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OPINIÃO
EL PAÍS
Carlos Heitor
O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e
Cony, a rua e a
poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para memória
afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje,
porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o
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22/12/2019 Nossa imaginação precisa da literatura mais do que nunca | Opinião | EL PAÍS Brasil
mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a
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potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.
Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores.
Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas
exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos
investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se
tornem um mundo no qual penetramos. É sempre bom ver Julianne Moore na tela... O
problema é que ela, ali, toma o espaço que, de alguma forma, eu havia preenchido na
narrativa quando a li.
Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados
e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo
diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de
“presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para
além e para aquém do pensamento racional.
Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música,
encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos
óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a
experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações
corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada
pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. Mas o que é, afinal, a imaginação, essa
noção tão corriqueira e sobre a qual refletimos tão pouco?
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Resta pensar por que é tão importante encenar possibilidades. Em primeiro lugar, como o
escritor Bernardo Carvalho destacou recentemente, estamos vivendo uma confusão
generalizada entre realidade e representação artística, em que esta última vem sofrendo
sanções violentas, por se haver perdido a medida da diferença entre o real e a retomada
desse real em obras artísticas. Carvalho inicia seu texto afirmando, muito acertadamente,
que rejeitar ou proibir a representação ficcional do horror que há no mundo é sintoma de um
desespero – o desespero causado pela impossibilidade de eliminarmos o horror real. Além
disso, diz ele mais adiante, recusar a legitimidade ou a existência de determinadas obras de
arte denota o temor à ambivalência dos nossos próprios desejos, sentimentos e certezas.
Aprendemos desde cedo que, para que haja vida em sociedade, não podemos pôr em
prática, na vida cotidiana, toda essa ambivalência. Um dos poderes da obra de arte é,
precisamente, o de oferecer uma experiência cuja própria premissa é a existência de
paradoxos – afinal, a ficção cria um mundo que, fora dela, não existe, mas no qual
precisamos acreditar. A imaginação entra em cena para ampliar as contradições, sem,
contudo, tornar a experiência incoerente: estamos, agora, no domínio da associação livre e
espontânea entre o que lemos, o que lembramos, o que sabemos e sentimos. Idealmente,
ao lermos uma obra literária, não caímos na confusão entre a realidade e a representação
dela, e sim nos conectamos a uma realidade cotidianamente inacessível, por meio da
interação entre o que o texto propõe e a nossa imaginação. Nesta, acessamos aqueles que
somos, mas também aqueles que poderíamos ser – maravilhosos ou terríveis.
Há, ainda, outra defesa para a primazia da literatura como “disparadora” da imaginação.
Para ela, recorro a uma história real, que se desenrola neste momento, na Universidade
Stanford, uma das melhores do mundo e, além disso, localizada em meio ao Vale do Silício.
Lá, hoje se desenvolve boa parte das pesquisas científicas mais importantes sobre
inteligência artificial – assunto, aliás, que até pouco tempo atrás só era central em obras de
ficção científica (e nem me deixem começar a falar da imaginação de gente como Ursula Le
Guin ou Philip K. Dick!)
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Ligia G. Diniz é doutora em literatura pela UnB e recebeu, em 2017, o prêmio CAPES de melhor tese em Letras
pelo seu trabalho, intitulado Por uma Impossível Fenomenologia dos Afetos: Imaginação e Presença na
Experiência Literária.
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