mãos de Hortênsia. Ela gritou e procurou algo em que se firmar. Ele puxou as rédeas
para afastar os cavalos da parede logo à frente, mas os gritos de Hortênsia incitaram ainda mais os animais confusos.
Smythe desejava ardentemente que a montaria do conde continuasse em direção à parede. O ódio contra a família
Monk, acumulado durante muitos anos, surgiu como fel e quase o sufocou ao ver o plano fracassar.
Alexander tinha passado pelos dois, do outro lado da srta. Kempe. Jogou então sua montaria contra a dela,
forçando-a a virar junto com a montaria do lorde. A poucos passos do muro eles conseguiram parar.
— Realmente, cavalheiro! — Os olhos de Hortênsia se arregalavam de indignação.
— Ninguém ensinou à senhorita que é perigoso saltar um muro sem saber o que há atrás dele? — rosnou
Alexander.
— Existe... uma vala muito... perigosa, logo... atrás — explicou lorde Moyneton com a respiração entrecortada.
A srta. Kempe desatou a chorar. O major Costain se aproximava e parou ao ouvir o choro: detestava aquilo. Logo
atrás dele apareceu Ro-xane com Faith. Desmontaram. A filha do pastor tratou de confortar a srta. Hortênsia, enquanto
Roxane pegava seu frasco de sais para reanimá-la.
Lorde Moyneton também desmontou para ajudar as moças e o cocheiro de milady parou a carruagem, para saber se
tudo estava bem. O conde disse que sim e chamou seu administrador.
Smythe cerrou os dentes e se aproximou a meio-trote. Se tudo tivesse se passado como planejara, o conde agora estaria
no chão, morto. Smythe cortara a barrigueira de maneira que um mínimo de pressão adicional a partiria. Sentia-se logrado.
Enquanto se aproximava de lorde Moyneton, fustigou o cavalo para descarregar sua frustração. E foi então que aconteceu: o
lorde estava se preparando para montar. Quando colocou o pé no estribo, apoiando-se nele com todo o peso de seu corpo, o
cavalo, ainda nervoso, empinou. O conde caiu ao chão, com um baque surdo, arrastando a sela consigo, e ficou imóvel.
O coração de Smythe quase transbordou de alegria. Seus olhos brilharam, e ele sorriu. Finalmente! Incitou o cavalo e
se aproximou a galope. Lorde Moyneton estava morto! O novo conde seria aquele imbecil do Richard, e ele teria tempo para
procurar o tesouro, parte da herança que lhe fora negada.
Quando chegou ao grupo ao redor do acidentado, viu que a srta. Costain sustentava a cabeça de milorde em seu colo. O
conde estava muito pálido e Smythe se esforçou para se mostrar aflito.
Roxane Costain colocou uma mão sobre o peito de lorde Moyneton, depois procurou algo em sua bolsa. Pegou um
frasco cheio de um líquido amarelo-esverdeado, retirou a rolha e despejou-o na garganta do conde.
— Pare com isto, Roxy! — berrou Howard. — Acabará por envenená-lo com essa porcaria, se ele não estiver
morto.
Durante um momento Smythe realmente pensou que o sonho longamente acalentado estava realizado, mas em seguida
lorde Moyneton mexeu as pálpebras, depois tossiu e respirou com dificuldade. George Smythe parou, apalermado. Quem olhasse
para ele, diria que estava comovido pelo milagre de ver seu patrão reviver. Mas, na realidade, o ódio de Smythe aumentou
desmedidamente. Tinha falhado, mais uma vez!
— Danação! — balbuciou o lorde, enquanto se recuperava. — Quem foi que despejou aquela coisa ardida na
minha garganta? — Tentou se levantar, mas Roxane o segurou.
— Não se mexa ainda — disse. — Descanse mais um pouco.
— Por todos os diabos, Moyneton! — exclamou Howard, aliviado.— Você quase me matou de susto. Foi
sorte Roxane estar aqui para ajudá-lo.
O conde observou Roxane e os outros que o cercavam, angustiados; de repente sua expressão mudou. Olhou para
Roxane como um homem profundamente apaixonado.
— Como poderei agradecer, querida srta. Costain? Devo-lhe minha vida.
— O senhor ficou apenas atordoado. Imagino que o ar saiu todinho de seus pulmões. Está sentindo alguma dor?
— Ele sacudiu a cabeça e ela continuou: — Neste caso, talvez esteja em condições de se juntar a sua mãe na carruagem.
— Ninguém está em condições de fazer isso — retrucou Alexander e foi recompensado por um sorriso fraco de
John. — Howard vai levá-lo até a carruagem. Smythe, diga ao cocheiro para se aproximar o mais possível, na beira da
estrada.
— Sim, senhor. — O administrador acenou com a cabeça e depois se virou para seu patrão, com expressão
angustiada. — Milorde, vou inspecionar cada peça na estrebaria e mandar substituir todo equipamento estragado. Sei que essa
velha sela é a sua preferida, mas não há desculpa para deixá-la em condições tão precárias. Sinto-me responsável pelo acontecido.
— Smythe se curvou e se afastou para falar com o cocheiro.
Howard e Alexander não demoraram a ajudar as jovens damas a montar. A srta. Kempe já tinha superado o ataque
histérico, mas Faith Wit-ton achou que devia acompanhá-la! Howard quase carregou o amigo, apesar de seus protestos, até a
carruagem que, em poucos minutos, tomou o rumo da abadia, com os outros formando um cortejo atrás. Alexander, então,
examinou a sela. Tamanho descuido com os arreios lhe pareceu estranho. Viu que a barrigueira não estava gasta, mas
claramente cortada.
Um criado de libré chegou para apanhar a sela. Olhou para a barrigueira, franziu o cenho, mas ficou calado. Depois de
jogar a sela no lombo do cavalo, conduziu-o pelas rédeas.
O relincho de uma égua alertou Alexander. Virando-se, viu que não estava sozinho.
— Deveria ter ido com os outros, Roxane.
— Não foi um acidente, não é mesmo? — ela perguntou.
— John sobreviveu — ele respondeu e suspirou. — Você terá sua oportunidade de se tornar lady Moyneton.
Ela teve vontade de dar uma resposta cortante, mas mudou de ideia, porque estava curiosa.
— É isso o que você pensa? — perguntou, irónica.
Alexander sorriu com ar misterioso e não respondeu diretamente.
— Entender os propósitos de uma mulher é sempre difícil: é uma criatura volúvel, cuja lógica às vezes é
incompreensível. — Montou no cavalo. — Vamos, srta. Costain? — perguntou.
Roxane não demorou a emparelhar com ele.
— O senhor está fazendo muito mistério sobre o acidente de John, que aliás não é o primeiro. Quando
chegamos à abadia, ele estava com a cabeça enfaixada. Consequência da queda de uma viga podre, dizem.
Quem poderia querer fazer mal a um homem tão bom?
— Quem sabe os motivos que levam uma pessoa a agir de formas estranhas? — ele perguntou, encolhendo os
ombros e, depois, fitando-a
como se quisesse descobrir todos os segredos dela. — Quem sabe o que leva alguém a tomar decisões desesperadas? —
Continuou a fitá-la com insistência.
— Eu tinha um bom... — começou Roxane, tomando uma atitude defensiva. — Quero dizer, algumas pessoas
têm bons motivos para tomar determinadas atitudes.
— Bons motivos? — ele perguntou, irónico. — Ah, entendo talvez o bom motivo fosse vingança? Ou cobiça?
Ou, que tal, o amor? Sim, quando se trata de amor, qualquer raciocínio é inútil. Dizem que um homem apaixonado não é
capaz de pensar de maneira racional.
— Amor?! — ela exclamou, como a zombar da palavra e também de quem a pronunciara. — O que é que o
senhor sabe do amor? Afinal, nunca perdeu sua capacidade de pensar e raciocinar. O senhor é calculista demais para se
apaixonar.
Ele sorriu, e ela teve vontade de apagar o sorriso a tapas.
— Minha querida srta. Costain, para dominar e compreender as complicações, as sutilezas e as falsidades do jogo
do amor, um homem deve ser astucioso e manter seu bom senso. — Acrescentou, com um sorriso diabólico: — É um jogo
muito sério que exclui os covardes.
Nos olhos negros brilhava uma luz de desafio. — E só os corajosos vencem, senhor.
Ela tocou os flancos da égua com os calcanhares e saiu num meio galope, enquanto ele ficava imóvel, olhando-a.

Capitulo V

Roxane Costain — falou lady Moyneton, pondo ênfase em cada sílaba —, jamais poderia imaginar que minha
afilhada fosse tão ardilo sa. O que está maquinando a respeito de John?
Ambas estavam na sala de visitas, à luz das velas. Milady mandara o capelão Titler desistir de bebericar com os
cavalheiros depois do jantar, para acompanhar as jovens damas na visitação de todos os retratos espalhados pela casa. Entre
madrinha e afilhada existia uma tensão controlada, enquanto se fitavam de poltronas opostas, ao lado da lareira.
Roxane conseguiu manter uma calma aparente apesar da cólera crescente da outra.
— O que pretende dizer, milady?
— Estou falando de todas as
atenções que meu filho muito tolo está desperdiçando com você, desde o dia do acidente. — A ira alterava de tal modo as
feições de milady que ela quase se tornava feia. —- É evidente que ele ainda não percebeu, mas a devoção crescente que vem
devotando a você frustra todos os meus esforços. Explique, por favor, de que forma uma jovem pode dar atenção a um
cavalheiro já interessado em outra?
— Realmente, é um problema...
— Um problema! Isto é traição!
Esse seu flerte ardiloso com meu filho é repreensível e não vou tolerá-lo! Não vou mesmo! —Milady se inclinou para
frente. — Você sempre foi uma mocinha rebelde, Roxane, e vejo que não melhorou com o passar dos anos. Você e
John não combinam.
— E por que não? — perguntou
Roxane, num impulso.
— Você está me provocando! —
Lady Moyneton começou a agitar seu leque. — Mas se quiser realmente saber, é porque eu, mãe de John, não desejo esse
casamento. Você é excessivamente teimosa e direta para me agradar. E, além do mais, qualquer mulher que um dia
imaginou estar apaixonada por Alexander não é digna de se tornar a condessa de Moyneton. Vamos parar com essas
tolices!
Roxane se retesou ouvindo mencionar o nome de Alexander, mas procurou manter a calma.
—Imagino que John tem alguma coisa a dizer a esse respeito — observou.
— Eu dito a lei nesta família. Se você e ele pretendem continuar esse namoro sem eira nem beira, me obrigarão
a...
Lady Moyneton se interrompeu ao ouvir a voz sonora de Titler atrás da porta da sala, e as moças entraram.
— Ah, lady Moyneton! — exclamou Daphne com entusiasmo juvenil, aproximando-se antes das outras. — Não
canso de ver seus retratos. São magníficos! — Juntou as mãos e suspirou. — Os artistas retrataram tão bem seu encanto e sua
beleza juvenil. A senhora devia ser uma criança quando se casou, porque ainda hoje parece ter pouco mais de vinte anos.
Podemos ver mais uma vez seus retratos amanhã, depois do jantar?
Roxane percebeu que as outras jovens ficaram segurando o fôlego, esperavam pela resposta de milady. Depois do
malfadado passeio pela propriedade, a vida na abadia se tornara tediosa. Pela terceira vez consecutiva tinham olhado para os
retratos de lady Moyneton, e como milady preferia noites calmas, na mesa de jogo ou conversando, essas voltas pela casa eram
o ponto alto da noite.
Os cavalheiros tinham se esquivado de acompanhá-las, explicando que precisavam discutir assuntos da maior
importância, e quando as damas saíram da sala de jantar, Phipps entrou com as garrafas de vinho. Os homens continuavam
de portas fechadas, esperando o momento de sair em segurança.
— Estou feliz que você goste dos retratos — disse lady Moyneton, endireitando-se em sua poltrona. — Talvez
alguém entre vocês gostaria de ver os outros.
— Outros? — perguntou Daphne, e sua voz se elevou de maneira esquisita.
— Todo artista de alguma fama na Inglaterra já pintou meu retrato — gorgolejou milady —, sem contar os
artistas do continente. Minhas feições delicadas inspiraram mestres e discípulos. — Fez uma pose afetada. — No sótão há
montes de quadros, e todos são retratos meus.
Roxane percebeu uma certa resistência a mais retratos e observou as reações das outras moças. Faith, cuja expressão
era de quem estivesse lambendo limão, tentava evitar uma careta. Elizabeth St. Clair mumu-rava agradecimentos por não
enxergar muito bem, mas Hortênsia Kem-pe, talvez porque desejava se redimir, conseguiu uma expressão de entusiasmo e
Daphne bateu palmas como uma criança excitada.
— Talvez possamos ver esses retratos amanhã — observou Roxane.
Sorriu para a madrinha e perguntou: — A senhora tem certeza de que esses são seus últimos retratos? Não queremos negar
à srta. Gallagher o privilégio de ver todos eles, não é mesmo?
Alisou a saia do vestido de veludo marrom, arrumou a gola de renda e juntou as mãos, à espera da explosão da
condessa.
— É uma excelente ideia — concordou milady. Seu rosto encantador estava recomposto. — Será divertido vê-los
todos. Nem sei por que algumas pessoas acham que é tedioso viver no campo, afinal estamos nos divertindo muito, não?
— Oh, sim, lady Moyneton — se entusiasmaram juntas Daphne e Hortênsia.
A futura sogra deu demonstrações de boa vontade a todas as jovens, mas conseguiu excluir Roxane. Durante a meia
hora seguinte milady elogiou muito as quatro candidatas e deu a cada uma atenção tão especial que Daphne e Hortênsia ficaram
completamente convencidas da própria importância. Finalmente, como se lembrando de que alguém estava faltando, lady
Moyneton declarou que já estava na hora de chamar os cavalheiros, incumbindo o capelão desta tarefa.
Quando os cavalheiros chegaram, milady formou os grupos. Vendo que o conde se dirigia para Roxane, a mãe o
interceptou e lhe deu Faith Witton como parceira para um jogo de uíste com ela e o capelão como adversários.
Daphne, a pedido de milady, consentiu em cantar, embora não gostasse de ter Elizabeth como acompanhante ao piano.
Como o instrumento se encontrava num canto afastado da sala, cantou soltando o máximo da voz.
Hortênsia Kempe se declarou cansada e sentou-se num sofá de estilo grego, perto da mesa de jogo, para ser admirada
por lorde Moyneton. Todas as vezes que Daphne soltava uma nota alta, ela suspirava dolorosamente.
— Srta. Gallagher — gritou milady, tentando ser ouvida apesar do barulho —, por favor, lembre-se de que
estamos jogando. Cante mais baixo, minha querida!
Daphne parou de cantar. Esforçou-se para não fazer beicinho e se aproximou da mesa de uíste. A srta. St. Clair começou
a tocar suavemente, para seu próprio prazer.
Richard, sempre vestido à última moda, convenceu Howard a jogar baralho, também, e se acomodaram numa
mesinha.
Roxane percebeu, a um certo ponto, que estava cercada pelos membros da família Monk. Foi para um sofá e
convidou Cosmo e Philo a sentar ao seu lado, enquanto Alexander ficava largado numa poltrona estilo império.
Estou vendo que seu primo está muito cansado. Por que será? — comentou, irritada com o jeito relaxado dele.
Mulheres — sentenciou Philo. — Os Monk sempre se interessam por mulheres...
— É o trabalho do amor — afirmou Cosmo em tom solene. — Nosso pai se acabou porque nunca deixou de
perseguir mulheres. É o nosso sangue.
— Estudei este caso. — Philo endiretou os óculos sobre o nariz. — Devo admitir que a pesquisa surgiu por
causa da minha preocupação com essa mania da família. E depois de observar meu irmão e meus primos, descobri que todos
nos comportamos como nossos antepassados.
Os homens Monk sempre foram libertinos.
— Mas John... quero dizer, lorde Moyneton não parece ter essas inclinações. — Roxane puxou as pontas do
xale e olhou para Alexander, à sua frente, que sorriu.
— Não costumo fazer mexericos — explicou Cosmo —, mas John teve uma mocidade tão movimentada que
tia Alfreda quase morreu de apoplexia. O sangue dos Monk não mente.
— Você não precisa convencer a srta. Costain da sina fatal de nossa família — interferiu Alexander com uma
gargalhada. — Ela já conheceu e parece que vai lidar com ela mais uma vez... Por falar nisso, como a senhorita vai indo com
John?
Roxane ignorou a pergunta e voltou-se para Philo.
— Vamos supor que alguns, entre seus parentes, seguem as pegadas dos antepassados. Mas não acredito que
esses interesses "satíricos" passem de um geração para a outra!
Os olhos de Philo, por trás dos óculos, se arregalaram chocados.
— A senhorita não pensa que nos esforçamos propositalmente para sermos libertinos! Não fosse meu sangue
ruim, eu seria um estudioso, um homem das letras. Mas nem sempre podemos escolher nosso caminho.
Roxane ficou estupefata com a resposta sem lógica e percebeu que Alexander ria às escondidas.
— Sua afirmação pode corresponder à verdade — respondeu a Philo com um sorriso polido —, mas um
homem com a sua inteligência, decerto...
— Inteligência! Esta é boa! Philo nem possui bom senso. Só usa óculos para impressionar. Foi convidado a sair
de Oxford!
— Não sou uma fraude — protestou Philo corando. — Eu li a História de Tom Jones, um enjeitado, há uma
semana! — Endireitou-se orgulhosamente. — E posso narrar toda a história da família Monk, a começar de nosso tatara-
etcétera avô, o fundador da linhagem.
— Toda a história? — perguntou Roxane. — Deve ser interessante.
— Conte tudo.
Philo curvou a cabeça e começou a contar a vida e os feitos de sir Jonathan.
Foi ele que, por decreto real, conseguiu mudar o nome da família, trocando-o por Monk. Está registrado que
ofereceu uma grande festa a Charles II. Por volta do quinto dia de folguedos, sir Jonathan sugeriu que seu sobrenome fosse
trocado para outro mais de acordo com a nova residência, Rammsford Abbey. Depois de muitas chacotas e brincadeiras
grosseiras, conseguiu o que queria. E, desde então, os Monk têm fama de ser grandes libertinos.
— Que história interessante — murmurou Roxane, observando Alex e imaginando se todos os Monk eram
iguais. — Continue, por favor —pediu, interessada.
Cosmo bufou e afundou-se no sofá de cara feia.
— Sir Jonathan — continuou Philo, com um olhar irritado para seu gémeo — gostava muito de dar festas.
Convidou Charles II para vir à abadia e se dedicou a grandes preparativos. Para divertir o rei, inventou uma caça ao tesouro.
— Philo parou para dar maior ênfase. — Escondeu um grande crucifixo de ouro, finamente trabalhado e todo craveja do de
rubis, que encontrara na abadia depois de tomar conta do lugar. O crucifixo era chamado de O Coração da Virgem. O rei e seus
acompanhantes passaram muitos dias à procura, mas não conseguiram encontrá-lo.
— Por quê? — perguntou Roxane, fascinada.
— Sir Jonathan era um homem ardiloso, com uma mente afiada, assim como Alexander. Continuava a gozar dos
favores do rei porque o divertia. Além de um certo número de indícios falsos, forneceu outros verdadeiros para a caça do
tesouro, todos compostos de maneira tão esperta, que ninguém o encontrou. E sempre havia damas bonitas que distraíam os
convidados... O rei costumava vir, frequentemente, na esperança de encontrar O Coração da Virgem, mas nunca teve
sucesso. Quando ia embora, tinha se divertido bastante. A lenda diz que não era apenas o rei quem procurava o Coração. O
Monge Branco também o procurava, aliás, ainda o está procurando.
— Está procurando o quê? — perguntou Elizabeth St. Clair, enquanto se aproximava. — E quem é o Monge
Branco? Ele queria o coração de quem?
— Falávamos de uma caça ao tesouro, a procura de O Coração da Virgem — explicou Philo.
Uma caça ao tesouro! — exclamou Elizabeth, e seus olhos brilharam. — Que ideia maravilhosa. Quando
começaremos?
Não começaremos, senhorita — respondeu Alexander, com sua voz suave e vibrante. — O primo Philo estava
relembrando uma velha história da família, que é mais lenda do que realidade.
Discordo! — exclamou Philo. — Li os relatos no diário de sir Jonathan. Ele até transcreveu o primeiro indício
para a caça ao tesouro: "Na antiga fundação do tempo, começa a busca com a rima. Se destemido fores, e leal, teus passos
não lamentarás". Podem conferir, se quiserem. Os diários estão guardados na biblioteca.
— Neste caso, precisamos organizar uma caça ao tesouro — afirmou Elizabeth com a maior naturalidade, como
se fosse a coisa mais lógica.
— Seria uma maneira muito divertida de passar o tempo. — Achou oportuno consultar uma pessoa mais influente: — A senhora
não concorda, lady Moyneton?
Milady estava dando toda sua atenção ao jogo.
— Sim, menina, sim. Mas agora fique quietinha.
— O que minha mãe concordou em fazer, srta. St. Clair? — perguntou o conde.
— Uma caça ao tesouro — interferiu Daphne antes que Elizabeth pudesse responder. — Não é esplêndido,
milorde? Poderíamos formar casais... — Lançou-lhe um olhar tímido.
— Você disse uma caça ao tesouro? — indagou lady Moyneton, sem permitir que o filho falasse. — É um
programa excelente.

— Vocês estão vendo? — Daphne lançou um olhar satisfeito aos outros. — E a ideia foi toda minha!
— De jeito nenhum — protestou Philo com franqueza pouco cavalheiresca. — A srta. St. Clair, uma jovem de
indiscutível inteligência, sugeriu que fizésáemos uma caça ao tesouro. Esta caça é um acontecimento muito conhecido na
história dos Monk, conforme pesquisei.
— É uma fábula — murmurou Alexander. — Vamos, tia Alfreda, não pretende nos mandar a correr atrás de
uma quimera?! — Observou sua tia com atenção concentrada.
Lady Moyneton sorriu suavemente, deixando todos os seus parentes masculinos alarmadíssimos.
— Se esta caça ao tesouro pode levá-los a correr atrás de algo que não é uma mulher, me darei por satisfeita
— ela sentenciou. — Nem que seja apenas por um dia. É claro que detesto negar a vocês o prazer de ver todos os meus
retratos, mas podemos fazer isso num outro dia.
— Daphne e Hortênsia soltaram um suspiro. Milady bateu na mão do capelão com o leque. — Titler, organize a caça ao
tesouro. Discuta os pormenores com Philo e escolha os pares adequados para nossas convidadas.
O olhar glacial que dirigiu a Roxane significava que cuidaria pessoalmente para que seu filho ficasse afastado dela.
— E o Monge Branco? — perguntou Alexander, com ar cético. — Será que o fantasma da abadia não se
oporá?
Os que estavam perto de Cosmo perceberam de repente um cheiro violento de alho, enquanto ele descascava um dente
e murmurava esconjuros.
— Alguém ouviu um fantasma farfalhar naquela direção? — ele perguntou, indicando nervoso o jardim de
inverno.
O súbito silêncio foi quebrado pela gargalhada despreocupada de milady.
— Alex, meu querido, que ideia! Olhe só em que estado deixou o pobre Cosmo, tão confuso, coitadinho! Não
faça essas brincadeiras. —O olhar duro que acompanhava as palavras indicou o que realmente pensava. Levantou-se,
majestosa. — É tarde. Vamos tomar nosso chá! —E agitou a sineta para chamar Phipps.
Depois do chá, lady Moyneton acompanhou todas as suas "freirinhas" ao claustro de cada uma.

Alexander teve alguma dificuldade em separar lorde Moyneton dos cavalheiros que jogavam bilhar, mas conseguiu.
— Venha comigo, primo — murmurou, afastando lorde John de Howard.
Desde o incidente com a sela, Howard agia como se fosse a sombra de Moyneton: não o largava um segundo sequer.
Howard quis protestar, mas se calou quando percebeu a expressão decidida de Alexander e se limitou a sussurrar ao ouvido
do amigo:
— Não permita que ele o obrigue a desistir do que você mais deseja.
Alexander passou um braço nos ombros de Moyneton.
— Sabe que precisamos discutir alguns assuntos e prefiro que seja uma convera particular. Afinal, envolve o nome
de uma dama. Vamos para seu gabinete, Moyneton? — Apanhou um castiçal enquanto atravessa vam o hall.
— Você só me chama de Moyneton quando está muito desgostoso comigo — observou o conde sorrindo. —
Será que fiz alguma coisa que o deixou zangado, meu velho? — perguntou com ar inocente.
Alexander não disse nada, apenas levou o lorde a passo rápido e, quando chegaram ao gabinete, fechou a porta.
— Por aqui existe alguém com más intenções, meu caro primo — falou, enquanto acendia a vela.
O lorde dirigiu-se para a escrivaninha, seu símbolo de autoridade, e quis se sentar atrás dela, mas parou sem
completar o movimento. Seus olhos ficaram presos à faca que estava cravada no tampo, e sob a lâmina via-se um velho
pedaço de papel.
— Por Deus, isto é uma afronta! Alexander, desta vez você foi longe demais. Existe alguém com más intenções,
sem dúvida! O que significa esta ameaça de morte?
— Quê? Do que está falando? — Alexander se aproximou.
Moyneton apontou o dedo para a faca e o bilhete.
— Você não quer que se faça a caça ao tesouro e talvez não goste que eu dê atenção a uma determinada
dama, mas isto... isto realmente é um disparate!
Alexander, com algum esforço, retirou a faca da madeira e a examinou. Depois pegou a folha de papel.
— Que coisa esquisita. Parece que existe alguém que quer as coisas à maneira dele. Ouça. — E leu o recado sem
assinatura: — "Aos malditos usurpadores, saibam todos os que carecem de sufuciente sabedoria que O Coração da Virgem me
pertence e que afirmarei meu direito com
quaisquer meios que forem necessários. Se os tolos saírem à sua procura, terei de impedi-los. O lorde sobreviveu até agora,
mas se a caça começar, seus dias terminarão breve".
— Este tipo de brincadeira não tem graça.
— Duvido que alguém quisesse brincar... — observou Alexander.
Olhou a faca afiada e passou um dedo no gume. — Está aí a confirmação do que eu disse. Alguém está querendo matá-lo.
— Parece que o bastardo não é muito habilidoso!
— Você deve dar graças a Deus por ele ser um inepto.
Moyneton ficou em silêncio por momentos, depois disse:
— Você acredita que Richard precise de dinheiro a ponto de querer me eliminar para herdá-lo?
— Poderia ser. Ele costuma apostar alto nos jogos de azar. Entretanto, até que seja possível provar quem tenta pôr
um fim prematuro à sua vida, vou entregá-lo à proteção do major Costain. — Alexander ouviu um pequeno ruído no
corredor. — Deve ser sua sombra chegando.
Mas quando Alexander abriu a porta, viu apenas um dogue alemão indo na direção do hall.
— O que este cão está fazendo na casa? Sempre soube que sua mãe não permite a entrada de animais.
— Eu disse a Smythe que podia trazê-lo para esta ala da casa. Ele deve estar por aí, cuidando de algum
pormenor — explicou o lorde com um sorriso. Depois perguntou, mais sério: — O que você pretende fazer enquanto Howard
banca o guarda-costas?
— Não se preocupe, estarei bastante ocupado. Vou ajudá-lo a cortejar, casar, levar seu amor para a cama, e ao
mesmo tempo procurarei a solução deste mistério.
— Alex, a respeito de Roxane...
— Ah, sim. Roxane... — Alexander lançou um olhar penetrante ao primo. — Você tem alguma coisa a
confessar? — Mas a expressão dele era tão astuta que o conde pensou num adivinho capaz de ler pensamentos.
Oh, ah... Apenas que é uma mulher diabolicamente atraente.
Os olhos escuros de Alexander lampejaram e ele sorriu.
— Verdade. Diabolicamente... É esquisito, mas nunca pensei que vocês pudessem combinar. Por outro lado, os
sentimentos não têm nada a ver com a lógica. — Olhou para o primo, com calma. — É realmente comovente ver ambos
enveredar pelos caminhos de... Poderia ser amor? —Dirigiu-se para a porta, parou e se virou. Parecia um modelo de
compostura. — E, antes que me esqueça, não a toque nem com um dedo, caso contrário nem nosso parentesco poderá salvá-
lo. Boa noite, primo.

Capitulo VI

Quando o último minuto da noite se transformou no primeiro minuto da manhã, Alexander, levando um castiçal, saiu
do gabinete do conde e se dirigiu à biblioteca. Achava que as memórias de sir Jonathan mereciam um atento exame.
Os criados tinham apagado todas as velas e abafado as brasas das lareiras, nos aposentos do térreo. O jogo de bilhar
acabara, e os primos já estavam deitados. Enquanto Alexander caminhava na escuridão silenciosa, achou difícil não pensar no
Monge Branco. Em geral, ele não acreditava em fantasmas, mas respeitava sua existência.
Na biblioteca procurou até encontrar os volumes com os diários de sir Jonathan e chegou à conclusão de que seu
avoengo tivera uma vida cheia de acontecimentos, porque encontrou um bom número de diários, cada qual de um determinado
ano. Apanhou o primeiro volume. Além do cheiro de mofo, as páginas coladas uma à outra e uma camada de poeira
indicavam que o livro estava há muito na prateleira. Colocou o volume em seu lugar e apanhou outro; fez assim até pegar o
volume datado de 1665. Viu que este não estava tão empoeirado como os outros. Depois de segurá-lo por algum tempo, apoiou
o dorso, e soltou-o para que se abrisse sozinho. Como imaginava, as folhas separaram-se em determinado ponto, significando
que alguém tinha manuseado o volume várias vezes.
Viu o desenho de O Coração da Virgem e levou o diário para perto da vela que se encontrava sobre o consolo da
lareira. Começou a ler o relato da caça ao tesouro. Ao constatar a quantia oferecida como prémio para quem encontrasse a
cruz, franziu a testa. Tentou calcular o valor atualizado do prémio. Sem dúvida a soma dos juros acumulados devia ser muito
mais elevada que o depósito inicial de três mil guinéus, sobretudo porque este se encontrava no banco há mais de cento e cin-
quenta anos. Não havia por que se admirar se alguém cobiçava esse dinheiro.
Consultou o relógio de bronze dourado, ao lado da vela. Uma da madrugada: parecia a hora ideal para começar uma
caça ao tesouro. Sorriu ironicamente. Pensou no primeiro verso de sir Jonathan: "Na antiga fundação do tempo". O que
significava aquilo?
Antes de conseguir formular uma resposta, a chama da vela começou a tremular, como que agitada por uma súbita
corrente de ar vinda de uma janela aberta. Mas a casa estava toda fechada. A biblioteca parecia estar ficando fria, e Alexander
teve a sensação esquisita de não estar só. Não se via ninguém, mas percebeu que o que não podia ver com seus olhos existia.
A curiosidade o ajudou a se manter calmo, observando e aguçando os ouvidos, esperando por alguma coisa que não
conhecia. Começou a surgir uma luminosidade suave, mas parecia não possuir energia suficiente para tomar uma forma
reconhecível. De repente, a sombra se retorceu e sumiu como uma brisa noturna. Alexander ficou a se perguntar se estava
acordado ou dormindo. Não era possível que tivesse visto um... Não podia ser o fantasma do Monge Branco. Por outro lado...
Censurou-se mentalmente. Continuando deste jeito, acabaria pedindo ao primo Cosmo para lhe emprestar seus amuletos
contra.os maus espíritos. Nem valia a pena pensar no assunto. As aparições podiam impressionar pessoas iguais a Cosmo, mas
não enganar um homem esperto como ele.
Apesar dessas considerações, continuou a pensar em todos os detalhes: a caça ao tesouro de sir Jonathan, a mensagem
no gabinete, as palavras do diário e a estranha luminosidade. Sentia-se muito além dos impulsos juvenis por aventuras mas,
pelo visto, parecia que teria mais uma oportunidade de se lançar às cegas num caminho desconhecido.
Sorriu. Afinal, não estava tentando a sorte na terra desconhecida do amor? Bem podia incluir também a busca de O
Coração da Virgem.
Colocou o volume no lugar e apanhou a vela. Na abadia muitos aposentos ainda estavam nas mesmas condições dos
tempos de Charles II, sem dúvida por causa da vontade de gerações Monk. Alexander tentou seguir o raciocínio de sir
Jonathan. Qual seria a fundação antiga?
Visitou todos os aposentos do térreo, procurando a resposta. Chegou à conclusão de que poderia encontrá-las no
andar superior, onde estavam alojadas sua tia e as moças convidadas. Subiu e encontrou a empregada encarregada da vigilância
dormindo em uma cadeira no corredor. Sem fazer barulho, experimentou a maçaneta da porta mais próxima. Estava trancada.
Riu silenciosamente. Não teve qualquer dúvida: era a porta de Roxane.
Será que ela o achava capaz de ir surpreendê-la no meio da noite? Sorriu ao pensar que ela devia conhecê-lo melhor do
que ele mesmo se conhecia, pois estava ali, diante da porta do quarto dela, tentando entrar...duvidou que agisse como
cavalheiro, vendo Roxane na cama.
Não conseguia imaginá-la dormindo de touca, nem que fosse uma leve, de rendas. Pensou nela de cabelos soltos, a lhe
acariciar a face. Passou a mão sobre a porta que o separava de Roxane, e se lembrou da chave passe-partout no bolso de seu
colete, mas resistiu à tentação.
A mulher que desejava, que poderia tornar sua vida completa, era Roxane. As atenções de lorde John para com ela o
deixavam frustrado. Como podia cortejá-la se estava sendo alvo das atenções de outro? Mas daria um jeito.
Embora a contragosto, parou de pensar nesse assunto. Tinha uma tarefa a cumprir em benefício do lorde. Se pudesse
encontrar o tesouro, poderia também encontrar o autor dos atentados. Depois, se preocuparia com assuntos sentimentais.
O dia estava prestes a clarear quando desistiu de procurar no interior da casa e saiu. Apesar do sobretudo, sentiu o
vento frio. Começou a explorar os arredores da abadia à luz de uma lanterna encontrada na cozinha.
Contornou o labirinto de arbustos plantado sobre o terreno onde existira a parte destruída da capela. O vento soprou
com mais força e apagou a chama da lanterna; naquele momento teve quase a certeza de que ninguém queria construir
qualquer coisa sobre o terreno consagrado de uma igreja destruída mais por superstição do que por respeito para com um lugar
sagrado.
— Irmão, estás aqui? — perguntou uma voz ansiosa atrás de suas costas, e Alexander se virou depressa, pronto a
enfrentar qualquer um, nem que fosse o Monge Branco.
A luz fraca de uma lanterna iluminou-lhe o rosto.
— Ah, é você, irmão Alexander. Pensei que talvez fosse... outra pessoa querendo me ver. Mas ele está muito
ocupado desde que voltou para a abadia.
Alexander viu o rosto bondoso do irmão Joseph, o jardineiro. As roupas desbotadas davam-lhe um ar patriarcal. Os
olhos confiantes não se preocupavam com as complicações do mundo. Alexander sabia que Joseph vivia num reino de fantasia
e que o centro de seu universo era a abadia. Imaginava ser um frade cisterciense.
— Perdoe se o acordei, irmão Joseph. Não queria perturbar ninguém.
— Você não me acordou. Estava esperando por ele. O resplandescente costuma vir conversar comigo. —
Sorriu, como se estivesse vendo algo, muito longe. — Precisamos nos apressar, irmão Alexander, o serviço está para começar.
— Joseph o levou para um ponto onde Alexander julgou que devia ter se erguido outrora a nave da capela.
Um pouco mais tarde, conseguiu voltar para casa a tempo de ouvir os vários ruídos que indicavam o recomeçar
das atividades na área de serviços. Entrou no corredor com suas muitas portas coloridas, e pensou que era divertido
imaginar os muitos primos Monk ocupando as celas que antigamente pertenciam aos membros devotos de uma antiga
ordem religiosa. Perto de sua cela, ouviu uma porta se abrindo com cuidado. Desarrumou os cabelos e afrouxou a gravata.
Evie saiu da porta azul, a porta de Richard, e começou a se arrumar. Sorriu e piscou para Alexander com
cumplicidade para mostrar que sabia que a noite de ambos tinha sido de amor.
— Talvez uma destas noites eu ajeite as cobertas de sua cama — ela disse, ollhando-o atentamente.
Alexander deu um passo para trás, por prudência.
— Você é Evie, não é? Não deve se arriscar assim. Pense bem, se alguém a encontrasse em minha cama... adeus
boas referências, não acha?
— Não pretendo ser empregada o resto da vida. Tenho planos.
— Isso é bom. Aposto que breve usará roupas de seda!
— Isso mesmo, meu senhor. Pode apostar — e se afastou, balançando os quadris.

A carruagem balançou quando o cocheiro a fez parar diante da entrada. Howard, lorde John e Roxane estavam nos
degraus do portão. Pareciam não sentir frio.
— Moyneton, não quero ir, diacho! Se Bertram foi expulso, pode muito bem voltar para casa com a diligência.
— Mas você não pode desconsiderar um pedido de seu pai — respondeu o conde, batendo-lhe nas costas. — A
carta explica claramente que você deve ir buscá-lo no colégio.
— Papai deve ter bons motivos para isso — acrescentou Roxane. — E não se preocupe com o John. Vê aquele
lacaio? — Indicou um criado de proporções excepcionais, parado a pouca distância. — Será o guarda-costas dele, na sua
ausência.
— John, se você morrer antes de minha volta, não espere que eu chore sobre seu ataúde — disse o major Costain,
furioso. — Você é doido. Irei a Oxford e voltarei em tempo recorde. Mas se cuide! — Sem tomar conhecimento do criado, que
segurava a porta da carruagem, o major montou na boleia. — Vamos!
Quando Roxane e lorde John voltaram a entrar, encontraram Phipps com um recado de milady: desejava falar com
ambos na sala do desjejum.
— Mamãe deve ter pensado que íamos fugir juntos — comentou Moyneton, sorrindo. — Ela vigia todos os meus
passos.
Deve ter ficado nervosa vendo que estávamos perto de uma carruagem. Vamos, meu devotado admirador —
respondeu Roxane, batendo as pálpebras.
— Alguma coisa entrou em seu olho? — perguntou ele.
— Não, estava treinando como olhar para meu "amado".
— Então, não faça uma coisa tão vulgar, Roxane, mamãe logo perceberia que se trata de brincadeira. Ela sabe
que não gosto de moças pouco modestas.
— Diga-me, John, todos os libertinos se tornam beatos quando se regeneram? — ela perguntou, franzindo a
testa.
— Não me arrisco a responder. — Ele riu. — E não admito ser chamado de beato ou de regenerado.
Acompanhados pelo robusto lacaio, foram brincando até a sala do desjejum e quando entraram deram a impressão de
que estavam flertando.
Alexander observou-os com as sobrancelhas franzidas. Lady Moyne-ton soltou uma gargalhadinha trinada e explicou
às jovens que o conde e sua afilhada se tratavam praticamente como irmãos. Suas palavras foram desmentidas pelas atitudes de
lorde John com Roxane, que ninguém poderia interpretar como fraternais.
— Titler! — chamou milady, imperiosa.
O capelão limpou a boca e engoliu. Abandonou o prato cheio com um olhar resignado e foi para junto da
condessa.
— Começaremos nossa caça ao tesouro agora mesmo. — Lady Moyneton fitava fixamente a afilhada ao falar.
— Mas... mas milady — balbuciou Titler. — O desjejum... ainda
não... — Diante do olhar imperioso de milady, o capelão não teve escolha e perguntou: — Todo mundo terminou? Podemos
começar? A pedido de milady, esbocei um plano para nossa caça ao tesouro. Por uma questão de força maior, teremos de
respeitar algumas regras. — Sorriu para as candidatas. — A boa reputação destas delicadas jovens em flor está em nossas
mãos, por conseguinte a caça ao tesouro só acontecerá durante o dia. Um time, composto de dois casais...
— Então, teremos times! — exclamou Daphne e bateu palmas. — Maravilhoso! — Olhou para lorde Moyneton
de soslaio.
— Han! — O capelão bateu na mesa para pedir silêncio. — Como estava dizendo, um time não poderá ir para
nenhum lugar que ponha em risco a virtude ou a segurança destas queridas jovens damas. — E continuou, explicando as
regras.
— Perdão, Titler — interrompeu lorde Moyneton. — Permita-me observar que nós, cavalheiros, sabemos que
iremos nos comportar como tais. — Fitou a mãe. — Francamente, madame, se eu soubesse que o capelão ia nos pregar um
sermão, teria sugerido a capela para esta reunião. Podemos continuar de maneira mais concisa, Titler?
— Às suas ordens, milorde — respondeu o pastor, e continuou: --Vejamos as regras do jogo, assim todos
terão as mesmas oportunidades. Apenas o avoengo da família sabia onde se encontra O... — pigarreou, e suas orelhas
ficaram vermelhas — Coração da Virgem. — Sorriu como a se desculpar. — Hoje o sr. Philo e eu pesquisamos o diário de sir
Jonathan. Encontramos o primeiro indício, e uma cópia será entregue a cada time. Os membros de um time não devem
informar os de outro sobre suas eventuais descobertas. — Continuou a falar sobre as regras e concluiu: — Se o tempo
piorar, qualquer busca ao ar livre terá de ser encerrada.
— Não esqueça, Titler — interferiu milady —, que vou preparar algumas distrações para nossas convidadas,
para depois do jantar.
— Oh, madame, sei que vou morrer de curiosidade se não nos contar o que será! — exclamou Daphne.
— Espero honrar sua visita e a das outras jovens damas com um baile. — A notícia foi recebida com
compreensível entusiasmo por todas.
Quando se acalmaram, milady cotucou o capelão com o leque. — Continue, não se esqueça da composição dos times.
— Mas é claro. — Titler procurou no bolso do colete e encontrou uma folha de papel. Pigarreou. — Com o
auxílio de milady, reuni todos os participantes em grupos de quatro, e para isto tive de incluir lady Moyneton e a mim
também. Então, vejamos: primeiro time, srta. Faith Witton, srta. Daphne Gallagher, lorde Moyneton e sir Richard Monk.
Segundo time: srta. Elizabeth St. Clair, srta. Hortênsia Kempe, srs. Cosmo e Philo Monk. Para o terceiro time...
Antes que Titler pudesse continuar, Roxane e Alexander trocaram um olhar: o dela, consternado, o dele, divertido.
Ambos viraram a cabeça ao mesmo tempo em direção de lady Moyneton e viram que ela ostentava um sorriso triunfal e um
brilho vingativo nos olhos, para que soubessem que tudo ia se passar do jeito que ela queria.

— Então, Alexander — perguntou a tia apertando a gola de pele contra o rosto —, onde acha que deveríamos ir,
seguindo o primeiro indício?
Ele começou a caminhar pela alameda do jardim. Se o vento norte não conseguisse esfriar o entusiasmo dela, ainda
tinha um ou dois recursos que não falhariam. Olhou para Titler e Roxane, e pensou que havia maneiras mais divertidas de
passar a manhã. Em seu afã de mostrar que podia fazer o que os mais jovens faziam, milady tinha aprovado a ideia da caça
ao tesouro com entusiasmo juvenil. Mas agora, ao enfrentar a fria realidade que soprava ao redor, avermelhando a ponta de
seu nariz, o entusiasmo arrefecia.
Alexander sentia pena dela. A tia deveria estar em casa: ali poderia até contrair uma pneumonia. Era o único
homem da família no grupo e era o responsável.
Na eventualidade de ser o único a acompanhar Roxane em sua busca pelo esconderijo do Coração, teria de manter-se
na linha. Ser um cavalheiro era realmente tarefa muito pesada, especialmente para alguém que nem sempre escolhia este papel.
Esfregando as mãos enluvadas, Alexander evitou um monte de folhas secas e ofereceu o braço à tia para superar um trecho de
terreno irregular.
— Madame tem certeza de que deseja ficar exposta a este vento?
— Imagino que meu médico ficaria chocado ao me ver aqui, mas uma mãe deve se sacrificar para o bem de seu
filho. Não quero que as jovens pensem em mim como uma desmancha-prazeres. — Lady Moyneton estremeceu apesar da sua
capa forrada de pele. — Se ao menos o vento não estivesse tão frio!
— Foi num dia como este — contou Alexander, baixando a voz e em tom dramático — que um meu amigo foi
visitar o vizinho. Como as casas ficavam nas extremidades de uma campina, meu amigo... Talvez a senhora o tenha
conhecido: Philbert Finch.
— Posso afirmar que não conheço nenhum de seus amigos!
— Pois é uma pena. Birdie Finch, este era o apelido dele, era um bom sujeito, benquisto por todos, sem inimigos,
mas tinha saúde um pouco delicada... Assim como a sua, titia. Naquele dia ele atravessou a campina para jantar com o vizinho
e jogar baralho. — Alexander sacudiu a cabeça e enxugou os olhos. — Estou com saudade do velho Birdie. O farmacêutico
disse que se tratava de úlcera nos pulmões, mas quando finalmente chamaram o médico... — Contraiu os lábios. — Birdie
não chegou ao fim do ano!
Milady extraiu um frasquinho de seu regalo e o agitou sob o nariz, aspirando.
— Dizem que Birdie voltou para casa com olhos avermelhados e uma coceirinha na garganta. — Alexander
observou atentamente a tia e se afastou, com expressão alarmada.
— O que há? O que você viu? — assustou-se ela.
— Não sei nada de medicina. Quem sou eu, para dizer...
— Minha garganta — suspirou milady, massageando-a. — Parece que está inflamada. — Tossiu. — Chame o
Titler! Preciso pedir perdão a Deus antes de...
Mas Titler e Roxane já estavam perto. O capelão olhou para sua benfeitora preocupado.
— Milady, o que aconteceu?
— Não estou me sentindo bem. — Quase caiu em seus braços — Chame um médico. Não quero ver nenhum
farmacêutico. Eles não entendem nada!
Roxane se aproximou e colocou um braço em volta dos ombros da madrinha.
— É claro que a senhora sabe como está se sentindo, mas não percebo qualquer sinal visível de doença.
— O que você entende? — Lady Moyneton afastou a afilhada. — Acha que porque sabe preparar um chá, conhece
as artes médicas? Imagino que nem sabe aplicar ventosas. Mande chamar minha camareira, ela precisa me ajudar. — Afastou
Roxane com um gesto. — Só quero meu capelão, minha camareira e meu médico. Vou para casa agora. — E se afastou,
agarrada em Titler.
Roxane teve o impulso de segui-los, mas Alexander a impediu. O calor de sua mão se fez sentir no ombro dela,
através dos agasalhos.
— Tia Alfreda está apenas com frio. Um tijolo quente poderá aquecer seus pés, mas sua disposição
permanecerá fria. Deixe-a ir por enquanto... — disse ele, firme.
— Mas ela pode precisar de uma presença feminina.
— Para isso, basta a camareira. Pode acreditar, minha querida tia fez uma encenação.
— Como pode ter certeza de que ela não está doente?
— Talvez porque eu a influenciei... — Ele não se incomodou ao vê-la chocada e fitou-a como se estivesse lendo
seus pensamentos mais íntimos. — Queria falar com você em particular. — E a levou para um grupo de árvores.
— Tenho certeza de que não temos nada de importante a discutir. Lembro-me de que já lhe disse para não
fazer isso comigo.
Ela tentou se afastar, mas Alex a reteve.
— Roxane, que brincadeira tola você e John estão fazendo?
— Brincadeira tola? Não sei o que quer dizer. Quero que saiba que respeito muito lorde Moyneton. Ele é um
verdadeiro cavalheiro. Tenho a impressão de que nossa atração mútua é... a realização de Um... um plano divino.
Ele riu e sacudiu a cabeça.
— Parece muito mais um plano fantasioso de alguém. Vamos, você não imagina que sou tão crédulo...
— Eu já sabia que você era grosseiro, mas será que não consegue se dominar um pouco? Por favor, deixe-me passar!
— Não. — Segurou a mão dela. — Não antes que me diga o que realmente sente a respeito de...
— O que entende desse assunto? Não tem a menor sensibilidade no que se refere aos sentimentos de uma
mulher. — Desvencilhou a mão.
Você continua tão reprovável como... quando vi você pela última vez! Você nunca vai conseguir mudar!
Ele ficou parado como se tivesse levado uma bofetada. A chama interior que brilhava nos irresistíveis olhos escuros
se apagou.
— Durante quanto tempo um homem deve ser julgado pelo seu comportamento passado? Um ano? Dez anos? Por
toda a vida? — A voz dele soou como um gemido de dor.

Capitulo VII

Roxane encarou Alexander em silêncio. Aquelas palavras ecoaram em seu íntimo, dolorosamente. Teve a impressão de
que suas defesas desmoronavam, que os muros ao redor de seu coração estavam rachando. Realmente, até quando ele deveria
ser castigado pelos erros do passado? Ele poderia ter se modificado com o passar dos anos.
— Ignatius — ela murmurou, e sua voz deixou transparecer um pouco do carinho de então —, você fez uma
pergunta que não sei responder.
— Ignatius. — Alexander soltou uma risada amarga. — Por que você se agarra a esse nome?
— Por quê? Porque... — Ela baixou a cabeça para ocultar o rubor. Só poderia admitir a verdade a si mesma.
Como ousaria revelar que
Ignatius, que significava ardente e fogoso, era o nome que mais lhe ficava bem? Como ninguém o chamava assim, o
segundo nome dele se tornara exclusivamente dela. Mais: gostava de chamá-lo assim para provocá-lo. E finalmente, de que
forma uma dama devia chamar seu amor perdido? Ignatius estava ótimo.
— Por quê? — ele insistiu, e com um dedo
ergueu o queixo de Roxane.
— Porque condiz com você.
Pela primeira vez, depois de quatro anos, viu que ele sorria feliz, do jeito que ela gostava. Era um sorriso convidativo,
que pedia outro como resposta e, ao mesmo tempo, que partilhasse de sua alegria.
Diante daquele encanto poderoso, sua resistência começou a desaparecer, e sua expressão se tornou mais suave.
—Senti sua ausência, Roxane. — Segurou-a delicadamente pelo som-bros e a puxou para mais perto. — Posso
abraçá-la por um instante?
A luz que brilhou nos olhos de Roxane foi resposta suficiente, e ele a envolveu com seus braços, fazendo com
que se aninhasse. Seus cabelos recendiam a limão.
Ela sentiu-se invadida por um anseio ardente. Era isto que sempre desejara, mas nunca tivera a coragem de aceitar com
confiança. Tinha certeza de que seus sentimentos por ele eram muito mais intensos que os que ele alimentava por ela. Sua
infelicidade era ter se apaixonado por um homem que nunca poderia amá-la na mesma medida. Suas mãos se introduziram pela
abertura da capa dele e, apesar das luvas, sentiu o calor das suas costas. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto e caiu sobre o
colete de seda de Alexander, provocando uma mancha. Ele empurrou para trás o capuz de Roxane e beijou-lhe os cabelos.
— O que foi que aconteceu conosco? — Apertou-a com mais força. — Você nunca respondeu minhas cartas.
Mandou seu pai me dizer para não importuná-la mais. Vamos, menina, seja franca comigo: por que desmanchou nosso
noivado?
Mais lágrimas caíram sobre o colete de seda. Ela suspirou. Uma exclamação de espanto saiu do arvoredo.
— Irmão Alexander! É um pecado terrível privar da companhia de mulheres! Afaste-se já daí!
— Irmão Alexander? — perguntou Roxane em voz baixa, divertida. —Não me, diga que entrou para uma
Ordem, porque eu não poderia acreditar.
— O pobre velho acredita que sou um irmão leigo da Ordem dos Cistercienses.
Embora Roxane se esforçasse para se desvencilhar, Alexander continuou a segurá-la. O jardineiro ficou indignado.
— Irmão Alexander, isso é indecoroso. Os irmãos não se misturam com mulheres.
— Neste caso não precisa se preocupar — afirmou Alexander. — Esta não é uma mulher, é uma freira. Você
sabe que a abadessa, nossa boa lady Alfreda, chegou para nos visitar. Ela trouxe um certo número de noviças para
acompanhá-la.
— Muita gente estranha — resmungou Joseph. — Para onde foi a solidão de nossa Ordem? — Fitou o casal e
continuou: — Mas isto não é possível, porque os irmãos leigos também são obrigados a renunciar aos prazeres da carne.
Arrependa-se, irmão Alexander, e encontrará nas belezas simples da natureza o suficiente para satisfazer suas necessidades.
— Estou descobrindo que isso é verdade — respondeu Alexander, se gurando Roxane com um braço. Olhou para
ela sorrindo e piscou. — Entretanto, irmão Joseph, é nosso dever consolar os menos afortunados que encontramos pelo
caminho.
— Deverl — Roxanne perguntou ao homem que a segurava. — Foi isto, então?
— Não. Mas tenho uma certa obrigação...
— Por favor, senhor, solte-me!
Dever. Obrigação. Estaria ele se sentindo na obrigação de lhe mostrar gentileza? Afastou-se dele à força, humilhada, e
começou a andar em direção ao labirinto. Quando chegou perto da espessa parede verde da sebe, ouviu Alexander chamá-la.
Decidiu então entrar no labirinto, à procura do isolamento no jardim que ficava em seu centro. Não queria
encará-lo agora, de forma alguma.
O labirinto, cuidado por gerações de jardineiros, ainda mantinha seu desenho original, com as voltas e curvas
ardilosas. O topo da sebe se elevava muito além da altura de um homem e não deixava transparecer nada. Ela entrou sem
sentir medo.
Havia muitos anos que passeara por ali, e descobriu que encontrar o caminho era mais difícil do que lembrava.
Depois de errar repetidamente as voltas, ziguezagueando e encontrando vias sem saída, chegou a uma pequena clareira.
Bancos de pedra estavam dispostos entre estátuas de Cupido e no meio de tudo viu o antigo relógio de sol. Olhou para o
quadrante horizontal, sustentado por um pedestal jindamente esculpido. Sem saber por que, lembrou-se das palavras'dó
primeiro indício: "Na antiga fundação do tempo, começa á busca com a rima. Se destemido fores, e leal, teus passos não
lamentarás". Vibrou. "Na antiga fundação": os alicerces da velha capela estavam embaixo do labirinto. "Do tempo": o
relógio!
Ao se aproximar devagar do velho relógio de sol, sentiu nascer a esperança. A superfície de latão do quadrante estava
marcada pelas intempéries, mas os algarismos romanos e a inscrição cinzelada ao redor da borda eram bem visíveis.
— "O tempo dirá que ardil prometido oculta" — ela leu em voz alta.
— "Quem oculta falhas, no fim de sua vergonha zomba."
Decifrou mais uma vez as palavras e franziu a testa, perplexa, avaliando a importância da inscrição. Alguma coisa não
estava certa. A cadência lhe pareceu diferente. Teve a impressão de estar se defrontando com uma citação e não com um
indício.
Passou as mãos sobre a superfície do quadrante e começou a duvidar de ter encontrado o segundo indício na busca do
Coração. Sentindo-se frustrada, segurou a haste cuja sombra marcava as horas. Ficou com vontade de arrancá-la, mas de
repente se acalmou. Na ponta da haste encontrou uma marca em forma de coração, como uma pedra de toque.
Ao se curvar para examiná-la mais de perto, Roxane foi interrompida pelo ruído de alguém que estava caminhando no
labirinto. Aguçou os ouvidos e ouviu uma imprecação.
— Ignatius! Onde está você?
— Não sei, com os diabos! Estou perdido!
Gostaria que você fosse embora — ela gritou. — No momento não estou querendo companhia. Me deixe em paz.
Roxane, é uma grosseria a sua fugir todas as vezes que ouve mencionar nosso passado. Se não aguenta falar a respeito,
vou tentar ser cavalheiro e deixarei de mencionar o assunto. Pois sim, Ignatius! Não acha que o esforço seria grande
demais?
— Continue falando, Roxane. Estou para chegar! E quando estiver perto de você... — Seguiu-se outra
imprecação.
— Mais uma vez sem saída? — Ela riu. — E você é tão astuto! Vai ter de caminhar mais um pouco! — E,
sentindo-se segura, acrescentou: — Venha, se tiver coragem.
— Por todos os deuses, moça, já cheguei! — Alexander entrou na clareira, e ela se refugiou atrás do relógio
de sol.
— Estava brincando. Não se aproxime!
Ele deu mais um passo.
— Eu disse, não se aproxime! — Viu seus olhos e compreendeu-lhe a intenção. — Se você se aproximar, não
vou lhe dizer o que descobri. Achei o segundo indício!
— Onde? — perguntou Alexander, esquecendo as intenções amorosas.
— Aqui mesmo, no relógio de sol.
Alexander se aproximou com expressão esperançosa, mas olhava para o relógio de sol e não para Roxane. Leu a
inscrição em silêncio, depois franziu as sobrancelhas.
— Não pode ser isto. Deve haver mais. — Fitou o quadrante com severidade. — Poderia apostar um cavalo que
estas são palavras de Shakespeare.
— Mas olhe... aqui está o coração.
Roxane passou o polegar na haste, até a ponta. Ao ver que Alexander sorria com expressão íntima, ela segurou a
ponta da haste e sem querer apoiou o dedo na marca em forma de coração.
Ouviram um clique, em algum lugar embaixo do quadrante. Entreolharam-se, partilhando o triunfo da descoberta,
antes de vasculhar minuciosamente o quadrante e seu pedestal. E Roxane descobriu que o quadrante podia ser levantado, por
ter uma dobradiça oculta. Embaixo encontraram mais palavras.

"Armado com o escudo do poder Partiu para cumprir sua tarefa.


Verteu seu sangue em terra distante.
Bem perto, embaixo, seus ossos descansam."

— Ignatius! Encontramos o... — Mas antes que pudesse continuar, a mão de Alexander pousou sobre seus
lábios.
— Vamos fazer disto nosso segredo?
Ela transmitiu sua perplexidade com um olhar eloquente, e Alexander pareceu adivinhar-lhe o pensamento.
— Quer saber por quê? — Ficou a observá-la por um instante, considerando se devia ou não lhe dar uma
explicação. — Roxane, sei que posso confiar em você e que não repetirá o que vou lhe contar. Você estava certa a respeito do
acidente. E não foi o primeiro para John. — Retirou a mão e continuou: — Pequenos acidentes começaram a acontecer, aos
poucos, depois que ele herdou o título. No começo, pareciam coisas sem importância, agora estão ficando mais perigosas.
— Como quando o teto do celeiro caiu sobre ele?
— Poderia não ter acontecido se eu tivesse levado mais a sério os receios de minha tia — respondeu Alexander,
sombrio.
— Querer assumir a culpa não ajudará ninguém — ela comentou, com expressão mais suave, movida pela simpatia.
— O que você acha, quem poderia ser?
— Não posso saber ao certo. — Pegou as mãos dela. — É por isso que preciso de sua ajuda.
Roxane retirou as mãos. Escondeu-as atrás das costas e fitou-o, desconfiada. Ele teve um gesto de impaciência.
— Eu não estou sempre pensando em como poderia seduzi-la. Mas vamos falar nisto numa outra oportunidade,
porque agora precisamos resolver este assunto. Não me pergunte por quê; aparentemente não existe lógica, mas o tesouro e a
segurança de John estão interligados. — Segurou os ombros de Roxane. — Se pudermos encontrar o crucifixo antes dos
outros, poderemos usá-lo como isca. O delinquente desconhecido parece decidido a apossar-se dele; poderemos vigiá-lo e ver
quem quer pegá-lo. Aposto que o personagem que quer o Coração... quer ver John morto.
— Esse personagem poderia ser Richard?
— Talvez. John não é do tipo de homem que tem inimigos. Entretanto, se ele morresse, Richard receberia os
maiores benefícios. Dizem que ele está muito individado. Imagino que foi este o motivo que o levou a aceitar o convite de
tia Alfreda. Por outro lado, Richard não parece um assassino.
— Muitos homens ocultam sua verdadeira personalidade — disse Roxane, e se afastou dele.
Alexander ergueu uma sobrancelha e a encarou com respeito.
— É uma percepção que, em geral, se adquire com a idade madura. E interessante ouvir isso de uma criatura
tão jovem.
— Ignatius, sabemos que minha mocidade está passando. Fiquei na vitrina por mais de uma estação...
— Não é mesmo? Isso só aumenta minha curiosidade sobre o carinho que você e John estão demonstrando um
pelo outro. Vocês se conhecem praticamente desde o berço e, de repente, parece que descobriram o amor.
Ela se afastou mais um pouco, querendo ganhar tempo para inventar uma resposta. Disse, por fim:
— O amor amadurece com o passar dos anos. Um grande carinho pode demorar para se manifestar.
— Ou pode pegar fogo de repente.
A paixão no olhar dele não deixava dúvidas: ainda a queria.
— Não zombe de mim por causa de John e de suas atitudes de namorado — ela respondeu, esforçando-se para
rir despreocupadamente.
— Aquele rapazola andou brincando com você?
Ao ver a expressão furiosa de Aiexander, Roxane compreendeu que ele tinha vontade de exterminar o conde.
— Lorde Moyneton sempre se porta corretamente. E se alguém tem de tomar uma atitude, deveriam ser meu pai
ou meus irmãos. Você não pode se arvorar em defensor da minha virtude!
— Só porque fui despojado de meu direito de ser seu protetor?
— Ninguém pode tirar algo que uma pessoa nunca teve. — Os olhos de Roxane o flagelaram. — Não diga que foi despojado.
Furtam-se bens e perdem-se os sentimentos. Suponho que você me considerava uma presa, uma mercadoria a ser negociada. Mas
quero que saiba que uma mulher tem méritos que transcendem os acordos e o dote. — Afastou-se dele.
— Ao diabo seus direitos! Ao diabo todos os homens gabolas e fanfarrões. Merecem ir para o inferno!
Aiexander estendeu a mão para tocá-la, mas desistiu. Aos vinte e nove anos tinha sido um estúpido pretensioso, mas
desde então mudara bastante, e ela deveria percebê-lo. Talvez ainda fosse arrogante, talvez ainda quisesse impor sua vontade
com mais força do que o necessário, mas depois de alguns anos no comércio, conhecia suas possibilidades. E também chegara
a conhecer o mundo real, além dos limites da corte de Londres.
— Ao que parece — comentou em voz baixa —, temos de eliminar alguns fantasmas. Eu preciso de você,
Roxane, para... hum, para me ajudar a encontrar o tesouro. Quer me ajudar, nem que seja apenas para ajudar John?
Os movimentos irrequietos da cabeça indicavam o quanto ela estava nervosa. Finalmente, enfiou a mão na bolsinha,
apanhou um lenço e assoou o nariz, cansada de chorar. Quando se virou para encarar Aiexander, mostrou um sorriso decidido, e
segurava uma agendinha e um lápis. Sem olhar para ele, transcreveu a segunda parte do enigma composto por sir Jonathan e
guardou o caderninho. Depois olhou insistentemente para o quadrante.
— Nesta nossa parceria sou eu quem deve executar todo o trabalho? —perguntou. — Suponho que você quer
que eu resolva o enigma...
Alexander evitou de sorrir e abaixou o quadrante até que ficou em seu lugar.
Neste momento — respondeu —, apenas desejo que você resolva o mistério de como sairemos daqui. — Examinou as
numerosas saídas e, fazendo uma reverência, pediu: — Tire-me daqui: estou em suas mãos...
Ela o levou para fora do labirinto com uma segurança proporcionada apenas pela intuição. Saindo de entre as sebes, ela
soltou a gargalhada que estava refreando.
— Agora, admita! Você não imaginava que eu pudesse sair sem sua ajuda!
— Minha querida — ele respondeu, arrependido —, estou chegando à conclusão de que realmente não posso
viver sem você. — Fitou-a com carinho, deixando-a desconcertada. — Vamos selar nossa parceria?
— Como? — Rpxane deu um passo para trás.
Tomando-lhe a mão, levou-a aos lábios, e ela não percebeu o esforço que Aiexander fez.para não tomá-la nos braços.
— Não é assim que damas e cavalheiros selam um acordo? — ele perguntou, com um sorriso galante que se
tornou mais intenso ao ouvi-la suspirar.
Ofereceu o braço a ela e dirigiram-se para a abadia.
— Ignatius, o que acha que isto significa? Estou me referindo ao indício, é claro. O que é que sir Jonathan
queria dizer com "Verteu seu sangue em terra distante. Bem perto, embaixo, seus ossos descansam"?
— Você nunca esteve num cemitério?
Aiexander e Roxane continuaram a andar, sem saber que alguém estava a observá-los. Dois homens conversavam
atrás de uma sebe ornamental.
— Preciso repreender severamente o irmão Aiexander — murmurou Joseph, segurando o cabo do ancinho. —
Não sabe o que está fazendo.
— Sabe, sim. — George Smythe continuou a observar o casal que se aproximava da abadia. — Precisa vigiá-los.
— E uma abominação que estejam juntos! Preciso separá-los.
— Deixe-os em paz. Continue a observá-los a distância, depois me diga o que fazem. Quando chegar o tempo,
vou apresentar as provas de suas atividades pecaminosas às autoridades da Igreja.
— Está bem — respondeu Joseph segurando seu terço. — Mas agora preciso continuar meu trabalho, meu
irmão.
George Smythe praguejou. Esse "irmão" não se referia à Ordem. Joseph era, mesmo, seu irmão. Filhos da mesma mãe,
eram de pais diferentes: um era nobre, o outro, camponês. George Smythe orgulhava-se de ser o primeiro filho concebido pelo
terceiro conde de Rammsford, mas seu orgulho era acompanhado por uma profunda dor. Sua mãe, filha de uma boa família
que perdera as propriedades, fora seduzida pelo conde quando este era ainda muito jovem. A desaprovação do velho conde
deixara a mãe de Smythe sem um sobrenome para dar ao filho, que permaneceu bastardo. Desde a mocidade, Smythe
planejava se vingar da família Monk. A família lhe devia e teria de pagar. O pai não o reconhecera como filho e, quando o
terceiro conde morreu, o bastardo viu que chegara a hora e a oportunidade de se vingar. Ninguém colocou em dúvida suas
credenciais e referências quando chegou à abadia para ser o administrador. Começou a controlar a grande propriedade com
intenção de solapar aos poucos todas as rendas e levar a família à falência. Mas este plano não era suficiente para acalmar sua
raiva por ter sido prejudicado. Precisava se vingar e só uma morte poderia apaziguá-lo. Queria tirar a vida do homem que
agora possuía o título, as terras e as riquezas da família Monk. Depois de remover as injustiças sofridas durante toda a vida,
Smythe estava convencido de que tudo deveria lhe pertencer, por ser o primogénito. Precisava ter tudo, para não levar uma
vida igual à de seu irmão Joseph.
Ia conseguir tudo. Tomaria as providências para que lorde Moyneton não desfrutasse sua herança por um minuto mais
do que o necessário. Por outro lado, o novo conde parecia desconhecer como obedecer a seu destino. Não sabia morrer.
Ainda.
O casalzinho inoportuno que acabava de sair do labirinto, por outro lado, representava uma questão diferente. Eram os
únicos caçadores do tesouro que o preocupavam. Talvez tivessem encontrado algo, além de um ao outro. Precisava examinar
cuidadosamente o labirinto. Depois poderia cuidar facilmente do casal que de nada suspeitava.

Capitulo VIII

Quando a noite chegou, lady Moyneton estava recuperada. O médico concordara com ela sobre a necessidade de não se
aventurar em expedições até que o vento do norte não parasse de soprar. Ordenara repouso absoluto, mas a responsabilidade de
uma mãe diante do futuro de seu filho obrigou milady a sair de seus aposentos.
E mais, havia convidado vários casais de meia-idade da comunidade próxima a fim de aumentar os participantes do
entretenimento da noite, um concerto. E para impedir que a competição já existente na abadia aumentasse, evitara convidar
gente jovem.
Durante o demorado jantar, os lacaios tinham carregado a harpa e o piano para o centro da sala de visitas, e colocado
as cadeiras ao redor.
Preocupada com o papel de inválida, lady Moyneton reclinara-se num sofá grego. Não era mulher para partilhar
atenções. Quando Hortênsia Kempe chegou, com a atitude lânguida que lhe era habitual, foi logo repreendida.
— Minha querida, não faça pose para ser mais interessante. Esse comportamento parece zombaria e menosprezo
diante do sofrimento dos que realmente estão doentes. — Fungou, agitou uma mão e indicou à srta. Kempe que sentasse numa
cadeira.
Os convidados se acomodaram conforme sua disposição de ouvir música: os que a detestavam, se afastaram o mais
possível. Cosmo puxou a cadeira até a parede mais distante e se sentou, com expressão de quem tem um mau pressentimento.
Roxane parou a seu lado, a caminho de uma cadeira.
— O senhor não está bem?
— Tenho a impressão de que vou ficar doente. — Olhou para a harpa e o piano e estremeceu. — Quando não há
retratos, há música. Que jeito mais horrível de passar uma temporada no campo. — Olhou para todos os cantos, circunspecto.
— E a gente nunca sabe que aparições podem acontecer por aqui.
— Se o senhor não gosta da abadia, por que veio?
— Meu pai decidiu fechar a casa e visitar a família de minha mãe. Philo e eu decidimos não ir com eles: a
família de minha mãe é tediosa. Não tínhamos para onde ir nesta época da ano... — Cosmo suspirou.
Não chore por mim, mamãe..."
— Lindo epitáfio mas eu ficaria com muita saudade e triste se o senhor desaparecesse tão prematuramente.
— A praga foi lançada — gemeu o cavalheiro. — Não há nada a fazer, a não ser esperar.
— Então, vou deixá-lo.
Roxane foi sentar-se ao lado de Faith e pouco depois o conde acomodava-se na cadeira a seu lado, inclinando-a para
trás e sorrindo para Alexander. Depois, começou a contar à jovem como seu time não conseguira encontrar o segundo indício
que deveria levar ao Coração.
Ao perceber que chamavam demais a atenção, Roxane mostrou-se muito interessada no relato de lady Moyneton. Sentia
o olhar de Alexander em si e arriscou uma espreitadela para o lado dele. Viu que estava se divertindo bastante. Não teve
coragem de se virar para o sofá grego: sabia que lady Moyneton não gostava do que via. Quando todos estavam acomodados, o
sr. Titler levantou-se.
— Senhoras e cavalheiros, nossa encantadora lady Moyneton me encarregou de falar em seu nome, porque está
um pouco indisposta. Esta noite poderemos apreciar os talentos de um grupo seleto de jovens damas. Em primeiro lugar,
ouviremos a srta. Faith Witton, filha do pastor de Bath e Wells; depois a srta. Daphne Gallagher, sobrinha preferida de sir
William Trent, tocará um trecho de Beethoven, ahn... — olhou para um papelzinho — quero dizer, uma sonata de
Beethoven. Mas vamos começar com a srta. Witton.
Faith, que ficava intimidada mesmo diante de poucas pessoas, teve de se adiantar para tocar um solo de harpa. Tirou
as luvas e, palidíssi-ma, tomou seu lugar atrás do instrumento. Embora suas mãos estivessem trémulas, quando tocou nas
cordas todos se encantaram com os sons celestiais.
— Parece que um anjo desceu do céu — Moyneton murmurou ao ou vido de Roxane.
— Só espero que Cosmo não pense que já morreu — respondeu ela. —Faith realmente sabe tocar, não acha?
Infelizmente, enquanto tocava, Faith começou a ficar mais e mais insegura, perdeu acordes e acabou com um som
desafinado e plangente que levou Cosmo a soltar um gemido. Houve poucas palmas. Ela voltou à sua cadeira enquanto
Daphne tomava seu lugar diante do piano. Sem a ajuda de partitura, entregou-se à execução com uma técnica perfeita. A
sonata era intrincada e uma parte da audiência cochilou, para despertar, assustada no início de outro movimento.
Roxane percebeu que Faith permanecia de cabeça baixa, e quando esticou o braço para chamar sua atenção, uma gorda
lágrima caiu dos olhos
de Faith sobre sua mão. Roxane cotucou lorde Moyneton e, com uma série de movimentos de cabeça e de olhos,
transmitiu a mensagem. Quando Daphne terminou a execução da sonata, agradeceu discretamente as palmas.
Lorde Moyneton se adiantou, batendo palmas e obrigando os outros a redobrá-las. Agradeceu à srta. Gallagher e a
entregou a Titler, para que a acompanhasse até sua cadeira.
— Espero que nosso bom capelão perdoe se usurpo suas funções, mas como ninguém me pediu nada, vou cantar
para vocês. Srta. Costain, poderia me acompanhar ao piano? — Sorriu ao ver a expressão contraria da da mãe. — Entretanto,
como sou apenas a metade do cantor que gostaria de ser, preciso de alguém para cantar comigo.
Todas as candidatas, menos Faith, o fitaram, esperando ser escolhidas.
— Srta. Witton — falou Moyneton, aproximando-se dela —, por favor, cante um dueto com um rapaz tolo, sim?
— E conduziu-a pela mão, antes que pudesse recusar.
Roxane apanhou um volume encadernado, de velhas canções campestres, e procurou algo fácil e alegre. Quando
encontrou a canção, flexionou os dedos antes de começar a tocar e ficou surpresa ao ver Alexander a seu lado. Estava se
apoiando no piano, com um sorriso zombeteiro.
— Posso virar as páginas? — perguntou.
Lorde John a fuzilou com os olhos para que começasse a tocar, enquanto acalmava a srta. Witton, muito nervosa, com
frases engraçadas.
Não era o momento de discutir com Alexander. Roxane não precisava dele, mas aceitou. Tocou uma breve introdução
e começou uma canção muito conhecida. Acenou para John e Faith para que começassem a cantar.
Inseguros no começo, ambos se encorajaram mutuamente com olhares e sorrisos, e conseguiram uma agradável
harmonia. Roxane mal os deixou agradecer as merecidas palmas e começou outra canção. Enquanto cantavam uma discussão de
namorados, começaram até a flertar um pouco e terminaram com lorde John apoiando um joelho no chão, as mãos cruzadas
sobre o coração, e Faith quase lhe dando as costas, com um sorriso de malicioso desdém. A audiência, entusiasmada, pediu mais
uma canção.
— Srta, Costain — murmurou Alexander —, meu primo, seu ardoroso admirador, parece estar se interessando
por outra pessoa. Tome cuidado com a srta. Witton!
— Minha mais querida amiga nunca faria isto — ela retrucou. — A srta. Witton é a moça mais gentil entre
todas as que conheço.
— Qual é seu jogo, Roxane?
— Tolice. Deixe-me tocar, por favor! — Virou as páginas até encontrar o que procurava. Tocou a introdução de
uma balada e deu o sinal para lorde John e Faith. Ambos captaram o espírito da canção. Quando estavam na metade da
primeira parte, conquistaram as emoções dos convidados mais idosos de lady Moyneton. Quando a balada terminou, muitos
suspiravam.
Roxane ficou satisfeita em ter dado aquele pequeno empurrão e refle-tiu que não havia nada que contrariasse a ética em
proporcionar a duas pessoas muito queridas a oportunidade de se conhecerem melhor.
O sr. Titler apareceu mais uma vez em nome de milady e anunciou um intervalo. O mordomo trouxe chá, e a
audiência se levantou para esticar as pernas.
— Meus cumprimentos, srta. Costain. Toca muito bem — falou Daphne, parando ao lado de Roxane. — Oh, sr.
Monk... poderia ter a amabilidade de buscar nossos chás? Estava com vontade de conversar com a srta. Costain, sabe?
Alexander se afastou, e Roxane ficou, impaciente, em companhia daquela moça que considerava uma criança
caprichosa e malcriada.
— Querida srta. Costain, preciso de seus sábios conselhos. A senhorita é tão mais velha que todas nós... Eu
pensei, sabe, como minha mãe não está aqui para me guiar... Achei que poderia me aconselhar num assunto pessoal.
Ao ouvir aquela voz adocicada, e o tom ambíguo, Roxane se colocou em guarda. Resolveu ser muito cuidadosa.
— Se alguma coisa a preocupa, srta. Gallagher, não seria o caso de falar com lady Moyneton? Afinal, ela é um
pouco mais velha que eu, e a senhorita poderia, com razão, considerá-la numa substituta para sua mãe.
— Não zombe de mim, srta. Costain. Afinal, todo mundo já percebeu que milady me trata de maneira muito
especial, como se eu já fosse sua filha, e não quero me prevalecer... Seria injusto com as outras... A propósito, deixe-me
dizer que fica muito bem com roupas cinzas. Suponho que quando eu ficar mais velha poderei usá-las, em vez deste vestido
insípido em cor pastel. Mas talvez escolha outra cor, não o cinza: acho que envelhece muito.
— A passagem do tempo é inevitável, mas a senhorita não precisa se preocupar com isto. Muitos anos terão de
passar antes que se torne adulta.
— Não inveje minha mocidade, srta. Costain — suspirou Daphne. — É tão difícil ser jovem, embora apresente
muitas vantagens. Os cavalheiros sempre procuram damas mais moças quando querem escolher uma esposa. Mas não se preocupe
— bateu amistosamente no braço de Roxane —, poderá encontrar um cavalheiro idoso que precisa de companheira.
Nem posso dizer como me sinto reconfortada, srta. Galagher —respondeu Roxane, fazendo um esforço para não
gargalhar.
Enquanto caminhavam entre os convidados, passaram por um grupo de cavalheiros que discutiam uma aposta.
— Devo confessar — sussurrou Daphne — que sempre tive vontade de apostar, como os cavalheiros. Gostaria de
fazer uma aposta, srta. Costain? Sobre quem achará O Coração da Virgem, seu time ou o meu? E qual o valor da aposta?
— Só poderá ser algo insignificante, nãò acha?
— Neste caso — retrucou Daphne, e seus olhos brilharam —, vamos apostar sobre algo mais sério... como qual
de nós será a escolhida do conde.
— Quer apostar quem lorde Moyneton pedirá em casamento? — Ro
xane ficou estupefata. — Deve ter muita confiança em si mesma para querer fazer uma aposta dessas!
— Ah, sem dúvida! — respondeu Daphne, e examinou Roxane da cabeça aos pés.
— Srta Gallagher, disse-me que desejava um conselho. Devo lhe dizer que...
— Obrigada, não precisa se preocupar. Já foi ótimo conversar com a senhorita. E meu chá está esfriando. — A
moça se afastou na direção de lady Moyneton.
Alexander apareceu ao lado de Roxane antes que esta conseguisse se recuperar da surpresa.
— O que estava discutindo com aquela menina? — ele perguntou. — Ela é bonitinha, mas completamente
burra.
— A srta. Gallagher é muito menos burra do que parece.
— Ela toca piano muito bem. No entanto, eu gostei mais da sua atuação. Foi notável — comentou Alexander,
sorrindo.
— Eu não sou tão boa pianista quanto a srta. Gallagher.
— Pianista? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Não sei... Você tocou de maneira correta, mas me refiro à
outra atuação.
Cumprimentou-a com um aceno de cabeça e se afastou, deixando que ela interpretasse suas palavras como quisesse.

Capitulo XI

Durante a tarde do dia seguinte, quatro pessoas desistiram de participar da caça ao tesouro. Lady Moyneton, embora
estivesse muito melhor, achou que sua saúde não permitia que saísse de casa. Ficou perto da lareira tomando vinho quente e
requisitou o sr. Titler para ler o livro dos sermões. Milady estava muito preocupada com as conveniências e não poderia, de
forma alguma, permitir que Roxane continuasse a procurar o Coração em companhia de dois homens solteiros.
Roxane e Alexander jogavam baralho num outro ponto da sala. Ela tentava se concentrar no jogo, ouvindo a voz
melíflua do capelão.
— O homem é escravo de suas inclinações carnais — declamou o capelão.
Roxane jogou, e logo viu que descartara carta errada. Procurou não ouvir o sermão lido pelo capelão, mas era difícil,
considerando que em sua frente se encontrava um belo espécime de libertino. Em sua imaginação, Alexander passava o tempo
em orgias e bebedeiras, sempre entre mulheres levianas. A leitura do sr. Titler encorajava suas fantasias.
O descarte seguinte dela também foi péssimo. Alexander encarou-a, intrigado.
— Está preocupada com alguma coisa? — perguntou.
— Estou preocupada com o senhor e sua vida desregrada — ela respondeu. — Sua letargia poderia melhorar
com um remédio depurativo.
— Você quer me medicar? — Ficou a olhá-la, curioso. — Isso é muito estranho!
— Acho que deveria aplicar um cataplasma de confrei na parte inflamada. — Ela falava baixo, com o rosto
impassível. — Uma infusão de lúpulo poderá curar qualquer distúrbio advindo de sua vida amorosa. Tenho certeza de que
há muito tempo seus lombos... quero dizer, seus rins não são examinados!
Os ombros de Alexander foram sacudidos pelo riso contido.
— Por todos os deuses, moça, não tem vergonha?
— Tenho o suficiente para mim e sobra o bastante para você também. — Apertou o xale contra o corpo. —
Eu me tornei uma herbanária, isto é, sou uma boticária. Por isso, não me esquivo de mencionar o corpo, coisa mais natural
do mundo!
É mesmo? — perguntou, observando-a. — Será por isso que agora veste essas roupas largas e se envolve nesse xale
ridículo? Parece que desde que tomou consciência do corpo, você demonstra um descaso chocante no que se refere ao seu
próprio corpo. E, pelo que me lembro, o corpo sempre foi um dos seus mais valiosos atrativos.
— Então era isso que você apreciava! — As palavras saíam entre os dentes cerrados e os olhos verdes
faiscavam, perigosos. — Pois saiba que uma mulher não é um objeto a ser avaliado, escolhido e arrematado em leilão por
quem tem mais dinheiro!
— Com os diabos! — Alexander jogou as cartas na mesa.
O sr. Titler parou no meio de uma frase e levantou os .olhos, ofendido com o barulho. Roxane sorriu para ele e
esperou que voltasse a ler. Entretanto, foi o olhar furioso de Alexander que convenceu o pastor a voltar para a leitura. Então,
fitou-a, com frieza.
— Você não quis mais saber de mim porque não tinha um título e minhas propriedades não eram muitas.
— Você não sabe de nada! — ela sibilou com fúria contida e lhe desfechou um pontapé na canela. — Você não
aprecia nada! Você... você é um sedutor!
— Sedutor! — trovejou Alexander. — Esta é boa! Só consegui um maldito beijo e nunca mais toquei em
você!
O capelão fechou o livro ruidosamente e ficou a observá-los de queixo caído.
— Não, você nunca tocou em mim — ela respondeu carrancuda, mas o tom era de mágoa.
Alexander a observava, perplexo diante daquele enigma.
— Diacho, Roxy! As coisas não podem ser de duas maneiras... Você não pode ser casta e seduzida. Deve ser
uma coisa ou outra, ambas é impossível.
— Vá para o inferno, você... e o passado também! — Ela desviou os olhos para a janela, contendo as
lágrimas.
O céu havia escurecido rapidamente e ficara coberto de pesadas nuvens. A turbulenta atmosfera externa combinava
com seus sentimentos. A mente não queria reconhecer os desejos do coração.
Roxane ergueu-se, foi para a janela e Alexander a seguiu. Viram o grupo de lorde Moyneton atravessar o gramado
correndo, perseguidos Por rajadas de chuva. Daphne segurava o braço do conde com ar de proprietária.
— Estou com vontade de continuar a caça ao tesouro — propôs Roxane. — Se milady não pode ir e o sr. Titler
quer ficar ao lado dela, Por que não podemos ir por nossa conta? Ontem conseguimos bons resultados. E você não poderá
encontrar O Coração da Virgem se ficar sentado o dia todo e passando as noites na orgia. Se você pudesse desistir disso —
continuou olhando-o de soslaio —, poderíamos trabalhar juntos, depois que todos forem se deitar.
— Quer dizer que está disposta a ir contra as conveniências por causa do Coração? Estou chocado, senhorita!
— Estou disposta a ajudar John, está lembrado? — Olhou para Daphne, lá fora. — E é um jeito de dar o troco
a alguém.
— Tem certeza de que aguentaria minha companhia?
Ela franziu a testa enquanto considerava a pergunta.
— Não tenho medo de você e nada me impedirá de encontrar o Coração. Não vai me cativar com seus agrados!
Como já lhe disse, o passado está morto, enterrado e reduzido a pó.
Os olhos negros de Alexander se tornaram sombrios.
— Sempre repete que o passado está morto. Gostaria de saber a quem pretende convencer. A mim? Ou a você?
— Não preciso convencer ninguém. Nem você nem eu podemos mudar o que houve.
— Roxane — ele disse, se aproximando mais —, poderia um homem beber demais num dia e não sentir as
consequências no dia seguinte? — Ficou a poucos centímetros dela e sussurrou: — Se um homem perde uma parte de seu
corpo, um membro qualquer, será que não sentirá esta perda pelo resto da vida? Por acaso, não somos o resultado de nossas
experiências? Quer dizer, a humanidade não pode tirar ensinamentos do passado e se modificar, melhorar, por causa da nova e
mais clara compreensão dos fatos?
Ela ficou a olhá-lo, analisando seu raciocínio. Como tinha acontecido essa mudança? Aquele não parecia mais o
homem mundano e superficial que conhecera. Uma sensação agradável começou a surgir em seu íntimo, mas ela a ignorou.
Lembrou do passado, de quando pensava que ele a amava, enquanto Alex apenas a considerava uma solução conveniente para
sua falta de fortuna. Enquanto o observava, refletiu sobre a possibilidade de ele não ser mais um homem frio e calculista. E
poderia agora amá-la como ela queria ser amada? Resolveu continuar distante até saber a resposta.
— Não é o caso de filosofar sobre o género humano — ela observou. — Um homem pode racionalizar qualquer
assunto e convencer as pes soas de que pensa corretamente. A teoria deve ser provada. Lembre-se: "A prova do pudim está
em comê-lo".
Ele inclinou a cabeça, oferecendo o pescoço.
— Então, quer provar um pedacinho? — indagou, rindo.
Ela hesitou entre se sentir ofendida e achar graça. Ganhou o bom humor.
— Como de costume, você muda de assunto. Estávamos falando no Coração da Virgem, lembra? Então.
Vamos procurá-lo?
— Está bem querida: trato fechado. Vamos procurar o tesouro. Hoje, à meia-noite, então?
Roxane resistiu à tentação de dar uma resposta enérgica.
— Até esta noite — disse polidamente, e se afastou.
Os homens precederam as moças, mas estas não se demoraram e chegaram lideradas por Daphne. Tinham trocado de
roupa, e os cabelos ainda estavam molhados. Quando os relatos sobre a caça ao tesouro se acalmaram um pouco, lady
Moyneton levou-os para a sala de jantar. Como sempre acontecia no caso de refeições com convidados, esta também foi
bastante demorada e passou algum tempo antes que voltassem à biblioteca. Ainda chovia, portanto não continuariam a
busca.
— O que vamos fazer? — perguntou Daphne, e olhou para lady Moyneton.
Milady, com uma manta sobre os joelhos, parecia pronta para um cochilo. Agitou languidamente a mão.
— Titler, leia alguma coisa daquele livro dos sermões. O sermão des
ta manhã foi realmente estimulante.
— Perdão, milady, posso fazer uma sugestão? — perguntou Faith. — Esta reunião me trouxe à memória os
dias de chuva, com toda a minha família em casa. Minhas irmãs não gostavam disso, preferiam brincar. Então, meu pai
inventou o jogo de contar histórias. Papai começava uma história, em geral gótica, porque era o que preferíamos, e quando
chegava a um ponto importante, deixava que outro continuasse. Todos tinham sua vez, até a história acabar. Podemos fazer o
jogo de contar histórias, em vez de ouvir um sermão?
— O pastor inventou esse jogo? — Lady Moyneton sorriu friamente.
— Sim, madame — respondeu Faith. — E todos nós começamos a desejar dias de chuva.
— Esse tipo de atividade pode se tornar muito barulhento. — Milady não parecia satisfeita.
— Tia Alfreda — interferiu Alexander —, lembre-se de que o capelão leu em voz alta a manhã toda e deve
preservar sua voz para o sermão de domingo. — Continuou, com um olhar travesso para Roxane: — E juro que eu não
aguentaria mais um sermão sobre a virtude! Se a senhora acha que poderemos perturbá-la durante suas meditações da tarde,
vamos levar nossas cadeiras para o canto mais afastado da sala e falar baixo.
Lorde John olhou para Faith e depois para a mãe.
— Acho que é uma excelente ideia. Com licença, mamãe...
E sem dar-lhe tempo de responder, ajudou Faith a se levantar e levou sua cadeira para o lado oposto da biblioteca.
Tocou a sineta para chamar os criados e logo apareceram mantas para as moças e mais castiçais para iluminar o ambiente.
Milady mandou o sr. Titler se afastar dela, porque se mexia demais, e logo começou a cochilar. Exceto Cosmo, todos
se sentiram mais à vontade. O gémeo mais velho olhava nervosamente para os cantos.
— Nessas histórias góticas aparecem fantasmas? — perguntou, de olhos arregalados.
— Claro que sim, idiota! — retrucou o irmão. — E têm donzelas esquivas, rufiões, assassinos e coisas assim. —
Esfregou as mãos. — Va mos começar!
Lorde Moyneton se virou para Faith e sorriu.
— Srta. Witton, comece e nos mostre o caminho.
Faith se inclinou um pouco para a frente e fitou, um a um, todos os que faziam parte do grupo, transmitindo a
sensação de um desastre próximo.
— Era uma noite silenciosa — murmurou, num tom que podia ser ouvido por todos. — Nem mesmo o vento
ousava assoviar, porque o ar estava carregado de maldade. Bem alto, no topo da montanha, dominando o vale e a aldeia,
estava o castelo do conde Reinhard. De longe, parecia mais uma caveira do que uma fortaleza. Os aldeões o chama vam a
Cidadela da Morte.
Roxane olhou ao redor, para ver como os outros reagiam diante dos esforços de Faith. Alexander parecia se divertir;
Cosmo estava sentado na beirada da cadeira; Dahphne parecia mal-humorada, mas lorde John parecia uma pessoa que acabava
de descobrir uma rosa de rara beleza. Só tinha olhos para Faith.
— Só o dono, o conde Reinhard, e seu criado... — ela continuou, olhando preocupada para o capelão — seu
criado Baldric apareciam na aldeia. As mães choravam quando suas filhas eram levadas para trabalhar no castelo, porque
sabiam que nunca mais veriam as lindas moças.
Cosmo soltou um gemido e torceu as mãos. De repente, esfregou, um contra o outro, a chave e o cravo de ferradura que
levava como pingentes na corrente do relógio.
— Continue, por favor — sussurrou roucamente.
— Um dia — falou Faith, dissimulando um sorriso travesso —, o conde Reinhard desceu até a aldeia em sua
carruagem negra, com o brasão da família na porta; o brasão ostentava uma águia com uma pomba nas garras. A carruagem
negra parou em frente da casa do prefeito. Baldric entrou e voltou com Hildemar, a linda filha mais velha do prefeito. Fora
escolhida para ser a esposa do conde. Envolvida numa capa azul e de cabeça baixa, a mocinha entrou na carruagem...
Enquanto Faith continuava o conto, lorde John não tirava os olhos do rosto dela, fascinado.
— No interior da carruagem — continuou Faith —, um vulto estava sentado nas sombras, afagando a cabeça de
prata de uma águia que enfeitava sua bengala. Hildemar deixou cair o capuz da capa, mostrando seus lindos, hum... — olhou
para Daphne — seus lindos cabelos dourados. Hildemar enfrentou corajosamente o conde Reinhard. "Não pretendo me
casar com o senhor, declarou. Prefiro morrer." Um punho de ferro se estendeu em sua direção. E depois... — Faith olhou
para Roxane.
— Eu? — perguntou Roxane, surpresa.
— É sua vez — murmurou Faith. — Um punho se estendeu em sua direção. E depois... — repetiu.
— Hildemar agarrou a mão do conde e a mordeu, através da luva.— Olhou para Alexander. — Nossa heroína
não deu apenas uma mordidinha, mas afundou os dentes na carne. Não ficou surpresa ao ver que Reinhard não sangrava,
porque sabia que era uma criatura sem sangue e sem coração, conhecido por ser um reles libertino. Hildemar teve von
tade de pular da carruagem, mas a porta estava trancada. Ele soltou um riso sinistro. Seus olhos pareciam arder enquanto se
aproximava mais e mais dela. Hildemar fechou os olhos e então... — Roxane sorriu para Alexander e anunciou: — É sua
vez.
— Mas isso não é justo — protestou Philo. — A srta. Costain não contou um episódio inteiro!
— Interrompeu-se num momento desconfortável! — murmurou o sr. Titler, enxugando a testa com o lenço.
— É justo, sim — explicou Faith. — Quem conta a história pode se interromper no momento que quiser. Isso
faz parte do jogo: não se sabe quando o narrador vai parar e, então, todos devem prestar atenção. Acho que é sua vez, sr. Monk.
— Sorriu para Alexander, como a encorajá-lo.
Ele agradeceu e prosseguiu a história:
— Pois bem, Hildemar fechou os olhos... desmaiou e caiu nos braços do conde Reinhard, que não a violentou.
— Graças a Deus! — sussurrou Titler.
— Muito pelo contrário. Sabem, todos olhavam para o conde com preconceito. — Alexander fez uma pausa,
fitou intensamente Roxane, e então, continuou: — Ele descendia de muitas gerações de condes maus e a má reputação
perdurava, influenciava o povo. O conde Reinhard pensava que, levando a bela Hildemar ao castelo, poderia conseguir seu amor,
quando ela percebesse a grande injustiça!
Roxane, muito sem jeito, se remexeu na cadeira.
— Infelizmente, porém, Reinhard não conseguiu a felicidade que buscava. — Alexander suspirou profundamente.
— A família do conde estava condenada por uma maldição, uma maldição tão terrível que ele temia pela vida de Hildemar.
— Droga, homem, fale logo! O que era? — gritou Cosmo, apanhando um colar de alho de trás da gravata e
começando a mastigar um dente.
Alexander se inclinou para a frente. Olhou para todos os lados, como para ver se alguém estava bisbilhotando.
Gesticulou para que todos aproximassem suas cabeças.
— Os espíritos dos mortos naquele castelo não conseguiam descansar por causa de seus pecados — sussurrou. —
Voltavama reviver quando a lua estava cheia e apareciam com a forma que tinham na hora de suas mortes.
Philo teve de agarrar Cosmo, para evitar que saísse correndo da biblioteca.
— Calma, meu velho, calma, é só uma história! — disse.
— Por favor, sr. Monk, continue — pediu Elizabeth. — Seu primo poderá morrer de medo, mas eu vou morrer
de curiosidade se não continuar.
— Sim, continue — pediu Roxane, e observou Alexander com curiosidade: será que um dia o conheceria
direito?
— Reinhard temia ter de mandar Hildemar para sua casa antes da lua cheia — murmurou Alexander, e os
outros se aproximavam tanto para ouvir melhor, que quase caíam de suas cadeiras. — Ele esperava conseguir o amor dela
antes disso. Mas a mocinha evitava o pobre conde desanimado. Não queria falar com ele. Seu coração estava fechado.
Finalmente, na véspera da noite fatal, Reinhard procurou Hildemar e lhe disse que tinha liberdade de voltar para casa. O
velho criado a levaria de volta para seus pais. Hildemar estava desconfiada e perguntou por que ele fazia isso. — Alex lançou
um olhar para Roxane. — "Porque amo você", respondeu Reinhard, "e não quero que morra. Isso acontecerá se ficar aqui
comigo."
— Que romântico! — suspirou Daphne.
— Hildemar — explicou Alexander — era uma jovem destemida e não quis ir embora sem saber toda a
história. Quando ele explicou que havia uma maldição, ela reconheceu que ele era muito corajoso e disse que ia ficar. Mas o
conde recusou. No fim, discutiram e discutiram, o tempo passou, e a lua começou a nascer. — Alexander parou um instante,
com expressão dramática. — Reinhard sabia que o único lugar seguro para Hildemar era a capela do castelo. Mandou que
Baldric a levasse para lá. Reinhard apanhou todas as armas possíveis para lutar contra a maldade dos mortos redivivos.
A este ponto, uma rajada de vento fez tremer as vidraças da biblioteca, e todos soltaram uma exclamação de
espanto.
— Baldric era um criado bom, fiel, e prometeu dar até a vida para levar a linda Hildemar até a capela —
continuou Alexander, em voz baixa. — Conduziu a moça através de uma passagem escura. Atrás deles ouviram os gemidos
do caçador sem cabeça, que se aproximava mais e mais. Baldric e Hildemar correram, mas o vulto escuro, coberto por uma
ampla capa, ganhava terreno. O criado se virou para enfrentá-lo e morrer; viu o caçador sem cabeça erguer uma faca enorme.
De repente, aquele monstro soltou um gemido agudo.
Nesse momento ouviu-se um gemido agudo e real perto do grupo; um vulto sem cabeça se destacou das sombras e
começou a se aproximar. Cosmo e Daphne soltaram um grito ao mesmo tempo, depois Cosmo deslizou para o chão,
desmaiado.
O vulto chegou cambaleando. Uma cabeça surgiu entre as dobras da ampla capa.
— Olá, todo mundo!

Capitulo X

Bertram Costain, um rapaz de dezenove anos, ficou parado ao lado do círculo de cadeiras, com água lhe escorrendo
pela capa. Começou a tirá-la enquanto olhava para Cosmo, que estava recobrando os sentidos. Fez um ar de pura inocência.
— O que aconteceu? Ele se sentiu mal? — Olhou para todos até que se defrontou com o olhar furioso de sua
irmã. — Olá, Roxy! Imagino que ninguém esperava me ver tão depressa!
Lady Moyneton se levantou e se aproximou cambaleando, com as mãos sobre o coração.
— Bertram Costain! Seu biltre! — exclamou com voz irada. — Quem lhe permitiu entrar nesta casa? Saia daqui,
menino.
— Onde se meteu aquele moleque? — perguntou Howard, entrando e enxugando o rosto molhado de chuva.
Percebeu a expressão de todos, lançou um olhar severo ao irmão caçula e fitou lorde Moyneton. — Estou feliz em vê-lo com
boa saúde. O que aconteceu?
— Parece que seu irmão assustou alguns de nós... é claro, sem querer. — Lorde John se esforçou para não rir.
Roxane, vendo que Cosmo estava sendo cuidado pelos outros, chegou perto do irmão caçula.
— Esta é uma brincadeira idiota que terá as piores consequências — murmurou, sem qualquer vestígio de
indulgência. —Nem quero saber o que papai dirá a respeito.
— Aposto que já está com um sermão pronto. Tive de me afastar do colégio porque escrevi uns versos pouco
amáveis a respeito do reitor.
— Bertram olhou para Cosmo e lady Moyneton. — Mas não queria assustar ninguém, desta vez. Só entrei depressa porque
estava com sauda de de você, Roxy. Será que pode explicar tudo ao papai por mim? Ele sempre ouve você...
— Está bem. — Roxane sempre protegia o irmão caçula e não podia se negar desta vez. — Vou escrever uma
carta a papai. Mas, enquanto fica aqui, medite sobre o que fez de errado.
— Concordo com você. — Bertram sorriu meio sem jeito. — Howard estava tão desesperado para voltar aqui que
não me levou para casa. Achei ótimo porque não estou querendo enfrentar o papai... Será que milady me deixa ficar, Roxy?
Howard se aproximou dos irmãos. Parecia muito cansado e esfregou os olhos.
— Roxy, espero que você não tenha aprontado das suas. Que sina, ter dois irmãos assim: um patife e uma
tigresa!
— Quero avisá-lo, Howard. Não comece com a história de que sou "assim" por não ter tido o carinho de
mamãe. Quando ela faleceu eu estava com quinze anos, já.
— Ah, sim, era uma adulta — comentou Howard, irónico. — Neste caso, toda a bondade dè mamãe foi com
ela para o túmulo, porque é evidente que você não tem nenhuma.
Roxane apertou o xale contra o corpo e se preparou para discutir, mas percebeu que o irmão estava exausto.
— Você parece esgotado, não me admira que esteja mal-humorado.
Chegue perto da lareira para se aquecer um pouco. — E o empurrou naquela direção.
— Ela está bem-intencionada — comentou Bertram.
— E você — continuou Roxane falando para o caçula, depois de lançar uma olhada a milady —, pode ir falar
com ela e faça funcionar seu charme juvenil, se quer mesmo ficar.
Os ânimos não demoraram a se acalmar. Lady Moyneton tomou uma atitude polida mas distante com os Costain.
O grupo jovem queria continuar o jogo de contar histórias quase por unanimidade. Milady, desdenhosa, voltou até a
lareira e tentou recapturar a paz bruscamente interrompida. Richard sentou-se a seu lado, e logo os dois cochilavam.
Cosmo relutava em continuar ouvindo o conto gótico, mas também não queria ir embora, porque Philo se recusava a
acompanhá-lo até o quarto de ambos. Empoleirou-se sobre sua cadeira, segurando o frasco de sais e as cabeças de alho. Fitou
Bertram com asco quando ele se juntou ao grupo, com Howard.
— O senhor não pode nos deixar neste suspense! — disse Elizabeth a Alexander. — Como vai tirar a linda
Hildemar e o fiel Baldric daquela terrível situação?
Alexander resumiu a última cena para recriar a atmosfera.
— O criado Baldric se virou e viu o caçador sem cabeça se aproximando. O fantasma ergueu um facão
ensanguentado e soltou um gemido. Assustada, Hildemar olhou para trás enquanto corria e tropeçou ao ver a morte. A última
coisa que percebeu antes de... — e Alexander pigarreou, olhando para Cosmo. — antes de perder os sentidos, foi Baldric
ajoelhado sob a faca que descia. Então... — E, com um gesto elegante, indicou o sr. Titler.
— Então — começou Titler — aconteceu um miladre. Baldric estava de joelhos e foi salvo porque tinha um
coração caridoso. O mal nada pode contra a bondade! — E o capelão se lançou num sermão, sem parar mais.
— Chega, Titler — interferiu lorde John. — Está na hora de encerrar a história.
— Peço desculpas, milorde. — O pastor ficou vermelho até o pescoço. — Fiquei entusiasmado com a história.
— Pigarreou e disse: — É sua vez, srta. Gallagher.
Daphne parecia satisfeita que a história tivesse perdido o interesse dos ouvintes. Lançou um risinho sarcástico a Faith
antes de pronunciar uma frase quase sem sentido nenhum, depois sorriu para lorde Moyneton, indicando-lhe que continuasse.
O conde fitou Faith, sentada a seu lado, e por um momento, ficaram "apenas a se olhar. Finalmente, ele lembrou de
onde estava.
— Posso encerrar a história, srta. Witton? — perguntou.
— Se o senhor quiser.
Como Titler, aparentemente, tirara o interesse da novela gótica, lorde John se esforçou para ressuscitá-la.
— Depois de lutar contra as forças do Mal, Reinhard começou a procurar sua doce Hildemar. Correu por todo o
castelo, bradando seu nome. Não houve resposta. Poderia ter sido levada para algum túmulo? Mas finalmente Reinhard a
encontrou na cela de um monge. — O conde sorriu para Titler. — E Hildemar correu para seus braços...
— Oooh — Daphne suspirou alto, com exagero.
— Como estava dizendo — continuou o lorde, embaraçado —, Hildemar correu para Reinhard e prometeu que
se casaria com ele, sem se importar com o diabo ou com os demónios. Quando começou a clarear o dia, os mortos voltaram
para seus túmulos, e lá ficaram, nunca mais sendo vistos naquela região, enquanto reinava o amor. Finalmente a paz desceu
sobre todos, e quando Baldric dirigiu a carruagem até a aldeia, todos saíram das casas para cumprimentar o conde Reinhard e
sua jovem esposa, a bela Hildemar. Fim. — Dirigiu um sorriso carinhoso a Faith.
Roxane percebeu que Alexander se divertia olhando para o casal apaixonado e depois para ela.

Cosmo, ao despejar mais vinho no cálice, errou a pontaria, molhou o punho e manchou a toalha da mesa.
— Não quero saber o que vocês pensam — declarou, falando, com dificuldade, aos dois companheiros, já
meio embriagados. — Mas eu o vi! Esse fantasma anda flutuando pela abadia toda. Meu primo deveria ter mais juízo e não
morar num lugar destes.
O vento fez tremer as janelas, silvando através das persianas, inchou as cortinas e Cosmo engoliu depressa o vinho
que estava em seu cálice.
— Precisamos fazer alguma coisa para acabar com esses seus temores — disse Philo, ainda aborrecido. —
Chega o papelão que fez hoje. Só porque sou seu gémeo, vão achar que sou maluco também!
Bertram batia um dedo na testa, enquanto pensava.
— O que precisamos fazer — disse depois de um soluço —, é encontrar esse fantasma e nos apresentarmos como
cavalheiros de boas famílias. Este tal Monge Branco não aprontaria com alguém que conhece. Seria uma grosseria.
— Os fantasmas conhecem as normas da boa educação? — perguntou Philo. — Quero dizer, uivos e gemidos
não indicam que as conheçam. Mas estou disposto a tentar... — Bateu a mão na mesa. — Suponho que depois poderia escrever
um ensaio sobre a natureza dos espíritos.
Talvez os professores em Oxford me prestariam um pouco de atenção.
— Que horas são? — perguntou Cosmo de repente.
Bertram apertou os olhos e procurou ver o relógio.
— Onze e vinte — disse, e riu. — Quem já esteve em férias tão chatas no campo? Imagine, ninguém se deita às
dez!
— Exceto minha tia — resmungou Cosmo. Olhou para o relógio. — À meia-noite ele vai aparecer. Vamos nos
deitar. O melhor lugar nestes casos é a cama.
— Tem razão! — concordou Philo. — E vamos vestir os lençóis. A ocasião é importante e precisamos nos
vestir a caráter. Não é todo dia que se encontra um fantasma. Vamos, está na hora. — Levantou-se cambaleando e arrastou
Cosmo.
— E não podemos esquecer a farinha de trigo! — Bertram se levantou e saiu correndo.
Na ala que era ocupada pelas moças, Roxane, sentada sobre a cama e vestida para sair no frio, esperava por um sinal
de Alexander, balançando as pernas em compasso com as batidas do relógio. Faltavam poucos minutos para a meia-noite.
Quando ouviu uma batida leve, estremeceu e se enfiou embaixo dos cobertores. A batida vinha da porta de
comunicação com o outro quarto.
— Roxane? Você ainda está acordada? — Faith entrou e deu dois passos. — Vi a luz embaixo da porta. Roxy?
— É você, Faith? — Roxane teve vontade de bufar, mas fingiu um bocejo. — Acho que cochilei enquanto lia.
Precisa de alguma coisa, querida?
Faith sentou-se na beirada da cama.
— Não consigo dormir.
— É por causa da tempestade.
— Não, é por causa da minha consciência. — Faith mordeu o lábio. — Não sou digna de sua amizade.
— Que tolice é essa? — perguntou Roxane, e olhou furtivamente para o relógio.
— Vim confessar que anseio pelas atenções de seu admirador — murmurou Faith, com lágrimas escorrendo pelo
rosto.
— Qual deles, Faith querida?
— Qual? Você tem mais de um? Eu pensei que você e lorde Moyneton...
— Somos grandes amigos — explicou Roxane. — E ambos ficaría
mos felizes sabendo que o outro encontrou seu par. E acha que alguém se apaixona por um amigo de infância?
— Aconteceu com minha irmã. Marion e Harry se casaram no mês passado, você sabe.
— Foi o destino. E pode ser que o destino trouxe você aqui para encontrar a felicidade, não acha?
— Você acha?
Ouviu-se um leve ruído no corredor. Roxane se encolheu embaixo dos cobertores. Se Alexander entrasse agora...
— Faith querida, espero ter acalmado sua consciência. Vá dormir.
Um gemido surdo veio do corredor. Faith, alarmada, atravessou o quarto e escutou. Ouviu-se outro gemido. Abriu a
porta e olhou. Viu um rosto completamente branco, iluminado pela chama de uma vela. Gemia. Faith soltou um grito,
depois outro, quando a aparição se aproximou dela, e caiu inerte.
— Muito bem! Estou conseguindo um efeito magnífico. Primeiro Cosmo, agora uma donzela...
— Bertram!
Roxane se levantou de um pulo e lançou a primeira coisa que lhe caiu na mão. Era um urinol vazio, que se espatifou
contra o batente, próximo de seu irmão. Depois se ajoelhou ao lado de Faith.
O corredor encheu-se de barulho e vozes, as pessoas acordando e saindo dos quartos para ver o que havia. Lorde
Moyneton afastou Bertram e ajoelhou-se ao lado de Faith, segurando-lhe as mãos, aflito, chamando-a pelo nome.
— Não estou acostumada com este barulho no meio da noite — queixou-se Hortênsia, e engasgou quando
Philo e Cosmo passaram a seu lado, espalhando farinha.
— Você encontrou o Monge Branco, Bertram? — perguntou Philo.
— Quase consegui bater minha cabeça nele — explicou o rapaz —, mas de repente começou a voar em minha
direção... — olhou para os cacos do urinol — e explodiu!
Lorde John desviou o olhar de Faith e fitou as três figuras cobertas de lençóis e farinha.
— Para a cama, seus idiotas. Estão bêbados! — Depois falou com o grupo parado na porta. — Sugiro que as
senhoritas se retirem. E, por favor, desculpem todo este barulho.
— Acho que deveríamos chamar milady — sugeriu Daphne.
— Talvez seja o caso — concordou Roxane.
— O médico mandou que tomasse láudano — explicou o lorde, e sacudiu a cabeça. — Dormirá até amanhã de
manhã. Procure mandar todas embora — sussurrou para Roxane.
Ergueu Faith em seus braços e atravessou a porta de comunicação dos quartos. Roxane deu graças a Deus por
Alexander, fosse qual fosse o motivo, não ter aparecido. Daria muito na vista se só eles estivessem .vestidos para sair, enquanto
os outros usavam roupas para dormir...
O conde saiu do quarto de Faith e fechou a porta.
— Mandei chamar a camareira, mas quer ficar com ela um pouco?
Não seria correto se eu ficasse. — Fez menção de sair para o corredor, mas parou para observá-la. — Não está com roupas
para dormir. Estava planejando fugir com alguém?
— Está frio — ela disse com um sorriso sem jeito. — Eu ia me deitar agora.
— Faça isso, então.

Durante as noites seguintes a vigilância na ala das moças foi redobrada. Roxane teve de se conformar em apenas
dormir. Sabia, entretanto, que os outros times não conseguiam qualquer progresso, por causa da chuva e por causa dos indícios
falsos dados por sir Jonathan. Seus dois irmãos não faziam mais que censurá-la e repreendê-la por qualquer motivo e, embora
achasse isso esquisito, o único alívio era conversar com Alexander, que conseguia distraí-la e diverti-la, enquanto procuravam
por toda a abadia e no parque. Ele contou que examinara o cemitério e nada encontrara.
Milady improvisou uma noite de valsas e Alexander dançou duas vezes com Roxane, assim como lorde John. Mas Alex
parecia desconhecer qualquer limite de decoro. Enquanto dançavam, a apertava muito e a observava com atenção.
— Não quer pedir a Elizabeth para lhe emprestar os óculos? — perguntou Roxane. — Ela não gosta de usá-
los.
— Perdoe minha insistência. Acho que não é minha imaginação. Você mudou de penteado. Este é mais bonito.
— Minha camareira insistiu para tentar um jeito novo — ela respondeu enrubescendo. — Deixei que o
fizesse.
— E também tenho a impressão de que ainda estamos no verão —ele observou. — Juraria que sinto
um perfume de pêssegos maduros.
— Scutt derramou um vidro de perfume — ela disse, tentando se afas tar dele.
— Scutt cuida muito bem de você — ele murmurou, olhando para o broche que segurava o xale de
cashmere que encobria o decote do ves tido cor de alfazema.
Durante a segunda valsa, Roxane cuidou para que o assunto fosse mais seguro. Falaram no tesouro, tentando
entender exatamente o significa do da inscrição no relógio de sol. Mas aos poucos se deixaram levar pela dança e
voltaram para assuntos pessoais ou ficaram calados, falando com os olhos.
Na quarta noite depois da brincadeira de Bertram, Roxane acordou com alguém mantendo a mão sobre
sua boca.
— Levante-se, querida — sussurrou Alexander —, e vista-se. Preciso de sua ajuda.
— Como entrou? E que aconteceu com a criada no corredor?
— Quantas perguntas! Sabe o que é uma chave passe-partoufí — Viu que ela sacudia a cabeça. —
Tenho uma. E a criada tomou duas goti nhas do láudano de tia Alfreda... Vista-se depressa. — E foi para o
corredor.
Saíram para o jardim dentro de minutos.
— Achei plantas antigas da abadia — explicou Alexander — e desco bri
que existia uma escada que, da nave, levava à cripta, embaixo desta. Ainda existe uma maneira de entrar.
— Você não pode ter a intenção de entrar na cripta! — Protestou Ro xane,
segurando-o por um braço.
— Alguém terá de entrar, eu ou você. O outro ficará vigiando. Você quer ir?
— Não, obrigada. — Roxane estremeceu pensando nos ratos. — Ficarei vigiando.
Alexander se dirigiu para um lugar do jardim e parou ao lado do anti go portão do adro; a partir desse ponto
começou a contar os passos e chegou até a base de uma fonte. Observou as pedras achatadas ao redor da nascente.
— A entrada deve estar embaixo de uma destas pedras — murmu rou, passando o pé sobre a
superfície de uma. — Segure a lanterna en quanto olho. — E começou a passar a mão, testando as pedras. Roxane
percebeu que todas eram finamente cinzeladas. — Procure um coração — sugeriu ele.
Depois de algum tempo, descobriram o coração incluído num motivo de volutas. Alexander tateou ao
redor da pedra. Roxane sugeriu:
— Empurre o coração e veja o que acontece.
Ele aplicou um pouco de força e logo ouviram o clique de um meca nismo. Com a ajuda de Roxane, ergueu
a pedra que cobria o alçapão e se movimentava com dobradiças. Ele sorriu para Roxane.
— Moça, você é uma excelente parceira. Agora, segure isto. — Entregou-lhe uma pequena
pistola. — Não quero que fique aqui sem defesa. — E começou a descer para a cripta, mas hesitou.
— Não se preocupe comigo. Você deve estar ansioso por encontrar o próximo indício — ela disse.
— Estou ansioso, não posso negar. — Acha que lá embaixo pode ha ver ratos?
— Acho que sim.
— Já imaginava isso. — Ele soltou o ar, demoradamente. — Se você ouvir algum grito de repente, não
se assuste. Sabe, eu não aguento ratos.
— Eu também. — Ajoelhou-se ao lado dele e beijou-lhe rapidamente o rosto antes de lhe entregar a
lanterna.
Ele não disse mais nada e começou a descer os degraus de pedra que levavam para a caverna escura como
pixe. A lanterna parecia não con seguir penetrar aquelas trevas.
Roxane não imaginava que, sem a lanterna, ficaria na escuridão; a lua minguante não conseguia iluminar
a noite. Sozinha ao lado da fon te, sentiu que a noite a engolia. Começou a ficar nervosa ao ouvir sons que não
percebera antes. Aproximou-se mais da abertura que levava à cripta.
— Ignatius! — sussurrou, mas não obteve resposta.

Capitulo XI

Curvada sobre a abertura escura da cripta, Roxane colocou as mãos em concha na boca e voltou a chamar.
— Ignatius! — Não houve resposta. — Alexander, responda!
— Sim? — A voz parecia chegar de muito longe.
— Você está bem?
— Sim. Você está com medo? Ânimo, Roxane. Com um pouco de sorte, estarei com você em breve.
Apesar dos esforços, não conseguiu vê-lo. Vislumbrou apenas uma luz fraca passando sobre os sarcófagos de pedra
dos abades e dos personagens importantes de uma outra época. Esfregou os braços ao sentir frio e se afastou, para se
movimentar um pouco.
Não compreendia esta preocupação com Alexander, era uma sensação nova e esquisita. Sua confissão de ter medo de
ratos provocara nela uma estranha vontade de protegê-lo. Para contrabalançar as sensações que a perturbavam, tentou se
lembrar do passado, do Alexander de então. Teve de se esforçar e as imagens que conseguiu compor resultaram apenas
nebulosas e fugidias. Até sua couraça de ressentimentos parecia enfraquecida. O que estaria acontecendo?, pensou. O vento
da madrugada começou a soprar com mais força. Ela envolveu-se em sua capa forrada de pele e procurou um canto
protegido, do outro lado da fonte. Sentou-se sobre a pedra fria, à espera de Alexander.
Finalmente percebeu um movimento perto da entrada da cripta e ouviu o alçapão se fechar. Por estar gelada,
demorou a levantar.
Mal seus olhos se encontraram um pouco acima da bacia da fonte, viu um vulto branco se afastando e chamando o
cão que o acompanhava.
Instintivamente, soube que devia permanecer oculta, que a aparição era perigosa. Decidiu contar até trinta antes de
se mexer. Então, chegou até a pedra do alçapão. Ouviu batidas surdas embaixo. Procurou, tateando, o coração entre as
volutas e começou a martelar a pedra com a mão enluvada. Chamava "Alex!", seguidamente e afinal ouviu o clique do
mecanismo. Lutou contra o pânico, enquanto tentava erguer a pedra, e o resultado foi apenas uma fresta estreita.
— Empurre, Alex!
A fresta se iluminou, se alargou e quando aumentou o suficiente, Alexander surgiu dela enquanto Roxane segurava
com esforço a pedra. Ao soltá-la, ela caiu com um baque e o alçapão se fechou. Só então Roxane percebeu que ele passara um
braço ao redor de seus ombros. Respirou profundamente para se acalmar e depois relatou o acontecido.
— Deve ter sido o irmão Joseph. Quem mais usaria aquelas roupas
brancas? — perguntou.
— É... Você não viu as feições do homem?
— Não. Ele se afastou muito depressa. — Alisou a ampla gola do sobretudo de Alexander. — Quem quer que
fosse, não tinha boas intenções. Você teria ficado preso durante quem sabe quanto tempo, se eu não estivesse aqui para fazer
funcionar o mecanismo. — Roxane estremeceu sob o impacto de suas próprias palavras.
— Eu disse que você é uma boa parceira! — O braço dele a apertou mais. — Sabe o que dizem sobre salvar uma
vida? Quem salva e recupera a alma perdida, tem o direito de dispor dela como quiser.
— Parece um mau negócio.
Ele deu um passo para trás, colocou a lanterna no chão e ficou a observá-la atentamente.
— Não. Você ainda não está pronta.
— Para quê?
— Não está pronta para ser beijada.
Ele apanhou a lanterna e começou a se afastar. Ela se apressou para se emparelhar a ele.
— O que é isso? Nunca ouvi tamanha audácia! Não estou pronta?
Mas eu... eu... — Tropeçou e parou. O que poderia responder a uma observação tão temerária? — Você nem sabe até que
ponto estou pronta!
Alexander se virou, com um sorriso confiante.
— Está enganada, querida — murmurou. — Saberei exatamente quan do for o momento de beijá-la. — Voltou a
caminhar na direção da casa
e acrescentou, falando por cima do ombro: — Aliás, encontrei nosso próximo indício.
— Ignatius, é melhor me dizer logo o que é — ela falou, erguendoas saias e correndo atrás dele.
— Vou fazê-lo quanto tiver certeza de que estamos a sós — ele respondeu. Parou e observou as pernas de
Roxane. — Que ligas mais bonitas. As rosetas são de muito bom gosto.
— E não vai dizer também que tenho pernas bonitas?
Ela deixou cair a saia e cobriu as pernas. De cabeça erguida, tomou a dianteira e se dirigiu para a porta pela qual
tinham saído. Esperou que ele a abrisse.
Quando atravessavam a sala de jantar ouviram vozes no hall. Alexander abriu cuidadosamente a porta e olhou pela
fresta. O capelão e Cos-
mo estavam sentados no primeiro degrau da escadaria principal, iluminados por um grande candelabro de prata
colocado no chão.
— Pensa que estou levando comigo todos estes talismãs para chamar a atenção? Não, senhor! Tenho bons
motivos! — dizia Cosmo.
— Tolices. Uma pessoa racional conhece sua própria força e não se agarra em mágicas ou esconjuros. Admita
que isso só funciona com um débil mental! — O capelão estava indignado.
Cosmo enrusbeceu e se mostrou furioso.
— Estamos aqui para ver se encontramos uma explicação científica
e o senhor me chama de débil mental!
— Não queria ofendê-lo, de jeito nenhum. — Titler olhou para o relógio. — A meia-noite já passou. Se esse
Monge Branco existe, onde está?
— Posso sentir sua presença. Está nos observando!
Na sala de jantar Alexander consultou Roxane.
— Esses dois malucos parecem não querer sair dali. Acha que podemos subir pela escada de serviço? — ela
sugeriu, e quando ele negou com a cabeça, pensou mais. — Nesse caso, iremos até a despensa — continuou Roxane. — Você
tem a tal chave e terá de usá-la. Espero que encontremos garrafas de conhaque.
— Esta não é hora de se embriagar, minha querida.
— Ah, mas é. O que eu não posso fazer é voltar para meu quarto quando o dia já começa a clarear, seria um
escândalo.
E rapidamente explicou seu plano.
Minutos depois ambos estavam diante da entrada principal. Os cabelos de Roxane, soltos, ocultavam-lhe o rosto, e ela
estava envolvida pelo sobretudo de Alexander, que tinha o colete respingado de conhaque e a gravata solta, amarrotada.
— Quem está aí? — perguntou o capelão de dentro.
— Eu, Alexander Ignatius Monk — proclamou Alexander com fala de bêbado. — Deixe-nos entrar!
Roxane fez ouvir uma gargalhada grosseira e escondeu o rosto contra o peito de Alexander.
— Senhor, prometeu que ninguém iria saber! — Voltou a gargalhar. — Se a governanta descobrir, vou perder o
emprego e as referências!
A porta começou a se abrir devagar. Com o braço a proteger Roxane, Alex entrou e foi direto para a escadaria.
— Não se preocupe, doçura. O que aconteceu esta noite ficará entre nós. — Tirou um fio de palha dos cabelos
dela e o deixou cair. — Vou acompanhá-la até seu alojamento.
— Por Deus, Alexander! — exclamou Cosmo. — Precisava fazer isso com uma criada?
O casal subia entre gargalhadinhas. O capelão os seguiu com os olhos.
— Que falta de vergonha — comentou. — E ela tem rosetas nas ligas, não viu?
— Alexander sempre teve uma sorte dos diabos — resmungou Cosmo. — Ele tem um talento extraordinário para
encontrar moças dispostas a mimá-lo.
No patamar superior Alexander puxou Roxane para um canto onde ninguém pudesse ouvi-los, e ambos se apoiaram
na parede, sufocando o riso e recuperando o fôlego.
— Talento extraordinário, é isso? — sussurrou Roxane. — Parece que sua reputação é infame.
— A infâmia está no exagero de minha reputação — comentou Alexander. — Diga-me, o que você pensa de
Alexander Monk?
— Não sei mais — ela respondeu depois de um intervalo. — Pensava que o conhecia bem...
Ele sorriu, satisfeito com a resposta. Puxou-a para si.
— Venha — disse. — Quero lhe dar algo para meditar, antes que adormeça. — E fechou os olhos.
Roxane fechou os seus e esperou, os lábios prontos para um beijo. Queria esse beijo.
"Cuidem-se os que não são puros. Os malvados não aguentarão a jornada..."
Ela abriu os olhos e ficou de boca aberta. Viu que ele declamava algo que aprendera de cor.
— "Os tolos não exergam à noite" — ele continuou. — "Mas sábia é aquela que leva sua lanterna."
— É só isso?
— Sim. O que mais esperava? — Alexander a fitou, zombeteiro. Franziu a testa e repetiu os versos. — Tenho
certeza de que era só isso. O que mais você queria?
Roxane se afastou, deixando cair o sobretudo dele.
— Acho que deveria ir me deitar antes de... — Ela pensou: "Antes de me mostrar uma tola", e disse: — Antes
que as criadas acordem. — Virou-se para ir mas tornou a parar. Tirou da bolsa a pequena pistola e a entregou com cuidado.
— Boa noite.
— Bons sonhos, minha querida.

Titler estava no púlpito, na pequena capela da família, em Ramms-ford Abbey, todo paramentado para a função. O
tempo continuava inclemente, e uma pequena ponte estava fora de uso, impedindo a ida à igreja, em Chard. A congregação era
composta pela maioria dos domésticos da casa. Os criados de funções específicas ocupavam os poucos bancos traseiros, e os
outros se apinhavam em qualquer lugar, mas ninguém se importava de ter de se apertar, porque a capela estava gelada. Os ban-
cos da frente eram ocupados pela família e seus convidados. Todos estavam muito bem cobertos, um ao lado do outro, os
cavalheiros de um lado, as damas do outro. George Smythe situava-se entre as duas classes, a dos patrões e a dos criados.
Estava sentado sozinho, e seus olhos fitavam a nuca de Alexander, sem se desviar nem por um instante. A capela tão cheia de
gente parecia inspirar o capelão. Sua voz vibrava, saindo-lhe da boca acompanhada de pequenas nuvens de vapor. Bradava:
— O homem não deve ficar sozinho. O que teria acontecido a Adão sem Eva? Está escrito que um homem
abandonará pai e mãe, para acompanhar sua esposa.
Lady Moyneton tossiu duas vezes e lançou um olhar furioso ao capelão. Este pigarreou e corrigiu:
— Han! Quero dizer, um homem deve honrar seu pai e sua mãe em todas as circunstâncias, inclusive quando
escolher sua esposa. — Respirou fundo. — Homem nenhum pode ser realmente feliz sem uma esposa, porque todo cavalheiro
tem a obrigação de se casar. — Parou e olhou para milady, que sorriu satisfeita e voltou-se para o filho.
Lorde Moyneton fez de conta que não viu. Olhava para a frente. Nos últimos dias se tornara mais circunspecto,
evitando indicar quais eram suas intenções.
Sentada ao lado de Faith, Roxane se divertia observando o comportamento dos outros, enquanto Titler se esmerava na
sua pregação. Viu os esforços da criada Evie, que queria se impor à atenção de Richard e este, por sua vez, olhava só para a
bela Daphne, que aparentava tédio. Não sabia ao certo se Elizabeth olhava para alguém, mas Cosmo e Philo lhe faziam
pequenos acenos de vez em quando. Lorde John e Faith tinham o comportamento mais esquisito de todos. Não olhavam para
ninguém e menos ainda um para o outro. Pareciam extremamente interessados no sermão de Titler. Roxane não conseguia
se concentrar nas palavras do capelão, mas sabia por quê. Alexander tinha encontrado um meio de livrá-la da âncora da
inimizade, e ela se sentia completa-mente à deriva, em águas duvidosas. Mesmo assim lançava-lhe olhares de vez em quando e
percebia que Alexander estava a fitá-la.
— As esposas — leu Titler — devem se submeter a seus maridos...
Roxane sentiu um surto de indignação. Por que Alexander afirmava que ela não estava pronta? Estava pronta, sim!
— Maridos — continuou o capelão —, amem suas esposas...
Alexander se remexeu em seu banco, observando os cabelos de Roxane que brilhavam ao sol. Ela estava belíssima,
muito mais bela do que antes. Podia facilmente imaginá-la de branco, com véu e grinalda, ajoelhada a seu lado diante do altar.
Enquanto a observava assim, ela se virou e fitaram-se. Ostentava uma expressão atrevida, e ele gostou. Deu-lhe um sorriso cheio
de consideração. Ela estava pronta, sem dúvida, talvez pela espera, talvez por estar envolvida com lorde John numa brincadeira
às suas costas, que o levara a inventar um jogo por conta própria. E ele também reconheceu que sua própria reticência se
devia ao fato de que, ao reconquistá-la, não a deixaria mais escapar.
— ... e digo às queridas jovens damas presentes: lembrai da parábola das... hum... Dez Virgens, que podem ser
vistas nesta preciosa tapeçaria que enfeita o altar. — Gesticulou elegantemente. — Lembrem-se de que cinco destas, hum,
virgens foram sábias e se prepararam para encontrar os noivos com suas lâmpadas cheias de óleo. Estejam prontas assim,
esperando pelo casamento!
Quando Titler falou nas cinco virgens e suas lâmpadas, Alexander e Roxane se entreolharam, surpresos pela
descoberta, e repetiram silenciosamente "mas sábia é quem leva sua lanterna".
Quando o serviço religioso terminou, lady Moyneton tomou o braço de Titler, e foram os primeiros a sair da capela,
seguidos pelos convidados. Roxane ficou e fingiu estar procurando algo embaixo e atrás do banco. Alexander parou a seu lado
para ajudá-la. Quando Scutt chegou para ajudar também, Roxane a mandou procurar o objeto perdido num outro lugar. Os dois
ficaram quando a capela se esvaziou. Então, se aproximaram da tapeçaria para examiná-la de perto.
— Está vendo um coração em alguma parte? — perguntou Alexander, baixando a voz, até ser quase um
sussurro.
— Não — respondeu Roxane no mesmo tom. — Cada vez é mais difícil de achar. Procure com atenção: deve
estar aqui, em algum lugar.
— Depois de alguns minutos de exame acurado, ela viu um determinado ponto, se aproximou, depois se afastou
para ver melhor, e perguntou:
— Esta lâmpada pode ser vista como um coração. O que você acha?
Ele se colocou exatamente atrás do ombro dela e observou o desenho indicado, fungou, depois franziu a testa.
— Por que você me distrai mais uma vez com esse perfume de pêssegos? — perguntou.
Ela se afastou, empertigando-se.
— Não sei o que quer dizer. Para mim, é um coração. É impossível acreditar que é um pêssego.
— Sem dúvida. A lâmpada está muito bem tecida. Tem a forma de um coração. — Aproximou-se e farejou o ar
perto dela. — Imagino que Scutt foi mais uma vez desajeitada e derramou mais um vidro de perfume. Não era isto que você ia
dizer?
— Acha mesmo? — perguntou Roxane, altiva. — Mas deve saber, porque é um entendido no assunto. —
Esforçou-se para disfarçar a confusão. — Vamos virar a tapeçaria para ver o que há no avesso.
Tirou os castiçais e os colocou num outro lugar. A tapeçaria era pesada e conseguiram virá-la apenas combinando o
esforço de ambos. Encontraram palavras bordadas na beirada, mas era difícil distinguir as letras e as que eram visíveis
formavam palavras sem sentido.
— O que significa? — ela perguntou.
Observando as letras de todos os lados, ele teve uma ideia.
— Acho que precisamos de um espelho. Vamos ver como podemosclevar a tapeçaria para meu quarto.
— Seu quarto?
— É o que se encontra mais perto. Tem alguma coisa contra levarca tapeçaria para lá?
— Não — ela respondeu, sem mostrar sua inquietação. — E como vamos fazer?
— Você até que aguenta mais um pouco de enchimento — falou Alexander, observando-a dos ombros para
baixo.
-— Você está brincando! — exclamou Roxane chocada.
Observou sua capa, que quase não se fechava sobre o peito.
Quando saíram da capela, Roxane parecia estar gingando, e seus quadris pareciam muito mais volumosos. Torcia para
que não encontrassem ninguém a caminho do quarto de Alexander.
George Smythe ficou a observá-los de um canto escuro, enquanto passavam. Teve a certeza de que eles tinham
encontrado alguma coisa. E ele precisava se apoderar dessa coisa, fosse ela o que fosse.
Pensou também que era, afinal, bastante vantajoso Alexander não ter perecido na cripta.

Capitulo XII

Roxane chegou no lugar combinado para o encontro poucos minutos antes da meia-noite. Procurou por todo o jardim
de inverno às escuras, mas Alexander ainda não chegara.
Lembrou-se da manhã e de como ele previra que seria fácil para ela sair do quarto. E tinha sido. E como ele
adivinhara que precisariam de um espelho para decifrar a escrita atrás da tapeçaria? Esquisito, como Alexander conhecia
essas coisas tão fora do comum.
Mas aparentemente não sabia nada a respeito dela, não sabia que ela estava pronta. E como era o comportamento
dele? Tinha se transformado num perfeito cavalheiro! Esse cavalheirismo chegava a ser ofensivo. Um libertino costumava se
aproveitar das mulheres, todo mundo sabia disso! Alexander parecia repentinamente desinteressado. Talvez ela fosse muito
altiva, muito impertigada, distante... Na primeira oportunidade ia mostrar a ele como estava errado.

Alexander estava se censurando. Por outro lado, se tivesse largado os primos enquanto estes bebiam à sua saúde, eles
poderiam desconfiar. Não queria que fossem ver o que estava fazendo em seu quarto, imaginando talvez que tivesse um
encontro amoroso. Por outro lado, antes de se encontrar com Roxane, precisava voltar ao quarto para apanhar a tapeçaria e
o sobretudo.
Quando abriu a porta verde, ouviu uma exclamação e um tropel. Entrou com muito cuidado e observou o interior à
meia-luz. Sua cama estava ocupada.
— Vim aquecer sua cama, senhor — explicou Evie, remexendo-se sob as cobertas. Reclinou-se sobre o travesseiro e
passou a língua nos lábios.
Alguns homens se sentiriam felizes, mas encontrar uma criada na cama era uma desgraça para um libertino regenerado.
O que poderia fazer com ela? Ficou num local que garantia uma retirada rápida e considerou o problema. Precisava sair, era
a única solução.
— Receio ter me enganado de porta — murmurou enquanto dava passos para trás.
— Sei a quem pertence esta cama, e o senhor quer zombar de mim.
As vozes dos primos que iam para seus quartos se aproximavam. Alexander entrou e fechofl a porta. Deu um passo e
tropeçou na anágua de Evie, no chão. Apanhou a anágua e a colocou sobre a cama.
— Você não pode ficar aqui.
— Por quê? — perguntou Evie. — Sei que sou bonita, todos os lacaios me repetem isso e também alguns dos
cavalheiros. Sei que vai gostar de mim. Um cavalheiro nunca recusa uma nova amante.
— Desisti de ter amantes.
— O senhor está querendo me enganar? Acha que não sei que gosta de mulheres? E eu estou aqui.
— Sou meio tímido, Evie. Meus primos espalharam balelas sobre minhas conquistas amorosas, mas são mentiras.
Aliás, todos nós não somos o que a lenda afirma que somos.
— Bom, seu primo Richard foi decepcionante. Mas o senhor... — começou a se aproximar da beirada da
cama.,
— Fique onde está, Evie. — Alexander se levantou depressa. — Tome este guinéu. Receberá mais quatro iguais
depois de estar vestida. —E jogou a moeda sobre a cama.
Ela quase deixou cair o lençol que a cobria no afã de apanhar a moeda.
— O senhor é muito gentil. Gentil demais.
— E você está nua demais. Vista-se. — Alexander virou as costas. A moça soltou uma gargalhada.
— Pensei que me pagaria para me despir e não para me vestir. —Aproximou-se dele por trás e colocou-lhe os
braços em volta da cintura.
— Quem poderia imaginar!

Roxane parou diante da porta verde, preocupada que Alexander pudesse ter caído vítima do criminoso desconhecido,
mas ouviu uma risada. Uma risada feminina, e sua preocupação se transformou em raiva. Como ousava ele deixá-la esperando
enquanto se divertia? Virou-se para ir embora mas mudou de ideia. Abriu a porta com um gesto enérgico. Viu Evie
sumariamente coberta por um lençol, com um braço na cintura de Alexander.
A criada, assustada, soltou um gritinho, deu um passo para trás, enroscou o pé no lençol e caiu com estrondo.
Roxane ficou de olhos arregalados, a respiração acelerada. Queria fazer bom juízo de Alexander, mas a cena era
vergonhosa. As dúvidas começaram a ressurgir com força. A frágil confiança nascida naqueles dias murchou.
Alexander a observava, adivinhava a luta interior pelas suas expressões. Os olhos de Roxane brilharam de raiva.
Acenou para a criada.
— Vejo que esteve ocupado, sr. Monk. Parece que sua busca do Coração foi impedida. O senhor provavelmente
esqueceu que eu o esperava no jardim de inverno.
— Srta. Costain, eu não... — começou Alexander, mas lançou umolhar furioso a Evie e rugiu: — Vista-se!
— Só se me der os outros quatro guinéus que me prometeu.
— O senhor pagou a meretriz! — Roxane ficou rígida.
— Como é que uma garota pode chegar a ter dinheiro, se não recebe o que lhe prometem? — comentou Evie. —
Ele não precisaria me pagar, mas como prometeu, quero meu dinheiro.
— Vista-se — repetiu Alexander sem se virar. Olhou para Roxane.
— Isto parece muito pior do que é. Espere, antes de me condenar. Quando souber o que aconteceu, vai até achar graça.
— Então, isto é engraçado? — Roxane não parecia se divertir. — Mas o senhor não precisa explicar nada. Afinal,
o que somos um para o outro? Parceiros? Podemos esquecer isto. Uma vez fomos noivos. Mas que mulher se casaria com um
homem que se gaba como o senhor se gabou? Lembro-me exatamente do que disse a John, e que eu ouvi por acaso. Disse:
"Por que vou me casar? Ora, meu velho, de que outra forma poderia levar aquela coisinha deliciosa para a cama e, logo depois,
ao banco?"
— Fui muito estúpido e...
— O senhor foi um tolo — rematou Evie, já coberta pela camisa. —Se eu fosse a senhorita, evitaria ter qualquer
coisa com um homem assim!
Alexander apanhou as roupas da moça, colocou-as nos braços dela, cobriu-a com o lençol e a empurrou para o
corredor. Apoiou as costas na porta fechada sem se preocupar com as batidas e os gritos do lado de fora.
— Roxane, sinto por aquelas palavras idiotas. Eu estava bêbado. Também considerava o casamento como a
maioria dos rapazes de nossa sociedade. Pode parecer idiota, mas quando a pedi em casamento, eu não estava preparado para
isso.
— Vai ver que não estava pronto. — Os olhos dela fuzilavam. — Mas está preparado para se divertir com uma
criada. — Colocou as mãos na cintura. — O que há comigo? Sou deformada? Sou tão antipática que você não consegue se
aproximar de mim?
— Roxy, você não compreende...
— Sim, compreendo. Não estou pronta.
Alexander se afastou da porta e a agarrou.
— Não interessa se não estiver pronta... Quero você, esteja pronta
ou não! — Beijou-a com o ardor das emoções que controlava há dias e um beijo não foi suficiente.
Ela correspondeu também com ardor, abraçando-o com a mesma força que ele usava para segurá-la. Num primeiro
momento, apenas por um instante, ela sentiu raiva, mas a raiva logo se dissolveu na maré de paixão. O amor finalmente
emergiu das profundezas ardentes de seu íntimo. Quando ele quis se afastar, ela o segurou.
— Danação, Roxy! — rugiu Howard. — Monk, largue minha irmã! — Estava parado à porta, com o robe
aberto e as pernas nuas abaixo do camisolão.
O casal permaneceu abraçado e, sem se afastar um centímetro, abriram os olhos e se fitaram.
— Alex — falou lorde Moyneton em tom cadenciado —, acho que você deveria pelo menos tirar seus lábios
dos dela. Howard acha que você tomou liberdades excessivas com Roxane.
O beijo terminou, más Alexander continuou a segurá-la. Se fosse necessário, a protegeria com o próprio corpo. Ela
permanecia abraçada a ele e apoiava o rosto no espaço entre o pescoço e o ombro de Alexander.
— Monk, se não parar de seduzir minha irmã, vou comer seu fígado no desjejum. — Os primos de Alexander,
Philo, Cosmo e John, seguravam Howard, que estava furioso.
Bertram dava pulos para ver além dos ombros dos outros.
— Seduzindo? Onde? — Percebeu a criada sumariamente vestida e começou a segui-la pelo corredor.
— Espere só um minuto, major Costain — interferiu Cosmo, depois de examinar as provas... neste caso,
Roxane e Alexander. — Como é que ele poderia seduzi-la, se afinal ela está completamente vestida? Até usa luvas!
— Graças a Deus, chegamos em tempo! Ela ainda não foi violentada! — exclamou o sr. Titler, enfiando a
cabeça ao lado da porta.
— Ele desonrou minha irmã! — Howard tentava se desvencilhar, soltando blasfémias.
— Que coisa, que coisa! — lamentou o sr. Titler, sacudindo a cabeça. — Precisa se casar com ela agora
mesmo.
Alexander segurou a mão de Roxane e fitou-lhe o fundo dos olhos.
— Não, acho que não — falou vagarosamente. — Não haverá casamento esta noite.
Howard balbuciava, incoerente, enquanto se livrava dos outros:
— Monk, exijo uma satisfação. Você não pode ultrajar minha irmã, destruindo sua reputação, e depois se
recusar a reparar o que fez.
— Ah, Howard, cale a boca — interferiu Roxane.
Olhou para Alexander com certa perplexidade. Ela também não queria se casar dessa forma, mas estava um pouco
confusa porque ele também se recusava a fazê-lo.
— Roxane Costain, se você não sabe o que se deve fazer, eu sei! —Howard começou a se aproximar com
expressão terrível.
— Um momento, meu velho — falou lorde John, segurando-o. — Se alguém deve desafiar Alexander, sou eu.
Não discuta comigo. Este é meu lar e o que acontece aqui é minha responsabilidade. Como seu anfitrião, preciso cuidar
pessoalmente do assunto.
— Nunca ouvi tamanho absurdo! — Howard encarou os outros, furioso. — Suponho que ninguém pretende
discutir meu direito de exigir satisfações. Afinal, sou o irmão dela.
— Sim, mas ela é minha convidada — retrucou lorde Moyneton. — É uma dama que me interessa
especialmente e ele é meu parente. É minha obrigação indiscutível defender a honra desta casa.
Philo bateu uma mão no ombro de lorde John.
— Meus parabéns, Moyneton! Nem todos teriam a coragem de enfrentar um homem com a pontaria certeira
de Alex.
Howard levou o conde para o canto mais afastado do quarto.
— Olhe aqui, John! Você e Roxy... — Esbugalhou os olhos. — É uma farsa — sibilou. — Fizemos tantos
planos e veja o que ele fez com ela.
Lorde John pisou no pé do major.
— Procure se lembrar de que isso é segredo. Quer que sua irmã adquira fama de leviana? Ouça bem, Howard:
conheço Alex. Ele jamais desonraria Roxane. Jamais, entendeu?
— Exijo uma satisfação.
— Vai tê-la, mas por meu intermédio. Não vou lhe permitir matar meu primo.
O lorde se afastou, sem lhe dar a menor oportunidade de responder, e se aproximou de Alex. Comunicou-lhe que ia
enfrentá-lo. Alex mostrou que sua paciência estava no limite.
— Mas é claro — respondeu com sarcasmo. — Você deseja defender o nome de sua dama e não posso lhe negar
esse direito. Escolha seus padrinhos. — E com um olhar para Roxane, acrescentou: — Primeiro, porém, vamos deixar que a
dama se retire.
— Como sou a dama em questão, tenho de dizer algumas coisas a respeito. — Envolveu os homens num olhar
furioso. — Isto não passa de uma estúpida exibição de cavalheirismo idiota. John e eu sempre continuaremos a ser ótimos
amigos, mas ele não tem qualquer direito sobre mim. Não tem o direito de atuar em meu nome.
— Resolvi tomar este direito — afirmou lorde Moyneton.
— E no que se refere à minha virtude — ela continuou, sem tomar conhecimento das palavras de John —,
sinto-me insultada por alguém ter ousado colocá-la em questão. — Colocou as mãos na cintura. — Não pretendo deixar que
vocês continuem com essas brincadeiras infantis.
Seu irmão a agarrou pelos braços e a empurrou para o corredor, antes que ela conseguisse opor resistência. Quando
a porta começou a se fechar, ela introduziu um pé. Os cavalheiros estavam tão preocupados, que não perceberam que ela
ficara ouvindo.
— Philo será meu padrinho — declarou o conde, e o major opôs-se, indignado. — Não, Howard, não desta vez
— continuou. — Você quer ver sangue e provavelmente colocaria pólvora demais em minha pistola. E a arma poderia explodir,
destroçando minha mão. Não, obrigado. Ficarei com Philo.
— Já que você escolheu Philo, vou ficar com Cosmo — respondeu Alexander, tentando não sorrir. — Assim
estaremos igualmente bem servidos. — Olhou para seu relógio. — Que tal, ao clarear do dia? Não adianta esperar até
amanhã, não acha?
— Concordo — respondeu o lorde.
— Pistolas? A vinte e cinco metros? — perguntou Alex, educadamente.
— O quê? Vinte e cinco metros! — Howard estava indignado. — A essa distância, não teriam a menor
possibilidade de acertar. Seria um insulto para minha irmã!
— Está bem. Vinte!
— Aceito! — exclamou lorde Moyneton, antes que Howard pudesse protestar mais uma vez.
Decidiram o local e os outros detalhes, porque não restava muito tempo.
Roxane sabia que, de qualquer maneira, estaria lá também, para assistir ao duelo.

Capitulo XIII

Embora ainda faltasse mais de uma hora para o sol nascer, o grupo de cavalheiros começou a se reunir para resolver a
questão de honra. Apesar de suas tentativas de parecerem normais, os criados começaram a desconfiar ao vê-los circulando
àquela hora. A presença das carruagens e dos estojos das pistolas provocaram uma agitação que nem mesmo Phipps, o
mordomo impassível, conseguiu acalmar. Para evitar qualquer mexerico, ficou decidido que os únicos criados a assistir os
cavalheiros seriam os cocheiros.
Alexander, vigiado por olhares interessados, se aproximou de Cosmo e lhe deu uma pancadinha nas costas.
— Então, primo, tem algum amuleto para me dar sorte?
— Você terá de colocar isto sobre seu coração — respondeu Cosmo entregando um objeto volumoso. — No
momento crucial terá de pronunciar as palavras "Odal oa essap", que significam "passe ao lado" ao contrário. Assim
poderá proteger seus pontos vitais.
— Você disse, sobre meu coração? — perguntou Alexander, sorrindo, e enfiou o amuleto no colete. — Claro,
se isto funcionar, você será o padrinho de meu primeiro filho. — Piscou para o primo. —Devo dizer também que você é
um padrinho extraordinário. Nunca houve um igual nos anais dos duelos.
A seguir, lorde John e Alexander, com os respectivos acompanhantes, subiram em carruagens separadas. Logo
depois que a primeira se afastou, uma figura coberta com uma capa saiu do seu esconderijo e subiu rápida no assento do
criado de estrebaria da segunda carruagem.
O trajeto até o lugar escolhido foi percorrido com solenidade. Os cocheiros pareciam perceber a importância da
viagem. Quando as carruagens diminuíram a velocidade, a figura envolvida na capa saltou para o chão e se escondeu entre
os arbustos. Não estava mais chovendo, mas o bosque abrigava uma espessa névoa.
Howard discutia com Bertram a necessidade de eliminar o patife que desonrara a irmã, enquanto John examinava sua
pistola. O conde não tencionava satisfazer a sede de sangue do major, mas sabia que os duelos sempre deviam ser
considerados com cuidado, e o resultado muitas vezes era incerto. Na outra carruagem, Alexander queria cochilar,
mas o sr. Titler parecia estar num velório e não o deixava descansar. Pensou em Roxane e em sua declaração de que
não eram mais parceiros. Quer ela quisesse ou não, o destino de ambos era ficar juntos. A busca do Coração tinha se
tornado apenas um símbolo do que ambos procuravam com esforço. Lembrou-se dela entre seus braços e, embora um duelo não
fosse um lugar para senhoras, teria gostado de saber que estava por perto.
No centro da clareira os padrinhos se consultavam mutuamente, preocupados. Philo colocou a mão no ombro do
gémeo.
— Preciso confessar que nunca fui padrinho num duelo.
— Nem eu — resmungou Cosmo. — O que vamos fazer?
— Venha comigo. — Philo arrastou o irmão para um lado. — Eu trouxe o livro — sussurrou e tirou do bolso
um pequeno volume que colocou ao lado da lanterna da carruagem.
— Código de Conduta, Manual de Duelos para Cavalheiros — leu Cosmo. — Como você é esperto! O que diz
aí? O que temos de fazer?
— O livro diz que precisamos proporcionar aos duelantes uma oportunidade de reconciliação. Você terá de
perguntar a Alex se pretende oferecer ou receber um pedido de desculpas e eu devo fazer a mesma coisa com Moyneton.
— Você quer que eu diga a Alex? Por que as piores tarefas sempre sobram para mim?
— Porque você é o mais velho! — respondeu Philo.
Cosmo bateu no vidro da carruagem e pediu para falar com seu primo. Ao ouvir o que ele queria, Alexander
esfregou os olhos cansados e bocejou.
— Perfeito. Muito boa ideia. Vamos parar com essa besteira e ir para a cama, dormir.
Cosmo virou-se e foi se aconselhar com seu gémeo, que o esperava com péssimas notícias.
— Que droga! — suspirou Philo. — Aquele major Costain é um sanguinário. Não deixou que Moyneton
aceitasse um pedido de desculpas. Não ficará satisfeito até ver Alex morto!
— Porcaria! O que vamos fazer agora? O que diz o livro?
— Precisamos examinar as armas e carregá-las — disse Philo depois de consultar o livro.
Foram até as respectivas carruagens e voltaram com as caixas. Não perderam muito tempo com o exame, afinal
nenhum deles entendia de armas. Philo, porque não estava interessado; Cosmo, que se gabava de ser um esportista e
algumas vezes ia caçar, porque seu guarda-caça sempre lhe entregava a espingarda já carregada.
— Não podemos colocar muita pólvora — avisou Philo. — John disse que é perigoso e não quer ver
ninguém com a mão destroçada — e só colocou algumas pitadas de pólvora no cano.
Cosmo resmungava nervoso, enxugando a testa.
— Não consigo fazer entrar a bala, minhas mãos tremem demais. —Finalmente conseguiu. — E agora?
— Meça a distância, vinte metros, e marque-a.
— Como se medem vinte metros? — perguntou Cosmo.
— Com vinte passos bem compridos, tonto!
— Pare de se gabar. Suponho que saberia estas coisas também, mas nunca tive tempo suficiente para
aprender.
Os gémeos continuaram a discutir até que tudo ficou pronto. Quando o céu começou a clarear, foram chamar os
duelantes. Alexander estava dormindo, e o lorde parecia prestes a assassinar o sanguinário major, que não lhe dava paz.
— Agora chega, Howard. — O conde se afastou, impaciente. — Este é um assunto de honra, não é uma
execução.
O major não desanimou. Seguiu as pegadas de lorde Moyneton.
— Sim, mas ele...
— Não. Ele não fez nada — disse o conde, segurando o braço do amigo e levando-o em direção a algumas
árvores. — E ele não teria feito alguma coisa, mesmo que tivesse oportunidade. Pode-se dizer muitas coisas sobre meu primo,
mas ele é um cavalheiro, queira ou não queira reconhecê-lo. Confie em mim, Howard, como já confiou outras vezes.
— Um cavalheiro teria se casado com minha irmã — teimou o major. — Seu primo, Moyneton, é um
diletante. Roxane é... — Fitou o arbusto à sua frente. — Mil trovões, Roxane! O que está fazendo aqui? Este não é
lugar para você!
Roxane saiu de entre as escassas folhas outonais e encarou o irmão.
— Que coisa, Howard, será que você só sabe berrar? — Sorriu para lorde Moyneton e lhe estendeu a mão. —
Desculpe-me pela surpresa. Sabe que confio no senhor neste assunto, embora meu irmão não confie. Mas não consegui
ficar na abadia, sabendo que Howard estava solto por aqui.
Lorde Moyneton, bastante surpreso, olhou de um para o outro.
— Está bem, Howard, como você está ansioso para que seja feita justiça para sua irmã, ficará a vigiá-la na
minha carruagem. Não é bom que Alex, ou qualquer outra pessoa, saiba que ela está aqui. Mais tarde veremos como levá-la
de volta sem que seja percebida. — Curvou-se para ambos. — Desculpem-me agora, mas preciso ver meu primo.
Os padrinhos esperavam na clareira, frente a frente, segurando as caixas das pistolas. Seus rostos juvenis espelhavam
a responsabilidade que sentiam naquela oportunidade tão solene.
Bertram se aproximou deles, querendo saber mil detalhes sobre outros duelos e insistindo muito diante da
reticência dos gémeos.
— Um cavalheiro não se gaba destas coisas — falou Alexander, que ouvia, e piscou para seu padrinho. — Diga-
me, Cosmo, este nevoeiro pode afetar meu tiro? Dizem que a umidade atrasa a trajetória da bala. O que você acha?
— Eu, ah... quero dizer... — Cosmo engoliu em seco, nervoso. — Ah, Moyneton está chegando! — E
cotucou o irmão.
— Cavalheiros — disse Philo em voz muito alta —, tomem seus lugares no campo. Sr. Titler e sr. Costain,
por favor, se retirem.
— Mas onde está Howard?! — exclamou Bertram. — Ele não vai querer perder isto!
— Acho que se encontra no interior da carruagem — falou lorde Moyneton, enquanto entregava um envelope
selado ao capelão. — Segure isto — sussurrou. — Se algo sair errado, pode abrir.
Os dois adversários, sem os sobretudos, se colocaram em seus lugares. Os padrinhos, com muita solenidade, levaram
as caixas das pistolas. Alexander olhou para a arma.
—Esta pertence a John — o.bservou. — Prefiro a minha.
Cosmo, muito vermelho, encontrou seu irmão a meio caminho. Trocaram as caixas e refizeram o mesmo caminho.
Ao apanhar sua arma na caixa, Alexander experimentou-lhe o equilíbrio. Franziu a testa e depois ergueu uma
sobrancelha.
— Quem carregou? — perguntou a Cosmo.
— Eu. Pelo menos, acredito que fui eu.
— Parece um pouco leve. Você colocou uma bala, não é mesmo, e depois escorvou a pistola?
— Se a escorvei? — Cosmo enrubesceu ainda mais. — Mas é claro. O que você pensa que sou? Louco? — As
gotículas que apareceram acima de seu lábio superior não eram produzidas pela névoa, mas por não saber o que era
escorvar.
— Reze por mim — disse Alexander.
Cosmo voltou para perto de Philo, resmungando devotamente. Apanhou todos os amuletos que carregava,
comprimindo-os contra o peito. Philo deu um passo para a frente.
— Moyneton tem o privilégio do primeiro tiro e obedecerá à minha ordem. Em seguida, Alexander poderá
atirar.
— Se Deus quiser — murmurou Cosmo.
— Cavalheiros — gritou Philo. — Atenção. Prontos? Fogo!

No lado mais afastado do bosque George Smythe se ocultava nas sombras das folhagens. Seu cão, Dolf, estava
amarrado ao tronco de uma faia. O administrador tinha tomado muitas precauções para garantir o êxito da empreitada.
Tivera de amarrar o dogue alemão para evitar que saísse na clareira e cumprimentasse lorde Moyneton. Tinha escolhido até
a árvore ao lado da qual se encontrava, porque seu galho mais baixo serviria para apoiar com firmeza o cano de sua espin-
garda. Precisava acertar no alvo.
Quando os duelantes apanharam suas armas, Smythe levantou o cão da pederneira, já limpa e escorvada. Apoiou o
fuste da coronha no galho e ficou a esperar, com um brilho febril nos olhos.
Dolf, um cão que gostava de caça, farejou o chão, esticando a corda e gemendo baixinho.
— Quieto — sussurrou Smythe. — Deveria ter trancado você no palheiro.
Viu quando os padrinhos pararam ao lado.do campo. Mirou o conde.
Milorde levantou e esticou o braço, mas seu adversário ficou imóvel e tentou apresentar o menor alvo possível.
Smythe rangeu os dentes. Sua hora parecia não chegar nunca! Moyneton ia dar o primeiro tiro e precisava esperar mais
um pouco para apertar o gatilho.
Quando lorde Moyneton atirou, em vez de lampejar, a pólvora apenas deu uma pequena faísca. A bala rolou no
cano e caiu ao chão. Os padrinhos encolheram os ombros e esconderam os rostos entre as mãos.
Smythe teve vontade de gargalhar. Era muito divertido ver que seus poderosos parentes faziam papel de tolos.
Dolf, que não prestava atenção ao que acontecia na clareira, encontrou um rastro interessante que levava para o
ponto no qual se encontrava seu dono, e começou a circular a árvore. Deu uma volta, mais uma e mais uma.
Smythe não percebeu que a corda estava ao redor de suas pernas. Concentrava sua atenção no alvo. Esperava pelo
próximo tiro.
Alexander apontou a pistola mal carregada para John. Em seguida, o cano começou a se deslocar na direção do
bosque. Se pudesse ver através das sombras, poderia perceber o homem que atingiria, se atirasse naquela direção.
Na margem do bosque, Smythe olhou para baixo ao notar que algo puxava-lhe os tornozelos. Cambaleou, alterando a
posição da arma e puxou o gatilho um instante depois do tiro de Alexander. Smythe caiu. Não estava ferido, mas preso no
emaranhado da corda do cão.
Alexander soltou a pistola e caiu ao chão, apertando um braço contra o peito. Lorde John e os outros chegaram às
carreiras.
Os cavalheiros se agruparam ao redor do ferido, mas foram afastados sem qualquer cerimónia por Roxane. As
lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ergueu Alexander e apoiou sua cabeça no peito, com uma mão, enquanto procurava o
ferimento com a outra.
— Srta. Costain! — gritou o sr. Titler. — De onde veio? Isto é impossível! Retire-se imediatamente.
— Fique quieto, Titler! Por favor, Alex, não morra — ela sussurrou e o beijou na testa.
Procurava cuidadosamente com os dedos. Tinha certeza de que o ferimento era fatal. Alexander parecia quase
morto.
Respirou fundo quando encontrou o que procurava: um pequeno rasgo na manga, sobre o antebraço. Afastou a
mão e olhou para as pequenas manchas de sangue em sua luva. Eram o único sinal de que uma bala poderia ter
atravessado ou apenas raspado o corpo dele.
— Farsante! — Roxane se levantou de repente e soltou Alexander, que bateu no chão.
— Não estou fingindo — retrucou Alexander, examinando o ferimento; a bala tinha arrancado algumas
camadas de pele. — Fui alvejado.

— De que jeito? — quis saber lorde Moyneton.


Alexander apontou para uma árvore na margem da clareira.
— Vi um lampejo naquela direção.
— Caçadores furtivos? — perguntou Howard, decepcionado em ver Alexander ainda vivo. — Poderia ter sido
uma dádiva de Deus. Pena que foi apenas um raspão, e a bala não pegou no coração.
Cosmo e Philo foram examinar a área e voltaram logo com um pedaço de corda cortado, nada mais.
— Provavelmente era um caçador furtivo — John comentou, olhando intencionalmente para o primo enquanto
o ajudava a se levantar.
— Você não acha também?
— Não tenho dúvidas. — Alexander limpou-se e observou a manga estragada de sua casaca.
— Venha cá — falou Roxane, e segurou o braço machucado. — Quero ver isto de perto.
Tirou um frasco da bolsa, desatarraxou a tampa e despejou o líquido hemostático sobre o ferimento, ignorando a
exclamação de dor de Alexander. A seguir, sem perguntar nada, retirou o cachecol que usava e improvisou uma bandagem.
— O senhor me deve muitas respostas. E vai me responder.
Alexander suspirou ruidosamente, à moda de Daphne.
Imagine que eu pensava que nunca seria chamado a prestar contas!
— Deixe de ser insolente quando fala com minha irmã! — gritou Howard, agarrando o braço de Roxane e
arrastando-a para a carruagem. — Ela é apenas uma donzela cheia de modéstia!

Capitulo XIV

Quero ser mico! — Bertram tirou sua máscara e olhou estupefato para a irmã, parada na porta da sala de visitas;
cotucou seu irmão com o cotovelo e perguntou: — Howard, aquela é Roxy? O que foi que ela fez para ficar assim?
Howard olhou na mesma direção e empalideceu.
— Que desavergonhada! E ainda por cima, vestida de escarlate!
— Está enganado — corrigiu Bertram. — A cor se chama vermelho de Pompéia. É a ultimíssima moda.
— Um sujeitinho à toa como você deve saber dessas coisas. O que eu quero saber é, onde ela arranjou essa
roupa? — O major falava lançando perdigotos. — Onde é que ela deixou o xale? Está com um ombro descoberto. Parece
uma maldita estátua romana. Pode apostar, ela ficará com pneumonia e isso é fatal. Bem-feito, quem mandou ser leviana?
— Ela não apanhará uma friagem enquanto todos aqueles sujeitos ficarem a lançar olhares ardentes. Olhe só
como se agrupam ao redor dela — comentou Bertram, rindo.
— Bailes de máscara são uma estupidez! Como é que ela poderá saber com quem está dançando, se
todos os homens usam máscaras?
— Diacho, Howard, você fala como uma mulher velha! — Bertram considerava o irmão um desmancha-
prazeres. — Estar mascarado faz parte do divertimento e quando chegar a hora das bruxas, vou ganhar o prémio da melhor
lanterna feita com um nabo. Passei o dia a escavá-lo, a entalhá-lo, e o resultado foi muito positivo, definitivamente
assustador! — Encheu o peito de ar, como para absorver toda aquela atmosfera. — Esta é uma noite para brincadeiras e
travessuras. Vamos nos divertir. Deixe que Roxy se divirta.
— Venha comigo. — Howard agarrou Bertram. — Venha, precisamos salvá-la... antes que fique
desonrada e que desonre toda a família.
Os dois irmãos se encaminharam, evitando os casais que dançavam, mas quando chegaram no ponto onde antes se
encontrava Roxane, não a encontraram mais. Viram a irmã no centro da pista, dançando. Seu parceiro usava um colete cheio
de amuletos de toda espécie, que tilintavam a cada passo.
— Cosmo — comentou Roxane quando voltaram a se encontrar no minueto —, nunca vi uma coleção
tão rica de... hum... balangandãs.
— Não iria para qualquer lugar sem meus amuletos — ele respondeu saltitando em volta dela —,
especialmente esta noite, véspera de Todos os Santos. É a noite específica dos fantasmas, dos espíritos e da morte... e não
me interessa a opinião de Titler. Minha tia pode chamá-la a Noite das Brincadeiras, tanto faz. Isto não muda as antigas
tradições.
Os movimentos da dança os separaram, mas logo voltaram a se encontrar.
— Estou admirada por você ter tido a coragem de me tirar para dançar — falou Roxane, e Cosmo corou.
— Srta. Costain, estou feliz porque as damas não foram obrigadas a colocar máscara. Quem poderia lhe
resistir, bonita como é?
Mas, pelo jeito, um cavalheiro tinha forças para resistir. Roxane olhou para Alexander, que se apoiava na lareira e
olhava para as chamas. Era impossível não reconhecê-lo, apesar da máscara. E nessa festa, de poucos e selecionadíssimos, como
era possível que ele não tivesse percebido sua presença?
Durante os três dias que Howard a obrigara a ficar em seu quarto, Roxane fizera bom uso do tempo. Depois de
mandar Scutt comprar vários tecidos na cidadezinha mais próxima, requisitara a ajuda de Faith, uma costureira muito
habilidosa, e da criada desta. Juntas, começaram a substituir alguns velhos vestidos cinzas por outros de cores menos tristes. O
vestido vermelho de estilo romano fora uma inspiração: Roxane lembrava como Alexander tinha acariciado a coxa da deusa da
caça, Diana, na galeria. Ela se sentia uma caçadora e, portanto, o vestido era apropriado.
Como Alexander parecia querer ignorá-la, decidiu perseguir a presa. Quando a dança terminou, desculpou-se por ter
prestado pouca atenção, mas Cosmo pareceu entender o motivo de sua preocupação.
— Para atrair a pessoa que ama, srta. Costain, precisa enfiar dois alfinetes numa vela antes de acendê-la.
Quando a chama chegar ao ponto onde se encontram os alfinetes, seu amor virá.
— Tem um bom coração, Cosmo — ela respondeu, enquanto ele a acompanhava a um lado da sala.
Queria ficar só, para começar a caçada, mas Elizabeth acenou para ela e Roxane não podia ignorar o chamado.
A moça míope levantou um lornhon até os olhos e sorriu.
— Estou feliz em vê-la, finalmente. E devo dizer que, agora que posso enxergar, está mais bonita do que antes.
— Srta. St. Clair, estou surpresa. Que moda mais graciosa é essa! Pensarão que é altiva, e não que é um
ratinho de biblioteca.
— É muito elegante, não é mesmo? Papai me mandou isto, porque sabe que não gosto de usar óculos em
público. Mas olhe. — Ergueu as mãos mostrando as luvas pretas. — Recebi a notícia apenas hoje. Meu tio-avô morreu,
por isto não estou dançando. Meu pai é o novo marquês de Brixham.
— Imagino que deveria oferecer meus sentimentos — falou Roxane, confusa diante da atitude animada da
outra.
— Isto é desnecessário. Ninguém gostava de meu tio-avô. — Elizabeth sorriu. — Quando terminar o período
de luto, vou frequentar a sociedade como lady Elizabeth. E como tal não precisarei me preocupar com as opiniões dos
outros.
— Espero que seja assim — respondeu Roxane, séria. — O que disse milady de seu luto? Sem dúvida, vai
querer que Moyneton... quero dizer...
— Não precisa explicar. Também pode ver que lorde Moyneton já fez sua escolha, e não poderia ter escolhido
melhor. — Elizabeth indicou o conde que se encontrava com Faith, olhos nos olhos. — Só dançou com ela a noite toda, e
quando ela dança com outra pessoa, ele fica a olhá-la de maneira comovente. — Deixou balançar sua fita. —Agora me
divirto observando as pessoas. É muito interessante. É muito divertido ver como o sr. Alexander Monk faz de conta que não
está olhando para você, mas também é muito romântico.
Roxane lançou um rápido olhar para Alexander, mas com a máscara a lhe cobrir metade do rosto, era difícil
perceber para onde estava olhando.
— Acho que está imaginando coisas, srta. St. Clair... Desculpe, queria dizer lady Elizabeth.
— De jeito nenhum. Veja só como sua postura fica mais suave quando ele se vira para este lado.
As moças prestavam tamanha atenção que não perceberam o homem que parou ao lado delas, até ele pigarrear.
— Acredito que esta é nossa dança, srta. Costain — ele afirmou.
Roxane, tomada de surpresa, nem consultou seu carne. Levantou-se e se apoiou no braço do cavalheiro. A dança
campestre requereu muita atenção, e ela quase não olhou para seu parceiro até que ele apertou sua mão de modo
grosseiro.
— Srta. Costain — ele murmurou em tom ameaçador. — Estive a observá-la durante estas últimas semanas. A
senhorita é uma moça muito esperta. Aliás, meu primo também é. — Soltou uma gargalhada.
— Ambos me atrapalharam bastante. Se não tivesse interferido, Alex teria ficado na cripta até morrer.
Roxane estremeceu e tentou arrancar a máscara do homem mas a dança os obrigou a se separararem. Quando
voltaram a se aproximar, ele tornou a falar:
— Não seja tola — sibilou e torceu-lhe o pulso para que o levasse a sério. — Agora tenho a tapeçaria e o
tesouro será meu, como deve ria ser de direito. O velho conde me renegou, mas não permitirei que me ignorem. — Seus
dedos apertaram mais ainda o pulso de Roxane.
— Vim para avisá-la: não se intrometa mais, se tiver amor à vida.
Roxane examinou o homem. Sua roupa de gala era velha e simples demais para ser de Richard, as luvas brancas pareciam
bastante usadas. Mas era alguém que ela conhecia, alguém que já vira, tinha certeza disso. Parecia irradiar maldade, e ela
estremeceu.
— Se a senhorita não se importa com sua própria vida, talvez se importe com Alexander. — Riu,
sarcástico. — Pense na cabeça dele sobre uma bandeja, como o João da Antiguidade.
— O senhor deve estar louco!
— Não diga isso! Não me pareço com meu irmão. — As veias de seu pescoço incharam, e seu queixo
começou a tremer. — Eu deveria ser o conde, mas meus direitos foram contestados. Bastardo! Sem nome e sem herança! —
Riu sem alegria. — Mas conseguirei tudo, de qualquer jeito. Por que está me olhando assim? Já disse que não sou louco!
Antes que ela pudesse responder, ele sumiu. Roxane ficou entre os dançarmos e, quando deu um passo para trás,
procurando o criminoso, alguém a segurou pelas costas.
Um novo parceiro substituiu o outro, desaparecido, e desta vez ela não teve dificuldade em identificá-lo. Não falou
quando ele segurou sua mão, mas quando viu que queria continuar a dança, começou a protestar. Precisava lhe dizer muitas
coisas e este não era o lugar. Mas ele conseguiu acalmá-la com um simples toque.
Alexander ansiava por ficar um instante a sós com Roxane, mas ela fora largada pelo seu parceiro anterior, um sujeito
definitivamente grosseiro. Não queria chamar mais atenção para ela, levando-a embora.
Ficou a observá-la se movimentar a seu lado, as dobras do cetim balançando enquanto ela dançava. Sua postura firme
e segura o agradava. Percebera logo o recado transmitido pelo vestido, mas ficara a distância porque sabia que ela não
desejava ser cortejada apenas por causa dos seus encantos. Sabia que sua vez chegaria.
Quando ela se endireitou, depois da mesura que encerrava a dança campestre, e enquanto se curvava sobre a mão
dela, esperou por um sinal de Roxane.
— O Coração da Virgem — ela disse. — Você...
.— Desculpe, srta. Costain. — Philo se colocou entre ambos. — Alex, sei que você não ficará zangado por eu me
intrometer, quando souber da aposta. Cosmo e eu estamos aceitando apostas sobre quando Moy-neton anunciará seu noivado
com a srta. Witton. Bertram diz que será hoje à noite, mas Titler acha que ele respeitará as conveniências e só falará na
semana próxima.
— Gostaria de saber o que diria John — comentou Alexander —, se soubesse que vocês estão apostando sobre
assuntos particulares dele.
— Você acha que ele me desafiaria? — Philo esbugalhou os olhos.
— Quando um homem está apaixonado, nunca se sabe o que ele pode fazer. — Alexander riu, olhando
para Roxane.
— Philo — ela perguntou, quando o rapaz começou a se afastar —, já falou com a srta. Gallagher sobre essa
aposta? Deveria falar com ela. Acho que se divertiria muito com isso. — Virou-se para Alexander e sussurrou: — Preciso
falar com você a respeito do Coração...
— Depois. Venha querida — ele respondeu e tomou a mão dela ao ouvir os primeiros acordes de uma valsa. —
Acredito que é nossa dança.
— Mas você acabou de dançar com ela! — Philo ergueu as sobrancelhas. — Assim, serão duas danças
seguidas! — E vendo a piscadela cúmplice do primo, se afastou depressa, para fazer mais uma aposta.
O casal volteou pela pista, ignorando a expressão irada de Howard quando passou ao lado dele, e foi dançando ao
ritmo da música. Com a habilidade de um mestre de danças, Alexander guiou Roxane para a penumbra do jardim de
inverno. Antes que ela pudesse falar, ele tirou a máscara e a beijou tão demoradamente, que ambos tiveram de se separar
para respirar. Ficou a segurá-la, gostando da sensação de tê-la nos braços sem o xale. Seu ombro exposto pedia um beijo.
Acariciou a pele com os lábios e subiu até o pescoço.
— Renda-se, Diana, minha deusa da caça. Sou seu — sussurrou, aspirando seu perfume exótico.
— Alex, amo você — murmurou Roxane, segurando o rosto dele com ambas as mãos, que ele beijou,
primeiro uma e depois a outra.
Finalmente mandou que ela se sentasse num banco e ficou de pé.
Ela representava uma tentação à qual não desejava resistir, mas precisavam conversar e esclarecer coisas.
— Minha querida — falou com um ar possessivo muito satisfatório —, há muito suspeitava que você me
amava. Mas eu era um sujeito pouco confiável e precisava provar que eu a amo pelo que você é, não por causa de seu dote.
Mas você, infelizmente, se enclausurou em Blackmoor Hall, protegida pelo seu pai e pelos seus irmãos. Foi por isso
que a trouxe para cá.
— Você me trouxe para cá!
— Isto mesmo. — Seu olhar não deixava dúvidas. — Eu propus sua vinda.
— Mas John...
— John concordou comigo, mas achava que você não viria. Eu, entretanto, sabia que o amor que você
ocultava só a obrigaria a sair da toca por curiosidade. Caso seu irmão e meu primo não tivessem decidido interferir, poderia
ter cortejado você muito melhor. Quando a vi com John, fiquei louco de ciúme e também receoso que você ainda pudesse
achar que me faltavam... qualidades, para fazê-la feliz. E comecei a me questionar. Eu estava realmente mudado, ou era
apenas um tolo representando o papel de quem deveria ser? — Fitou-a nos olhos. — Vivi de maneira a enganar os outros
e, às vezes, nem eu sabia distinguir qual era a realidade. Mas agora estou aqui, consciente da dor que lhe causei, da
infelicidade que trouxe para nós dois e para pedir seu perdão. E pedir, humildemente, que partilhe minha vida, como espero
poder partilhar a sua. — Ao ver que ela permanecia em silêncio, acrescentou: — Meu passado não existe mais, eu
aprendi... Por favor, Roxane, diga que vai se casar comigo.
— Eu vou — ela disse, e sorriu. — Vou, sim!
Ele abafou um grito de triunfo, e aproximou-se dela, mas não a abraçou.
— Roxane, acho que terá de me ajudar a ser um cavalheiro.
— Mas eu estou procurando um marido — ela respondeu — e não um cavalheiro bem falante mas muito
reticente...
Alexander não lutou mais. Tomou-a nos braços e beijaram-se com a saudade e o amor sufocado durante aqueles
quatro anos de separação. Depois, lembrou-se de que a noite de núpcias ainda não chegara.
— Agora, seja uma boa menina — disse, beijando-lhe a testa. —Vejo que este será um noivado difícil...
— Espero que você seja mais interessante depois do casamento! —provocou ela, maliciosa.
— Não se preocupe — ele respondeu. — Suas orações terão resposta... se eu não a esganar antes de colocar
um anel em seu dedo.
— Ah! O cavalheiro com quem dancei antes de você prometeu me trazer sua cabeça num prato. Estou com
vontade de continuar a caça ao tesouro e acreditar em sua palavra. — Contou, então, tudo que o homem ameaçador
dissera. — O que vamos fazer, Alexander?
— Não precisamos nos preocupar com ele. Depois de copiar os versos da tapeçaria, e alguns eram em latim,
tive o cuidado de arrancar alguns fios: as palavras não são mais as mesmas — disse, rindo. —Precisamos informar John,
ele tem o direito de saber.
— Concordo, mas precisamos fazer isso agora?
— Roxy, no que está pensando?
— Você não quer encontrar o tesouro, afinal, depois de tudo que passamos? Fico desanimada quando penso
em abandonar a busca. Tenho a impressão de que significa bem mais do que apenas receber um prémio. — Hesitou,
emocionada. — A cada novo indício me parece aprender mais alguma coisa, ver as coisas sob um novo ângulo. Não posso
desistir agora. E espero que meu parceiro me acompanhe.
Ele tirou do bolso um pedaço de papel e o entregou a ela.
— Um presente de noivado: o último indício para encontrar O Coração da Virgem.
Roxane desdobrou o papel e leu em voz alta:
— "Os fortes ventos não despreza esse madrugador; enfrenta o sol e atavia-se pomposo na defesa. Ali está O
Coração da Virgem". — Olhou para o vestido de seda. — Me dê um minuto para vestir uma roupa mais pesada. Voltarei
já.
— Isso pode ser perigoso...
— Não será mais perigoso do que as outras vezes. Vamos nos encontrar na capela em vinte minutos. Leve
uma lanterna — lembrou ela. Beijou-lhe o queixo e fugiu, antes que ele pudesse protestar.
Quando chegou na capela, sentiu-se aliviada ao encontrar Alexander a esperá-la. Se tiyesse de esperar por ele,
pensou, poderia perder boa parte da coragem. Mas a luz morna da lanterna e o olhar cálido do noivo a reanimaram.
Estava pronta para enfrentar a aventura.
— O que estamos procurando? — perguntou Roxane enquanto iam para a área de serviço.
— Alguma estátua, acho eu. Mas primeiro teremos de chegar ao teto — sussurrou. — Deve existir uma porta
em algum lugar.
Encontraram a porta depois de algum tempo e a chave-mestra de Alexander serviu para abri-la. No teto o frio era
intenso, e a lua brilhante transformava a paisagem numa terra de sonho. As colinas distantes, ao redor de Rammsford
Abbey, estavam pontilhadas de fogueiras, e o ar vibrava com a magia das crenças populares.
Alexander e Roxane caminharam pelo teto levemente inclinado de
mãos dadas, examinando as defesas de estilo italiano. Encontraram um bom número de ícones decorativos, a
distâncias regulares, mas nada que correspondesse à descrição do último indício. A abadia era muito extensa, e a procura
foi demorada.
— Você tem certeza de que transcreveu e traduziu direitinho? — perguntou Roxane depois de algum tempo. —
Não vejo nada de pomposo, se ataviando...
— Ainda não examinamos a torre, e se não estiver lá, voltaremos à luz do dia. Tê-la a meu lado aquece
meu coração, meu amor, mas o resto de mim está congelado e gostaria de um bom gole de ponche fervente.
Uma escadinha estreita levava à torre que se erguia acima da entrada principal da abadia. Roxane sentiu vertigens
pela altura. Na lateral da torre viu uma estrutura que protegia o mecanismo do relógio e, acima, se elevava o catavento. Alex
ergueu a lanterna para examinar tudo, e Roxane segurou sua mão quando passavam pelo catavento. Um velho galo
orgulhoso brilhou no feixe de luz.
— O madrugador ataviado! — disseram, ao mesmo tempo.
— Pode subir, querido — murmurou ela, pegando a lanterna.
— As coisas que faço por você — comentou Alexander, bem-humorado. — Primeiro os ratos e agora
isto.
Olhou para a parede ao lado do relógio, procurou um ponto de apoio e começou a subir. Roxane se afastou um
pouco, colocou a lanterna no chão e ficou a observá-lo mordendo o lábio. Estava tão concentrada que não ouviu um passo
leve se aproximando e, quando percebeu a presença atrás de si, era tarde demais. Uma mão fechou sua boca, e um braço
envolveu-lhe a cintura. George Smythe a arrastou para a beirada.
— Eu avisei — disse entre os dentes —, e agora terá de pagar pela sua infernal interferência. — Ergueu
Roxane e a levou para a escadinha. — O Coração é meu. Plebeu ou não, é meu de direito. E será só meu.
Ela afundou os dentes na mão dele, que a retirou, e começou a gritar.
— Alex! Socorro! Al...
Smythe apertou-lhe o pescoço, e ela se calou.
Alex desceu o mais rapidamente possível, com o crucifixo na mão. Quando saltou para o teto torceu o tornozelo.
Levantou-se com esforço e tirou uma pistola do bolso.
— Pare aí e solte-a, canalha! — ordenou.
Smythe colocou Roxane em sua frente, como um escudo.
— O Coração pela moça. É uma troca justa — rosnou o homem.— Jogue-o no chão!
Alexander não hesitou um instante, queria ver Roxane livre. Jogou o crucifixo no chão, entre ele e Smythe. Tudo se
passou num segundo.
O administrador empurrou Roxane em direção do parapeito e esticou o braço para apanhar a cruz, enquanto,
cambaleando, o equilíbrio perdido pelo empurrão, ela desaparecia por trás da defesa.

Capitulo XV

Por um instante Alexander permaneceu paralisado, sem acreditar no que acabava de ver. Depois atacou Smythe,
soltando um urro de animal ferido.
O administrador lutou com a intenção de se apoderar da pistola. Ambos se tornaram mais ferozes, quase frenéticos e,
finalmente, o estampido da arma terminou a luta. Smythe desmoronou vagarosamente, segurando o joelho esfacelado.
Amaldiçoou o homem que o observava, mas logo se encolheu, aterrorizado pelo ódio que chamejava nos olhos de Alexander.
Smythe começou a rastejar na direção do Coração da Virgem, para agarrá-lo. Alexander pisou na mão do miserável,
apanhou a cruz e a colocou no bolso.
—Fizemos um trato — comentou friamente Alexander. — Cumpri minha parte, mas você...
Teve vontade de surrar o administrador, mas virou-se e se aproximou da defesa. Precisou fazer um esforço para se
curvar sobre o parapeito: não desejava ver Roxane morta. Hesitou antes de olhar para baixo, para os degraus à frente da
entrada principal, mas não conseguiu ver-lhe o corpo, apesar do luar.
— Roxane! — gritou, dando vazão ao desespero.
— Alex? — A resposta chegou de perto, fraquinha.
Ele teve a impressão de que seu coração parara de bater. Ouviu mais uma vez seu nome, e suas energias voltaram.
Apanhou a lanterna e iluminou a parede. Conseguiu vê-la, um pouco mais embaixo, fora de seu alcance... dobrada de bruços
sobre o mastro que sustentava o enorme estandarte dos Moyneton. Ela se mexeu e Alexander ouviu o ruído ameaçador da
madeira lascando.
— Fique parada, querida. Irei buscá-la.
— Depressa — ela pediu, aflita.
Um grupo de convidados começou a se juntar embaixo.
— Garanto que foi um tiro de pistola —
afirmou o major Costain.— Um militar não se engana sobre o assunto.
— Howard! — alguém chamou de cima.
O major ergueu a cabeça e engasgou. Sua irmã estava suspensa no mastro, a dez ou doze metros de altura, fazendo o
costumeiro papelão.
— Desça já daí, Roxane! — ordenou.
— Howard, você é um idiota — foi a resposta. — Mande alguns homens na torre para ajudar Alex... e depressa!
— Tentou melhorar sua posição, e o mastro se inclinou mais ainda com um violento estalo.
O major esbugalhou os olhos quando compreendeu a situação. Dividiu os homens em dois grupos: mandou o primeiro
para o teto com cordas, sob a direção de Phipps, e mandou os outros trazerem da casa algo que pudesse amortecer uma queda.
Cosmo, Philo, Bertram e outros jovens cavalheiros apareceram com uma grande tapeçaria. Manobraram ao lado da
torre até conseguir a posição certa embaixo de Roxane, e esticaram o tapete enorme, segurando-o com firmeza.
— Pode pular, srta. Costain — gritou Cosmo. — Estamos aqui para ampará-la.
— Não, não, não faça isso! — Lady Moyneton chegou correndo. — Não pule na tapeçaria Mortlake. — Usou o
leque para bater em seus sobrinhos. — Estão loucos? Não seria possível substituir esta peça. Não pule, Roxane! Tenha
paciência, queridinha. Olhe, Alex está descendo para apanhá-la.
O grupo de espectadores soltou exclamações ao ver Alex, amarrado numa corda, descer pela parede. Ele conseguiu
chegar muito perto de Roxane, que esticou um braço, mas sem resultado. O mastro se inclinou mais um pouco e voltou a
estalar. Faltava pouco para quebrar de vez.
— Roxane — ele falou da maneira mais calma possível. — Você precisa fazer o que eu disser... sem protestos e
sem demora. Olhe, vou descer mais um pouco.
Ela esticou o braço ao vê-lo passar.
— Fique quieta — ele mandou, enquanto tomava posição logo embaixo dela. — Agora quero que você se solte
e deslize para baixo, deixando que o peso de... de seu traseiro ajude você a cair.
— Não posso.
— Você me confiou seu amor, agora confie-me sua vida. Venha, Roxy.
Deslize para meus braços.
Durante um instante pareceu que ela deslizaria para a morte, mas Ale-xander a segurou, e eles ficaram enlaçados de
maneira muito pouco decorosa. Ela se acalmou ao ouvir suas palavras de conforto.
O peso de ambos fez a corda descer de repente. Os espectadores soltaram gritos de espanto, mas logo a corda se firmou.
Exclamações de alegria saudaram o casal quando recomeçou a descer devagar. Quando seus pés ficaram firmes sobre o solo,
eles trocaram um beijo tão demorado que o major Costain quase teve um ataque.

E a festa não acabou. As danças continuaram depois da ceia. Então, O Coração da Virgem foi entregue oficialmente a
lorde Moyneton, na presença de todos os convidados e da criadagem, entre muitos aplausos. O irmão Joseph e Dolf seguiram o
cortejo até a capela, para que a cruz pudesse ser colocada em seu lugar. Cosmo parecia o mais feliz de todos: o Monge Branco
descansaria em paz. O crucifixo retirado da capela por sir Jonathan, por brincadeira, estava de volta.
Cosmo, aliás, ostentava a pose de um homem com os bolsos cheios de dinheiro.
— Há muito tempo não ganhava uma aposta — disse a Philo, o perdedor. — Acho que minha sorte mudou!
— Como é que você sabia que se beijariam ao chegar ao chão? —perguntou Philo.
— Porque sou um estudioso da natureza humana.
Estufou o peito enquanto observava que o conde mantinha a srta. Witton a seu lado, quando se despedia de seus
convidados da noite. E viu os olhares carinhosos entre Alexander e a srta. Costain.
— Aposto que Alexander anunciará seu noivado antes de John. O preço da oposta é um cavalo! — propôs,
todo animado.
— Feito! — concordou Philo.
Quando o último convidado partiu, Alexander e Roxane continuaram no hall com seu grupo. O dia clareava, mas
ninguém parecia estar com sono.
Num canto, Alexander pegou na mão de Roxane e a levou aos lábios.
— Um homem nunca sabe até que ponto aprecia alguém até que acredita ter perdido essa pessoa — disse. —
Roxane, espero nunca mais passar por uma experiência como essa. Pensei duas vezes que a perdera e isto é o bastante para o
resto de minha vida. Preciso de você e não pretendo esperar muito para tê-la.
— Nesse caso, não seria oportuno fazer uma declaração nesse sentido? — ela perguntou, mostrando que
concordava.
Então, ele levantou a voz, para que todos ouvissem.
— Desejo anunciar a todas as damas e cavalheiros que a srta. Costain mais uma vez concordou em fazer de mim
o mais feliz dos homens.
Philo gemeu e colocou um rolo de notas na mão estendida de Cosmo.
— E para garantir que ela não me largue pela segunda vez — continuou Alexander —, vou sair agora mesmo
para pedir a bênção de meu futuro sogro e tirar uma licença especial de casamento.
Howard deu uma palmada nas costas de Titler.
— Os milagres ainda acontecem! — exclamou.
Entre os muitos que a cercavam para dar-lhe os parabéns, Roxane recebeu o abraço de Faith Witton.
— Meu pai poderia ajudar em conseguir a licença especial — disse.
Lorde Moyneton gostou muito da ideia.
— Alex, vamos juntos, no meu fáeton. Quero visitar o pastor hoje mesmo. Para discutir um assunto
confidencial.
— Aposto que Moyneton terá um herdeiro antes de Alex — gritou Philo.
— Aposto em Alex — retrucou Cosmo. — Afinal, serei o padrinho da criança.
Quando trouxeram o veículo e os homens se preparavam para partir, todos saíram para as despedidas, até os criados.
John colocou um beijinho circunspecto no pulso de Faith, mas depois, sob os olhares escandalizados de sua mãe, abraçou-a e
a beijou. Todos bateram palmas.
Alexander, contrariado por ter de se afastar de Roxane, apertou-a entre os braços, deu-lhe um beijo apaixonado e
muito demorado.
— Amo você — murmurou.
A aposta começou a parecer bem mais favorável a Cosmo...

FIM

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