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LEITURA BÁSICA
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A tolerância ao uso de um a droga pode ser definida com o a diminuição
nos efeitos iniciais ao longo de sucessivas administrações. C om o desenvol
vim ento de tolerância, tom a-se necessária um a quantidade cada vez m aior
da droga para que sejam obtidos os m esm os efeitos iniciais. Para atingi-los,
exigem-se quantidades da droga que, p o r vezes; o organism o n ão teria supor
tado de início. U m usuário tolerante de heroína, por exem plo, pode chegar
a consum ir um a quantidade até cem vezes m aior do que a inicial; o efeito,
p o r sua vez, é bastante sem elhante o u pouco mais acentuado do que o das
prim eiras administrações.
No uso médico de drogas, com o ocorre com a morfina, a tolerância é espe
rada e exige a administração de doses crescentes pelo médico. A identificação da
tolerância, contudo, não serve para a identificação da dependência, feita princi
palm ente a partir da existência de síndrome de retirada ou síndrome de abstinência,
que ocorre na medida em que alguém esteja sem o uso de um a droga consumida
repetidas vezes. A síndrome de abstinência é um a das principais evidêndas para
se constatar o desenvolvim ento de dependênda e costum a envolver reações
bastante severas e desagradáveis. No caso da cocaína, por exemplo, a síndrome
de abstinênda dessa droga estimulante costum a envolver depressão; no caso de
drogas opióides, com o a morfina e a heroína, aparecem sintomas com o aum en
to da sensibilidade à dor, ou hiperalgesia, além de irritabilidade, inquietação e
insônia; com o uso de cafeína, a síndrome de abstinência envolve prindpalm en-
te sonolênda; no caso do uso do álcool, aparecem efeitos com o trem edeira e
aum ento da tem peratura corporal. Os efeitos da síndrome de abstinênda são,
com um ente, opostos aos efeitos da droga, caracterizando o que se convencio
nou cham ar de dependência química do organismo a um a determinada droga.
Além de servir com o principal referênda para a identificação e avaliação
do grau da dependência, sintom as da síndrom e de abstinência são um novo
m otivo para retom ar o consum o da droga, que agora passa a ser consumida
com o m aneira de evitar ou escapar dos sintom as desagradáveis prom ovidos
pela abstinênda. Um dos sinais da síndrom e de abstinência é, indusive, descrito
co m o ^ rte desejo - cham ado popularm ente de/tssu m -p ela droga à qual o usuá
rio não tem acesso no m om ento. A relação entre dependênda e síndrom e de
abstinência pode ser vista, a seguir, nas duas passagens da CID10 (Organização
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M undial da Saúde, 1998). Na primeira delas, a sindrome de dependência pode ser
diagnosticada quando:
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do bairro onde m orava. No m etrô, lugar em que costum ava com prar e usar
drogas, sentiu-se pior ainda e sintom as m uito desagradáveis persistiram por
dias, acom panhados de pensam entos e forte desejo p o r drogas. Poucos dias
depois, houve a recaída. O relato não é u m feto isolado, m uitos autores têm
dem onstrado a relação entre sintom as de abstinência e determ inado contexto
ambiental, com o é o caso exemplificado por ele e tam bém p o r outros autores,
que m ostraram a relação da síndrom e de abstinência com a visão da paraferná
lia para a aplicação de medicam entos (equipamentos para injeção etc.) e m es
m o diante de um contexto no qual pessoas falam sobre drogas (ver O'Brien,
1976; Siegel 8CRamos, 2002).
A relação entre sinais de síndrom e de abstinência e determ inados con
textos ambientais m ostra que os sintom as que servem para determ inar a de
pendência química não podem ser entendidos exclusivamente a partir de um a
descrição fisiológica dos efeitos das drogas. O com portam ento do usuário de
drogas tam bém deve ser levado em conta, pois determ inados processos com-
portam entais podem m odular o efeito de drogas, ou seja: processos compor-
tam entais estão T e la c io n a d o s com os efeitos descritos pelos conceitos de tole
rância, síndrom e de abstinência e dependência. A evidência de que sintomas
de abstinência podem depender de contexto m ostra um a relação entre efeito
de drogas e ambiente que deve ser explorada. Um processo com portam ental
que pode m odular o efeito de drogas é cham ado de condicionamento respondente
oupavloviano : a partir do condicionamento, respostas antes eliciadas p o r certas
substâncias no organism o p o d e m passar a ser eliciadas p o r eventos ambientais
que sistem aticam ente acom panharam essas substâncias.
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pio paradigmático do reflexo condicional. O processo que toma possível um refle
xo condicional, por sua vez, passou a ser chamado de condicionamento do reflexo,
condicionamento clássico ou pavloviano ou, com mais freqüência nos trabalhos de
análise do comportamento, condicionamento respondente. O termo respondente é
preferível porque diferencia claramente o comportamento elidado do compor
tam ento operante, que é estabelecido e mantido por conseqüências. No compor
tam ento respondente, a relação básica a ser analisada é entre instândas de estímu
los e respostas (S-R), enquanto no comportamento operante a unidade básica a ser
analisada é entre dasses de resposta e suas conseqüêndas reforçadoras (R-S).
N o com portam ento respondente, respostas são eliciadas por estímulos.
Alguns estímulos elidam respostas a despeito da história pessoal do organismo,
com o é o caso de alimento eliciando a resposta de salivar, ou um sopro de vento
eliciando o piscar, ou ainda a batida no joelho eliciándo a resposta de extensão
da perna. Todos esses são exemplos de respondentes incondidonais, relações
que existem a despeito da história pessoal do organismo. Respondentes incon
didonais dependem da história de variação e seleção responsável pela cons
trução da espécie. Por convenção, no respondente incondicional, o estímulo
é cham ado de estímulo incondidonal (US, do inglês unconditional stimulus) e a
resposta, de resposta incondidonal (UR, do inglês unconditional response).
O valor óbvio de sobrevivênda dos reflexos incondidonais, que garan
tem o equilíbrio fisiológico do organismo, é complementado pelo processo de
condicionam ento respondente. No condicionamento, tal qual demonstrado
nos experimentos de Pavlov e seus colaboradores, respostas com valor para a
sobrevivência dos m em bros de uma espéde podem passar a ser emitidas após
a apresentação de outros estímulos. Estímulos inidalm ente neutros passam
a elid ar respostas dos organismos na medida em que precedem sistematica
m ente os estímulos da relação respondente incondicional. Pavlov ressaltou a
im portânda do processo de condicionamento da seguinte maneira:
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o CS é apresentado sem que seja tam bém apresentado o US, o CS perde gra-
dativam ente sua função eliciadora, deixando de eliciar a CR. O processo de
enfraquecim ento da função eliciadora condicional é chamado de extinção res
pondente. Nos experimentos de Pavlov, o tom (CS) perdia a capacidade de eliciar
a salivação condicional na medida em que era apresentado algumas vezes sem
que o alim ento tam bém o fosse. A extinção respondente ocorre porque rompe-
se a contingência que existia entre CS e US.
A discussão sobre o processo de condicionam ento respondente tem sido
feita em diferentes contextos teóricos. Rescorla (1988) recuperou parte das
teorias associacionistas para discutir o papel do condicionamento, afirman
do que o condicionam ento respondente depende do caráter "informativo"
de u m estím ulo; o CS adquire sua função eliciadora quando um organismo
é "surpreendido” e, assim, obrigado a modificar suas associações estímulo-
resposta. Alguns autores questionam o caráter ‘‘tem porário” da noção pavio
viana de relação condicional. Bouton (1994), p o r exemplo, afirma que na
m edida e m que o CS é apresentado sem que o US tam bém o seja, acontece
u m a nova aprendizagem e não o enfraquecim ento da relação condicional
estímulo-resposta. A relação condicional permanece intacta no repertório do
organism o, podendo reaparecer segundo mudanças no contexto de treino e
teste da relação condicional.
Para Skinner (1987), o condicionamento respondente desempenha um pa
pel im portante como mecanismo adaptativo na medida em que respostas pre
paradas pela seleção natural podem ser apresentadas diante de estímulos inicial
m ente neutros como eliciadores. Os estímulos que adquirem função de CS são,
obviamente, aqueles com os quais determinado organismo se relaciona ao longo
de sua história de vida. De certa forma, como apontou Culler - quando a psicolo
gia já havia tomado interesse pelo estudo do condicionamento respondente a
função de CS é "fazer ajustes preparatórios para um estímulo por vir [...] a CR, em
resumo, é o m odo natural de estar-se preparado para um estímulo importante”
(1938, p.136). Para Skinner, respondentes, condicionais ou não, relacionam-se
com a "fisiologia interna do organismo” (1953, p. 59), e, nesse sentido, a idéia
de equilíbrio interno do organismo é de grande importância. Como o condicio
nam ento respondente prepara o organismo para o efeito de outro estímulo, sua
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função é sempre de recuperar um equilíbrio perdido. A idéia do condicionamen
to como um mecanismo de manutenção do equilíbrio interno, fisiológico, do
organismo, é de grande importância para a compreensão de como esse processo
reladona-se ao efeito de drogas sobre o organismo.
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cionamento de respostas compensatórias (Siegel & Allan, 1998). A lógica, a vanta
gem do condicionamento para o organismo, é a mesma do condicionamento
respondente em geral: a partir desse processo, o organismo prepara-se para um
estim ulo que está por vir. No caso de drogas, perturbadoras do equilíbrio fisio
lógico, o organismo "prepara-se” pois a situação precedente da ação da droga
produz efeitos opostos aos da droga, que atenuam os efeitos da própria droga
quando ela age no organismo.
Consideremos um exemplo, oferecido p o r um experimento realizado por
Siegel (1975) com o sugestivo título Evidências d í ratos de que a tolerância à morfi
na é uma resposta aprendida. Em um dos procedimentos experimentais, um rato
foi testado em um a superfície quente, aquecida a cerca de 54° C, para avaliar a
sensibilidade à dor. A reação do animal nessa condição levemente incômoda é
lam ber as patas. Medidas da latênda dessa resposta, sem qualquer administra
ção de droga, funcionaram como um a medida de linha de base para o efeito
analgésico da morfina: aum ento na latência indica analgesia; latênda menor
indica o efeito contrário, hiperalgesia. Na primeira aplicação da morfina (15
m g/kg), obteve-se um evidente efeito de analgesia, verificado pelo aum ento
na latên d a da resposta de lamber a pata, em relação à medida de linha de base,
quando o animal foi colocado na superfície quente. Em três administrações
nos dias seguintes, seguidas de teste na superfície quente, a latênda de lamber
a pata foi diminuindo gradualmente, a ponto de, na quarta administração, a
latên d a ser praticamente idêntica àquela obtida na linha de base. Esses resul
tados indicam a tolerânaa aos efeitos analgésicos da morfina. Depois de duas
sem anas sem receber morfina, o mesmo rato recebeu placebo e foi testado na
superfíde quente. A latênda do lamber a pata foi m uito mais cinta do que a
obtida na linha de base, indicando hiperalgesia, o efeito oposto ao elidado pela
ingestão de morfina. Ao longo de mais três tentativas de teste, em seguida à
ingestão de placebo, a latênda da resposta de lamber a pata retom ou aos índices
obtidos n a linha de base. Esses resultados foram analisados como conseqüência
do condidonam ento: a morfina no organismo do rato funcionava como US que
eliciava a analgesia; a condição de teste - superfíde quente - funaonava como
estím ulo condidonal que elidava uma resposta compènsatória, hiperalgesia.
N a condição em que droga e teste são apresentados, o efeito é nulo ao fim de
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algumas administrações, pois a hiperalgesia compensa os efeitos analgésicos
da morfina. Q uando apenas o CS é apresentado - quando o rato é colocado na
situação de teste tendo recebido o placebo apenas a CR é apresentada, ou seja,
a resposta condicional ou hiperalgesia.
As interpretações de Siegel foram mais tarde confirmadas e ampliadas para ■
outras situações e outras drogas. Em o utro experimento com morfina, Krank,
Hinson & Siegel (1984) m ostraram os efeitos da tolerância condicional com a
administração de um a quantidade m aior da droga (40 m g / kg), m ostrando tam
bém que os efeitos condicionais são m aiores dependendo do núm ero de rela
ções ambiente-droga. Os efeitos de tolerância dependente de contexto (portan
to, dependente de condicionamento respondente) podem ser vistos com drogas
licitas e de uso cotidiano, como o álcool (Lê, Poulos 8t Cappel, 1979), cafeína
(Rozin, Reflf, Mark & Schull, 1984) e nicotina (Epstein, Caggiula õc Stiller, 1979);
bem com o com drogas de uso médico, com o benzodiazepínicos (Siegel apud
Siegel ÔCAllan, 1998); pentobarbitais (Cappel, Roach & Poulus, 1981); e drogas
imunossupressivas, como a ciclofosmamída (Ader & Cohen, 1975).
Para Siegel 8C Allan (1998) a dem onstração mais dram ática de que a to
lerância depende do contexto em que a droga é sistematicamente utilizada é
fornecida por estudos com tolerância aos efeitos letais de um a droga, Siegel,
Hinson, Krank & McCully (1982), p o r exemplo, m ostrou que a m orte por um a
dose letal de heroína aconteceu em cerca de 94% dos ratos de um grupo que re
cebeu apenas a dose letal, sem história anterior de desenvolvim ento de tolerân
cia. Esse índice de m ortalidade dim inuiu quando a dose letal foi administrada
para ratos tolerantes, que haviam recebido doses crescentes da heroína antes
do teste. O índice de mortalidade, foi de cerca de 64% para os ratos que recebe
ram a dose letal num am biente diferente daquele em que havia se desenvolvido
a tolerânda e de apenas cerca de 32% se a dose letal fosse administrada no mes
m o am biente em que se desenvolveu tolerância.
A apresentação dos estímulos condicionais que antecederam à ingestão
da droga pode ser suficiente, tam bém , para produzir os sintomas da síndrome
de abstinência característicos da interrupção do uso de um a droga. Na medida
em que certos aspectos do ambiente passam a funcionar com o CS, por precede
rem sistematicamente os efeitos da droga, a simples apresentação do CS pode
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desencadear todos os sintomas condicionais caracterizadores da síndrome de
abstinência, exatamente os efeitos opostos aos produzidos inicialmente pela
ingestão da droga. Os sintomas da síndrom e de abstinência, com o já exem
plificado, incluem os efeitos opostos aos da droga. Nesse caso, são elidadas as
respostas compensatórias que preparariam o organismo para receber a droga,
mas a droga não é apresentada. Sem o US, o organismo só apresenta a CR, ou
seja, o quadro de respostas que caracterizam a síndrome de abstinênda.
A elidação dos sintomas da síndrome de abstinência constitui novo m oti
vo para a retom ada ao uso de drogas, na medida em que são bastante aversivos.
Nesse sentido, a síndrome de abstinência, que pode ser gerada pelo condidona-
m ento respondente, fundona como uma operação m otivadonal que dificulta
o usuário ou o ex-usuário a manter-se sem consumir a droga, mesmo depois de
tratam ento especializado da chamada dependência quimica. E embora os sinto
mas de abstinênda tenham sido superados, é possível que ressutjam tão logo
o ex-usuário volte para seu ambiente natural, lugar no qual costumeiramente
havia utilizado drogas.
A identificação do papel do condicionamento respondente naquilo que
pode ser descrito como tolerância e síndrome de abstinênda mostra que o efeito
de um a droga, e dos fenômenos que cercam esse efeito, não pode ser descrito
apenas do ponto de vista farmacológico. Processos comportamentais estão en
volvidos na modulação dos efeitos de uma droga sobre o funcionamento fisio
lógico do organismo. A partir da experiênda de cada indivíduo, a partir do con
dicionamento respondente, estímulos ambientais passam a atuar "preparando”
o organism o para o efdto da droga que está por vir: se a droga é apresentada, o
condicionamento é responsável pelo efeito reduzido da droga; se a droga não é
apresentada, o condicionamento explica a apresentação de sintomas da síndro
me de abstinência, mesmo que a pessoa já esteja abstinente há algum tempo. A
m aior implicação do conhecimento de interações droga/experiência é para o
papel do psicólogo: com base no conhecimento dessas interações, são possíveis
muitas alternativas de tratamento para dependentes, com objetivo de lidar com
os efeitos da tolerânda e da síndrome de abstinência a fim de se evitar a recaída,
tão com um nesses casos.
IMPLICAÇÕES DO MODELO DE CONDICIONAMENTO PARA TOLERÂNCIA E SÍNDRO M E
DE ABSTINÊNCIA
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ram enta im portante para a identificação daquelas situações diante das quais
deve-se tom ar especial cuidado com o perigo da recaída.
A identificação da função de um estím ulo sobre o responder de um
organism o é tarefa difícil. A identificação de estímulos eliciadores não é exce
ção a essa regra mais geral sobre o trabalho do analista do comportamento. Em
prim eiro lugar, porque é necessário um levantamento individual; a função de
estímulos eliciadores condicionais depende do intercâmbio de um organismo
concreto com seu ambiente concreto. A história de interação desse organismo
com seu ambiente, bem com o os produtos dessa história, é necessariamente
única. Um levantamento do padrão do que é mais com um ajuda pouco, embo
ra possa oferecer idéias de por onde se deve começar uma investigação.
Por exemplo, o ritual de aplicação com um ente precede o uso de uma dro
ga e é provável que, para muitos usuários, começar a preparar um a droga para
seu uso já forneça estimulação condicional responsável pela eliciação de CR
que, po r sua vez, tom a o organismo tolerante à substância ingerida. Contudo,
essa estimulação pode vir de aspectos mais sutis do ambiente, que não podem
ser identificados prontamente. É difícil a identificação de estímulos eliciadores
porque identificá-los, como ocorre com a análise da função de qualquer estí
m ulo, exige u m teste direto. Eventualmente, o com portam ento verbal pode
ser enganador, porque um a pessoa pode não possuir repertório descritivo que
envolve “saber” dos eventos ambientais que a afetam ou não saber das rela
ções entre eventos ambientais e com portam ento que produzem certos efeitos
ambientais.
O trabalho do psicólogo no ambiente natural pode ajudar na superação
das dificuldades discutidas acima. Em ambiente natural, é possível observar
diretam ente o efeito de um estímulo sobre o comportamento. Podem-se obser
var quais partes do ambiente atuam como CS que eliciam as respostas típicas da
síndrome de abstinência. Mais do que observar, é possível a v a lia r diretamente a
intensidade com que esse estímulo afeta o organismo. Tanto a identificação dos
estímulos como a determinação da intensidade de sua função eliciadora podem
ser feitos com confiabilidade e precisão.
A dificuldade de identificação de um CS fica mais evidente quando consi
dera-se a análise de Siegel (2005), que mostra a existência de fontes de estimu
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lação condicional m uito sutis que cercam a atividade do usuário freqüente de
drogas. O com portam ento de buscara droga, ou seja, todo o conjunto de respos
tas que tem com o conseqüência final a produção da droga para seu consum o,
pode fornecer estimulação condicional suficiente para evocar um a CR que en
volve respostas opostas àquelas elidadaspela substânda buscada. Assim, com
prar drogas, ligar para amigos para com binar seu uso ou ir a um a festa na qual
freqüentem ente se usa drogas são situações que tipicamente p odem produzir
os efeitos da síndrome de abstinência. O utra fonte de estimulação, im portante
de ser levada em conta é o próprio efeito inidal das drogas. M esmo que esses
efeitos inidais não sejam sodalm ente problem áticos para um usuário regular,
pára aquele que está habituado a grandes quantidades, o efeito inidal da droga
pode elid ar um a forte CR que aum enta a chance de uso de quantidades m aio
res. Para explicar porque isso acontece basta entender que, no passado, efeitos
da droga de pequena magnitude sistematicam ente foram seguidos de efeitos de
m agnitude maior. Portanto, a contingênda que nesse caso deve ser analisada é:
se efeito pequeno, então, logo depois, efeito maior. Depois dessa relação entre
condições do organismo (que fundonam com o estímulos), o efeito de m enor
m agnitude pode passar e eliciar a CR. Essa explicação, segundo a análise de
Siegel, justifica a preocupação das A ssodações de Alcoólatras Anônim os em
relação a "evitar o prim eiro gole". O "prim eiro gole*' pode evocar reações que
servem com o CS para a CR que caracteriza a síndrome de abstinênda, tom ando
a continuidade do consum o do álcool espedalm ente provável.
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a 90% de recaída na volta aos EUA - o m esm o índice esperado de dependentes
de drogas opióides, segundo estatísticas americanas. O índice de recaída, con
tudo, foi de apenas 7%. O núm ero surpreendente é coerente com a análise do
papel do condicionamento respondente: a recaída foi m enor porque, de volta
aos EUA, os antigos soldados mantinham-se afastados dos estímulos diante dos
quais havia se dado o consumo de heroína. A CR que caracteriza a síndrome de
abstinência não era eliciada porque não havia apresentação de CS.
Porém , m anter o dependente longe do ambiente em que utilizou drogas
nem sem pre é possível. O utro m odo de prevenir recaída decorrente dos sinto
mas da síndrom e de abstinência é extinguir a função elidadora do CS. Isso pode
ser feito na medida em que se "quebre" a contingência estímulo-estímulo res
ponsável pelo condidonam ento, apresentando o CS sem que seja apresentado,
logo em seguida, o US.
Para o tratam ento do uso abusivo de drogas, algumas publicações têm
analisado o que passou a ser chamado de tratamento de exposição a dicas (ver,
por exem plo, Conklin & Tiffany, 2002; H averm ans & Jansen, 2002). Esse tra
tam en to , em linhas gerais, envolve a exposição àquelas situações, “dicas”,
que sistem aticam ente precederam o uso de drogas, ganhando a função de CS.
A exposição ao CS deve ser feita, naturalm ente, sem que o ex-usuário volte
a consum ir a droga. Exposição a dicas não é sinônim o do procedimento que
ficou conhecido como simplesmente “exposição", que pode envolver tanto
a apresentação do US com o a do CS. A ênfase do tratam ento de exposição
a dicas é n o enfraquecim ento da função do CS a partir da extinção respon
dente. Estudos com esse procedim ento têm sido feitos com usuários com
histórico de abuso de drogas com o a nicotina (ver Corty ÔC McFall, 1984),
drogas opióides (ver Dawe, Powell, Richards, Gossop, Marks, Strang & Gray,
1993), cocaína (ver O'Brien, Childress, McLelian 8C Ehrm an 1990) e álcool
(ver D ru m m o n d & Glautier, 1994).
Conklin & Tiffani (2002) realizaram um a metanálise de resultados apre
sentados em publicações que avaliaram o tratam ento baseado em exposição
a dicas para reduzir a recaída. Foram analisados 18 artigos, com diferentes
procedim entos de apresentação de dicas, núm ero de sessões, critérios de en
cerram ento da exposição, presença ou não de follow up etc. Interessante notar
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nos artigos analisados que o tipo de estím ulo apresentado durante a exposição
variou entre estímulos visuais, auditivos, estímulos imaginados e estimulação
in vivo. Estímulos visuais incluíam fotos ou sltdes de equipam entos utilizados
para o uso de drogas, bem com o de pessoas utilizando drogas. Alguns estudos
utilizaram tam bém vídeos em quç erarn mostradas pessoas utilizando as dro
gas. Estimulação auditiva incluía apresentação de gravações nas quais pessoas
relatavam estar consum indo drogas, conversas típicas do m o m en to do uso
ou ainda conversas que caracterizavam o com portam ento de buscar a droga.
Estimulação "imaginada" envolvia a solicitação para que o ex-usuário imagi
nasse situações de consum o ou de preparação para consum o, bem com o si
tuações que tipicamente precedem o consum o, com o u m dia atribulado etc.
Exposição in vivo incluía contato com equipam entos para uso de drogas, inges
tão de pequenas doses da droga (no caso do álcool) e exposição ao ambiente
no qual a pessoa freqüentem ente havia consum ido drogas. Conklín fií TiíFani
m ostraram que apenas cinco dos 18 artigos analisados haviam m ostrado clara
eficiência tendo em vista seus objetivos. A discussão dos autores passa pelo exa
m e dos processos básicos que devem ser discutidos para o planejam ento efetivo
de um a intervenção, m ostrando que grande parte das falhas nos tratam entos
pode ser analisada e explicada a partir das contribuições da pesquisa básica
com com portam ento respondente. Nesse sentido, um exame mais sistemático
dos processos básicos relacionados ao processo de condicionam ento é, para
Conklin & Tiffani, a chave para um a m elhoria na efetividade dos tratam entos
baseados em exposição a dicas. Por exemplo, um dos aspectos considerados
pelos autores da metanálise é o que se tem cham ado de recuperação espontâ
nea, resultado freqüentem ente encontrado em estudos de condicionam ento
respondente com sujeitos infra-humanos. Pesquisas que têm observado esse
fenôm eno recorrentem ente cham am a atenção para a im portância de se con
siderar o contexto com o variável fundam ental para a determ inação do con
dicionam ento ou da extinção respondente. A recuperação espontânea pode
acontecer quando um a determ inada parte do am biente em que se realizou o
condicionamento não aparece na situação de extinção. Essa determ inada parte
pode aparecerem seguida, elidando-se a CR que se julgava enfraqueada. Essas
"partes” do am biente que m antém o efeito eliriador condicional podem ser
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extrem am ente sutis e freqüentemente podem passar despercebidas para o ex
perim entador, no laboratório, o u para o psicólogo, em sua atividade prática.
Para os objetivos deste texto, vale observar com mais cuidado o que acon
teceu nos cinco estudos analisados p o r Conklin ÔCTiffani que m ostraram efe
tividade no controle dos efeitos da síndrome de abstinência. Ambos incluíram
entre seus procedim entos apresentação de estímulos in vivo e atribuíram boa
parte da efetividade do estudo a esse procedim ento especial. Apresentação dos
estím ulos tn vivo parece reduzir os problemas aparentem ente presentes em
um a extinção parcial, enganadora das funções condicionais que se supunha
estarem enfraquecidas a partir do tratam ento. Parece que, a partir da análise
de C onklin ôí Tiffani, quanto mais distantes as condições de aquisição (no
am biente natural, a partir da história de vida do dependente) e de tratam ento,
mais dificilmente o tratam ento de exposição a dicas terá sucesso em extinguir
respostas que caracterizam a síndrom e de abstinência. O sucesso na extin
ção envolve proximidade entre as condições de aquisição e tratam ento, de
m aneira que a eficiência do tratam ento do dependente é facilitada se feito
em condições mais próximas de seu ambiente natural. O trabalho realizado
por Rohsenow et al. (2001), com usuários de álcool, é interessante de ser exa
m inado p o r utilizar outro procedim ento em conjunto à exposição a dicas.
Rohsenow et al. expuseram os participantes do estudo, dependentes de álcool,
a situações com o tocar ou segurar copo de bebidas e cheirar a bebida alcoólica
no copo. As exposições às dicas eram realizadas de m odo a prom over a extin
ção respondente. Os participantes tam bém eram solicitados a imaginar situ
ações em que o consumo de álcool era especialmente provável. O utros pro
cedim entos do estudo tinham com o objetivo o treino de habilidades sociais,
em especial habilidades de recusar bebida em encontros sociais e habilidades
de assertividade mais gerais. A efetividade dos procedimentos foi avaliada em
follow up seis meses ou um ano depois dos procedimentos.
A efetividade dos procedimentos de exposição a dicas em contexto aplica
do, com o apontam Conklin & Tiffany (2002), em resumo, ainda não é clara, mas
bastante promissora. As dificuldades do procedimento, contudo, não parecem
estar relacionadas à análise do problema com base no condicionamento respon
dente e sim na criação de procedimentos aplicados coerentes com os princípios
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básicos do condicionamento. Eventualmente, o tratam ento com base no condi
cionam ento respondente pode ser mais efetivo se complementado com técnicas
baseadas na análise de processos operantes. Nesse ponto, fica mais um a vez claro
o potencial do trabalho do psicólogo no ambiente natural de dependentes. A
efetividade com o tratam ento in vivo sugere fortem ente essa conclusão. Além de
identificar CR que eliciem síndrome de abstinência, o papel do psicólogo está em
lidar com situações que promovam a extinção respondente. A extinção respon
dente parece ser tão mais bem-sucedida quanto mais próximos são 05 estímulos
do tratam ento com aqueles do dia-a-dia do usuário, diante dos quais houve o
consum o das drogas. Eventos desse tipo podem ser objetos utilizados para uso
'de drogas que podem ser trazidos ao consultório, mas principalmente podem ser
companhias, assuntos, locais específicos nos quais houve o consumo e, eventual
m ente, aspectos do com portam ento do usuário que acontecem nesses lugares
específicos. Esses estímulos dificilmente podem ser analisados com o elidadores
no tratam ento em ambiente fechado, bem como dificilmente podem ser trazi
dos a clínica com facilidade. De fato, a m aior parte deles não aparece na clínica
da m esma forma, mesmo que sejam feitos esforços técnicos para isso (aparato
de uso de drogas, por exemplo, é um tipo de estimulação na clínica e outro tipo
com pletam ente diferente fora dela, quando usado para aplicação das drogas).
A análise do papel do condicionam ento respondente n o efeito de drogas
conduz para a necessidade do tratam ento com exposição a dicas no ambiente
no qual o usuário utilizou a droga e diante do qual, sem ela, experimenta os sin
tom as de abstinência. Esse é necessariamente o ambiente natural do usuário. A
importância do treino de habilidades sodais é outro ponto indicativo para a con
sideração do repertório do dependente em ambiente natural. Pois em ambiente
natural é mais fácil identificar quais os repertórios necessários e quais são as
condições para instalá-lo. O treino de repertórios pode incluir indusive o treino
de habilidades que ajudem a evitar situações nas quais é m uito provável o contato
com um CS que poderia elidar um a CR que tom aria a recaída mais provável.
Em resum o, fica evidenaada pela análise de algumas relações entre uso de
drogas e condidonam ento respondente a im portânda da análise do papel do
am biente natural no trabalho com dependentes. O am biente natural do usuá
rio ou ex-usuário é fonte im portante de dados para a identificação de situações
324
que funcionam como CS para CR que caracterizam a síndrome de abstinência,
que, por sua vez, tom a a recaída especialmente provável. O ambiente natural é
tam bém o lugar privilegiado para exposição direta ao CS, de maneira a prom o
ver a extinção da CR. O manejo do com portam ento no ambiente natural parece
ser especialmente importante para que a extinção respondente produza resul
tados confiáveis e duradouros. A análise da relação entre consumo de drogas
e condicionamento respondente abre, portanto, possibilidades inéditas para o
profissional de psicologia que tem se preocupado com análises e intervenções
em am biente natural.
325
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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*
Ari Bassi Nascimento
RESUMO. Concorda-se que conseqüências da manufatura, síntese, tráfico e uso de drogas resultem em ameaça ao bem-estar
coletivo. Todavia, o Estado dispõe de políticas públicas que só simbolicamente previnem a materialização dessa ameaça. É
possível identificar duas políticas públicas com vistas a atenuar problemas derivados do uso de drogas. A primeira
fundamenta suas ações sobre os princípios do estatuto punitivo brasileiro, perpetuando uma afronta ao princípio da lesividade,
já que constitucionalmente a autolesão não tipifica conduta criminosa. A segunda ampara-se sobre uma abordagem de
descriminalização, mas patologiza o usuário. O objeto de ação das duas políticas é a conduta ou o usuário e ambas se
fundamentam sobre o viés filosófico da retributividade ou da máxima de que punição resulta em educação; tratando-o como
criminoso ou como doente, as conseqüências dessas políticas resultam em robustez da economia da droga e iatrogenia do mal
a ser tratado.
Palavras-chave: políticas públicas, economia da droga, criminalização.
ABSTRACT. If the welfare state is threatened either by synthesis, manufacture, traffic or drugs use, it is expected that State formulates
public policies to prevent injuries to the common good In layman terms, activities related to the use abusive of drugs are able to
threaten that common good. So, public policies should prevent the materialization of such threat. Two sorts of public policies intending
to attenuate the social problems raised by drug abuse can be identified. The first is supported by a punitive philosophy which
approaches the problem by criminating the drug user. By using penal rights, it does force users to face the consequences of the law,
such as prison. The second seeks protection in a de-criminalization approach, but pathologizes the user. The object of action of the two
politics is the conduct or the user, and both are based in the philosophical belief of compensation or in the rule of conduct that
punishment results in education. Be the user treated as a criminal or as a sick individual, the consequences of those politics result in
increase of the drug economy and iatrogenicity of the illness to be treated.
Key words: Public policies, drug economy, criminalization.
O OBJETO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS por que quaisquer prejuízos nessas instâncias de ação
PERTINENTES AO CONSUMO DE DROGAS resultam em prejuízos econômicos.
As tentativas de reduzir o impacto desses
O uso abusivo de drogas constitui um problema prejuízos não prosperaram. É possível que esse
social. Há que se entender essa afirmação como fracasso em prevenir as conseqüências desses
verdadeira, mas de forma muito restritiva. Afinal, o que prejuízos seja explicado em função de: (i) ausência
constitui um problema social são os prejuízos de outro tipo de ação estatal que não seja o combate
econômicos (no sentido lato) resultantes do abuso de ao comportamento de consumir drogas pela via do
drogas. Esses prejuízos devem decorrer da interação direito penal; e (ii) o Estado põe em prática ações
indivíduo-droga e se materializam de formas diversas. aparentemente divorciadas dos objetivos da
Algumas se situam na esfera afetiva, outras nas esferas sociedade em relação à economia de drogas,
produtiva, educativa e da saúde ou nas relações sociais. mostrando-se pouco eficaz em promover ações que
Em qualquer uma dessas esferas de ação as relações diminuam essa economia e as conseqüências que são
dos indivíduos implicam em custos e em benefícios, daí próprias dela.
* Doutor. Professor Associado do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento da Universidade Estadual de
Londrina. Bacharel em Direito.
Em termos simples, a primeira abordagem combate As ações estatais orientadas pela primeira
problemas derivados do uso ilícitos de drogas de abuso abordagem têm-se caracterizado como as estratégias
ao criminalizar a conduta do usuário. A cominação de pelas quais o Estado intervém na economia da droga.
penas dependerá de vários fatores, mas a abordagem é Todavia, o uso efetivo dessa abordagem provoca uma
baseada no sistema penal vigente e direciona suas hipertrofia do sistema repressivo. Essa hipertrofia,
ações a prevenir a sociedade dos problemas sociais além de não resultar em benefícios para a sociedade,
derivados do consumo de drogas unicamente pela via ainda torna os praticantes daquela economia muito
da restrição do direito de ir e vir do infrator. A prisão – mais eficientes. Isso porque quanto mais o Estado aja
em sua acepção ambígua – consiste em penalizar a repressivamente sobre o usuário, mais ele favorecerá o
conduta do usuário e ao local onde os direitos de ir e vir aperfeiçoamento dos fatores macro e microeconômicos
do usuário ficam restritos. Assim, a prisão decorre de da economia da droga. Em parte isso ocorre porque as
uma ação de intervenção e de prevenção, ações estatais resultam em um tipo de pressão seletiva
simultaneamente. Entretanto, as concepções político- sobre os praticantes daquela economia.
criminais atuais questionam a validade de que, com a A conseqüência de curto-prazo de uma ação
primeira ação, o Estado estabeleça para o usuário de repressiva massiva sobre a conduta do usuário será
drogas um preço justo a pagar por ter produzido lesão a redução do custo (custo lato) da droga para a
um bem jurídico relevante resultante de sua conduta de sociedade. Essa redução dar-se-á tanto em termos de
consumir droga. Com a segunda ação, o Estado previne número de usuários como em termos de quantidades
a sociedade da probabilidade de ter seu bem jurídico consumidas. Infelizmente, a sociedade não se
lesado futuramente pela repetição da conduta do beneficiará desses resultados, porquanto junto a eles
usuário em consumir drogas.2 seguir-se-á o aparecimento de fornecedores de menor
potencialidade econômica, cujas ações eram suprimidas
pelas leis econômicas do mercado das drogas. Eles
político-criminais atuais sugerem que não, conquanto a
conduta de uso possa ser sinônima de autolesão, pois ainda ofertarão drogas mais baratas, de forma local e segura
que seja típica uma atitude, se ela não causar uma lesão ,e não serão alvos – por certo tempo – das ações
relevante ao patrimônio jurídico do sujeito passivo não repressivas estatais nem de ações retaliatórias de
poderá ser incriminada penalmente. Mas a questão de fato grandes fornecedores. Já a médio-prazo haverá mais
interessante, se não intrigante, é se o uso abusivo de droga disponível por um preço menor, com
substâncias ditas entorpecentes deve ou não ser coibido
probabilidade de se aumentar o número de
penalmente. O uso do termo “entorpecente” é fatal.
Nitidamente predispõe o observador a avaliações consumidores (Kopp, 1998). O que se pode dizer é que
cautelosas quanto ao “poder de discernimento” do usuário. ações orientadas pela primeira abordagem não são
É óbvio que não se investiga a historicidade dos contextos eficientes para se prevenir que o custo social marginal
em que o uso do termo resultou de uma prática verbal útil da droga aumente.
para uma certa comunidade. Todavia, o uso fortalecido do
termo favoreceu o desenvolvimento de concepções que
apontam para prejuízos de juízo crítico do sujeito que faz
uso de drogas entorpecentes. Noutros termos, efeitos
UMA POLÍTICA PÚBLICA QUE
históricos, contextuais e farmacológicos dessas drogas AO DESCRIMINALIZAR A CONDUTA
parecem ter o poder de deixar o indivíduo pouco DE USAR DROGAS PATOLOGIZA O USUÁRIO
susceptível às contingências de ordem. Daí a prevenção – PODE SER EFICAZ?
inclusive criminal, já que vigente o art. 16 da Lei 6.368/76
– contra o uso dessas drogas. A questão, entretanto, é bem A segunda abordagem intervém sobre o domínio
mais complexa e seria proveitoso se o adjetivo do uso de drogas de forma diferente. Em vez de
“entorpecente” fosse abandonado. Afinal, se a droga for
criminalizar a conduta de consumir certa quantidade de
aceita socialmente, pouco – se não nada – se faz quanto à
prevenção da conduta que leva ao seu consumo. Aliás, já um tipo particular de droga, as ações norteadas
há defesa no sentido de que inclusive o art. 16 da referida segundo os termos dessa abordagem visam rotular o
lei seja inconstitucional, dado que o poder de definir qual usuário como alguém que requer cuidados, geralmente
substância seja entorpecente cabe à ANVISA, e não à de ordem médica e/ou psicológica. Nisso não há muita
norma contida no dispositivo, que é entendida como uma novidade. A novidade será a adoção de uma estratégia
norma penal em branco. O que se defende é que a inclusão
de novas substâncias (criminalização) ou exclusão
que vise descriminalizar a conduta de consumir drogas
(descriminalização) dar-se-á sem a participação do poder por um lado e patologizar o usuário, por outro.
competente para legislar em matéria penal (Copetti, 2000). A estratégia de descriminalização apresenta
2
Para uma visão crítica destes dois pontos, o leitor deve precedentes. Primeiro, há casos em que a conduta de
consultar a nota de rodapé anterior. consumir um tipo particular de droga materializa
claramente uma conduta tipificada, portanto ilícita. somente post factum. Quer-se dizer com isso que a
Entretanto, mesmo em casos assim o Estado abre mão conduta de usar droga ou substância dita ilícita, ou que
das suas prerrogativas de aplicar pena de prisão e cause dependência física ou psíquica (termos
aplica ao usuário o que é conhecido como medida de absolutamente impróprios, porém constantes de lei),
segurança, sem, contudo, abrir mão de exercer o poder tipificará crime de uso e, quase sempre, implicará a
de jus puniendi; e ao exercer sua faculdade de punir, o participação do Ministério Público na proposição de
Estado o fará somente se comprovados os elementos do ação penal contra o usuário. Nestes termos, o
tipo (material ou formal), a antijuridicidade e a tratamento legal dispensado ao usuário de drogas é o da
culpabilidade. Segundo, há ainda outros casos em que criminalização da conduta de uso; porém, o que ocorre
as polícias brasileiras orientam-se pela não-prisão do a partir do ato do Ministério Público de oferecer a
usuário quando se demonstra que o tipo e a quantidade denúncia de ação penal contra o usuário de droga é
de drogas parecem não ofensivos ao usuário e à extraordinário. Com esse ato abrem-se duas
sociedade, mas destinados apenas ao uso eventual do possibilidades: uma da descriminalização da conduta
usuário. Terceiro, um indivíduo – dependendo da de uso e a outra da patologização do usuário.
circunstância em que tenha sido flagrado portando ou No estágio atual da legislação, a descriminalização
consumindo um dado tipo e quantidade de drogas – só será possível após a criminalização da conduta de
poderá ser encaminhado ao Poder Judiciário, e caso sua uso. Está claro que isso não caracteriza qualquer forma
conduta tipifique os termos do artigo 16 da Lei 6.368, de descriminalização, mas uma decorrência da ação
de 19763, caberá ao Estado aplicar-lhe pena de penal. A descriminalização deve preceder a qualquer
detenção não inferior a seis meses e não superior a dois ação do Ministério Público, de forma a retirar deste a
anos. Como a pena cominada ao tipo penal é de titularidade para propor ação penal contra o usuário de
detenção, e não superior a dois anos, a competência droga, ou não será descriminalização. Mas isso
para julgar a ação penal será do juizado especial implica, como se discute abaixo, em outras mudanças
criminal, obedecendo ao rito processual especificado na legislação que cuida do assunto. A outra
pela lei 9.099, de 19954. Em fórum de juizado, caberá possibilidade é a da patologização do indivíduo. Os
ao Ministério Público, em fase preliminar da ação cinco parágrafos do artigo 12, da Lei 10.409, de 20025,
penal, propor a aplicação imediata de pena de multa ou apontam que ao dependente deve ser dispensado
pena restritiva de direitos. tratamento multiprofissional, cabendo ao Ministério da
Esses três pontos dão mostra de que o Poder Saúde regulamentar as ações que visem à redução de
Legislativo tem produzido leis mais flexíveis quanto à danos sociais e à saúde. Enquanto empresas privadas
gravidade penal da conduta de consumir dada que contam com programas de reinserção no mercado
quantidade de um tipo de droga. Adicionalmente, as de trabalho de adictos aos efeitos de drogas estão aptas
interpretações dadas aos estatutos legais que abordam a receber benefícios ainda a ser definidos pela União e
o consumo de droga, tendo este como objeto de seus entes, hospitais gerais e psiquiátricos enviarão ao
interesse principal, revelam que a dialética das partes Conselho Nacional Antidrogas – CONAD, a cada mês,
de uma lide junto ao Poder Judiciário resulta em um mapa estatístico dos casos atendidos no mês anterior
paradigma que se volta à não-penalização da conduta contendo o código da doença segundo especificações
de consumir drogas. Entretanto, as iniciativas derivadas da OMS, omitindo o nome do atendido.
dos poderes Legislativo e Judiciário somente fomentam Não obstante, não importando que decorrer desse
um campo para as discussões do que pareça ser a campo de discussões, as orientações futuras implicarão
filosofia que norteará as ações estatais pertinentes a em mais instrumentos normativos que regularão as
como agir sobre os problemas sociais derivados do relações de indivíduos relativas ao uso de drogas. Se
consumo de drogas. essas orientações, ao regular essas relações, adotarem
Essa filosofia já se aparenta claramente o princípio da descriminalização da conduta de
delimitada. Ela tem cara de ação descriminalizante consumir drogas, elas o farão com muita
restritividade; e, ainda assim, abrirão caminho para se
3
Lei nº. 6.368, de 21 de setembro de 1976. Dispõe sobre
medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso 5
Lei nº. 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a
indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e
dependência física ou psíquica, e dá outras providências. repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de
4
Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem
Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras dependência física ou psíquica, assim elencados pelo
providências. Ministério da Saúde, e dá outras providências.
implantar a segunda abordagem. Em parte porque as aos efeitos de drogas não é superior a dez por cento
ações de criminalizar ou de descriminalizar – adotadas (Milby, 1988).
exclusivamente uma em relação à outra – parecem
A abordagem que trata o usuário de droga como
mostrar-se ineficazes; em parte também porque não se
criminoso alega que drogas são fontes de financiamento
podem excluir os componentes médico-farmacológicos
político, de corrupção, de geração de riquezas e do
e psicobiológicos intrínsecos à conduta de consumir
aumento do custo social marginal. Tautologicamente,
drogas. O problema aqui é considerar em que medida
as drogas são fontes de crimes. A abordagem que trata
se aplicarão os fundamentos das duas abordagens, de
a conduta do usuário como patológica representa um
maneira que, ao se orientar pelos princípios de uma
erro duplo da sociedade. O primeiro é que negligencia
abordagem, não se excluam os princípios da outra.
em proceder via prevenção optando pela via da
Vistas sob essas perspectivas, as ações estatais que
intervenção; o segundo, que ignora que a via da
visem prevenir o consumo de drogas são estáticas por
intervenção seja fonte de iatrogenia do comportamento
um lado e dinâmicas por outro. Elas são estáticas
de adicção aos efeitos de drogas.
porque o Estado, mediante suas ações ou suas políticas
públicas, não desloca o objeto da intervenção da Por fim, se por um lado o espelho da droga é a
conduta do usuário ou do usuário propriamente dito. conduta do usuário de drogas, por outro lado, o
Ainda que as ações estatais se modifiquem, o alvo tratamento é a vitrine da sociedade que se vê refletida
delas continua sendo a conduta do usuário (no sentido nas preocupações do Estado, paladino da manutenção
penal) ou o próprio usuário. A visão de que a economia de bens jurídicos sociais como ordem, segurança e
da droga e os problemas derivados dela possam ser direitos à propriedade. A “eliminação” do usuário pode
combatidos concentrando ações sobre a conduta ou até permitir ao Estado a garantia desses bens. Todavia,
sobre o usuário é extremamente limitada. Sejam as ao agir assim, sociedade e Estado somente agravarão as
ações criminalizantes, descriminalizantes ou resultantes da relação havida entre drogas e usuário.
patologizadoras do usuário – que constituem a Será preciso reorientar as concepções da sociedade
dinâmica das ações estatais –, elas continuam presas ao
e as ações do Estado a outras direções. Isso implica em
último elo da cadeia da economia da droga. Assim, mudar o foco da atenção. A conduta do usuário
mesmo que essas ações apareçam num domínio de
interessará a quaisquer políticas somente se constituir
continuidade evolutiva, revelando o dinamismo com o aquilo que a farmacologia comportamental entende ser
qual a sociedade encara os problemas sociais derivados
seu objeto de estudo. Qual seja, a relação entre drogas
do abuso de drogas, os méritos desse dinamismo serão
e usuário será relevante quando se constituir em um
mitigados por conta de essas ações não se deslocarem conjunto de relações comportamentais, caracterizado
para além da conduta ou do próprio usuário.
pelos comportamentos de procurar, adquirir e consumir
drogas cujas conseqüências inviabilizem parcial ou
totalmente a disponibilidade do indivíduo como recurso
UMA SÍNTESE SOBRE AS POLÍTICAS
PÚBLICAS QUE VISAM COMBATER O USO DE
produtivo ou, alternativamente, levem o indivíduo a
DROGAS COM USO DE MODELOS PENAL E atividades dilapidadoras, resultando em prejuízos de
MÉDICO ordem econômica, produtiva, legal, afetiva e moral.
aumento do consumo de drogas, aumento do lucro dos Delmanto, C., Delmanto, R., Delmanto Junior, R. &
traficantes drogas, aumento da corrupção dos agentes Delmanto, F. M. A. (2002, 6ª ed. atualizada e ampliada).
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estatais envolvidos na operacionalização dessas
políticas e aumento do custo social marginal da droga, Greco, R. (2005, 5ª ed.). Curso de direito penal. Rio de
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que tem sido e será pago – é claro – pela sociedade. Ao
atentar a esses cinco pontos, sociedade e Estado Kopp, P. (1998). A economia da droga. (M. E. O. O.
Assumpção, Trad.). Bauru: EDUSC.
envidariam ações eficazes para reduzir os danos
Lopes, M. L. (1997). Princípio da Insignificância no Direito
decorrentes do consumo de drogas. Ao insistir em
Penal. RT.
intervenções sobre a conduta do usuário, ora o tratando
Milby, J. B. (1988). A dependência de drogas e seu
como criminoso, ora o tratando como doente, esses dois
tratamento. (S. M. Carvalho, Trad.). São Paulo: Editora da
entes não irão além de perpetrar práticas cujas Universidade de São Paulo.
conseqüências estão descritas em 1 e 5.
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interpretação jurisprudencial. Belo Horizonte: Del Rey.
REFERÊNCIAS
Endereço para correspondência: Ari Bassi Nascimento. Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento,
Centro de Ciências Biológicas, Universidade Estadual de Londrina, Campus Universitário,
Caixa Postal 6001, CEP 86051-990, Londrina–PR. E-mail: bassi@uel.br