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A MEMORIA BIOCULTURAL

Book · December 2019

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2 authors:

Víctor M. Toledo Narciso Barrera-Bassols


Universidad Nacional Autónoma de México University of Twente
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Description and diagnosis of the use of songbirds in Mexico from the perspective of ethnoecology View project

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A MEMÓR I A BIOCU LTUR A L
A importância ecológica das sabedorias tradicionais

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VÍCTOR M. TOLEDO
NARCISO BARRER A-BASSOLS

A MEMÓR I A BIOCU LTUR A L


A importância ecológica das sabedorias tradicionais

1ª edição

EDITOR A
EXPRESSÃO POPULAR

AS-PTA

São Paulo • 2015

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© 2015 AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
Copyright © Editora Expressão Popular

Coordenação editorial: Paulo Petersen


Tradução: Rosa L. Peralta
Revisão: Maria Elaine Andreoti
Revisão Técnica da Tradução: Paulo Petersen
Projeto gráfico e diagramação: ZAP Design
Impressão e acabamento: Cromosete

APOIOS:
Instituto Federal do Pará - Campus Castanhal
Rod. BR 316, Km 62 - Castanhal-PA
CEP 68740-970

Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia)


Departamento de Fitossanidade da UFRGS
Av. Bento Gonçalves, 7712, Porto Alegre-RS
CEP 91540-000

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1a edição: abril de 2015

EDITOR A EXPRESSÃO POPULAR AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia


Rua Abolição, 201 – Bela Vista Rua das Palmeiras 90, Botafogo
CEP 01319-010 – São Paulo – SP CEP 22270-070 - Rio de Janeiro-RJ
Fone: (11) 3522-7516 / 3105-9500 Fone: (21) 2253-8317
editora.expressaopopular.com.br www.aspta.org.br
livraria@expressaopopular.com.br https://www.facebook.com/asptaagroecologia
www.facebook.com/ed.expressaopopular

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SUM Á R IO

Agradecimentos ...................................................................... 9
Agroecologia: um antídoto contra
a amnésia biocultural.............................................................. 11
Paulo Petersen
Prólogo da versão brasileira................................................... 17
Introdução................................................................................ 23
I. O que é memória biocultural? ........................................... 27
II. O teatro da memória: cenários e atores .......................... 43
III. Os conhecimentos tradicionais: a essência
da memória.............................................................................. 85
IV. O que são as sabedorias tradicionais?
Uma abordagem etnoecológica............................................. 129
V. Agroecologia e sabedorias tradicionais:
um panorama mundial .......................................................... 149
VI. Globalização, memória biocultural e
agroecologia............................................................................. 233

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Onde está o conhecimento que
perdemos com a informação? Onde
está a sabedoria que perdemos com o
conhecimento?
T. S. Eliot

Uma inteligência incapaz de


considerar o contexto e o complexo
planetário fica cega, inconciente e
irresponsável.
Edgar Morin

Tudo aquilo que se faz destruindo


a tradição acaba se incendiando.
Xamã Purépecha

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AGR A DECIMENTOS

O livro que o leitor tem em mãos é o resultado de pesquisas pessoais


conduzidas pelos autores por várias décadas e de reflexões e análises
conjuntas desenvolvidas durante cinco anos, incluindo alunos de dois
cursos. Sua elaboração contou com a valiosa colaboração de Pablo
Alarcón-Chaires e de Carolina Pinilla. Ao primeiro, devemos a maior
parte de ilustrações, gráficos e tabelas, bem como agradecemos pelas
pesquisas pontuais de informação, revisão do manuscrito e assessoria
técnica diversa. À segunda, apreciamos sua ajuda inestimável na pes-
quisa, tradução e redação dos textos. Os autores também agradecem
a Pedro Urquijo por sua colaboração, assessoria e, especialmente, pela
criteriosa revisão da última versão do manuscrito. Agradecemos enor-
memente a Manuel González de Molina por seu apoio e paciência que
tornaram possível esta obra. O segundo autor deseja expressar seu agra-
decimento pelo apoio financeiro recebido através do projeto PAPIIT
IN306803-6 Saberes locais e o manejo da diversidade ecogeográfica em
áreas rurais de tradição indígena. Finalmente, os autores agradecem o
apoio institucional da Universidade Nacional Autônoma do México.

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AGROECOLOGI A: UM A NTÍDOTO
CONTR A A A MNÉ SI A BIOCULTUR A L

Paulo Petersen*

Amnésia biocultural, uma bela definição dos autores deste livro para
descrever um dos efeitos mais perniciosos da modernização agrícola,
um projeto político-ideológico imposto a partir da segunda metade do
século XX com a promessa de levar o progresso e o desenvolvimento ao
mundo rural e libertar a humanidade em definitivo do flagelo da fome.
Nos marcos desse projeto, o desenvolvimento da agricultura é con-
cebido como resultado imediato da incorporação de tecnologias capazes
de superar o atraso do meio rural em relação às atividades urbano-
-industriais. Trata-se da imposição de uma racionalidade econômica
centrada no lucro, na produção em escala, na especialização funcional,
no individualismo e na competição, rotulando como atrasadas todas as
visões e vivências incongruentes com o paradigma agrícola moderno.
Diante do contexto político-institucional moldado segundo os
preceitos da modernização, as especificidades locais, conferidas pelo
caráter peculiar dos ecossistemas e das culturas rurais, deixam de fun-
cionar como centro gravitacional das dinâmicas de inovação técnica e
social. A noção de arte da localidade, que bem descrevia a Agronomia

* Coordenador Executivo da AS-PTA e membro da Diretoria da ABA-Agroecologia.

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Pa u l o P e t e r s e n

clássica, perde sentido com a emergência da racionalidade tecnocrática


e generalista. Desde então, parâmetros técnicos e econômicos prescritos
pelas modernas ciências agrárias passaram a determinar as rotinas de
trabalho na agricultura pela via dos mercados.
Um verdadeiro memoricídio cultural se processou em decorrência
dessa ruptura histórica que tornou irrelevante a produção local de
conhecimentos, bem como a sua transmissão entre as gerações de
agricultores. No entanto, embora essa racionalidade procure se impor
ao eliminar os espaços de manobra para o exercício da criatividade e
da espontaneidade dos atores locais, sua implantação não se fez sem
que diferentes formas de resistência e de recriação cultural fossem
ativadas. Onde se pretendeu incutir uniformização crescente e irre-
versível, assistimos novas expressões de diferenciação cultural e novas
formas de organização do trabalho e da vida social. Povos indígenas
e comunidades tradicionais lutam por seus territórios ancestrais de
pleno direito e constroem suas próprias formas de integração com o
conjunto da sociedade nacional. Comunidades camponesas se reinven-
tam para assegurar e ampliar suas margens de autonomia em relação
ao ordenamento empresarial imposto pelo agronegócio. Entre outros
pontos comuns, tais povos e comunidades enfrentam os novos desafios
colocados pela modernização, ativando suas memórias coletivas para
definir estratégias inovadoras em defesa de seus meios e modos de vida.
Interpretadas pelo prisma hegemônico da teoria da modernização,
essas resistências locais são consideradas arcaicas e irracionais, colocando-
-se, portanto, como obstáculos ao desenvolvimento a serem removidos.
Ao enxergar irracionalidade onde existem outras racionalidades, os arautos
da modernização reproduzem o que sociólogo Boaventura Sousa Santos
denominou de razão indolente,* uma forma de apreensão do mundo

* SOUSA SANTOS, B. A crítica da razão indolente; contra o desperdício da


experiência. São Paulo: Cortez, 2005.

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Agroecologia: um antídoto contr a a a mnésia biocultur al

insensível às ricas e diversificadas experiências sociais que milenarmente


alimentaram (e ainda alimentam) a heterogênese das agriculturas no
planeta. Para Boaventura, a razão indolente comprime o presente e expande
o futuro, ou seja, estreita o campo de visão sobre as realidades contem-
porâneas e projeta um futuro longínquo previamente determinado por
leis de funcionamento da natureza e da sociedade sistematizadas a partir
dos paradigmas científicos dominantes. Segundo essa concepção, o fu-
turo deixa de ser entendido como uma construção social ancorada nos
horizontes de possibilidades criados no passado e no presente. Por outro
lado, as ações do presente passam a ser disciplinadas por projetos que se
impõem a partir de um restrito conjunto de parâmetros que delimitam
trajetórias lineares em direção a um futuro teoricamente preestabelecido.
Essa perspectiva positivista da História que encontra sua síntese na
noção de modernização agrícola funcionou como alavanca ideológica
para legitimar novos mecanismos de coesão social no mundo rural.
Com isso, cria-se uma miragem de um futuro supostamente virtuoso,
que depende mais da ciência e menos das memórias e identidades co-
letivas. Dessa forma, na orientação do devir histórico, a racionalidade
dos meios técnico-científicos se sobrepõe à racionalidade dos fins
subjacentes aos projetos de sociedade. A partir dessa inversão entre
fins e meios, fenômeno que Max Weber denominou racionalização, a
tecnociência assume papel preponderante como força social na con-
formação do futuro.
Em face da crescente interdependência estabelecida entre as ciên­
cias agrárias e os mercados, bem como do progressivo controle da
ciência institucionalizada por corporações transnacionais, essa força
social passou a ser orientada por uma perspectiva econômica restrita
ao objetivo de produzir mais-valia em escalas crescentes e ilimitadas.
Dessa forma, a busca do lucro por um número cada vez mais reduzi-
do de empresas passou a operar como um dos principais motores da
História da agricultura.

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Pa u l o P e t e r s e n

Nessa nova gramática do tempo,* as memórias bioculturais tornam-


-se elementos supérfluos e descartáveis, enquanto a modernização
agrícola se mostra um experimento duplamente descontrolado. De
um lado, porque suas promessas não se confirmaram. Ao contrário,
a imposição de um padrão metabólico que desconectou os sistemas
agroalimentares da natureza e das culturas regionais desencadeou
verdadeiras tragédias sociais e ecológicas. Por outro lado, o descontrole
se verifica na ausência de mecanismos de regulação institucional que
impeçam o crescente controle dos sistemas agroalimentares por um
número limitado de empresas que se movem globalmente e à revelia
dos interesses da sociedade, impondo-se como verdadeiros impérios
alimentares.**
As bases culturais e ecológicas que permitiram que a civilização
chegasse ao estágio atual vêm sendo dilaceradas, gerando um perigoso
aumento da vulnerabilidade das modernas sociedades. Reconstruir
essas bases é uma condição urgente para a superação da crise de civi-
lização que ameaça o futuro da espécie.
Produzir antídotos contra a amnésia biocultural é, portanto, um
elemento chave para a construção de um paradigma alternativo que
permita criar atalhos para a saída da crise. Utilizando a imagem em-
pregada por Sousa Santos, trata-se, antes de tudo, de dilatar o presente
por meio do reconhecimento e da revalorização das experiências sociais
desenvolvidas a partir da coprodução natureza-cultura. Essas experi-
ências vêm sendo literalmente desperdiçadas como fontes de sabedoria
e inspiração para a superação dos críticos impasses civilizacionais.
Este livro deixa claro que os povos indígenas e as comunidades
camponesas do mundo são os principais guardiões da memória biocul-

* SOUSA SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São
Paulo: Cortez, 2006.
** PLOEG, J. D van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e
sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008.

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Agroecologia: um antídoto contr a a a mnésia biocultur al

tural de nossa espécie. Baseados na síntese de pesquisas realizadas em


diferentes campos disciplinares e em várias regiões do planeta, Víctor
Toledo e Narciso Barrera-Bassols apresentam evidências inequívocas
de que a reconexão entre a agricultura e a natureza só será possível
por meio de dinâmicas coevolutivas fundadas no que eles definem
como o axioma biocultural, que pressupõe que a diversidade biológica
e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em
contextos geográficos definidos.
A agricultura camponesa é a principal força social que molda
dialeticamente essas construções bioculturais. Sempre que operando
com margens de liberdade suficientes para reproduzir seus modos de
produção e de vida, o campesinato estabelece metabolismos socioeco­
lógicos de elevada sustentabilidade e resiliência, uma vez que seus
arranjos técnico-institucionais se baseiam em um conjunto de princí-
pios comuns ao funcionamento da natureza: a diversidade; a natureza
cíclica dos processos; a flexibilidade adaptativa; a interdependência; e
os vínculos associativos e de cooperação.
Esses princípios inscritos nas memórias bioculturais são vetores
que impulsionam as trajetórias da inovação camponesa. Essa é a razão
pela qual os autores ressaltam a importância das sabedorias tradicionais
como elos entre o passado, o presente e o futuro da Humanidade.
Defender as memórias e cultivar as sabedorias são tarefas urgentes
que cobram um enfoque científico pautado por uma epistemologia
fundada no diálogo de saberes: a Agroecologia.

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PRÓLOGO DA V ER SÃO BR A SILEIR A

O mundo de hoje, globalizado, tecnocrático, pragmático e ver-


tiginoso, sofre de uma sequência acumulada de crises cada vez mais
agudas que, no fundo, são a expressão de uma crise geral ou estrutural,
uma crise de civilização. O principal problema é a tendência a viver
sob a tirania de um presente estendido, quase sempre mantido pelas
expectativas de seu próprio futuro. Um futuro que nunca chega e que
não permite vislumbrar outros futuros, os daqueles que procuram se
soltar das rédeas dessa perversa modernidade com seus próprios projetos
de vida. Assim, a sociedade moderna padece de amnésia, um traço
que se faz mais evidente entre os setores urbanos e industriais mais
sofisticados, os quais tendem a perder a sua capacidade de recordar.
O primeiro sinal de esquecimento é o fato de os indivíduos
modernos já não admitirem que são membros de apenas mais uma
espécie biológica no planeta. Ignoram, portanto, que existiram e que
existem outras formas de se relacionar com a natureza – ou com o
que não é humano –, assim como há diversas maneiras de se orga-
nizar como coletivos sociais a partir de outros sistemas de valores,
de outro ethos. Igualmente desconhecem que as sociedades humanas
conseguiram persistir ao longo do tempo ao estabelecer uma certa
aliança com a natureza – ou, poderíamos dizer, com as naturezas –,

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

através de um processo recíproco, de um fenômeno de coevolução.


Hoje, a sociedade moderna ou, mais precisamente, o modelo social
dominante se restringe a imitar ou a reproduzir uma única forma de
observar, conhecer e conviver com o mundo, isto é, com os demais
seres vivos (e não vivos), assim como com os processos ecológicos,
locais, regionais e globais do planeta, que é o nosso habitat. Esse
modelo hegemônico repousa sobre uma ideia de subjugar os não
humanos (o chamado mundo natural), visão que, de certa forma,
corresponde às formas de dominação que subsistem no interior da
própria sociedade contemporânea.
A mensagem central de nosso livro é mostrar a cegueira da mo-
dernidade e a sua incapacidade de recordar, o que, consequentemente,
torna necessário volver o olhar para os povos originários, tradicionais
ou indígenas, em cujos modos de vida – materiais e imateriais – é
possível encontrar a memória da espécie. E é nessa memória que está
boa parte das chaves para decifrar, compreender e superar a crise dessa
modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com
os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos
e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas.
A memória permite que os indivíduos lembrem de eventos do
passado, ajuda a compreender o presente, fornece elementos para o
planejamento do futuro e serve para reconstituir eventos similares
ocorridos anteriormente e até mesmo inesperados, improváveis ou
surpreendentes. Os indivíduos, as sociedades e a espécie humana pos-
suem, cada um, a sua própria memória. A memória da espécie permite
revelar as relações que a humanidade tem estabelecido com a natureza,
sua base de sustentação e referencial de sua própria existência, ao longo
da história, que remonta a uns 200 mil anos.
A memória da espécie humana é, pelo menos, tripla: genética,
linguística e cognitiva, e se expressa na variedade de genes, línguas
e saberes. As memórias genética e linguística guardam o registro da

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A memór i a biocu lt ur a l

expansão dos seres humanos pelos diferentes hábitats do planeta, um


processo de colonização de territórios que levou várias dezenas de
milhares de anos. A memória cognitiva, a menos explorada, revela as
maneiras como as sociedades humanas foram se adaptando a cada uma
das condições desses hábitats. Essa memória é biocultural e vem sendo
mantida pelos 7.000 povos tradicionais, indígenas ou originários que
hoje existem, subsistem e persistem.
Nosso livro fala de tudo isso, com base na síntese de inúmeros
estudos, além de abordar aspectos culturais, sociais, ambientais, po-
líticos e epistemológicos (como a construção e o avanço de uma nova
transdisplina: a Etnoecologia). A publicação de uma edição brasileira
de nossa obra nos causa enorme satisfação não apenas porque o Brasil se
encontra entre os dez países com maior riqueza biocultural do planeta,
mas porque nas universidades brasileiras existem núcleos acadêmicos
cada vez mais numerosos e produtivos dedicados a estudar os povos
tradicionais, ao ponto de ser o país que hoje abriga o maior número de
pesquisadores trabalhando nos campos da Etnoecologia, da Etnobio-
logia e da Etnoedafologia. Além disso, nesse gigantesco território, que
abrange a metade da América do Sul, os povos indígenas ocupam, em
conjunto, um território equivalente à metade da superfície mexicana,
com cerca de 100 milhões de hectares, embora representem apenas
0,5% (isto é, quase um milhão de pessoas) da população total do
país. Destaca-se que os territórios históricos desses povos indígenas e
comunidades tradicionais são os ecossistemas antropizados nos quais
se localizam as áreas ambientalmente mais conservadas do país, razão
pela qual muitas delas vêm sendo destinadas a criação de unidades de
conservação ambiental em detrimento dos direitos territoriais daqueles
que por gerações souberam reproduzir seus meios de vida em harmonia
com a natureza. Enquanto isso, a dinâmica expansiva do agronegócio
degrada os ecossistemas, reproduzindo um padrão de ocupação agrária
de terras sem gente e gente sem terra.

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Cumpre também ressaltar o importante papel desempenhado pe-


las novas culturas resultantes da mestiçagem entre povos originários,
descendentes de europeus e população de ascendência africana. Essa
nova onda de recriação cultural, que torna o Brasil particularmente
diverso, faz com que o estudo da memória biocultural se estenda
para além dos povos indígenas, incluindo outros grupos, como os
seringueiros, camponeses, caboclos, caiçaras, pantaneiros, quilombolas e
pescadores artesanais. Outro novo paradigma pelo qual o Brasil ganha
destaque é o que estabelece que a conservação da biodiversidade deve
se realizar em plena sintonia e com a participação das comunidades
locais, pertencentes a diversas culturas.
Com uma biota estimada entre 1,4 e 2,4 milhões de espécies, o
Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo, possuindo também
uma das mais vastas redes de reservas naturais. Ao contrário do que se
supõe, a metade das mais de 900 áreas protegidas no Brasil é de proteção
integral, enquanto a outra metade é destinada ao uso ou aproveitamento
sustentável. Em outras palavras, encontram-se historicamente habita-
das, e as populações locais participam da conservação mediante o uso
não destrutivo dos recursos bióticos. As áreas estritamente protegidas
(parques nacionais, reservas biológicas, estações ecológicas, refúgios
de vida silvestre etc.) totalizam 37 milhões de hectares, enquanto que
as reservas de uso sustentável abrangem um total de 74,6 milhões de
hectares, principalmente reservas extrativas e áreas de proteção am-
biental, ou seja, quase dois terços do território protegido.
Há ainda uma última dimensão da realidade brasileira com a qual o
conteúdo deste livro se relaciona: o tema agrário. O Brasil é um dos países
com maior desigualdade agrária do mundo. Enquanto 76% das terras
agrícolas estão nas mãos do setor latifundiário, que produz alimentos e
outras matérias-primas sob o modelo agroindustrial, a superfície restante
(24%) cabe a 84% dos proprietários rurais: os agricultores familiares que
se dedicam essencialmente a produzir alimentos. O paradoxo revelado

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A memór i a biocu lt ur a l

recentemente, não apenas no Brasil, mas também no resto do mundo,


é que os pequenos agricultores, isto é, os camponeses e agricultores
familiares, geram 70% dos alimentos que são consumidos por uma
população de 7,3 bilhões de indivíduos. Esse fato levou a Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla
em inglês) a declarar 2014 como o Ano Internacional da Agricultura
Familiar. O reconhecimento, o resgate e a revalorização das sabedorias
tradicionais, tema central de nosso livro, tornam-se fundamentais no
desenho agroecológico de modelos de produção de alimentos sadios,
de pequena escala, que não sejam prejudiciais à saúde do planeta e dos
seres humanos. No Brasil, há uma enorme sede de justiça agrária. No
entanto, o futuro do campo exige não só uma melhor distribuição da
propriedade da terra, mas também uma reconversão agrícola, tudo isso
tendo como fundamento o reconhecimento da memória biocultural de
seus povos indígenas, assim como de suas culturas tradicionais.
O trabalho realizado por um número crescente de pesquisadores,
técnicos, comunidades, organizações sociais, ONGs e órgãos gover-
namentais tem aberto um campo fértil para a transição agroecológica
no Brasil e em outras partes do planeta. Nesse processo, a emergência
política de povos e comunidades tradicionais nos âmbitos urbano
e rural abre caminhos para o pleno reconhecimento da estratégica
importância das práticas de manutenção, revalorização e adaptação
híbrida contidas na memória biocultural desses e outros atores políticos.
Certamente surgem tensões neste percurso de querer demonstrar a
vigência de outros modos de habitar o planeta e de suas epistemologias
até hoje subjugadas. No entanto, não restam dúvidas de que o trabalho
para dar visibilidade à íntima relação existente entre a memória biocul-
tural e a Agroecologia de nossos países latino-americanos teve como
base o pioneirismo de nossos colegas e irmãos e irmãs brasileiras que
nos têm ajudado a ampliar nossas esperanças, construindo de forma
participativa e inclusiva outros mundos possíveis.

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Nessa empreitada, não podemos deixar de manifestar a nossa
profunda gratidão a José A. Costabeber (que descanse em paz), um
dos pilares do pensamento agroecológico brasileiro, desejando que a
tradução desta obra se torne uma pequena homenagem a seu enorme
legado. Também expressamos nosso profundo agradecimento a Paulo
Petersen, a Romier Sousa e à editora Expressão Popular por suas valio-
sas contribuições para que este livro fosse traduzido para o português.
Dessa forma, nosso maior desejo é continuar ampliando o Sul a partir
do nosso próprio Sul.
Víctor M. Toledo
Morelia, Michoacán, México

Narciso Barrera-Bassols
Santiago de Querétaro, Querétaro, México

Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, U. P. de; CHAVES-ALVES, A. G.; ARAÚJO, T. A. S. (Eds).
Povos e paisagens: etnobiologia, etnoecologia e biodiversidades no Brasil. Recife:
NUPEEA/UFRPE, 2007. 148 p.
LEWINSOHN, TY. M.; PR ADO, P. I. How many species are there in Brazil?
Conservation Biology, v. 19, p. 619-624. 2005.
RYLANDS, A. B.; BRANDON, K. Brazilian protected areas. Conservation Biology,
v. 19, p. 612-618, 2005.
TOLEDO, V. M. 2001. Biodiversity and indigenous peoples. In: LEVIN, S. et al.
(Eds.). Encyclopedia of Biodiversity. EUA: Academic Press. p. 1181-1197.
TOLEDO, V. M.; BARRER A-BASSOLS, N. A etnoecologia: uma ciência pós-
-normal que estuda as sabedorias tradicionais. Desenvolvimento e Meio Ambiente,
v. 20, p. 7-27, 2009.

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INTRODUÇ ÃO

A memória permite que os indivíduos se lembrem de eventos do


passado. Assim como os indivíduos, as sociedades têm uma memória
coletiva, uma memória social. Em ambos os casos, a capacidade de
lembrar é fundamental porque ajuda a compreender o presente e,
portanto, fornece elementos para o planejamento do futuro, bem
como serve para reconstituir eventos semelhantes que ocorreram an-
teriormente e até mesmo eventos inesperados. Da mesma forma que os
indivíduos e os povos, a espécie humana tem uma memória, que nesse
caso permite revelar as relações que a humanidade tem estabelecido
com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua existência
ao longo da história. Embora, em teoria, todas as espécies tenham
uma memória que lhes permite se manter e sobreviver no contexto
em constante transformação da história natural, a espécie humana é
a única que pode, de forma consciente, remontar as recordações que
compõem sua própria história com a natureza.
A memória da espécie humana pode ser dividida em, pelo menos,
três tipos: genética, linguística e cognitiva, sendo expressa na variedade
ou diversidade de genes, línguas e conhecimentos, ou sabedorias. As
duas primeiras expressões de heterogeneidade do ser humano, que têm
sido suficientemente documentadas por meio da pesquisa genética e

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

linguística, permitem traçar a história da humanidade, situando-a em


diferentes contextos espaciais, ecológicos e geográficos (Shreeve, 2006;
Maffi, 2005). A terceira, muito menos explorada, sintetiza e explica
essa história, ao revelar as maneiras como os diferentes segmentos da
população humana foram se adaptando à grande variedade de condi-
ções (especiais, concretas, específicas, dinâmicas e únicas) da Terra.
As duas primeiras dimensões certificam uma história entre a hu-
manidade e a natureza, enquanto a terceira oferece todos os elementos
para compreender, avaliar e qualificar essa experiência histórica. Em
conjunto, testemunham uma série de recordações, ou seja, configu-
ram um arquivo histórico ou, em suma, uma memória. A busca pela
memória de nossa espécie em todos os cantos do mundo acaba por
reconhecer que, hoje, ela pode ser encontrada em meio às chamadas
sociedades tradicionais e, mais especificamente, entre os povos indí-
genas do mundo.
Tal como acontece com muitos outros aspectos da realidade, a me-
mória da espécie, resultante do encontro entre o biológico e o cultural,
vem sendo seriamente ameaçada pelos fenômenos da modernidade:
principalmente pelos processos técnicos e econômicos, mas também
por fatores ligados à informática e ao âmbito social e político.
Este livro pretende desvendar a essência, a estrutura e a dinâmica
da memória (biocultural) da espécie humana, considerar seus pontos
fortes e fracos, revelar a sua importância ou transcendência para o fu-
turo da humanidade e identificar as várias ameaças que pairam sobre
ela. Para realizar esta análise, tomamos como referência a perspectiva
agroecológica, que cobra uma mudança radical na forma como os
seres humanos se apropriam dos bens e serviços da natureza e propõe
modos alternativos de produção, circulação, transformação e consumo
dos alimentos e de outras matérias-primas necessárias para a sociedade.
Tentando superar a amnésia dos sistemas agroindustriais, a
agroecologia reconhece nessas linguagens de longa data, que ainda

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A memór i a biocu lt ur a l

sobrevivem nas mentes e mãos dos membros das culturas rurais, um


arsenal mnemônico de valor imensurável. Em última análise, é nessas
sabedorias milenares, amplamente ignoradas, aviltadas ou mal inter-
pretadas, que encontraremos as chaves para enfrentar a atual crise
ecológica e social desencadeada pela revolução industrial, pela obsessão
mercantilista e pelo pensamento racionalista.
Diante da crise ecológica e social do mundo contemporâneo, torna-se
fundamental identificar e reconhecer essa memória biocultural da espécie
humana, uma vez que permite adquirir uma perspectiva histórica mais
abrangente, revelar os limites e preconceitos epistemológicos, técnicos e
econômicos da modernidade e visualizar soluções de escala civilizatória
para os problemas atuais.

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I. O QUE É MEMÓR I A
BIOCULTUR A L?

Antes de sermos seres sociais, fomos, somos e continuaremos a


ser uma espécie biológica a mais dentro do rol da diversidade natural
composta por milhões de organismos, pois à nossa essência animal
foi adicionada, sem substituí-la, o traço social. Nós, humanos, somos
essencialmente seres sociais que continuam existindo não apenas por seus
vínculos societários, mas também por seus vínculos com a natureza,
uma dependência que é tão universal quanto eterna. Na perspectiva do
tempo geológico, que se mede em períodos de milhões de anos, toda
espécie sobrevive em função de sua capacidade de continuar a aprender
com a sua experiência adquirida ao longo do tempo.
Apesar de seu tamanho descomunal (o número de membros hoje
se aproxima dos 7,3 bilhões), de sua linhagem excepcional (cujas
principais características são o tamanho de seu cérebro e o advento de
uma consciência) e de seu poder de transformar o hábitat planetário
(resultado do enorme desenvolvimento de conhecimentos e tecnolo-
gias), a espécie humana ainda precisa, para sobreviver e superar seus
desafios atuais, de uma memória que lhe informe sobre sua passagem
pelo planeta durante os últimos 200 mil anos.
Se o Homo sapiens conseguiu permanecer, colonizando e expan-
dindo a sua presença na Terra, é porque foi capaz de reconhecer e

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aproveitar os elementos e processos do mundo natural, um universo


que encerra uma característica essencial: a diversidade. Essa habili-
dade se deve à manutenção de uma memória, individual e coletiva,
que conseguiu se estender pelas diferentes configurações societárias
que formaram a espécie humana. Esse traço evolutivamente vanta-
joso da espécie humana tem sido limitado, ignorado, esquecido ou
tacitamente negado com o advento da modernidade, que constituiu
uma era cada vez mais orientada pela vida instantânea e pela perda
da capacidade de recordar.
Identificada pela velocidade vertiginosa das mudanças técnicas,
cognitivas, informáticas, sociais e culturais que impulsionam uma
racionalidade econômica baseada na acumulação, centralização e
concentração de riquezas, a era moderna (consumista, industrial e
tecnocrática) tornou-se uma época prisioneira do presente, dominada
pela amnésia, pela incapacidade de se lembrar tanto dos processos
históricos imediatos quanto daqueles de médio e longo prazo.
Essa deficiência está relacionada a uma ilusão alimentada por
uma espécie de ideologia do progresso, do desenvolvimento e da
modernização que não tolera nenhuma forma pré-moderna (e, em
sentido estrito, pré-industrial), que é automaticamente qualificada
como arcaica, obsoleta, primitiva e inútil. Essa avaliação ideológica,
que faz da modernidade um universo autocontido, autojustificado e
autodependente, volta-se contra sua própria existência ao suprimir
sua capacidade de reconhecer o passado, isto é, ao abrir mão de uma
consciência de espécie que é ao mesmo tempo uma consciência histó-
rica baseada em uma característica que vai além do fenômeno humano
e alcança todas as dimensões da realidade do planeta: a diversidade.

A diversificação como processo evolutivo


Diversificar é o ato de dar forma ou conferir qualidades a certos
elementos, para aumentar a variedade de uma determinada realidade.

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A diversidade exalta a variedade, a heterogeneidade e a multiplicidade,


sendo o oposto de uniformidade. Do ponto de vista termodinâmico, a
ordem, que é a complexidade que existe no universo, aumenta propor-
cionalmente a diversidade, um princípio expresso na chamada teoria da
informação. Por essa razão, a evolução cósmica postula que a variedade
aumenta à medida que a ordem aumenta. A história da Terra tem sido,
em geral, uma história bastante longa de diversificação, e esse processo
tem se produzido em diferentes escalas, ritmos e períodos de tempo.
Portanto, a partir de uma perspectiva de longo prazo (escala geológica
de tempo), a diversificação é sinônimo de evolução.
Atualmente, é possível identificar no planeta dois tipos principais
de diversidade, a biológica e a cultural, as quais, juntas, dão origem
a pelo menos outros dois tipos: a diversidade agrícola e a diversidade
paisagística. A diversidade cultural inclui, por sua vez, três modali-
dades de heterogeneidade: a genética, a linguística e a cognitiva (ver
mais adiante); enquanto que a biológica é frequentemente expressa
em quatro níveis: das paisagens (naturais), dos hábitats, das espécies
e dos genomas.

A primeira onda: a diversificação biológica


A origem dos seres vivos na Terra remonta a aproximadamente 3,5
bilhões de anos (data dos registros mais antigos de fósseis de bactérias).
Desde então, os organismos vivos têm experimentado vários períodos de
condições adversas. Na verdade, uma das características mais representati-
vas da história do planeta tem sido a ocorrência periódica de fenômenos de
extinção em massa. Ao longo do tempo geológico, houve pelo menos cinco
eventos desse tipo, em que uma grande proporção das espécies existentes foi
extinta. Existem evidências científicas de que o último grande fenômeno
de extinção ocorreu no período Paleoceno, há 54 milhões de anos.
A partir desse evento, ocorreu um processo de diversificação de
organismos em todo o planeta, o que produziu uma série de relações

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intra e interespecíficas e, consequentemente, gerou uma grande riqueza


biológica mensurada em número de espécies. Durante esse tempo,
várias linhas de evolução de organismos vivos foram bem-sucedidas
em seus processos de diversificação (especiação), dando origem ao que
hoje conhecemos como diversidade biológica.
A biodiversidade é um conceito muito amplo que se refere à va-
riedade de paisagens, tipos de vegetação, espécies e genes. Portanto, a
manutenção e a conservação da diversidade biológica exigem esforços
em cada um desses níveis. Enquanto o primeiro nível está focado na
preservação do conjunto das paisagens, o segundo centra-se na prote-
ção dos hábitats em que vivem as populações. No nível das espécies,
a maior parte do que se sabe sobre a diversidade refere-se às plantas
superiores e aos animais vertebrados (mamíferos, aves, répteis, anfíbios
e peixes). A riqueza e a diversidade de plantas inferiores e invertebrados
(que incluem os insetos e moluscos) são ainda bastante desconhecidas,
motivo pelo qual continuam sendo feitos inventários desses grupos
de organismos. Embora a diversidade biológica seja constituída de
plantas e animais silvestres, torna-se fundamental reconhecer o papel
desempenhado pelos organismos domesticados, uma vez que estes
configuram a contribuição do homem para a diversidade natural. Fi-
nalmente, o objetivo do quarto nível da biodiversidade está centrado
na conservação da variabilidade genética de organismos silvestres, bem
como de espécies vegetais e animais domesticadas.

A segunda onda: a diversificação do ser humano


A colonização do planeta pelos seres humanos tem sido um dos
processos de diversificação mais notáveis da história natural, apesar
de sua brevidade na escala geológica de tempo. Na genética e na lin-
guagem dos diferentes grupos que hoje compõem o gênero humano,
encontram-se impressas pegadas do passado e, a partir de sua leitura,
interpretação e análise comparativa, é possível verificar fenômenos,

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como a trajetória seguida pela espécie desde suas origens no Vale do


Rift, na África. Essa interpretação histórica, por sua vez, explica a
variedade do humano.
De fato, as pesquisas genéticas e linguísticas, apoiadas por estudos
paleontológicos e de outras disciplinas, indicam que os seres humanos
descendem de grupos hominídeos que surgiram na África há cerca de
200 mil anos. O Homo sapiens moderno descende de uma pequena
população da África Oriental, cuja expansão pelo resto do continente
começou há cerca de 100 mil anos. Posteriormente (40 a 60 mil anos
mais tarde), partindo dessa mesma região, um pequeno grupo adentrou
a Ásia e começou a segunda e mais rápida expansão, provavelmente, em
duas direções. A primeira se deu ao longo da costa sul da Ásia oriental
e da Oceania ocidental. O segundo movimento de migração foi em
direção ao centro da Ásia, a partir de onde irradiou-se uma expansão
para o oeste, rumo à Europa, e outra para o oeste da Ásia e o norte
da Sibéria até chegar à América. Essa cronologia tem sido confirmada
tanto por evidências genéticas quanto por estudos linguísticos, de tal
forma que chega a haver uma correspondência entre as árvores ou
genealogias genética e linguística (Cavalli-Sforza, 2001).
A partir desses processos de expansão geográfica, a espécie humana
colonizou praticamente todo o planeta, e, ao se establecer nos mais
diferentes hábitats, cada grupo aprendeu a usar de forma específica os
recursos disponíveis em seu entorno. No entanto, é depois da origem
e da expansão da agricultura e da mudança de nômades caçadores-
-coletores para agricultores sedentários que a espécie humana experi-
mentou uma diversificação ampla e rápida. Hoje, a diversidade cultural
pode ser entendida, como já dito, por meio de três dimensões básicas:
genética, linguística e cognitiva.
Uma primeira expressão da diversificação humana, produto da
colonização do planeta e da consequente adaptação e isolamento dos
grupos humanos, encontra-se na genética da espécie. A decifração

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do código genético ou do genoma humano reconhece que cada ser


humano contém entre 30 mil e 50 mil genes. O genoma dos 7,3
bilhões de seres humanos é 99,9% idêntico. No entanto, é a inter-
pretação dessa pequena fração que torna cada indivíduo único. É
nela que está a chave para apreciar a variedade do gênero humano e
para compreender a história da espécie. Cada genoma individual é
um livro de história de toda a espécie, e a interpretação e a compa-
ração de genomas de diferentes grupos humanos ajudam a entender
processos do passado.
A análise de certos elementos dos genomas permite traçar com
bastante precisão os caminhos trilhados pela espécie, partindo de suas
origens na África para todos os cantos do planeta. Esse é o caso do
chamado ácido desoxirribonucleico, ou ADN (mais conhecido pela
sigla inglesa DNA) mitocondrial, e do cromossomo Y, que define o
gênero masculino de um ser humano (Shreeve, 2006). Em ambos os
casos, essas duas frações genéticas têm a qualidade de registrar e manter
as alterações genéticas que vão ocorrendo ao longo do tempo, de tal
modo que o seu estudo revela os traços das modificações genéticas
sofridas pela inúmeras gerações de seres humanos.
Assim como as populações humanas, as linguagens se diversifica-
ram e evoluíram com o passar do tempo, de forma que suas semelhanças
e diferenças também evidenciam as relações que se estabeleceram entre
os diversos povos. Da mesma forma, as interações entre os grupos
humanos ao longo do tempo têm sido avaliadas por meio de estudos
da arqueologia cultural e da antropologia física. Assim, tanto as raças
quanto as combinações genéticas do Homo sapiens atestam a diversidade
dos seres humanos.
Embora, estritamente falando, o número de línguas não seja
equivalente ao de culturas, o critério linguístico pode ser usado para
fazer um cálculo preliminar da diversidade cultural: quase 7 mil lín-
guas (Gordon, 2005). Trata-se de uma cifra conservadora se levarmos

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em conta que, antes da expansão colonial europeia, que começou no


século XV, o número de línguas chegou a 12 mil, atingindo o auge da
diversificação cultural da humanidade, e considerando os fenômenos
de extinção cultural na África, Ásia e América Latina.
Na estrutura da diversidade cultural, tanto genética quanto
linguística, operam como o núcleo, como a base sobre a qual se
manifesta uma grande variedade de expressões tangíveis e intan-
gíveis: crenças, conhecimentos, instrumentos e ferramentas, arte,
arquitetura, roupas e uma ampla gama de alimentos que compõem
as culinárias locais e regionais. As diferentes crenças religiosas, por
exemplo, representam todo o espectro de elementos que o homem
deifica, como montanhas, plantas, animais, fungos, mananciais,
ventos, tempestades, estrelas.
Assim, há divindades do amor, da beleza, da fertilidade, da fide-
lidade, da sexualidade, da colheita, da aprendizagem, da sabedoria,
da magia, da música, da saúde, da guerra, do infortúnio e da morte,
entre outras.
De todas as expressões que emanam de uma cultura, os conhe-
cimentos sobre a natureza configuram uma dimensão especialmente
notável, uma vez que refletem a sagacidade e a riqueza de observações
sobre o entorno realizadas, guardadas, transmitidas e aperfeiçoadas
no decorrer de longos períodos de tempo, sem as quais a sobrevivência
dos grupos humanos não teria sido possível. Trata-se dos saberes,
transmitidos oralmente de geração para geração, e especialmente
dos conhecimentos imprescindíveis e cruciais, por meio dos quais a
espécie humana foi moldando suas relações com a natureza.
Essa dimensão cognitiva, tão antiga quanto a própria espécie,
permitiu aos seres humanos não só manter uma certa relação de
coexistência com a natureza, mas também refiná-la ou aperfeiçoá-la.
O produto final desse processo de refinamento ao longo do tempo
encontra-se hoje nas mentes e nas mãos de homens e mulheres que

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compõem os chamados povos tradicionais, especialmente os povos


indígenas. Esses conhecimentos, no entanto, estão ameaçados.
Como acontece hoje com grande parte de tudo que se considera
tradicional, as formas como os seres humanos têm conseguido se
apropriar com sucesso dos recursos da natureza ao longo do tempo
estão sujeitas a uma enorme pressão, exercida por diversos fatores e
forças. A modernidade, pelo menos a que agora se expande por todos
os cantos da Terra, raramente tolera outra tradição que não seja a
sua, e, consequentemente, as formas modernas de uso dos recursos
geralmente oprimem toda forma tradicional de manejo da natureza,
incluindo os conhecimentos utilizados. Trata-se de um conflito nodal
entre as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produção.
É dentro desse panorama descrito que se destaca o importante
trabalho de valorização realizado por esse exército de estudiosos dos
conhecimentos tradicionais e, especialmente, aqueles que se dedicam
a documentar, analisar e reavaliar as sabedorias pré-modernas sobre
a natureza, um esforço intelectual que vai na contracorrente e tem
crescido nas últimas quatro décadas. Esses estudos centraram-se na
análise desse acúmulo de saberes, não científicos, que há na mente
dos produtores rurais (agricultores, pastores, pescadores, pecuaristas,
caçadores, coletores) e tem servido durante milênios para que a espécie
humana se aproprie dos bens e serviços da natureza.

A terceira onda: a criação humana de novas espécies


A agricultura surgiu de forma independente em várias partes
do mundo entre 10 e 12 mil anos atrás. Essa revolução neolítica,
ou agrícola, gerou não só uma enorme variedade de espécies de
plantas e animais domesticados (estimada entre 1,2 e 1,4 mil),
mas também novas variedades e raças que, juntas, levaram a um
aumento considerável da biodiversidade (apenas da batata se reco-
nhecem localmente cerca de 12 mil variedades; do arroz, são cerca

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de 10 mil). Assim, os novos organismos que surgiram graças à ação


humana podem ser considerados uma nova contribuição para a
diversidade atual do mundo.
De acordo com o trabalho do geneticista russo N. I. Vavilov (1926),
é possível identificar oito centros de domesticação de plantas ao redor
do mundo, os quais foram modificados por Harlan (1992), que utilizou
uma série de evidências arqueológicas nos territórios de origem dos
cultivos. Consequentemente, segundo sua classificação, há três zonas
geográficas chamadas centros, e outras três regiões reconhecidas como
não centros. Os três centros são o Oriente Próximo (Jordânia, Síria,
Turquia, Iraque e Irã), a Mesoamérica (México e América Central) e o
norte da China. Por sua vez, a faixa central africana, o Sudeste Asiático
e a América do Sul constituem os não centros. Posteriormente, Smith
(1998) incluiu um novo centro de origem de culturas na América do
Norte. A grande diversidade dos sistemas agrícolas é caracterizada pelo
número de espécies de cultivo, de animais domésticos, de raças e suas
variedades locais e das técnicas de manejo das paisagens.

A quarta onda: a criação humana de novas paisagens


O último processo de diversificação ocorreu em estreita ligação com
a terceira onda, quando as primeiras sociedades agrícolas modificaram
os hábitats para criar zonas humanizadas ou paisagens, isto é, áreas para
a produção de bens e serviços. Tal processo implicou a domesticação
do espaço e veio complementar, e não substituir, os hábitats originais.
Essas novas paisagens do Neolítico foram projetadas para agregar novos
produtos aos obtidos pelas atividades de caça, pesca e coleta, por meio
de um manejo adequado dos processos ecológicos, geomorfológicos e
hidrológicos, sem afetar muito os ritmos e processos naturais.
Há uma variedade de paisagens ao redor do mundo que são resul-
tado da revolução agrícola e incluem modificações feitas em florestas,
selvas, pradarias, desertos e semidesertos, pantanais e áreas costeiras.

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As mudanças produzidas abrangem toda uma série de alterações na


estrutura, no funcionamento e na evolução dos ecossistemas. Três
desenhos se destacam de forma especial em escala mundial: a agri-
cultura irrigada, os terraços e as florestas manejadas como sistemas
agroflorestais em regiões intertropicais.
Os sistemas tradicionais de agricultura irrigada-intensiva estão
situados em diversas partes do mundo, mas têm sido implementados
especialmente na América tropical. Seu desenho foi concebido para
modificar a topografia e o fluxo da água. Por exemplo, nas terras baixas
do Golfo do México e na Península de Yucatán, há evidências de ter-
raços estabelecidos nas zonas úmidas (Siemens, 1989; 1998). Sistemas
semelhantes têm sido encontrados na Guatemala, Belize, Venezuela,
Colômbia, Equador, Bolívia e Peru (Denevan, 1982). Esses sistemas,
geralmente conhecidos como campos elevados, constituem uma rede de
canais e plataformas construída nas margens de lagos, rios ou planícies
inundáveis. O sistema consiste na regulação da entrada de água para
manter os níveis e permitir o desenvolvimento da agricultura intensiva
(Siemens, 1998).
No planalto andino do Lago Titicaca, no Peru e na Bolívia,
um sistema hidroagrícola conhecido como Waru-waru, hoje par-
cialmente reativado, antigamente cobria uma superfície de mais de
200 mil hectares. Da mesma forma, no Vale do México, seus anti-
gos habitantes criaram os chinampas, que talvez sejam os sistemas
hidráulicos mais sofisticados gerados sob a tecnologia tradicional.
Os chinampas abrangiam cerca de 12 mil hectares e serviam, entre
outras coisas, para suprir as necessidades alimentícias (milho, feijão,
amaranto) de uma população estimada em mais de 228 mil pessoas
(Denevan, 1982).
A conversão de florestas naturais em florestas humanizadas tem
sido uma prática antiga nas regiões tropicais do mundo. Tal processo
envolve mudanças na composição original das florestas, a fim de criar

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jardins florestais, por meio do manejo das espécies arbóreas e da in-


trodução de ervas e arbustos úteis, como as culturas comerciais (café,
cacau, canela, especiarias, borracha, pimenta, baunilha). O sistema
configura uma maneira de reconstruir as florestas naturais por meio
do cultivo e da coexistência de plantas silvestres e cultivadas, buscando
conservar as características estruturais e os processos ecológicos das
florestas naturais em benefício das comunidades locais e mantendo
uma certa diversidade biológica.
As pesquisas sobre o assunto têm registrado a importância biológica,
ecológica e produtiva desses sistemas em países como Índia, Papua Nova
Guiné, Sri Lanka, Indonésia, Tanzânia, Uganda, Nigéria e México,
cujas culturas locais são as que realizam sua prática e seu manejo, o que
indica que são produto de práticas conduzidas ao longo do tempo. Para
ilustrar, vale citar o caso dos Shambas, de Uganda, dos Kebun-Talun, de
Java Ocidental, dos Pekarangan, Ladang e Pelak, de Sumatra-Indonésia,
dos Kandy, do Sri Lanka, e dos Te’lom e Kuajtikiloyan, dos Huasteca e
Nahua, do México.
Os terraços agrícolas, por sua vez, figuram entre os sistemas mais
antigos utilizados para o manejo de processos geomorfológicos, de
solos e água em paisagens de relevo escarpado e com encostas de alta
declividade ao redor do mundo. Registros arqueológicos sugerem que,
em várias regiões do mundo, a idade dos terraços é de 3 a 4 mil anos
(Quadro 1). As paisagens formadas por terraços têm permitido e fa-
cilitado o desenvolvimento de várias civilizações em cada continente.
Exemplos que devemos mencionar são as regiões onde a agricultura
atingiu um alto nível de desenvolvimento, como China, Índia, Japão,
Coreia, Etiópia, e três regiões agrícolas-chave: o Mediterrâneo, os
Andes e a Mesoamérica (Sandor, 2006).

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Quadro 1: Principais registros arqueológicos de terraços no mundo

Registro da Registro dos


agricultura terraços Características dos terraços
(em anos) (em anos)
Não há dados exatos sobre sua
China 8.500-11.500 3.000
origem
Para áreas de cultivo extensi-
Japão/Coreia 3.000-7.000 2.000
vo de arroz
Índia/Indochina 5.000-7.000 2.300-2.100 Há 3.100 anos no Paquistão
Filipinas 3.400-5.000 1.400-2.000
Bastante antigos, mas sem
Papua Nova Guiné 9.000 ?
dados exatos sobre sua origem
Polinésia 1.000-3.600 1.100

Os terraços do Iêmen existem


Ásia Oriental 10.000-13.000 3.000-6.000 há aproximadamente 5.000-
6.000 anos

Há 4.000 anos na Itália e


Mediterrâneo 8.000 2.500-4.000
3.700 em Creta

Europa oriental 5.000-7.000 ?


Europa ocidental 5.000-7.000 2.000-3.500
Terraços de drenagem. Há
África do Norte 6.500 3.000
2.450 anos na Etiópia
Não há dados exatos sobre sua
África Subsaariana 3.000-5.000 500-600
origem
Mesoamérica 5.000-10.000 2.500-3.000
Não há dados exatos sobre sua
América do Sul 4.000-10.000 2.500-4.000
origem
América do Norte 3.000-5.000 1.000-3.000 Terraços para a agricultura
Fonte: Sandor (2006)

É possível distinguir quatro tipos principais de terraços em todo o


mundo: (a) terraços em terrenos montanhosos ou íngremes que podem
ter ou não canais de irrigação (região do Mediterrâneo, Himalaia,
Andes, Mesoamérica); (b) terraços em zonas úmidas, como no Sudeste
Asiático; (c) terraços de drenagem em zonas áridas e semiáridas; e (d)
os terraços do noroeste da Europa (Sandor, 2006).

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Embora, aparentemente, os terraços constituam uma pequena


fração das áreas agrícolas mundiais, eles são muito importantes em
algumas regiões, do sudoeste do Colorado, nos Estados Unidos, até
o noroeste da Argentina, o sudoeste dos Estados Unidos, o centro e o
sul do México, Chiapas-Guatemala, regiões da Venezuela, flancos da
Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, e sul do Equador até o
norte do Chile e Argentina (Donkin, 1979).

A diversidade biocultural
A descrição feita nas seções anteriores dos principais processos
de diversificação mostra as relações estreitas entre vários deles e,
especificamente, entre as formas de diversidade: biológica, genética,
linguística, cognitiva, agrícola e paisagística (Figura 1). Juntas, elas
configuram o complexo biológico-cultural originado historicamente
e que é o produto de milhares de anos de interação entre as culturas
e os ambientes naturais.

Figura 1: Esquema do processo geral de diversificação biocultural

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A expansão geográfica da espécie humana foi possível graças a sua


capacidade de se adaptar às peculiaridades de cada hábitat do planeta
e, sobretudo, pelo reconhecimento e pela apropriação adequada da
diversidade biológica contida em cada uma das paisagens. Portanto,
pode-se dizer que a diversificação dos seres humanos se fundamentou
na diversificação biológica agrícola e paisagística. Esse processo de
caráter simbiótico ou coevolutivo foi conduzido pela capacidade da
mente humana para tirar proveito das particularidades e singularida-
des de cada paisagem do entorno local, em função das necessidades
materiais e espirituais dos diferentes grupos humanos.
Esse processo biocultural de diversificação é a expressão da articula-
ção e amálgama da diversidade da vida humana e não humana e represen-
ta, em estrito sentido, a memória da espécie. Aparentemente, assim como
ocorre com a memória dos seres humanos e outros mamíferos, em cujos
cérebros a representação e a formação de lembranças se realizam através
da ação coordenada de grandes populações de neurônios (Tsien, 2007),
o conjunto da espécie guarda recordações de experiências passadas em
grupos seletos e específicos de seres humanos culturalmente articulados.
Trata-se daquelas comunidades que, como veremos, foram capazes
de manter uma tradição por meio da contínua agregação de novos
elementos e, com isso, conseguiram permanecer em um só lugar por
longos períodos de tempo (centenas e até milhares de anos). Atualmen-
te, apesar dos acentuados processos de urbanização e industrialização
da produção primária (agricultura, pecuária, pesca, silvicultura etc.),
ainda há grandes regiões do mundo, especialmente nas zonas tropicais,
onde milhares de comunidades tradicionais continuam a realizar prá-
ticas que atestam um uso prudente da biodiversidade de cada um dos
ecossistemas existentes. Cada cultura local interage com seu próprio
ecossistema local e com a combinação de paisagens e as respectivas
biodiversidades nelas contidas, de forma que o resultado é uma ampla
e complexa gama de interações finas e específicas (Figura 2).

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Figura 2: Relações entre as culturas tradicionais e os ecossistemas

Pode-se dizer, então, que é nessa ampla e complexa coleção de sabe-


dorias locais, de cuja análise em conjunto devemos obter recordações-
-chave e identificar eventos que tiveram uma influência profunda e
duradoura sobre toda a espécie, que se encontra a memória da espécie
humana, ou o que ainda resta dela. Essas sabedorias localizadas, que
existem como consciências históricas comunitárias, uma vez totalmente
conjugadas, operam como a sede principal das lembranças da espécie.
São, portanto, o hipocampo do cérebro da humanidade, o reservatório
mnemônico que permite que qualquer espécie animal se adapte conti-
nuamente a um complexo mundo em constante processo de mudança.
O próximo capítulo é dedicado a localizar em vários lugares do planeta
essa memória da espécie, por meio da detecção e do cruzamento de
vários indicadores dos processos aqui descritos.

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II. O TE ATRO DA MEMÓR I A:
CENÁ R IOS E ATOR E S

Onde se localiza a memória biocultural?


Como vimos no capítulo anterior, é possível distinguir vários
processos de diversificação, articulados de diferentes formas e em dife-
rentes graus e que podem ser identificados geograficamente e segundo
diferentes escalas. Para realizar esse exercício, levamos em conta aqueles
processos em que há informação suficiente para obter um panorama
o mais confiável possível de padrões espaciais, uma vez que a pesquisa
científica tem avançado mais em alguns aspectos do que em outros.
Os campos em que hoje encontramos informações para conduzir
esta análise são os da diversidade biológica, da diversidade linguística
e da diversidade agrícola (e pecuária). Estas, por sua vez, podem ser
correlacionadas com a distribuição das sociedades rurais tradicionais,
que, em teoria, constituem os agrupamentos da espécie humana cujas
atividades se baseiam em formas de manejo da natureza não industriais
e em formas de conhecimento não científico, ou seja, em expressões
que remontam a um passado distante.
Estudos conduzidos nas áreas das ciências sociais e das ciências
naturais, sob os mais diversos enfoques, revelam a estreita ligação entre
as diversidades biológica, cultural e agrícola em várias escalas, do nível
global ao local. Revelam também a relação dessas diversidades com

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as regiões tradicionais do planeta, isto é, aquelas onde predomina uma


população rural de agricultores (e de pastores, caçadores e pescadores
artesanais) que mantêm sistemas de produção de base familiar e de
pequena escala. Assim, temos, de um lado, os três componentes ceno-
gráficos e, do outro, os atores (as sociedades tradicionais) que realizam
as ações a partir desses cenários. As seções seguintes são dedicadas a
mostrar e discutir esses vínculos, cuja representação geográfica aponta
a localização da memória biocultural da espécie humana.

Os centros de diversidade biológica


Em termos gerais, a diversidade biológica, ou a biodiversidade,
expressa toda a variedade das formas de vida na Terra (Wilson, 1992).
A maneira mais direta e simples de medir a diversidade é calcular a
riqueza de espécies, a qual se refere ao número de espécies presentes
numa determinada área; o que, por sua vez, depende da escala (diver-
sidades alfa, beta e gama). A diversidade e sua distribuição são produto
de uma longa história de evolução, diversificação e extinção dentro de
um espaço geográfico e ecológico dinâmico e em constante transforma-
ção. Da mesma forma, o conceito de endemismo define os organismos
restritos a uma área geográfica ou unidade ecológica específica, isto é,
aponta os organismos que têm distribuições restritas, diferentemente
de outros que apresentam amplas áreas de distribuição.
Grande parte dos esforços da pesquisa científica tem sido dirigida a
identificar, em nível global, estratégias prioritárias que sejam adotadas
tanto por governos nacionais quanto por organismos internacionais. Essas
estratégias são voltadas a proteger áreas que contêm um número muito
elevado de espécies em superfícies mínimas. Por exemplo, a Conservation
International, certamente a organização conservacionista que mais tem
avançado em termos de conhecimento científico, conseguiu acumular,
nas últimas duas décadas, dados e evidências sobre três padrões principais
de biodiversidade em escala global: (a) a identificação de países chama-

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A memór i a biocu lt ur a l

dos megadiversos; (b) o reconhecimento de ecorregiões terrestres-chave


(hotspots); e (c) a definição de regiões silvestres ou virgens.
O conceito de megadiversidade permite visualizar a biodiversidade
a partir do nível de unidades políticas, como os países. Estima-se que
17 dos 225 países detenham entre 60% e 70% das 250 mil plantas
superiores, incluindo as espécies terrestres, de água doce e marinhas.
Esses 17 países são também o lar de cerca de 60%-70% de todas as
plantas endêmicas (Mittermeier; Goettsch-Mittermeier, 1997). Doze
países são reconhecidos por hospedar o maior número de espécies e
de espécies endêmicas (com populações restritas): Brasil, Indonésia,
Colômbia, Austrália, México, Madagascar, Peru, China, Filipinas,
Índia, Equador e Venezuela. Essa avaliação teve como base a análise
comparativa de oito principais grupos biológicos: mamíferos, aves,
répteis, anfíbios, peixes de água doce, besouros e plantas com flores.
No segundo caso, seguindo uma ideia originalmente proposta por
Myers (1988), atualmente é possível identificar no mundo 34 regiões-
-chave (hotspots) que concentram altos níveis de biodiversidade, mas nas
quais os hábitats naturais têm perdido a maior parte de sua superfície
original (www.biodiversityhotspots.com). Considerando essa defini-
ção, tais regiões-chave contêm apenas 1,4% da superfície terrestre do
planeta, constituindo um extraordinário acervo de riqueza biológica
que corresponde a aproximadamente 40% da biodiversidade global,
quase a metade das espécies de plantas vasculares e um terço de todos
os vertebrados terrestres (Myers et al., 2000). Os números mostram que
esses hotspots detêm entre a metade e dois terços de todas as espécies
de plantas vasculares qualificadas como em risco de extinção e quase
60% dos vertebrados terrestres ameaçados (Brooks et al., 2002).
Finalmente, a localização de 37 áreas consideradas como sendo
as últimas regiões virgens do mundo, com as mais baixas densidades
de população humana, tem possibilitado estabelecer outra estratégia
prioritária. Em conjunto, essas regiões contêm áreas intocadas ou sil-

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vestres que correspondem a 46% da superfície da Terra, isto é, quase


metade do planeta, sem incluir os mares, habitada por apenas 2,4%
da população humana mundial (Mittermeier et al., 2002).

Os centros de diversidade linguística


Cada língua falada representa um modo único de compreender a
experiência humana, o universo natural e o mundo inteiro. Os idiomas
resumem toda a pluralidade da humanidade. Como um código de ação
social, a linguagem é usada pelos seres humanos para estabelecer um diá-
logo negociado com o mundo social e o mundo natural (Unesco, 1996).
A linguagem é uma construção sociocultural que confere significado
às representações, aos discursos e às negociações. Por outro lado, como
um instrumento dialógico, ela constitui a ponte fundamental entre a
cognição, o reconhecimento e o ato de nos reconhecer; uma ponte entre
a diferença e o ato de nos diferenciar, o que é uma ponte para negociar
a legitimidade e conseguir selar acordos (Bourdieu; Wacquant, 1995).
O reconhecimento das diferenças é uma condição para o diálogo e
para a construção de acordos entre diferentes pessoas e grupos sociais.
A linguagem constitui a ferramenta essencial para a construção da
diversidade cultural e é a matéria-prima da criatividade e do conheci-
mento humano. A dramática redução do número de línguas desgasta
as bases dessa criatividade e conhecimento, o que acabará por produzir
uniformidade nas culturas do mundo e, portanto, a irremediável re-
dução da diversidade cultural (Harmon, 1996a; 1996b).
A diversidade linguística designa o número de línguas faladas em
todo o mundo. A distribuição geográfica da diversidade linguística segue
um padrão heterogêneo (Krauss, 1992; Harmon, 1996b; Maffi, 1998).
Ela é o resultado da diversidade cultural e reflete as relações de domina-
ção/subordinação e resistência/hibridização entre diferentes indivíduos,
sociedades e civilizações (Barrera-Bassols, 2003). Três grandes fenômenos
históricos contribuíram para a diversidade geográfica-linguística: 1) o

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A memór i a biocu lt ur a l

isolamento geográfico das populações humanas, processo que resulta


em um número significativo de línguas endêmicas (Harmon, 1995); 2) o
enriquecimento da diversidade linguística como resultado da interação de
diversos grupos sociais (Mûhlâusler, 1996; Maffi, 1999); e 3) a dominação
colonial e a internacionalização dos sistemas de comunicação dominados
por determinadas línguas, o que provoca a extinção de línguas endêmicas
por meio da assimilação cultural (Harmon, 1996b; Maffi, 1998).
Não há consenso sobre o número de línguas faladas no mundo.
Gordon (2005) reconhece um total de 6,7 mil, enquanto Harmon (1995)
registrou 6.207. Em todo caso, não se pode precisar o número de lín-
guas usadas hoje em dia pelos grupos sociais. Há um conjunto de cinco
categorias de países de acordo com sua diversidade linguística (Figura
3). Vale ressaltar que é problemático usar um país como unidade para
fazer referência à diversidade linguística, uma vez que a distribuição dos
idiomas não se restringe aos limites políticos-administrativos. Mesmo
assim, aqui apresentamos o país como unidade de comparação.
Figura 3: Países com o maior número de línguas registradas

Fonte: Gordon (2005)

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Tendo em vista essa consideração, apontamos o primeiro grupo,


composto por Indonésia e Papua Nova Guiné, que são países lin-
guisticamente megadiversos. Juntos, abarcam um total de cerca de
1.550 línguas, que representam 23% de todos os idiomas do mundo.
O segundo grupo é formado por sete países (Nigéria, Índia, México,
Camarões, Austrália, Zaire e China) de alta diversidade linguística,
com aproximadamente 350 a 470 línguas por país, respondendo por
37% (Gordon, 2005) ou 49% (Harmon, 1995) do total de todo o
mundo. Ambos os grupos de megadiversidade linguística registram
um total de 3.634, que representa 54% das línguas vivas no mundo.
No entanto, esses nove países representam apenas 4% dos 225 países.
O terceiro grupo, dos dez países (Brasil, Estados Unidos, Filipinas,
Malásia, Tanzânia, Chade, Nepal, Sudão, Mianmar e Vanuatu) com
diversidade linguística mediana, abrange de 21% a 22% dos idiomas
do mundo. Ao agrupar os 19 países com alta e média diversidade
linguística, atingimos apenas 8,5% dos países com informação lin-
guística, embora esse grupo reúna aproximadamente 4 mil línguas,
que representam entre 75% e 77% dos idiomas do mundo. O quarto
grupo, composto por 40 países com baixa diversidade linguística, inclui
de 12% a 14% das línguas do mundo e representa 18% dos países.
O quinto grupo, de países com diversidade linguística muito baixa,
caracteriza-se por ter de uma a 25 línguas por país, correspondendo
a 73% dos países do mundo e abrangendo de 7% a 8% de todos os
idiomas falados (Figura 4).
A diversidade linguística é distribuída da seguinte forma pelos
continentes: 32% na Ásia, 30% na África, 19% na região do Pacífico,
15% na América e 3% na Europa (Maffi, 1998). No entanto, apenas
300 idiomas são significativos em termos de proporção de falantes. Por
exemplo, o chinês, o inglês, o espanhol, o árabe e o hindi, entre os mais
importantes, são falados por 95% da população mundial (Harmon,
1995). Em contraste, 51% a 53% dos idiomas (3.406) são falados por

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comunidades de menos de 10 mil habitantes (aproximadamente 10


milhões de pessoas), proporção que representa 0,2% da população
mundial. Assim, as minorias sociais, que incluem as comunidades
indígenas, falam línguas que estão em perigo de extinção.

Figura 4: Número de línguas em relação com o número de falantes de cada língua

Número de habitantes por língua

Fonte: Gordon (2005)

O ato de mudar uma língua tradicional para falar uma língua domi-
nante constitui o maior processo de extinção da diversidade linguística
(Harmon, 1995; Maffi, 1998; 1999). A homogeneização linguística causou
a perda de 15% das línguas no século XVI (Bernard, 1992). A aceleração
desse processo pode resultar na perda de 90% dos idiomas no decorrer
deste século. Especialistas estimam que entre 6% e 11% de todos os idiomas
podem ser considerados ameaçados de extinção (Krauss, 1992).
A padronização linguística obtida pelo uso das línguas oficiais é
mais bem entendida quando se considera um idioma como instrumen-
to importante nas relações de poder, e não apenas como uma fonte

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

de comunicação (Bourdieu, 1982; Bourdieu; Wacquant, 1995). A


assimilação linguística está associada à conquista, ao colonialismo, ao
neocolonialismo e à difusão da religião. Hoje, as relações entre as cida-
des se intensificam baseadas em algumas línguas ou, como na maioria
dos casos, em uma só, embora os estados soberanos sejam considerados
multilíngues. Isso confere um poder adicional, já que as instituições
sociais reforçam o status e a influência dos idiomas padronizados.
Atual­mente, a maioria dos países do mundo usa o inglês, o francês ou
o espanhol, e cada vez mais pessoas usam o chinês mandarim e o hindi
como língua franca, ou como idiomas oficiais. A tendência recente no
que se refere à diversidade linguística é a inequidade, a desigualdade
e a instabilidade (Williams, 1994).
Quatro são os padrões mais aparentes e notáveis identificados no
processo de diversificação linguística: (1) os países considerados me-
gadiversos linguisticamente (nove no total) concentram pelo menos
metade das línguas do mundo; (2) esses países estão localizados no
cinturão intertropical e abrangem três das zonas agroecológicas mais
vulneráveis à degradação ambiental: o trópico úmido, as zonas quen-
tes semidesérticas e as regiões altas, secas e frias; (3) cerca de 0,2%
da população mundial (menos de 10 milhões de pessoas) concentra
mais de 50% da diversidade linguística do planeta; (4) muitas lín-
guas endêmicas, ameaçadas de extinção, encontram-se nesses hotspots
linguísticos e em áreas rurais habitadas por comunidades indígenas
(Barrera-Bassols, 2003).

Os centros de origem de plantas e animais domesticados


(agrobiodiversidade)
A manipulação dos genomas de plantas e animais, visando favore-
cer organismos que seriam úteis para a espécie humana, foi um evento
que mudou o curso não só da humanidade, mas também de todo o
universo natural. A criação de mais de mil novas espécies (e dezenas de

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A memór i a biocu lt ur a l

milhares de variedades e raças) por meio dos processos de domesticação


constituiu um salto qualitativo na evolução humana, que também levou
a um novo contingente de organismos que se somou, e não substituiu,
às espécies e variedades silvestres. Esse processo de domesticação, que
abrangeu milhares de espécies de plantas e centenas de animais, ocorreu
em áreas bem definidas do planeta e foi o resultado de uma série de
fatores biológicos, ecológicos, sociais e culturais.
A partir da análise das principais coleções botânicas, de uma ampla
revisão da literatura e de um intenso trabalho de campo ao redor do
mundo, o geneticista-biólogo russo Vavilov (1926) identificou vários
centros geográficos de dispersão das plantas cultivadas e, assim, iniciou
a localização dos processos de domesticação no planeta, classificada
em oito regiões:
1. China: as regiões montanhosas centrais e ocidentais do norte
e suas terras baixas adjacentes. A primeira evidência da criação do
milheto rabo-de-raposa foi reconhecida no norte da China há 7 ou 8
mil anos (Gadgil, 1995). Outras culturas, como a soja, também são
consideradas originárias dessa área (Boyden, 1992).
2. Índia: a região do Himalaia (Nepal e Birmânia) e a região
indo-malaia, incluindo Indochina, Malásia e Indonésia. O arroz, o
chá, a banana e o inhame, assim como o boi zebu, o porco, o frango
e o búfalo, são considerados originários dessa ampla e complexa área
ecogeográfica (Boyden, 1992).
3. Ásia central: noroeste da Índia, Paquistão, Afeganistão, Tadji-
quistão, Uzbequistão e as montanhas de Tianshan. A alfafa, o milheto,
o cânhamo, assim como o camelo-bactriano e os iaques são nativos
dessa área (Boyden, 1992).
4. Oriente Próximo: Iraque, Irã, Turquia, Síria e Jordânia. As
primeiras evidências de agricultura baseada no cultivo de sementes
(trigo e cevada), assim como da domesticação de cabras, ovelhas e
gado bovino, encontram-se situadas em uma ampla área conhecida

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como crescente fértil, localizada nos planaltos que margeiam os vales


dos rios Tigre e Eufrates (Baker, 1970; Heiser, 1973; Reed, 1977). A
origem da agricultura nessa área é a mais antiga, estimada em 9 mil
anos (Harlan, 1992).
5. Região mediterrânea: o anel costeiro e as áreas adjacentes. A
cevada, o centeio, as uvas e as azeitonas, assim como o ganso, o gado
bovino e suíno, são considerados originários dessa área (Boyden, 1992).
Estima-se que o arado começou a ser utilizado na Europa entre 4 e 5
mil anos atrás. Em algumas regiões, essa técnica foi empregada nos
campos por volta da época do império romano (Gadgil, 1995).
6. Etiópia: incluindo a Eritreia e a Somália. Boyden (1992) reco-
nhece que o café, o milheto, o sorgo e o gergelim são nativos dessa
área. Harlan (1992) identificou outros cereais que se espalharam para
fora dessa área, mas que ainda constituem as principais culturas para
a população local.
7. Mesoamérica: México, Belize, Guatemala, Honduras, El Salva-
dor, Nicarágua, Costa Rica. O milho, o amaranto, o feijão, as favas, o
tomate, a abóbora, o algodão e a pimenta estão entre as mais de cem
espécies de plantas domesticadas nessa região há cerca de 7 ou 8 mil
anos (Gadgil, 1995; Harlan, 1992). Outras plantas, como o abacate, a
baunilha e o cacau, também são consideradas provenientes dessa área
(Boyden, 1992), onde apenas duas espécies de animais foram domes-
ticadas: o peru e o cachorro izcuintle.
8. Região Andina: Peru, Equador, Bolívia, Chile e a região
subtropical do Brasil e do Paraguai. As evidências arqueológicas de-
monstram que o cultivo da batata, do tomate, do feijão, do algodão,
da mandioca e de outros tubérculos começou na região andina 9 mil
anos atrás (Salaman de 1949; Harlan, 1992). Além disso, a lhama, a
alpaca, o porquinho-da-índia, assim como os amendoins e o abacaxi,
são considerados originários dessa área geográfica (Boyden, 1992).
Horkheimer (1973) reconheceu 44 culturas provenientes do Peru. Na

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época da conquista espanhola, os Incas cultivavam mais de 70 espécies


de plantas (Cook, 1937).
Apesar de algumas divergências sobre sua identificação como
centros de domesticação originais, essas oito áreas ainda mantêm
muitas de suas características originais e continuam apresentando
alta diversidade de variedades de culturas e animais domésticos. Em
sua proposta inicial, Vavilov assumiu que as áreas com uma grande
variedade de sementes pertencentes à mesma espécie deveriam ser
consideradas centros de origem, uma vez que ali estão agrupados os
genes mais dominantes. A presença das espécies silvestres no entorno
da área de cultivo permite a permanência e a melhoria das espécies.
Além disso, os policultivos mistos com variedades domesticadas e
espécies silvestres conferem novas características às plantas (McNeely­,
1995b).
As áreas reconhecidas por Vavilov estão correlacionadas aos cen-
tros mais importantes de desenvolvimento das civilizações, como a
Mesoamérica, a região andina, a região mediterrânea, a Etiópia, o
Oriente Médio, a Índia e a China. Na maioria dessas áreas, as con-
dições bioclimáticas e a diversidade ecogeográfica propiciaram o de-
senvolvimento da cultura agrícola e da pecuária há aproximadamente
10 mil anos. Atualmente, muitos desses centros históricos detentores
de alta diversidade genética de variedades e raças produzem grandes
quantidades de alimentos em escala global (Barrera-Bassols, 2003).
Alguns desses países estão localizados no cinturão tropical, em que
vivem muitos dos camponeses e pequenos produtores do mundo que
dependem das policulturas (cultivo de muitas espécies), voltadas tanto
para o autoconsumo quanto para a venda. Nas últimas décadas, a
proposta original de Vavilov foi discutida e modificada por diversos
autores, entre os quais destacamos Harlan (1992), que realizou uma
releitura com base em novas evidências e produziu um mapa usando
novos critérios (Figura 5).

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Figura 5: Principais centros de diversidade agrícola no mundo

Fonte: Harlan (1992)

Definindo a diversidade agrícola


Uma característica essencial da criação de espécies domesticadas
é que cada uma das espécies de plantas e animais úteis para os seres
humanos encerra uma variação genética extraordinária, o que significa
que, dentro de cada espécie domesticada, é possível identificar centenas
ou mesmo milhares de variedades ou raças. E cada raça ou variedade
geralmente apresenta um desenho genético que responde a condições
ecológicas específicas – diferentes graus de umidade, temperatura, di-
versos ciclos ou ritmos naturais, limiares climáticos ou de solos (fatores
físicos e químicos) – e a necessidades de consumo humano – tamanho,
cor, sabor, aroma, capacidade de manejo, disponibilidade espacial e
temporal, valor nutritivo ou artesanal etc.
Essas adaptações particulares e específicas geraram uma série de
variações e são o produto de um profundo conhecimento ecológico
sobre as condições locais (incluindo microclimas e variações mínimas

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de solo e relevo, ritmos e ciclos naturais, interações entre organismos,


fenômenos regulares e imprevistos etc.) por parte daqueles homens e
mulheres que mantêm e manejam essas variedades e raças. O produto
final tem sido, depois de 10 mil anos de diversificação agrícola e pecuá­
ria, centenas de milhares de desenhos genéticos originais, criados por
inúmeras culturas locais ao longo do tempo e do espaço.
Essa diversificação genética gerada pelo ser humano ocorre de dife-
rentes formas, em diferentes escalas espaço-temporais e implica necessa-
riamente a seleção e o manejo do material genético de plantas e animais.
Uma planta ou animal pode ser geneticamente homogêneo ou heterogêneo
em um determinado lócus; e uma safra pode apresentar diversos genóti-
pos (e o mesmo número de subespécies) dentro de uma mesma cultura
(Brush et al., 1981). Um campo pode ser um sistema de monocultura ou
policultura. A diversidade fitogenética também se expressa por meio dos
sistemas de cultivo em escalas regionais, nacionais e globais. Quanto à
escala temporal, as rotações de culturas, a forma de colheita e os vários
usos da terra também resultam em variabilidade genética.
A erosão da diversidade fitogenética é causada pela substituição
do germoplasma nativo por novas variedades de alto rendimento. As-
sim, a erosão genética pode ser entendida como a perda acelerada de
germoplasma contido no acervo genético original. A erosão genética
também é causada por fatores sociais, tais como seleção, comercia-
lização, distribuição e mudança tecnológica (Zimmerer, 1991). A
substituição de genes ocorre quando uma variedade exótica toma o
lugar de uma nativa, o que resulta na substituição dos alelos dentro
da mesma espécie. O deslocamento do gene está ligado à perda de
genomas completos, devido à substituição de uma espécie nativa por
uma exótica (Qualset et al., 1997).
A erosão fitogenética também pode ser compreendida como a
erosão de alelos ou a de genomas. A erosão gênica ou alélica ocorre
quando a substituição das culturas nativas por exóticas gera uma

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alteração parcial ou total nas frequências dos alelos. Assim, os alelos


substituídos podem ser perdidos ou erodidos se não forem preservados
em algum outro lugar. Do mesmo modo, dentro dos cultivos substi-
tuídos também se perdem as combinações específicas dos genes. Em
termos potenciais, a erosão de genomas é mais devastadora, já que
todos os genes de uma espécie nativa são perdidos quando uma outra
espécie é introduzida ou quando a complexidade do hábitat agrícola
se perde sob os padrões da agricultura industrial.
Os fatores envolvidos na manutenção e no melhoramento da variação
genética são: (1) as interações entre espécies próximas; (2) a hibridização
de cultivos; (3) as mutações genéticas (mudanças aleatórias e imprevisíveis
no genoma); e (4) a pressão da seleção tanto natural quanto humana. O
resultado final desses fatores são desenhos genéticos chamados de va-
riedades locais ou nativas (landraces ou folkraces) que, segundo Mooney­
(1992), adaptam-se muito bem às condições biofísicas locais. O termo
landraces faz referência às variedades locais de uma espécie que derivam
do manejo do genoma por parte dos agricultores. Seu processo de evo-
lução implica a aquisição e a manutenção de novos genótipos. O valor
estratégico da manutenção e da ampliação da diversidade genética dos
principais cultivos e animais domesticados está em que tais processos
contribuem para assegurar a subsistência das famílias agricultoras (espe-
cialmente em termos de segurança alimentar) no médio e longo prazos.
A variedade genética conserva a matéria-prima necessária para que
as espécies utilizadas resistam a vários tipos de patógenos e parasitas,
bem como às mudanças nas condições ambientais (p. ex., mudanças
climáticas e catástrofes diversas), socioeconômicas e culturais. A varia-
bilidade genética das espécies domesticadas expressa a capacidade do
ser humano de tirar proveito das condições particulares e específicas
de seu entorno local, isto é, de cada variação detectada na realidade
em que vive e da qual depende. Também reflete um mecanismo de
flexibilidade frente à complexidade do ambiente e é a expressão de

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uma qualidade, a resiliência, que consiste na capacidade de responder


adequadamente a eventos inesperados.

Onde estão as sociedades tradicionais?


O último componente da correlação que tentamos estabelecer
não é de caráter biológico, cultural ou agrícola, mas social. Em todo
o mundo, as áreas de confluência dos processos de diversificação
biológica, linguística e agrícola são habitadas por sociedades tradi-
cionais, que se caracterizam por serem grupos humanos rurais que
não foram transformados pelo fenômeno da modernização agrícola.
Essas sociedades tradicionais podem ser consideradas herdeiras
de uma longa linhagem cultural, que inclui milhares de línguas
com distribuição restrita (endêmicas) e formas muito antigas, mas
igualmente válidas, de conhecer e manejar a biodiversidade, tanto
silvestre quanto domesticada. Em outras palavras, os membros dessas
sociedades tradicionais são os verdadeiros atores ou agentes sociais
a quem coube a tarefa de interagir com os mais ricos acervos de
diver­sidade biológica do planeta. São eles que manejam e conservam
a diversidade agrícola e que, juntos, falam mais de 6 mil idiomas,
representando a maior parte da diversidade cultural da espécie.
Como veremos, as sociedades tradicionais que reúnem os atributos
que mencionamos aqui são os chamados povos indígenas. As seções
seguintes são dedicadas a identificar e localizar esses povos no atual
panorama geográfico do planeta.

A apropriação da natureza pelos produtores rurais


Com base na análise das tendências demográficas, sob uma pers-
pectiva geográfica ou territorial, dois pesquisadores norte-americanos
(news.softpedia.com/news/may-23-2007) proclamaram o dia 23 de
maio de 2007 como uma data histórica na evolução da sociedade hu-
mana. Nessa data, pela primeira vez na história, a população da espécie

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identificada como urbana (3.303.992.253) superou a reconhecida como


rural (3.303.866.404).
O significado da data é inquestionável, mas a verdade é que as
estatísticas não atentam para um fenômeno de maior relevância so-
cioecológica: o número de seres humanos que se dedicam a manejar
a natureza. Considerando que nem toda a população caracterizada
como rural de fato se dedica a atividades de apropriação da natureza,
há uma outra data que parece ter importância ainda maior. Segundo
estatísticas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO), foi por volta de 1980 que, pela primeira vez, o
número de seres humanos considerados meros consumidores de bens
e serviços (população urbana) ultrapassou a população que os produz
e fornece a partir de processos e elementos da natureza (Figura 6).

Figura 6: População total e população rural no mundo, de 1950 a 2004


(em milhões)
População

Total 2496 3.677 4.448 5;292 6.070 6.377


Rural 1.422 1890 2.196 2.390 2.648 2.600
% 57 51 49 45 43 40

Total Rural

Fonte: www.fao.org.

Na verdade, de acordo com dados fornecidos pela FAO, foi no iní-


cio dos anos 1980 que a porção estritamente rural da espécie, definida

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como a população cuja subsistência depende da agricultura, pecuária,


silvicultura, extração e coleta, caça e pesca, tornou-se minoritária.
Essa definição mais estrita do rural permite quantificar a parcela da
sociedade humana contemporânea dedicada a trabalhar a natureza.
Assim, a população considerada rural carrega sobre os ombros a tarefa
de produzir alimentos, fibras, matérias-primas, cuidar dos manan-
ciais de água, seja para uso próprio ou para o resto da humanidade (é
importante destacar que deixamos de fora a atividade de extração de
minerais, incluindo o petróleo, uma vez que essas tarefas pressupõem
uma modalidade industrial realizada, de modo geral, mas não exclu-
sivamente, por membros da população urbana).
Os dados das últimas cinco décadas indicam que a parcela rural
do planeta constituiu a maioria da população humana até 1980, e
que, apesar de sua redução relativa (passou de 57% em 1950 para
40% em 2004), o número de indivíduos responsáveis por realizar
a apropriação dos recursos da natureza quase dobrou, ao passar
de 1,422 bilhão em 1950 para 2,6 bilhões em 2004 (Figura 6),
expressando o aumento da pressão que a sociedade humana exerce
sobre os ecossistemas.
A distribuição da população rural pelas principais regiões do
planeta (Figura 7) revela que hoje a imensa maioria se encontra nos
países do chamado Terceiro Mundo: China, Índia, Indonésia e boa
parte dos países da Ásia, África e América Latina. Assim, 95% da
população que se dedica a trabalhar a natureza habita os chamados
países agrícolas, e apenas 5% pertence aos países industrializados.
Nestes últimos, a população rural varia entre apenas 3% (Canadá
e Estados Unidos) e 9% (Europa, incluindo a Rússia) do total de
suas populações. Já nos países agrícolas, atinge dois terços (China),
mais da metade (Índia e os países africanos), quase a metade (In-
donésia) ou valores consideravelmente elevados (América Latina)
de sua população total.

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Figura 7: População total e população rural em 1999


para os principais países e regiões do mundo

Rural

Rural

* Inclui a Federação Russa e os ex-países da URSS.


Fonte: www.fao.org.

Por que essa diferença tão gritante na distribuição das populações


rurais dos países? A explicação para esse padrão está nos processos de
transformação tecnológica que ocorreram durante o último século, que
no fundo consistiram em um processo gradual ou abrupto de indus-
trialização da agricultura, da pecuária, da pesca e de outras práticas de
apropriação da natureza. Esse fenômeno, que no alvorecer do século
XXI levou ao panorama estatístico descrito anteriormente, também se
expressa nas paisagens da Terra, nas dinâmicas de crescimento demo-
gráfico e de migração, no delicado equilíbrio dos sistemas naturais ou
ecológicos e tem, como último de seus efeitos, um impacto decisivo
sobre a memória da espécie humana.

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De fato, ao observar a porcentagem da população total que se


identifica como rural nos países industrializados e nos agrícolas ou
do Terceiro Mundo (Figura 7), torna-se evidente a enorme proporção
de suas populações dedicadas ao trabalho com a natureza. Trata-se,
portanto, de considerar as várias modalidades de apropriação dos
recursos naturais. No mundo contemporâneo, podemos diferenciar
dois modos arquetípicos de apropriação dos ecossistemas: o modo
agrícola, tradicional ou camponês, e o modo agroindustrial, ocidental
ou moderno (Toledo et al., 2001). O primeiro teve origem há 10 mil
anos, quando os seres humanos aprenderam a domesticar e a culti-
var plantas e animais e a dominar certos metais, sendo por isso um
produto da chamada revolução neolítica. Já o segundo modo surgiu
apenas há cerca de 200 anos e é a expressão e o resultado da revolução
industrial e científica.
Enquanto o primeiro faz uma apropriação de pequena escala, com
altos níveis de diversidade, autossuficiência e produtividade ecológica,
tendo como base o uso de energia solar e biológica, o segundo funciona
em escalas médias e grandes, apresenta taxas muito altas de produtividade
do trabalho, mas muito baixas em termos de diversidade e autossuficiên­
cia, e tem como principais fontes de energia os combustíveis fósseis
(petróleo e gás), usados direta ou indiretamente em diversas tecnologias
(máquinas, aparelhos elétricos, fertilizantes, pesticidas, entre outros).
Embora a tendência da maior parte da literatura sobre o assunto
seja superestimar a superioridade tecnológica do modo agroindustrial
– quase exclusivamente em função de sua alta produtividade do tra-
balho, que permite o aumento dos rendimentos e, consequentemente,
do volume de bens obtidos por unidade de tempo ou de superfície (o
fluxo obtido dos ecossistemas) –, uma abordagem socioecológica iden-
tifica outras nove características fundamentais que também devem ser
consideradas como atributos de diferenciação entre esses dois modos
(Toledo et al., 2002).

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Ao incluir outros critérios, tais como escala, grau de autossuficiên-


cia, tipo de força de trabalho, sistemas de conhecimento e cosmovisão,
além da fonte de energia e a produtividade ecológica e do trabalho, é
possível fazer uma análise mais rigorosa desses dois modos historica-
mente configurados e altamente contrastantes. Pode-se ter também
uma visão mais objetiva do fenômeno da modernização agroindustrial
nas áreas rurais (Figura 8).

Figura 8: Principais critérios de diferenciação entre a produção tradicional ou


camponesa e a produção moderna ou agroindustrial

(C) (Ag)

Fonte: Toledo et al. (2002)

De acordo com esta nova abordagem, a modernização rural ou o


processo de transformação do modo tradicional, agrícola ou camponês
para o modo agroindustrial ou moderno, que vem acontecendo em
diferentes magnitudes, escalas e ritmos em grande parte do mundo du-
rante as últimas décadas, não implica apenas um aumento significativo

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na produção excedente, mas também provocou profundos impactos


sociais, econômicos, culturais e ecológicos. Entre estes, cumpre citar
a expulsão de milhões de produtores tradicionais, a concentração da
propriedade da terra, a desigualdade econômica, a destruição de cul-
turas (formas de conhecimento e visões de mundo) e, especialmente, a
superexploração dos solos, água e energia, a redução da biodiversidade,
a poluição por agrotóxicos e a modificação dos processos ecológicos
em nível local, regional e global.
No fundo, trata-se do encontro, da colisão entre o tradicional e o
moderno. Cabe, então, perguntar: que proporção da população con-
siderada rural em 2004 (2,6 bilhões) pode ser identificada como de
caráter tradicional no sentido de que trabalha a natureza utilizando
métodos não industriais ou modernos?

A produção de pequena escala


A pergunta não é de fácil resposta, não apenas pela complexi-
dade da análise em escala global, mas sobretudo pela ausência de
estatísticas confiáveis. No entanto, é possível fazer uma estimativa
aproximada. O critério mais importante que permite identificar a
população tradicional ou pré-moderna na atualidade (agricultores,
pastores, caçadores e pescadores artesanais) é a escala de produção.
Uma característica fundamental do uso tradicional da natureza é a
forma de apropriação em pequena escala, resultante de outro traço
também comum a esse segmento: o uso exclusivo de energia solar
(força muscular humana ou animal, vento, água e biomassa). Isso
significa que nem a tecnologia nem a fonte de energia utilizadas no
modo agrícola ou tradicional permitem uma apropriação além de
certa escala. A isso se soma o fato de que o objetivo final da produção
sob esse modelo é a reprodução da própria unidade produtiva (além
de um excedente produzido em circunstâncias diferentes), o que a
mantém em uma pequena escala (minifúndio).

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No caso das atividades não relacionadas estritamente à produção


agrícola, a apropriação em pequena escala se traduz em rebanhos
pouco numerosos (gado e pastoreio) ou em uma extração limitada de
produtos florestais ou pesqueiros. Apesar da importância desse fator,
as fontes estatísticas em escala mundial pouco ajudam na obtenção de
informações sobre esse aspecto.
Hoje, os exemplos de tamanhos de unidades produtivas em que
se realizam as atividades primárias ou rurais são contrastantes. De um
lado, há o caso da China, onde a propriedade rural é equitativamente
distribuída e o tamanho médio das unidades de produção passou de 0,8
ha no início da reforma agrária (1949-1952) (Ling, 1991, p. 6) para 0,5
ha em meados dos anos 1980 (Bramall, 1993, p. 277). O outro extremo é
bem ilustrado pelo caso do Brasil. O país detém o recorde de nação com
a distribuição de terras mais desigual do planeta: 50 mil proprietários
representam apenas 1% dos produtores rurais, mas dominam mais da
metade das terras do vasto território brasileiro, enquanto estima-se que
existam 12 milhões de trabalhadores sem terras (Robles, 2001).
A produção em pequena escala é uma forma de estimar a po-
pulação tradicional, tendo como base os dados fornecidos pela FAO
sobre a estrutura agrária dos países. A Figura 9 mostra a porcentagem
de unidades produtivas com mais e menos de 10 hectares para um
número considerável de países. Esse valor deve ser considerado apro-
ximativo e, claro, arbitrário para definir o limite entre o tradicional
e o moderno.
O Quadro 2, por sua vez, apresenta um panorama da importância
da pequena escala para um conjunto de 17 países, onde há informações
disponíveis sobre o tamanho da propriedade agrícola. Nesse caso, os
dados estatísticos permitiram calcular o número de unidades com 5
hectares ou menos. O número total de unidades chega a quase 1,5
bilhão em 1999, o que representa 220 milhões a mais do que foi cal-
culado para os mesmos países uma década antes (1990).

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Figura 9: Porcentagem de pequenos produtores agrícolas em países selecionados

Fonte: FAO.

Quadro 2: População pequenos produtores


em 17 países selecionados em 1999
País População % de proprietários População de pequenos
rural com < 5 ha agricultores
Ásia
China 855.167 100 855.167
Índia 553.227 84 464.710,68
Paquistão 78.021 71 55.394,81
Irã 18.447 73 13.466,31
Rep. da Coreia 4.334 100 4.334
África
Argélia 7.429 80 5.943,20
Egito 25.057 95 23.804,15
Tanzânia 25.773 100 25.773
América Latina
Brasil 28.617 44 12.591,48
Chile 2.372 49 1.162,28
Colômbia 8.958 60 5.374,80
Costa Rica 0,73 43 0,31
Equador 3.506 71 2.489,26
El Salvador 2.093 87 1.820,91
México 23.709 77 18.255,93
Peru 7.739 78 6.036,42
Venezuela 2.355 49 1.153,95
TOTAL 1.646.804,73 - 1.497.478,50
1990: 1.267.000
Fonte: www.fao.org. 220.000

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Esses dados sugerem que os países do Terceiro Mundo ainda contam


com uma enorme população tradicional. Possivelmente essa população
represente, com uma margem de erro difícil de precisar, entre 50% e
60% do total da população rural desses países. Considerando a rápida
transformação social e tecnológica que está em curso nas áreas rurais, a
estimativa anterior encerra um significado histórico, que anuncia o fim do
predomínio do tradicional no mundo rural do planeta. Estamos falando
de uma população tradicional de 1,3 a 1,6 bilhão de seres humanos, ou
seja, cerca de um quinto do total da população humana.
Outros pesquisadores chegaram a conclusões semelhantes. Se-
gundo Chambers (1997), por exemplo, dois terços dos agricultores
do Terceiro Mundo baseiam sua produção agrícola em seus próprios
recursos genéticos locais e no uso de energias renováveis. O autor tam-
bém aponta que maioria desses produtores (1,270 bilhão de pessoas)
é de pequena escala (Figura 10).

Figura 10: População total, rural, agrícola e indígena do mundo

População Total
6,7 bilhões
População
População
rural ou agrícola
urbana
45%
55%

PRODUTORES
RURAIS OU PRIMÁRIOS

Países do Países
terceiro mundo industrializados
95% 5%

AGRICULTORES
POPULAÇÃO INDÍGENA
Tradicionais > 300 milhões
60-80%
Modernos
20-40%

Fontes: www.wri.org; www.fao.org.

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A importância da agricultura tradicional


Embora tenham sido feitas muito poucas tentativas para avaliar
a contribuição do segmento tradicional para a sobrevivência de toda
a espécie humana, os dados apresentados anteriormente indicam
que essa parcela da humanidade ainda fornece grandes volumes de
alimentos, matérias-primas, água e outros bens e serviços ao resto do
mundo. Segundo Pretty (1995), a modernização das áreas rurais do
mundo que ocorreu durante a segunda metade do século XX levou
a uma configuração do espaço que possibilita distinguir três tipos
principais de agricultura: (1) a agricultura industrial, dominante nos
países desenvolvidos, é baseda em empresas de viés comercial, no uso
de grandes quantidades de insumos, pacotes tecnológicos, mecani-
zação, introdução de variedades genéticas melhoradas e no emprego
extensivo de recursos energéticos não renováveis (combustíveis fósseis,
como petróleo e gás); (2) as práticas agrícolas da chamada Revolução
Verde, que mantêm a mesma lógica da agricultura industrial embora
se concentrem na agricultura de irrigação nas terras baixas do Terceiro
Mundo. Ambos os sistemas agrícolas apresentam características co-
muns em termos de simplificação e padronização de culturas através
dos recursos genéticos gerados por tecnologias ex-situ; (3) os sistemas
agrícolas tradicionais, a agricultura indígena ou os sistemas agrícolas de
alta complexidade, cujas principais características são a diversidade de
culturas, o uso bastante reduzido de insumos externos, a predominância
do trabalho manual e o uso de tecnologias adaptadas in-situ voltadas
para a conservação dos recursos locais.
De acordo com Pretty (1995), as porcentagens da população mun-
dial que se beneficiava com esses três tipos de agricultura por volta do
final do século passado se distribuíam da seguinte forma: (1) a agri-
cultura industrial supria de 20% a 22% da população do mundo (1,2
bilhão de pessoas); (2) o modelo da Revolução Verde atendia a 43% da
população mundial (2,6 bilhões de pessoas); e (3) os sistemas agrícolas

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tradicionais abasteciam entre 30% e 35% da população mundial (1,9 a


2,2 bilhões). A partir desses dados, podemos deduzir que a agricultura
tradicional, que representa um quinto da população do mundo, não
só era capaz de se autoabastecer como ainda conseguia atender uma
população quase equivalente ou igual a ela própria.
A comparação entre as agriculturas tradicional, industrial e da Re-
volução Verde evidencia que a primeira é igualmente produtiva, além de
ser mais complexa e diversificada quanto ao manejo e à conservação dos
recursos locais, da biodiversidade e do germoplasma in-situ. Os sistemas
agrícolas tradicionais se encontram distribuídos por diversas paisagens,
incluindo as semiáridas, as tropicais úmidas e as montanhosas. Essas
mesmas áreas são habitadas por camponeses ou comunidades indígenas,
que constituem as unidades básicas de produção e são os usuários diretos
dos recursos hídricos e das florestas. Segundo Netting (1993, p. 3-4),
essas unidades manejam seus recursos através de direitos comunais; sua
produtividade por unidade de área é elevada e sustentável; o trabalho
exige dedicação por períodos de tempo relativamente longos; e são os
direitos hereditários que determinam quem pode permanecer e ter
autorização para trabalhar na terra. Todos esses fatores representam as
características fundamentais dos pequenos produtores.

Os povos indígenas
É possível propor uma distinção ainda mais fina e transcendente,
dentro da população considerada tradicional, ao fazer a identificação
dos povos indígenas. Estima-se que entre 5 e 6 mil do total de línguas
registradas no mundo são faladas apenas por conjuntos com um mi-
lhão ou menos de indivíduos, e estes são geralmente os pertencentes
aos chamados povos indígenas. Assim, eles representam entre 80%
e 90% da diversidade cultural do planeta. A população indígena do
mundo contemporâneo chega a mais de 300 milhões, vive em cerca de
75 dos 184 países do planeta e habita praticamente todos os principais

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biomas da Terra, especialmente os ecossistemas terrestres e aquáticos


menos perturbados (Burger, 1987; Toledo, 2001).
Os povos indígenas, também chamados povos tribais, aboríge-
nes ou autóctones, minorias nacionais ou povos originários, podem
ser mais bem definidos a patir dos oito critérios elencados a seguir:
(1) são descendentes dos primeiros habitantes de um território que
foi conquistado; (2 ) são povos intimamente ligados à natureza por
suas cosmovisões, conhecimentos e atividades produtivas, tais como
agricultores permanentes ou nômades, pastores, caçadores e coletores,
pescadores ou artesãos, que adotam uma estratégia de uso múltiplo de
apropriação da natureza; (3) praticam uma forma de produção rural de
pequena escala e de trabalho intensivo, que produz pouco excedente e
opera por meio de sistemas com pouco ou nenhum aporte de insumos
externos e baixo consumo de energia; (4) não mantêm instituições
políticas centralizadas, organizam sua vida em nível comunitário e
tomam decisões por consenso; (5) compartilham língua, religião,
valores morais, crenças, vestimentas e outros critérios de identidade
étnica, bem como estabelecem uma relação profunda (material e espi-
ritual) com um determinado território; (6) têm uma visão de mundo
diferente, e mesmo oposta à que prevalece no mundo moderno (urbano
e industrial), ao assumirem uma conduta não materialista de custódia
da Terra, que consideram sagrada, e de apropriação dos recursos natu-
rais por meio de trocas simbólicas; (7) geralmente vivem subjugados,
explorados ou marginalizados pelas sociedades dominantes; e (8) são
compostos por indivíduos que se autoidentificam como indígenas. Com
base no percentual da população total identificada como pertencente
a uma ou várias culturas indígenas, é possível reconhecer um grupo
de nações com uma forte presença desses povos: Papua Nova Guiné
(77%), Bolívia (70%), Guatemala (47%), Peru (40%), Equador (38%),
Mianmar (33%), Laos (30%), México (12%) e da Nova Zelândia (12%).
Por outro lado, o número absoluto de pessoas reconhecidas como indí-

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genas permite identificar os países com grandes populações indígenas,


como Índia (mais de 100 milhões) e China (entre 60 e 80 milhões).

Povos indígenas e biodiversidade


A evidência científica mostra que não há praticamente nenhum
recanto do planeta que não tenha sido habitado, modificado ou ma-
nipulado ao longo da história. Embora aparentemente virgens, muitas
das últimas áreas silvestres, por mais remotas ou isoladas, são hoje
habitadas por grupos humanos ou pelo menos o foram por milênios
(Gómez-Pompa; Kaus, 1994). Os povos indígenas vivem em territó-
rios – sobre os quais têm direitos reais ou implícitos – que em muitos
casos apresentam níveis excepcionalmente elevados de biodiversidade.
A diversidade cultural humana em geral está associada às principais
concentrações de biodiversidade que restam sobre a Terra, e tanto a
diversidade cultural quanto a biológica estão ameaçadas ou em perigo.
Os povos indígenas ocupam uma porção substancial dos ecossistemas
menos perturbados do planeta, como as florestas tropicais e boreais, as
montanhas, os campos (savanas), tundras e desertos, assim como grandes
áreas costeiras e ribeirinhas do mundo, incluindo manguezais e recifes
de coral (Durning, 1993). A importância dos territórios indígenas para
a conservação da biodiversidade é, portanto, evidente. Na verdade, eles
controlam, legalmente ou não, imensas áreas de recursos naturais.
Entre os exemplos mais notáveis, destacamos o caso dos Inuit
(anteriormente conhecidos como esquimós), que governam uma re-
gião que abrange um quinto do território do Canadá (222 milhões
de hectares); das comunidades indígenas da Papua Nova Guiné, cujas
terras representam 97% do território nacional; e das tribos da Austrália,
com cerca de 90 milhões de hectares. Com uma população de pouco
mais de 250 mil habitantes, os índios do Brasil se distribuem por 565
territórios, abrangendo uma área de mais de 100 milhões de hecta-
res, principalmente na bacia amazônica. Em suma, em escala global,

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estima-se que a área total sob controle indígena provavelmente atinja


entre 12% e 20% da superfície terrestre.
O melhor exemplo de sobreposição de áreas indígenas e áreas
biologicamente ricas é o caso das florestas tropicais úmidas. De fato,
há uma clara correspondência entre as áreas de florestas tropicais re-
manescentes e a presença de povos indígenas na América Latina, na
Bacia do Congo, na África, e em vários países da Ásia tropical, como
as Filipinas, a Indonésia e a Papua Nova Guiné. É notável também a
forte presença de povos indígenas no Brasil, na Indonésia e no Zaire,
que juntos reúnem 60% de todas as florestas tropicais do mundo.
Muitas florestas temperadas do planeta também estão sobrepostas
a territórios indígenas, como na Índia, em Mianmar, no Nepal, na
Guatemala, nos países andinos (Equador, Peru e Bolívia) e no Canadá.
Finalmente, mais de 2 milhões de habitantes das ilhas do Pacífico Sul, a
maioria pertencente a povos indígenas, ainda pescam e exploram recursos
marinhos em áreas de alta biodiversidade (como os recifes de coral).
Em suma, a alta correspondência entre as áreas de maior biodiver-
sidade do planeta e os territórios indígenas tem levado a um axioma
biocultural. Esse axioma, chamado por B. Nietschmann (1992) de
conceito de conservação simbiótica, no qual a diversidade biológica e a
cultural são reciprocamente dependentes e geograficamente conterrâ­
neas, constitui um princípio fundamental da teoria da conservação
e suas aplicações, e é a expressão da nova pesquisa integrada e in-
terdisciplinar que vem ganhando reconhecimento dentro da ciência
contemporânea.

A importância das práticas conservacionistas dos povos


indígenas
Para os povos indígenas, a terra e, de modo geral, a natureza têm
uma qualidade sagrada que é quase inexistente no pensamento oci-
dental (Berkes, 1999). A terra é reverenciada e respeitada, e sua inalie-

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nabilidade se reflete em praticamente todas as cosmovisões indígenas.


Os povos indígenas não veem a terra meramente como um recurso
econômico. De acordo com suas cosmovisões, a natureza é a principal
fonte de vida que alimenta, sustenta e ensina. A natureza é, portanto,
não só uma fonte produtiva, mas o próprio centro do universo, o núcleo
da cultura e a origem da identidade étnica.
No coração desse vínculo tão forte está a percepção de que todas
as coisas vivas e não vivas e os mundos social e natural estão intrinse-
camente ligados (princípio da reciprocidade). De particular interesse
é a pesquisa feita por diversos autores (Reichel-Dolmatoff; Descola;
Van der Hammen, 2003) sobre o papel exercido pela cosmologia de
vários grupos indígenas como um mecanismo regulador do uso e do
manejo dos recursos naturais.
Na cosmovisão indígena, cada ato de apropriação da natureza
tem que ser negociado com todas as coisas existentes (vivas e não
vivas) por meio de diferentes mecanismos, tais como rituais agrícolas
e diversos atos xamânicos (trocas simbólicas). Assim, os humanos são
vistos como uma forma particular de vida, que participa de uma co-
munidade mais ampla de seres vivos regidos por um único conjunto
de regras de conduta.
Paralelamente, as sociedades indígenas detêm um repertório de
conhecimento ecológico que geralmente é local, coletivo, diacrônico e
holístico. De fato, como elas possuem uma longa história de utilização
dos recursos, criaram sistemas cognitivos sobre os próprios recursos
naturais de seu entorno, que são transmitidos de geração para geração.
A transmissão desse conhecimento se faz através da linguagem, e é
por isso que o corpus é geralmente um conhecimento não escrito. A
memória é, portanto, o recurso intelectual mais importante entre as
culturas indígenas ou tradicionais (Toledo, 2005).
O conhecimento indígena é holístico porque está intrinsecamente
ligado às necessidades práticas de uso e manejo dos ecossistemas

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locais. Embora o conhecimento indígena se baseie em observações


em escala geográfica bastante restrita, ele deve fornecer informações
detalhadas sobre todo o cenário representado pelas paisagens especí-
ficas em que os recursos naturais são usados e manejados. As mentes
indígenas, portanto, não só têm informações detalhadas sobre as
espécies de plantas, animais, fungos e alguns microrganismos, mas
também reconhecem os tipos de minerais, solos, água, neve, topo-
grafia, vegetação e paisagens.
Da mesma forma, como veremos, o conhecimento indígena não
se restringe aos aspectos estruturais da natureza ou a objetos ou com-
ponentes e sua classificação (etnotaxonomias), mas abrange também
dimensões dinâmicas (de padrões e processos), relacionais (ligadas
às relações entre os elementos ou eventos naturais) e utilitárias dos
recursos naturais.

Por que os produtores tradicionais e indígenas adotam uma


estratégia de uso múltiplo?
Todo produtor rural segue uma determinada estratégia para realizar
o processo de apropriação da natureza. Podemos definir uma estratégia
como a maneira particular com que cada família reconhece, atribui
e organiza seus recursos produtivos, seu trabalho e o dinheiro gasto
a fim de manter e reproduzir suas condições materiais e imateriais de
existência. Geralmente a subsistência dos povos indígenas é obtida
por meio da apropriação de diversos recursos biológicos localizados
no seu entorno imediato. Assim, a sobrevivência dos povos indígenas
se baseia mais em trocas ecológicas (com a natureza) do que em trocas
econômicas (com os mercados).
Como sua produção é baseada mais em trocas ecológicas do que
econômicas, os produtores indígenas são obrigados a adotar mecanis-
mos de sobrevivência que garantam um fluxo ininterrupto de bens,
matéria e energia. Sendo assim, as famílias e comunidades indígenas

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tendem a realizar uma produção não especializada, explorando o


princípio da diversidade de recursos e das práticas produtivas. Isso
leva à utilização de mais de uma unidade ecogeográfica ou à ocupação
de mais de uma paisagem no espaço produtivo concreto. Além disso,
essas comunidades costumam fazer a integração e a combinação de
diferentes práticas de produção, a reciclagem de materiais, energia, água
e resíduos, e a diversificação dos produtos obtidos nos ecossistemas.
Essa estratégia pode ser estabelecida tanto no nível da unidade
familiar quanto no da comunidade, e até mesmo de toda uma região.
Esse padrão ocorre tanto no tempo quanto no espaço. Na dimensão
espacial, realiza-se a utilização máxima de todos os ecossistemas dispo-
níveis e suas respectivas unidades de paisagem. Em termos de tempo,
o objetivo é obter a maior quantidade de produtos necessários que
cada paisagem oferece ao longo do ciclo anual, que é a expressão que
os diferentes ciclos biogeoquímicos adquirem na dimensão temporal
humana.
A família utiliza os componentes bióticos e abióticos da paisagem
para satisfazer as suas necessidades básicas. A produção camponesa gera,
assim, uma infinidade de produtos, incluindo alimentos, instrumentos
domésticos e de trabalho, materiais para a casa, remédios, combustíveis,
fibras, forragem para os animais e substâncias como gomas, resinas,
corantes e estimulantes. As trocas econômicas são feitas para que os
agricultores obtenham produtos manufaturados com o dinheiro obtido
na venda de seus produtos (monetarização) e, em alguns casos, por
meio da simples troca de produtos (escambo).
Do ponto de vista teórico, pode-se supor que os produtores que se
apropriam de paisagens com recursos mais limitados (por exemplo, não
florestais ou de alta sazonabilidade ou imprevisibilidade) serão mais
frágeis e vulneráveis na troca econômica, tecnológica e cultural do que
aqueles que vivem em um ambiente rico em recursos (por exemplo,
áreas úmidas tropicais ou ecótonos, que são zonas de contato entre

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ecossistemas). No contexto de uma racionalidade econômica em que


predominam os valores de uso, os produtores são forçados a adotar uma
estratégia que maximize a variedade de produtos gerados para suprir as
necessidades da unidade familiar ao longo do ano. E esse é o principal
traço da unidade de produção tradicional ou indígena. Na dimensão
espacial, os camponeses manipulam a paisagem natural de modo a
manter e promover duas características ambientais: a heterogeneidade
espacial e a diversidade biológica.
Essa estratégia de usos múltiplos (Toledo, 1990) permite que os
produtores manejem diferentes unidades ecogeográficas, assim como
vários componentes bióticos e físicos. Nessa perspectiva, o produtor
camponês continuará evitando a especialização de suas áreas natu-
rais e atividades produtivas, um traço essencialmente contraditório
em relação às tendências predominantes da maioria dos projetos de
modernização rural. Tudo isso explica por que os produtores não são
apenas agricultores ou pescadores ou criadores de gado.
Embora a agricultura costume ser a principal atividade produtiva
de qualquer unidade doméstica tradicional nas áreas terrestres, ela é
sempre complementada (e, em alguns casos, substituída como principal
atividade) por práticas como a coleta, a extração florestal, a pesca, a
caça, a pecuária e o artesanato. A combinação dessas práticas protege
a famíla das flutuações do mercado e das mudanças ou eventualidades
ambientais. Em termos ideais, uma exploração tipicamente camponesa
é aquela em que suas duas fontes de recursos naturais tornam-se um
mosaico em que culturas agrícolas, áreas de pousio, florestas primárias e
secundárias, hortas familiares, pastagens e corpos d’água são segmentos
de um sistema integrado de produção.
Esse mosaico representa o cenário em que o produtor tradicional,
como um estrategista do uso múltiplo dos recursos, viabiliza sua subsis-
tência através da manipulação dos componentes geográfico, ecológico,
biológico e genético (genes, espécies, solos, topografia, clima, água e

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

espaço) e dos processos ecológicos (sucessão, ciclos de vida e fluxos de


matérias). A mesma diversificação costuma ser reproduzida em cada
um dos sistemas produtivos, por exemplo, cultivos poliespecíficos
terrestres ou aquáticos em vez de monocultivos agrícolas, pecuários,
florestais ou piscícolas. Com essa estratégia, a produção tende a se tornar
um sistema integrado de caráter agropecuário-florestal-pesqueiro ou
agrossilvipastoril-piscícola.
Em suma, as famílias indígenas tendem a realizar uma produção
não especializada com base no princípio da diversidade de recursos
e práticas. Esse modo de subsistência resulta no aproveitamento má-
ximo de todas as paisagens disponíveis por meio da reciclagem de
materiais, energia e resíduos, da diversificação dos produtos obtidos
e, principalmente, da integração de diferentes práticas: agricultura,
coleta, extração florestal, sistemas agroflorestais, pesca, caça, pecuária
de pequena escala e artesanato.

Implicações ecológicas da estratégia indígena


Uma estratégia de usos múltiplos como a adotada pelo produtor
tradicional, que se caracteriza por um sistema integrado de práticas
produtivas e se expressa no espaço como uma paisagem diversificada,
tem várias vantagens do ponto de vista ecológico. Em primeiro lugar,
constitui uma resposta à heterogeneidade ecogeográfica das paisa-
gens, uma vez que geralmente o produtor indígena tende a manter
ou estabelecer unidades de produção de acordo com as características
e potencialidades das unidades de paisagem com as quais se depara.
Esse mosaico produtivo permite e promove, entre outras coisas, as
interações biológicas, os mecanismos de regulação das populações de
organismos, a estrutura trófica e a ciclagem de nutrientes. Em outra
dimensão, favorece e até aumenta a diversidade biológica e genética ex-
pressa na riqueza de espécies e variedades de plantas e animais presentes
nesse mosaico. Por exemplo, a variedade de espécies vegetais e animais

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encontrada em um fragmento de, digamos, mil hectares convertidos


em um mosaico de paisagens (incluindo manchas de vegetação nativa)
é maior do que em uma mesma extensão de terra que esteja coberta
com sua vegetação original.
Além disso, a manutenção de policultivos agrícolas, silvícolas ou
de peixes (e sua integração) aumenta a produtividade dos sistemas e
reduz a incidência de plantas espontâneas e insetos-praga. Manter
esses mosaicos produtivos também acarreta vantagens na dimensão
temporal, uma vez que favorece um uso mais eficiente do esforço do
produtor no decorrer do ciclo anual. De certa forma, essa estratégia
permite conciliar a atividade produtora e os ciclos naturais (biológicos
e físico-químicos) durante todo o ano.
O resultado final de tudo isso é o desenvolvimento e a mul-
tiplicação de sistemas de produção que vêm apresentando muitos
dos princípios e atributos recomendados pelas novas perspectivas
ecológicas voltadas para a produção rural, como a agroecologia
(Altieri, 1987; Conway, 1985; Gliessman, 1990) ou a agrofloresta
(Nair, 1990). Embora os seguidores dessas correntes tendam a se
concentrar em sistemas específicos de produção (geralmente agríco-
las ou agroflorestais) ou no uso de espécies, sem fazer uma leitura
integral, contextualizada e mais abrangente dos sistemas produtivos
e suas implicações ecológicas, econômicas e históricas, grande parte
de seus principais autores reconhecem nos sistemas tradicionais os
princípios que postulam (Altieri, 1995).
Por exemplo, tudo indica que os ecossistemas que foram apropria-
dos por essas populações são mais estáveis, uma vez que a maior diversi-
dade estrutural e funcional promovida pelos mosaicos produtivos é uma
característica que favorece, em princípio, a resistência ou a resiliência
dos sistemas naturais que passaram por intervenções. Podemos dizer,
portanto, que a humanização da natureza por meio da estratégia do
uso múltiplo acaba assumindo a forma de uma artificialização mínima,

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atenuando os riscos tanto ecológicos quanto econômicos dos sistemas


de produção e reduzindo os aportes externos de insumos materiais,
energéticos ou de mão de obra.
Provavelmente, o melhor indicador do que foi aqui descrito sejam
os altos índices de eficiência energética que os sistemas tradicionais
tendem a apresentar, o que aponta para a existência de mecanismos de
restauração do equilíbrio ecológico nos sistemas de produção. Esses
mecanismos permitem, em conjunto, a regeneração das populações
de espécies e da fertilidade dos solos, bem como a renovação dos
recursos hídricos e dos maciços de vegetação envolvidos no processo.
Um segundo atributo positivamente afetado é a produtividade, con-
siderando não só o volume extraído ou canalizado dos ecossistemas, mas
também a variedade de produtos e sua permanência ao longo do ciclo
anual, dois aspectos que costumam ser ignorados por enfoques exclusi-
vamente econômicos. Um terceiro atributo favorecido é a permanência
dessa produtividade ao longo do tempo. De fato, do ponto de vista
ecológico, uma das características fundamentais de grande parte dos
sistemas produtivos camponeses é a sustentabilidade, expressa no uso dos
recursos durante centenas e até milhares de anos. Por fim, intimamente
relacionado com a estabilidade, o aporte mínimo ou nulo de insumos
externos promove a autossuficiência (na escala da unidade familiar de
produção, das comunidades ou mesmo das regiões) em várias dimensões:
alimentar, energética, tecnológica, de materiais de construção etc.
Pesquisas recentes têm revelado a estreita correlação entre as áreas
de maior riqueza biológica do mundo e os territórios indígenas, o que
pode ser explicado pela adoção do uso múltiplo das paisagens, já que
essa estratégia, ao garantir a subsistência por meio de uma gama de ati-
vidades, reduz seu efeito devastador, ou seja, gera muito pouco impacto
sobre os hábitats naturais. Essa hipótese tem sido demonstrada por meio
da análise ecogeográfica do uso do solo por parte das comunidades
indígenas da Reserva de Bosawas, na Nicarágua (Stocks et al., 2007).

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Povos indígenas e regiões prístinas (intocadas)


Atualmente se reconhece que muitas das chamadas paisagens
prístinas do planeta são, na verdade, paisagens antropogênicas, as
quais são produto das atividades humanas que modificaram o
entorno natural por várias gerações (Gómez-Pompa; Kauss, 1992;
Hirsch; O’Hanlon, 1995). A título ilustrativo, pode-se mencionar
o caso das f lorestas tropicais, que não podem ser consideradas
virgens ou como produto exclusivo da natureza, já que atualmente
sabe-se que são o resultado do manejo realizado por seus habitantes
durante milhares de anos. A história das florestas remonta à his-
tória dos seres humanos, e a história dos seres humanos reflete sua
relação com as florestas, pois ambos fazem parte do mesmo mundo
(Barrera-Bassols, 2003).
Diante do exposto, é muito improvável que essas áreas prístinas
realmente existam (Denevan, 1992; Gómez-Pompa; Kauss, 1992;
Balée, 1994). Como afirmam Sponsel et al., (1996, p. 25):

De qualquer forma, o conceito de uma área intocada em que ninguém


(exceto alguns biólogos) pode estar mostra-se cada vez mais como um
luxo ocidental impraticável, já que as necessidades básicas de muitas
sociedades (seu crescimento e rápido desenvolvimento) dependem das
áreas florestais. Com base no exposto, o manejo adequado das florestas
é o verdadeiro desafio para a conservação, mais que a demarcação e o
isolamento de áreas prístinas.

Considerando que a natureza e os seres humanos têm se influencia-


do reciprocamente por milênios, não é possível conceber um isolamento
total. De fato, é crescente o número de evidências demonstrando esse
estreito vínculo, especialmente em áreas megadiversas biológica e
culturalmente. Diante disso, não se pode dizer que seja uma casuali-
dade que as áreas de maior biodiversidade sejam habitadas por povos
indígenas, fato que merece uma explicação.

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A sobreposição geográfica das diversidades biológica, linguística


e agrícola
As complexas conexões entre as dimensões linguística, biológica
e agrícola da diversidade se tornam evidentes quando são analisadas
em escala global (Figura 11). No âmbito dos países individualmente,
existe uma estreita correlação entre essas três expressões da diversidade.
Tal correlação revela que a maioria das línguas e espécies endêmicas se
encontram nos países situados no cinturão intertropical. Além disso,
uma parcela considerável da população rural desses países, localizados
nos principais centros de dispersão de plantas e animais domesticados,
atualmente ainda mantém práticas de manejo, seleção e conservação
da diversidade genética das espécies e variedades domesticadas.

Figura 11: Os dez países mais importantes do ponto de vista biocultural,


definidos em função dos centros de diversidade biológica, linguística e agrícola
e da presença de população tradicional

Centros de diversidade Centros de diversidade


biológica linguística

Centros de origem Centros de


e difusão agrícola e pecuária populações tradicionais

O cinza-escuro, o cinza-claro e o branco indicam, respectivamente, alta, média e baixa presença de centros.

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Embora a diversidade do mundo vivo seja o resultado de um longo


processo evolutivo, que levou cerca de 3,5 bilhões de anos, e a diver-
sidade das culturas, por sua vez, seja o resultado de apenas 100 mil
anos de evolução, ambas estão ligadas desde tempos imemoriais, por
razões produtivas, espirituais e éticas. Em escala global, a diversidade
linguística da espécie humana está intimamente associada às principais
concentrações de biodiversidade existentes. De fato, há evidências
significativas de sobreposições nos mapas globais entre as áreas de
elevada riqueza biológica e as de alta diversidade de línguas, que é o
melhor indicador de distinção de uma cultura. Essa correlação pode
ser verificada tanto com base em análises geopolíticas realizadas em
cada país quanto utilizando critérios biogeográficos.
Há, em primeiro lugar, uma forte correlação que se torna evidente
quando os mapas de distribuição da biodiversidade e da diversidade de
línguas são sobrepostos (Durning, 1993). De acordo com o Ethnologue­
(www.ethnologue.org), o mais detalhado e completo catálogo de idio-
mas do mundo, em 2004 havia um total de 6.703 línguas, que são em
sua imensa maioria orais. Nesse cenário, 12 países detêm 54% de todas
as línguas: Papua Nova Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, Austrália,
México, Camarões, Brasil, Zaire, Filipinas, Estados Unidos e Vanuatu.
Como foi demonstrado, de acordo com as análises mais deta-
lhadas sobre a biodiversidade a partir de uma perspectiva geopolítica
(Mittermeier; Goettsch-Mittermeier, 1997), 12 países hospedam o
maior número de espécies e de espécies endêmicas (com populações
de distribuição restrita). Essas nações consideradas países megadiversos
são: Brasil, Indonésia, Colômbia, Austrália, México, Madagascar, Peru,
China, Filipinas, Índia, Equador e Venezuela (Quadro 3).
Sendo assim, a primeira correlação que se pode estabelecer entre a
diversidade linguística e a diversidade biológica aparece em estatísticas
globais, uma vez que nove dos doze principais centros de diversidade
linguística também constam no registro da megadiversidade biológica,

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enquanto, de forma recíproca, nove dos países com a maior riqueza


de espécies e endemismos também figuram na lista das nações com o
maior número de línguas endêmicas (Quadro 3).

Quadro 3: Países com maior número de espécies (riqueza) de plantas e animais


e endemismos (espécies de distribuição restrita)
Riqueza Endemismo Ambos
* Brasil 1 2 1
* Indonésia 3 1 2
* Colômbia 2 5 3
* Austrália 7 3 4
* México 5 7 5
* Madagascar 12 4 6
* Peru 4 9 7
* China 6 11 8
* Filipinas 14 6 9
* Índia 9 8 10
Equador 8 14 11
Venezuela 10 15 12

*Países megadiversos em termos de número de línguas.


Fonte: Mittermeier; Göettsche-Mittermeier (1997)

Por outro lado, é também possível reconhecer sete países considera-


dos megadiversos do ponto de vista tanto linguístico quanto biológico.
Entre eles, estão três ilhas – Indonésia, Papua Nova Guiné e Austrália
– e quatro grandes países continentais – China, México, Índia e Zaire
(República Democrática do Congo). Juntos, esses países concentram
a maior diversidade de línguas do mundo (43% a 47%), assim como
detêm entre 56% e 65% da diversidade total de plantas superiores e
30% a 37% das reservas de plantas endêmicas em escala global.
Há também outra importante correlação entre a diversidade de
mamíferos e a diversidade linguística. De acordo com Harmon (1996a),
os 25 países com maior diversidade de línguas endêmicas registram
uma grande diversidade de vertebrados (mamíferos, répteis e anfíbios).
Harmon considera que as línguas endêmicas estejam restritas a um
único país. Com base nesse critério, 83% dos idiomas do mundo seriam

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endêmicos. Por outro lado, as espécies endêmicas estariam restritas a


uma área específica (WRI, 1988). Dos 25 países com alta diversidade
de vertebrados endêmicos, 16 (64%) também estão entre os países com
elevada diversidade de línguas endêmicas (Harmon, 1996a).
Com base nessas considerações, Harmon propõe que há três prin-
cipais fatores ambientais e geográficos que explicam tal correlação: (1)
os grandes países com padrões ecogeográficos complexos apresentam
elevado endemismo de espécies em função de seu tamanho e de sua
complexidade ecológica. Os mesmos fatores favoreceram o isolamento
de pequenos grupos que prevaleciam antes da invasão europeia, o que
permitiu a evolução de muitos idiomas autônomos; (2) o isolamento
físico das áreas continentais permitiu que nas nações insulares ocorresse
um processo de adaptação e evolução de espécies e línguas, o que os
levou a apresentar um elevado número de endemismos; (3) os países
tropicais têm mais diversidade de espécies do que os países boreais,
temperados e mediterrâneos (WCMC, 1992). Esses países também
têm muitas línguas endêmicas por sua riqueza natural e suas popula-
ções locais de caçadores-coletores. Harmon (1996a, p. 98) afirma que:
“Nos países onde essas três condições coincidem, há grandes chances
de endemismos e riqueza tanto de biodiversidade quanto de línguas.”
Por outro lado, existe também uma estreita correlação entre a
megadiversidade de aves e a diversidade linguística por país. Sete dos
países com o maior número de línguas endêmicas estão na lista dos
14 países com maior diversidade de aves. Sendo assim, pode-se dizer
que existe uma correlação entre 40% dos países com megadiversidade
de aves e 47% de todas as línguas do mundo, o que se assemelha ao
caso anteriormente mencionado sobre a relação entre a diversidade de
mamíferos e plantas com a diversidade de línguas endêmicas.
Os vínculos entre a diversidade biológica e a linguística também po-
dem ser ilustrados usando dados do Projeto Global 200, um programa da
World Wildlife Fund (WWF), desenvolvido como uma nova estratégia

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para identificar prioridades de conservação por meio de uma abordagem


ecorregional. Como parte desse programa, a WWF identificou uma lista
de 233 ecorregiões biológicas terrestres, de água doce e marinhas, que são
representativas da mais rica diversidade de espécies e hábitats na Terra.
Uma análise realizada pela People & Conservartion Unit da WWF
sobre os povos indígenas presentes nas 136 ecorregiões terrestres do Pro-
jeto Global 200 (Oviedo et al., 2000; consulte também www.terralingua.
com) revelou padrões interessantes. Como mostra o quadro 4, cerca de
80% das ecorregiões são habitadas por um ou mais povos indígenas, e
metade das culturas indígenas estimadas no mundo habita essas áreas.
Em termos biogeográficos, todas as regiões, exceto a Paleártica, têm 80%
ou mais de seus territórios habitados por povos indígenas. Finalmente,
cumpre ressaltar que os hotspots agrícolas estão correlacionados com as
áreas mais importantes do ponto de vista da diversidade linguística endê-
mica do mundo, razão pela qual essas áreas constituem um importante
acervo de recursos agrícolas e culturais in-situ. Essas áreas geralmente
apresentam sistemas agrícolas tradicionais que são bem adaptados aos
complexos microambientes ecogeográficos. Além disso, nessas áreas o
manejo dos recursos naturais e, especialmente, da biodiversidade silvestre
e cultivada faz parte das estratégias de subsistência das populações locais.

Quadro 4: Povos indígenas (PI) dentro das ecorregiões terrestres do Projeto Global 200
Região Ecorregiões Ecorregiões % N. de PI em Total de PI %
com PI regiões em ecorre-
giões
Mundo 136 108 79 2.810 2.445 48
África 32 25 78 983 414 42
Neotropical 31 25 81 470 230 51
Neártica 10 9 90 147 127 86
Ásia e Pacífico (indo- 24 21 88 298 225 76
-malaio)
Oceania 3 3 100 23 3 13
Paleártia 21 13 62 374 11 30
Australásia 15 12 80 315 335 65
Fonte: WWF/Unep/terralingua (2000)

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III. OS CONHECIMENTOS
TR A DICIONA IS: A E SSÊNCI A
DA MEMÓR I A

Introdução
Nos ambientes acadêmicos da ciência moderna, os pesquisadores
aprendem a entender as técnicas, a inventariar as espécies utilizadas
e a desvendar os sistemas de produção, energia e abastecimento por
meio dos quais os grupos humanos se apropriam da natureza. Mas
raramente são ensinados a reconhecer a existência de uma experiência,
de certa sabedoria, acumulada nas mentes de milhões de homens e
mulheres que diariamente manejam a natureza utilizando justamente
essas técnicas, essas espécies e esses sistemas. Hoje, no alvorecer de um
novo século, esses homens e mulheres ainda configuram a maior parte
da população dedicada a se apropriar dos ecossistemas do planeta. E
acreditamos que é justamente por essa omissão e esquecimento por
parte da pesquisa científica – obra e fundamento da modernidade – que
a civilização industrial fracassou em sua busca por realizar um manejo
adequado da natureza.
Essa colocação nos leva a reconhecer a existência de duas tradições
intelectuais, cada uma com origens, características e capacidades dife-
rentes. Se, por um lado, o Ocidente concebeu formas de compreender
a natureza e de se articular com ela, cujas origens remontam apenas ao
início da Revolução Industrial, por outro, sabemos que na maior parte do

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mundo existem, de forma paralela, outras modalidades de relação com


a natureza que, embora originadas há milhares de anos, encontram-se
presentes no mundo contemporâneo. Essas modalidades de articulação
com a natureza de origem pré-moderna ou, se preferir, pré-industrial,
encontram-se em mais de 6 mil culturas não ocidentais (os povos tradi-
cionais) que existem neste início de milênio nas áreas rurais de diversas
nações e que, por resistência ou marginalização, conseguiram evitar a
expansão cultural e tecnológica do mundo industrial (Maffi, 2001).
Esses redutos ainda conservam valores civilizatórios tradicionais ou
não modernos em sua contínua interação com a natureza. Essa outra
tradição intelectual do ser humano, cuja vigência enquanto combinação
de teoria e ação perante o universo natural passou despercebida até
muito recentemente, não somente é anterior àquela criada pelo Ociden-
te, como remonta à própria origem da espécie humana. Como iremos
demonstrar, ela constitui outra forma de aproximação ao mundo da
natureza. Chegamos assim a uma conclusão determinante: que entre
os seres humanos não há uma, mas duas formas de relacionamento
com a natureza. Há, portanto, não apenas uma, mas duas ecologias.
Essa percepção da existência de duas formas de tradição intelectual
tem sido registrada por alguns autores tanto do campo da sociologia
da ciência, como Latour (1993), quanto da filosofia, como Feyerabend
(1982), que as chamou de conhecimento abstrato e conhecimento histó-
rico. Já para Villoro (1982), é necessário fazer uma distinção entre o
conhecer e o saber.
Entretanto, foi Lévi-Strauss, em seu livro El pensamiento salvaje
(1962, p. 32)* quem estabeleceu de forma taxativa uma distinção clara
entre o que denominou a ciência neolítica e a ciência moderna:

* A tradução de ambos os trechos da referida obra de Lévi-Strauss foi obtida a partir


da edição brasileira de O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas:
Papirus, 1969, p. 30-33. (N. T.)

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(...) para elaborar técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitem
cultivar sem terra ou sem água; para transformar grãos ou raízes tóxicas em
alimentos ou ainda utilizar essa toxicidade para a caça, a guerra ou o ritual,
não duvidemos de que foi necessária uma atitude de espírito verdadeira-
mente científico, uma curiosidade assídua e sempre alerta, uma vontade
de conhecer pelo prazer de conhecer, pois apenas uma pequena fração das
observações e experiências (sobre as quais é preciso supor que tenham sido
inspiradas antes e sobretudo pelo gosto do saber) podia fornecer resultados
práticos e imediatamente utilizáveis*.

Mas por que o conhecimento científico é tão recente enquanto


grandes conquistas da humanidade existem há, pelo menos, 10 mil
anos? A essa questão, que denominou de paradoxo neopolítico, Lévi-
-Strauss responde:
O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes
de pensamento científico, um e outro funções, não certamente estádios desi-
guais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em
que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento científico – um aproxi-
madamente ajustado ao da percepção e ao da imaginação, e outro deslocado;
como se as relações necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna,
pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito próximo da
intuição sensível e outro mais distanciado (1962, p. 33).
(...) Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resulta-
dos além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos
científica, e seus resultados não foram menos reais. Assegurados 10 mil anos
antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização (1962, p. 35).

Ao acatar a proposta de Lévi-Strauss, teríamos que aceitar a exis-


tência de pelo menos três principais modalidades de conhecimento ao
longo da história humana: uma ciência paleolítica, anterior ao advento
da agricultura e da pecuária, uma ciência neolítica, de 10 mil anos
atrás, e uma ciência moderna, cuja idade remonta há apenas 300 anos,
período no qual foram fundadas as primeiras sociedades científicas na
Inglaterra e na França (Figura 12).

* A tradução de ambos os trechos da referida obra de Lévi-Strauss foi obtida a partir


da edição brasileira de O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas:
Papirus, 1969, p. 30-33. (N. T)

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Figura 12: As três principais modalidades do conhecimento humano


sobre a natureza

Inspirado em Lévi-Strauss (1962)

As outras ecologias
Em 1889, J. A. Voelcker, renomado cientista da Royal Agricul-
tural Society da Inglaterra, foi enviado pelo governo de seu país para
explorar as vantagens e virtudes da agricultura hindu. Depois de um
ano percorrendo os campos agrícolas da Índia, Voelcker publicou um
relatório, que apareceu em 1893, no qual descreveu com detalhe as
destrezas da agricultura camponesa. Seu relatório foi praticamente
ignorado pelos especialistas da sua época. Anos depois, em 1911,
F. H. King, então diretor da Divisão de Solos do Departamento de
Agricultura dos Estados Unidos, publicou Farmers of Forty Centuries:
permanent agriculture in China, Korea and Japan, uma das poucas obras
dedicadas a documentar detalhadamente as formas não ocidentais de
utilização da natureza.
Enquanto observador direto, King, que era um dos mais profundos
conhecedores da problemática agrícola de seu tempo, descreveu de

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forma bastante perspicaz as técnicas de produção asiáticas que tanto o


impressionaram. Naquela época, os sistemas não industriais descritos
permitiam alimentar cerca de 500 milhões de seres humanos, embora
ocupassem uma superfície menor que toda a área agrícola dos EUA e
utilizassem os mesmos solos há pelo menos 4 mil anos. De acordo com
King, naquela época os camponeses chineses produziam três vezes mais
cereais por unidade de superfície que os agricultores norte-americanos;
o que ocorria de forma similar na Coreia e no Japão. A diversidade de
técnicas e estratégias utilizadas pelos camponeses desses países incluía
um complexo sistema de canais e áreas de irrigação, fertilização or-
gânica (como restos de culturas, adubos verdes, resíduos domésticos,
esterco, compostos e cinzas), bem como variedades de cereais bem
adaptadas às condições dessas regiões.
Após essa obra pioneira, resgatada recentemente do esquecimento,
houve, porém, um longo período de várias décadas de entusiasmo pelas
novas tecnologias agrícolas, derivadas da química, da genética e do uso
de combustíveis fósseis, o que sepultou a experiência de manejo da
natureza alcançada pela espécie humana na sua modalidade neolítica
ou pré-industrial. A conversão de um modelo de agricultura baseado na
utilização da energia solar (e biológica) em outro totalmente dependente
da energia obtida dos minerais metálicos e não metálicos representou,
sem dúvida, um divisor de águas histórico cujas consequências nos
afetam até os dias de hoje. Tal mudança obedeceu à lógica de expansão
do capitalismo em escala mundial, que exigia a integração das áreas
rurais à economia de mercado, a substituição do trabalho pelo capital
e o aumento da produtividade, visando abastecer não só uma crescente
população urbana não ligada à produção rural ou primária, mas tam-
bém uma nova indústria em plena fase de ascensão (Woster, 1990).
Essa tendência atingiu sua máxima expressão com a consolidação
do modelo de agricultura industrializada representada pela chamada
Revolução Verde. Na década de 1950, todos os esforços da pesquisa

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científica sobre o uso dos recursos naturais estavam focados basicamente


na busca de variedades geneticamente melhoradas, na produção de
agroquímicos e no desenho de equipamentos agrícolas movidos por
energia fóssil. Apenas as vozes solitárias de alguns estudiosos, como o
geógrafo norte-americano C. Sauer (ver Jennigs, 1988) e o agrônomo
mexicano E. Hernández-Xolocotzi, ousaram romper o coro imponente
de pesquisadores que buscavam o progresso por meio de um novo mo-
delo de uso da natureza, fundamentado, exclusivamente, na ciência e
na tecnologia ocidentais. Esse ímpeto, no entanto, não duraria muito
tempo. Nos anos 1960, a obra A primavera silenciosa, de Carson (1962),
acendeu a faísca daquilo que viria a se converter em um grande incên-
dio: iniciava-se, assim, toda uma avalanche de críticas sobre os efeitos
ambientais resultantes da nova tecnologia agrícola.
A década de 1980 foi, sem dúvida, um tempo de retorno às ideias
da outra ecologia, que representou um movimento desencadeado pela
crescente consciência sobre a crise ecológica do planeta e pelo acúmulo
cada vez maior de evidências empíricas, que mostravam a incapaci-
dade dos sistemas produtivos modernos para realizar um uso correto
dos recursos naturais. De fato, esse novo período, que se inicia com
o aparecimento das obras World systems of traditional resource mana-
gement (Klee, 1980) e Indigenous knowledge systems and development
(Brokensha et al., 1980), está marcado por várias publicações dedicadas
a descrever, examinar e ponderar a importância dos sistemas produtivos
não ocidentais situados em regiões tão contrastantes como o Sudeste
Asiático (Marten, 1986), a China (Ruddle; Zhong, 1988), países da
África (Richards, 1985), a região amazônica (Posey, 1983; Posey; Balee,
1989), a Mesoamérica (Toledo et al., 1985; Wilken, 1987) e a região
andina – neste caso, ver o conjunto de artigos reunidos pelo Projeto
Andino de Tecnologias Camponesas (Pratec, 1990). Esse interesse
pelas formas de manejo tradicionais viu-se refletido no novo campo
da agroecologia (Altieri, 1987 e outras publicações), nas práticas de

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conservação da biodiversidade do planeta (Oldfield; Alcorn, 1987) e,


ainda, na aquicultura e na pesca (Costa-Pierce, 1987; 1988).

Principais características do conhecimento tradicional


Todo agricultor requer meios intelectuais para realizar a apropria-
ção da natureza. Esse conhecimento tem um valor substancial para
compreender as formas como os agricultores tradicionais percebem,
concebem e conceitualizam os recursos, as paisagens ou os ecossistemas
dos quais dependem para subsistir. E esse conhecimento, no contexto
de uma economia de subsistência, torna-se um componente ainda mais
decisivo no desenho e na implantação de estratégias de sobrevivência
baseadas no uso múltiplo dos recursos naturais.
O estudo formal dos sistemas de conhecimento local, tradicional
ou indígena sobre a natureza teve início há apenas meio século, sendo
a primeira pesquisa exaustiva a esse respeito realizada por Conklin na
década de 1950. Com muito poucas exceções, os estudos do conhe-
cimento tradicional sobre a natureza estiveram muito tempo presos a
um estilo, no qual, i) o fenômeno cognitivo aparecia separado de seus
propósitos práticos; em outras palavras, o complexo sistema formado
pelo conjunto de conhecimentos e as práticas produtivas se mantinha
artificialmente separado; e ii) o corpo cognitivo era só parcialmente
estudado, de modo que o pesquisador estudava apenas frações (plantas,
animais, solo etc.) ou dimensões (sistemas classificatórios, elementos
utilitários, entre outros) da totalidade do sistema de conhecimento
(Toledo, 2002).
Dessa forma, aplicou-se um modelo de pesquisa no qual as ativi-
dades práticas apareciam como aspectos secundários e independentes
dos sistemas cognitivos, perpetuando uma tendência a considerar a
dimensão cultural como alheia e autônoma em relação à produção.
Ao contrário, como afirmado por Barahona (1987), é difícil obter
uma compreensão coerente e completa desses sistemas cognitivos se

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os separarmos das atividades e dos comportamentos diários, concretos


e práticos dos produtores tradicionais.
Para realizar uma apropriação correta dos recursos locais tem
sido necessário contar com um sistema cognitivo, uma vez que a toda
práxis corresponde sempre um corpus de conhecimento (assim como
a toda vida material corresponde uma vida simbólica). Portanto, é
preciso explorar esse corpus, quer dizer, a soma e o repertório de sig-
nos, símbolos, conceitos e percepções do que se considera o sistema
cognitivo tradicional. “A existência do corpus é real, e seu lócus está
no conjunto das mentes ou memórias individuais; seu registro é mne-
mônico e, portanto, a sua existência é implícita” (Barahona, 1987,
p. 173). A transmissão desse conhecimento se faz, assim, através da
linguagem e, até onde sabemos, não precisa da escrita, isto é, trata-se
de um conhecimento ágrafo, o que tem levado Barahona (op. cit., p.
172) a afirmar que a memória é o recurso mais importante da vida
tradicional. Sendo um conhecimento que se transmite no espaço e no
tempo através da linguagem, esta se configura e responde a uma lógica
diferente: à da oralidade.
As sociedades orais não são necessariamente sociedades analfabetas,
porque a sua oralidade não é uma carência da escrita, mas sim uma
não necessidade da escrita (Maldonado, 1992). Portanto, confundir
e qualificar a oralidade como uma forma de analfabetismo é uma
visão culturalmente distorcida. Esse corpo de conhecimentos, que
na verdade é a expressão dupla de uma certa sabedoria (pessoal ou
individual e comunitária ou coletiva), também é a síntese histórica e
espacial que se tornou realidade na mente de um agricultor ou grupo
de agricultores. É uma memória diversificada, na qual cada indivíduo
do grupo social ou cultural detém uma parte ou fração da totalidade
do saber (Iturra, 1993).
As sociedades tradicionais detêm um repertório de conhecimento
ecológico que, em geral, é local, coletivo, diacrônico e holístico. Por

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possuírem uma longa história de prática no uso dos recursos, os povos


tradicionais geraram sistemas cognitivos sobre os recursos naturais
de seu próprio entorno que são transmitidos de geração para geração.
O conhecimento tradicional é holístico porque está intrinsecamente
ligado às necessidades práticas de uso e manejo dos ecossistemas locais.
Embora esse conhecimento esteja baseado em observações em uma
escala geográfica bem restrita, ele deve fornecer informações detalhadas
sobre todo o cenário representado pelas paisagens concretas onde se
utilizam e manejam os recursos naturais.

As dimensões espaço-temporais do conhecimento tradicional


O corpus existente em uma única mente tradicional expressa um
repertório de conhecimentos que se projetam sobre duas dimensões:
o espaço e o tempo (Figura 13). Quanto ao eixo espacial, os conhe-
cimentos de um único agricultor são, na realidade, a expressão indi-
vidualizada de uma bagagem cultural que, dependendo da escala, se
projeta a partir da coletividade à qual tal agricultor pertence: o núcleo
ou a unidade familiar, a comunidade rural, a região e, enfim, o grupo
étnico ou cultural.
No seio familiar, o conhecimento é compartilhado e matizado de
acordo com o sexo e a idade, sendo que cada membro da casa realiza
atividades específicas que conferem ao conhecimento sua própria par-
ticularidade. Nos outros espaços sociais, a variação do conhecimento
coletivamente compartilhado se expressa em função de cada núcleo
familiar, cada comunidade específica, cada região e, finalmente, em
função da identidade obtida pelo pertencimento a um determinado
grupo cultural ou étnico, geralmente diferenciado pela língua. Um
exemplo que ilustra essas variações espaciais do conhecimento tradicio-
nal foi revelado pelos estudos de Berlin e Berlin (1996), que abordaram
o conhecimento sobre plantas medicinais em diferentes municípios dos
grupos Tzeltal e Tzotzil de Chiapas, México.

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Na dimensão do tempo (ou histórica), o conhecimento retido por


um único informante constitui a síntese de pelo menos três vertentes:
i) a experiência historicamente acumulada e transmitida através de
gerações por uma cultura rural determinada; ii) a experiência social-
mente compartilhada pelos membros de uma mesma geração (ou de
um mesmo tempo geracional); e iii) a experiência pessoal e particular
do próprio agricultor e de sua família, adquirida pela repetição do
ciclo produtivo (anual) e gradativamente enriquecida por variações,
eventos imprevistos e surpresas diversas. Essa variação temporal é
resultante do grau de alcance dos conhecimentos oralmente trans-
mitidos. O saber tradicional é compartilhado e reproduzido por
meio do diálogo direto entre o indivíduo, seus pais e avós (com vista
ao passado), bem como entre o indivíduo e seus filhos e netos (em
relação ao futuro) (Figura 13).

Figura 13: Dimensões espacial e temporal do conhecimento tradicional

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O fenômeno resultante é um processo histórico de acumulação e


transmissão de conhecimentos – ainda que não isento de experimentação
(Johnson, 1972) – que toma a forma de uma espiral em várias escalas
espaço-temporais: da escala do próprio produtor, já que a cada novo ciclo
produtivo a sua experiência vai sendo gradualmente enriquecida com o
que foi aprendido durante o ciclo imediatamente anterior, até a escala da
cultura (grupo étnico), uma vez que o conhecimento vai se aperfeiçoando
(e adaptando), de geração para geração, à realidade local de cada presente.
Nessa perspectiva, em que o saber se acumula coletivamente, os indi-
víduos das diferentes gerações adquirem uma importância substantiva:

A velocidade de renovação de indivíduos pode ser apreciada na própria


conformação do grupo doméstico, que, normalmente, conta com três
gerações: uma que sabe mais do que consegue trabalhar ou mais do que é
capaz de atuar; outra que pratica o que vem observando; e uma terceira,
que aprende no mesmo ritmo que seu corpo se desenvolve para chegar a ter
a capacidade de ação exibida pela geração intermediária (...)
Em suma, o saber do camponês é obtido através da relação heterogênea
entre grupo doméstico e grupo de trabalho, seja em uma comunidade ou
em instâncias superiores. O conhecimento sobre o sistema de trabalho,
a epistemologia, é resultado dessa interação em que a lógica indutiva é
aprendida na medida em que se vê fazer e se escuta, para depois poder dizer,
explicar e devolver o conhecimento ao longo das relações de parentesco e
de vizinhança (Iturra, 1993, p. 135).

A permanência da sabedoria tradicional ao longo do tempo (de-


zenas, centenas e milhares de anos) pode ser visualizada como uma
sucessão de espirais, não livre de alterações, crises e turbulências. Esse
contínuo histórico revela um formidável mecanismo de memorização,
isto é, de representação, formação e manutenção de lembranças, que,
no fundo, expressa um certo código de memória. No longo prazo, essa
memória coletiva circunscrita à identidade de cada povo ou lugar se
torna uma memória de espécie quando se generaliza e se visualiza como
mais uma variação de uma lembrança genericamente compartilhada.

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Essa lembrança de longo alcance, por sua vez, encontra seu suporte
na dupla estrutura biológica e cultural de todo ser humano, nesse caso
representada pela variação ou diversidade genética e linguística.
A convalidação desse processo se expressa, naturalmente, na práxis,
isto é, no êxito das práticas que permitem tanto ao agricultor individual
como a sua coletividade cultural sobreviver ao longo do tempo sem
destruir ou deteriorar sua fonte original de recursos locais. A compreen­
são desse processo nos fornece elementos suficientes para questionar o
conceito de tradicional que tem sido frequentemente aplicado a esse
conhecimento, pois, na realidade, cada produtor ou coletividade está
lançando mão de um conjunto de experiências que são tão antigas como
atuais (existiram e existem), da mesma forma que são tão coletivas como
pessoais. Trata-se, na verdade, de uma tradição moderna, ou de uma sín-
tese entre tradição e modernidade; perspectiva que, ao ser negligenciada
pelos pesquisadores, tem servido para manter a falsa ideia da inoperância
e inviabilidade contemporânea dessas tradições, e, naturalmente, para
justificar de forma automática o que se considera moderno.
Embora o corpus tenha algum tipo de organização interna (Ba-
rahona, 1987), a verdade é que pouco sabemos sobre ele enquanto
sistema, o que também acontece com a sua esfera de interação com a
prática relacionada com a produção rural, ou seja, com a apropriação
dos recursos locais. No entanto, é possível revelar o que internamente
existe nesse sistema cognoscitivo através do que o indivíduo diz e faz
(a palavra e a ação), pois todo conhecimento está orientado por inte-
resses e responde a fins concretos, da mesma forma que “toda ação,
todo processo de trabalho se constitui a partir da representação das
condições e das modalidades de sua execução” (Descola, 1988, p. 19).
Assim, a prática é considerada tanto uma condição quanto um critério
de verdade do conhecimento (Villoro, 1982, p. 253). Considerando a
escassez de informação sobre esses fenômenos, podemos afirmar então
que a exploração do corpus se encontra ainda num estágio incipiente,

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com uma enorme quantidade de interrogantes e desafios futuros. A con-


ceitualização que fizemos nas linhas anteriores acerca da natureza desse
conhecimento nos revela também a sua enorme complexidade e, como
consequência, o alto grau de dificuldade que existe para apreendê-lo.

A matriz dos conhecimentos tradicionais


Existe uma extensa literatura sobre os saberes tradicionais, produto
de várias décadas de pesquisa. No entanto, muito poucos esforços têm
sido feitos no sentido de sistematizar esse acúmulo de estudos, o que
reflete o estilo especializado que tem predominado na grande maioria
dessas pesquisas (ver uma exceção em Ellen, 1982).
Ao contrário do que se pensa, na mente do agricultor tradicional
existe um detalhado catálogo de conhecimentos sobre a estrutura
ou os elementos da natureza, as relações que se estabelecem entre
eles, os processos ou dinâmicas e seu potencial utilitário (primeiro
eixo). Dessa forma, o saber local abrange conhecimentos detalhados
de caráter taxonômico sobre constelações, plantas, animais, fungos,
rochas, neves, águas, solos, paisagens e vegetações, ou sobre processos
geofísicos, biológicos e ecológicos, tais como movimentos da terra,
ciclos climáticos ou hidrológicos, ciclos de vida, períodos de floração,
frutificação, germinação, cio ou nidação, e fenômenos de recuperação
de ecossistemas (sucessão ecológica) e manejo de paisagens.
De maneira semelhante, o conhecimento tradicional não se res-
tringe aos aspectos estruturais da natureza ou àqueles relacionados
a objetos ou componentes e sua classificação (etnotaxonomias). Ele
também se refere a dimensões dinâmicas (de padrões e processos),
relacionais (ligadas às relações entre os elementos ou eventos naturais)
e utilitárias dos recursos naturais e das paisagens.
Essa primeira classificação está igualmente relacionada aos conheci-
mentos sobre os fenômenos de caráter astronômico, geofísico, biológico,
ecológico e geográfico (segundo eixo). A combinação de ambos os eixos

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serve como marco de referência para situar, de forma sistemática, os


conhecimentos tradicionais (Quadro 5). E essa combinação, por sua
vez, deve ser referida a uma terceira dimensão, à do espaço, conside-
rando que os conhecimentos operam sempre em diferentes escalas.
Sendo assim, é possível reconhecer uma escala cultural, que abrange
teoricamente o saber total de uma determinada etnia ou cultura; uma
regional, delimitada pelo território histórico e pela natureza culturizada
que o rodeia; uma comunitária, que se refere ao espaço apropriado por
uma comunidade; uma doméstica, delimitada pela área de apropriação
de um produtor e de sua família; e uma individual, restrita ao espaço
do próprio indivíduo.

Quadro 5: Matriz dos conhecimentos tradicionais


Astronômica Física Biológica Ecogeo-
Atmosfera Litosfera Hidrosfera gráfica
Estrutural Tipo de astros Tipos de cli- Unidades Tipo de Plantas, Unidades
mas, ventos, de relevo, águas animais, de vege-
nuvens rochas fungos, tação e
micróbios paisagem
Relacional Vários Vários Vários Vários Vários Vários
Dinâmico Movimentos e Movimentos Erosão de Movimento Ciclos de Sucessão
ciclos solares, de ventos e solo e outros da água vida ecológica
lunares e estelares nuvens
Utilitário Vários Vários Vários Vários Vários Vários

Fonte: Toledo (2002)

Chega-se, assim, a uma matriz simples sobre os conhecimentos


tradicionais. Entretanto, ainda que obedeça às necessidades de siste-
matização do pesquisador, a matriz deve ser manejada com prudência,
considerando que, na mente do produtor, cada tipo de conhecimento
aparece sempre referido ao contexto espaço-temporal que opera como
cenário dos recursos, o que, sob certo aspecto, está sempre relacionado
ou em consonância com o resto. Por essa razão, a revisão que a seguir
fazemos de cada um desses tipos básicos de conhecimento, considerados
separadamente, constitui um primeiro momento na abordagem do sistema

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cognitivo, sem o qual não é possível proceder à compreensão sintética de


tal sistema (segundo momento), em que os conhecimentos já aparecem da
forma que existem: articulados ou amalgamados em um todo.

Os conhecimentos astronômicos
Em contraste com o sistema ocidental de conhecimento ecológico,
os saberes tradicionais de numerosos grupos culturais incorporam a
observação e a interpretação da abóboda celeste à sua práxis produtiva.
Para conferir um significado simbólico e prático aos céus, esses grupos
sociais consideram tanto sua cinemática (seus movimentos) quanto sua
dinâmica (suas inter-relações) (Arias de Greiff; Reichel-Dolmatoff,
1987). Dessa forma, o trânsito do Sol, da Lua, das estrelas, dos planetas
e das constelações é registrado de maneira detalhada pelos observadores
tradicionais e correlacionado a eventos do tipo climático, agronômico,
biológico, produtivo e ritual. Essas observações variam, naturalmente, de
acordo com a posição latitudinal dos observadores, uma vez que observar
o céu nas regiões intertropicais não é o mesmo que fazê-lo a partir das
regiões circumpolares. Alguns grupos culturais não registram apenas
os movimentos dos astros, como também, por exemplo, o brilho da luz
estelar ou as nuvens de poeira interestelar (Urton, 1978).
Em geral, a observação dos corpos celestes permite que o agricultor
tradicional faça o registro do tempo. Os ciclos discernidos no movi-
mento dos astros dão origem a calendários astronômicos, que operam
como relógios celestes. O ciclo anual formado a partir das posições dos
astros está assim relacionado ao regime de chuvas; o nível dos rios,
lagos e outros corpos d’água; os recursos e as fases agrícolas, pecuá­
rias, pesqueiras e de coleta e caça; e diversos fenômenos biológicos,
como a floração e a frutificação das plantas ou os ciclos de vida das
espécies animais (terrestres e aquáticas). Em sua outra dimensão, o
calendário astronômico coincide com o calendário ritual e, em geral,
com a cosmologia.

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Embora a etnoastronomia constitua um campo relativamente pouco


explorado (se comparado, por exemplo, com a etnobiologia), existem
regiões­e culturas que têm merecido uma atenção especial por parte de
vários pesquisadores. É o caso de várias regiões sul-americanas, como
a Bacia Amazônica e do Orinoco e a região andina (ver o conjunto de
ensaios em Arias de Greiff; Reichel Dolmatoff, 1987; Urton, 1978; 1987;
Valladolid-Rivera, 1992). Nos Andes, inclusive, fala-se de uma agroas-
tronomia (Valladolid-Rivera, 1992), uma vez que vários estudos têm de-
monstrado o uso da comunidade de astros, isto é, o uso do conhecimento
sobre os ciclos sideral, lunar e solar para decifrar as mudanças climáticas
anuais, bem como para estabelecer calendários agrícolas (especialmente
os da batata e do millho) e algumas práticas pecuárias. Existem evidências
líticas, arquitetônicas, têxteis e cerâmicas que comprovam a existência dessa
agroastronomia andina há pelo menos 4 mil anos (Urton, 1978; Earls, 1989;
Valladolid-Rivera, op. cit.), o que talvez seja o resultado de uma civilização
que tem vivido muito próxima do céu, em altitudes que vão dos 2 aos 5
mil metros acima do nível do mar.

Os conhecimentos (geo)físicos
O segundo conjunto de conhecimentos que podemos identificar na
mente do agricultor tradicional é, sem dúvida, o referente aos elementos
físicos de seu cenário produtivo. Aqui destacamos os conhecimentos
sobre três dimensões espaciais: a atmosfera, a hidrosfera e a litosfera. No
registro do tempo e no desenho de boa parte das práticas produtivas,
adquirem grande importância os eventos climáticos e meteorológicos
relacionados às diferentes estações do ano e que, como temos visto,
tendem a estar articulados aos calendários astronômicos. De suma
importância são os fenômenos meteorológicos, especialmente os climá-
ticos, já que são os que determinam boa parte das atividades agrícolas,
pesqueiras, de coleta e caça. Destacam-se aqui os conhecimentos sobre
os tipos de nuvens e ventos, os períodos de chuvas, ciclones e outros

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eventos catastróficos, assim como os ciclos lunares, de grande impor-


tância para o crescimento das plantas, para os ciclos de vida dos peixes
e de outros organismos aquáticos ou para o corte de algumas árvores.
Os conhecimentos sobre o mesoclima, entretanto, possuem pouca
capacidade preditiva, tais como microclimas (Wilken, 1972) ou climas
locais ou microrregionais, como é o caso dos Aymara de outras culturas
dos Andes que possuem conhecimentos sobre a relação entre agricultura
e chuva, geada e granizo (Gallegos, 1980; Valladolid-Rivera, 1992).
Os recursos hídricos, os diferentes tipos de minerais e as classes de
solos constituem o conhecimento relativo à hidrosfera e à litosfera. Ainda
que todos sejam mais ou menos essenciais, dependendo do contexto espe-
cífico dos recursos a serem apropriados, nem todos foram observados com
o mesmo interesse. É o caso dos conhecimentos sobre recursos hídricos
superficiais e subterrâneos, que têm sido pouco documentados (Nabhan,
1982; Kirkby, 1973; Greslou, 1990), embora sejam decisivos para a sobre-
vivência dos habitantes das zonas áridas, e semiáridas. Os Maia de Iucatã,
no México, por exemplo, utilizam critérios como sabor, cor, odor e turbidez
para identificar os diferentes recursos hídricos em um sistema cognitivo que
só recentemente começou a ser descrito (ver o estudo sobre as sartenejas*
de Flores; Ucan-Ek, 1983). Descola (1988) e Van Der Hammen (1992)
elaboraram uma tipologia bastante detalhada sobre recursos hídricos em
seus estudos sobre grupos indígenas da região Amazônica.
No caso dos minerais (Arnold, 1971) e, especificamente, dos so-
los, existe uma documentação mais extensa acerca do conhecimento
tradicional (Barrera-Bassols, 2003). Embora pouco explorado, existe
também um certo conhecimento tradicional sobre a geologia, prin-
cipalmente em relação às propriedades das rochas para conter, reter e
conduzir águas subterrâneas. No Vale de Tehuacán, região semiárida do

* Sartanejas são cavidades naturais nas rochas calcáreas que se enchem de água na
época de chuvas. (N. E.)

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México, onde existem vestígios arqueológicos da prática de agricultura


de irrigação há milhares de anos, os Mixteca utilizam seus conheci-
mentos sobre as rochas para construir reservatórios que permitam o
armazenamento da água dos rios e córregos temporários que se formam
durante a época de chuvas (Toledo; Solís, 2001).

A etnoedafologia: a importância agroecológica do conhecimento


sobre os solos
De todo o conjunto de conhecimentos locais existentes, o referente
aos solos é o mais significativo do ponto de vista agroecológico. Ao longo
das duas últimas décadas, o número de estudos etnopedológicos realizados
globalmente tem aumentado consideravelmente, colocando em evidência
um crescente interesse agronômico pelos conhecimentos locais sobre os
solos. De fato, a etnoedafologia, que algumas décadas atrás era pratica-
mente inexistente, ganhou impulso nos últimos anos, de tal forma que hoje
em dia já conta com centenas de estudos (Barrera-Bassols; Zinck, 2003a).
Os solos, enquanto elementos biofísicos, não são apenas de suma
importância por razões agrícolas, como também constituem a base da
atividade de olaria, da construção de moradias e podem até ter usos
medicinais. Além disso, como veremos, o conhecimento e o uso dos
solos servem como critério essencial para a tomada de decisões sobre
as formas de manejar as paisagens do entorno.
Existem ainda sofisticados sistemas vernáculos de nomenclatura e
classificação dos solos; e, ao contrário do que pensam alguns autores, a
percepção indígena dos solos pode ser de caráter tridimensional, já que
existe também conhecimento sobre os horizontes ou as camadas do solo,
como mostrado por Barrera-Bassols (1988) para o caso dos Purépecha, e por
Johnson (1977) para o caso dos Otomi – dois grupos culturais do México.
No entanto, não existe na mente do produtor tradicional um co-
nhecimento dos solos de forma separada ou sem conexão com os outros
elementos de seu cenário produtivo, mas sempre relacionado ao relevo,

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A memór i a biocu lt ur a l

à vegetação, à água ou à topografia. Resta dizer que esse conhecimento


objetivo que os produtores possuem sobre os solos – e que, por razões
metodológicas, nesta seção abordamos de forma isolada – faz parte do
complexo intelectual indígena, tanto de sua fração cognitiva quanto da
mítica, um aspecto que tem sido apontado por vários autores (Greslou,
1989; Rengifo, 1989; Barrera-Bussols, 2003).
Uma revisão exaustiva da literatura registrou 432 estudos etnope-
dológicos realizados em 61 países da África, América e Ásia (Figura 14).
Essa informação se refere a 217 grupos étnicos, os quais incluem uma
grande variedade de comunidades indígenas e camponesas que vivem
em três das zonas agroecológicas mais frágeis do mundo: o trópico
úmido, o trópico seco e as zonas montanhosas frias (Barrera-Bassols;
Zinck, 1998; 2000; 2003a). A partir de 1989, a média da produção
acadêmica é de 33 estudos por ano.

Figura 14: Principais critérios utilizados na classificação tradicional dos solos

Fonte: Barrera-Bassols; Zinck (2000; 2003)

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Para algumas áreas culturais específicas, existe uma extensa lite-


ratura sobre o conhecimento indígena de terras e solos. As zonas mais
estudadas do continente americano são a Mesoamérica (Guatemala
e México) e a região andina (Peru, Colômbia, Equador e Bolívia).
Há também muitas pesquisas sobre esse tema conduzidas na África
Ocidental subsaariana, na África Oriental, nos Himalaias, na Índia
e no Sudeste Asiático. Torna-se evidente, portanto, que os estudos
etnoedafológicos envolvem os centros de domesticação de plantas e
animais, assim como os países com a mais alta diversidade biológica
ou cultural do mundo (Barrera-Bassols, 2003).
Os estudos etnoedafológicos estão distribuídos em 61 países,
dos quais 35% são da África, 34% da América, 26% da Ásia, 4% da
Europa e 1% do Pacífico (Figura 14). A África tem o maior número
de estudos (41%), seguido pela América (23%), Ásia (23%), Europa
(8%) e o Pacífico (5%). África, América e Ásia são os continentes
com maior número de estudos etnoedafológicos, já que cerca de 50%
de seus respectivos países contam com uma ou mais pesquisas sobre
o tema. Em contraste, os continentes menos estudados têm sido a
Europa e o Pacífico, embora este último tenha uma significativa
proporção de população rural e uma grande diversidade de grupos
linguísticos de todas as zonas tropicais.
México, Nepal, Peru, Nigéria e Índia aparecem entre os países
com o maior número de estudos etnoedafológicos, todos eles com
mais de 20 pesquisas e concentrando 40% da produção bibliográfica
(Figura 14). Com 71 trabalhos, o México é o país onde mais foram
realizados tais estudos. Entretanto, cumpre ressaltar que esses nú-
meros elevados não significam necessariamente que um país detenha
maior riqueza etnoedafológica do que outro. Afinal, a quantidade de
pesquisas produzidas é influenciada, entre outros motivos, por fatores

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A memór i a biocu lt ur a l

como o acesso à literatura cinza* e o papel das ONGs que promovem


estudos dessa natureza em países privilegiados.

Resultados e tendências da pesquisa etnoedafológica


Os estudos etnoedafológicos cobrem um amplo conjunto de temas
concentrados em quatro aspectos fundamentais: (1) a formalização do
conhecimento local sobre solos, mediante esquemas de classificação; (2)
a comparação das classificações de solos, tanto técnicas quanto locais;
(3) a análise dos sistemas locais de avaliação de terras; e (4) a avaliação
das práticas de manejo agroecológico.
A análise comparativa de um conjunto de estudos etnoedafológicos
permite entender os principais critérios de classificação de solos e terras
em comunidades indígenas. Essa recopilação de sistemas taxonômicos
tradicionais inclui os critérios estabelecidos por 62 grupos étnicos da
África, América e Ásia (Barrera-Bassols; Zinck, 1998). Apesar da in-
consistência metodológica entre os estudos revisados, o que faz dessa
comparação um exercício complicado, a análise comparativa permitiu
identificar alguns princípios fundamentais, entre eles a existência de
complexos sistemas de conhecimento indígena sobre a organização
hierárquica do solo; o reconhecimento e o uso prático das caracterís-
ticas morfológicas para a classificação do solo, as quais são dinâmicas,
utilitárias e simbólicas; o uso de semelhanças e diferenças entre os
tipos de solo para elaborar sistemas de classificação multicategóricos;
e, finalmente, a existência de critérios universais em todos os sistemas
de classificação etnoedafológica.
Ainda que o conhecimento indígena sobre os recursos do solo e
da terra seja extensivamente compartilhado entre todos os membros

* Refere-se à literatura científica de difícil acesso por ter sido publicada em veículo
de circulação limitada. O termo cinza expressa o fato de que é uma literatura que
está à sombra. (N. E.)

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

de uma comunidade, existem diferenças nos saberes entre indivíduos


de acordo com sua idade, gênero, status social e experiência. Com
base nas mesmas perguntas sobre o sistema solo, são dadas diversas
respostas pela comunidade local, que, em conjunto, fazem parte do
seu conhecimento etnoedafológico. O caráter multidimensional das
classificações etnoedafológicas implica diversas maneiras de organizar
e distribuir as classes de solo dentro de um sistema de múltiplos níveis.
A inclusão ou exclusão de uma determinada classe de solo depende
da escolha dos critérios de classificação, que podem ser ecológicos,
morfológicos, produtivos e simbólicos, entre outros.
Existem quatro critérios fundamentais utilizados pelos grupos
indígenas para a classificação de solos: cor (100%) e textura (98%);
consistência (56%) e umidade o solo (55%); matéria orgânica, pedre-
gosidade, topografia, uso da terra e drenagem (entre 34% e 48%); e
fertilidade, produtividade, estrutura, profundidade e temperatura do
solo (entre 2% e 26%). Além disso, os atributos mais frequentemente
utilizados para classificar o solo são os morfológicos, entre os quais a
cor e a textura são os mais representativos.
Ao contrário das classificações etnobotânicas e etnozoológicas (Ber-
lin, 1992), as classificações etnoedafológicas geralmente começam com
o nível mais alto do sistema. Em contraste com os sistemas taxonômicos
etnobiológicos, focados apenas nas espécies locais úteis (Berlin, 1992),
as classificações etnoedafológicas incluem, geralmente, todas ou a maior
parte das classes de solo encontradas localmente. Tomando como base
os estudos incluídos no inventário, o número de taxa* (classes de solo)
dos diversos sistemas varia entre 3 e 24. O número médio de taxa reco-
nhecido pelos grupos étnicos é de 12. Mais da metade (56%) dos grupos
da amostra trabalha com 8 a 14 taxa (Barrera-Bassols; Zinck, 2003a).

* Taxa: plural de táxon. (N. E.)

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A memór i a biocu lt ur a l

Comparação entre as classificações científica e local dos solos


Há algumas semelhanças e significativas complementaridades entre
os sistemas taxonômicos locais e científicos, o que demonstra uma siner-
gia potencial para solucionar problemas relacionados ao manejo do solo
e da terra (Talawar; Rhoades, 1998; Ericksen; Ardon, 2003). A seguir,
apresentamos alguns exemplos ilustrativos dessa fértil e importante área
de pesquisa.
Uma detalhada análise de conjunto sobre as características morfoló-
gicas do solo mostra uma correspondência muito próxima com o sistema
de classificação do solo de uma comunidade indígena do Nordeste do
Brasil. Sendo assim, a classificação empírica do solo proporciona um marco
útil para agrupar, de forma objetiva, solos morfologicamente similares.
O agrupamento de qualidades não morfológicas dos solos com base em
parâmetros-chave, tais como a umidade e o grau de acidez (pH), e sua
comparação com as principais classes locais de solo demonstram também
que a taxonomia local oferece um referencial razoável para a classificação
preliminar dos solos para fins de manejo (Queiroz-Stacishin; Norton,
1992).
De forma semelhante, dez anos de pesquisa etnopedológica no Hima-
laia têm apontado uma correlação bastante próxima entre as taxonomias
locais de solo e as convencionais (Tamang, 1993), uma vez que a maioria das
classes indígenas pode ser facilmente convertida em esquemas científicos de
classificação comumente utilizados. Da mesma forma, a estreita correlação
que a classificação indígena estabelece entre a cor do solo e suas condições
químicas revela que os camponeses conhecem bem as caraterísticas do solo,
atribuindo cores particulares às suas propriedades. O conhecimento local
também traça um vínculo forte entre os tipos de terra e a fertilidade do
solo. Finalmente, as classificações locais para fins agrícolas se correlacionam
bem com certas caraterísticas químicas dos solos (como a capacidade de
troca catiônica e os cátions trocáveis), especialmente daqueles que não têm
sido alterados pelo uso de fertilizantes químicos (Shah, 1995).

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Da mesma maneira, a análise estatística de certas características físicas e


químicas do solo tem sido utilizada para demonstrar que os sistemas locais
de classificação refletem as propriedades do solo definidas cientificamente.
É o caso da classificação dos Hanunoo nas Filipinas (Conklin, 1957),
das classificações locais do Nepal (Shah, 1993) e dos Maia-Kekchi na
Guatemala (Carter, 1969), das classificações mestiças no México (Bellón,
1990), das classificações dos Machiguenga no Brasil (Johnson, 1993), dos
Shipibo no Peru (Behrens, 1989), dos Guidimaka na Mauritânia (Bradley,
1983), dos Fulani em Burkina Faso (Krogh; Paarup-Lauresen, 1997) e dos
pequenos produtores em Gana (Mikkelsen; Langohr, 1997).
No Himalaia, tanto os sistemas de conhecimento indígena quanto
os convencionais apresentam baixa capacidade para atenuar ou prevenir
riscos de erosão do solo. Ambos, entretanto, oferecem amplas comple-
mentaridades quanto ao elenco de respostas elegíveis por cada sistema
para enfrentar o problema em diversas escalas espaço-temporais. O
conhecimento indígena responde, primordialmente, em termos de
períodos longos de tempo e considera os efeitos ex-situ da perda do
solo. As suas complexas estratégias de planejamento do uso da terra,
do solo e da paisagem constituem uma resposta local a cada evento
erosivo específico sobre um período medido em decênios. Já a ciência
convencional formula quase sempre, e de forma privilegiada, respostas
gerais aos acontecimentos pontuais de erosão e que funcionam exclu-
sivamente in situ e em curto prazo.
Em diversas regiões têm sido implementadas técnicas estruturais
e de uso da vegetação para reduzir os volumes de sedimentos carrea-
dos para as partes baixas. Na região Sivalik Himalaia da Índia, essa
complementaridade tem promovido o aumento da produtividade e a
redução drástica da sedimentação nas terras agrícolas erodidas (Scott;
Walters, 1993). Esse tipo de resposta local à erosão do solo tem sido
estudada também na África (Reij et al., 1996; Warren et al., 2003),
na região andina da América do Sul (Zimmerer, 1992; Rist; Martin,

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1991; Pratec, 1996), na Mesoamérica (Johson, 1977; Donkin, 1979;


Bocco, 1991) e na Ásia (Leslie, 1977).
A inconsistência do conhecimento local sobre solos em escala re-
gional tem sido um dos principais argumentos mencionados em vários
estudos etnoedafológicos, os quais afirmam que os tipos de solo segun-
do classificações locais recebem nomes e são caracterizados de forma
diferente por membros da mesma comunidade cultural que habitam
diferentes localidades, enquanto os levantamentos técnicos indicam
uma distribuição regional dos mesmos tipos de solo. Podemos atribuir
essas constatações à aplicação de técnicas de pesquisa inadequadas ou
a diferenças históricas e culturais. O fato é que há pesquisas etnoeda-
fológicas no México que revelam a existência de um conhecimento em
nível regional sobre o solo entre comunidades Maia, Nahua, Otomi
e Purépecha. Entre esses povos, a nomenclatura e a caracterização
dos tipos de solos e terras são relativamente homogêneas ao longo de
milhares de quilômetros quadrados, o que nos permite afirmar que há
uma cultura popular-regional do solo (Barrera-Bassols, 1988).
Durante os últimos 15 anos, foi desenvolvida no México uma via
metodológica para mapear as unidades indígenas de solos nas escalas
local e regional, o que contribuiu para consolidar o planejamento
rural do uso da terra (Ortíz-Solorio; Gutiérrez-Castorena, 2001).
Em alguns casos, a combinação da fotointerpretação e da análise
etnoedafológica revelou uma clara correspondência entre os mapas de
solos convencionais e etnoedafológicos (Licona et al., 1992; Payton
et al., 2003).

Os sistemas locais de avaliação de terras


Muitos povos tradicionais e comunidades indígenas elaboraram seus
próprios sistemas de avaliação de terras para fins agrícolas e outras formas
de manejo em consonância com a estratégia de uso múltiplo. Os critérios
de avaliação demandam um sofisticado conhecimento microam­biental

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para estabelecer os sistemas múltiplos de cultivo (Osunade, 1992a; 1992b;


González, 1994; Mafalacusser, 1995; Lawas; Luning, 1996). As decisões
sobre o uso da terra tomadas pela população local são, em geral, mais
precisas e adequadas do que as recomendações técnicas emitidas pelos
técnicos e especialistas externos. A integração de ambas as fontes de
conhecimento, utilizando os sistemas de informação geográfica (SIG)
para a avaliação e o planejamento do uso das terras, tornou-se uma nova
tendência na pesquisa aplicada (González, 1994; 2000; Jarvis; MacLean,
1995; Weiner et al., 1995; Harmsworth­, 1998; Bocco; Toledo, 1999;
Brodnig; Mayer-Schönberger, 2000; Oudwater; Martin, 2003).
Essa postura tem levado ao que atualmente é conhecido como
sistemas de informação geográfica de caráter participativo (SIG
participativos), em que a construção de mapas e estratégias de uso
do solo é feita a partir da combinação dos conhecimentos locais
expressos cartograficamente (etnomapas) e das informações técnicas
pertinentes.

Práticas de manejo agroecológico


O manejo da terra e da água entre os povos tradicionais e
indígenas varia de acordo com as condições que prevalecem em
cada zona ecológica. Nas planícies do trópico quente e úmido, o
conhecimento e o manejo das terras concentram-se na conservação
ou na restauração de sua fertilidade, utilizando complexos sistemas
agroecológicos. Para tanto, as comunidades lançam mão de um
comprovado conhecimento sobre as condições microlocais do solo,
voltado a estabelecer sistemas múltiplos de cultivo (Fujisaka et al.,
1996). Geralmente, os campos agrícolas são mantidos com uma
densa cobertura de plantas a fim de conservar a produtividade do
solo. Já as mudanças de cor da terra são utilizadas para avaliar o
estado da fertilidade, assim como para identificar previamente o
declínio de sua produtividade.

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A memór i a biocu lt ur a l

No trópico quente-seco, as informações sobre a escassez e a irre-


gularidade no abastecimento de água das chuvas são cruciais para a
reprodução vegetal. Especialmente na África, as técnicas locais têm sido
desenvolvidas para promover a captação da água e a conservação da
umidade do solo (Critchley et al., 1994; Reij et al., 1996; Mazzucato;
Niemeijer, 2000). Os pontos comuns de tais estratégias indígenas para
o manejo da terra incluem a proteção do solo contra a erosão, o controle
da salinização, a manutenção da umidade na camada cultivável e o
uso das águas provenientes de fluxos intermitentes.
Nas montanhas frias e secas, o foco dos saberes indígenas está
direcionado à proteção do solo contra a erosão, assim como à mitiga-
ção dos efeitos dos fenômenos naturais sobre a sua fertilidade. Uma
grande variedade de estudos etnoedafológicos foi realizada nos Andes
(Sandor; Eash, 1991; Pratec, 1996) e no Himalaia (Tamang, 1993),
visando pesquisar as técnicas locais implementadas para a construção
de terraços e diques.
Também há um número crescente de estudos etnoedafológicos
abordando os aspectos referentes ao conhecimento e ao manejo locais
sobre a fertilidade do solo. Na África, Amanor (1991) reconhece uma
sofisticada teoria local sobre o manejo da fertilidade do solo entre peque-
nos produtores de Gana. Já Browers (1993) estuda as técnicas de manejo
da fertilidade do solo entre os Adja, em Benin. Estudos similares foram
conduzidos por Coffi (1993), entre o povo Mossi; e por Mazzucato e
Niemeijer (2000), entre os Gourmantché, ambos de Burkina Faso. Na
Ásia, Talawar (1991) e Rajasekaran (1993) realizaram estudos abordando
os mesmos aspectos com pequenos agricultores da região semiárida do
sul da Índia, da mesma forma que Tamang (1993) o fez junto a pequenos
lavradores do Nepal.
Na América, Wilken (1989) analisou o manejo da fertilidade do
solo entre pequenos produtores (mestiços e indígenas) da Mesoamérica,
enquanto Hecht e Posey (1989) realizaram uma extensa pesquisa sobre

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

o conhecimento da fertilidade do solo entre os Kayapó do Brasil. Além


disso, Kotschi et al. (1990) realizaram uma extensa revisão sobre o conhe-
cimento e o manejo da fertilidade do solo em áreas da África, América
e Ásia, como parte do que se conhece como práticas de ecoagri­cultura.
Da mesma forma, outros estudos têm se dedicado a analisar como os
agricultores adaptam os seus plantios e variedades locais ao estado da
fertilidade de seus diversos solos (Malinowski, 1965; Netting, 1968;
Fujisaka, 1988a; Behrens, 1989; Talawar, 1991; Osunade, 1992; Bellón;
Taylor, 1993; Kerven et al., 1995; Sillitoe, 1996).

Os conhecimentos biológicos
O universo biológico (plantas, animais e fungos) é, por diversas ra-
zões (presença notável, utilidade, simbolismo), o componente do cenário
produtivo mais bem conhecido pela sabedoria tradicional. Reflexo disso
é o fato de ele ser o campo mais estudado, foco das numerosas e detalha-
das pesquisas conduzidas na atualidade (especialmente nas últimas duas
décadas). Como resultado, surgiu uma vigorosa corrente acadêmica, a
etnobiologia, que é, sem dúvida, o campo mais desenvolvido não apenas
em termos de avanços teóricos e metodológicos, como também em termos
de sua evolução acadêmica (uma vez que hoje conta com organizações
nacionais e internacionais, eventos periódicos e publicações de circula-
ção mundial). O saber biológico mais bem estudado é o das plantas. A
sabedoria botânica tradicional é também a que faz a mais fina distinção
das entidades na natureza. O número de taxa (entidades ou categorias)
botânicos utilizados pelas culturas rurais para designar os diferentes tipos
de plantas é impressionante, atingindo a marca de mil a 2 mil nomes.
Sobre esse aspecto, o panorama apresentado pela pesquisa etnobotânica
indica que, nas regiões tropicais úmidas, por exemplo, uma comunidade
tradicional utiliza em média 500 classes de plantas.
Embora no planeta existam pelo menos quatro vezes mais espé-
cies animais que de plantas, o conhecimento zoológico tradicional é

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A memór i a biocu lt ur a l

menos amplo, atingindo apenas entre 600 e 800 nomes (Quadro 6).
A razão para isso é que o conhecimento local chega a classificar apenas
os organismos animais mais visíveis, deixando fora de seu âmbito cog-
noscitivo boa parte dos organismos de menor porte (e, naturalmente,
os microscópicos) e os que vivem em hábitats aquáticos (continentais e
marinhos). Sendo assim, o conhecimento zoológico tradicional abrange
majoritariamente os vertebrados (mamíferos, aves, répteis, anfíbios
e peixes) e grupos seletos de invertebrados, tais como certos insetos
(notadamente abelhas e, em menor escala, vespas, formigas, mariposas,
entre outros), moluscos, crustáceos e anelídeos (Hunn, 1977; Posey,
1986; Argueta, 1988). Finalmente, existe também um conhecimento
tradicional sobre os fungos (notadamente sobre os macromicetos), que,
no caso da América Latina, tem sido documentado em países como
México e Brasil (região amazônica) (Mapes et al., 1981; Fidalgo; Hirata,
1979; Guzmán, 1997).

Quadro 6: Número máximo de taxa vegetal e animal identificado


pelos diferentes povos indígenas do mundo

Cultura Número de taxa


PLANTAS Ifugao 2.131
Hanunoo 1.879
Subanuna 1.400
Jörai 1.182
Tobelorese 1.162
Maia 908
Aguaruna 866
Huasteco 861
Mende 844
Taubuid 825
ANIMAIS Aguaruna 800
Wayâpi 737
Ifugao 597
Nuaula 584
Futuna 534
Tzeital 492
Kayka enga 466
Hanunoo 461
Tobelorese 443

Fonte: Berlin (1992)

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

A grande amplitude e profundidade dos conhecimentos biológi-


cos são, naturalmente, resultado direto da relação estreita que existe
entre o processo de produção e os organismos vivos. No entanto, ao
contrário do que se poderia supor, o conhecimento biológico não está
restrito ao âmbito utilitário. O universo biológico também configura
um recurso primário para a construção dos sistemas simbólicos e de
classificação, assim como uma fonte para a curiosidade intelectual das
culturas rurais. Prova disso é o elevado número de espécies de plantas,
animais e fungos elencados pelo pensamento tradicional que não é
utilizado (Berlin, 1992).

Os conhecimentos ecogeográficos
Nos sistemas de saberes tradicionais, é possível verificar as distin-
ções feitas sobre os fenômenos propriamente geográficos ou do espaço.
A literatura é repleta de exemplos sobre a terminologia utilizada pelas
culturas rurais para diferenciar e nomear grandes e pequenas unidades
da paisagem com base no relevo ou nas estruturas geomorfológicas.
Praticamente toda cultura possui uma terminologia para designar os
principais acidentes de seu espaço terrestre (planícies, vales, encostas,
montanhas, picos) ou aquático. Nesse contexto, é interessante a aná-
lise dos topônimos (nomes dados a lugares específicos) que, em geral,
denotam alguma característica do local que qualificam.
O conhecimento direcionado a distinguir unidades ambientais no
espaço ganha sentido em termos práticos porque elas normalmente
operam como unidades de manejo nas estratégias de apropriação dos
recursos naturais. Se a essa dimensão chamamos de ecogeográfica é
porque ela encontra correspondência nas unidades de manejo propostas
pela ecogeografia (Tricart; Killiam, 1982) ou pela ecologia da paisagem
(Zonneveld, 1985 – Figura 15). Essas unidades, como veremos, exercem
um papel central no conjunto de estratégias particulares e gerais que
os produtores adotam durante o processo de apropriação da natureza.

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A memór i a biocu lt ur a l

Figura 15: O conhecimento tradicional cria unidades de manejo a partir da


combinação de seus conhecimentos sobre a vegetação, os solos e a topografia

A figura apresenta cinco casos hipotéticos de unidades de manejo identificados na paisagem com base nos
três critérios assinalados.

Essa dimensão do conhecimento tem passado despercebida para


a maior parte dos pesquisadores, embora tenha estado implícita ou
explicitamente presente na mente dos agricultores, sendo muitas
vezes confundida com a que se refere à distinção de unidades de
terras. Apenas recentemente essa dimensão perceptiva começou a ser
reconhecida e analisada pelos pesquisadores. Em um trabalho sobre
o tema, Berkes et al. (2000) discutem a possibilidade de identificar
um conceito equivalente ao de ecossistema no corpus indígena ou
tradicional.
A pesquisa acumulada na última década demonstra que a habilidade­
de identificar unidades no universo natural está relacionada ao tipo
de hábitat e, especialmente, às atividades dos agricultores tradicionais.
Com efeito, os critérios utilizados pela mente tradicional diferem quan-
do se trata de distinguir unidades entre as massas florestais, as quais

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são importantes para as práticas de coleta e caça, quando as áreas são


espaços convertidos à agricultura ou à pecuária, ou quando se trata
de classificar unidades em termos de corpos d’água (rios, lagoas, lagos
e mares), muito úteis para atividades pesqueiras. No entanto, apesar
dessa variação, tudo indica que a distinção de unidades nas paisagens
florestais, agropecuárias ou pesqueiras é uma operação comum que faz
parte dos procedimentos corriqueiros de toda estratégia tradicional de
uso dos recursos.
Em sua versão mais óbvia, o conhecimento dos agricultores tradi-
cionais estreitamente ligados a bosques ou florestas identifica unidades
ecogeográficas com base nos principais conjuntos de vegetação ou
suas variantes (associações vegetais), como tem sido mostrado para
diferentes regiões do mundo (ver o caso do México na Figura 16).
No trópico úmido, por exemplo, a terminologia em espanhol usada
pelos camponeses mestiços inclui até 35 categorias ou taxa, como foi
mostrado por um botânico na área da Guatemala e Belize (Bartlett,
1936). Arellano (1985) obteve um número similar (34 categorias) para
os indígenas Nahua do sudeste do México. Na região Amazônica, os
Kaiapó utilizam 16 termos para categorizar as diferentes situações
da vegetação de dois biótopos principais: florestas e savanas (Hecht;
Posey, 1989).
A complexidade das classificações indígenas das unidades de
paisagens florestais adquire a sua máxima expressão no caso da região
considerada biologicamente mais rica do mundo: as florestas da parte
ocidental da Amazônia, na fronteira entre o Peru e o Brasil. Estudos
realizados por Fleck e Harder (2000) entre os Matse, uma cultura de
apenas 150 membros que habitam a bacia do Rio Gálvez, no Peru, e por
Shepard et al. (2001) junto aos Machiguenga, também da Amazônia
peruana, oferecem uma descrição detalhada dos complexos sistemas
indígenas de classificação de hábitats florestais.

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Figura 16: Principais unidades de paisagem identificadas por cinco grupos


indígenas das regiões tropicais úmidas do México

Fonte: Toledo et al. (2003)

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No caso dos Matse, seus membros distinguem 104 tipos de florestas


primárias e 74 tipos de florestas secundárias em uma área de 800 km2.
Já os Machiguenga identificam um total de 97 unidades florestais:
76 delas definidas por critérios bióticos e 21 por fatores físicos, ou
de outro tipo. Em ambos os casos, os critérios utilizados constituem
tipos ou associações de vegetação, hidrologia, topografia, tipos de solo,
regimes estacionais (como a subida ou descida das águas resultante dos
ciclos de chuva e da seca, de incêndios e quedas de árvores), indica-
dores ecológicos (como idade da floresta em restauração), faunísticos
e florísticos, entre outros fatores. Também nos dois casos citados, essa
sofisticada classificação de hábitats florestais é utilizada pelos indígenas
para traçar estratégias de caça e coleta, assim como para estabelecer
áreas para horticultura. A complexidade dessas definições indígenas é
muito superior às classificações realizadas pelos principais estudiosos
da ecologia florestal amazônica (Shepard et al., 2000).
Sob outras condições ecológicas, as distinções classificatórias são
igualmente refinadas, tal como ocorre nas zonas montanhosas do Chile
ou do México, entre os Mapuche e os Purépecha e outras culturas
indígenas mexicanas. Esse conhecimento sobre as descontinuidades
da vegetação não parece ter, entretanto, maior sentido a não ser como
parte de um processo através do qual a mente do membro de população
tradicional sintetiza ou combina seus conhecimentos das unidades de
vegetação com os do solo e dos acidentes topográficos, ou do relevo e
outros fatores. Como sistematicamente demonstrado, a combinação
de conhecimentos mais usual é a que articula solo-vegetação.
O resultado dessa síntese é o reconhecimento de unidades ecogeográfi-
cas (agro-hábitats, micro-hábitats, facets écologiques ou resource-units), cada
uma delas com um potencial produtivo particular e a partir das quais o
agricultor define suas estratégias de apropriação dos recursos naturais.
Esse fenômeno foi ilustrado pelos estudos de diversos grupos culturais e
em vários casos atinge alto grau de complexidade e sofisticação. A Figura

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17 mostra o caso dos Maia de Iucatã, México (Sanabria, 1986), no qual


os agricultores classificam um total de 7 unidades (agro-hábitat) a partir
de uma percepção tridimensional do espaço (vegetação, relevo e solos).

Figura 17: Principais unidades de manejo (agro-hábitats) reconhecidas e


nomeadas pelos Maia da comunidade de Xocén, em Iucatã, México, com base
na vegetação, na topografia e nos solos

Fonte: Sanabria (1986)

Embora seja necessário um aprofundamento maior sobre esse


aspecto, parece evidente que tal divisão do espaço pode se realizar
não apenas utilizando diferentes critérios, mas também em três
escalas principais (regional, local e doméstica). O povo Huave, que
habita uma estreita faixa costeira com clima tropical subúmido em
Oaxaca, no México, utiliza uma escala microambiental de alguns
metros e tem como base a topografia e o solo para distinguir até 18
agro-hábitats, a partir dos quais seus membros definem não apenas
os diferentes cultivos e suas combinações, mas também todo seu

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

calendário agrícola (ver o próximo capítulo). Na encosta oriental dos


Andes, as comunidades indígenas e mestiças utilizam recursos de
declives extremamente íngremes, razão pela qual os produtores iden-
tificam e utilizam diferentes zonas em uma faixa altitudinal que vai
de mil até mais de 4 mil metros. Dessas zonas, obtêm vários produtos
agropecuários e florestais ao longo do ano (calendários agrícolas), tal
como tem sido documentado por diversos estudos (Camino et al.,
1981; Brush, 1976; Aldunate et al., 1983).
Dessa forma, o agricultor tradicional realiza individualmente
as mesmas operações que os sistemas de avaliação de terras conven-
cionais. Temos, então, de um lado, os mapas mentais e, do outro,
uma cartografia sofisticada: os Sistemas de Informação Geográfica
(SIG). Consegue-se assim distinguir as diferentes ofertas ambientais
de cada unidade de paisagem do entorno. Isso se mostra crucial
para o estabelecimento de sistemas produtivos ecologicamente
adequados e, de certa forma, explica a permanência e a vigência
de muitos sistemas agrícolas, pecuários, agroflorestais e de caça e
coleta de caráter tradicional, alguns deles com idade de centenase
até milhares de anos.

O conhecimento estrutural: as etnotaxonomias


O ser humano é, por natureza, um animal classificador. Na verdade,
a continuidade de sua existência tem dependido precisamente da sua ca-
pacidade de reconhecer descontinuidades em seu universo de ação, assim
como suas diferenças e semelhanças. Nas últimas seções, fizemos uma
revisão do conhecimento ecológico tradicional em relação à porção da
natureza que conforma seu cenário produtivo. Agora, cumpre perguntar
se o produtor tradicional é capaz não só de reconhecer, categorizar e
nomear as descontinuidades geográficas, físicas, ecogeográficas e bio-
lógicas presentes em seu cenário, como também de classificá-las, isto é,
conferir-lhes uma ordem dentro de um sistema taxonômico.

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A memór i a biocu lt ur a l

As evidências acumuladas pela pesquisa mostram que nas mentes


tradicionais existem elaborados sistemas taxonômicos, não apenas
dos organismos biológicos (plantas, animais e fungos), mas também
dos elementos físicos (especialmente dos solos) e das unidades ecogeo­
gráficas da paisagem. Isso significa que os produtores rurais têm a
capacidade de organizar conceitualmente seus cenários produtivos
através da categorização, denominação e classificação dos principais
elementos (estruturas) encontrados. Vejamos então em que consiste
essa outra dimensão do conhecimento.
Toda classificação verdadeira reflete a existência de uma estrutura
taxonômica, que não é mais que um sistema de taxa hierarquicamente
relacionados entre si. Os taxa são conjuntos ou agrupamentos de objetos
(uma classe de planta ou animal, um tipo de solo etc.) capazes de ser
nomeados, isto é, de ser expressos linguisticamente. Por exemplo, no
idioma portugês, as palavras jequitibá, aroeira e coqueiro, por nomea­
rem árvores, constituem taxa incluídos na classe árvores. Por sua vez,
as palavras árvore, capim, grama são taxa incluídos na categoria de
plantas, todos agrupados junto com os animais e os fungos em uma
categoria superior, a dos seres vivos, separada dos objetos não vivos, os
minerais, por exemplo.
Um sistema taxonômico vai sendo assim construído através da
inclusão de conjuntos de objetos em categorias cada vez mais amplas,
e cada termo e seus referentes se encontram relacionados a outros por
seu contraste. Nesse sentido, na taxonomia, todo táxon é relacionado
a outros segundo dois princípios: inclusão e contraste. O trabalho de
quem pesquisa esses produtos do intelecto humano consiste em revelar
paulatinamente a estrutura e a organização dos sistemas taxonômicos
através da linguagem, isto é, por meio do que os informantes dizem
sobre os objetos em análise (espécies, solos, unidades de vegetação etc.).
O estudo das etnotaxonomias referentes à natureza começou há
apenas três décadas (Fowler, 1977) e atingiu seu máximo desenvolvi-

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mento em relação aos sistemas de classificação dos organismos vivos:


fungos, animais e, principalmente, plantas. Recentemente, entretanto,
têm surgido estudos que mostram também a existência de sistemas de
classificação dos solos e das unidades ecogeográficas. Nesse campo,
tanto linguistas quanto biólogos têm cumprido papel relevante, assim
como geógrafos e agrônomos (especialmente na decifração dos sistemas
de classificação dos solos e do relevo).
Considerada como uma contribuição seminal para a etnotaxono-
mia, Berlin, Breedlove e Raven (1973; 1974) propuseram, no início
dos anos 1970, o que aparentemente constitui os princípios gerais
(ou universais) da classificação folk ou tradicional dos seres vivos. Às
contribuições desses autores, centradas fundamentalmente no estudo
dos conhecimentos tradicionais sobre as plantas, seguiram-se as de
Bulmer (1974), baseadas no conhecimento etnozoológico. Os princí-
pios postulados por Berlin et al. serviram de base para a interpretação
e a descoberta de sistemas similares entre os animais (Hunn, 1977),
fungos (Mapes et al., 1981), solos (Williams; Ortiz-Solorio, 1981;
Barrera-Bassols, 1988; 2003) e espécies domesticadas vegetais (Brush,
1980) e animais (Flores, 1977).
De acordo com os estudos mencionados, em todo sistema tradi-
cional de classificação existem pelo menos quatro e no máximo seis
categorias através das quais todo táxon vegetal ou animal é classifi-
cado. Essas categorias são: princípio único (ou reino), forma de vida,
intermediária, genérica, específica e varietal (Figura 18). Cada uma
delas possui um conjunto de características nomenclaturais, taxonô-
micas e culturais, que, aparentemente, se repetem em toda cultura
independentemente de suas particularidades perceptivas. O princípio
anterior é somente um dos 12 princípios gerais que podem derivar da
exploração etnobiológica: sete referentes à categorização dos seres vivos,
e cinco à sua nomenclatura (Berlin, 1992). A enorme correspondência
existente entre os sistemas de classificação tradicional e os da ciência

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contemporânea pode chegar a mais de 60% das espécies de plantas,


entre 60% e 80% das aves e mamíferos e quase 100% para o caso dos
solos (Barrera-Bassols, 2003).

Figura 18: Principais categorias e níveis hierárquicos dos sistemas de


classificação tradicionais ou folk

Fonte: Berlin (1992)

O conhecimento relacional
O repertório intelectual tradicional também possui conhecimen-
tos que se referem a relações entre objetos ou eventos de seu cenário
produtivo. Através desse conhecimento, os produtores relacionam ob-
jetos ou fenômenos que ocorrem em espaços ou tempos distintos (por
exemplo, um mesmo tipo de solo em duas parcelas diferentes, ou dois
tipos de plantas anuais que aparecem em diferentes épocas do ciclo
agrícola etc.) ou pertencem a diferentes domínios de referência (por
exemplo, tipos de solo com espécies de plantas, ou espécies de fungos
com unidades da paisagem). Ainda que essa esfera do conhecimento
tradicional tenha sido pouco pesquisada, e de forma pouco sistemáti-

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ca (quase sempre referida como parte de longas descrições nos textos


dos pesquisadores), seu estudo promete ser amplamente revelador do
detalhado repertório que existe nas mentes dos produtores, o que pode
ser verificado nos complexos sistemas de relações tróficas entre espécies
e grupos de espécies que têm sido documentados.

O conhecimento dinâmico
Neste âmbito, são reconhecidos os conhecimentos que os produ-
tores rurais têm sobre as diferentes dinâmicas da natureza, tais como
ciclos lunares, movimentos de materiais sobre a superfície (por exemplo,
a erosão de solos), níveis dos lençóis freáticos, fenômenos climáticos,
movimentos das águas subterrâneas, ciclos de vida das espécies, perío­
dos de floração ou nidificação etc. Todas essas dinâmicas adquirem uma
enorme importância na execução dos processos produtivos. Entre os
conhecimentos identificados, ganha destaque aquele sobre o processo
da sucessão ecológica, que constitui o fenômeno por meio do qual os
ecólogos designam a paulatina recuperação ou regeneração dos ecos-
sistemas (geralmente identificados no espaço em função da vegetação)
diante de mudanças catastróficas naturais (sucessão primária) ou de
origem antrópica (sucessão secundária).
Esse fator adquire maior expressão paisagística, assim como maior
importância produtiva, nas zonas florestais (tropicais e temperadas), já
que nessas regiões as estratégias tradicionais se voltam para a compreen-
são e o manejo dos diferentes estágios da vegetação (florestas e bosques)
após ser substiuída por uma agricultura itinerante. Como resultado,
espera-se obter um conhecimento detalhado sobre esse fenômeno. Tal
constatação tem como base o fato de que existe uma nomenclatura
bastante completa para designar os estágios que conformam o fenô-
meno da sucessão secundária em grupos indígenas como os Maia da
Península de Yucatán, no México (Flores; Ucan-Ek, 1983), ou os Bora
da Amazônia peruana (Denevan et al., 1986; Denevan; Padock, 1988).

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A memór i a biocu lt ur a l

A existência de tais sistemas nomenclaturais indica que o agricultor


conceitualiza unidades ecogeográficas por meio de um critério espaço-
-temporal, já que é capaz não apenas de dar nome a essas unidades,
mas também de situá-las como frações de uma sequência histórica de
seu cenário produtivo, a partir das quais obtém diferentes produtos.
Diante disso, podemos questionar a tese de que na agricultura tradi-
cional as áreas em descanso são espaços improdutivos, uma falsa ideia
que se proliferou por várias décadas, especialmente entre os analistas
da agricultura tropical de corte e queima (Toledo, 1996). Ao contrário,
os diferentes estágios sucessionais que surgem após o uso agrícola e a
conseguinte regeneração ou restauração florestal fornecem inúmeros
produtos às famílias agricultoras, além de constituírem reservas de
lenha e áreas de caça.

O conhecimento utilitário
Considerando que o objetivo final dos conhecimentos ecológicos
tradicionais está dirigido ao melhor uso dos recursos naturais nos
diferentes processos produtivos, é também possível distinguir uma
categoria cognitiva relativa à utilidade dos objetos. Essa dimensão está
relacionada, naturalmente, com aqueles elementos da natureza que os
agricultores identificam ou percebem como recursos materiais. Sendo
assim, adotamos uma visão que restringe o conceito de utilitário à
ideia do meramente material, deixando de lado tudo aquilo que é de
utilidade no plano simbólico (por exemplo, a construção de mitos).
Por mais que não pareça, a tarefa de identificar os conhecimentos so-
bre os recursos naturais por categorias de usos não é uma empreitada
simples e, na realidade, ainda não foi realizada de forma sistemática.
Esse é mais um caso em que a pesquisa tem avançado mais no campo
das plantas, as quais, sob a perspectiva utilitária, podem parecer para
toda cultura como irrelevantes, significativas, protegidas ou cultivadas
(Berlin; Breedlove; Raven, 1974) e ter mais de 20 utilidades.

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O conhecimento tradicional e suas relações com as práticas e as


crenças
Um erro em que reiteradamente se incorre ao tentar fazer uma
análise sobre os saberes locais é querer encontrar em seu corpus pro-
priedades e significados similares aos da ciência contemporânea. Tal
conduta acaba ignorando a existência de uma racionalidade diferente
nas culturas rurais, reduzindo-a a uma mera extensão ou a uma for-
ma incipiente do racionalismo científico. É conveniente, portanto,
tentar obter um esclarecimento mínimo acerca das formas que esses
saberes assumem, sendo necessário para isso adotar uma perspectiva
epistemológica.
Os conhecimentos tradicionais estão sempre em permanente co-
nexão com outros dois âmbitos do fenômeno humano: a prática, que
permite a satisfação material dos indivíduos, e a crença, que conduz
à satisfação espiritual e, portanto, ordena a prática. Esse fato implica
uma distinção entre o corpo do conhecimento tradicional e outras
formas cognitivas, como a ciência.
Os frequentemente denominados saberes populares são formas de
sabedoria individual ou coletiva que se estendem por um domínio
territorial ou social determinado. Como arquétipo de conhecimento, a
ciência é societária, universal, geral, impessoal, abstrata, teórica e espe-
cializada; em contrapartida, a sabedoria é individual, local, particular
(ou singular), pessoal, concreta, globalizante e prática. Como afirma
Villoro (1982, p. 233): “A ciência não pode substituir a sabedoria, nem
esta, aquela. Ambas são formas de conhecimento necessárias para a
espécie”.
A distinção, desenvolvida por Villoro (1982), entre ciência e sabe-
doria, aplicada no caso concreto do manejo tradicional dos recursos
da natureza, é, sem dúvida, útil e ajuda a compreender o verdadeiro
caráter e significado do sistema cognitivo tradicional. Também per-
mite ir além de um estreito critério objetivista, herança quase sempre

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imperceptível do pensamento ocidental. Os saberes tradicionais estão


assim mais próximos do que Villoro (1982) definiu como sabedoria do
que aquilo que geralmente se entende por ciência. Se os saberes tradi-
cionais são um conjunto de conhecimentos intimamente vinculados
às crenças subjetivas, então a finalidade da exploração etnoecológica
não se restringe a buscar a estrutura desse sistema cognitivo nas razões
objetivamente suficientes.
Iturra (1993) chega a conclusão similar quando distingue entre o
que se chama a mente cultural e a mente positivista:

Assim se constrói um discurso sobre o real que separa o saber das quali-
dades pessoais e do estado das coisas: é a diferença entre a mente cultural,
que sabe por que crê, por que tem fé, e a mente racionalista, que sabe por
que comprova e acumula o resultado em textos, métodos e escolas de
interpretação dos fatos.

Essas duas abordagens, identificadas na pesquisa do núcleo in-


telectual tradicional ou indígena (do objetivo e do subjetivo) e que
até agora vêm operando separadamente, podem desembocar em um
mesmo marco interpretativo dentro de uma nova concepção científica:
a etnoecologia.

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I V. O QUE SÃO A S SA BEDOR I A S
TR A DICIONA IS? UM A A BOR DAGEM
ET NOECOLÓGIC A

Conhecimento e sabedoria
O conhecimento e a sabedoria (cognoscere e scire, em latim; connaître
e savoir, em francês; conocer y saber, em espanhol; kennen y wissen,
em alemão etc.) constituem dois modelos ideais e dominantes de co-
nhecer a realidade (Villoro, 1982), uma distinção que o idioma inglês
estranhamente não registra. Já Russel (1918) os distingue como dois
sistemas cognitivos, referindo-se ao conhecimento como conhecimento
por descrição e à sabedoria como conhecimento por familiaridade. Am-
bos são formas de crer, reconhecer e significar o mundo. Ambos são
mantidos, modelados, construídos e legitimados por meio de práticas
individuais e sociais, as quais influenciam a sua construção de forma
qualitativa (Barrera-Bassols, 2003).
O conhecimento se constrói sobre bases científicas compartilhadas
por determinada comunidade epistêmica: teorias que, juntamente com
postulados observáveis e relacionais, produzem um conjunto de pro-
posições fundamentadas em um raciocínio suficientemente objetivo. A
sabedoria é menos arraigada em conceitos epistêmicos, já que se baseia
em conhecimentos diretos, empíricos e repetitivos sobre as coisas. As
cosmologias desempenham um importante papel como comunidades

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

epistêmicas, embora sejam compartilhadas de forma restrita entre certas


comunidades eruditas.
A abstração e a concreção do raciocínio ocorrem de maneira di-
ferenciada em cada sistema cognitivo. O conhecimento está baseado
em teorias, postulados e leis sobre o mundo e, portanto, supõe-se que
seja universal, sendo fortalecido mediante autoridade. A sabedoria, por
sua vez, baseia-se na experiência concreta e em crenças compartilhadas
pelos indivíduos acerca do mundo que os rodeia, sendo mantida e
fortalecida mediante testemunhos.
A forma como cada sistema cognitivo é colocado em prática
também é contrastante. A aplicação do conhecimento com base na
autoridade se realiza de uma maneira impessoal e indireta, visando
conferir sentido ao mundo, enquanto a sabedoria, como testemunho,
tem como raiz a experiência pessoal e direta com o mundo. A diferença
entre um cientista e um sábio reside no fato de que não é necessário
ser um sábio para conduzir um trabalho científico ou, dito de outra
forma, nem todo científico é um sábio. O conhecimento se adquire
via capacitação e profissionalização. O sábio, ao contrário, não tem
necessidade de formular teorias gerais sobre as coisas, mas aproveita a
sua própria experiência pessoal e seus conhecimentos empíricos sobre
elas. A sabedoria se adquire através da experiência cotidiana e da forma
de viver e ver as coisas.
Se o conhecimento é, por definição, uma crença fundamentada
nas bases de um raciocínio objetivo, a sabedoria é, por definição, um
raciocínio sustentado na experiência pessoal e nas crenças mais ou me-
nos aceitas. Por outro lado, a objetivação e a subjetivação da realidade
desempenham um papel diferente em ambos os modos cognitivos.
O conhecimento confere objetividade às coisas para tentar separar
ou manter distância das emoções e do valor delas. Separa-se mente e
matéria, fato e valor, cultura e natureza, sendo esta última concebida
como um mundo externo a ser objetivado por meio de fatos.

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A memór i a biocu lt ur a l

A garantia de um juízo correto é a justificação objetiva do conhe-


cimento. O conhecimento é produzido mediante o reconhecimento
das regularidades e de forma sincrônica. A objetivação pressupõe
que existe um acordo de uma comunidade epistêmica e se transmite
de forma impessoal. Mesmo quando uma descoberta é realizada
por uma ação pessoal, a justificação e a objetivação desta se tornam
impessoais como garantia de sua objetivação. Já a sabedoria, que é
um tipo de éthos, não faz uma separação drástica entre a mente e a
matéria, uma vez que tanto os valores quanto os fatos conformam
uma unidade na experiência do indivíduo. A intuição, as emoções,
os valores morais e éticos se encontram embebidos na forma de ver
as coisas. A natureza e a cultura formam parte do mesmo mundo;
os fatos e os valores se conectam para ver as coisas. A garantia de
um juízo correto é a experiência pessoal compartilhada no interior
de uma determinada comunidade cultural. A sabedoria, como uma
crença compartilhada, produz conhecimento por meio do reconhe-
cimento da repetição de irregularidades no tempo. O conhecimento,
portanto, se fortalece de forma diacrônica. As descobertas e suas
justificações são sempre de caráter pessoal e socializadas como
crenças com fundamento.
O discurso e a transmissão do conhecimento são também diferentes
em cada modo cognitivo. O conhecimento tenta explicar a realidade
de uma forma simples e concreta, enquanto a sabedoria a concebe e
explica de forma complexa. A normalização textual é crucial para o co-
nhecimento, enquanto a sabedoria preserva a riqueza e a multiplicidade
de significados (repetições verbais, metáforas etc.). O conhecimento
aspira à simplicidade e à generalidade, enquanto a sabedoria visa a
profundidade e o detalhe que particulariza. No entanto, a sabedoria é
um caminho necessário para alcançar o conhecimento, tanto quanto
um especialista é exigido para manter a erudição por sua experiência e
autoridade. O conhecimento ganha maior importância quando é mais

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aplicado que teórico. Por isso, quando aplicado pode estar mais perto
ou mais relacionado a certas formas de sabedoria.
Os agrônomos e cartógrafos chegam a se tornar especialistas nos
seus campos pelo conhecimento direto e repetitivo de seu objeto de
estudo e, consequentemente, podem se tornar sábios devido à expe-
riência adquirida. O agricultor e, em especial, o camponês, adquire
conhecimento objetivo através da experiência direta em suas práticas
agrícolas e, assim, chega a ser um especialista erudito de forma seme-
lhante ao agrônomo, quando este torna um sábio em função de sua
experiência e autoridade (Villoro, 1982).
O conhecimento e a sabedoria, como formas ideais de cognição,
não são facilmente separáveis, e também não é possível substituir um
pelo outro. Ambos são necessários para a preservação da experiência
humana (Villoro, 1982). O conhecimento objetivante não pode
substituir a sabedoria porque o objetivo do primeiro é apenas tentar
garantir o juízo correto de nossos atos, independentemente das metas
que tenhamos estabelecido ou escolhido; mas o conhecimento por si
só não nos permite saber qual é o objetivo a que devemos nos ater.
A escolha das metas e dos valores adequados para a perpetuação
da experiência humana depende do sentido da vida, do sentido de
pertencimento e do sentido de lugar que outorga a sabedoria. Se acaso
existe uma memória coletiva de espécie, como tentamos demonstrar
nesta obra, ela se encontra mais no conjunto de sabedorias, que con-
tinuam existindo como múltiplas formas vivas do conhecer, do que
na acumulação detalhada, massiva, descomunal e quase sempre inex-
pugnável do conhecimento científico (observações, dados, medições);
ainda mais quando este último tem sido orientado pela especialização,
pelo parcelamento e pela fragmentação da realidade e, inclusive, pela
sua mercantilização.
Nessa dicotomia entre conhecimento e sabedoria, onde situar os
saberes tradicionais ou locais? Em princípio, os saberes tradicionais se

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encontram mais próximos ao que se tem definido como sabedoria pela


razão fundamental de que eles não existem (não se criam, não se desen-
volvem nem se transformam) per se, mas, como mostraremos, sempre
têm sua razão de ser em função de outros dois contextos das culturas
tradicionais: a produção e a crença. Com efeito, os conhecimentos
tradicionais se orientam e se significam tanto através do conjunto de
práticas que integram os processos de produção e reprodução materiais
da cultura quanto dos sistemas de crenças, por meio dos quais essa
cultura consegue realizar sua produção e reprodução simbólica. Por essa
razão, fazem parte de toda uma gama de sabedorias que se estendem
socialmente no espaço e no tempo.

Ciência e saberes tradicionais: uma comparação inútil


É pela razão exposta anteriormente que qualquer tentativa de
comparação entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais
se mostra inútil ou mesmo bizantina e sem sentido (Barrera-Bassols,
2003). De fato, quando se trata de entender as diferenças, similitudes
e relações entre os saberes locais e a ciência ocidental, surgem ime-
diatamente perguntas como: é viável e desejável comparar os saberes
locais com a ciência ocidental? Como se deveria fazer essa comparação?
Esses sistemas cognitivos são realmente independentes, excludentes
e substituíveis? Nesse sentido, é interessante conhecer as complexas
e sofisticadas discussões desenvolvidas por Agrawal (1995) e Green
(2008) sobre a pertinência dessa comparação.
Em geral, quando se faz esse tipo de comparação, tem-se o
intuito de demonstrar a natureza pré-científica dos saberes locais.
Estes supostamente são criados ou construídos por indivíduos, e
não por instituições sociais, assim como sua compreensão da natu-
reza é intuitiva, emocional e imaginativa, contrariando, portanto,
a compreensão racional, objetiva, analítica e intelectual da ciência
ocidental. Os saberes locais também costumam ser classificados

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como sistemas altamente subjetivos e intimamente vinculados a


cosmovisões baseadas na existência de um mundo supranatural, e,
portanto, a sua interpretação é considerada qualitativa, enviesada
e limitada.
Já quando se trata da ciência ocidental, sua suposta superioridade
é visualizada pelo fato de que a construção do conhecimento se faz
de forma impessoal e secularizada, permitindo-lhe assim postular leis
universais e teorias totalizantes sobre o mundo externo, quer dizer, sobre
a natureza, baseadas na objetividade intelectual. Tais leis e postulados
universais são corroborados por uma deliberada experimentação e pela
acumulação sistemática de dados quantitativos. A sua capacidade de
abstração se baseia na promulgação de teorias que separam a natureza
dos domínios socioculturais, enquanto os saberes locais se estruturam
sobre o conhecimento local concreto, fundamentado em observações
meramente pessoais, na experimentação pelo método de tentativa e
erro e na síntese dos fatos e fenômenos.
Em contraste, a instrumentalização da ciência ocidental é percebida
como um esforço social, institucionalizado, altamente especializado
e universal. Não se pode deixar de apontar, entretanto, que toda essa
argumentação favorável à ciência tem sido severamente questionada
por novas correntes críticas e, especialmente, pela nova ciência da
complexidade (Morin, 2006), que sustenta que a ciência, em seu modo
dominante, fundamenta-se em três princípios básicos limitantes: 1) o
determinismo universal, que estabelece que o ser humano é capaz de
conhecer, graças a sua inteligência e seus sentidos, não apenas todos
os eventos passados, como também prever todos os eventos futuros;
2) o reducionismo, que procura conhecer uma totalidade por meio da
análise de seus componentes básicos; e 3) a disjunção, que isola e separa
dificuldades cognitivas, isto é, fragmentos da realidade, induzindo à
separação entre disciplinas, as quais vão se configurando como enti-
dades herméticas ou fechadas (Morin, 2005).

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Da mesma forma, os saberes locais são considerados como sistemas


cognitivos fechados, locais e etnocêntricos que se encontram distri-
buídos de forma dispersa pelo mundo, enquanto a ciência ocidental é
concebida como um sistema cognitivo universal, aberto e progressivo,
ignorando a relação sistemática estabelecida entre eles pelo menos des-
de o século XVI (Crosby, 1998). Efetivamente, de um lado, a ciência
ocidental se nutriu dos saberes locais desde que estes foram descobertos
nas regiões periféricas pela expansão europeia. Por outro, o caráter
aparentemente fechado dos saberes locais não se sustenta quando se
reconhece que existe um intercâmbio entre ambos, iniciado na época
colonial.
Desde então, um grande número de povos indígenas e socieda-
des tradicionais da Ásia, da África e da América Latina incorporou
cultivos, técnicas agrícolas, animais domésticos, práticas de saúde,
sistemas educativos e normas jurídicas provenientes do Velho Mundo,
ampliando assim os saberes locais por meio de um processo de adoção
e apropriação cultural.
A comparação entre os saberes locais e a ciência ocidental também
acaba sendo ainda mais comprometida pela forma como os cientistas
percebem a própria ciência e a si mesmos. Uma mitificação ocorre sutil-
mente quando se contrasta a ciência, considerada um estágio superior,
com outros sistemas cognitivos, da mesma forma quando se compara
os cientistas, considerados experts, com os criadores ou produtores de
outras formas de conhecimento consideradas vulgares (criadas pelo
vulgo). A ciência se desvirtua em função da própria execução de sua
prática acadêmica e pelas relações de poder desenvolvidas em meio às
instituições científicas, as mesmas que tentam validar seus próprios
objetivos e impor a sua verdade.
Possivelmente, a principal omissão exercida quando se compara
a ciência ocidental com os saberes locais ocorre quando não se con-
sideram as relações de dominação/subordinação (Agrawal, 1999).

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Essa condição se explica pelo fato de que as pessoas que possuem os


saberes locais não tiveram o poder necessário para influenciar o curso
da história. O que os povos indígenas, e algumas sociedades rurais,
mantiveram foi uma atitude permanente de resistência local frente aos
efeitos da dominação produzidos por aqueles que possuem e aplicam
o conhecimento científico.
A ciência positivista ocidental impôs a sua dominação em muitas
regiões do Terceiro Mundo por meio da identificação, separação e
validação dos saberes locais com valor comercial em potencial, assim
como por meio de maximização da abstração do conhecimento técnico
ambiental, que pode ser retido devido a sua facilidade de transferência
a outros contextos (por exemplo, raças e variedades de cultivos locais,
ou crioulos, e seus parentes silvestres; microbiota inoculada do solo;
genomas; princípios ativos para medicamentos; produtos orgânicos;
espécies endêmicas úteis etc.).
A instrumentalização científica tem descontextualizado os co-
nhecimentos e as práticas locais por meio da fragmentação, extração
e substituição. Esse processo de generalização tem sido realizado via
catalogação e armazenamento ex-situ, assim como pela disseminação
dos conhecimentos úteis. Em termos gerais, os passos metodológi-
cos de extração e substituição dos saberes locais têm permitido a
sua cientifização ou oficialização científica, mediante as práticas de
particularização, generalização e implementação, sob o modelo de
desenvolvimento vertical.
Portanto, a aparente neutralidade da prática científica positivista,
racionalista e mecanicista se esvanece, já que seu principal objetivo
político é apropriar-se de objetos (conhecimentos técnicos úteis)
mediante a sua transferência a outros contextos (culturais, políticos,
sociais, econômicos e ambientais) fora de onde foram desenvolvidos,
como se eles não tivessem um valor local. Sob essa lógica, a unicidade
entre conhecimento e prática é desarticulada e separada de seus produ-

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A memór i a biocu lt ur a l

tores e usuários, e apenas o processo de cientifização lhes outorga um


valor universal. Além disso, uma vez que o conhecimento tradicional
é extraído para sua salvação ex-situ, pouco reconhecimento é dado às
sociedades tradicionais que o criaram.
Em suma, esquece-se de que ambos os conhecimentos, isto é, os
saberes locais e a ciência ocidental, são o resultado de construções
históricas específicas desenvolvidas por diferentes sociedades para
explicar sua própria existência e seu entorno, assim como para dar
sentido a sua trajetória civilizatória e construir suas próprias estratégias
de sobrevivência. A partir dessa perspectiva, nenhum deles é superior
ao outro ou outros, e todos são simplesmente diferentes. Em última
instância, pode-se dizer que todos os sistemas cognitivos, incluindo a
ciência e os saberes locais, constituem formas parciais e limitadas de
entender o mundo (Barrera-Bassols, 2003).

A sabedoria tradicional: uma aproximação etnoecológica


Os povos indígenas e tradicionais desenvolveram ao longo dos anos
(dezenas, centenas, quiçá milhares de anos) estratégias de subsistência
que evitam o risco por meio da criação, manutenção e melhoramento
da complexidade geográfica e ecológica e da diversidade biológica,
genética e paisagística em diferentes escalas territoriais. A diversidade
é mantida e enriquecida pela adoção de estratégias para prevenir riscos,
o que não configura um plano fixo, mas um programa localmente
organizado para dissipar distúrbios sagrados e concretos.
Essa racionalidade é orientada pela satisfação das necessidades
locais, fazendo frente tanto às incertezas climáticas quanto à escassez
de mão de obra, de capital, de terra e de outros fatores econômicos.
Essa lógica dual ecológica-econômica se evidencia no uso múltiplo dos
recursos e no manejo do ambiente local, tendo como base redes sociais
e culturais de reciprocidade e responsabilidade, seja no interior do lar,
do bairro ou da comunidade em seu conjunto.

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Natureza, cultura e produção são, então, aspectos inseparáveis que


permitem a construção dos saberes locais, os mesmos que se baseiam
nas experiências individuais e sociais desenvolvidas em contextos
locais dinâmicos regulados pelas instituições sociais. Os saberes
locais são sistemas de conhecimento holísticos, acumulativos, dinâ-
micos e abertos, que se constroem com base nas experiências locais
transgeracionais e, portanto, em constante adaptação às dinâmicas
tecnológicas e socioeconômicas.
Os saberes locais incorporam uma visão monista do mundo, de
modo que a natureza e a cultura são aspectos que não podem ser
sepa­rados. Embora os saberes locais sejam adquiridos por meio de um
processo de aprendizagem que se vive de forma diferenciada, depen-
dendo da idade e do sexo, o total dos conhecimentos coletivos deve ser
entendido como uma teoria social ou como uma epistemologia local
sobre o mundo circundante (Barrera-Bassols, 2003).
Nesse sentido, para compreender adequadamente os saberes tra-
dicionais, é preciso entender a natureza da sabedoria local, a qual se
baseia (está conformada) na complexa inter-relação entre as crenças,
os conhecimentos e as práticas. A natureza é concebida e representada
sob seus domínios visíveis e invisíveis. As sabedorias tradicionais têm
como base as experiências que o indivíduo tem do mundo, dos fatos,
dos significados e dos valores, de acordo com o contexto cultural e
social onde se desenvolvem. Os saberes são, então, parte ou fração
essencial da sabedoria local.
Os valores locais encontram sua raiz no mundo mítico e nos ri-
tuais que reorganizam tais mitos. No entanto, a percepção do mundo
é ao mesmo tempo sagrada e secular. Os seres humanos são parte da
natureza e, portanto, compartilham sua existência com seres vivos
não humanos. O homem não está separado da natureza, da mesma
forma que os seres não humanos não estão separados da cultura. Sob
essa perspectiva, surge a necessidade de encontrar o equilíbrio entre

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A memór i a biocu lt ur a l

essa cosmovisão e o mundo real. Em consequência, a verdadeira signi-


ficação do saber tradicional não é a de um conhecimento local, mas a do
conhecimento universal expressado localmente (Posey).
Nos saberes locais, a realidade se constrói com base nas experiên­
cias sociais e nas necessidades locais. Os saberes locais formam um
complexo entendimento sobre as estruturas naturais e suas relações e
dinâmicas ecológicas sempre incertas e em constante transformação.
Por essa razão, a natureza é profundamente entendida e respeitada;
é vista como uma força de vida impossível de controlar, mas que ao
mesmo tempo é fundamental para a existência humana. Portanto, o
conhecimento sobre o seu comportamento se torna necessário para
fazer frente às incertezas (Figura 19).

Figura 19: A etnoecologia como estudo da representação,


da interpretação e do manejo da natureza

K: Imagem ou representação (CRER)


C: Leitura ou interpretação (CONHECER)
P: Uso ou manejo (FAZER)

Fonte: Toledo (2002)

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Como a realidade muda constantemente, de acordo com as cir-


cunstâncias, a percepção e a organização mental sobre o mundo na-
tural, ela não é fixa nem estática, mas polissêmica, multidimensional
e polivalente. Os vários níveis de organização mental sobre o mundo
dependem das circunstâncias e das necessidades individuais, familiares
e comunitárias. A partir dessa perspectiva, os saberes tradicionais não
são sistemas estáticos, mas desenhos inovadores alimentados por redes
sociais e suas relações internas e externas. A inovação, a adaptação e a
adoção são processos dinâmicos sempre contextualizados em aspectos
culturais particulares, que oferecem a seus atores locais um sentido de
pertencimento a algum lugar.
Nos últimos 40 anos, um número crescente de estudiosos da
antropologia ecológica, da etnobiologia, da geografia ambiental e
da agronomia tem se dedicado a compreender mais plenamente as
formas não ocidentais ou pré-modernas de apropriação da natureza.
No entanto, a maioria desses primeiros esforços esteve marcada por
uma tendência a analisar os saberes locais tendo como referência os
parâmetros e padrões do conhecimento científico, a separar os saberes
tradicionais (a cultura) de suas implicações práticas (a produção) e
a identificar o conhecimento local, tradicional ou indígena como
racionalmente puro e sem implicações nem conexões com o mundo
subjetivo das crenças.
Assim, por exemplo, não se pode negar que a obsessão por en-
contrar o significado científico dos sistemas taxonômicos tradicionais
teve uma enorme utilidade na revalorização dos conhecimentos locais
(Berlin, 1922), mas acabou desvirtuando a busca de sua verdadeira
essência. Hoje, parece ser cada vez mais claro que entre as culturas
rurais tradicionais e, especialmente, nas indígenas não existe uma
classificação única para os elementos da natureza (plantas, animais,
fungos, solos, águas, rochas, vegetação). Observa-se também que seus
sistemas de classificação são feitos com inúmeros critérios, e que suas

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A memór i a biocu lt ur a l

categorias têm vários significados e dimensões, ou seja, são multicri-


teriais e polissêmicos.
Para finalmente entender o significado e a função dos saberes
ecológicos locais no contexto da apropriação pré-industrial da
natureza, foi preciso esperar que fossem realizadas várias dezenas
de estudos de caso. Atualmente, parece que ficou evidente que os
saberes locais, para serem corretamente compreendidos, devem ser
analisados a partir de suas relações tanto com as atividades práticas
quanto com o sistema de crenças da cultura ou do grupo humano ao
qual pertencem (Berkes, 1999). Caso contrário, pode-se incorrer no
erro de chegar a uma compreensão descontextualizada desses saberes,
reproduzindo uma tendência própria da pesquisa convencional: a de
separar o objeto de estudo de suas relações com o todo (holon) dentro
do qual está imerso.
A conclusão inelutável ou definitiva sobre esse tema é a de que
o conhecimento tradicional deve ser considerado em sua íntima re-
lação com seu sistema de crenças. Isso permite compreender muitos
dos contornos e matizes que o conhecimento objetivo assume na
mente do produtor rural, além de estabelecer seus próprios limites
práticos. Exemplos disso são os muitos sistemas folk ou tradicionais
de classificação biológica que aparecem amalgamados com seu sis-
tema de crenças, ou a sobreposição que existe entre os calendários
rituais, agrícolas e astronômicos de muitas culturas; ou, finalmente,
o reconhecimento de unidades no espaço intimamente vinculado a
uma certa sofisticação perceptual ou a um determinado sistema de
representações (Descola, 1998).
Por tudo que foi anteriormente exposto, é possível afirmar que
os atos de crer e conhecer constituem operações intelectuais utiliza-
das pelo produtor rural ao realizar a apropriação da natureza, ainda
que não se saiba em detalhe de que forma se encontram articulados
como domínios do pensamento. Com isso, pelo menos fica superada

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a maneira fragmentada com que tem sido abordada a exploração dos


meios intelectuais, dando lugar a um tratamento integral cuja aplicação
depende de seu deciframento detalhado.
Convém então examinar o núcleo intelectual dos agricultores
tradicionais a partir de suas duas principais facetas ou dimensões
(sem que isso signifique uma divisão arbitrária): como um sistema de
conhecimentos (corpus) e como um sistema de crenças (kosmos), o qual,
por sua vez, ganha sentido em função das práticas (práxis) com que os
indivíduos e suas famílias satisfazem as suas necessidades materiais e
espirituais. Dessa forma, chega-se ao complexo k-c-p (kosmos-corpus-
-práxis), que constitui o objeto central de estudo de toda pesquisa
etnoecológica (Toledo, 2002).

A etnoecologia como análise do complexo kosmos-corpus-práxis


O surgimento e o desenvolvimento da etnoecologia, em função de
seu enfoque holístico e multidisciplinar, têm permitido o estudo do
complexo formado pelas crenças (kosmos), pelo sistema de conhecimen-
tos (corpus) e pelo conjunto de práticas produtivas (práxis), o que torna
possível compreender de forma cabal as relações que se estabelecem
entre a interpretação (ou leitura), a imagem (ou representação) e o
uso ou manejo da natureza e de seus processos (Toledo, 1992, 2002;
Barrera-Bassols e Toledo, 2005) (Figura 20).
A etnoecologia, como disciplina híbrida, aborda o estudo dos
saberes locais e dos problemas convencionais ligados à separação do
mundo em duas esferas: do natural e do social. Essa disciplina propõe
um novo paradigma científico que se fundamenta na multicultura-
lidade; propõe também encontrar modos de vida sustentáveis, assim
como valores, significados e ações que permitam estabelecer cenários de
globalização alternativos. A etnoecologia propõe estudar a integração
do complexo kosmos-corpus-práxis dentro dos processos de produção
nas diversas escalas, assim como compreender a realidade local por

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meio do estudo das dinâmicas, representações, rituais e simbolismos


dos fatores naturais.

Figura 20: O etnoecólogo se dedica a pesquisar o complexo kosmos-corpus-


práxis utilizado pelo agricultor em sua prática de apropriação da natureza

Agricultor

Os etnoecólogos precisam então interpretar os modelos do mundo


natural que os agricultores, as famílias e as comunidades tradicio-
nais possuem, visando compreender, em toda a sua complexidade,
as sabedorias locais. Paralelamente, eles também geram um modelo
científico externo sobre o referido contexto local. O enfoque etnoeco-
lógico procura então integrar, comparar e validar ambos os modelos
com o objetivo de criar diretrizes que apontem para a implementação
de propostas de desenvolvimento local endógeno ou sustentável com
plena participação dos atores locais.
Ao retomar e integrar as ações, os significados e os valores, o
enfoque etnoecológico se foca nos aspectos éticos e morais em torno
do manejo sustentável dos recursos naturais, no empoderamento dos
atores locais e na produção de diversidades, buscando desafiar a supos-

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ta neutralidade do observador externo que garante a objetividade da


ciência. Por essa razão, a etnoecologia não é apenas uma abordagem
interdisciplinar ou holística, mas também desafia os paradigmas da
ciência convencional, promove uma pesquisa participativa e, por isso,
faz parte do que se conhece como ciência pós-normal (Funtowicz; Ra-
vetz, 1998) ou ciência da complexidade (Morin, 2002).

A dinamização do complexo k-c-p: o cenário giratório


Pelo estabelecido anteriormente, os atores tradicionais encenam
três atos distintos, mas articulados e inclusive sincronizados, frente a
seu cenário produtivo: duas interpretações e uma atuação. A partir de
seu conjunto ou repertório de crenças, eles constroem uma imagem ou
representação do cenário produtivo: a supranatureza. Paralelamente,
constroem uma interpretação desse mesmo cenário através de uma
leitura baseada na observação de objetos, fatos, padrões e processos,
ou seja, a partir do repertório de conhecimentos acumulados. Final-
mente, os atores decidem e constroem uma atuação baseada na dupla
representação/interpretação; isto é, colocam em operação um conjunto
de ações relacionadas ao cenário por meio da tomada de decisões sobre
um repertório de práticas produtivas.
Essa tríade de atos representa, em essência, o processo geral de
apropriação (intelectual e material) da natureza, embora expresse
somente a dimensão atemporal do complexo em questão.
O complexo é dinamizado (cinemática), uma vez que essa tríplice
relação entre o ator, que no caso dos povos indígenas é representado pela
família (household), e seu cenário produtivo é subjugada à impiedosa
dimensão do tempo: a jornada ou sucessão noite/dia, o ciclo anual (ano
solar), o ciclo geracional e as trajetórias históricas de caráter transgeracional.
Dada a circularidade, que é a forma como o tempo se expressa –
concatenação dos ritmos humanos com os ciclos naturais –, os atores
são situados bem ao centro de um espaço que se desloca de maneira

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circular; isto é, acabam se situando no centro de um cenário giratório


(Figura 21). Os atores produtivos constituem, assim, o eixo a partir
do qual se dá a engrenagem entre as dimensões do kosmos, do corpus
e da práxis. Isso representa a concatenação entre o calendário ritual, o
calendário cognitivo (que observa, por exemplo, mudanças na floração,
os ciclos de vida dos animais, a movimentação da Lua, das estrelas
ou das constelações, as épocas de aninhamento ou desova etc.) e o
calendário agrícola ou pesqueiro (e das demais atividades produtivas).

Figura 21: Toda família tradicional vai modificando


seu complexo k-c-p no decorrer do ciclo anual

Os atores, ou melhor, os indivíduos, as famílias, as comunidades, os


territórios e, enfim, os povos ou culturas, que em conjunto expressam
uma dimensão espacial, vivenciam então o jogo da sobrevivência através
da dinamização do complexo k-c-p em processos circulares; cada um
dos quais, dependendo da dimensão temporal, opera como uma en-

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grenagem dentro de um mecanismo de relojoaria de caráter inclusivo.


Assim, a rotação entre a noite e o dia, que se apresenta ao ator como um
processo aberto/fechado ou de ação/descanso, faz parte da translação
anual, do ano solar. Da mesma forma, o ciclo anual é rotacional dentro
do processo de translação que representa a vida produtiva de um ator.
E, enfim, os ciclos de vida produtiva da cada ator fazem parte, por sua
vez, dos ciclos mais amplos por meio dos quais uma cultura imprime,
através da história, uma maneira particular de se apropriar da natureza
contida em determinado cenário regional (o território).
O cenário giratório possui, então, uma inércia circular, tanto quan-
to é duplamente cíclico (ciclo diário e ciclo anual), embora também
contenha uma história particular que, à primeira vista, é imperceptível
para o agricultor, uma vez que se estende por lapsos que excedem a
duração dele próprio.
Diante do exposto, esses ciclos de ciclos, na realidade, são processos
em espiral, na medida em que a acumulação de experiências, memo-
rizadas pelas mentes individuais e coletivas de determinada cultura,
é transmitida através do tempo como círculos cada vez mais amplos,
dando lugar a um processo de aperfeiçoamento que pode ser gradual
ou súbito (como saltos), e que, visto hoje em dia, explica a impressio-
nante acumulação de experiências verificada em muitas culturas locais.
A capacidade de memorizar, isto é, de lembrar eventos do passado para
tomar decisões no presente, torna-se, então, um elemento fundamental não
apenas na acumulação de experiências de um único ator produtivo, e que
converte o que pareciam ser ciclos tediosamente repetitivos em movimentos
espirais e ascendentes, mas também na socialização com outros indivíduos
da mesma geração (memória coletiva ou compartilhada) e, o que é ainda
mais importante, com indivíduos de outras gerações.
Dotado de seu complexo k-c-p, cada indivíduo que enfrenta o cenário
que gira aperfeiçoa sua experiência a partir de três fontes de informação:
o que lhe disseram (experiência historicamente acumulada), o que lhe

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dizem (experiência socialmente compartilhada) e o que observa por si


mesmo (experiência individual). Sendo assim, transmite às novas gerações
uma experiência enriquecida e cada vez mais refinada. A repetição desse
mecanismo no tempo, se não for interrompida ou alterada, constitui um
processo inegável de aperfeiçoamento, o que confere à experiência local o
caráter diacrônico apontado por diversos autores (Figura 22).

Figura 22: A quantidade de conhecimento ou experiência adquirida por um


indivíduo toma a forma de uma espiral com o passar do tempo

O agricultor tradicional, quer dizer, a família agricultora tradicional


vive assim imersa nessa matriz espaço-temporal durante seu contato
permanente com as forças, os elementos e os ciclos da natureza. E esses
conceitos básicos de espaço e de tempo, que aparecem intimamente
atrelados à apropriação do universo natural e que permitem manter
funcionando o metabolismo entre sua sociedade e sua natureza (versão
pré-industrial da sustentabilidade), são também o eixo cósmico (Steger,
1991) que dá sentido a sua existência e identidade a sua cultura. Hoje,
existem testemunhos de que essa memória tradicional não persiste
exclusivamente em função do seu registro em meios escritos (de hieró-

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glifos e inscrições até textos elaborados e complexos), mas especialmente


através de atos grupais ou coletivos, tais como cerimônias, rituais,
festas e outras expressões corporais (ver Connerton, 1994; para o caso
da América Central, ver Florescano, 1999) (Figura 23).

Figura 23: A transmissão do conhecimento tradicional através das gerações


pode ser visualizada como uma contínua sequência de espirais

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V. AGROECOLOGI A E
SA BEDOR I A S TR A DICIONA IS:
UM PA NOR A M A MU NDI A L

Introdução
Este capítulo é dedicado a apresentar um conjunto de exemplos
de várias partes do mundo, selecionados por sua importância agroe-
cológica e que têm sido descritos e analisados por diferentes autores.
Os critérios considerados para sua seleção tiveram como base a sua
originalidade (como mecanismo de adaptação a condições específi-
cas), o seu tempo de existência (idade), a sua complexidade cognitiva
e seu alto valor tecnológico e cultural, bem como sua importância
como referência passível de ser reproduzida na atualidade. Embora
sejam criações tradicionais ou pré-industriais, todas exibem um alto
potencial como sistemas de produção ecologicamente adequados de
manejo da natureza em contextos particulares. A seleção foi feita
também buscando manter um certo equilíbrio geográfico, cultural e
ecológico, de tal forma que haja exemplos situados em várias regiões
do mundo (Figura 24).

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Figura 24: Mapa-mundi identificando a localização


dos estudos de caso apresentados neste capítulo

O conhecimento agroecológico dos Moru do Sudão


Os Moru habitam o Sudão do Sul (Lado, 1986; 1988). Com
uma população de não mais de 100 mil habitantes, esse povo, cujo
idioma é de origem nilótica, tem se dedicado há milhares de anos
à agricultura de corte e queima (agricultura itinerante). O trabalho
agrícola é intensivo e intercalado sob condições climáticas equato-
riais ou tropicais, com chuvas abundantes, mas incertas e flutuantes
ao longo de nove meses (1.000-1.500 mm por ano) e um período
de estiagem não superior a três meses. A paisagem é dominada por
planícies e áreas de cerrado derivadas de florestas úmidas, desenvol-
vidas em solos característicos do planalto africano (Ironstone Plateau).
Esses solos têm coloração marrom a marrom avermelhado, são bem
drenados, apresentam textura fina a média, têm cascalho, com aflo-
ramentos rochosos, e podem ser rasos ou profundos, dependendo de
sua posição no relevo.

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A memór i a biocu lt ur a l

Em geral, o sucesso agrícola desse povo está associado a seu co-


nhecimento agroecológico e sobre as variações locais do clima e do
comportamento das chuvas. O manejo agroecológico dos Moru é
baseado em um reconhecimento detalhado de certos atributos edáficos
(cor, quantidade de matéria orgânica e cinzas na superfície do solo,
textura, pedregosidade, estrutura, posição no relevo e capacidade de
retenção de água). Os solos são classificados e nomeados de acordo com
a sua cor e textura, o que serve também para avaliar o seu potencial
agrícola. Para os Moru, quanto mais preto o solo, mais fértil ele será,
independentemente do tipo de cultura. Nessa lógica, os solos argilosos
negros são considerados bons devido à retenção da umidade proporcio-
nada pela argila, pelo fato de a consistência macia se manter por tempo
prolongado e por sua capacidade de sustentar plantas de hastes longas
com raízes pouco profundas. O conceito de terra boa é atribuído ao
solo que, com certeza, produzirá até o final da estação de chuvas, e
não daquele que produz mais, porém apenas sob condições favoráveis.
Os agricultores Moru classificam o grau de aptidão do solo para de-
terminadas culturas com base em variáveis como a quantidade de chuva
e seu comportamento (previsibilidade e variabilidade da precipitação).
Por exemplo, em anos de precipitação adequada, os solos arenosos se
tornam aptos especialmente para cultivos como o amendoim, que são
facilmente colhidos. Já os solos arenosos soltos são desejáveis para a
produção de mandioca, feijão ou batata-doce, mas só quando as chu-
vas chegam a tempo. Os agricultores estabelecem a qualidade de suas
terras mediante: (a) a seleção de locais específicos para tirar proveito
de certos tipos de solo; (b) o reconhecimento da cor do solo e de certas
espécies de árvores e gramíneas como indicadores de sua fertilidade
relativa; (c) a consideração da experiência e da tradição oral na tomada
de decisões sobre quais os solos relativamente mais férteis, mais fáceis
de cultivar ou com melhor aptidão para determinadas culturas; e (d)
o reconhecimento e a aplicação do conceito de topossequência edáfica

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e estágio sucessional para a manutenção de sua fertilidade. De fato, a


fase sucessional da vegetação é considerada o melhor indicador para
avaliar a qualidade do solo.
Uma mancha de vegetação densa é considerada ideal para ser der-
rubada e queimada para fins agrícolas. Também é preferível derrubar
manchas de pastagens densas e curtas às com pastos altos. Certas
pastagens são reconhecidas como indicadores da fertilidade dos solos,
entre as quais destacam-se: Imperata cylindrica, Vetiveria nigritana e
Sorghum arundinaceum.
Os Moru adotam certas estratégias de manejo da terra para man-
ter e melhorar a fertilidade dos solos. A rotação de culturas expressa
o estado da fertilidade do solo, embora não haja uma rotação fixa
destas, uma vez que o agricultor cultiva sua parcela de terra até que
a produtividade diminui ou quando ocorre a infestação de plantas
espontâneas concorrentes.
Existe um conjunto de estratégias para manter a fertilidade e a
produtividade dos solos, entre elas: (1) a manutenção de pasto verde
e seco na superfície do solo para aumentar a quantidade de matéria
orgânica; (2) a aração profunda para romper as raízes do pasto e
arejar e revolver o solo; (3) a queima da pastagem e da vegetação de
capoeira da parcela; (4) o armazenamento de pasto seco por dois
anos, antes de sua queima; (5) permitir o crescimento de vegetação de
capoeira na parcela em pousio por três ou quatro anos para regenerar
a fertilidade do solo; (6) plantar culturas como a mandioca e o sorgo,
que crescem mesmo em solos de baixa fertilidade; (7) cultivar legu-
minosas; (8) distribuir resíduos orgânicos domésticos previamente
armazenados perto do local de moradia; (9) manter uma rotação de
culturas flexível e cultivar várias espécies; (10) produzir húmus ou
cobertura morta; (11) estercar a terra; e (12) preparar a terra antes da
chegada da chuva para que o plantio ocorra antes do primeiro aporte
de nitrogênio da estação.

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A memór i a biocu lt ur a l

Vale ressaltar que os Moru raramente empregam fertilizantes


químicos. Outro fato notável é que o povo Zande, vizinho e antigo ini-
migo dos Moru, mantém um conhecimento agroecológico semelhante
(Quadro 7). A agroecologia Moru tem um caráter multidimensional
e funciona como provedora regular de bens agrícolas em um contexto
ambiental imprevisível. O reconhecimento dos estágios sucessionais de
vegetação e da fertilidade dos solos constitui um gatilho cognitivo de
um sistema multifuncional adaptado a situações de risco e às caracte-
rísticas próprias da paisagem agrícola africana. Esse exemplo também
aponta que as coincidências agroecológicas entre os povos Moru e
Zande, inimigos contumazes, extrapolam as diferenças culturais na
adaptação em um mesmo meio, demonstrando que, apesar das tensões
culturais, há semelhanças adaptativas bem-sucedidas em uma mesma
zona agroecológica (Lado, 1986; 1988).

Quadro 7: Classificação Moru e Zande dos solos


e de sua aptidão para certos cultivos

Nomes vernáculos Descrição Cultivos predominantes e outros usos

Sorgo, amendoim, milhetos, batata-doce;


Gyini-uni (Moru) Solo preto
outros cultivos como feijões, café, arroz,
Bisende (Zande)
gergelim, guandu, árvores frutíferas

Singwa (Moru) Mandioca, feijão, amendoim, sorgos, milho,


Solo arenoso
Nguma (Zande) feijão-fradinho, capim-pé-de-galinha, café

Singwa-gyini-uni Algumas mandiocas, amendoim, sorgos,


(Moru) Solo preto arenoso milho, feijão-fradinho, capim-pé-de-galinha,
Bisende-nguma (Zande) café

Gyini-igyi-uni ou Ini- Mandioca, batata-doce, algodão, tabaco,


-Amba (Moru) Solo argiloso gergelim, cerâmica, cachimbos de cerâmica,
Mbundu-sende (Zande) revestimento de paredes

Turu ou Rodo (Moru) Solo encontrado próximo Tabaco, verduras, arroz, milho, batata-doce,
Pavury-di (Zande) ao rio pimentas

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Gyini-kago ou Yayi
Solo combinado com casca-
(Moru) Amendoim, mandioca, gergelim
lho rico em ferro
Mbia-sende (Zande)

Areia combinada com


Singwa-kago (Moru)
cascalho rico em ferro Amendoim, batata-doce, sorgo
Nguma-mbia (Zande)
(ironstone)

Gyini-uni e Kago
Solo preto combinado
(Moru) Sorgo, milho, milhetos, algodão, mandioca
com cascalho rico em ferro
Bisende-mbia (Zande)

Solos vermelhos (também


Gyini-kahi (Moru) Algodão, amendoim, feijão-bambara, feijão-
denominados solos
-fradinho
amarelos ou marrons)

Solos vermelhos (também


Mandioca, tabaco, sorgos, milho, milhetos,
Zamba-sende (Zande) denominados solos
gergelim
amarelos ou marrons)

Solo argiloso combinado


Kago-igyi (Moru) Batata-doce, tabaco, algodão, mandioca,
com cascalho rico em ferro
Mbundu-mbia (Zande) gergelim
(ironstone)

Odogo (Moru)
Feijão-fradinho, sorgos, algodão, gergelim,
Kpakpangbere ou Solo duro quando seco
milho
Kpengbele (Zande)

Singwa-onje (Moru) Mandioca, amendoim, feijões, gergelim,


Solo branco arenoso
Nguma-ngume (Zande) sorgo

Fonte: Lado (1986; 1988); Barrera-Bassols (2000)

Usos tradicionais dos recursos no Himalaia


O Himalaia é a mais alta cadeia de montanhas do mundo, situada
no sul do continente asiático, abrangendo os países Butão, China, Nepal,
Tibete, Índia e Paquistão, formando um arco de 2,6 mil quilômetros de
Leste a Oeste e de 350 quilômetros de Norte a Sul. A cordilheira exibe os
14 picos mais altos do mundo, que superam os 8 mil metros de altitude,
incluindo o Monte Everest, com 8.846 metros.

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A vegetação do Himalaia varia de acordo com as zonas de alti-


tude e clima, com diferentes tipos de ecossistemas coexistindo. Nos
pisos inferiores, estão as florestas tropicais, com fortes chuvas durante
grande parte do ano, especialmente na época das monções. Essas áreas
florestais são tão densas e impenetráveis quanto as encontradas na
Amazônia. As florestas temperadas dão lugar a florestas subalpinas.
Trata-se de florestas de coníferas resistentes ao frio, ocorrendo entre
2,9 e 3,5 mil metros. Depois disso, a única vegetação que aparece são
alguns arbustos e gramíneas que no inverno permanecem escondidos
sob a neve, enquanto nas estações quentes ocupam o espaço deixado
pelo recuo da neve.
A fauna também é extraordinariamente diversificada no Himalaia,
sobretudo nas planícies e nas áreas de fronteira com a neve. Predado-
res, como tigres, ainda habitam a área indígena e competem com os
seres humanos para sobreviver. Nas florestas tropicais, há uma grande
variedade de animais, especialmente aves, enquanto nas zonas de mon-
tanha proliferam o gado que o homem introduziu e que proporciona a
existência de uma superpopulação de várias espécies de abutres.
No Himalaia, muitas comunidades tradicionais vivem em áreas
com importantes recursos naturais. Por milhares de anos, esses recursos
têm sido utilizado por essas populações, cujas culturas e conhecimentos
estão profundamente enraizados no meio ambiente que as sustenta.
Graças a seus métodos e conhecimentos, as comunidades tradicionais
têm contribuído de maneira significativa para a conservação e o uso
sustentável da diversidade biológica.
Considerando que o relevo nessa região é bastante complexo, as
comunidades historicamente desenvolveram diversas estratégias para
manter a sustentabilidade de seus sistemas de produção. Por essa razão,
as práticas agrícolas nas montanhas do Nepal são baseadas no conhe-
cimento tradicional; e a manutenção da fertilidade do solo depende
quase exclusivamente dos recursos locais disponíveis.

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Em geral, podemos dizer que a reciclagem da matéria orgânica


entre as unidades produtivas e as florestas é a principal fonte de nu-
trientes no sistema tradicional. O adubo – composto originado nos
currais e a biomassa oriunda das folhas verdes – é a fonte tradicional de
nutrientes para os cultivos. Em geral, os agricultores nepaleses cortam
e transportam folhas e restos de cultivo em suas parcelas agrícolas, nas
florestas e nas terras marginais, e os incorporam ao solo como adubo
verde ou como cobertura morta. Essas práticas são mais comuns nas
montanhas e outras regiões de relevo acidentado do país, onde são
usadas principalmente nas áreas com arroz (Oryza sativa) (irrigado e
sequeiro) e em canteiros para cultivo de hortaliças. As folhas caídas de
várias plantas são também usadas como composto. Elas são coletadas
na primavera, usadas como cama para os animais e, finalmente, con-
vertidas em composto. Os agricultores sabem identificar claramente as
árvores, os arbustos e as plantas anuais leguminosas e não leguminosas
que têm um alto valor como adubo.
Os Chepang, grupo indígena que habita as terras altas, praticam a
rotação de culturas, ou khoriya. Nesse sistema integrado de agricultura,
cultiva-se um lote de terra para, em seguida, deixá-lo descansar e se
recuperar por alguns anos. Durante esse período de descanso, várias
plantas e árvores crescem espontaneamente nas terras em descanso.
Enquanto isso, os Chepang cultivam outras terras que já descansaram,
cuja vegetação é cortada e depois queimada antes do plantio das cul-
turas, para, assim, repetir o ciclo.
Da mesma forma, esse sistema khoriya ajuda a prevenir a erosão do
solo e, quando executado sob as condições apropriadas, é igualmente
sustentável do ponto de vista ambiental. Dentre os principais cultivos
tradicionais do khoriya, citamos: as lentilhas, o chá, o arroz, o milho e
o milheto, sendo que este, dependendo do contexto topográfico, conta
com mais de 40 variedades locais. Quanto aos sistemas agroflorestais
tradicionais, eles se estabelecem por meio de arranjos de algumas es-

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pécies frutíferas, como a baga tibetana (Lycium barbarum) e a manga,


combinadas com cultivos tradicionais.
Entre as estratégias desenvolvidas para melhorar a fertilidade do
solo, podem ser mencionadas: i) a utilização dos iaques* para arar a
terra (o esterco desse animal também é utilizado para fertilizar); ii) a
acumulação das folhas que caem das árvores localmente conhecidas
como asuro (Adhatoda vasica), siplikan (Arternisia vulgaris), titepati,
ankhitare (Walsura trijuga) e bakaino (Mella azedarach) para a posterior
produção de composto. Em um estudo realizado na região de Terai
junto às comunidades tradicionais Tharu, Yadava, Satar, Rajvanshi e
Dhimal, foi estabelecido um mecanismo de validação técnica dessas
estratégias para aumentar a produtividade dos solos. Os resultados
comprovam que as plantações de arroz enriquecidas com esse composto
local apresentam níveis mais elevados de nitrogênio, fósforo e potássio.
Além disso, outra estratégia tradicional para manter a umidade do
solo durante os períodos de seca é a proteção da camada superficial de
húmus, por meio de uma cobertura morta com folhas caídas da árvore
Azeratum conyzoides, localmente chamada gandhejhar. Também cabe
mencionar que, como essa serapilheira retém água, ela costuma ser
usada como bebedouro para os animais durante as secas e, depois que
a água se esgota totalmente, é utilizada como alimento ou composto.

O conhecimento Otomi (México) sobre solos, água e o manejo


de terras
O povo Otomi habita a região central do México desde os tempos
antigos. Anteriormente, eram caçadores-coletores, mas os colonizado-
res espanhóis forçaram sua sedentarização. Desde então, os Otomi se
estabeleceram nas terras altas semiáridas e frágeis do planalto central

* Iaque (Bos grunniens ou Poephagus grunniens) é um bovino de pelagem longa típico


do Himalaia. (N. E.)

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do país. Hoje, eles contam com aproximadamente 60 mil habitantes


que falam sua língua nativa.
Cerca da metade da população reside no estado de Hidalgo e,
particularmente, nas terras altas semiáridas do Vale do Mezquital,
onde a agricultura sazonal é definida pela baixa precipitação (500 mm
anuais) e por um longo período de geadas causadas pelas temperaturas
baixas no inverno.
Com base em um levantamento detalhado de seus recursos na-
turais, os Otomi que habitam o Vale do Mezquital desenvolveram
um sofisticado sistema de conhecimento sobre seus solos e sobre o
manejo de suas terras (Johnson, 1977). Entre as principais estratégias
adotadas pelos agricultores para a conservação do manejo do solo e da
água, citamos a agricultura realizada em áreas alagadas, a construção
de barragens ou terraços construídos no fundo de ravinas, bem como
uma avaliação cuidadosa dos processos de erosão/deposição (Figura 25).

Figura 25: Principais unidades Otomi para designar a fisiografia,


a topografia e os solos do Vale do Mezquital, México

1 km

Fonte: Johnson (1977)

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Essas práticas são realizadas a fim de manter, melhorar e restaurar


a fertilidade do solo. Os agricultores Otomi estão mais interessados no
desenvolvimento local de sistemas de irrigação e, portanto, fazem seu
trabalho de restauração em terrenos íngremes e sem assistência técnica.
Todas essas estratégias de conservação e manejo do solo e da água são
semelhantes às utilizadas nos sistemas agrícolas da região central da
América Central.
Tais técnicas demonstram a profunda compreensão que os Oto-
mi detêm sobre a dinâmica hidrológica subsuperficial e de encostas
(Johnson, 1977). Eles priorizam o manejo da sedimentação à pre-
venção da erosão. Em alguns casos, a erosão é induzida nas partes
superiores das encostas para que os sedimentos sejam retidos nas
partes inferiores da paisagem. Segundo a população local, evitar o
deslizamento do solo é difícil ou impossível, porque não há como
controlar as precipitações. Então, eles deixam que os sedimentos
sejam transportados para os campos de cultivo para serem retidos e
acumulados em suas parcelas.
Os Otomi fazem um manejo do deslizamento do solo, bem como
do transporte e da acumulação de sedimentos, respeitando e usando
positivamente os processos naturais (Johnson, 1977; Bocco, 1991).
Para fins de manejo de suas terras, os Otomi do Vale do Mez-
quital reconhecem três principais categorias de unidades de terra: a
paisagem, o terreno e o campo. Essa classificação baseia-se no tipo de
relevo e no gradiente de inclinação das encostas, que determinam o
potencial produtivo agrícola de acordo com as condições específicas
água-solo. As relações água-solo são avaliadas in situ com o objetivo
de avaliar o potencial de produtividade das terras. E é justamente
essa avaliação das terras potencialmente produtivas que constitui a
essência da sabedoria Otomi, sendo realizada por meio da análise
da fertilidade do solo, da oferta de mão de obra e da aptidão para o
crescimento e o desenvolvimento das culturas. A paisagem é conside-

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rada uma unidade natural de terra, enquanto o terreno e os campos


são considerados produtos da atividade humana, que funcionam sob
suas próprias condições naturais. A classificação do terreno pode se
dividir em sete categorias principais de acordo com sua relação entre
tipo de relevo, vegetação, declividade, acessibilidade e disponibilidade
de água. O relevo é dividido em três classes principais: montanhas,
morros e planícies, que, por sua vez, são subdivididas em cinco sub-
classes, dependendo da inclinação do terreno e do reconhecimento
de ravinas. Já os campos são classificados em função do tipo de mão
de obra necessária, sua forma, tamanho e potencial para estabelecer
culturas específicas.
Os Otomi consideram o campo como a unidade básica para o
manejo das terras. É no campo que ocorre a interação entre o conhe-
cimento ecológico (corpus) e a mão de obra (práxis) que vai permitir
a produção de culturas. Dependendo do tipo de campo, podem
ser desenvolvidas várias formas de produção milpera* , que exigem
investimentos diferentes em termos de trabalho para evitar riscos e
implementar estratégias de segurança alimentar. Isso implica o ma-
nejo de diferentes unidades de terra e classes de solo por parte dos
membros das unidades familiares. Consideram-se as agriculturas de
vazante, de bordas, em encostas e em planícies respectivamente como
atividades de rendimento seguro, de rendimento arriscado e de ren-
dimento muito arriscado. Os primeiros tipos dependem das práticas
de manejo do transporte de sedimentos e da enxurrada, enquanto o
terceiro depende exclusivamente das chuvas. Os dois primeiros tipos
exigem um grande investimento de trabalho, enquanto o terceiro e
mais arriscado requer pouco investimento de mão de obra.

* Milpa: sistema de policultivo muito frequente na América Central no qual são


semeadas diferentes variedades de milho, feijão, pimenta, abóbora e outras espécies
no início do período chuvoso. (N. E.)

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A compreensão dos Otomi sobre as relações entre solo e água


oferece cinco conceitos-chave, que são traduzidos em um conjunto
de dicotomias operacionais para avaliar o desempenho dos campos.
Essa relação é baseada em quatro premissas. A oposição estação úmida/
estação seca contrasta com o objetivo de reconhecer o funcionamento
das ravinas e avaliar as práticas de solo-água necessárias. Considera-se
a oposição entrada de água/saída de água para avaliar a velocidade
da escorrência, do transporte e da deposição dos sedimentos, bem
como o potencial de inundação e drenagem das águas superficiais
dentro do campo e também fora dele. A oposição erosão/deposição é
avaliada como uma função do gradiente da inclinação e do tipo de
trabalho necessário. A oposição escoamento concentrado/escoamento
aberto é avaliada a fim de definir, localmente, o tipo ou os tipos de
práticas necessárias de conservação do solo. Finalmente, a oposição
umidade concentrada/umidade dispersa opera para reconhecer as áreas
de cultivo seguras ou inseguras.
Entre os Otomi, existe uma noção de que a água complica o
solo porque o modifica que se aplica não só à dinâmica erosão/de-
posição, mas também considera os processos de formação do solo,
sua fertilidade e sua produtividade. Isso permite o reconhecimento
dos procesos de salinização e compactação do solo. A salinização
é vista como uma função da inundação. A saturação temporária
ou permanente do solo é considerada uma das principais causas
da salinização. O povo Otomi reconhece diferentes estágios de
salinização e aplica várias técnicas para recuperar o solo afetado e
que não é mais apto à agricultura, inclusive mudanças no uso da
terra. Assim, para eles, a água complica o solo porque o torna salino
(Figura 26).

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Figura 26: Relações entre solos e água identificadas


pelos Otomi no Vale do Mezquital

Fonte: Johnson (1977)

A compactação é outro processo considerado uma consequência


da atividade da água. A água endurece os solos localmente chamados
tepetate *. A formação de torrões na camada superficial torna difícil
trabalhar o solo. O tempo também interfere na formação de calcá-
rio ou no endurecimento dos solos, uma vez que a água os complica
ao longo de períodos diferentes de tempo. Essa observação permite
que os agricultores Otomi identifiquem diferentes solos calcários ou
vários tipos de endurecimento. Os calcários soltos ou ocos (porosos)

* Tepetate: corresponde a um horizonte de solo endurecido, típico de regiões


vulcânicas da América Central e México. Possui baixa fertilidade e, devido ao
seu alto teor de argila, absorve muita água, endurececendo facilmente quando
perde a umidade. No Brasil é tecnicamente conhecido como duripan. (N. E.)

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são desenvolvidos pela atividade da água durante períodos curtos de


tempo, enquanto os denominados calcários verdadeiros se formam ao
longo do tempo. Tanto a salinização quanto a compactação são noções
utilizadas para avaliar a fertilidade e a produtividade do solo a partir
de três categorias: solos bons, solos improváveis e solos não agrícolas
(Figura 26). De acordo com a narrativa dos Otomi, cada tipo de solo
tem propriedades diferentes e, portanto, a ação da água sobre cada
um deles acarretará consequências diferentes. Os solos pretos, suaves
e profundos e os elame ou lodosos são considerados melhores para
fins agrícolas, enquanto os amarelos e brancos não, porque, segundo
o conhecimento local, foram salinizados tempos atrás.
Existem sete tipos básicos de solos reconhecidos localmente, e não
se faz distinção clara entre os solos e os conglomerados de rochas soltas
ou pedreiras, os tepetates e os solos endurecidos e a rocha sólida. Os
solos são organizados seguindo um gradiente de salinidade e dureza,
e cada classe tem atributos individuais, limitações e usos particulares.
A taxonomia dos solos Otomi é hierárquica. Eles são classificados de
acordo com a cor, textura, estrutura, consistência, teor de matéria
orgânica, drenagem, capacidade de retenção da umidade, pedregosi-
dade, salinidade, localização no relevo, alcalinidade, profundidade e
fertilidade (Johnson, 1977). Cor, textura, consistência, pedregosidade
e estrutura da camada superficial do solo são os principais critérios
utilizados para classificá-los e nomeá-los.
A aptidão do solo para atividades agrícolas segue cinco critérios
discriminantes que, de acordo com os Otomi, conferem aos solos
a capacidade de produzir diferentes culturas. Sendo assim, os três
grupos principais de solo são: (1) aqueles adequados para o cultivo
de variedades de milho e feijão de ciclo longo (tardio); (2) aqueles
pouco adequados para o ciclo curto de certas variedades de milho
e feijão (agressivo); e (3) aqueles muito pouco aptos para produzir
plantações de sisal (Agave spp) e palma forrageira (Opuntia spp.). É

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

possível distinguir três grupos de solos, identificar suas limitações


para as atividades agrícolas e apontar o tipo de insumos necessários
para melhorar sua produtividade.
A avaliação da aptidão dos solos para a agricultura permite
que os agricultores Otomi implementem quatro principais siste-
mas de produção: atajadizo, bordo, plan, ladera e elame. Todos
são avaliados pelo tipo de policultivo de milpa, sua posição no
relevo e investimento e tempo demandados de mão de obra. Uma
característica comum entre esses quatro sistemas agrícolas é o me-
canismo de desenvolvimento da camada superficial do solo. Essas
técnicas permitem superar as limitações dos solos pouco produti-
vos ou mesmo de solos rasos. A estratégia mais comumente usada
para tratar a pedregosidade consiste simplesmente em esperar que
os sedimentos e a matéria orgânica provenientes de inundações
cubram esse tipo de solos. O povo Otomi reconhece e distingue
tanto os perfis quanto os horizontes do solo (os bancos), bem como
detém uma compreensão clara sobre sua lavagem e o transporte e a
deposição de sedimentos. Além disso, o conceito dos Otomi sobre
a complicação dos solos que a água pode causar revela uma boa com-
preensão dos processos de erosão/degradação e, em certa medida,
da dinâmica hidrológica subsuperficial. Os conceitos edafológicos
fundamentais são do domínio solo-água, uma vez que os Otomi
não pensam exclusivamente nos solos, mas em termos da relação
solo-água (Johnson, 1977; Iwanska, 1971).

O sistema tradicional agropastoril dos Alpes suíços


Apesar de as regiões rurais da Europa terem sido profundamen-
te transformadas pelos modelos industriais de produção agrícola,
pecuária e silvícola, ainda é possível encontrar redutos habitados
por populações essencialmente camponesas que praticam uso e
manejo tradicional dos recursos, especialmente nas áreas isoladas

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de países como Grécia, Portugal, Espanha, França, Suíça, Polônia,


entre outros.
Um exemplo amplamente documentado é o dos Alpes Suíços,
onde as comunidades tradicionais ainda lançam mão de um manejo
diversificado dos recursos locais nos vales intermontanos dessa cadeia
montanhosa de grande interesse agroecológico. Os estudos realizados
por Netting (1984; 1990; 1993) na comunidade de Törbel, no Vale de
Visp, permitem uma apreciação detalhada da estratégia de diversificação
adotada por um conjunto de famílias pelo menos desde o século XI.
A comunidade de Törbel abrange uma área de 1.545 hectares,
com altitudes entre 800 e 3 mil metros. Mais da metade do território é
ocupada por pradarias com pastos, mas também há florestas de pinhais,
campos agrícolas com cereais e vinhedos e hortas de frutas e hortaliças
nas proximidades da área habitacional (Figura 27). Nos campos de ce-
reais, há cultivos de centeio, cevada, trigo, aveia e, desde o século XVIII,
batata. Nessa região, a batata rende 15 vezes mais em peso e 3,3 vezes
mais calorias que o centeio, o principal cereal plantado desde os tempos
antigos (Netting, 1993, p. 40). As pradarias e, em menor grau, as flores-
tas são áreas de pastagem para um rebanho formado de vacas, cabras,
ovelhas e jumentos. O manejo integrado dessas paisagens proporciona
à comunidade quase todos os produtos necessários para a sobrevivência:
carne, leite, queijo, legumes, cereais, batatas, uvas, frutas, lã e muita
madeira e lenha. E essa capacidade tem sido mantida por vários séculos.
Os três principais fatores da estratégia diversificada dos cam-
poneses suíços têm sido: o manejo da água, a manutenção da
fertilidade dos solos e a integração de áreas de pastagens e cereais
com a criação de gado. Em relação ao primeiro fator, a comunidade
tem aproveitado os mananciais das partes mais altas, realizando o
manejo da água por meio de múltiplos canais de irrigação desti-
nados, fundamentalmente, a irrigar os prados que são a base da
alimentação animal.

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Figura 27: Principais paisagens e usos do solo no Vale de Visp, Suíça

Fonte: Netting (1993)

Os sistemas de irrigação por gravidade da comunidade de Törbel não


precisam de grandes invenções mecânicas. No entanto, eles não seriam
possíveis sem a complexa organização social e produtiva que existe por trás
de seu funcionamento e que vem sendo mantida há séculos. Na verdade,
eles são mantidos, regulados e aprimorados por um sistema sincronizado
e eficiente de irrigadores, que envolve todos os agricultores e suas famílias.
A fertilidade dos solos das pradarias, pomares, vinhedos e hortaliças
tem se mantido por meio da produção de compostagem. Os adubos
orgânicos preparados são resultado da mistura de biomassa vinda das
florestas, de restos das culturas de cereais, dos resíduos domésticos e,
claro, do esterco (urina e fezes) do gado.
Essas duas atividades são fundamentais para a integração da
agricultura e da pecuária e são a articulação que permite a produção
diversificada de alimentos, energia, materiais de construção e outros
produtos, sob um manejo ecológico adequado de várias paisagens. O

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processamento artesanal potencializa, finalmente, essa variedade de


produtos; por exemplo, queijos obtidos do leite, vinhos das uvas, rou-
pas da lã etc. O resultado final é uma comunidade com alto grau de
autossuficiência, mantido ao longo do tempo em função da contínua
fertilização dos solos, do manejo adequado da água e da sincronização
de atividades, tanto no espaço quanto no tempo (estações climáticas).

A agricultura em pântanos entre os Chontal do México


A maior área de terras úmidas do México está localizada no sudeste e
abrange grande parte do estado de Tabasco, uma extensa planície costeira
do Golfo do México. Lá, desenvolveu-se um ramo da cultura maia, a
Chontal, que esteve presente desde a época pré-hispânica e soube sobrevi-
ver em um hábitat dominado por água: rios, lagoas e extensos pântanos.
De fato, a região habitada pelos Chontal é coberta por água a maior parte
do ano, entre sete e nove meses, uma vez que a vasta planície irrigada
por vários rios e lagos se torna um imenso pântano durante a estação
chuvosa (de junho a outubro, com chuvas de inverno chamadas nortes).
Essa dinâmica de inundações periódicas determina a adaptação
das atividades humanas. Estudos realizados sobre esse grupo indí-
gena o descrevem como uma cultura anfíbia, por sua habilidade de
combinar a pesca e a captura de animais aquáticos (como tartarugas,
sapos, crustáceos e moluscos) com hortas, produção de artesanato e
uma agricultura que tira proveito tanto das partes altas quanto dos
chamados bajiales (áreas inundadas sazonalmente), nos quais praticam
uma verdadeira agricultura de pântano (Vázquez-Dávila, 1994; 2001).
Ao adotar uma estratégia de uso múltiplo, os Chontal de Tabasco
reconhecem e usam nove unidades principais no espaço (Figura 28),
o que lhes permite exercer atividades de pesca, agricultura, pecuária,
extrativismo terrestre e aquático e silvicultura. Dentro desse sistema,
destaca-se o agrícola conhecido como marceño (fazendo referência ao
mês de março), realizado nos bajiales. A pesca, por sua vez, é a principal

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atividade e se concentra na captura de lagostas ou camarões de rio, vários


tipos de peixe e uma espécie de caracol (Maimone-Celorio et al., 2006).

Figura 28: Principais unidades de manejo dos chontal de Tabasco, México

Legenda:
1 policultivo realizado no outono-inverno; 2 ciclo de cultivo realizado no outono-inverno; 3 ciclo de cultivo

que começa em março; 4 floresta subperennifolia de Bucida buceras; 5 vegetação formada pela espécie Rinorea
guatemalensis, usada para fazer cercas para confinar o gado; 6 floresta baixa subperenifolia de Haematoxylon
campechianum – campexe; 7 vegetação de hidrófitas emergentes com predominância da espécie Thalia genicula-
ta – caeté; 8 vegetação hidrófita emergente, cuja espécie predominante é o Typha latifolia – tábua-larga; 9 Eichor-
nia crassipes – aguapé, espécie hidrófita flutuante; 10 área ocupada pela espécie Pistia stratiotes – alface d’água.
Fonte: Maimone-Celorio et al. (2006)

Aproveitando as áreas emergentes de uma inundação de vários meses


(junho a fevereiro), a agricultura de marceño planta, a partir de março,
uma variedade de milho superprecoce (seu ciclo de vida é de três meses)
conhecida localmente como mejen. Essa prática permite aproveitar o
breve período em que as baixadas estão sem água para o crescimento
das culturas. A colheita é feita, então, em canoas por volta de junho ou
julho. Esse sistema agrícola é muito beneficiado pelos solos aluviais ricos
em sedimentos e matéria orgânica. Os camponeses Chontal sabem a
importância das plantas aquáticas dos pântanos (chamados popales pela
predominância de Thalia geniculata), usadas como fertilizantes dos solos
agrícolas. Pesquisas indicam que esses solos sob inundação contêm um
horizonte muito fértil de até 40 cm (Mariaca, 1996).

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Como resultado, as estimativas do volume de milho obtido pelo


sistema marceño atestam a alta produtividade dessa modalidade agrícola
tradicional. A quantidade de milho gerada por hectare nesse sistema é
de cerca de 4,5 toneladas de grãos e, considerando toda a planta, de 15,3
toneladas. Tal rendimento do sistema tradicional contrasta com aquele
obtido pelos sistemas agroindustriais, mecanizados e com fertilizantes
químicos na região, que atingem em média 10 toneladas de milho (planta
inteira), e 1,3 tonelada de grãos por hectare, que é a média em todo o
estado (Orozco-Segovia, 1999). Essa elevada produtividade do sistema
marceño se deve ao aproveitamento dos solos ricos do pântano, que,
depois de secarem com a baixa das águas, tornam-se um leito fértil para
o desenvolvimento do milho e de outras espécies, tais como abóboras,
pepinos e feijões. Esse sistema, combinado com a grande variedade de
espécies pescadas ou capturadas, denota a presença dessa cultura anfíbia,
que durante séculos teve os Maia como grandes especialistas.

O manejo tradicional da água na Índia


Apesar de seus níveis pluviométricos relativamente altos, a Índia
convive com sérios problemas de abastecimento de água. Mecanismos
tradicionais de captação da água podem ser a solução. Iniciativas re-
centes das comunidades locais têm proposto resgatar de suas antigas
tradições uma variedade de formas de captação de água. Os resulta-
dos mostram que a reativação de antigos sistemas tem estimulado o
desenvolvimento rural e recuperado os ecossistemas locais (Agarwal;
Narain, 2000) (Figura 29).
Por outro lado, a elevada diversidade ecogeográfica da Índia tam-
bém influencia as características dos sistemas de irrigação e captação de
água utilizados. Assim, nas regiões próximas às geleiras, são construídos
tanques para o armazenamento e a distribuição da água, aproveitando
o degelo e o escoamento que derivam deles (sistema zing). Já as comu-
nidades que vivem próximas às montanhas, que contam com chuvas

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

abundantes, constroem canais, barragens ou poços nas rochas duras,


sistemas de irrigação conhecidos como kul, naula, khatri e kuhl. Em
locais com altitudes superiores a 1.600 metros acima do nível do mar,
o sistema é multifuncional, combinando também o cultivo de arroz e a
criação de peixes em terraços, sendo conhecido como apatani. Na região
montanhosa do nordeste hindu, existem sistemas que desempenham
a função de conservar a água por meio de um manejo adequado da
agricultura, da silvicultura e da pecuária. Nesses casos, são construídos
canais, terraços, calhas de bambu e poços (sistemas zabo, cheo-ozihi),
além de a irrigação ser feita com bambu. O sistema dong consiste em
reservatórios familiares para a coleta de água a ser usada na agricultura.

Figura 29: Principais sistemas de manejo tradicional da água na Índia

Fonte: Agarwal; Narain (2000)

Existem áreas cujas características edáficas facilitam a infiltração da


água. Para elas, foram criados sistemas como o ahar pynes, reservatórios
artificiais. Trata-se de um sistema que está apenas começando a ser reu-

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tilizado. Aproveitando os fluxos de água e as características geográficas


da região, são construídos baolis, que consiste em uma série de cisternas
que permite a retenção de água para fins agrícolas e domésticos.
No deserto, há diferentes tipos de sistemas. Um deles, voltado para
o consumo humano, é o kunds/kundis, uma cavidade que armazena
água das chuvas. Os sistemas kuis/veris são semelhantes, mas nesse caso
tiram proveito da filtragem realizada em tanques de água localizados
nas proximidades. Outros modos de captação consistem em cisternas,
tanques (comunitários e familiares, alguns dos quais com função
cerimonial), represas, canais e poços, também chegando a aproveitar
depressões naturais para canalizar e armazenar água. Esses sistemas são
os baoris/bers, jhalaras, nadis, tobas, tankas, khadin, vav, virdas e paar.
Nas montanhas centrais, existem sistemas como os talab, sazakuva,
johad, naada, pat, chandelatank e bundelatank.Assim como os ante-
riores, esses sistemas consistem em lagos, cisternas multifamiliares,
pequenas barragens ou grandes tanques localizados entre as monta-
nhas com a finalidade de reter água de escorrimento superficial, bem
como canais de irrigação de uso doméstico e agrícola, aproveitando as
abundantes chuvas de monção.
Nas montanhas do leste, encontramos as katas. Trata-se de um an-
tigo sistema de armazenamento de água construído perto de uma aldeia
e com orientação específica. No Planalto de Deccan, há reservatórios de
água (chevru), tanques como os kohlí e kere, para fins agrícolas, represas
isoladas ou conectadas entre si (bhanadaras e phad, respectivamente),
ou ainda intrincados canais superficiais e subterrâneos que permitem
conservar melhor a água, conhecidos como modelo ramtek.
Na região dos Ghats ocidentais, existe o sistema surangam, um
túnel que canaliza a água até um poço onde é coletada para utilização.
Na região dos Ghats orientais, encontramos os korambus, barragens
construídas artesanalmente com lama, pedras e galhos. O sistema eri
é um tanque cuja função ecológica é importante, além de ser muito

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

utilizado nas planícies costeiras do leste. Nessa região, há um sistema


de tanques que, embora numerosos, têm função mais limitada. Nas
ilhas, a topografia é aproveitada para coletar água e armazená-la em
cisternas. Geralmente são usados materiais locais para a sua construção.
Em suma, todos esses sistemas tradicionais, que são o resultado da
experiência de centenas de culturas tradicionais presentes em um país
onde a agricultura existe há pelo menos 6 mil anos, têm como base a
pequena escala, o uso de tecnologias domésticas e desenhos adequados
tanto ecológica quanto culturalmente.

Os sistemas agroflorestais tradicionais da Indonésia


A Indonésia é um arquipélago tropical formado por cerca de 13 mil
ilhas que configuram um território de aproximadamente 2 milhões de
km2, onde vivem mais de 250 milhões de pessoas. Sua população rural
é basicamente indígena: pequenos produtores, agricultores e pescadores
pertencendo a mais de 600 culturas. Com uma longa tradição de manejo
agrícola e florestal das florestas tropicais, na Indonésia o conhecimento
local tem gerado modalidades de sistemas agroflorestais de grande diver-
sidade, complexidade e produtividade. Esses sistemas não são exclusivos
da Indonésia, sendo também relatados em outros países tropicais, como
Nova Guiné, Sri Lanka, Uganda, Tanzânia e Nigéria, mas é nessas ilhas
onde eles adquirem o seu pleno esplendor. A importância produtiva e
econômica desses sistemas pode ser comprovada por alguns dados: 36%
da área sob manejo humano de Java (Indonésia) e 90% dos domicílios
no Sri Lanka os utilizam (Hoogerbrugge; Fresco, 1991).
Em Java, os jardins florestais são o resultado da combinação de
práticas agrícolas e florestais, bem como do manejo de sequências de
reflorestamento ou recuperação de florestas (Figura 30). Os produtores
tradicionais manipulam não só espécies, mas massas de vegetação e
processos ecológicos. Geralmente, o processo tem início com a trans-
formação de uma floresta em um campo de arroz inundado (sawah)

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ou sobre solos secos (huma). Depois dos arrozais é feita a introdução


de várias espécies anuais, de modo que essas parcelas se convertem
em áreas agrícolas de roça (kebun). Quando são plantadas árvores ou
bambus, esas áreas acabam exibindo maciços florestais de médio porte
(kebun campuran). Com o tempo, elas estarão dominadas por árvores,
dando lugar a um jardim florestal (talun), com espécies de grande
porte e com diferentes estratos. E, se uma casa for colocada dentro
desse arranjo, esse jardim acabará se tornando uma horta familiar
(pekarangan). A sequência não é unidirecional. Ela toma caminhos
diferentes dependendo do tamanho da propriedade, das condições
ambientais, da qualidade do solo, da situação econômica da família e
das oportunidades de comercialização (Christanty et al., 1986).

Figura 30: A criação de um jardim florestal em uma


comunidade indígena de Sumatra (Indonésia)

Sequência da criação de um jardim: retirada da ve-


getação de uma área de floresta (A), o que permite a
implantação do cultivo de arroz e de outras espécies,
como o café (B). O desenvolvimento dos cafezais (C
e D) constitui a fase intermediária entre um sistema
agrícola e um sistema florestal. Com o passar do tempo
(cerca de 25 anos), a partir da restauração das espécies
de árvores (E e F), cria-se um jardim florestal.

Fonte: Foresta; Michón (1993)

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Uma sequência semelhante foi descrita nas proximidades do Lago


Kerinci, em Sumatra. Os habitantes locais cultivam arroz sobre os
solos inundados das partes mais rasas do lago. Depois, as casas são
construídas nas margens rodeadas de hortas (halaman). No nível se-
guinte, são estabelecidos cultivos de espécies anuais (sistema de roça
ou ladang), que se formam como resultado da introdução de plântu-
las de espécies perenes e da própria ação de reflorestamento. Com o
tempo, esses cultivos se convertem em jardins florestais (pelak). Esse
mosaico de paisagens se desenvolve em altitudes que variam de 800 a
1.500-1.800 metros acima do nível do mar (Aumeeruddy; Sansonnens,
1994). Sequências similares foram registradas em outras regiões, como
Kalimantan, assim como em outros lugares de Sumatra (Salfsky, 1994;
Foresta; Michón, 1993).
Os jardins florestais, que constituem conjuntos de enorme rique-
za de espécies vegetais, têm um duplo valor: ecológico e econômico.
Do ponto de vista ecológico, esses sistemas agroflorestais imitam as
florestas tropicais úmidas em sua estrutura (mas não em sua compo-
sição) e cumprem funções benéficas, tais como a proteção dos solos
e da água, a conservação da biodiversidade (especialmente plantas,
aves e outros vertebrados), além de seu papel no sequestro de carbo-
no. Esses sistemas também têm a virtude de se beneficiar dos ciclos e
dinâmicas naturais, ou seja, são formas de produção estabelecidas em
harmonia, não em conflito, com os processos ecológicos. Do ponto
de vista econômico, os jardins florestais constituem reservatórios de
inúmeros produtos, tanto para o autoconsumo quanto para a venda
nos mercados, complementando os insumos e as rendas obtidas pela
família de práticas agrícolas habituais ou da extração de produtos das
florestas primárias e secundárias.
A riqueza botânica desses jardins florestais tem sido revelada por
vários estudos. Relatórios indicam que esses sistemas contêm centenas
de espécies (geralmente entre 300 e 500), a maioria das quais úteis

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para os produtores. Normalmente, nos jardins construídos ao redor


das casas (hortas familiares), crescem espécies úteis para as famílias
agricultoras, tais como alimentos (notadamente frutas tropicais),
fibras como o bambu, espécies produtoras de lenha e de materiais de
construção e para a confecção de ferramentas. Já os jardins locali-
zados longe das casas são voltados à geração de produtos destinados
à venda: borracha, café, cacau, pimenta, rambutan, canela, durian,
palmas, ratã, manga e toda uma variedade de frutas tropicais próprias
dessas regiões.

Manejo e conservação da diversidade agrícola:


os milhos de Pichátaro, México
O milho é o cereal que permitiu o desenvolvimento da civilização
mesoamericana. Sua manipulação genética e consequente adaptação a
toda uma variedade de situações ecogeográficas favoreceram a expansão
humana pelas diferentes regiões do México e do norte da América
Central. Hoje, esse processo é certificado pela existência de cerca de
60 raças ou variedades de milho e centenas, ou talvez milhares, de
etnorraças reconhecidas pelo saber local.
No oeste do México, uma cultura, cuja origem não foi esclarecida,
distribuiu-se pelas regiões de lagos e montanhas com florestas dessa
parte do território: a cultura Purépecha (ou indígenas Tarasco). Na
Bacia do Lago de Pátzcuaro, no estado de Michoacán, a cultura Pu-
répecha estabeleceu o que depois seria sua principal capital. Pichátaro
é a comunidade indígena mais montanhosa, de um total de 27 que
rodeiam essa bacia lacustre coberta principalmente de florestas de
pinheiros e carvalhos.
Com cerca de 100 km 2 , um gradiente de altitude que varia de
2.300 a 3.200 metros acima do nível do mar e uma amplitude de
elevação de 900 metros, distribuída ao longo de 20 quilômetros de
comprimento, a terra desse povo peculiar compreende três vales inter-

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montanos organizados de forma escalonada e rodeados por montanhas


vulcânicas e um planalto basáltico. O regime climático é temperado
subúmido, com chuvas no verão e tempo seco durante parte do outono
e do inverno, sendo o clima mais frio e úmido de toda a bacia. A média
anual de precipitação é de 1.000 mm, e a de temperatura média é de
15o C. Ambos os fatores, no entanto, variam significativamente de
acordo com a altitude.
A ocupação humana desse território remonta a tempos pré-his-
pânicos, sendo favorecida pela ocorrência de montanhas densamente
florestadas, solos vulcânicos férteis para a agricultura e uma relativa
abundância de água. Como resultado, seus habitantes históricos
desenvolveram uma estratégia agroflorestal complexa, permitindo a
sua ocupação permanente pelo menos desde 1.200 anos AP*, o que é
comprovado por evidências arqueológicas e etno-históricas. Entretanto,
a análise do pólen encontrado em diferentes núcleos de sedimentos do
Lago Pátzcuaro aponta vestígios abundantes de milho desde cerca de
3.500 anos, o que leva a presumir uma história de ocupação regional
muito mais antiga e centrada no cultivo desse grão, bem como na pesca
e na exploração florestal. Isso se revela importante para os Purépecha
de Pichátaro, já que grande parte do esforço histórico de seu povo se
concentrou no cultivo do milho, sendo este um dos principais povos
indígenas fornecedores dessa gramínea em nível regional (Barrera-
-Bassols; Zinck, 2003b).
Até recentemente, Pichátaro era autossuficiente em milho, e agri-
cultores conseguiam obter excedentes, os quais eram trocados por
produtos pesqueiros e agrícolas provenientes das comunidades que
viviam nas margens do lago. Atualmente, os habitantes de Pichátaro

* A sigla corresponde a Antes do Presente, medida de tempo bastante utilizada


na arqueologia, tendo como Presente o ano de 1950, uma referência à data da
descoberta da técnica de datação através do Carbono 14. (N. T.)

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cultivam 15 variedades locais de milho adaptadas às condições de


montanha a partir da recombinação genética de seis raças, de acordo
com a sua classificação moderna, e em apenas 30 km2 de terras agrí-
colas. O notável é que isso representa 10% do total das raças de milho
(60) cultivadas no México, centro de origem de tal cultura e área de
megadiversidade que detém cerca de 50% do total das raças de milho
cultivadas no mundo: cerca de 130, embora não existam dados precisos.
Além disso, estudos recentes (Astier; Barrera-Bassols, 2006)
mostram que ao longo de toda a Bacia Pátzcuaro cultiva-se um con-
siderável número de variedades locais provenientes de oito raças de
milho, sendo que nas terras de Pichátaro são cultivadas 75% dessas
raças, e suas variedades locais respondem por cerca de 40% do total
registrado em uma área circundante maior que 5.000 km2 (incluindo
o Planalto Purépecha, Pátzcuaro, a Cañada de los 11 Pueblos e áreas
circunvizinhas dessa região indígena), ecogeograficamente complexa
e relativamente homogênea culturalmente, correspondendo ao amplo
território do povo Purépecha.
Outra maneira de destacar a importância dessa comunidade em
termos de diversidade de milhos produzidos é contrastando as cifras
locais com os dados sobre a diversidade do milho em Oaxaca. De acordo
com um estudo recente, em Oaxaca se cultiva 58% de todas as raças
do México em uma área maior que 3.000 km2, distribuídos por uma
faixa de altitude que vai de 0 a 2.800 metros acima do nível do mar.
Cumpre ressaltar que Oaxaca é um estado de grande complexidade
ecogeográfica, de alta diversidade cultural e, biologicamente, o mais
diverso do país. Ali, 90% da área cultivada de milho é plantada com
variedades locais. Além disso, nesse estado, a relação entre a presença
de 16 povos indígenas e a diversidade produzida em seus territórios é
altamente significativa.
Em Pichátaro, são produzidas variedades locais de milho re-
sultantes da recombinação genética de seis raças (16% do total das

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

raças de Oaxaca), em uma amplitude de elevação inferior a 1 km 2 ,


no limite superior da escala altitudinal de distribuição do grão (e o
risco de produção associado) em nível nacional (0-3.000 m) e em uma
área plantada menor que 1% do total de Oaxaca. Considerando esse
esforço excepcional, ou pelo menos bastante significativo, empreen-
dido por um pequeno povo indígena para se adaptar e diversificar a
produção de milho em terras montanhosas e de alto risco, surgem as
perguntas: quais são os suportes simbólicos e cognitivos locais que
têm produzido e sustentado essa excepcional diversidade agrícola?
Como essa estratégia foi implantada na prática? Em que consiste
essa estratégia sob uma perspectiva cultural? E quais aprendizados
podemos extrair desse exemplo?
Para os Purépecha de Pichátaro, a terra encerra um sentido
simbólico fundado em bases sincréticas, que combinam sua herança
mesoamericana com a prática fervorosa do catolicismo popular. Nesse
contexto, ela é percebida como um recurso cujo comportamento é o
de um ser vivo e de um sistema biótico essencial para os humanos.
Além disso, a narrativa local explica as relações recíprocas entre a
terra, as plantas, os animais e os humanos como uma cadeia trófica
que permite a perpetuação da vida na Terra. A terra é venerada como
a Mãe de todos os seres vivos, e, nesse sentido, as práticas agrícolas e
de colheita são entendidas como atividades básicas que garantem a
saúde e a sobrevivência humana. Sendo assim, a terra requer muito
cuidado e um bom manejo.
O ser humano estaria então inextricavelmente ligado à terra e,
portanto, precisa conjurar sua benevolência demonstrando respeito,
compromisso e tolerância. Isso se reflete nas inter-relações entre o ciclo
climático, o ciclo produtivo e o calendário ritual (Figura 31).

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Figura 31: Calendários agrícola, climático e festivo


da comunidade de Pichátaro, México

Fonte: Barrera-Bassols, Zink (2003)

Além disso, presume-se localmente que essas relações podem


transcender a esfera da comunidade e sofrer os efeitos de externali-
dades, como a migração temporária ou atividades fora da parcela, o
que afeta as relações intergeracionais e entre os indivíduos. Por isso, a
concepção simbólica da terra implica integrar ações de cuidado, ex-
ploração sustentável e conservação; todas elas elementos essenciais da
vida. Esse complexo de representações reflete a forma como a terra é
manejada com o objetivo de suprir as necessidades humanas, mas sem
ameaçar a própria vida e a vida dela. Cumpre notar que esse olhar local
é semelhante ao conceito moderno de terra promovido por Zonneveld
(1995) e pela FAO (1976), que consideram-na como um todo que inclui
o ciclo hidrológico e climático, o relevo e os solos. Em ambos os sen-
tidos, observa-se o estreito vínculo entre o trabalho da natureza e dos

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

homens, assim como em relação à sua saúde e capacidade (simbólica


e prática) de resiliência.
A palavra echeri, usada pelos habitantes de Pichátaro para designar a
cobertura do solo, é, de fato, uma noção polissêmica, que faz referência
tanto ao solo quanto à terra, à paisagem e às zonas bioclimáticas. Dessa
forma, o solo-terra é percebido como um componente multidimensional
da paisagem lato sensu. Já quando se referem aos tipos de solos e a suas
propriedades, eles o concebem como um corpo tridimensional, da mesma
maneira que concebem os técnicos. No entanto, o camponês de Pichátaro
usa esse termo para designar a superfície bidimensional da terra quando
quer se referir às práticas agrícolas de suas parcelas que requerem um
manejo variado, de acordo com as suas condições bioclimáticas.
Além disso, para além das relações práticas estabelecidas pelo
agricultor com seus recursos-solo-terra, há uma estreita relação sim-
bólica. Para esse povo, a terra recompensa o cuidado a ela dispensado
fornecendo bens e serviços, incluindo alimentos, materiais de cons-
trução e cerâmica, bem como de usos medicinais, rituais e mágicos.
Essa relação poliespecífica se deve ao fato de que a terra é considerada
um sujeito polivalente, sendo assim concebida como uma entidade
tetradimensional por seu valor simbólico, ritual e sagrado; concepção
esta totalmente diferente do conceito técnico de terra.
Existem quatro princípios que organizam o conhecimento local
sobre o manejo das terras: sua localização, seu comportamento, sua
resiliência e sua qualidade.
O pricípio da localização. Segundo a narrativa camponesa, as caracte-
rísticas e aptidão agrícola das terras variam de acordo com a sua posição
na paisagem. Dessa forma, são reconhecidos cinco tipos de terras: (1)
as localizadas nos topos dos morros; (2) as localizadas na meia encosta;
(3) as localizadas nas partes baixas das encostas; (4) as localizadas nos
vales; e (5) as localizadas nos planaltos formados por derramamento de
lava ou em áreas com formação calcárea.

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O princípio de movimento e comportamento. Os agricultores de


Pichátaro reconhecem, aceitam e trabalham com o fato de que a terra
não é um sujeito imutável, mas um sujeito dinâmico. Isso se reflete na
expressão a terra trabalha e se comporta... Segundo essa visão, o compor-
tamento da terra muda de acordo com o ritmo sazonal, a variabilidade
climática, a ocorrência de chuvas e as práticas de manejo (Barrera-
-Bassols, 2003). Da mesma forma, o movimento da terra depende de
sua localização na paisagem. O discurso local sobre seu comportamento
e movimento é semelhante àquele atribuído a outros organismos bio-
lógicos. Os agricultores acreditam que o solo é um organismo vivo,
utilizando um discurso metafórico. Assim como outros seres vivos, a
terra-solo pode tornar-se cansada, estar com sede, com fome, doente
e até mesmo envelhecer. No entanto, ela pode também rejuvenescer,
recuperar-se ou reabilitar-se, uma vez que tem a capacidade de voltar
a se desenvolver. Esse argumento discursivo considera que a terra-solo
é fundamentalmente diferente de outros organismos vivos, os quais
estão inevitavelmente condenados a perecer (por exemplo, aos cultivos,
as plantas de milho, o homem etc.).
A lixiviação das substâncias através do solo, que gera o esgotamen-
to da fertilidade, assim como a remoção, o transporte e a deposição
de sedimentos na superfície dos terrenos são processos percebidos
como normais, que afetam a terra como ser vivo. Por isso, a estratégia
camponesa para enfrentar esses processos consiste em se beneficiar
deles, em vez de tentar controlá-los de forma estrita ou de enfrentá-los
drasticamente.
O princípio de resiliência e restauração. Regularmente, os agriculto-
res realizam práticas para melhorar a qualidade da terra, mas também
excepcionalmente buscam reabilitar ou recuperar os solos mais degra-
dados. A forma como os agricultores de Pichátaro se envolvem com a
natureza, ao permitir a erosão de terras altas e aproveitar a deposição dos
sedimentos nas terras baixas, é complementada por um manejo ativo

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das terras das encostas, lançando mão de medidas como o aprisiona-


mento de sedimentos, a construção de diques e cercas vivas, o desvio
de correntes intermitentes, o nivelamento dos terrenos e a aplicação
permanente de esterco. Uma prática comum consiste em manter em
pé as plantas de milho após a colheita. Essa medida tem múltiplos
efeitos, como diminuir a remoção do material da superfície dos solos,
aderir resíduos orgânicos ao solo e fornecer forragem para o gado, que,
por sua vez, fornece esterco para o solo durante o período de pousio.
O princípio da qualidade da terra. A qualidade da terra é o resultado
da combinação dos três princípios mencionados anteriormente, sendo
localmente considerado como o aspecto potencial, mas também limitante
da terra, dependendo da sua posição na paisagem, da intensidade e da
periodicidade da erosão e da deposição dos sedimentos, bem como das
práticas de manejo aplicadas. A qualidade da terra é avaliada com base
em um conjunto de critérios, tais como: sua posição na paisagem, suas
condições microclimáticas, certas propriedades do solo e sua fertilidade (a
força da terra, em termos locais). O conceito frio-quente é frequentemente
usado para se referir às diversas combinações desses critérios. Na prática,
essa antinomia – frio/quente – é utilizada para avaliar a necessidade de
fertilizantes químicos e, em particular, da adição de sulfato de amônio,
o que é mais elevado nos solos frios (localizados nas encostas) do que nos
solos quentes (localizados nos fundos dos vales).
Os agricultores de Pichátaro reconhecem três grandes classes
de terras em função dos quatro princípios de manejo descritos an-
teriormente. A partir delas, buscam realizar um manejo integrado e
diferenciado dos solos por meio do emprego de diversas práticas. As
três grandes classes são: (1) as terras localizadas em encostas íngremes
ou agudas; (2) as terras localizadas nos fundos dos vales; (3) as terras
localizadas em condições especiais (terrenos pedregosos ou calcário,
pés de morros, hortas e quintais). Cada uma dessas classes exige um
conjunto de medidas para seu cuidado.

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O conhecimento dos agricultores de Pichátaro sobre a dis-


tribuição dos solos e seu comportamento e funcionalidade está
intimamente ligado ao comportamento dos cultivos (Figura 32).
O discurso dos agricultores sobre o recurso solo-terra está para
sempre atrelado às práticas agrícolas, à fenologia dos cultivos e à
produtividade da terra. A teoria social sobre os recursos edáficos se
concentra na produção da milpa e do milho. Este último cultivo é
reconhecido pelos habitantes locais como sendo o alimento básico,
assim como uma entidade sagrada que lhes confere sentido identitá-
rio, de pertencimento ao seu lugar e a seu modo de vida, de modo
que o milho é considerado localmente como um dos símbolos que
orientam sua matriz cultural sincrética.

Figura 32: Paisagens agrícolas e uso do solo


na comunidade de Pichátaro, México

Fonte: Barrera-Bassols; Zink (2003b)

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Ao longo de centenas de anos, o povo de Pichátaro tem desen-


volvido um profundo conhecimento sobre a ecologia do milho e, em
particular, sobre a adaptação de suas variedades locais ou crioulas às
características heterogêneas e dinâmicas das paisagens agrícolas. O
conhecimento local sobre a relação solo-milho é versátil em termos
de seu comportamento como unidade simbiótica (comportamento
do solo/desenvolvimento da cultura), seus hábitats agroecológicos e
distribuição geográfica-territorial. Essa versatilidade é moldada pelo
conhecimento, pelas práticas agrícolas, pelos modos de consumo fa-
miliar e pela religiosidade, que, em sua articulação, têm funcionado
como um apoio de longo prazo para a manutenção e o melhoramento
da produtividade das paisagens agrícolas, bem como para a adaptabi-
lidade das variedades crioulas em seus agro-hábitats (Mapes, 1987).
Esse conhecimento abrange aspectos como a anatomia e a fenologia
do milho, as práticas agronômicas e os padrões de distribuição; todos
imersos na sobreposição dos calendários biológico, produtivo e religioso,
incluindo ainda todas as dimensões operacionais e escalas espaciais e
temporais do complexo k-c-p local.
Nesse sentido, os agricultores locais têm desenvolvido uma
sofisticada nomenclatura morfológica do milho que abarca todas as
partes constituintes da planta tecnicamente reconhecidas. Da mes-
ma forma, os habitantes locais reconhecem os estados fenológicos
do milho em profundidade, sabendo discriminar com precisão dez
estágios que variam de acordo com a variedade local ou crioula. Além
disso, os agricultores de Pichátaro classificam o milho segundo a
suas características morfológicas e fenológicas. A origem do grão é
usada como um critério de classificação, dividindo o germoplasma
em duas grandes classes.
O milho crioulo é aquele considerado como autóctone e como
produto da fertilização cruzada entre diferentes raças de milho. O
milho melhorado ou as variedades exóticas melhoradas constituem

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A memór i a biocu lt ur a l

a segunda grande classe de milho cultivada em Pichátaro, tendo sido


recentemente introduzida e adaptada às paisagens agrícolas locais.
Cada uma dessas duas classes serve a propósitos diferentes, sendo
ambas amplamente aceitas e mantidas. De fato, essa primeira classi-
ficação em função da origem do germoplasma revela uma adoção e
adaptação parcial das variedades melhoradas, derivadas da agronomia
moderna. As variedades crioulas são mantidas com o objetivo de sa-
tisfazer as necessidades básicas de autoconsumo e religiosas, enquanto
as exóticas são cultivadas para fins comerciais. As raças crioulas são
cultivadas nas encostas das montanhas, em terrenos especiais e nas
hortas familiares, enquanto as exóticas são cultivadas nos solos férteis
dos fundos dos vales.
Em um segundo nível hierárquico da taxonomia local do milho,
estão a cor e a textura do grão, as principais características morfológicas
utilizadas. Além disso, o período até o desenvolvimento dos grãos é
outro critério de classificação que agrupa o milho em dois grandes tipos:
(1) as variedades de ciclo curto ou agressivas e (2) as variedades de ciclo
longo ou tardias. Esse critério de classificação está intimamente ligado
à diversidade das condições ecológicas locais. As variedades tardias são
cultivadas nas terras de encostas frias e úmidas, enquanto as variedades
agressivas são cultivadas nas hortas familiares e em terras temperadas
dos fundos dos vales. Além disso, os critérios de classificação local in-
cluem os usos seletivos, sabores, modos de preparação, tendo em conta
também os de natureza ritual. A utilização das 15 variedades de milho
locais ou crioulas provenientes da recombinação genética de seis grandes
raças, de acordo com a classificação moderna dessa planta, permite
afirmar que os agricultores de Pichátaro são verdadeiros geneticistas e
excepcionais guardiões desse patrimônio mundial.
A agricultura dessa comunidade indígena, baseada no cultivo de
milho, é um excelente exemplo de como os agricultores de tradição
agrária mesoamericana adaptaram seus sistemas agrícolas de sequeiro

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à heterogeneidade da paisagem, aos solos marginais, às incertezas e


surpresas ambientais e às restrições econômicas por meio de um co-
nhecimento agroecológico detalhado e versátil, que lhes tem permitido
manejar a diversidade genética de plantas cultivadas ao longo de mi-
lhares de anos. Tal manejo adaptativo se baseia no argumento expresso
em sua narrativa que aponta que todos os elementos que constituem
seus agroecossistemas, incluindo os seres humanos, têm sua própria
agência ou atuação deliberada. Além disso, todos estão, ao mesmo
tempo, interligados por forças de tensão/distensão.
Devido a isso, qualquer distúrbio ou modificação gerada pela ação
de uma de suas partes constituintes (fatores meteorológicos, relevo,
água, solos, plantas, animais e seres humanos) deve ser compensado por
meio de sua restauração, ou, caso contrário, o acúmulo de perturbação
e desconexão (incluindo a simbólica) poderia levar ao colapso de seus
agroecossistemas locais. Essa manipulação cuidadosa dos processos
agroecológicos inclui a supressão temporária da intervenção humana,
o que permite a restauração enquanto se dá o desenvolvimento ativo
dos outros elementos constitutivos da natureza. Esse ajuste flexível e
regulador das estruturas, dos processos e dos ciclos naturais tem sido
o pilar de uma estratégia agroecológica sustentada pela capacidade
agronômica de seus criadores para moldar as formas, intensidades e
escalas de apropriação, de acordo com as alterações induzidas pelos
seres humanos e não humanos.

Os conhecimentos agronômicos dos Hausa da Nigéria


Talvez a Nigéria seja um dos países africanos que conta com
mais estudos etnoedafológicos. Isso pode ser devido ao número de
idiomas falados no país, que ultrapassa os 500, sendo um dos três
países africanos megadiversos em termos linguísticos. O tamanho
de sua população que se dedica ao trabalho no campo pode ser outra
razão. Localizada no extremo ocidental da África, na fronteira com o

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A memór i a biocu lt ur a l

Atlântico, a Nigéria apresenta uma geografia complexa, diversificada


e heterogênea, abrangendo várias zonas agroecológicas que, de norte
a sul, transcorrem das terras áridas e semiáridas do sub-Sahel até as
terras equatoriais quentes e úmidas típicas dessa região do continente.
O exemplo aqui apresentado é o do povo Hausa, um dos mais
numerosos do país e do continente africano, com 39 milhões de habi-
tantes (21% do total da população da Nigéria, nono maior país pelo
tamanho de sua população). Assim, seria um equívoco tentar falar
do conhecimento agronômico dos Hausa no geral, de modo que nos
restringiremos aos Hausa das comunidades de Zaria, Pwolmol, Marit
e Fang, todas localizadas no Planalto de Jos, situado no centro do país.
O idioma Hausa é de origem afro-asiática, do ramo chadiano. Esse
povo, cuja principal religião é a muçulmana, há milênios se dedica à
agricultura. Os Hausa que vivem no Planalto de Jos – um planalto
com relevo ondulado, composto de colinas graníticas e basálticas,
onde encontramos solos pobres e suscetíveis à erosão, sendo cobertos
por vegetação de savana da Guiné – desenvolveram um complexo
conhecimento agroecológico com base em uma análise detalhada de
sua diversidade edáfica e no manejo da fertilidade dos solos.
Recentemente, a agroecologia Hausa passou a sofrer mudanças
drásticas, devido à intensificação da agricultura, ao crescimento popu-
lacional, à chegada dos fertilizantes inorgânicos e ao seu uso massivo.
No entanto, os Hausa conseguiram lidar com as consequências de tais
mudanças, ao adaptar seu conhecimento ancestral àquele oriundo da
agricultura moderna. Os resultados dessa adaptação ou indigenização
de certos aspectos da agronomia tecnificada são um exemplo interes-
sante do manejo da resiliência socioecológica por meio da integração
ou hibridização dos saberes locais (Phillips-Howard; Kidd, 1991).
Em função disso, a agricultura intensiva durante a estação seca
tem visto crescer a sua importância, já que outros povos, além do
Hausa, adotaram essa estratégia agroecológica, que consiste em: (a)

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aumentar a produção, (b) intensificar os sistemas de produção e (c)


diversificá-los. Tudo isso mesmo em condições de pobreza, de pressão
sobre a terra e de capacidade econômica limitada para ter acesso aos
fertilizantes inorgânicos. Além disso, a estratégia dos Hausa tem se
voltado a melhorar a fertilidade do solo através de seu acondiciona-
mento físico e do uso de uma ampla gama de fertilizantes de maneira
combinada (Quadro 8).

Quadro 8: Tipologia Hausa dos solos

Tipo de solo Hausa Tipo de solo em português Tipo de cultivo


Fa’ko Solo vermelho com cascalho Milho e sorgo
Solo franco pesado com solo
Dosayi Milho e sorgo
arenoso
Bakar ‘Kasa Solo negro franco Milho, feijão-fradinho e sorgo
Milho-guiné (ou sorgo-vassoura),
Farar ‘Kasa Solo calcário lavado milho, cana-de-açúcar e batata-
-doce
Tsakuwa Solo com cascalho Milho, sorgo e algodão
Milho, sorgo, feijão-fradinho e
Jigawa Solo arenoso
arroz
Da’baro Solo negro limoso Milho e sorgo
Milho-guiné (ou sorgo-vassoura),
Laka Solo argiloso lamacento milho, sorgo, batata-doce, milhe-
to, cana-de-açúcar e tabaco
Jan ‘Kasa Solo vermelho laterítico Milho e tomate
Yací Areia esbranquiçada fina Milho, sorgo e amendoim
Milho, feijão-fradinho, sorgo e
Jan Gargari Solo laterítico puro
algodão

Fontes: Warren (1992); Phillips-Howard; Lyon (1994); Kundiri et al. (1997); Barrera-Bassols (2000);
Barrera-Bassols; Zinck (2000)

O acondicionamento físico dos solos consiste em: (1) escavação,


remoção de pedras e raízes, desintegração dos blocos de terra até
convertê-los em material fino e suave, terraplenagem, terraceamento
(fadama) e acondicionamento de microbacia; (2) manejo combinado de

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fertilizantes de vários tipos, incluindo inorgânicos (ver Figura 33). Essa


combinação é reconhecida pelos agricultores por (a) suavizar a terra; (b)
permitir que os cultivos se desenvolvam melhor; (c) reduzir custos de
fertilizantes inorgânicos; e (d) evitar o risco de se tornarem dependentes
dos fertilizantes comerciais. A importância dessa combinação para a
população local não é explicada em termos de equilíbrio de nutrientes
em função do tipo de cultivo, mas pelo fato de possibilitar uma colheita
satisfatória com o uso limitado de fertilizantes inorgânicos.

Figura 33: Classificação Hausa dos fertilizantes (Delimi, Planalto de Jos, Nigéria)

Fonte: Phillips-Howard; Kidd (1991)

Em termos gerais, a estratégia agroecológica para enriquecer a


fertilidade se baseia na combinação de adubos orgânicos (cinzas,
esterco e fertilizantes químicos); no acondicionamento cuidadoso
do solo; na mudança para culturas menos exigentes em termos de
nutrientes; na rotação dessas culturas; no cultivo de leguminosas e
hortaliças; no arranjo espacial cuidadoso das plantas; no uso mais

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efetivo de fertilizantes inorgânicos; e na geração de dinheiro vivo


para a compra destes.
As fontes do conhecimento local para combinar fertilizantes têm
como base: (1) a caracterização e a utilidade de fertilizantes de vários
tipos (orgânicos e inorgânicos), dependendo de sua força, persistência,
capacidade de amaciar a terra, custo e disponibilidade; (2) a compatibi-
lidade dos diferentes fertilizantes; (3) a sua equivalência e substituição,
às vezes em relação a sua força intrínseca, ou se são frios (sanyi) ou
quentes (zafi); (4) a sua aptidão para diferentes tipos de terras; e (5)
suas formas de combinação para alcançar uma boa colheita e produ-
ção, bem como para reduzir os custos e os períodos de escassez dos
produtos químicos.
Os dados aqui apresentados demonstram que a via agroecológica é
uma alternativa viável à modernização da agricultura na África, e que
a intensificação agrícola não necessariamente representa um risco para
a fertilidade do solo. Além disso, fornecem evidências que refutam o
conceito clássico de que a fertilidade do solo é diretamente medida
pelo estado de seus nutrientes (como afirmam agrônomos e edafólogos
convencionais). De fato, o conceito de fertilidade é muito mais amplo
e deve incluir a condição física do solo, a disponibilidade de água, o
tipo de cultura e as estratégias de manejo agrícola e dos fertilizantes
(tal como prescrito pelos agroecólogos e atores locais).

Manejo e uso da biodiversidade entre os Maia Yucateco


do México
Uma das regiões mais interessantes não só da Mesoamérica, mas
do mundo, é a Península de Yucatán. Lá nasceu, cresceu e se desenvol-
veu a civilização Maia, uma cultura de pelo menos 3 mil anos. Com
topografia plana, sem águas superficiais ao norte e com abundância de
áreas úmidas ao centro e ao sul, a Península de Yucatán é coberta por
diferentes tipos de florestas e solos calcários, finos e pedregosos, muito

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pouco aptos para a agricultura. A essas características somam-se as


chuvas irregulares e a alta frequência de furacões e incêndios florestais.
No entanto, isso não impediu o desenvolvimento de um processo
civilizatório de longa duração, representado pela evolução da cultura Maia.
Uma das possíveis razões para explicar esse florescimento civilizatório em
condições ambientalmente adversas é a grande capacidade de adaptação
às condições locais e, especialmente, o aproveitamento da biodiversidade
local e regional por parte das populações humanas. Essa habilidade repre-
senta, hoje, uma verdadeira lição histórica de uma cultura tradicional para
o mundo moderno (Barrera-Bassols; Toledo, 2005; Toledo et al., 2008).
Na Península de Yucatán, a grande variedade de climas e os diversos
tipos de vegetação explicam sua riqueza florística: entre 2.400 e 3.000
espécies de plantas, das quais cerca de 2.200 ou 2.400 estão restritas à
porção mexicana. Essa diversidade florística se reflete no conhecimen-
to profundo que o povo Maia detém sobre as plantas. Dois estudos
etnobotânicos em comunidades relataram conhecimentos sobre 920
e 826 espécies nas localidades de Cobá e Chunhuhub, respectivamen-
te. Um dicionário etnobotânico regional documentou nomes e usos
maias para uma lista de 2.166 espécies, isto é, mais de 90% do total da
flora. Por sua vez, Flores (2001) registrou nomes locais para 88% das
260 espécies de leguminosas, que é a família mais bem representada
na península. Além disso, existe uma taxonomia maia yucateca das
plantas (kul) baseada em 16 categorias de formas de vida, na qual os
taxa (plural latino de táxon, unidade reconhecida na sistemática de
animais e plantas) se distinguem tanto por características próprias das
plantas quanto por critérios simbólicos, como o das cores.
Outros estudos descrevem o conhecimento que existe sobre espécies
de vários grupos de animais, especialmente mamíferos, aves, répteis e
peixes, que têm valor nutricional ou ligado a práticas agrícolas, agro-
florestais, de caça e pesca. Também ganha destaque o conhecimento
detalhado sobre as abelhas nativas sem ferrão (Melipona beecheii),

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utilizadas desde tempos pré-hispânicos, e, em geral, sobre a apicultura,


atividade de grande relevância na região.
Baseando sua subsistência no uso da biodiversidade local, os Maia
Yucateco adotam uma estratégia de uso múltiplo dos recursos naturais
que apresenta pelo menos seis componentes: a milpa, onde se cultivam
o milho e outras espécies, além de outros sistemas agrícolas; a horta
familiar; as florestas secundárias; as florestas maduras; as florestas
manejadas; e os corpos d’água (Figura 34).

Figura 34: O uso múltiplo dos recursos pelos Maia yucatecos do México

A estratégia inclui o uso agrícola, o aproveitamento das florestas secundárias durante o reflorestamento e
das florestas maduras, assim como o manejo agroflorestal, a caça e as hortas familiares.
Fonte: Toledo et al. (2008)

O inventário realizado por Terán et al. (1998) sobre as plantas cultiva-


das nas milpas da comunidade de Xocén fornece um registro completo da
agrobiodiversidade em escala comunitária. Segundo esses autores, existem
até 50 espécies e variedades de plantas: seis variedades locais de milho, seis

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classes de leguminosas (incluindo três feijões), oito cucurbitáceas, nove tipos


de pimenta (iik), sete classes de tomates (paak), sete tubérculos e batatas
comestíveis, entre outras. Esse catálogo de espécies e variedades sintetiza
vários milhares de anos de domesticação, seleção, adoção e adaptação
de plantas às condições edáficas, climáticas e ecológicas da Península de
Yucatán, e constitui um patrimônio cultural de enorme valor.
Geralmente, as hortas familiares dos Maia se localizam no entorno
das casas e cobrem uma área entre 500 e 2.000 m 2 , chegando a até
5.000 m2. Nelas, é cultivado, tolerado e manejado um grande número
de espécies de plantas, principalmente árvores e arbustos, bem como
animais domésticos como porcos, galinhas, perus, patos e colônias
de abelhas, que são fundamentais para a alimentação da família. O
número de espécies de plantas por horta varia entre 50 e 100 espécies,
de acordo com as diferentes regiões da Península de Yucatán. Em nível
local, ambos os inventários mais detalhados feitos em Chunchucmil e
X-Uil contabilizam 276 e 387 espécies, respectivamente.
A flora das hortas é usada para alimentar, para fins medicinais,
ornamentais e como fonte de lenha, mas também se destaca como
fonte de néctar e pólen para as abelhas nativas e introduzidas e, em
menor medida, para a construção de casas, ferramentas e forragens.
Estima-se que 80% das espécies das hortas maias são provenientes da
flora nativa, enquanto o restante corresponde a espécies introduzidas
a partir da conquista espanhola. Um estudo sobre o papel das hortas
familiares na alimentação do povo Maia revelou sua importância no
fornecimento de 47% da gordura, 55% da vitamina A, 73% da vita-
mina C e menores taxas da vitamina B e minerais da dieta familiar.
O aproveitamento do trabalho das abelhas por parte dos Maia
remonta ao manejo pré-hispânico da abelha sem ferrão Melipona bee-
cheii, chamada localmente de xunan-kab. Tal prática continua em vigor,
embora esteja seriamente ameaçada, e durante muito tempo utilizou a
abelha europeia (Apis mellifera), hoje africanizada. É provável que essa

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longa tradição tenha surgido e se estabelecido a partir do refinado co-


nhecimento maia sobre o grande potencial melífero e polinífero da flora
regional e, certamente, contou com os saberes locais sobre o manejo de
abelhas. De fato, os inventários da flora melífera da Península de Yucatán
revelam um número extraordinário de espécies (370, de acordo com um
catálogo feito por Sousa-Novelo em 1940), representando a segunda
categoria de uso mais importante, depois das medicinais, de toda a flora
regional, e 40% (109 espécies) de todas as leguminosas.
Normalmente, as paisagens da Península de Yucatán formam mosai-
cos florestais de diferentes idades que seguem o processo de regeneração,
como florestas maduras, faixas de vegetação (como o tolché) e florestas
manejadas como o pet kot, todas operando como recursos para a coleta e
a extração, além de serem fontes de alimento para as espécies de animais
que são objeto da caça e para as abelhas melíferas. Os mosaicos fornecem
uma variedade de produtos: lenha, alimentos, remédios, exsudatos, ma-
teriais para construção, para instrumentos e ferramentas, entre outros.
Estima-se que as famílias de uma comunidade obtenham entre 100 e 250
espécies úteis das áreas florestais. A lenha é a principal fonte de energia
– estima-se que cada família utilize cerca de quatro toneladas por ano.
As atuais comunidades maias utilizam ainda até 24 espécies
como presas de caça (15 espécies de mamíferos, sete de aves e duas de
répteis), divididas entre aquelas que são frequentemente caçadas e as
ocasionalmente capturadas. Entre as primeiras, estão duas espécies
de cervos, duas de roedores (cutia e agouti), o javali e o texugo, entre
os mamíferos; e o peru-ocelado e o grande mutum, entre as aves.
Normalmente, essas espécies constituem cerca de 80% dos indivíduos
caçados. A caça ocorre não só nas áreas florestais de diferentes idades,
mas também nas milpas, porque a maioria das espécies cinegéticas é
visitante ocasional, regular ou frequente dessas áreas (jardins de caça).
A pesca, por sua vez, existe apenas nos locais em que o tamanho e a
profundidade dos corpos d’água (cavernas com água, lagoas e açudes)

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permitem a presença de uma fauna aquática temporária ou permanente.


Os poucos estudos sobre o assunto relatam o uso de até 14 espécies de
peixes, tartarugas e crocodilos.
Em suma, na região habitada pelos Maia Yucateco, onde existem
grandes variações ambientais, a implementação da estratégia de uso
múltiplo dos recursos naturais locais envolve o uso e o manejo de 300 a
500 espécies por comunidade, sendo que a maior parte vem das hortas
familiares e da extração e coleta florestais.
O caso dos Maia representa um dos melhores exemplos de per-
manência de uma cultura ao longo do tempo e ilustra a importância
agroecológica da estratégia indígena de uso múltiplo dos recursos.

A agricultura de anéis concêntricos dos Mossi de Burkina Faso


Dois fenômenos supostamente associados à modernização agrícola
dos países da região Subsaheliana da África têm chamado a atenção
de vários especialistas nos últimos 30 anos: a degradação das terras
e a suposta queda dos sistemas agrossilvipastoris, devido à explosão
populacional em curso e à consequente intensificação do uso das terras
em condições de pobreza, solos frágeis e pouco produtivos, ocorrência
cíclica de secas e aleatoriedade pluviométrica. Para alguns autores,
essas circunstâncias têm provocado o declínio drástico da fertilidade
dos solos em grande parte do continente.
Diante desse cenário alarmante, as agências internacionais que
se dedicam ao desenvolvimento agrícola na região vêm conduzindo
programas milionários de reconversão e modernização nas áreas rurais.
No entanto, muitas dessas intervenções têm falhado ao não considerar a
experiência local de manejo dos solos e cultivos, bem como as estratégias
socioeconômicas e agroecológicas ancestrais dos pequenos produtores.
Grande parte desse fracasso é resultado das formas convencionais de
teorização e análise científica sobre a problemática, que envolvem a
implementação de abordagens técnicas limitadas e errôneas.

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Mais recentemente, um número crescente de autores têm demonstra-


do, com base em informações obtidas in-situ e em abordagens participa-
tivas, que os fenômenos mencionados não podem ser generalizados. Em
resposta às novas realidades africanas (explosão demográfica e intensificação
do uso das terras), muitos povos agricultores têm adotado parcialmente
novos esquemas produtivos (por exemplo, adoção de fertilizantes químicos,
produção de cultivos comerciais etc.), combinando-os com suas práticas
ancestrais, sem ocasionar a degradação de suas culturas. Assim, as famílias
têm mantido – por meio da intensificação de práticas de conservação da
água e do solo – e até mesmo aumentando a fertilidade de suas terras.
Apesar disso, o debate continua aceso, uma vez que muitos já consideram
que a degradação de terras naquele continente é um mito discursivo.
Apresentamos aqui um exemplo de manejo agrossilvipastoril de su-
cesso, implantado sob as condições descritas anteriormente. Trata-se do
manejo Mossi de solos e culturas, em forma de anéis concêntricos, ao sul
do Planalto Mossi, em Burkina Faso (Coffi, 1993; Dialla, 1993; Schutjes et
al., 1994; Barrera-Bassols, 2000). Burkina Faso, um dos países mais pobres
do mundo, está localizado na África Ocidental, sem saída para o mar. O
regime climático é semiárido tropical, com secas recorrentes. A vegetação
é de savana guineana, e os solos são pobres e muito frágeis. Além disso,
esse pequeno país exibe taxas de crescimento populacional explosivo (3%
anual), uma intensificação das terras de uso agrícola sob alta densidade
populacional (100 hab/km2), sendo que 90% da população está envolvida
na agricultura. Os regimes de usufruto da terra vão do comunal ao fami-
liar. No total, a terra arável não passa de 20% do país em seu conjunto.
Linguisticamente, o povo Mossi constitui 40% da população de
Burkina Faso. De religião muçulmana sincrética, o povo e o território
Mossi (Mossiland) abrangem o Planalto Mossi, ao centro, e, ao norte
do país, convive com os Fulani, povo de pastores.
Os Mossi da comunidade Nonghin, da área Manga, vivem ao sul do
Planalto Mossi. Seu regime climático é sudanês, com precipitação média

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anual de 1.000 mm. O verão é quente e úmido, e o inverno é seco, típico dos
trópicos semiáridos da África Ocidental. Ali, a densidade demográfica é de
100 hab/km2 de terra agrícola útil (TAU). Em média, a unidade domés­tica
é composta por 7,7 indivíduos, trabalhando 3,5 hectares divididos em sete
parcelas. Mais de 75% das unidades familiares possuem animais de tração,
e apenas 30% possuem gado bovino (5 cabeças, em média) e caprino (7
cabeças, em média). Nesse contexto, a agricultura praticada é basicamente
de subsistência, embora os excedentes sejam levados ao mercado local e
regional. Nos últimos 20 anos, o manejo comunal das terras agrícolas tem
passado por uma transição para o manejo familiar.
O sistema de cultivo que permite a sobrevivência dos Mossi de
Nonghin é chamado cultivo em anéis concêntricos, localizado no entor-
no da área residencial. Diferentes padrões e densidade de cultivo são
observados em cada um desses anéis, e todos eles fazem parte de uma
mesma estratégia: o manejo diversificado e diferencial de terras, solos
e cultivares (Quadro 9). Uma das características mais notáveis dessa
estratégia é que a densidade de cultivo e a intensidade no uso da terra
diminuem em relação à distância da área habitacional.

Quadro 9: Principais tipos de solo identificados


e nomeados pelos Mossi de Burkina Faso
Tipos de solos na Vila Nonghin, Planalto Mossi, Burkina Faso
Denominações
Descrição técnica
locais
Solo de terras altas, raso, pedregoso, com coloração de café, ácido, loca-
Zingadega
lizado nos topos de pequenas colinas.
Solo de terras altas, cascalhento, com cascalhos de quartzito, mica e areia.
Solo de terras altas, cascalhento com areia e concreções ferruginosas;
Kougri
geralmente esse solo precede ao arenoso (Binsiga), em topossequências
que vão das partes altas às partes baixas das encostas.
Solo arenoso claro a cinza escuro que contém areia grossa e fina. Loca-
Binsiga
lizado em topos planos ou semiplanos na parte superior das encostas.
Areia pouco profunda onde não crescem árvores; solos arenosos es-
Rassempuiga branquiçado a acinzentado, lavado e localizado nas partes baixas das
encostas das colinas
Modificado de: Coffi (1993)

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À medida que nos afastamos da área residencial, podemos iden-


tificar três anéis principais de manejo de solos e cultivares. Os anéis
são subdivididos, embora isso não seja muito visível, como resultado
de mudanças de manejo sutis no interior de cada um (Figura 35). Os
determinantes e instrumentos mais importantes da estratégia de manejo
dos solos e cultivares são: (1) o período de maturidade das culturas; (2)
a probabilidade de o gado causar-lhes danos; (3) a distância das parcelas
com relação à área residencial; e (4) a base natural da fertilidade dos
solos. Tudo isso para prevenir ou superar os principais limitantes na
produção, tais como a pobre e incerta umidade do ambiente e do solo,
a baixa fertilidade das terras, a escassez de força de trabalho. A estra-
tégia também visa minimizar os intervalos temporários de escassez de
alimentos entre os anos agrícolas ou durante eles. A seguir, descrevemos
em detalhe esse sistema de manejo (Figura 35).

Figura 35: Esquema de manejo agrícola em anéis concêntricos


dos Mossi de Burkina Faso

Fonte: Coffi (1993)

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O primeiro anel: onde se cultiva o milho com o propósito de me-


lhorar o abastecimento alimentar durante o período de escassez, uma
vez que essa espécie é de ciclo curto, o mais curto de todos os ciclos
das plantas cultivadas pelos Mossi (60-90 dias), além de ser o primeiro
cultivo colhido durante a estação chuvosa (1b). Algumas variedades de
ciclo curto de sorgo e milheto com hastes curtas, que são protegidas
pelas plantas de milho, são por vezes cultivadas de forma intercalada.
O uso massivo de estrume nesse anel contribui para melhorar os solos
e proporciona bons rendimentos dessas duas culturas. O cultivo de
milho está associado ao de outras espécies, as quais necessitam de
muitos nutrientes e se beneficiam do adubo de esterco. Os tubérculos
cultivados de forma intercalada ao milharal fornecem calorias extras
durante o período de escassez. O tabaco também é aí cultivado (1b),
após a colheita do milho, para consumo local. Essa cultura só pode
prosperar com sucesso em solos fortemente adubados. A intensidade
do manejo desses campos é maior dependendo da proximidade da área
residencial. As práticas de conservação do solo e da água também são
intensivas. Outra prática comum e intensiva é a construção e o melho-
ramento das barragens de terra ou de rochas dentro e no entorno dos
campos de cultivo, a fim de coletar a água e reduzir a erosão hídrica.
Os campos desse anel medem em média 0,04 hectares e têm sido
utilizados de forma contínua ao longo dos últimos 50 anos.
No segundo anel, cultiva-se o sorgo vermelho e o feijão-fradinho de
maneira intercalada (2a) e permanente, com aplicações moderadas de
esterco e a maior quantidade de fertilizantes químicos, mas com poucas
práticas de conservação da água e dos solos (barragens e barreiras antie-
rosivas de terra e de pedra). Outros campos são plantados com sorgo e
feijão-fradinho, havendo periodicamente a rotação com amendoim (2b).
Aqui, as práticas de conservação do solo e da água são mais evidentes (até
40% da área cultivada), especialmente com mulch (cobertura morta) e
barreiras antierosivas. Além disso, esses campos são lavrados periodica-

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mente para melhorar a conservação da água e dos solos, especialmente


onde há problemas de compactação do solo. Por sua vez, nesses campos
há rotação intermitente com culturas como amendoim e tubérculos. Em
média, os campos desse anel têm uma dimensão de meio hectare e têm
sido utilizados em 80% durante os últimos 50 anos.
Nos campos do terceiro anel (anel externo), cultiva-se extensiva-
mente milheto intercalado com sorgo branco e feijão-fradinho. Em
pequenas áreas dentro desses campos, cultiva-se amendoim, feijão-
-bambara* e outras espécies. O milheto é considerado o cultivo menos
exigente em termos de manejo. A recuperação da fertilidade dos solos
desses campos é feita por meio do pousio, do cultivo de leguminosas
e, em certas ocasiões, da aplicação de fertilizantes químicos. O pousio
de até 40 anos dos campos desse anel se deve à grande disponibilidade
de terras e ao fato de o cultivo de leguminosas causar menos danos do
que o gado, em função da distância entre esse anel e a área residencial.
O crescimento de cobertura morta (mulch) e as barreiras antierosivas
são práticas de conservação de água e solo utilizadas somente em 12%
desses campos, cujo tamanho médio é de um hectare, tendo sido uti-
lizados em 30% ao longo dos últimos 50 anos.
A análise da fertilidade dos solos nesses três anéis apresenta os seguintes
resultados: (1) diminuição da fertilidade da terra do primeiro ao terceiro
anel (sendo que essa gradação está intimamente relacionada ao trabalho
e à intensidade do uso da terra, assim como às práticas de melhoramento
dos solos); (2) a fertilidade dos solos nas terras altas é similar ou maior do
que o registrado nos solos das terras em pousio; e (3) nos solos das terras
baixas, a matéria orgânica registrada é inferior ou similar àquela nas terras
em pousio, mas o teor de fósforo é mais elevado nos campos cultivados do
que nas terras em pousio. Os resultados desse estudo demonstram que há

* Bambara: povo islamista do oeste da África (Mali, Guiné, Senegal e Burkina Faso)
que faz parte dos povos Mandinga Soninke. (N. E.)

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duas hipóteses que não se sustentam mais: (1) a de que a agricultura tra-
dicional em regiões tropicais semiáridas da África Ocidental compromete
a base natural da fertilidade dos solos quando se torna mais intensiva. Os
dados, aliás, revelam que na agricultura Mossi existe uma relação positiva
entre o rendimento médio do trabalho realizado e a intensidade do uso
da terra, de modo que não se comprova (2) o declínio da produtividade
da agricultura tradicional da região devido ao crescimento populacional
e à intensificação do uso da terra.

Os chinampas do México: um caso notável de agricultura


hidráulica
Quando os espanhóis chegaram na Bacia do México, sede da capital
asteca (Tenochtitlan-Tlatelolco), em 1519, tiveram diante de seus olhos
uma paisagem espetacular formada por um enorme espelho lacustre
interrompido por uma ilha ligada ao continente por calçadas. Nessa
ilha, destacavam-se templos e pirâmides majestosas. Rodeando esse
e outros centros urbanos das ribeiras, havia um conjunto de jardins
flutuantes chamados chinampas, algo nunca visto pelos conquistadores.
O chinampa (em náhuatl, chinamitl = muro ou cerca de juncos;
apam = terreno plano) é um sistema agro-hidráulico estruturado como
um campo elevado e drenado. Foi uma das mais impressionantes,
estéticas e eficientes soluções agroprodutivas para lidar com as condi-
ções climáticas adversas das áreas altas semiáridas e subúmidas tem-
peradas da Mesoamérica (Barrera-Bassols, 2003). Exemplos notáveis
desse sistema podiam ser encontrados nas bacias de Tlaxcala, Puebla,
Teotihuacán, Tenochtitlán, Toluca, Cuitzeo, Pátzcuaro e Chapala, no
centro do que hoje é o México (Coe; Flannery, 1964).
Trata-se de um sistema semelhante a outros campos drenados
construídos para o estabelecimento de terra firme em pântanos e zo-
nas permanentemente inundadas, tais como os sistemas Waru-waru
do Lago Titicaca, as áreas pantanosas da Inglaterra e o sistema de

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pôlderes na Holanda. No entanto, o chinampa da Mesoamérica – sua


construção, utilização, manejo e manutenção – é um caso único no
mundo, sendo especialmente relevante na Bacia do México, que foi
onde atingiu o seu mais alto nível de sofisticação.
Os chinampas, enquanto eixo de um sistema intensivo de uso múl-
tiplo da terra, tornaram-se a principal fonte fornecedora de alimentos
básicos para a população da Bacia do México durante os últimos 200
anos de dominação asteca. Tenochtitlán, a capital asteca, localizada em
uma ilha no Lago Texcoco, beneficiou-se da proximidade estratégica
dos chinampas. O governo asteca controlava a produção por meio da
construção de infraestrutura hidráulica, o que permitiu não só a expan-
são do sistema de chinampas no sul da Bacia do México, mas também
o aumento de sua eficiência através de mão de obra pública, organiza-
ção do trabalho, impostos, políticas de manejo e comercialização. A
permanência dos chinampas até meados do século XX demonstrou seu
valor estratégico como um sistema de produção sustentável.
Apesar das dificuldades para definir com precisão a data de origem
dos chinampas (pelas características naturais e pela história ambiental
da região), os estudos arqueológicos estimam que remonta ao período
que vai do pré-Clássico, desde 500 AP (Donkin, 1979), até depois do
pós-Clássico, 1.400-1.600 AP (Armillas, 1971; Coe, 1974; Parsons,
1976). Depois de vigorar durante pelo menos 1.500 anos, esse sistema
eficiente quase desapareceu no início da segunda metade do século
XX. Hoje, existem apenas alguns remanescentes ativos dessa tradição
indígena agro-hidráulica nos últimos redutos lacustres no sul da Ci-
dade do México.
Os chinampas provavelmente são o sistema agrícola mais estudado
na Mesoamérica (Rojas, 1983). As práticas de conservação do solo e
da água têm sido analisadas por arqueólogos, etno-historiadores e
etnógrafos, principalmente na Bacia do México, que foi o território
dominado pelo Império Asteca até a chegada dos europeus.

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De acordo com evidências arqueológicas, etno-históricas e etno-


gráficas, a construção de um chinampa implicava vários processos
que exigiam uma grande quantidade de mão de obra e uso de energia.
Primeiro, escolhia-se o local adequado para sua construção, utilizando
uma vara de madeira para medir a profundidade da água desejada e
definir seu tamanho por meio da colocação de postes de madeira em
cada uma das quatro esquinas. Depois, as vigas eram usadas para le-
vantar cercas e valas de ramos e juncos entrelaçados onde empilhavam
a vegetação aquática, as faixas de grama, a lama do fundo do lago e
uma camada superficial do solo de antigos chinampas. Também se
amontoavam rochas basálticas sobre uma cama de ramos entrelaçados
como fundação. Esse empilhamento era feito até formar plataformas
cuja altura variava de 30 a 60 cm acima do nível da água.
Para garantir o bom funcionamento e desempenho dos campos agrí-
colas, diversos atributos de solo e de água eram avaliados antes e durante
a sua construção. O tamanho do chinampa era relativamente pequeno
(de 100 a 500 m2). Sua forma retangular e estreita tinha como propósito
permitir o fluxo contínuo da umidade na subsuperfície dessa microilha.
A altura acima do nível da água deveria permitir a irrigação com baldes
ou pás sobre a superfície total da plataforma. A manutenção da umidade
do subsolo, por sua vez, permitia a decomposição da matéria orgânica
e proporciona água para as plantas e árvores com raízes profundas. A
irrigação permanente, bem como o fluxo de água ao longo dos quatro
canais ao redor do chinampa, evitavam a salinização da superfície.
A acumulação de camadas sucessivas de diferentes materiais natu-
rais se assemelhava a um perfil edáfico, o que permite a percolação das
águas subterrâneas através das camadas de rocha basáltica, a fim de
ajudar a decomposição da vegetação aquática e terrestre. A consistência
do solo orgânico era melhorada com os sedimentos do lago. Árvores
tolerantes a condições de umidade, como uma espécie de salgueiro
chamada sauce ou ahuejote (Salix bondplandiana), eram plantados ao

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longo das bordas do chinampa para evitar a erosão do solo, proporcio-


nar sombra para outros estratos de vegetação, regular as mudanças de
temperatura entre o dia e a noite, atenuar o efeito dos ventos e como
fonte de madeira para a construção de novos chinampas.
De acordo com West e Armillas (1950), a porosidade do solo criado
e a estreiteza dos campos elevados permitiam o fluxo de água a partir dos
canais circundantes até o nível das raízes. O sistema de irrigação com bal-
des tornava possível implantar cultivos mesmo durante as estações secas.
Quatro anos depois de ser construído, um chinampa passava a ser consi-
derado um solo verdadeiro. O engenheiro agrônomo Santamaría (1912),
assessor de Porfírio Diaz – ditador mexicano da época pré-revolucionária
no século XIX –, afirmava que os agricultores locais consideravam que a
decomposição da matéria orgânica ao longo de quatro anos era suficiente
para a formação de um solo adequado a uma produção sustentável.
A ciclagem de nutrientes era o fator fundamental para a manuten-
ção da produtividade do solo. Esse processo era viabilizado pela adoção
de práticas de manejo que incluíam fatores agronômicos e biológicos,
como a restauração da camada superficial do solo, a prevenção de
inundações, a drenagem e a salinização.
A superfície do solo de um chinampa era cuidadosamente nivela-
da para manter a altura apropriada em relação à água (30-60 cm). A
subirrigação ou percolação das águas subterrâneas permitia o desenvol-
vimento de culturas sob condições de déficit de umidade, seja quando
o início da estação chuvosa atrasava ou quando os meses de verão eram
excepcionalmente secos. Os solos dos chinampas continham um grande
volume de matéria orgânica hidrófila, o que lhes permitia manter-se
úmidos por longos períodos e reduzir a frequência de irrigação manual.
A água dos canais (apantli, em náhuatl) era manejada para equilibrar
as descargas de drenagem e evitar as flutuações do lençol freático, para
evitar a extração excessiva de água para a irrigação de superfície e fazer
fluir o escoamento superficial das chuvas intensas. Os drenos também

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serviam como depósitos ricos em matéria orgânica e minerais. De fato,


o manejo da água por meio de canais fazia parte de um complexo hi-
dráulico de barragens e aquedutos. As barragens eram construídas para
separar a água salgada da doce, que vinha do sistema interligado de lagos.
Algumas barragens chegavam a medir 15 km de comprimento, exigindo
um investimento prolongado de força de trabalho.
O estercamento contribuía para a fertilidade do chinampa. O lodo
semilíquido (zoquitl) era dragado do fundo com escavadeiras, chamadas
zoquimaitl (zoquitl = lodo ou lama + maitl = ferramenta, instrumento),
porque continha sedimentos orgânicos e algas em suspensão que ajudavam
a melhorar a fertilidade e a textura da camada superficial do solo (West;
Armillas, 1950). Normalmente, o solo superficial de um chinampa tem
textura de argila orgânica ou barro, ficando pegajoso quando está úmido e
apresentando torrões maciços quando seca. Esses torrões dificultam o pre-
paro do solo (Wilken, 1987, p. 89). A adição gradual de areia corrige essas
condições indesejáveis. Outras práticas relatadas pelos cronistas do século
XVI incluem o nivelamento do solo e a criação de microtopografias, como
montículos e bordas elevadas entre os sulcos dos chinampas (Rojas, 1983).
A salinização dos solos (tequizquitlalli = solo salgado, em náhuatl)
é um problema em terras de cultivo como os chinampas. Por isso, eles
eram enriquecidos com sedimentos lacustres e vulcânicos que buscavam
diminuir a evaporação e aumentar a produtividade da terra. Para esse
fim, eram adotadas várias medidas mecânicas para reduzir os níveis
de sal, como a constante rega manual, a incorporação de adubos, a
aplicação de areia e a remoção manual de crostas de sal (Wilken, 1987).
Nesse ponto, é necessário mencionar as suposições elaboradas por
alguns especialistas, que afirmam enfaticamente que os agricultores
mesoamericanos não concebiam o solo em sua dimensão tridimensional
(Williams; Ortiz Solorio, 1981). Ao contrário do que é assumido por
esses autores, os solos antropogênicos dos chinampas foram construídos
através da implementação de uma ampla gama de sabedorias desen-

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volvidas ao longo de milhares de anos de interação constante com o


solo (Barrera-Bassols, 2003).
A Figura 36 mostra a estrutura complexa de um chinampa, re-
velando não só o enorme investimento em trabalho, mas também a
aplicação de toda uma série de conhecimentos muito consistentes sobre
o meio ambiente. Os processos de formação do solo nos chinampas
eram bem compreendidos pelos agricultores, no entanto, é difícil avaliar
as percepções pré-hispânicas sobre a tridimensionalidade do solo. Em
todo caso, pode-se dizer que a percepção edafológica mesoamericana
atribuía uma quarta dimensão à paisagem edáfica: a dimensão sagrada.
A suposição de que os agricultores não detinham esse conhecimento
tem dificultado a análise contemporânea do conhecimento edafológico
local, assim como tem atrasado a pesquisa sobre os solos antropogênicos
na Mesoamérica (Crossley, 2000).
Figura 36: Estrutura de um chinampa antigo no Vale do México

Fonte: Elaborado por Barrera-Bassols (2003) a partir de várias fontes.

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Aproveitando as condições locais de irrigação permanente, fer-


tilidade e produtividade, eram aplicadas, ao longo do ano, diversas
técnicas, dentre as quais se destacam o cuidado com cada planta
cultivada, o manejo do espaço e do tempo e a estratégia múltipla do
uso da terra. Estimativas feitas acerca da produtividade do milho nos
chinampas pré-hispânicos variam entre 3 e 4 toneladas por hectare.
As condições da microtopografia foram ajustadas de acordo com
as variedades de culturas e suas necessidades de nutrientes durante
todo o seu ciclo de crescimento (West; Armillas, 1950; Wilken,
1989). Tanto as sementeiras (tlachtli ou cintlimilli, em náhuatl)
como os montículos, bordos e sulcos foram cuidadosamente adap-
tados para o sistema radicular e as condições de umidade do solo.
Os tratamentos eram aplicados a cada planta de milho, de acordo
com suas diferentes fases fenológicas. O corte das raízes (xhomani
= perturbar, em náhuatl) era cuidadosamente feito durante o ciclo
de cultivo com o objetivo de controlar a altura da planta, reduzir
o crescimento das folhas e induzir o crescimento da espiga (Rojas,
1982). Uma variedade vigorosa e produtiva de milho de ciclo lon-
go chamada Chalqueño-chinampero foi adaptada para aproveitar
as qualidades específicas dos solos. Essa variedade é amplamente
utilizada hoje em dia nas terras áridas e subúmidas e do centro do
México (Wellhausen et al., 1951).
Os arranjos espaciais foram concebidos buscando melhorar a
produtividade múltipla dos estratos vertical e horizontal. A colheita
era estrategicamente programada para combinar as culturas de curto
prazo (tomate, pimentão etc.) com as de longo prazo (milho, amaranto
etc.) e as culturas arbóreas perenes (capulín, trejocote etc.). Esse arranjo
espacial complexo permitiu: (1) intensificar os cultivos múltiplos em
um mínimo espaço produtivo; (2) reduzir ao máximo o espaço não
plantado; (3) minimizar a duração de cada uma das culturas; e (4)
manter os cultivares durante as estações seca e fria. Os chinampas se

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tornaram o único sistema agrícola mesoamericano que proporcionava


colheitas ao longo do ano todo.
Entre os exemplos de arranjo vertical do espaço, estão o sistema
de milpa (milho, feijão, abóbora) e o plantio de árvores nas bordas
do chinampa. Ambos os sistemas se destinam a regular a luz solar,
controlar o microclima em função das mudanças diurnas e noturnas
e aproveitar os aportes de nitrogênio oferecidos por plantas fixadoras
como o feijão. O manejo horizontal do espaço foi cuidadosamente
adaptado para a rotação de culturas intercaladas e para a produção
de f lores, especiarias e ervas espontâneas úteis. Nesse sentido, a
agricultura chinampeira é considerada um sistema de horticultura
(Denevan, 1980).
Uma grande variedade de técnicas agronômicas e biológicas foi
empregada para restaurar a fertilidade do solo, manter e melhorar
as culturas. A aplicação de composto, camas de adubos verdes e
adubos de origem animal era feita de acordo com as condições locais
e temporais. O composto era preparado com resíduos do milho,
palha, ervas e vegetação aquática seca (atlapacatl, em náhuatl) e
ervas daninhas. O adubo orgânico era preparado com a mistura
de composto, esterco e excrementos humanos, e a sua aplicação
se fazia de acordo com as necessidades de cada cultura (Alzate,
1993; Santamaría, 1993; Rojas, 1983). O preparo e a aplicação
dessa cobertura demandavam mão de obra intensiva. O adubo de
origem animal (tlazoltlalli = terra decomposta, em náhuatl) era
cuidadosamente aplicado de acordo com cada cultura. Há registros
do uso especializado de esterco em documentos dos séculos XVI e
XVII, e os estudos etnográficos confirmam o seu uso até o século
XX. Aparentemente, grandes quantidades de guano ou excremento
de morcego da terra quente ou tropical foram transportadas até os
chinampas para serem aplicadas especificamente nos cultivos de
tomate e pimentão. O esterco de peru (totocuicalt, em náhuatl) e

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os excrementos humanos foram amplamente utilizados. Os excre-


mentos humanos eram sistematicamente coletados em Tenochti-
tlán, a capital asteca, e transportados em botes para os curtumes e,
depois, para os chinampas. Registros etnográficos revelam que os
agricultores elaboraram uma classificação complexa do esterco, de
acordo com as suas propriedades quentes ou frias, para seu uso em
determinadas culturas (Sanders, 1957; Wilken, 1989).
Além da agricultura, que envolvia o cultivo de 30 a 50 plantas
diferentes (Rojas, 1983), eram realizadas outras atividades, como
caça, pesca e coleta. A caça de aves migratórias, como patos (Anas
spp.), gansos (Anseralbifrons), garças-reais (Ardea herodias), pelicanos
(Pelecanus spp.), grou-canadense (Grus canadensis) e cormorão (Pha-
lacrocorax spp.), constituía uma atividade importante, assim como a
pesca nos lagos e canais, que oferecia proteína animal, sendo controlada
pela burocracia asteca (Rojas, 1983). As atividades de coleta também
forneciam proteína animal.
Um peixe endêmico (Chirostoma spp.) supria de forma significativa
a demanda de alimentos em Tenochtitlan. Subespécies diferentes do
peixe branco (iztamichin, em náhuatl) eram capturadas de acordo
com seus ciclos de vida, buscando manter suas populações e, assim,
garantir o consumo de proteína animal durante todo o ano, o que
compensava a falta de carne de mamíferos. Outros animais aquá-
ticos comestíveis, como rã (Rana spp.), tartaruga (Kinosternon spp.),
uma espécie endêmica de batráquio chamado axolotl (Ambystoma
lacustris), assim como outros crustáceos e insetos cujo hábitat era
no entorno dos chinampas, também proporcionavam quantidades
significativas de proteína. Nas imediações dos lagos de água salgada
eram coletadas algas (tecuicatl, em náhuatl) para consumo humano,
especialmente as algas verde-azul (Spirulina spp.), ricas em proteínas,
vitaminas e carboidratos.

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O sistema waru-waru de hidroagricultura no Peru e na Bolívia


Esse sistema tradicional de agricultura hidráulica foi desenvolvido
há 2.300 anos, antes do esplendor do império Inca, sendo posterior-
mente abandonado em função da descoberta de tecnologias de irrigação
mais avançadas. No entanto, em 1984, esse sistema foi restabelecido
em Tiahuanaco, na Bolívia, e em Puno, no Peru (Erickson, 1986).
A tecnologia Waru-waru está baseada na modificação da superfície
do terreno para facilitar o movimento e o armazenamento da água, bem
como para aumentar o conteúdo de matéria orgânica do solo, tornando-o
mais propício para os cultivos. O sistema é uma combinação de rea-
bilitação dos solos, melhoramento da drenagem, armazenamento de
água, otimização do uso de nutrientes e da radiação solar e diminuição
dos efeitos das geadas sobre os cultivos (Figura 37).

Figura 37: Esquema do sistema agrícola waru-waru nas margens do


Lago Titicaca, Peru e Bolívia

Fonte: Erickson (1986)

A característica principal dos Waru-waru é a construção de uma


rede de terraços e canais. Os terraços, que operam como campos eleva-
dos, servem de base para o cultivo, enquanto os canais são usados para

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armazenar água e regar as plantas. Os solos usados para os terraços são


compactados para facilitar a retenção de água ao reduzir a porosidade,
a permeabilidade e a infiltração. Os cultivos se desenvolvem nos novos
solos formados nos terraços. Há três tipos de Waru-waru, dependendo
da origem das águas: os que se alimentam das chuvas, os fluviais e os
que utilizam os lençóis freáticos.
Essa tecnologia é ideal em áreas com condições extremas de clima,
como as de montanha, que atravessam períodos de chuvas e secas intensas, e
os locais em que as temperaturas oscilam rapidamente. O sistema também é
útil em regiões áridas e semiáridas. Entre suas vantagens, estão a capacidade
de mitigar os efeitos das variações climáticas extremas, o baixo custo de
construção e a contribuição para o aumento da produção de certos cultivos.
Já entre suas desvantagens, apontamos: sua curta durabilidade, precisando
ser reconstruído aproximadamente a cada três anos; sua necessidade anual
de manutenção e reparos periódicos; e a obrigatoriedade de avaliação da
textura e da composição do solo antes de sua implementação.

Os jardins de café do México


Em escala mundial, as regiões produtoras de café se sobrepõem,
em grande medida, às áreas reconhecidas como as de maior biodiver-
sidade (hotspots), de modo que, apesar de se estender sobre uma área
relativamente pequena (cerca de 11 milhões de hectares), elas são de
importância estratégica em termos de conservação biológica. Em seu
estado selvagem, o café (Coffea spp.) é um arbusto, quase uma árvore,
situado no estrato inferior das florestas úmidas da África Oriental, em
certas regiões do Sudão, da Etiópia e do Quênia (Eccardi; Sandalj,
2000). Apesar de terem sido descritas mais de cem espécies do gênero
Coffea, apenas duas vêm sendo cultivadas na faixa intertropical do
planeta: Coffea arabica e Coffea canephora.
Assim como ocorreu com grande parte dos principais cultivos do
planeta, o modelo agroindustrial transformou a cafeicultura mundial

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e expandiu o sonho do monocultivo cafeeiro por boa parte do mundo,


particularmente no Brasil, na Colômbia, na Costa Rica e no Vietnã.
Conforme foi oportunamente documentado, essas mudanças provo-
caram severos impactos de caráter ecológico, principalmente sobre
a biodiversidade, já que a transformação da paisagem agroflorestal
em paisagem agrícola eliminou as espécies de plantas e animais que
acompanhavam o café sob sombra (Perfecto et al., 1996).
Em todo o mundo, é possível distinguir cinco sistemas de produção
de café, segundo o grau de transformação do ecossistema original e seus
impactos ambientais (Moguel; Toledo, 1999): dois tipos de cafezais sob
sombra, que mantêm o dossel original de árvores da selva ou floresta;
dois tipos de cafezais cultivados sob a sombra de árvores introduzidas;
e um sistema cultivado a pleno sol (Figura 38). Os dois primeiros
são considerados de natureza tradicional, enquanto os dois últimos
são classificados como modernos. Esses sistemas são identificados de
acordo com um gradiente que vai de um mínimo a um máximo de
manipulação e/ou transformação, especialização produtiva e uso de
insumos externos.
À medida que se intensifica artificialmente o uso do solo e se
transforma radicalmente sua vocação, alguns fatores ecológicos, como
a diversidade biológica, a capacidade do ecossistema florestal de reter
solo, água, nutrientes, CO2, assim como a própria complexidade do
ecossistema, são reduzidos consideravelmente, o que também altera
significativamente os diferentes processos físicos, químicos e biológicos
inerentes ao sistema ecológico que os originou. Pelo exposto, observa-
-se a existência de um gradiente de cinco principais modalidades de
produção de café que vai desde os dois sistemas tradicionais, com
sombra diversificada e árvores da vegetação original; um sistema de
policultivo comercial, com árvores introduzidas; e, finalmente, dois
sistemas especializados: com sombra de uma única espécie ou a pleno
sol (Figura 38).

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A memór i a biocu lt ur a l

Figura 38: As cinco modalidades de produção do café

Fonte: Moguel; Toledo (1999)

Coffea arabica é a principal espécie cultivada no México. Para crescer


e produzir, demanda duas variáveis: condições climatológicas apropriadas
– entre 600 e 1.200 m de altitude e de 1.500 a 2.500 mm de precipitação

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

média anual, sem geadas ou secas prolongadas – e um hábitat ombrófilo,


ou seja, precisa da sombra de numerosas árvores. Por essa razão, assim
como aconteceu nos demais países latino-americanos, com exceção do
Brasil, a produção de café no México foi feita, durante quase dois séculos
(1790-1970), em sistemas agroflorestais de sombra, quer dizer, intercalando
as matas do café em florestas mais ou menos modificadas.
No México, o café é cultivado nas vertentes do Golfo do México e
do Pacífico do centro e do sul do país, a uma altitude que varia entre 300
e 1.800 metros acima do nível do mar, principalmente nas encostas ou
pendentes das montanhas e dentro de um cinturão altitudinal, biogeo-
gráfico e ecológico estratégico, no qual elementos temperados e tropicais
se sobrepõem e onde os quatro principais tipos de vegetação arbórea se
encontram: as florestas baixas, as selvas altas e médias, o bosque mesófilo
e os bosques de pinheiro-carvalho (Moguel; Toledo, 1996; 1999).
Em algumas regiões cafeeiras, esse impulso modernizador não
atingiu seu propósito, considerando que 90% da produção de café
no México é realizada por produtores com menos de 5 hectares e que
cerca de 70% está em estabelecimentos que medem não mais do que 2
hectares, pertencentes a 32 povos indígenas (Moguel; Toledo, 1996). Os
cafezais que estão sob sombra diversificada configuram, na realidade,
sistemas em que, além do café, as famílias cultivam, manejam, toleram
ou protegem uma grande variedade de espécies úteis. Como resultado,
estima-se que, no México, 25% a 35% dos estabelecimentos produzem
café em sistemas especializados de sombra, e apenas 10% a pleno sol.
Ou seja, a maior parte da produção do café, dois terços, ainda é gerada
nos sistemas tradicionais (rústico e de policultivo).
O cultivo do café sombreado, ao manter a cobertura florestal em
áreas de encostas, contribui para evitar a erosão dos solos, capta água e
preserva mananciais, rios e córregos. Além disso, ajuda no sequestro de
CO2 e, finalmente, atua como uma área de reserva da biodiversidade,
especialmente de plantas e aves (residentes e migratórias).

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A memór i a biocu lt ur a l

Hoje, em um número crescente de lares do mundo industrializado


(principalmente nos EUA, na Europa e no Japão), tomar café de sombra
produzido sob uma modalidade orgânica ou ecológica é uma expressão
de consumo consciente e exercício da cidadania. Boa parte desse café
especialmente produzido vem de remotas áreas montanhosas das re­
giões tropicais do México e da América Central. De todos os produtos
orgânicos cultivados na América Latina, o café se apresenta como o
mais importante em termos de superfície e volumes de produção, sendo
o México o maior produtor e exportador do mundo, e com o maior
número de produtores orgânicos.
No México, assim como no resto do mundo, a agricultura orgânica
tem apresentado um crescimento inusitado, sendo que 80% desse tipo
de agricultura pode ser atribuída a pequenos produtores de café de
regiões ou comunidades indígenas. Em outras palavras, no México,
a transição agroecológica da produção agrícola tem como seus prin-
cipais atores os povos indígenas. Quase sem exceção, o café orgânico
do México é produzido em sistemas agroflorestais, isto é, as matas
de café fazem parte de conjuntos de vegetação sob manejo humano.
Dois exemplos dessas formas de produzir café sombreado são o
te’ lom, dos indígenas Huasteca, e o kuajtokiloyan, do povo Nahua
da Sierra Norte de Puebla. Em ambos os casos, tudo indica que esses
sistemas agroflorestais já existiam antes da introdução do café no
México. De fato, considerando que uma espécie fundamental na vida
mesoamericana foi o cacau – que, da mesma forma que o café, requer
árvores que ofereçam sombra –, é muito provável que as plantações
de cacau mesoamericanas, ainda presentes nos estados de Tabasco e
Chiapas, tenham sido antecessoras dos atuais sistemas indígenas de
café sombreado.
No caso do te’ lom, as comunidades Huasteca manejam mais
de 300 espécies (Alcorn, 1988), enquanto os Nahua manipulam no
kuojtakiloyan­(bosque útil ou produtivo, na língua local) de 200 a 300

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espécies de plantas. Um estudo sobre a flora útil do sistema Nahua


revelou que, em propriedades de aproximadamente um hectare, as
famílias indígenas manejam de 50 a 150 espécies de plantas, utiliza-
das tanto para a subsistência familiar e venda nos mercados locais e
regionais quanto para a sua comercialização nos mercados nacional e
internacional (Moguel; Toledo, 2004 – Figura 39).

Figura 39: Produtos obtidos de um cafezal sombreado (ou kuojtakiloyan) pelas


comunidades Nahua da Sierra Norte de Puebla, México

Fonte: Moguel e Toledo (2003)

A agricultura nas dunas costeiras dos Huave de Oaxaca, México


O povo Huave vive em San Mateo del Mar, município indígena do
sul do estado de Oaxaca. Com uma população de apenas 17.500 pessoas­,
esse povo indígena se concentra em um hábitat muito especial: uma
faixa litoral entre duas lagoas costeiras: o Mar Superior e o Mar Inferior.

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As depressões do terreno sujeitas a inundações estacionais durante


a temporada de chuvas são chamadas localmente de bajiales. As colinas
e as dunas costeiras constituem as principais elevações, sendo cortadas
por riachos e rios permanentes que vêm das serras circunvizinhas. A
ação dos ventos modela a paisagem local, principalmente durante o
inverno seco, e, portanto, muitos habitantes locais consideram que
a erosão eólica afeta as suas atividades produtivas (Signorini, 1979;
Zizumbo; Colunga, 1982).
As condições climáticas locais se caracterizam por uma marcante
divisão em duas grandes estações: a estação seca, que ocorre durante
o outono, o inverno e termina na primavera, e a estação de chuvas,
durante o verão. A temperatura média anual é superior a 25o C, e a
precipitação é muito variável e imprevisível, com menos de 900 mm
ao ano. A falta de regularidade das chuvas, os solos pouco férteis e as
inundações estacionais são as principais limitações ambientais para o
desenvolvimento das atividades agrícolas. Sendo assim, as estratégias
de subsistência dos Huave têm se baseado historicamente na pesca e na
coleta de camarões, embora as atividades agrícolas tenham adquirido
importância nas últimas décadas.
Os Huave desenvolveram duas estratégias para fazer frente às incer-
tezas e limitações de seu meio ambiente peculiar. Em primeiro lugar,
a população local ainda mantém uma percepção sacralizada e uma
profunda compreensão dos fenômenos naturais, as quais têm origem
em sua cosmovisão pré-hispânica, mas que hoje também é moldada
por elementos sincréticos do catolicismo popular. Os mitos e rituais
estão intimamente vinculados ao vento, à chuva, à água do mar, aos
trovões e às nuvens, já que são esses os principais fatores e fenômenos
naturais que influem na vida cotidiana e nos seres sobrenaturais capazes
de oferecer conforto ou gerar mal-estar (Signorini, 1979).
A possibilidade de prever o comportamento desses fenômenos
mostra-se fundamental para as estratégias de subsistência dos Huave,

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

considerando que, ao se fazer uma avaliação detalhada das condições


meteorológicas locais, é possível prevenir certos riscos naturais e equi-
librar a relação com os seres sobrenaturais (Lupo, 1981). Em segundo
lugar, os Huave desenvolveram um sofisticado conhecimento sobre
os solos que lhes permitiu estabelecer um diversificado sistema agrí-
cola baseado em diversos policultivos centrados no milho (Zizumbo;
Colunga, 1982).
Os Huave detêm um profundo conhecimento sobre o solo nas esca-
las meso e micro. As características do solo são avaliadas com base em
sua fertilidade e produtividade. O fator-chave para que os produtores
estabeleçam suas estratégias produtivas se fundamenta na compreensão
dos vínculos existentes entre a produtividade do solo, o relevo, a erosão
e a vegetação herbácea. Esses quatro fatores são avaliados in situ para
a tomada de decisão sobre o uso da terra (Figura 40).

Figura 40: Principais unidades de manejo (agro-hábitats)


dos Huave de Oaxaca, México

Fonte: Zizumbo e Colunga (1982)

A taxonomia Huave dos solos é complexa e detalhada. Os solos


(iet) são inicialmente subdivididos quanto a sua aptidão agrícola e
não agrícola. Não é de estranhar então que os solos do tipo agrícola

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se dividam em mais subclasses que os não agrícolas. Existem 11


taxa de solos organizados hierarquicamente segundo sua textura,
grau de sensibilidade à erosão eólica, capacidade de retenção da
umidade, condições de drenagem, estrutura, cor, consistência e
pedregosidade. Esses critérios taxonômicos estão intimamente
correlacionados àqueles empregados pela FAO/Unesco/Detenal
(1970). De fato, a classificação local é ligeiramente mais detalhada
e precisa que a técnica.
Os agricultores Huave não fazem distinção estrita entre o solo e
a terra, já que suas taxonomias se referem tanto aos solos quanto ao
recurso terra, o que evidencia uma percepção multidimensional da
paisagem, uma classificação edafológica e uma conceituação polivalente
de tais recursos. Os Huave elaboraram uma detalhada avaliação do
uso das terras tomando como critério principal a localização do solo
no relevo. O relevo é classificado em quatro tipos, de acordo com a
elevação, o grau do declive e as suas formas: baixio, terra baixa, pen-
dente e terra alta (Figura 40).
De acordo com o conhecimento local, é possível modelar o relevo
a fim de controlar a drenagem do solo e, assim, diminuir a suscetibili-
dade à erosão, visando aumentar o rendimento dos cultivos. A relação
solo-relevo é fundamental para a classificação das terras agrícolas.
Essa classificação reconhece 11 classes de solos dentre os quatro tipos
de relevo, dando lugar à identificação de 18 agro-hábitats. A Figura
40 mostra a distribuição dos tipos de solo ao longo de um transecto
representativo de um quilômetro de distância. A caracterização dos
solos segundo a sua posição no relevo demonstra o grau de detalhe
reconhecido pelos Huave para a avaliação de suas terras com fins
agrícolas (Quadro 10).

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Quadro 10: Cultivos e associações de cultivos selecionados para cada um dos


agro-hábitats pelos Huave de Oaxaca, México

Agro- Associações com milho Associações com outras


Monocultivos
hábitat (qualquer combinação) espécies
Milho, batata Milho-Batata Doce/ Millho-
W1, NK1 Gergelim-melancia-melão
doce feijão-melancia-melão
Milho-feijão-melancia-
W3 Milho –
abóbora-melão
Milho-feijão-melancia-
W2 – –
abóbora-melão
NK4 Milho, gergelim Milho-feijão-abóbora –
NK5, NK2,
Milho Milho-feijão-abóbora –
R2
Batata-doce,
NP1 Milho-feijão-melancia-melão –
gergelim
NP2 Gergelim Milho-melancia-melão –
Milho-feijão-abóbora-
NP4 Gergelim –
melancia
NP5, NP6 Gergelim Milho-feijão-abóbora –
Feijão-melancia-melão-
Milho, gergelim, Milho-feijão-melancia- feijão-melancia
R1 batata doce, abóbora-melão/Milho-batata
melancia, feijão doce Gergelim-Milho/
gergelim-melancia
Feijão-melancia
Milho, gergelim, Milho-melancia-melão/ Feijão-abóbora-melancia
R2
feijão Milho-feijão/Milho-abóbora
Milho, gergelim, Gergelim-melancia-
R4, R5, R6 Milho-feijão-abóbora
melancia, abóbora abóbora
Fonte: Zizumbo e Colunga (1982).

(W) Os wüiek são as terras dos baixios, côncavos, periodicamente


inundados e com uma capacidade variável de retenção de umidade confor-
me a microtopografia. Essas unidades são menos propensas aos processos
de erosão eólica e recebem sedimentos que favorecem o desenvolvimento
de plantas herbáceas. Podemos identificar três classes diferentes de terrenos
arenosos. A posição dos solos no relevo permite que os agricultores Huave
reconheçam a capacidade de retenção da umidade no solo, sua dureza e
propensão a rachaduras durante a estação seca, sua suscetibilidade à erosão
eólica e à produção de plantas herbáceas. Assim, podemos dizer que W3, W1
e W2 são solos arenosos cuja escala vai de maior a menor aptidão agrícola.

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(R) Os rondon iet são as terras nas pendentes, moderadamente


inclinadas e periodicamente inundadas nas suas partes mais baixas;
apresentam um gradiente em relação à capacidade de retenção da umi-
dade que descende da parte baixa até a superior do relevo. A formação
de plantas herbáceas não é muito favorecida nesses solos. Os rondon
iet são considerados mais suscetíveis à erosão eólica que os wüiek. Os
solos R1, R 2 e R6 têm menos capacidade de retenção da umidade que
os R4 e R7. Os solos R4 são bons para fins agrícolas. Os solos R7 têm
baixa aptidão agrícola devido à sua dureza e à formação de rachaduras
durante a estação seca.
(NK) Os nagmiek iet, ou terras baixas, são suscetíveis a inunda-
ções periódicas, dependendo de sua elevação por cima dos baixios.
Essas terras estão suavemente inclinadas e apresentam um gradiente
bem estabelecido em relação à sua capacidade de retenção da umida-
de. Os solos NK1, NK4, NK5 e NK7 são ordenados em um gradiente
que vai de uma baixa a uma alta capacidade de retenção da umidade
e de um baixo a um alto desenvolvimento de plantas herbáceas,
respectivamente. Os solos NK5 são considerados os mais suscetíveis
à erosão eólica, enquanto os NK7 são os mais duros ou compactos
durante a época seca.
(NP) Os nagtep iet, ou terras altas, não estão sujeitas a inundações
periódicas, mas apresentam uma drenagem excessiva. Os solos NP4 são
considerados os mais aptos para as atividades agrícolas pela sua grande
capacidade de retenção de umidade, por favorecer o desenvolvimento
de plantas herbáceas e, portanto, por apresentar uma baixa suscetibili-
dade à erosão eólica. Os solos NP1 e NP5 são aptos para a agricultura,
embora o NP5 seja um pouco suscetível à erosão pelo vento devido a
sua estrutura solta. Os solos NP2 e NP6 estão classificados como os
menos aptos para fins agrícolas, devido a sua pouca capacidade de
retenção da umidade, sua baixa produção de plantas herbáceas e sua
alta suscetibilidade à erosão eólica.

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Os agricultores de San Mateo del Mar desenvolveram um conhe-


cimento muito consistente sobre seus solos e terras nas escalas meso e
micro, buscando assim confrontar situações adversas como a baixa ferti-
lidade dos solos e a irregularidade das chuvas (Quadro 11). A taxonomia
hierárquica e o detalhado reconhecimento das características edáficas
têm permitido que os Huave estabeleçam uma complexa estratégia de
policultivos. O caso desse povo constitui um exemplo interessante de
como a população de uma localidade reconhece as características de seus
solos marginais e tira partido de sua baixa produtividade para enfrentar
a vulnerabilidade ambiental e alimentar. Isso evidencia o contraste entre
condições ambientais limitantes e um conhecimento edafológico bem
ajustado e, por conseguinte, um bom manejo da resiliência das terras.
Quadro 11: Calendário agrícola e sua relação com os agro-hábitats entre os
Huave de Oaxaca, México (temporada de 1978)
SEMANAS
1ª inter-
1º período 2º período de CANÍCULA 3º período de
rupção das
de chuvas chuvas (calor intenso) chuvas
chuvas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22
W1
W2
W3
R1
R2
R4
AGRO-HÁBITAT

R5
R6
R7
NK1
NK4
NK5
NK7
NP1
NP2
NP4
NP5
NP6
Fonte: Zizumbo e Colunga (1982)

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O manejo do Delta do Orinoco pelos Warao da Venuezuela


Entre as zonas mais complexas do planeta estão as áreas de transição
entre as faixas aquáticas e terrestres e, especialmente, as costeiras. O
povo Warao, habitante do Delta do Rio Orinoco, na Venezuela, possui
um conhecimento muito refinado de seu entorno natural, o que lhe tem
permitido sobreviver em um ecossistema muito especial há pelo menos
7 mil anos (Wilbert, 1995). Os estudos etnoecológicos realizados sobre
esse povo, que na atualidade chega a 28 mil habitantes, distribuídos
em 250 comunidades, mostram que os membros dessa antiquíssima
cultura catalogam, classificam e organizam os elementos do entorno
físico-biológico com uma riqueza de detalhes e uma acuidade surpreen­
dentes (Wilbert, 1995; 1997).
Pressionados pela expansão de outras sociedades agrícolas, os
Warao­se refugiaram nos canais e ilhas que formam o sistema do Delta
do Orinoco. Em função desse isolamento relativo, viram-se obrigados
a inventariar seu entorno de forma minuciosa e a manter e aperfeiçoar
a sabedoria ambiental acumulada em um gênero especial de literatura
oral etiológica*. Suas experiências no manejo dos recursos dessa área de
transição foram se articulando ao longo do tempo, gerando um elabo-
rado sistema de classificação que configura uma sabedoria ambiental
com grande valor para a adaptação e sobrevivência.
Essa relação com seu entorno os levou a acumular um enorme cor-
pus de conhecimento ecológico, que, transmitido de geração a geração,
permitiu-lhes sobreviver durante milhares de anos. Por se tratar de uma
cultura ágrafa, essa sabedoria tão complexa não teria sido transmitida
e conservada se não tivesse um valor estratégico para a sobrevivência.
Sem entrar nos detalhes de cada sistema de classificação, pode-se chegar
à conclusão de que esses sistemas costumam ser bastante coerentes e

* A literatura oral etiológica é aquela que se funda nos mitos de origem cujos
protagonistas são heróis fundadores da ordem da vida. (N. E.)

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muito semelhantes com as classificações científicas ou ocidentais. Em


alguns casos, a nomenclatura ocidental é mais elaborada, mas em
outros ocorre justamente o contrário.
Os Warao fazem uso de cadeias semânticas formadas por uma raiz, a
qual pode ser modificada por um ou mais qualificativos, tal como no sistema
de classificação binomial ocidental. Os elementos que formam essas cadeias
estão classificados como lexemas* produtivos ou lexemas não produtivos. A
nomenclatura resultante pode ser organizada em graus de complexidade e
origem linguística, o que nos permite estabelecer as seguintes quatro cate-
gorias: termos únicos; cadeias semânticas produtivas; cadeias semânticas
não produtivas; e empréstimos linguísticos da língua espanhola.
Os Warao utilizam diversos critérios para organizar seu ambiente
ecogeográfico, fazendo distinção entre vários tipos de solos, relevos, flora e
fauna, além de conhecer as dinâmicas da complexa hidrologia regional. A
percepção do mundo abiótico está centrada nos conceitos e terminologias
relacionados ao relevo, à geologia e à hidrologia; enquanto a do mundo vivo
dá maior ênfase à classificação da vegetação, das plantas e dos animais.
Em um primeiro nível, os Warao distinguem até 15 unidades geo-
gráficas. Também reconhecem sete tipos de corpos d’água, agrupados
em quatro ordens. O mesmo esquema caracteriza ainda um corpo
d’água de acordo com seu tamanho físico, suas fontes principais de
água, a qualidade da água e certas características hidrodinâmicas.
Com relação à topografia, os Warao diferenciam a terra firme do alto
delta das zonas úmidas do médio baixo e do baixo delta. As forma-
ções topográficas básicas são: a área de inundação, o albardão** (limite
máximo das águas fluviais durante a Lua crescente) e o pasto nativo.
No substrato, reconhecem três classes de sedimentos: areia (wa), silte

* Lexema: parte de uma palavra que constitui a unidade mínima com significado
lexical. (N. E.)
** Albardão: lombada ou elevação situada em baixios ou terrenos alagadiços. (N. E.)

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e argila (hokoroko). Também utilizam diversos qualificativos para


especificar diferentes tipos de sedimentos, agrupados de acordo com
sua textura, estrutura, cor e odor (Figura 41).

Figura 41: Hidrologia e unidades topográficas reconhecidas pelos Warao da Venezuela

Fonte: Wilbert (1995)

A classificação Warao do mundo vivo, menciona uma categoria que


compreende o conceito de reino vegetal (arao e arau). O Warao atribui
uma qualidade humana (alma) a tudo o que é biológico e considera
cinco aspectos botânicos principais: morfotipos, formas botânicas,
zonas botânicas, conformação botânica, botânica das áreas/zonas
botânicas e o fefil vertical do bosque (Figura 42).

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Figura 42: Principais unidades de vegetação reconhecidas pelos Warao da Venezuela

Fonte: Wilbert (1995)

As plantas estão definidas basicamente pelas características ana-


tômicas (folhas, flores, frutos, raízes, caules e seiva ou resina). Em
relação à classificação faunística, nota-se que a primeira diferenciação
se fundamenta no tipo de hábitat: terrestre ou aquático. Posteriormente,
cada animal terrestre é classificado em função do local onde dorme,
enquanto os animais aquáticos são distribuídos de acordo com os locais
que habitam. Finalmente, a chave faunística dos Warao classifica todos
os invertebrados e vertebrados, incluindo o homem (arautuma ahobahi).
Partindo de todos esses conhecimentos, os Warao utilizam os recur-
sos em um ambiente altamente dinâmico do ponto de vista hidrológico,
pois as águas sobem e descem até nove metros durante os diferentes
períodos do ano. Tradicionalmente, esse povo tem sustentado sua eco-
nomia nas atividades de pesca, captura da fauna litoral (caranguejos)
e aproveitamento de diversos produtos das palmeiras e do solo, sendo
que apenas recentemente tem iniciado atividades agrícolas (Figura 43).

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Figura 43: A percepção Warao do seu entorno ambiental é resultado da soma e da síntese
dos conhecimentos topográficos, hidrológicos, pedológicos, da vegetação e da fauna

Fonte: Wilbert (1995)

Os arrozais inundados do sul e do sudeste da Ásia


O cultivo do arroz começou simultaneamente em vários países
há mais de 6 mil anos. Duas espécies de arroz foram domesticadas, o
arroz asiático (Oryza sativa) e o africano (Oryza glaberrima). Sabe-se
que o arroz silvestre (Oryza rufi pogon) foi o ancestral selvagem do ar-
roz asiático. A espécie O. sativa aparece originalmente nas montanhas
do Himalaia, enquanto a O. Sativa var. indica na Índia; e a O. sativa
var. japonica na China. O arroz africano é cultivado há 3.500 anos,
sendo que entre 1.500 AP e 800 AP espalhou-se a partir de seu centro
original, o Delta do rio Níger, até chegar ao Senegal.
O arroz é um dos principais cultivos do mundo, e os sistemas
de cultivo de arroz inundado representam 15% do total da área
cultivada do planeta. Os terraços de arroz (paddy rice) são a forma
predominante de produção de arroz no mundo e consistem em
parcelas inundadas onde se cultivam, além do cereal, outras plantas

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semiaquáticas. Embora na atualidade esteja bastante disseminado


na maioria dos países do sul e do sudeste da Ásia (China, Indonésia,
Filipinas, Coreia, Vietnã, Tailândia, Índia, Japão, entre outros), esse
sistema começou como uma prática tradicional realizada em zonas
íngremes por meio de terraços.
Hoje, o cultivo de arroz em campos inundados tem consequências
adversas para o meio ambiente devido às grandes quantidades de me-
tano que gera. Estima-se que os arrozais no mundo produzam entre
50 e 100 milhões de toneladas de metano por ano, o que representa
10% da emissão desse gás à atmosfera do planeta.
As plantações de arroz exigem enormes quantidades de água, por
isso os arrozais costumam ser construídos perto de corpos hídricos,
tais como rios, pântanos e, menos frequentemente, em encostas escar-
padas, que demandam muito mais trabalho manual e materiais para
construção. Em sua forma tradicional, esse sistema é acompanhado
pelo búfalo-asiático, também conhecido como búfalo-da-água, que é
a espécie domesticada para realizar adequadamente tarefas ligadas ao
manejo agrícola.
Embora haja um consenso entre os arqueólogos de que a origem do
arroz cultivado em campos inundados seja a China, os registros mais
antigos encontram-se na Coreia, com data estimada entre 3 mil e 4
mil anos. Outros registros de mais de mil anos podem ser encontrados
em países como China, Japão e Vietnã.
Os terraços inundados de arroz são obras-primas da engenharia
tradicional em termos de manejo do terreno, dos solos e da água. Essas
construções atingem a sua máxima expressão no sul da China e da
Coreia, em Java e Bali, na Indonésia, e na região da Ilha de Luzon,
no norte das Filipinas, onde têm sido reconhecidas como patrimônio
internacional da humanidade pela Unesco. Os terraços de Luzon são
conhecidos localmente como Banaue e são uma criação do povo Ifugao,
cuja origem remonta a 2 mil anos.

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A memór i a biocu lt ur a l

Os Ifugao se caracterizam por serem habilidosos construtores de ter-


raços inundados, além de deterem profundos conhecimentos hidráulicos,
geológicos, edafológicos e agronômicos, que lhes têm permitido construir
e manter esses sistemas durante séculos (Conklin, 1980). A criação de
terraços envolve o manejo e o desvio da água, a construção de canais e
o transporte de pedra e terra, tudo feito com trabalho manual, além de
formas de fertilização orgânica por meio da combinação de diferentes
resíduos (Figura 44). Para os Ifugao, os arrozais fazem parte de um sis-
tema diversificado que inclui ainda o manejo agroflorestal das florestas
e a produção de tubérculos em sistemas de roça, derruba e queima.

Figura 44: Estrutura e componentes de um campo de arroz inundado


entre os Ifugao das Filipinas

h)segunda fileira de pedras (àldoh)


i) muro de contenção (topeng)
j) dique (banong)
a) água (lobong) k)fonte de água subterrânea (‘ahbubul)
b) solo do tanque acondicionado (luyo’) l) canal de drenagem (ànul)
c) camada de terra dura (haguntal) m) dreno (guheng)
d)camada de cascalho (agog) n) lindeiros (pumpudungan)
e)camada grossa, pedras pequenas (gangal) o) verduras (inado)
f) rochamatriz (dolah ou luta) p) tanque de peixes (tau)
g)fundação rochosa (gopnad) q) superfície do tanque (bawang)

Fonte: Conklin (1980)

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Em outros países, como China, Japão, Tailândia e Vietnã, os


produtores tradicionais de arroz realizam as suas atividades princi-
palmente nas margens dos rios e de outros corpos d’água. Na China,
os campos de arroz sobre zonas planas se localizam nas margens de
rios e lagos. No sul da China, os arrozais inundados cobrem uma
enorme área calculada em 280.000 km 2 (Xiao et al., 2005). No
Vietnã­, os arrozais inundados estão localizados ao longo do Delta dos
rios Vermelho (ao norte) e Mekong (ao sul), onde os produtores têm
que usar diferentes técnicas para controlar as frequentes inundações.
Os sistemas de campos de arroz inundados constituem a máxima
representação de uma agricultura tradicional intensiva e são a expressão
de um sofisticado sistema de adaptação da paisagem às necessidades
humanas, incluindo espécies domesticadas (o arroz e o búfalo) espe-
cialmente adaptadas para esses sistemas (Mc Nettig, 1993, p. 41).

A agricultura de enxurrada nos desertos da América do Norte:


Pápago e Zuni
Nas zonas áridas e semiáridas da América do Norte, onde a pouca
quantidade de chuvas anuais não permite realizar uma agricultura de
sequeiro e o desenvolvimento tecnológico não é suficiente para extrair
água do subsolo, as culturas tradicionais do sudoeste dos Estados Unidos
e do norte do México criaram um sistema de agricultura baseado no
aproveitamento das torrentes geradas durante as tempestades de chuva,
que costumam ser rápidas e esporádicas. Aproveitando a inclinação, essas
águas geradas nas partes altas das bacias são controladas, conduzidas e/
ou captadas por meio da modificação do terreno e da manipulação dos
solos e da vegetação. Dessa forma, tira-se vantagem das bordas dos vales
intermontanos, onde o movimento da água e da matéria orgânica deixa
áreas de acumulação com solos muito ricos em nutrientes.
Esse tipo de agricultura tem sido documentado em vários grupos
culturais das regiões áridas da África, da Ásia Central, do Oriente Médio

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e do continente Americano (Altieri; Toledo, 2005). Na América do Norte,


essa modalidade agrícola pode ser encontrada entre os povos contempo-
râneos Navajo, Hopi, Cahuilla, Diegueño, Pápago e Zuni, mas existem
numerosos registros arqueológicos de seu uso na antiguidade não só no
sudoeste dos Estados Unidos e no noroeste do México, mas também
entre os povos do deserto de Tehuacán, região central do México.
A agricultura de enxurrada se torna possível por meio de duas ações:
o manejo hidrostático do ambiente físico e a manipulação das massas
de vegetação e de certas espécies vegetais. No primeiro caso, trata-se de
aproveitar o escorrimento superficial que desce pelos riachos, por meio
da construção de barragens ou cortinas em locais estratégicos, e canalizar
o fluxo para locais onde é possível estabelecer parcelas agrícolas. Para
tanto, é preciso ter conhecimentos sobre a topografia, a periodicidade e
a intensidade das chuvas, bem como sobre a quantidade de chuva que se
transforma em escorrimento (o que é consequência da permeabilidade
dos solos e da cobertura vegetal) e a velocidade e o volume do fluxo de
água, que depende do tamanho da bacia e da inclinação.
No segundo caso, a ação humana modifica a cobertura da vegetação
ao cultivar determinadas espécies e ao induzir, mediante a sua manipu-
lação, o crescimento de certas espécies silvestres. Em ambos os casos,
dá-se preferência a espécies anuais efêmeras com ciclos de vida muito
curtos ou a plantas perenes que consigam resistir à extrema aridez.
No caso dos Pápago, que habitam a fronteira do México com os
Estados Unidos (estados de Sonora e Arizona) em áreas onde chove entre
150 e 350 mm ao ano, a presença de montanhas permite o aproveitamento
da água procedente das porções altas e inclinadas para regar pequenos
campos agrícolas localizados nas planícies (Nabhan, 1979; Nabhan et
al., 1980). Essa modalidade agrícola de caráter tradicional permite obter
alimentos em áreas onde a extrema aridez praticamente inviabiliza a
agricultura (Figura 45). Nessas regiões, o número de chuvas torrenciais
costuma oscilar entre três e 15 ao ano, sendo que somente cinco ou seis

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são suficientemente fortes para fornecer água para as parcelas agrícolas.


No Arizona, as tempestades de chuva são responsáveis por 40% a 60%
da quantidade de água que se precipita anualmente, e somente 15% se
converte em água de escoamento a ser captada.

Figura 45: Potencial agrícola do sudoeste dos Estados Unidos e do noroeste do México

As áreas mais escuras representam zonas onde


é viável realizar uma agricultura de sequeiro.
As zonas cinzentas sinalizam campos onde a
agricultura de sequeiro é muito pouco possí-
vel. Já as áreas brancas indicam onde é impos-
sível a prática da agricultura. Os pontos repre-
sentam locais em que os Pápago realizam uma
agricultura de enxurrada.

Fonte: Nabhan (1979)

Os Pápago utilizam esse sistema de agricultura para produzir ali-


mentos a partir de espécies com ciclos de vida curtos que conseguem
resistir à aguda escassez de água. Entre as plantas cultivadas, destacam-se
o feijão tepari (Phaseolus acutifolius), o amaranto, o sorgo e uma raça de
milho de crescimento muito rápido. Embora essa modalidade agrícola
fosse bastante disseminada na Antiguidade –, e certamente foi crucial
para a sobrevivência dessa cultura indígena –, em 1980 restava somente
10% dos 4 mil hectares que existiam em 1913 (Nabhan et al., 1980).
O povo Zuni, por sua vez, que habita o altiplano do Colorado, pratica
essa modalidade de agricultura há pelo menos mil anos. Diferentemente
dos Pápago, os Zuni se beneficiam de toda uma gama de atividades que
incluem outras formas de agricultura: hortas, produção de pêssegos em
dunas e agricultura de irrigação. Seu principal cultivo é o milho, e eles
estabelecem suas parcelas nas áreas de maior umidade (com chuvas entre

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300 e 400 mm por ano) e livres de geadas, sobre as bordas dos vales,
onde podem aproveitar a água que desce das montanhas.
A vegetação predominante é de bosques abertos de pinheiros-
-mansos e juniperus (uma conífera) nas encostas das elevações e
nas matas nos vales intermontanos. O movimento da água carrega
sedimentos e matéria orgânica (principalmente carbono orgânico,
nitrogênio e fósforo) até os campos de cultivo, um fenômeno que é
conhecido pelos agricultores locais (Sandors et al., 2006). As enxur-
radas fortes, apesar dos benefícios que trazem para os solos, podem
danificar os cultivos.
O conhecimento Zuni sobre os solos inclui 12 principais termos,
cada um incorporando não somente propriedades físicas e quími-
cas dos materiais, mas também conhecimentos sobre os processos
ecológicos e geomorfológicos aos quais estão relacionados. Esse
povo também detém saberes sobre o transporte e a acumulação de
sedimentos e sobre os tempos, a direção e os volumes dos fluxos de
água (Sandors et al., 2006).

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V I. GLOBA LIZ AÇ ÃO, MEMÓR I A
BIOCULTUR A L E AGROECOLOGI A

A produção de diversidade
Como foi mostrado nos primeiros capítulos desta obra, a maior
parte da história humana (as eras paleolítica e neolítica, antes do ad-
vento da modernidade) pode ser considerada, no geral, uma história
de permanente produção de diversidade, uma ação que, como vimos,
imitou um processo natural de vários milhões de anos. Dito de outra
forma, o desenvolvimento da civilização humana baseou-se no reco-
nhecimento, no aproveitamento e na criação de diversidade, o que
pode ser interpretado como uma maneira de atuar em sintonia, e não
em conflito, com as leis naturais.
Cumpre salientar que a produção de diversidade é mediada pela
ação criativa e imaginativa (Shiva, 1997). A criatividade é um processo
social que cria algo novo ou que transforma algo conhecido em um
novo objeto ou recurso. De certa forma, a criatividade significa produzir
algo original (novo, inusual, inesperado) e valioso (bom, adaptado,
apropriado) (Ochese, 1990; Remmers, 1998).
A valoração da produção criativa é feita levando em conta as múlti-
plas realidades culturais e cognitivas conforme diversos critérios. Nem
tudo o que uma cultura percebe como original tem a mesma conotação
para outras. No entanto, a produção de diversidade pode ser conside-

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

rada um mecanismo geral do fenômeno humano na medida em que


reflete um processo universal de caráter natural (Barrera-Bassols, 2003).
A transformação é um atributo implícito da diversidade, e a geração
de diversidade produz, de forma mais ou menos estável, configurações
imprevisíveis e em constante transformação (Remmers, 1998). Como
uma produção social e uma ação transformativa e reprodutiva (sempre
dinâmica e substituível), a diversidade é criada através da imaginação
(como um plano de jogo e ação contextual) e da criatividade dos atores
(como trabalho). Na produção e reprodução da diversidade está tam-
bém incluída a produção da experiência. Como consequência, a perda
de diversidade significa a extinção da experiência biológica e cultural,
implica a erosão do ato de descobrir e a redução da criatividade. A
memória biocultural representa, para a espécie humana, uma expres-
são da diversidade alcançada e assume um enorme valor para a plena
compreensão do presente e a configuração de um futuro alternativo
construído sob os impulsos e inércias atuais.

Globalização e diversidade
A era industrial, iniciada há mais de dois séculos, atingiu seu ponto
máximo nos dias de hoje com a chamada globalização. A globalização
é um processo essencialmente econômico, que amplia e aprofunda as
inter-relações e interdependências das sociedades e dos Estados em
todo o mundo a uma velocidade cada vez maior (Jarblad, 2003). Essa
crescente expansão se refere à abrangência geográfica das interdepen-
dências, enquanto o aprofundamento diz respeito ao aumento na
intensidade e na frequência das interações. O processo de globalização
tem como eixo orientador as sinergias desencadeadas pelas interações
de três regiões estratégicas: América do Norte, Europa e Leste Asiático.
Esse é o motor da globalização, que está dominado por três tendências
gerais: a uniformização das estruturas financeiras e tecnológicas e dos
consumidores; a sintonização e sincronização dos processos econômicos

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A memór i a biocu lt ur a l

e da política estrutural (liberalização, privatização e desregulação); e


a crescente importância do comércio, do investimento e da tecnologia
(Jarblad, 2003).
A civilização industrial atingiu uma dimensão planetária, sendo
que os principais agentes da globalização são as corporações ou em-
presas de caráter transnacional, as quais representam uma etapa do
capitalismo de escala global. Esse poder econômico descomunal incide
em todos os aspectos da vida humana e tem como motores principais
(ou sua profana trindade) o mercado, a ciência e a tecnologia.
Por ser um processo fundamentalmente homogeneizador, a glo-
balização tem consequências imediatas nos planos político, social,
cultural, informático, educativo, ecológico e biológico. Assim, o pro-
cesso de globalização, liderado pelas corporações e pelas políticas de
liberalização econômica, é um fator que ameaça cada vez mais toda a
expressão de diversidade, heterogeneidade e variedade, especialmente
a biocultural. Em outras palavras, a globalização é um fenômeno que
atenta contra a memória da espécie humana.

A diversidade biocultural ameaçada: a erosão da memória


O mundo contemporâneo se encontra no fundo de uma severa crise
de diversidade natural e cultural. Ambas as diversidades estão ameaçadas
pelas mesmas causas: as tendências de progresso e modernização sob o
modelo de desenvolvimento fundamentado em princípios como os da
competição, da especialização, da hegemonia e da uniformidade. Tendo
como referência os paradigmas da racionalidade econômica e tecnológi-
ca que dominam o processo de globalização, a diversidade é percebida
como um problema. Como aponta Ehrenfeld (2002): “Perdemos nossa
capacidade de nos fascinar com o específico para admirar o geral e as
leis científicas derivadas dele. Esta é a Era da Generalidade, e, a cada
mês que passa, a vejo mais firmemente arraigada como a forma oficial
de ver o mundo.”

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

Ao destruir a diversidade biológica silvestre, a variedade genética


das espécies domesticadas de plantas e animais, as milhares de cul-
turas identificadas pelos genes ou pela língua e, consequentemente, a
experiência acumulada em forma de sabedorias locais ou tradicionais, a
civilização industrial está acabando com os principais componentes do
complexo biocultural da espécie humana. À medida que esse processo
de destruição avança, com a expansão dos mecanismos da moderni-
zação industrial, a espécie humana agrava lenta e inexoravelmente a
sua amnésia quando suprime áreas ou setores-chave de sua própria
memória, de sua consciência histórica.
Com exceção de alguns eventos de extinção em massa registrados
na história geológica, a proporção de criação de uma nova espécie
normalmente excede as taxas de extinção. Isso porque, o número de
espécies na Terra, parece apresentar uma pequena, porém constante
taxa de crescimento ao longo do tempo (Noss; Copperrider, 1994).
Hoje, essa tendência está se revertendo. O impacto da intervenção
humana sobre o mundo vivo, que começou há 30 mil anos, aumentou
durante os últimos 500 anos e apresentou uma alarmante aceleração
nas últimas décadas. Estima-se que a extinção de espécies induzida
pela atividade humana tem uma velocidade cem vezes maior do que
aquela que ocorre em condições naturais, e essa perda, naturalmente,
não é compensada por novos processos de especiação.
As taxas atuais e futuras de extinção têm sido estimadas indireta-
mente, a partir da relação entre o tamanho de uma área e o número de
espécies existentes nela, mas os resultados são bastante contrastantes,
dependendo do modelo de simulação usado e da região ecológica ana-
lisada. Por exemplo, uma proporção de 1% ao ano de corte de árvores
representa aproximadamente 0,25% de extinção por ano conforme a
mencionada relação espécie-área (Barbault; Sastropradja, 1995). De
acordo com Wilson (1985), o atual índice de extinção é 400 vezes
maior ao registrado em tempos geológicos recentes, e essa cifra con-

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tinua aumentando. Nessas condições, a atual redução da diversidade


se aproxima à das grandes catástrofes naturais que ocorreram no final
das eras paleozoica e mesozoica, há 65 milhões de anos (Wilson, 1985).
A perda atual de biodiversidade ocasionada pela atividade humana
afeta espécies de todos os ambientes, sendo que as zonas tropicais são
mais afetadas que outras zonas climáticas. A biodiversidade das florestas
tropicais possui cerca de 50% da diversidade de espécies no mundo
(Myers, 1980). Estima-se que aproximadamente 10% das espécies
das florestas tropicais estarão extintas ou em perigo de extinção nos
próximos 20 anos.
O relatório da União Internacional para a Conservação da Natureza
(IUCN, na sigla em inglês), divulgado em setembro de 2007, relacionou
16.306 espécies em perigo de extinção, incluindo 1.094 espécies de
mamíferos, 1.217 de aves, 422 de répteis, 1.808 de anfíbios, 1.201 de
peixes, 8.447 de plantas e 2.108 de invertebrados.
Paralelamente a esses processos de extinção da biodiversidade,
acontece o desaparecimento de línguas e a diminuição da diversidade
cultural. Recentemente, os linguistas têm ressaltado as consequências
ecológicas e culturais da extinção da diversidade linguística e revelaram
as tendências atuais de desaparecimento de línguas, especialmente
aquelas consideradas endêmicas, e suas respectivas ecologias linguísticas
(Mühlhäusler, 1995; 1996; Harmon, 1996a; 1996b; Maffi, 1999), que
pode ser definida como: “as relações funcionais que ocorrem entre as
comunidades apesar das barreiras linguísticas, e que, para além do es-
paço e do tempo, abrangem tanto o ambiente social quanto o ambiente
físico, dentro de uma rede em que a realidade e sua descrição não são
consideradas como fenômenos, mas como partes correlacionadas de
um todo” (Maffi, 1998, p. 15).
Alguns autores sugerem que, em escala global, o ponto máximo da
diversidade linguística foi atingido no início do neolítico (10 mil anos
atrás) devido ao isolamento dos diferentes grupos humanos. Estima-se

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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s

que aproximadamente 12 a 14 mil idiomas foram utilizados durante


esse período pela população humana (Hill, 2001). Desde então, a
diversidade linguística vem diminuindo pela integração dos grupos
sociais, pela conquista colonial e, mais recentemente, pela expansão do
mundo urbano e industrial (imperialismo cultural). Entretanto, apesar
da aceleração dos processos de assimilação e integração culturais em
curso nos últimos 500 anos, muitas das culturas e suas línguas conse-
guiram sobreviver, inclusive em áreas densamente povoadas.
Ao longo da história, as principais ondas de expansão colonial e
imperial (tanto europeias quanto de outras civilizações) ocorreram
em detrimento das línguas ancestrais e das culturas tradicionais. Por
exemplo, a conquista europeia na América, que dizimou a população
nativa em até 90% (Denevan, 1992), extinguiu centenas de culturas; e,
segundo um estudo da diversidade, de 1.490 línguas restaram menos
de 500 (Loukotka, 1967).
Com base em diversas fontes, Lizarralde (2001) estimou que o
número de grupos indígenas da América do Sul foi reduzido em 35%
depois do contato com os europeus, e que apenas no Brasil foram
extintos 80 povos indígenas durante o século XX (Lizarralde, 2001).
Atualmente, a extinção de línguas avança a um ritmo sem prece-
dentes. As populações de menos de 100 mil habitantes, que viveram
até pouco tempo em total isolamento geográfico, falando 6 mil das 7
mil línguas vivas do mundo, são consideradas ameaçadas ou em risco
de desaparecimento (Krauss, 1992). Existem apenas 3.406 idiomas
falados por menos de 10 mil pessoas (Gordon, 2005), sendo que a
grande maioria dos idiomas do mundo se concentra em poucos países
e é considerada endêmica.
Caso sejam mantidas as tendências atuais, 90% dos idiomas do
mundo podem chegar à extinção durante o curso do século XXI
(Krauss, 1992; Maffi, 1999). Estima-se que a taxa de perda de línguas
é 500 vezes maior que a extinção de biodiversidade (Maffi, 1999). Um

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estudo realizado por Sutherland (2003) apontou que, em nível mundial,


os idiomas estão mais ameaçados que a diversidade de aves e mamíferos.
Já a principal causa da perda da diversidade agrícola, também
conhecida como erosão genética, é a disseminação dos sistemas indus-
trializados de produção na agricultura, na pecuária e nas plantações
florestais. Outros fatores que afetam de forma negativa a agrobiodi-
versidade são os altos níveis de mecanização e utilização de produtos
químicos, bem como a excessiva especialização no uso de variedades
melhoradas.
A introdução de novas variedades homogêneas tem se traduzido
na perda das variedades tradicionais utilizadas por milhares de anos.
Lamentavelmente, essa erosão genética está relacionada à perda dos
conhecimentos tradicionais. Dessa forma, a diversidade genética de
plantas e animais domésticos é massivamente substituída pelos cultivos
e raças animais de alto rendimento e, nos últimos anos, por variedades
e raças modificadas geneticamente (transgênicas).
Os casos de erosão genética relatados são impressionantes. Mais
de 75% da diversidade genética de cultivos foi perdida durante o
século passado (Pretty, 1995). A porcentagem de erosão da diver-
sidade genética ao ano é de 2%, enquanto a das raças de gado é de
aproximadamente 5% anual (Mooney, 1997). Se as tendências atuais
forem mantidas, o conhecimento tradicional dos camponeses sobre
a diversidade genética poderá se perder durante as próximas duas
gerações (Mooney, 1997).
Na China, em 1949, existiam quase 10 mil variedades de trigo.
Duas décadas depois, foram registradas apenas mil (Tuxill, 1999).
Os países andinos vêm experimentando uma erosão genética em
grande escala com as variedades locais de batata e outros cultivos
nativos. Estima-se que a Índia perdeu 30 mil variedades de arroz e
que, atualmente, produz unicamente dez variedades em 75% de suas
terras cultiváveis (Fowler; Mooney, 1990; Shiva, 1998). Os pequenos

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produtores das Filipinas cultivavam cerca de 3,5 mil variedades de


arroz antes da chegada do modelo agroindustrial (Revolução Verde).
Hoje, apenas cinco são cultivadas nos modernos sistemas de irrigação
do país (Pretty, 1995). Processos similares ocorrem na Malásia e na
Tailândia.
Fenômenos de erosão genética nos cultivos também estão aconte-
cendo nos países industrializados. Por exemplo, nos Estados Unidos,
seis variedades de milho cultivadas em 71% da região agrícola subs-
tituíram 90% das anteriores. Uma única variedade de batata cobre já
80% das terras agrícolas na Holanda. Na Europa, metade de todas as
raças de animais domésticos (cavalos, vacas, ovelhas, cabras, porcos e
aves de curral) foi extinta nos princípios do século XX, e um terço das
700 raças restantes se encontra em perigo de desaparecer (Pimbert,
1993; Pretty, 1995; Fowler; Mooney, 1990).
Nos Estados Unidos, a percentagem de perda de variedades durante
o último século é surpreendente: 80% de tomates, 92% de alfaces, 90%
de milho, 96% de milho doce, 86,2% de maçãs e 97% de verduras
(Kimbrell, 2002, p. 71-81). A redução da diversidade também se reflete
nos números de alimentos utilizados como base da dieta humana: em
nível mundial, apesar de existirem mais de 30 mil espécies de plantas
comestíveis, somente nove oferecem mais de 75% dos alimentos, sendo
que somente três espécies dos 150 cultivos comerciais (arroz, milho e
trigo) proporcionam 60% das calorias derivadas das plantas (FAO, 1993).
Em suma, a modernização agrícola produziu um impacto muito
grande na diversidade genética. Inicialmente, a produtividade dos cul-
tivos aumentou, especialmente no caso dos cereais, como o milho e o
arroz. Os pacotes tecnológicos ex-situ fizeram aumentar a produção. O
emprego massivo de fertilizantes e inibidores químicos, inseticidas, fun-
gicidas e pesticidas foi promovido juntamente com o uso das variedades
de alto rendimento e a prática da irrigação intensiva. A padronização
agrícola causou graves consequências ecológicas nos sistemas agrícolas

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tradicionais, tais como a alteração de cadeias tróficas e a redução das


espécies usadas em policultivos. A substituição de espécies nativas pelas
variedades de alto rendimento, quimicamente resistentes a parasitas e
doenças, foi ocasionando a erosão da diversidade genética.
Além disso, a padronização agrícola e a inovação ex-situ fizeram
com que os recursos genéticos fossem isolados do processo de produção
agrícola. Essa conversão tecnológica reduziu as possibilidades de con-
trolar os sistemas de produção em escala local. A perda da informação
sobre as interações entre os cultivos e seu ambiente biofísico afastou os
recursos genéticos de seu sistema agroecológico original.

Um dilema fundamental: agroindústria ou Agroecologia?


A tragédia provocada pela agricultura industrial pode ser mensura-
da não apenas pela contaminação gerada pelos agroquímicos que utiliza
(fertilizantes, fungicidas, herbicidas, inseticidas); pela transformação
radical dos hábitats originais, convertidos em pisos de fábrica para os
monótonos cultivos de uma única espécie; pelo desperdício contínuo
de água, solos e energia; pela erosão da diversidade genética como con-
sequência do uso de umas tantas variedades melhoradas; pelo aumento
do risco imposto por organismos transgênicos; ou pela produção de
alimentos perigosos e insanos; mas também, como temos visto, pelo
impacto cultural de incalculáveis consequências: a destruição da me-
mória tradicional representada pelos saberes acumulados durante 10
mil anos de interação entre a sociedade humana e a natureza.
Filha legítima da Revolução Industrial, engendrada nos recintos
mais ortodoxos da ciência moderna, a agricultura industrializada se
impôs em boa parte dos rincões do mundo passando por cima dos
conhecimentos locais, os quais são vistos como atrasados, arcaicos,
primitivos ou inúteis. Essa exclusão, que literalmente arrasa com a me-
mória da espécie humana no que se refere a suas relações históricas com
a natureza, não faz mais que confirmar um dos traços da modernidade

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industrial: seu desdém e, até mesmo, a sua irritação para com tudo
aquilo considerado tradicional. Dessa forma, a ideologia do progresso,
do desenvolvimento ou da modernização, que se apresenta como um mito
supremo, está fundamentada na suposta superioridade do moderno, do
mercado e da tecnologia e ciência contemporâneas sobre o tradicional.
Em franca oposição à agricultura industrializada, a agroecologia
procura construir os fundamentos e métodos científicos de uma agri-
cultura alternativa (Altieri, 1995), empenhada em aplicar os princípios
da ciência ecológica no desenho e no manejo de agroecossistemas
sustentáveis (Gliessman, 1998). Essa busca por sistemas sustentáveis
faz da agroecologia uma disciplina de síntese para a qual convergem
elementos da Agronomia, da Ecologia, da Economia e da Sociologia
(ver, por exemplo, Guzmán-Casado et al., 2000).
A agroecologia também contempla o reconhecimento e a valori-
zação das experiências de produtores locais, especialmente daqueles
com uma longa presença histórica. Sendo assim, e diferentemente do
que acontece com a proposta agroindustrial, em que os produtores
são considerados apenas como receptores passivos dos conhecimentos
provenientes da ciência moderna, a agroecologia reconhece na pesquisa
participativa um princípio fundamental. O diálogo de saberes se torna
então um princípio fundamental da pesquisa agroecológica.

O congelamento da memória: uma falsa saída


Nas últimas décadas, especialmente nos últimos anos, têm surgido
vozes provenientes de círculos acadêmicos do mundo que, conscientes
do valor das diversidades reconhecidas pela ciência, procuram a sua
manutenção e proteção através de mecanismos externos, centralizadores
e verticais. Assim são as ações, projetos e políticas orientados a preservar
a biodiversidade por meio da definição de áreas naturais protegidas;
a diversidade genética, mediante a coleta de genes em laboratórios
centralizados; a diversidade linguística, através do trabalho de compi-

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lação de idiomas levado a cabo por um exército de linguistas, e de sua


conservação em catálogos e dicionários; a variedade de germoplasma,
por meio de bancos de sementes e sêmen, jardins botânicos, museus e
parques zoológicos; e, enfim, as sabedorias locais ou tradicionais, por
meio de documentação detalhada e exaustiva armazenada e manejada
em bancos de informação. Cada uma dessas iniciativas tem sido iniciada
ou encabeçada por projetos internacionais ou nacionais com origem
nos países industrializados.
Todas essas ações remetem a essa obsessão pela réplica industrial,
tecnológica e científica dos fenômenos naturais e culturais, que atingiu
sua máxima expressão no experimento conhecido como Biosfera-2, que
consistiu na construção e manutenção de uma imensa estufa em pleno
deserto norte-americano, dentro da qual tentou-se reproduzir uma
selva tropical úmida com suas principais espécies vegetais, animais e de
microrganismos, mantidos ali por diversos processos e em um ambiente
radicalmente carente de condições adequadas (fundamentalmente: falta
de água e temperaturas baixas invernais). O experimento durou pouco,
pois o sistema colapsou sem explicação, sendo abandonado anos depois.
Ainda que tais ações sejam legítimas e expressem boa vontade, elas
padecem de uma mesma limitação: todas são medidas de salvamento ou
emergenciais que tentam aliviar ou atenuar o processo de destruição das
diversidades ocasionado pela maquinária global, que visa homogeneizar
ou uniformizar o planeta e que busca o congelamento dos produtos ge-
rados pelos processos bioculturais, mas não a manutenção dos processos
em si. Essa postura equivale a um tipo de preservação por decreto, que,
no fundo, não é mais que uma forma de artificialização da natureza,
tanto humana quanto não humana. A memória da espécie busca então
se proteger desde e não com, ou seja, a partir das instituições centralizadas
da civilização industrial, e não com os atores vivos e atuantes e seus cená-
rios, que, em conjunto, mantêm viva essa memória (os povos indígenas
e tradicionais e a biodiversidade silvestre e cultivada).

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Duas razões principais justificaram esse tipo de conservação ex-situ.


Por um lado, a ciência e a tecnologia foram apontadas como as únicas
alternativas factíveis para modernizar, pela via do desenvolvimento
rural, os países do Terceiro Mundo. Assim, a amostragem, a extração
e o armazenamento de espécimes biológicos foram realizados visando
documentar os objetos naturais como remanescentes do passado, as-
sumindo que o seu desaparecimento poderia ser justificado pelos pro-
cessos de modernização. Por outro lado, as tradições foram percebidas
como sendo opostas aos processos de modernização. Na maioria dos
casos, as experiências e iniciativas locais e regionais foram consideradas
primitivas, afirmando que essas populações deveriam ser educadas
segundo os novos padrões modernos. Em outros casos, a natureza foi
concebida como um espaço silvestre e vazio, ainda que historicamente
tenha sido manejada pelas culturas nativas.
O historiador Morris Berman afirma em seu livro Cuerpo y espí-
ritu: “A falácia do zoológico é que uma espécie pode ser tirada de um
ecossistema e continuar sendo a mesma espécie. Essa é uma concepção
atomística, uma extensão da filosofia mecanicista. (...) O zoológico é
parte de um processo muito mais amplo engendrado pela sociedade
industrial, que coloca a arte em galerias, a poesia entre as capas de um
livro, os índios em reservas, os loucos e retardados em asilos e, ainda,
tende a segregar os anciãos e as crianças dos adultos” (1992, p. 77). E
o autor conclui citando as palavras de D. Phillips e S. Kaiser (ibid., p.
78): “Os zoológicos dão a falsa impressão de que as espécies podem
ser salvas ainda que as silvestres sejam destruídas.”
Durante o século XX, o conjunto de ações do movimento con-
servacionista mundial tem se dirigido fundamentalmente à criação de
áreas naturais protegidas. Nas últimas décadas, têm sido realizados
imensos esforços institucionais, monetários e de conhecimento para
criar estratégias que permitam a máxima conservação da biodiversi-
dade – entendida, quase exclusivamente, como a máxima proteção

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possível de espécies. Hoje, existem no mundo 105 mil áreas naturais


protegidas em 220 países, com uma extensão que equivale a 11,5% da
superfície terrestre (World Databaseon Protected Areas Consortium,
2005), sendo que aproximadamente 480 dessas áreas constituem
Reservas da Biosfera.
Esse imenso sistema global de reservas foi criado, em sua maior
parte, a partir de critérios meramente biológicos (distribuição da riqueza
de espécies, número de endemismos e número de espécies ameaçadas),
por isso, representa uma falácia similar à dos zoológicos, mas estendida
a todo o mundo da natureza, na medida em que concentra seu interesse
de forma exclusiva em um número restrito de ilhas de proteção do
mundo biológico que tenta recriar, sem dar importância ao que ocorre
com os mares que as rodeiam (e as ameaçam).
Cada vez com mais força, a criação de áreas naturais protegidas
tem se convertido no objetivo central, por excelência, de toda política
conservacionista em nível mundial. Em um recente levantamento,
Chapin (2004, p. 22) estima que somente as três grandes organizações
internacionais de conservação, cujo objetivo final é a criação de áreas
naturais protegidas (Conservation International, World Wildlife Fund
e The Nature Conservancy), executaram, em conjunto, um orçamento
de US$ 1,5 bilhão em 2002.
Dessa forma, releva-se o fato de que a biodiversidade (os conjuntos
de organismos), por mais que seja isolada e fique circunscrita, não existe
mais como natureza prístina, uma vez que a expansão da espécie hu-
mana acabou por articular, como nunca antes na história, os processos
do mundo natural com os do social. Dito de outra forma, no mundo
globalizado contemporâneo, é impossível conservar a biodiversidade
sem levar em conta o conjunto de fatores sociais que a condicionam.
O tratamento meramente biológico da conservação da biodiver-
sidade tem conduzido à manutenção de muitas falácias, que, por sua
vez, têm contribuído para dar forma a certa visão biotecnocrática. Um

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primeiro conjunto de falsidades está relacionado ao imperativo moral,


que busca e exige a conservação completa e total da biodiversidade,
o que também tem conduzido a posições extremas, intolerantes e
coercitivas, que invocam o isolamento e a proteção de áreas naturais a
qualquer custo, sobrepondo-se a qualquer impedimento ou interesse
de ordem social, econômica, cultural ou política.
Esse posicionamento, conhecido como o paradigma protecionista
(Wilshusen et al., 2002), tem sido sustentado e desenvolvido por vários
preservacionistas, entre os quais se destacam Jansen (1986); Terborgh
(1999); Brandon (1996); Redford (1990); Brandon et al. (1998); e
Redford e Sanderson (2000). Do ponto de vista protecionista, nada
justifica evitar as ações de preservação da biodiversidade, de modo que
as áreas naturais protegidas devem ser mantidas mesmo em detrimento
dos interesses das populações locais e sem necessariamente mediar uma
conexão com as políticas de desenvolvimento local e regional.
Essa visão rejeita também toda possibilidade de equilíbrio entre
conservação e produção. Em sua versão mais extrema, essa corrente
reivindica políticas de conservação coercitivas que sejam executadas
pelos governos (naturalmente, sendo assessorados pelas organizações
conservacionistas) em uma espécie de biotecnocracia (para uma crítica
detalhada sobre essas posições, ver Wilshusen et al., 2002).
Existe, ainda, outro conjunto de falsidades derivadas desse mesmo
enfoque. Ao limitar sua preocupação e seu objeto de análise exclusiva-
mente ao mundo vivo (genes, espécies e comunidades de organismos), a
visão biologista tem feito com que o tema da conservação se torne uma
questão monodisciplinar, monocriterial e monoescalar. Com efeito, ao
enfocar unicamente os processos biológicos, ecológicos e evolutivos
(naturais), essa corrente dominante da conservação desconsidera ou
ignora o resto dos componentes e processos de todo hábitat natural
(geológicos, físicos, químicos, climáticos), tais como as dinâmicas
geográficas, que extrapolam os processos meramente biológicos (como

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o equilíbrio entre a pedogênese e a morfogênese estudado pela ecogeo-


grafia; ver Tricart; Killian, 1982), ou os fenômenos geofísicos e geoquí-
micos, que se encontram além, mas em permanente retroalimentação
com os componentes vivos da biosfera e, em geral, com todos aqueles
processos ambientais que têm lugar no nível da paisagem.
No caso da diversidade genética das variedades de espécies do-
mesticadas (agrobiodiversidade), a via congeladora da conservação é
ainda mais evidente, pois se realiza fora dos sistemas de produção e dos
contextos culturais e ecológicos onde foram criadas e se aperfeiçoaram
(conservação ex-situ). Precisamente, os bancos genéticos* armazenam
uma enorme quantidade de sementes (e sêmen) coletadas nos campos
para serem colocadas em uma rede mundial de centros de pesquisa
agrícola, tanto nacionais quanto internacionais.
Essa estratégia de conservação ex-situ da diversidade genética
tem sido a base para a produção das variedades de alta produtividade
(HYV, na sigla em inglês) da agricultura assentada na tecnologia co-
nhecida como Revolução Verde. Em que pesem os avanços científicos
e tecnológicos obtidos através dessa estratégia de conservação, existem
fortes críticas por parte de organizações indígenas, de cientistas e téc-
nicos, de camponeses, ONGs e advogados (Oldfield; Alcorn, 1987;
Kloppenburg; Kleinman, 1986; 1987; Kloppenburg, 1988; Brush,
1995; Posey; Dutfield, 1996; Mooney, 1997; Shiva, 1997; Christanty;
Mooney, 2000).
À limitação dos bancos genéticos para armazenar mais que as va-
riedades importantes do mundo, deixando de lado as suas variedades
silvestres, acrescenta-se a alta vulnerabilidade da conservação ex-situ pelos
erros técnicos, assim como a preservação dos recursos genéticos fora de
seus contextos agroecológicos e culturais. Essa estratégia favorece, além
disso, a privatização dos recursos genéticos, por meio do estabelecimento

* Ou bancos de germoplasma. (N. E.)

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de patentes, sem conferir uma justa compensação aos produtores origi-


nais. Limita-se, ainda, o acesso dos agricultores aos bancos genéticos,
tudo isso acompanhado pela carência de leis internacionais para proteger
os direitos de propriedade intelectual dos agricultores.
Na contracorrente, Bush (1995) e Zimmerer (1988; 1999) ressaltam
a importância estratégica da conservação in-situ, uma vez que mantém
os processos evolutivos que geram novo germoplasma sob as condições
de seleção natural, ao preservar os laboratórios de campo, importantes
para a biologia e a biogeografia dos cultivos. A conservação in-situ
também proporciona as fontes para as coleções ex-situ e promove os
meios para uma participação mais ampla na conservação. Da mesma
forma, Bellón et al. (1997, p. 265-266) definem a conservação in-situ
dos recursos genéticos como “o cultivo e manejo contínuo de um
sistema diverso de populações nos agroecossistemas, os quais podem
incluir as variedades silvestres das espécies cultivadas. Esse sistema
de conservação se baseia no conhecimento que, historicamente, os
camponeses desenvolveram, apesar das mudanças socioeconômicas e
tecnológicas”.
O fato é que as estratégias de conservação in-situ e ex-situ dos
recursos genéticos são processos necessários e constituem abordagens
complementares ou sinérgicas para preservar, manter e melhorar a
diversidade genética (Prescott-Allen, R.; Prescott-Allen, C., 1982;
1983; 1990; Boyce, 1996; Brookfield; Stocking, 1999). Essa comple-
mentaridade não significa que as estratégias de conservação devem ser
isoladas. Ao contrário, devem ser implementadas a partir dos fluxos
recíprocos do material genético. Mooney (1992) enumera as cinco leis
da conservação genética: (1) a diversidade agrícola só pode ser protegida
utilizando diversas estratégias, pois assim os diferentes sistemas podem
se complementar e proporcionar meios para suprir as insuficiências ou
os defeitos de qualquer outro método; (2) a proteção da diversidade
agrícola depende dos interesses dos agentes sociais empenhados em

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realizar esse processo; (3) a diversidade agrícola não será conservada a


menos que seja utilizada, uma vez que seu valor reside justamente no seu
uso; (4) a diversidade agrícola não pode ser conservada sem preservar
as comunidades que a produzem e vice-versa; e (5) a necessidade da
diversidade agrícola é inquestionável.
A conservação dos sistemas de produção tradicionais, enquanto parte
do patrimônio biocultural, é, sem dúvida, o caminho mais apropriado
para manter e enriquecer a diversidade genética e paisagística. A conser-
vação e o controle da diversidade genética local constituem um direito
social e individual fundamental. Montecinos e Altieri (1991) elencam
alguns desses direitos, tais como: (1) decidir livremente sobre o uso dos
sistemas de produção e das opções tecnológicas; (2) controlar completa-
mente os recursos genéticos de acordo com as suas necessidades e usos,
incluindo o controle dos processos de produção, seleção e melhoramento
de sementes sem limitações legais; (3) da mesma forma, decidir livremente
sobre a informação e os intercâmbios do germoplasma; (4) reapropriar-
-se do germoplasma coletado pelos bancos nacionais e internacionais
de uma forma incondicional e sem intermediários; (5) solicitar ajuda
para conservar as fontes genéticas e produtivas, ser compensado pela
conservação e pelo melhoramento de sementes, já que é um trabalho
realizado por longos períodos de tempo; e (6) manter e recuperar sua
cultura, incluindo os sistemas de conhecimento, histórias e crenças.

A crise da civilização industrial


Vivemos uma época sem precedentes na história, como mostrado
de forma magistral pelo historiador Neil (2000). A pegada ecológica
da humanidade* atingiu níveis inimagináveis e ritmos inesperados

* Pegada ecológica define a quantidade de recursos da biosfera utilizada para re-


produzir os meios e modos de vida de um indivíduo, de uma coletividade ou do
conjunto da humanidade. (NE)

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durante o século XX: população, economia, uso da energia, output


e contaminação industrial cresceram de forma surpreendente, fato
que tem impactado severamente os processos gerais e o equilíbrio da
ecologia planetária.
A destruição é duplamente devastadora, com efeitos até então im-
pensáveis: o número de seres humanos mortos pela violência explícita e
implícita, direta ou indireta, no mundo moderno não tem parâmetros
na história. O mesmo se pode dizer das devastações infligidas ao en-
torno natural, quer dizer, às condições físico-biológicas que permitem
a existência dos seres vivos, humanos e não humanos. Entre os anos de
1900 e 1995, as guerras causaram três vezes mais mortes que entre o ano
zero de nossa era e o final do século XIX – 109,7 milhões de pessoas
contra 37,8 milhões (as cifras procedem da análise de Renner, 1999).
Estão mais do que comprovados os dados sobre os danos provocados
pela era industrial no equilíbrio da atmosfera (fundamentalmente no
ciclo geral do carbono), resultante principalmente da contaminação
gerada pelo uso de combustíveis fósseis e pelo desmatamento em
regiões tropicais.
Se pudéssemos falar de instintos suicidas e instintos de sobrevivên-
cia na espécie humana, sem dúvida alguma encontraríamos impulsos de
autodestruição bem identificados nas ideologias racionalistas, mercanti-
listas e militaristas que inundam boa parte das visões do mundo atual.
A crise da civilização industrial, por sua escala, intensidade e ritmo, é
também uma crise da espécie humana. A globalização do fenômeno
humano, que é um resultado da civilização industrial, tem dado lugar
também a processos de escala planetária. Já estamos presenciando o
que McNeill (2000, p. 4) chamou de um gigantesco experimento sobre
o qual se perdeu o controle; experimento que, conforme passa o tempo,
vai ascendendo na escala de periculosidade e acentuando aquilo que
o sociólogo alemão Ulrich Beck (2003) descreve como a sociedade do
risco global.

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O mundo moderno tem liberado enormes, ou melhor, gigantescas


forças naturais e sociais. Mas isso tem acarretado um custo, um duplo
preço a pagar: a violência intraespecífica (incluindo a marginalização
social) e a destruição da natureza. Na sua compulsão pelo progresso e
pela mudança, o mundo moderno teve que pagar um custo altíssimo,
uma vez que seu principal mecanismo de criação de oportunidades, a
rentabilidade econômica – fator que busca aumentar a produtividade e
a eficiência –, encontra-se fincado em uma dupla exploração: a social e a
natural. Mas, além disso, para estabelecer as novas bases do mundo atual, a
civilização industrial teve que destruir experiências de muito longo alcance.
O acúmulo dessa ação de supressão permanente da memória histórica,
individual e coletiva da espécie é o que impede, justamente, superar as
suas próprias contradições. Sem a capacidade para encontrar as soluções,
pela sua cegueira diante dos êxitos históricos alcançados pela tradição, a
modernidade industrial se encontra cada vez mais num beco sem saída.
Visualizar uma modernidade alternativa significa, antes de tudo,
recuperar a memória histórica, uma vez que só inovando a partir, e não
em vez da experiência acumulada através do tempo, ou seja, da tradição,
é que poderemos criar um mundo duradouro. O pecado capital da
civilização industrial tem sido o de tentar construir o mundo moderno
sobre as (supostas) cinzas do existente. Não se trata, naturalmente, de
implantar uma ideologia conservadora revestida com novas palavras ou
termos. As diferenças conceituais são sutis, mas determinantes. É teóri-
ca e praticamente muito diferente inovar, isto é, criar novas estruturas
(econômicas, tecnológicas, informáticas ou culturais) tomando como
ponto de partida uma sequência de inovações anteriores acumuladas
no tempo do que fazê-lo por meio da supressão, violenta ou pacífica,
total ou parcial, imediata ou gradual, desses aportes prévios. Se é que
isso poderia chegar a ser concretizado.
Seria oportuno verificar nos processos de evolução orgânica re-
gistrados pelos biólogos a existência dessas duas vias diametralmente

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opostas de transformação e seus posteriores destinos. Dessa forma,


haveria a possibilidade de que a história humana aprendesse com a
história natural. Essa perspectiva nos permite, de qualquer maneira,
abordar a problemática da articulação da sociedade com a natureza,
considerando o papel desempenhado pelos povos indígenas e tradi-
cionais e os ensinamentos derivados de suas próprias experiências. Sob
essa nova visão, as atuais comunidades indígenas, viventes e atuantes,
constituem exemplos de estruturas socioculturais pertencentes a outra
modernidade, na medida em que são o resultado de uma progressiva
acumulação de experiências. Nelas têm operado mecanismos de me-
morização individual, familiar, comunitária e coletiva que lhes per-
mitiram continuar se reproduzindo no tempo, mediante a apreensão,
assimilação e, finalmente, agregação de elementos provenientes de sua
exterioridade, tudo aquilo que lhes tem sido útil para a sua manutenção
e perpetuação.
Nessa perspectiva, o termo tradicional, utilizado permanen-
temente para qualificar essas comunidades, mostra-se totalmente
equivocado e revela uma projeção socialmente distorcida por parte
daqueles que assim as qualificam. Ao contrário, essa comunidades são
enclaves societários de um enorme valor histórico e social, por terem
conseguido se manter como uma espécie de organismo diferente, e
não necessariamente isoladas do contexto social geral (nacional ou
global). São também núcleos que conseguem a sua inserção no pro-
cesso de globalização, impulsionado e mesmo imposto pela moder-
nidade industrial, sem perder a sua identidade, isto é, sem sacrificar
sua própria memória histórica.

Conhecimento, tradição e modernidade


Como dois polos opostos, como dois extremos de um único con-
junto, a parte tradicional e a moderna da espécie humana travam atual­
mente uma batalha essencial. Enquanto a primeira mantém práticas

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intelectuais e materiais que se inserem em uma tradição de milênios, a


outra gera uma realidade artificial, ou uma segunda natureza, a partir
da geração massiva de novos desenhos sem raízes históricas.
Além dos conflitos e contradições entre classes sociais, conglomera-
dos e instituições políticas, sociais ou culturais, agremiações religiosas
ou ideológicas e interesses econômicos, hoje em dia existe um dilema
capital na escala da espécie: entre uma porção da humanidade que
lembra e outra que esquece, entre um setor que inova para enriquecer a
diversidade natural e cultural do mundo e outro que, embora também
crie novas formas, acaba destruindo essa diversidade biocultural que
representa a memória da espécie.
Essa desarmonia não apenas expressa uma disfunção entre
sujeitos rurais e urbano-industriais, como também representa uma
luta entre um conjunto social que lembra e outro que esquece. Não
é por acaso que o traço da instantaneidade, que, segundo vários
pensadores, simboliza a era moderna e industrial – na medida em
que tudo gira em torno da fabricação massiva, continuada e efêmera
de novos artefatos, isto é, de componentes artificiais ou não naturais
–, seja também o mecanismo que alimenta um estado patológico
de amnésia coletiva.
A produção massiva de elementos prototípicos, ou seja, iguais e
até mesmo idênticos, que caracteriza a fabricação industrial e que a
diferencia de sua antecessora artesanal, é também, no contexto mais
geral da espécie, uma criação compulsiva de pseudodiversidades que
não se agregam à diversidade previamente existente, mas, ao contrário,
a substituem, gradual ou subitamente (e até violentamente). E esses
novos objetos, estruturas e sistemas industriais, baseados não só em
racionalidades de especialização e aperfeiçoamento, como também
de concorrência, cumprem seu papel inovador, mas também operam
como mercadorias na implacável e cruel arena mercantil, e acabam por
substituir e suprimir boa parte da gama de elementos preexistentes.

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Tais são os mecanismos, que descrevemos em seções anteriores,


de erosão e supressão das diversidades biológica, linguística, genética,
agrícola e paisagística e sua substituição por desenhos nascidos da
industrialidade: desde objetos de plástico, vidro, cimento, metal e
instrumentos, máquinas e aparelhos; até paisagens dominadas por
sistemas agrícolas, pecuários e florestais monótonos e especializados,
variedades genéticas prototípicas e únicas, línguas dominantes ou
oficiais e, naturalmente, formas de pensamento, sentimento e compor-
tamento uniformizadas, banalizadas ou estereotipadas.
Para enfrentar o futuro, ameaçado não só pelos próprios conflitos
no seio da sociedade humana, mas também em suas relações com
a natureza (as mudanças climáticas, a ameaça à biodiversidade, o
esgotamento das reservas pesqueiras, o desmatamento e outros fenô-
menos atestam isso), a espécie humana está obrigada a implementar
mecanismos de autoconhecimento que lhe permitam construir formas
democráticas e justas de autocontrole enquanto população biológica.
Como nunca antes, o conhecimento e a compreensão de nós
mesmos, enquanto coletivo biológico e social, bem como de nossa
história comum, estão sendo exigidos de forma urgente. As duas
perguntas metafísicas por antonomásia em nível individual são: De
onde eu venho? E para onde vou? Essas mesmas perguntas podem ser
estendidas ao conjunto da espécie ou da humanidade, o que equivale
a adotar uma visão global, ou essencial, ou, se preferir, humanista
(Morin, 2006).
Em geral, a produção quase inimaginável de informação e de
conhecimento que caracteriza o mundo moderno tem dado origem
a um novo tipo de analfabetismo (que se agrega ao outro de caráter
estrutural, resultante da exclusão social), ou, se preferir, uma nova
forma de cegueira, para utilizar o termo cunhado por Edgar Morin,
que tem sido o analista brilhante e crítico que mais tem abordado
esse problema:

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Entre o pensamento científico, que separa os conhecimentos e não reflete


sobre o destino humano, e o pensamento humanista, que ignora os aportes
das ciências suscetíveis de instigar novos questionamentos sobre o mundo e
a vida, o divórcio é total... e perigoso. Daí surge a necessidade de reformar o
pensamento, nossa capacidade para organizar o saber e restaurar o vínculo
entre as duas culturas divorciadas. Surgem também daí os grandes desafios
do ensino contemporâneo: criar mentes ordenadas, em vez de simplesmente
cheias, ensinar a riqueza e a fragilidade da condição humana, preparar para
a vida, para afrontar as incertezas (Morin, 2006).

A memória é o recurso primordial, impostergável e insubstituível


de toda consciência histórica. A espécie humana, ou, se preferir, a
humanidade, lembra ou esquece, como unidade biológica e social, o
processo histórico do qual surgiu e o qual a tem moldado e transforma-
do. Uma consciência histórica de espécie ajudará a superar os inúmeros
conflitos, preconceitos, mal-entendidos, falsas expectativas, vazios,
turbulências ideológicas, dogmas religiosos e instintos destrutivos
gerados pelo fenômeno humano. Reconhecer e recuperar a memória
biocultural da humanidade é uma tarefa essencial, necessária, urgente
e obrigatória. Isso permitirá a visualização, a construção e a realização
de uma modernidade alternativa, de uma modernidade que não destrua
a tradição, mas que conviva, coopere e coevolua com ela.

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