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:opyright © 2004, by Guacira Lopes Louro

Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
(Sobre cartografia interior nO 9. acetato e
fotografia a cor tipo C - 1995 de Tatiana Parcero)

Revisão
Vera Lúcia De Simoni Castro

2004

Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora.


Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos,
eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora. 11 Viajantes pós-modernos

Autêntica Editora
7 Uma política pós-identitária para a educação
Belo Horizonte
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Te!: (55 31) 3423 3022 - TELEVENDAS: 08002831322
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Louro, Guacira Lopes


L892u Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teoria queer I
uacira Lopes Louro. - Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

96 p.

ISBN 85-7526-116-9

1 .Educação sexual. I.Tículo.

CDU 613.88
Estes textos carregam rastros da teoria queer, Dela aprovei-
tam conceitos, estratégias, figuras teóricas, Estão, contudo, longe
de pretender explicá-Ia ou descrevê-Ia, Querem ter a liberdade
dos ensaios, porque são "prosa livre que versa sobre um tema sem
sgotá-lo" e porque se constituem num exercício, numa espécie de
xperimentação.
A irreverência e a disposição antinorrnalizadora da teoria
quccr me incitam a jogar com suas idéias, sugestões, enunciados
C;I rcstá-los no campo (usualmente no~malizador) da educa-
(,,10, "<.uero apostar em suas articulações, pôr em movimento o
vuhvcrsivo, arriscar o impensável, fazer balançar estabilidades
U It'llezas - processos geralmente estranhos ou incômodos aos
CIIIII( III().~, às práticas e às teorias pedagógicas, Não tenho qual-
qlll~1",.11';1111
ia de conseguir sucesso nesses movimentos, mas tento
LI
I~IIIHI 10." Quccr é tudo isso: é estranho, raro, esquisito, Que-
r I~. 1!11111l{~III,
() sujeito da sexualidade desviante - hornossexu-
ill,. Id';:,UII l,tiS, irnnsscxuais, drags, É o excêntrico qu
travestis,
111111i I1'!ll~I.lM'I Illlegra d o ", e muito menos «to Iera d"
li'
o '
ílirt )fllltl dI P('f\S:lI'l' de ser que não aspira o centro nem
1Í!f"'1 UIli.\.I.1Ir It'l ~11('j:,; IIIll jeito de pensar e de ser quc desafia
as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto "Uma política pós-identitária para Educação" foi publicado
da ambigüidade, do "entre lugares", do indecidível. Queer é na Revista de Estudos Feministas, v. 9 (2), 2001 e, numa versão
um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. modificada, em Cuadernos de Pedagogia de Rosario, ano IV (9),
Os textos aqui reunidos foram escritos em momentos dis- 2001. Os demais são inéditos, pelo menos sob forma escrita.
tintos; alguns foram apresentados em encontros acadêmicos "Estranhar o currículo" baseia-se em palestra real izada no
- seminários, palestras, mesas-redondas -, outros foram lidos 1 QuodLibet, promovido pelo DIF - Grupo de Currículo de
apenas por um punhado de amigos e amigas, colegas e estu- Porto Alegre -, da Faculdade de Educação da UFl~GS, em
dantes que me trouxeram suas críticas e sugestões. Por vezes, novembro de 2002, e "Marcas do corpo, marcas de
há questões que se repetem, temas ou figuras que são retoma- poder" apóia-se em texto apresentado no V Fazendo Gênero,
das, porque elas voltavam a me provocar, porque parecia ha- encontro internacional realizado em Florianópolis, em outu-
ver mais alguma coisa a "dizer" a seu respeito ou, simples- bro de 2002.
mente, porque elas ainda pareciam boas para pensar. Encontrei Agradeço às/aos colegas e estudantes que se dispuseram a
em Rase Braidotti uma reflexão semelhante, na introdução discutir comigo o rascunho destes textos e a todos que partici-
de um de seus livros' : param dos muitos encontros acadêmicos nos quais essas idéias
I()ram se gestando. Suas perguntas, comentários e provocações
Por acaso é surpreendente, pois, que cada texto pareça
surgir do outro, mediante um lento processo de acres- IH)r certo também integram estes escritos, De modo todo espe-
centamento? Meu pensamento avança enquanto vou ( l.il, agradeço ao meu companheiro TomazTadeu, por sua sem-
agregando gradualmente pequenas peças ou relâmpa- l" ('instigante leitura, por sua generosidade intelectual e por
gos de percepção colorida em uma tela já existente.
-cu ,11 11o I'OSO apoIO.
Como penso por passos sucessivos, às vezes o processo
adianta-se a mim e as idéias crescem como uma assom-
Porto Alegre, primavera de 2003.
brosa ameba, para minha própria surpresa e deleite.
(BRAIDOTTl, 2000, p. 49)

s textos que se seguem podem ser embaralhados como


(.lI'I:IS, lidos em qualquer seqüência. O capítulo intitulado

I 1IIIIIdl1111, lC S/(jl'l()S nômades. Trad. Aleira Bixio. Buenos fures: Paidós, 2000.

8
Viajantes pós-modernos

Ao final do filme Deus é brasileiro, de Cacã Diegues, ouvi-


1110S Taoca dizer: "A vida é um porco onde a gente acaba de
chegar é nunca". Nesse filme, Deus, cansado de tanto traba-
lho, vem à terra para procurar um santo que fique em seu lu-
1',,11' enquanto ele tira férias. Na procura deste santo, ele sai
vr.ij.mdo pelo interior do Brasil, na companhia deTaoca, um
UII ,I malandro mas "gente boa", que Ele vê logo ao chegar, O
li IIIH' I rnra dessa viagem, das pessoas que eles encontram, dos
l"I',rll c's por onde passam e de transformações que acontecem
il/['_l ''1H'I1:1S com o rapaz, mas com o.próprio Deus. É um
lillllI de estrada" (road movie). Não por acaso, faz lembrar
I[' 1'1111111, 111;\ is antigo, também dirigido por Diegues: Eye bye
Rc.rliv,ido em 1978, Eye bye Erasiltratava de mudan-
PltlllllllC' seu diretor, o filme pretendia falar de rnudan-
IHlj(IIIIII:I~1 "110 coração e no estômago do país". Em Eye
IIlilll IllIpl Il\cio desengonçada, formada por um mágico
IIli.11I h.ul.n inn e um motorista, aos quais se juntam
IIÍtlll[lin, " .\11,1 mulher grávida, sai pelas estradas do
í" N'lnk~lt; 11I.1.~ill'iro,
numa viagem que não tem pa-
ili d,ltlt 11111, /lilllclizada nas palavras do mágico:
r '1UI 1t'1 "!'lII;1I1
... 1I1()VtllH'IHO
. ... "

II
A imagem da viagem é freqüentem ente evocada na Lite- 1996). A imagem da
tomando "posse de si mesmo" (LARROSA,
ratura e na Educação. Ela é recorrente nas novelas de forma- viagem me serve, na medida em que a ela se agregam idéias de
ção (Bildungsroman). Conforme Jorge Larrosa (1998, p. 65), deslocamento, desenraizamento, trânsi to. Na pós-rnodernida-
essas novelas tradicionalmente contam "a própria constitui- de, parece necessário pensar não só em processos mais confu-
ção do herói através das experiências de uma viagem que, ao sos, difusos e plurais, mas, especialmente, supor que o sujeito
se voltar sobre si mesmo, con-forma sua sensibilidade e seu que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante. É
caráter, sua maneira de ser e de interpretar o mundo". Nessas possível pensar que esse sujeito também se lança numa viagem,
narrativas clássicas, há uma espécie de entrelaçamento entre ao longo de sua vida, na qual o que importa é o andar e não o
a viagem exterior e uma viagem interior, como diz o autor, e, .hegar. Não há um lugar de chegar, não há destino pré-fixado,
nesse processo, o viajante vai formando sua "consciência, sen- o que interessa é o movimento e as mudanças que se dão ao
sibilidade e caráter". longo do trajeto. Como acontece com os personagens de
I )it:rrues, o motivo da viagem se altera no meio do caminho;
Os filmes de estrada guardam pontos de contato com es-
1111\a vez alcançado, o objetivo deixa de ser importante e se
sas narrativas (LOPES,2002). Nesse gênero de filme, o persona-
rlllIVCrre em outro; os sujeitos podem até voltar ao ponto de
gem ou os personagens estão em trânsito, em fuga ou na busca
11,111 i( ln, mas são, em alguma medida, "outros" sujeitos, tocados
de algum objetivo freqüentemente adiado e, ao longo do ca-
! li I!~lorum pela viagem. Por certo também há, aqui, formação
minho, vêem-se diante de provas, encontros, conflitos. Ao se
f' i I,II I,,(()rmação, mas num processo que, ao invés de cumulati-
deslocarem, também se transformam e essa transformação é,
'.' L li li\,;1 r, caracteriza-se por constantes desvios e retornos so-
muitas vezes, caracterizada como uma evolução.
bl" 111 Illt'~tn(), um processo que provoca desarranjos e desajus-
Quero recorrer à idéia de viagem para construir minha ar- Irli.' I" 11111110 tnl que só o movimento é capaz de garantir algum
gumentação. No entanto, para que possa desenvolver a lógica IlIdrlllltl .10 viajante.
que pretendo, é preciso abandonar qualquer pressuposto de um
***
sujeito unificado, que vá se desenvolvendo de modo linear e pro-
gressivo, na medida em que, pouco a pouco, em etapas sucessi- ) 1.-, 1I1':lIlilc'I':dr metafórico da viagem é usado por jarncs
vas, supera obstáculos, interioriza conhecimentos e entra em Ii I ( 11)1) ') pIII.IP('IIS:1
r as culturas como locais de rnornd ia "
ron rnto com pessoas ou leituras. Diferentemente da tradição m, rHII~1 1(,/11 'I i I sobre viajan tcs e nativos, turistas ou mi-
lurmnnista, não suponho que, gradativamente, o herói vá 11111 1111"11111 l~, p.ll.l pt'I1SlI r sobre os suje ,i 1 os q til' podem

12 1.\
(ou não) viajar, para pluralizar sentidos e significados das viagens, A viagem transforma o corpo, o "caráter", a identidade, o
para falar sobre raizes e rotas, sobre as formas como os "dentros" e modo de ser e de estar... Suas transformações vão além das alte-
"foras" de uma comunidade são "mantidos, policiados, subverti- rações na superfície da pele, do envelhecimento, da aquisição
dos, cruzados", para contar sobre zonas de fronteira. Suas refle- de novas formas de ver o mundo, as pessoas e as coisas. As
xões permitem pensar para além das culturas ditas exóticas, das mudanças da viagem podem afetar corpos e identidades em
tribos ou dos grupos aos quais os etnógrafos costumam dedicar dimensões aparentemente definidas c decididas desde o nasci-
tanta atenção; elas permitem pensar muitos outros deslocamentos mento (ou até mesmo antes dele).
na contemporaneidade.
A declaração "É uma menina!" ou "É um menino!" tarn-
Uma viagem é definida, no dicionário, como um desloca- bérn começa uma espécie de "viagem", ou melhor, instala um
mento entre lugares relativamente distantes e, em geral, su- processo que, supostamente, deve seguir um determinado
põe-se que tal distância se refira ao espaço, eventualmente ao 1'11
mo ou direção. A afirmativa, mais do que uma descrição,
tempo. Mas talvez se possa pensar, também, numa distância I)(Hleser compreendida como uma definição ou decisão so-
cultural, naquela que se representa como diferença, naquele !lH' 11m corpo. judith Butler (1993) argumenta que essa
ou naquilo que é estranho, no "outro" distanciado e longín- ""wrção desencadeia todo um processo de "fazer" desse um
quo. A metáfora da viagem interessa-me para refletir não ape- I I "I lI) (cminioo ou masculino. Um processo que é baseado em
nas sobre os percursos, as trajetórias e o trânsito entre lugares/ I .11.11
Icrfsticas físicas que são vistas como diferenças e às quais

culturas ou posições-de-sujeito, mas, também, para refletir so- C 1111


ri 111
i significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma se-

bre partidas e chegadas. Importa-me o movimento e também 'I11~lIcL,de muitos modos já consagrada, a seqüência sexo-
os encontros, as misturas, os desencontros. 1"'111 lo,wxualidade. O ato de nomear o corpo acontece no in-
I L, 1I'Igirnque supõe o sexo como um "dado" anterior à
I' 11111
Quem viaja realiza um aprendizado que, hoje,
1111111"
I' 1111:
.11rihui um caráter imutável, a-histórico e binário.
se dá não por acúmulo ou etapas (nascimento-infân- I:d 1"",111IIlIplicl que esse "dado" sexo vai determinar o gênero
cia-juventude-maturidade-velhice_morte), mas por liio IlIill ,111111:1
l'lnira forma de desejo. Supostamente, não há
epifanias e momentos, em que os tempos se mesclam ii i ,I IiPN~ihilid,lIll' scnfío seguir a ordem prevista. A afirmaçã
incessantemente, desmistificando um aprendizado pela liii ilH'II;IItI"1111
"(~uma menina" inaugura um processo de
rxperiência cronológica, idealizadora da maturidade. !lI!li II ",.111
1I11d(· (c'm inização com o qual o sujei to se com-
(LOPES, 2002, p. 177)
I! u 1',11,1
M 11'1.dirkll' corno um sujeito k:g(limo, com

14
1!1
um "corpo que importa", no dizer de Butler, o sUjeito se o processo parece, contudo, sempre incompleto; ele de-
verá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura manda reiteração, é afeito a instabilidades, é permeável aos
(BUTLER, 1999). encontros e aos acidentes. Efeitos das instituições, dos discur-

Apesar de tudo isso, a seqüência é desobedecida e sub- sos e das práticas, o gênero e a sexualidade guardam a incons-
vertida. Como não está garantida e resolvida de uma vez por tância de tudo o que é histórico e cultural; por isso, às vezes
todas, como não pode ser decidida e determinada num só rscapam e deslizam. Faz-se necessário, então, inventar prãti-
golpe, a ordem precisará ser reiterada constantemente, com c:\s mais sutis para repetir o já sabido e reconduzir ao "bom"
sutileza e com energia, de modo explícito ou dissimulado. 1.uninho os desviantes.
Mesmo que existam regras, que se tracem planos e sejam cria- Por certo os próprios sujeitos estão empenhados na pro-
das estratégias e técnicas, haverá aqueles e aquelas que rom- ,10do gênero e da sexualidade em seus corpos. O proces-
11111,
pem as regras e transgridem os arranjos. A imprevisibilidade fi, 1ontudo, não é feito ao acaso ou ao sabor de sua vontade.
é inerente ao percurso. Tal Como numa viagem, pode ser ins- 11111\101":1
participantes ativos dessa construção, os sujeitos não
tigante sair da rota fixada e experimentar as surpresas do in- I 111('11
,iI ;111'\
livres de constrangimentos. Uma matriz heteros-
certo e do inesperado. Arriscar-se por caminhos não traça: I'lClI.ddl·limita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tem-
dos. Viver perigosamente. Ainda que sejam tomadas todas as Illh 1',ll.ldClx:t1mente, fornece a pauta p.ara as transgressões.
precauções, não há como impedir que alguns se atrevam a n riu li~klellcin a ela que se fazem não apenas os corpos que
subverter as normas. Esses se tornarão, então, os alvos prefe- lillÍ; 11111:1111
JS regras de gênero e sexuais, mas também os
renciais das pedagogias corretivas e das ações de recuperação IIllítíllll'lf' :1,', sulivcrtern.
ou de punição. Para eles e para elas a sociedade reservará pe-
"lllll1dll\('IIII." em vez de serem repetidas, as normas
nalidades, sanções, reformas e exclusões.
litl,li!tI'I,,II'scslabili7.adas, derivadas, proliferadas. Aven-
1111
dl.'t1VI.IlItI"S,
seduzidos ou empurrados por quais-
***
("aquelas que se desviam das regras
1Il11lfl'II'Il'S t'

Um trabalho pedagógico contínuo, repetitivo e interrni- I" 11111111:1. I kixam de se conformar ao "sistcrun
n.ívcl é posto em ação para inscrever nos corpos o gênero e a IIldid.llk compulsória e nnruralizmlu"
sexualidade "legítimos". Isso é próprio da viagem na direção I I h.'~'I~IIGlllltillh,11I\
se, desgarram ·sr, iuvcut.un
pl.mcjnda. lril !li" ti deti"n -1IC1(:111,11110,
IOI'11,I'SC'
iIIlIH'.....•
(vrl

16
ignorá-Ios. Paradoxalmente, ao se afastarem, fazem-se ainda mais podem atribuir a esse deslocamento distintos significados. Eles
presentes. Não há como esquecê-los, Suas escolhas, suas formas e podem, tal como quaisquer outros viajantes, ver sua travessia
seus destinos passam a marcar a fronteira e o limite, indicam o restringida, repudiada ou ampliada por suas marcas de classe,
espaço que não deve ser atravessado. Mais do que isso, ao ousa- de raça ou por outras circunstâncias de sua existência. Sua via-
rem se construir como sujeitos de gênero e de sexualidade preci- gem talvez possa se caracterizar como um ir e um voltar livre e
samente nesses espaços, na resistência e na subversão das "nor- descompromissado ou pode se constituir num movimento for-
mas regulatórias", eles e elas parecem expor, com maior clareza e çado, numa espécie de exílio.
evidência, como essas normas são feitas e mantidas. De um modo ou de outro, esses sujeitos escapam da via
Não indago por que tais sujeitos cruzam as fronteiras. 111.lllcjada.Extraviam-se. Põem-se à deriva. Podem encontrar
Não pretendo descobrir suas intenções e propósitos, nem lhes uovu posição, outro lugar para se alojar ou se mover ainda ou-
atribuir o caráter de revelação ou de descoberta. É verdade 11.1 V(''!.. Atravessam fronteiras ou adiam o momento de cruzá-
que a metáfora da viagem parece supor um sujeito que de- \;1'0, Militas permanecem referidos à via mestra, mesmo que
tém o privilégio de perambular livremente, de ir e de vir. No I recusa-'I'"ae parur pra outra "... Suarecusanemsem-
1"llllIt:lm
entanto, não podemos esquecer que há aqueles que são em- l'll' I_I I (Iira, contundente ou subversiva; por caminhos trans-
purrados para as viagens. Clifford (1997) nos faz refletir so- lill)'" 1>11.1 recusa pode acabar reforçando as mesmas regras e
bre quem é ou quem pode ser viajante; ele nos recorda aque-
lIillll1l1!. 1\"(' pretendeu negar.
les que fazem travessias e deslocamentos compelidos por
I hl IIIIlIhém os que se demoram na fronteira, aqueles e
circunstâncias alheias ou motivos externos (criados, guias,
1111'111" fi 11(' M' nbandonam no espaço "entre" dois ou mais lu-
migrantes, exilados ...); ele nos lembra que as viagens são signi-
11111 ',1dl'ix;\1l1ficar numa espécie de esquina ou encruzi-
ficadas distintamente por gênero, por classe, por raça. Tam-
11\" 1',111'1
ido com o que acontece aos membros de gru-
bém as viagens plenas de aventuras de que falam as novelas de
1111111','. 11( 111I.l1ll'l1
temente em trânsito, sobre os quais se
formação sofrem dessas marcas. Elas são invariavelmente em-
11!lI. 1 I.III\() () 'ele onde você é?', mas o 'entre onde
preendidas por homens, não por mulheres. E homens bran-
'os. Portanto, também aqui a metáfora da viagem precisa ser í \.111'1 \1(1 I, p . .37). A fronteira é lugar de relação,
rclarivizada. Os sujeitos que cruzam as fronteir~s de gênero e lIi !1111111, U o c con fron to. Ela sepa 1';1 c, ao
11/:1111('1)(
d(' sexualidade talvez não "escolham" livremente essa traves- I'flfJ f'lI\ I onr.u o culturas c gr\lp(),~. ZOIl,\ ele
si:I, eles podem se ver movidos para tal por muitas razões, I!II11hl~!1I IClII\1de I r:lllsgrcssi\() t' ,~\t1IV('rs;\O.

18 I'
ilícito circula ao longo da fronteira. Ali os enfrentamentos propositalmente ambígua em sua sexualidade e em seus afetos.
ostumam ser constantes, não apenas e tão somente através da Feita deliberadamente de excessos, ela cncarna a proliferação e
luta ou do conflito cruento, mas também sob a forma da críti- vive à deriva, como um viajante pós-moderno.
ca, do contraste, da paródia. Quem subverte e desafia a fron- Talvez seja uma espécie de nômade e, se assim o for, dela se
teira apela, por vezes, para o exagero e para a ironia, a fim de poderia dizer que só tem "estadia provisória, via de passagem.
tornar evidente a arbitrariedade das divisões, dos limites e das Seu próprio território é construído constantemente pelo movi-
separações. Por isso, a paródia que arremeda os "nativos" do mento" (PEIXOTOapudLoPES, 2002, P: 183). O nômade é uma
"outro" lado, que embaralha seus códigos com os "desse lado", ficção política e uma "figuração", ele se distingue do migran te c
que mistura e confunde as regras, que combina e distorce as ,11)exilado (BRAIDOTTI,2002). Para Rose Braidotti, o migrante
linguagens é tão perturbadora. Ela se compraz da ambigüidade, 11;11\
um "itinerário" de deslocamento entre sua terra natal e ou-
da confusão, da mixagem. 11(l Illgar que o recebe. Seu processo é o de recorrer a seus valo-
Para as fronteiras constantemente vigiadas dos gêneros e I'.·'~'k origem, ao mesmo tempo em que tenta se adaptar aos do
da sexualidade, a crítica paródica pode ser profundamente sub- 1111',;11'
dl' acolhida. O exilado, por sua vez, é obrigado a se sepa-
versiva. Em sua "imitação" do feminino, umadrag queen pode 1\11,nulirnlmcnte, do lugar de origem e a ele não pode retomar.
ser revolucionária. Como uma personagem estranha e desor- ~!lll'l\lllIh().~,migrante e exilado, lidam com lugares de algum
deira, uma personagem fora da ordem e da norma, ela provo- tilll,lll (1X!l~."O nômade, por outro lado, se posiciona pela re-
ca desconforto, curiosidade e fascínio. De que material, traços,
Hi'til, 111(' t!1'scnnstrução de qualquer senso de identidade fixa
restos e vestígios ela se faz? Como se faz? Como fabrica seu cor-
I I i, 0.1 til I nômade tem a ver com transições e passagens, sem
po? Onde busca as referências para seus gestos, seu modo de
li 'li Íi 111~j
I'" !lVI \'1'111 inados ou terras natais perdidas" (BRAIDOTI"I,
ser e de estar? A quem imita? Que princípios ou normas "cita"
( I" 111
uu.ulcs estão sempre no meio", eles "não têm pas-
e repete? Onde os aprendeu? A dragescancara a construtivi-
"(litl (lilllln, 1(\111
apenas devires", "não têm história, ape-
dade dos gêneros. Perambulando por um território inabitá-
iiili,di1t (I )1.:1 1',\1/,1': C PARNET, 1998, p. 41).
vel, confundindo e tumultuando, sua figura passa a indicar
que a fronteira está muito perto e que pode ser visitada a fVf,l1f:(1I11
1'1,ll'SS:\S representações para pensartam-

qualquer momento. Ela assume a transitoriedade, ela se satis- 1j(1Ii)~11',lltl'I',II·ivos de g<;nero e sexualidade. Esses
(:\z com as justaposições inesperadas e com as misturas. Adrag liif'IlICltll.'lIlt:, 11'( IIS:\lll :1 fixidez e a definição das
I: lIIais de um. Mais de uma identidade, mais de um gênero, I IIt(tllt....l.illCi.l, :1 transição e a posição

20 'I
A visibilidade e a materialidade desses sujeitos parecem signifi-
"entre" identidades como intensificadoras do desejo. Viajantes
cativas por evidenciarem, mais do que outros, o caráter inven-
pós-modernos, muitas vezes, extraem mais prazer da mobilidade
tado, cultural e instável de todas as identidades. São significati-
e da "passagem" do que propriamente da "chegada' a outro lu-
vas, ainda, por sugerirem concreta e simbolicamente
gar ou ao lugar do "outro". Sentem-se à vontade no movimento.
possibilidades de proliferação e multiplicação das formas de
A transição, o processo, o percurso podem se constituir, no fim
das contas, em sua experiência mais vital ou mais "autêntica'. 1••~I1t:ro e de sexualidade.
Na viagem que empreendem ao longo da vida, alguns su-
A personagem Agrado, do filme Tudo sobre minha mãe,
If IloS deixam-se tocar profundamente pelas possibilidades de
de Pedro Almodóvar, expressa fortemente essa posição. É So-
11111.1
ordem que o caminho oferece. Entregam-se aos momen-
nia Maluf (2001) quem chama a atenção para o momento
em que Agrado descreve para uma platéia de teatro o proces-
di! Hcpil:lnia".
111'~ Saboreiam intensamente o inesperado, as sen-
11,\""~ ,I~illlagcns, os encontros e os conflitos, talvez por adi-
so de construção de seu corpo e a quantidade de silicone que
carrega. Nesse momento, a travesti afirma que o que tem demais 11"(, a trajetória
11111t1I1'11I em que estão metidos não é linear,

autêntico é exatamente o silicone, ou seja, aquilo que diz, do O!'I\I \I~U 11\11111,11,
11t:111
constantemente progressiva. Suas avcn-

modo mais material possível, da sua intervenção sobre seu pró- 1I1!~1tllI 11 111,IItll'lIt<lnto, parecer especialmente arriscadas e
prio corpo. Argumenta Maluf:
IIltlllllillllll ijll ,11 \I 10 se inscrevem 110 terreno dos gêneros l' (\:1
Illdldlldi' nlill,tI ('sS:ISs~o dimensões tidas como "csscnci:lÍs",
, " ,.. P(H Iem /11,111
o desejo travesti é o de tornar-se outro,
mas o que Agra- 11I1I"1~I'Io'" q\le, slIpostamente, nno
do assinala em seu discurso é mais o processo de tornar- 1111;dl"I,III.IS, Por isso () efeito e () ill'lloll I11
se do que o produto final da mudança. Ao apontar para 1'\'Il)IIII)N~,\lll.lo!(l1ICnH'llll'Plllítllll,'" 11

o silicone (e não para o seio simplesmente), ela aponta IIljltllll "_1".1!.1I1111.111,11'('11,1,\


,'111~,II,I/.pllllllln
para o processo, para o movimento inscrito nesse corpo. ' ..
Irl,I0I!Nllllltf'IIlIHII,II~,·(lI>. I,·,~(\·.IIWlltllllil!tto
(MALUF, 2002, p. 149)
j (11tll11t1~~~illllld,\llt'~ di \1;1' d, "IVI'I'. ,\
1i111ll11,1"111~,l>'-llflill,(H~" t Uklll
Personagens que transgridem gênero e sexualidade podem
I IlIlIdutivit, IwJktll11 qllC' U I"
ser cmblemáticas da pós-modernidade. Mas elas não se colo-
I'odtl/i[l C)(IICliltli11!iI1.\thílll\ illit iI
cnm, aqui, como um novo ideal de sujeito. Não se pretende
i llillt! IIII'ill d[il~ 1II\I!i['tll íilill
insrnurnr novo projeto a ser perseguido, não há intenção de
,ljlj iíi
I li( li111Zir nova referência. Nada seria mais anti-pós-rnoderno.

22
próprios destinos, mas certezas, cânones e convenções cultu- Referências
rais. Como as personagens de Diegues, esses viajantes pós- BRAlDOTTI, Rosi. "Diferença, Diversidade e Subjerivid.ulr N(\I1Io1111".1 /tll/')/I,
modernos deslocam-se sem "porto de chegar", gozando e mudos feministas (revista virtual http://www.unb. br/ih/his/f,/'jtlll) 1\,111 Itlllll'lloI
Ibl'bosa. n. 1-2, jul./dez. 2002.
sofrendo as sensações da viagem.
1\ UTLER, J udith. Bodies that matter. On the discursiue limlts ot'sr». NIIV,I \ 1111
Nas novelas de formação, o protagonista, a princípio, "ne- 1~llIldcdge, 1993.
cessita de um impulso que o coloque em movimento. E esse
1\\ JTI.ER, judith. "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ·.~C'HII'"111
impulso vem geralmente de um viajante" (LARRosA,2000, P: I ( II J1~O,Guacira. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Trad.'lhlllll·J.'1 ",1111
59). Como viajantes da pós-modernidade, aqueles e aquelas "I '\dv;\. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

que experimentam a proliferação dos gêneros e da sexualidade I I IPII( >RD, James. Routes. Trauel and translation in the late tu/entieth ('m/III)'

11111,1",\: l lnrvard University Press, 1997.


podem representar esse impulso para o movimento. O viajan-
111 1 I' \ l/E, Cilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. EloísaAraújo Ribeiro. SilO
te interrompe a comodidade, abala a segurança, sugere o des-
I 1111" I ,'~I 111.1,1998.
conhecido, aponta para o estranho, o estrangeiro. Seus modos
I n \lI(! 1',1\, 101[\<:.Ln experiência de Ia lectura. Estúdios sobre literatura y [ormaciôn.
talvez sejam irreconhecíveis, transgressivos, distintos do padrão il'lIl rI"lIll FdilOl'i:l1 Laertes, 1996.
que se conhece. Seu lugar transitório nem sempre é confortá-
iu« 1',1\, 11111',I'./h/tlgogiaProfona. Danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo
vel. Mas esse pode ser também, em alguma medida, um lugar lil ~It 111 1'IIIIIII\Il'gl'c: Contrabando, 1998.
privilegiado que lhe permite ver (e incita outros a ver), de modo l111t1' •.\ 11111',1'Nir/zrdJl' &aEducaçáo. Trad. Semírarnis Gorini da Veiga. Belo
inédito, arranjos, práticas e destinos sociais aparentemente uni- \1111111111.1,)'()(}2.

versais, estáveis e indiscutíveis. Não se trata, pois, de tomar sua I "11111111(I/mll/I'/II 'lI/e amava rapazes. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
figura como exemplo ou modelo, mas de entendê-ia como de- I IIIIIIII.did.ldc c desejo: Ti/do sobre minha mãe e o gênero na
sestabilizadora de certezas e provocadora de novas percepções. 1,//,,/,/\ /'~llIillh/fI.f. v. 1/2,2002.

"Mestre do negativo", como diz Lanosa, este viajante "não en- I" /lI/ti,·!: 11111I11('sc: Nova York: Roudedge, 2002.

sina nada, não convida a ser seguido, simplesmente dá a dis-


tância e o horizonte, o 'não' e o impulso para se caminhar"
(LARROSA,2000, p. 60).
I iI.j I )III\III·~. II)/H.

1_"\1 11 I JIII',IIi'~, I()()~,

~'I Pnllll ·\ItIIlIiII\v.II', 11)1)1).

24
Uma política pós-identitária
para a Educação

Nos dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto


111 ivilcgiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, an-
IIII1 iólogos, educadores, passando a se constituir, efetivamen-
II • I \\11\1:1 "questão". Com base nas mais diversas perspectivas,
.I1'·,d(· (,tltfto, ela vem sendo descrita, compreendida, explica-
.!d! 1I;1'."1;\(la, saneada, educada, normatizada. Se, nos dias de
II!lh\ ,J,I continua alvo da vigilância e do controle, agora se
Ijípliul ;1111t' diversificaram suas formas de regulação, multi-
ilHuIIIIIIH,t:,ISinstâncias e as instituições que se autorizam a
illlii 11\,:,11', tu u mns, a definir-lhe os padrões de pureza, sanida-
ií, IliI ifil, 111111.,.1(', ;1 delimitar-lhe os saberes e as práticas pcr-
ou
1111 1j1t~ld()s infames. Ao lado de instituições Ira
11111111 o 1':slado, as igrejas ou a ciência, agora ou ('ras
!!111111f; tipOSOI'Wlllizadosreivindicam, sobre clu ,
1',1

In (\ lit."1I I 11,1. POIIC;\ltltcertamente diria que, cou


('nda vez mais os discursos soh'l
111 H'II I 1'0 I'lolirl'I;IIII

ti 111 I.IIll produzind», :lvid,IIIII'1l


iii.Ic.lull" 11111
l!1(J ti I11til I; I ",11) II)('SIIIO 1('ltlpO ('1111111(; 1')(111'11

I dí1jjrdll~l" (PII\/t~i\III:I', 11)1) L,


,
~1.lo 111111111 IlIdl
111 r, I IH'I Ht::jjfl 11 Hd I'lrl 11.1CIIIIII.I.I,I
:1 luta entre elas e os grupos conservadores. A denominação até pouco tempo atrás, respostas seguras c estáveis. Agora, as
que lhes é atribuída parece, contudo, bastante imprópria. Como certezas escapam, os modelos mostram-se inúteis, as Fórmulas são
afirma em seu editorial a revistaLa Gandhi Argentina (1998), i noperantes. Mas é impossível estancar as queSl<H':s.Não hã como
"as minorias nunca poderiam se traduzir como uma inferiori- « ,,~ . " ». . .-
Ignorar as novas praticas, os novos SUJeitos, suas contcstaçoes
dade numérica mas sim como maiorias silenciosas que, ao se .10 estabelecido. A vocação normalizadora da Educação vê-se
politizar, convertem o gueto em território e o estigma em or- .uncaçada. O anseio pelo cânone e pelas metas confitívcis é aba-
gulho - gay, étnico, de gênero". Sua visibilidade tem efeitos li I!10. A tradição irnediatista e prática leva a perguntar: o que
contraditórios: por um lado, alguns setores sociais passam a ril/t'l'? A aparente urgência das questões não permite que se an-
demonstrar crescente aceitação da pluralidade sexual e, até 11'1 ipL' qualquer resposta; antes é preciso conh ecer as condições
mesmo, passam a consumir alguns de seus produtos cultu- 11111'1iossibilitaram a emergência desses sujeitos e dessas práticas.
rais; por outro, setores tradicionais renovam (e recrudescem)
seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos
nstruindo uma política de identidade
valores tradicionais da família até manifestações de extrema
agressão e violência física.
\ homossexuaiidade e o sujeito homossexual são inveri-
O embate por si só merece especial atenção de estudiosos/as 11"1 1 do XIX. Se antes as relações amorosas e sexuais en-
1I1I,~!~(
culturais e educadores/as. Mas o que o torna ainda mais com- I!r PI'Ií',(),I\ (10 mesmo sexo eram consideradas como sodomia
plexo é sua contínua transformação e instabilidade. O grande III i IIIIIIIVlrI,ldL'i ndesejável ou pecaminosa à qual qualquer um
desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e se-
1'!íll~ IloIldll.lIl11hir), tudo mudaria a partir da segunda metade
xuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas
ill[l['II' loI~( Ido: :1 p rática passava a definir um tipo especial de
apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as
II1'i1illllll VIIi,l :1 ser assim marcado e reconhecido. Categori-
fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e - o que é
111tllll "dll ( umo desvio da norma, seu destino só poderia
ainda mais complicado - que o lugar social no qual alguns su-
111.11111\
I .1 ,\t'grl'gação - um lugar incômodo para pcr-
jeitos vivem é exatamente a fronteira.
I (.III,~;III1I()S(' expor a todas as formas de violência c
Escola, currículos, educadoras e educadores não conse- 111IId, itll',IIIII\homens e mulheres contestam a scxuu-
I\IH.:mse situar fora dessa história. Mostram-se, quase sempre, Illrll""11 I' se .u rixc.uu a viver fora de seus limite».
1)('1 P lcxos, desafiados por questões para as quais pareciam ter, 111~fI,
:IS il'/vj:ls, os grupos conscrv.iclorcs e os

28 li
ser chamado de "étnico" (SPARGO,1999, p. 29). Gays e lésbicas I nnstruir "uma identidade enquanto grupo social" (TREVI-
eram representados como "um grupo minoritário, igual mas di- MN, 2000, p. 339).
ferente"; um grupo que buscava alcançar igualdade de direitos Em conexão com o movimento político (não apenas como
no interior da ordem social existente. Afirmava-se, discursiva e 1'\1({eito, mas também como sua parte integrante), cresce,
praticamente, uma identidade homossexual. 11111
m.rcionalmente, o número de trabalhadores/as culturais e
A afirmação da identidade supunha demarcar suas fron- II1II11'(I\tais que se assumem na mídia, na imprensa, nas artes e
teiras e implicava uma disputa quanto às formas de representá- il,I" universidades. Entre esses, alguns passam a "fazer da ho-
Ia. Imagens homofóbicas e personagens estereotipados exibi- !lI\l~'.l'xl\.tlidade um tópico de suas pesquisas e teorizações"
dos na mídia e nos filmes são contrapostos por representações i tll'lll~ I ,\~~,I C)95, p. 121). Sem romper com a política de identi-

"positivas" de homossexuais. Reconhecer-se nessa identidade é Illllilll I em discussão sua concepção como um fenômeno
dll!.1111
i i. II,III!,I
11~1I/)\'ic()
c universal e voltam suas análises para as con-
questão pessoal e política. O dilema entre "assumir-se" ou "per-
manecer enrustido" (no armário =closet) passa a ser considera- 1111/1111
1l"IS l' sociais do seu surgimento na sociedade oci-

do um divisor fundamental e um elemento indispensável para IliI NI' I\I'w,il (de [orrna mais visível a partir de 1980), a
a comunidade. Na construção da identidade, a comunidade .1-11 ill 1111\dl!~11I
r>'l.~s:\:\ se constituir como questão acadêrni-

funciona como o lugar da acolhida e do suporte - uma espécie Ildil"1111\"1', l'lll :dguJl1:l$universidades e grupos de
de lar. Portanto, haveria apenas uma resposta aceitável para o 111H"I I di~1ut idn, especialmente corn apoio 11:\S

dilema (repetindo uma frase de Spargo, to come bome, of cour- I! t-v I" 111 I I,'0111
I .,I11 t.
se, you first had to "come out", 1999, p. 30): para fazer parte da
comunidade homossexual, seria indispensável, antes de tudo,
que o indivíduo se "assumisse", isto é, revelasse seu "segredo",
tornando pública sua condição.
Também no Brasil, ao final dos anos 1970, o movimento
homossexual ganha mais força: surgem jornais ligados aos gru-
pos organizados, promovem-se reuniões de discussão e de ati-
vismo, as quais, segundo conta João Silvério Trevisan, se fazi-
am ao "estilo do gay conseious raising group americano", buscand
"tomar consciência de seu próprio corpo/sexualidade"

32
Como a História da sexualidade de Foucaulr havia mos-
ti ifcrentes prioridades políticas defendidas pelos vários "sub-
trado, tal escolha do objeto nem sempre tinha se cons-
grupos", o que estava sendo posto em xeque, nesses debates,
tituído a base para uma identidade e, como muitas vo-
zes discordantes sugeriam, esse não era, inevitavelmente, l'ra a concepção da identidade homossexual unificada que se
o fator crucial na percepção de toda e qualquer pessoa vi nha constituindo na base de tal política de identidade. A co-
sobre sua sexualidade. Este modelo fazia, efetivamente, mu nidade apresentava importantes fraturas internas e seria cada
com que os bissexuais parecessem ter uma identidade
VI"I. mais difícil silenciar as vozes discordantes.
menos segura ou menos desenvolvida (assim como os
modelos essencialistas de gênero fazem dos trans-sexu- No início dos anos 1980, o surgimento da Aids agrega-
ais sujeitos incompletos), e excluía grupos que defini- 11,1 IlOVOS elementos a esse quadro. Apresentada, inicialrnen-
am sua sexualidade através de atividades e prazeres mais
I (', corno o "câncer gay", a doença teve o efeito imediato de
do que através das preferências de gênero, tais como as/as
11 'nuvar a homofobia latente da sociedade, intensificando a
sadomasoquistas (SPARGO, 1999, p. 34).
li 1',1,1 i111 inação já demonstrada por certos setores sociais. A in-
Com esses contornos, a política de identidade praticada 11 dl'l ,tncia, o desprezo e a exclusão - aparentemente abran-
durante os anos 70 assumia caráter unificador e assimilacionis- dlldlls pela ação da rnilitância homossexual- mostravam-se
ta, buscando a aceitação e a integração dos/das homossexuais 111'11', lima vez intensos e exacerbados. Simultaneamente, a
no sistema social. A maior visibilidade de gays e lésbicas sugeria í IIII 111, ,\ rambérn teve um impacto que alguns denominaram
que o movimento já não perturbava o status quo como antes. k "p"sitivo", na medida em que provocou o surgimento de
No entanto, tensões e críticas internas já se faziam sentir. Para 1[1.11.1, cll' sol idariedade. O resultado são alianças não necessa-
muitos (especialmente para os grupos negros, latinos e jovens), i illllll'I\(I' baseadas na identidade, mas sim num sentimento
as campanhas políticas estavam marcadas pelos valores bran- "11I1l1.\dl: que une tanto os sujeitos atingidos (muitos, cer-
cos e de classe média e adotavam, sem questionar, ideais conven- il!lillllll', uao-homossexuais) quanto seus familiares, amigos,
cionais, como o relacionamento comprometido e monogâmico; d'ldll\lc!ol'\:s c trabalhadoras da área da saúde, etc. As redes
para algumas lésbicas, o movimento repetia o privilegiamento lPIIIIl, pOJ'l:111 to, dos contornos da comunidade hornosse-
masculino evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com ild I "I tl)lllO era definida até então. O combate à doença
que suas reivindicações e experiências continuassem secundá- Iijh~IIII11."IITela um deslocamento nos discursos a respeito
rias relativamente às dos homens gays; para bissexuais, sado- il."idade - agora os discursos se dirigem menos às
masoquistas e transsexuais, essa política de identidade era ex- I iollltll"; l' sr concentram mais nas práticas sexuais (ao
'111<1<':11 te e mantinha sua condição marginalizada. Mais do que !'"1 rxcruplo, a prática do sexo seguro),

34 11
,"'I/I',i ria 111, pois, proposições e formulações teóricas pós-iden-
Iiortanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e per-
l'll.i I i.is. l~precisamente dentro desse quadro que a afirma-
I urbadora."
';:10 de LIma política e de uma teoria queer precisa ser com-
preendida. A política queer está estreitamente articulada à produção
df' 11mgrupo de intelectuais que, ao redor dos anos de 1990,
11•1\1'1:\ a utilizar esse termo para descrever seu trabalho e sua
Uma teoria e uma política pós-identitária 1111'11 icctiva teórica. Ainda que esse seja um grupo internamente
1,,1',1.111
te diversificado, capaz de expressar divergências e de

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo,


1111111 I (' r ti ebates acalorados, há entre seus integrantes algumas
Ipl 0'< i I Ilações significativas. Diz Seidman:
excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se
constitui na forma pejorativa com que são designados homens Os/as teóricos/as queer constituem um agrupamento
e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para usar o liverso que mostra importantes desacordos e divergên-
argumento de judith Burler (1999), a força de uma invoca- cias. Não obstante, eles/elas compartilham alguns com-
promissos amplos - em particular, apóiam-se fortemente
ção sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos
11.1 teoria pós-estruturalista francesa e na desconstrução
de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por IOI11() um método de crítica literária e social; põem em
isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado e ab- ", ilO, de forma decisiva, categorias e perspectivas psica-
jeto àqueles a quem é dirigido. Esse termo, com toda sua li,,! (, iras; são favoráveis a uma estratégia descentradora
carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma ver- flll d"scol1strutiva que escapa das proposições sociais e
1'1 ti (li, ,IS programáticas positivas; imaginam o social
tente dos movimentos homossexuais precisamente para ca-
texto a ser interpretado e criticado com o pro-
,. racterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para
111111111111\

1"1\ li 11 d\' contestar os conhecimentos e as hierarquias


esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização ,"'III~ dOll\il1:ll1tcs.(SElDMAN, 1995, p. 125)
- venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposi-
ção é, certamente, a heteronormatividade compulsória da IWI'I I 111d".ldo, 01110 um termo síntese para se referir, de forma
I 11 ,I tlll~ I,\~(' uso 1\ no entanto, pouco sugestivo das irnpli-
sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e
IIIIII,·'.! I~ 11.11'11'1,.10 do lermo, feita por pane do movimento
:1 estabilidade propostas pela política de identidade do movi- II :11111111, 1',11,1 ""111.11 (I' dist inguir) sua posição não-assimilacio-

ruvnro homossexual dominante. Queer representa claramen- 111111 \I'.! 11(\'1 \11 lI'I',illl;tdll, .rinda, que a preferência por queer

1IIIIIm li,' '\11101 d!' .dgllI1S. lima rejeição ao caráter


I\' .1 diFerença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, jlt=hi

'I ,1ft hllllll '1"1'I~tlll "llllltlONS(·Xltill".

38 I)
As condições que possibilitam a emergência do movimen- Ao lado dessas teorizações que problematizaram de forma
to queer ultrapassam, pois, questões pontuais da política e da radical a racionalidade moderna, destacam-se os insights de
tcorização gay e lésbica e precisam ser compreendidas dentro Michel Foucault sobre a sexualidade, diretamente relevantes
do quadro mais amplo do pós-estruturalismo. Efetivamente, a para aformulação da teoria queer. Vivemos, já há mais de um
teoria queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ',(~culo, numa sociedade que "fala prolixamente de seu próprio
ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, proble- d{lncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os
matizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agên- 111
li Ines que exerce e promete liberar-se das leis que a fazem
cia, de identificação. ionar" (FOUCAULT, 1993, p. 14). Ele desconfia
111111 desse ale-
Já no início do século, o sujeito racional, coerente e unifi- silêncio e, contrariando
1.,111 tal hipótese, afirma que o sexo
cado é abalado por Freud com suas formulações sobre o in- lill, 11:1verdade, "colocado em discurso": temos vivido mergu-
consciente e a vida psíquica. A existência de desejos e idéias 111".-111';
1;111múltiplos discursos sobre a sexualidade, pronuncia-
ignorados pelo próprio indivíduo e sobre os quais ele não tem IIII(1,,'1:1Igreja, pela psiquiatria, pela sexologia, pelo direito ...
controle é devastadora para o pensamento racional vigente: ao IllIi 111
li I I '1IIpl'nha-se em descrever esses discursos e seus efei-
ignorar seus desejos mais profundos, ao se mostrar incapaz de 1I111I1~.Ill(lo
Il~O apenas como, através deles, se produziram
controlar suas lembranças, o sujeito se "desconhece" e, portan- IJ 11 li 1'1d 11.un m as classificações sobre as "espécies" ou
to, deixa de ser "senhor de si". Mais tarde, Lacan perturba 11'1I1<IIII,IIIII,ld(',
mas também como se ampliaram os mo
qualquer certeza sobre o processo de identificação e de agên- 1111 dll~l.l.' I:ti processo tornou possível, segundo ele, ,I
1"1
cia, ao afirmar que o sujeito nasce e cresce sob o olhar do ou- Ir111111"I liI~(III.~()1'I•.verso ".,1StO é ,um (lSCUrSO
li pro( I11
tro, que ele só pode saber de si atr~vés do outro, ou melhor,
i 111.1,,11111,,11
qll(~ I inhn sido apontado como a sede d,l
que ele sempre se percebe e se constitui nos termos do outro.
Ir'l t I.illlll 11IlIg:1Ido desvio e ela patologin. a 110111111,
Longe de ser estável e coeso, esse é um sujeito dividido, que
II t\IIII, Ia. 11I1,il\tiI' Itlll.lp:t.~,~:1:lll1pl:ll11(,lIle () ('1011'11'111.1
vive, constantemente, a inútil busca da completude. As possi-
" I' 1111I ti I ,''' "I' ().~
ti (' ti iM \ I r li! ), ,I( ('I" \I di \I I.I
bilidades de autodeterminação e de agência também são pos-
li!! 11I1"1/1'III\jlllll~1\111,\di,~IH'I.~.i()(It. dIKIlIo'oII"i
tas em xeque pela teorização de Althusser quando demonstra
li"lif"/;:tti 111'11C')(lndld.ldl·~ I );,lde:
como os sujeitos são interpelados e capturados pela ideologia.
Ao se entregar à ideologia, o sujeito realiza, de forma aparente- 111\ Iln~ii
n H'IIt c 1 ivre, seu próprio processo de sujeição. IIHln r,,., r~,1'IIi 111111111
Iil'lHHUIIH' li IlIiI

40 1I
dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se apóie lo- que esse modo de análise pode ser útil para desestabilizar
calmente em procedimentos de interdição, ele assegura, binarismos lingüísticos e conceituais (ainda que se trate de
através de uma rede de mecanismos entrecruzados, a pro-
binarismos tão seguros como homem/ mulher, masculinida-
liferação de prazeres específicos e a multiplicação de se-
xualidades disparatadas. (FOUCAULT, 1993, p. 48) de/feminilidade). A desconstrução das oposições binárias tor-
naria manifesta a interdependência e a fragmentação de cada
A construção discursiva das sexualidades, exposta por um dos pólos. Trabalhando para mostrar que cada pólo con-
Foucault, vai se mostrar fundamental para a teoria queer. tém o outro, de forma desviada ou negada, a desconstrução
Da mesma forma, a operação de desconstrução, proposta por indica que cada pólo carrega vestígios do outro e depende
Jacques Derrida, parecerá, para muitos teóricos e teóricas, o desse outro para adquirir sentido. A operação sugere tarn-
procedimento metodológico mais produtivo. Conforme II{(III o quanto cada pólo é, em si mesmo, fragmentado e plu-
Derrida, a lógica ocidental opera, tradicionalmente, através 1111. l'n ra os teóricos/ as queer, a oposição heterossexualidade/
de binarismos: esse é um pensamento que elege e fixa uma I1111Irosscxualidade - onipresente na cultura ocidental moderna
idéia, uma entidade ou um sujeito como fundante ou como I'"dnia ser efetivamente criticada e abalada por meio de
central, determinando, a partir desse lugar, a posição do "ou- 11111\.1:11 imcn tos desconstrutivos.
tro", o seu oposto subordinado. O termo inicial é compreen- Na nu-dida ern que o queer aponta para o estranho, para
dido sempre como superior, enquanto que o outro é o seu li I1(,!i!.II"IO, pa ra o que está fora-do-centro, seria incoeren-
derivado, inferior. Derrida afirma que essa lógica poderia ser "1""' ,\111' ,I teoria se reduzisse a uma "aplicação" ou a uma
abalada através de um processo desconstrutivo que estrategi- II"tlll di 1I1<~i:IS fundadoras. Os teóricos e teóricas qucer
camente revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pa- 11 II~II I'IUpl'io l' t ransgrcssivo das proposições das quais
res. Desconstruir um discurso implicaria minar, escavar, per- I iÍ 1/11 li I. I"Nitllllelltt' parn desarranjar c subverter noções t'
turbar e subverter os termos que afirma e sobre os quais o I~ 111 .I.~() dI' [uclií h Butlcr, lima das mais de,';t,1
próprio discurso se afirma. Desconstruir não significa des- Ao 11l('SIllO tempo em que rcafirm.: ()
truir, como lembra Barbara Johnson (1981), mas "está muito cXII,tlid,Idt" ('1.1 produz novas <.:OIlC<:P-

mais perto do significado original da palavra análise, que, eti- I"XII. sl'xlI.tlid.lde. g~Il<·I'(). Ihlllcl' :1111'111:1

mologicamente, significa desfazer". Portanto, ao se eleger a des- iilHoilút'111 IIIIIIII,I~ qlll' 1'(:l'.ld,1 111 c IIIlItCI'lU
HI"
onstrução como procedimento metodológico, está se indican- ,pie cI.sa" "1I1111".I~ 1(~I',lIlndll illS
do um modo de questionar ou de analisar e está se apostando \,ni.lll~'-'I «;11 ~I'II(IIIN
p:lIíl qlle inl

42 t\
matcrialização se concretize. Contudo, ela acentua que "os "o exterior" para os corpos que "materializam a norma", os
orpos não se conformam, nunca, completamente, às nor- corpos que efetivamente "importam" (BUTLER,1999).
mas pelas quais sua materialização é imposta" (BUTLER,1999, Butler, como outros teóricos queer, volta sua crítica e sua
p. 54); daí que essas normas precisam ser constantemente argumentação para a oposição binária heterossexual/homosse-
citadas, reconhecidas em sua autoridade, para que possam xual. Esses teóricos afirmam que a oposição preside não apenas
exercer seus efeitos. As normas regulatórias do sexo têm, por- os discursos homofóbicos, mas continua presente, também, nos
tanto, caráter perforrnativo, isto é, têm poder continuado e 11 iscursos favoráveis à homossexualidade. Seja para defender a
repetido de produzir aquilo que nomeiam e, sendo assim, elas inrcgração dos/as homossexuais, seja para reivindicar uma es-
repetem e reiteram, constantemente, as normas dos gêneros Il('cicou uma comunidade em separado; seja para considerar a
na ótica heterossexual. «xualidade como originariamente "natural", seja para consi-
[udith Butler toma emprestado da lingüística o conceito I k·d·]a como socialmente construída, esses discursos não esca-
de performatividade, para afirmar que a linguagem que se P,II" d:) referência à heterossexualidade como norma. Confor-
refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma constatação 1111 .'-\c·idman(1995, p. 126), "permanece intocado o binarismo
ou uma descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da !tI ,t I I CllIst'xua1/homossexual como a referência mestra para a
nomeação, constrói, "faz" aquilo que nomeia, isto é, produz dl~tllt~.\() do eu, do conhecimento sexual e das instituições
os corpos e os sujeitos. Esse é um processo constrangido e Ilth/'. I:"st' posicionamento parece insuficiente, uma vez que
limitado desde seu início, uma vez que o sujeito não decide i Illlitlll, dI' 1:\10, o regime vigente. Segundo os teóricos e teóri-
sobre o sexo que irá ou não assumir; na verdade, as normas jlli_t!. (, 1\(,I'('ss:1I-io
empreender uma mudança epistcmoló-
regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades que ele I'!i' f'll IIV.llIll'111'e rompa com a lógica binária e com seus
assume, apropria e materializa. Ainda que essas normas reite- \ l\III.l1lpJi.I, :\ classificação, a dominação e a exclusão.
rem sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade, pa- "í\l! 11"1'.1'111 t!I''\\'OllS!nu iva permitiria compreender :1 11('

radoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos 1\111,,11.11 I .1 hOIl losseXIl.tI idade como in tcrclcpcnck-nt ('S,

corpos que a elas não se ajustam. Esses serão constituídos como '" ruu 1'-'1111' 111'\ I"~";\I i.\s(' IO!1l0 ill!t'gratllL's de 11111 1I1(:S

sujeitos "abjetos" - aqueles que escapam da norma. Mas, pre- illí \1(111'(1'1(lIlld~. A .dil'ltl.II;.IO d.1 id(,ll!id.ld(~ ill\pli

risarncnre por isso, esses sujeitos são socialmente indispensá- I d(lillllii 11.,111 I' I1 IIGI'.III,.1I1 do M'\I np"',!(I, qlll' f

vcis, j~ que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem i\iil 111111 tltll'II~III~II.1',/lM~ "11\1111-''' 1)('1111;11111 I:,

44
Uma pedagogia queer?
.onrudo, indispensáveL A identidade negada é constitutiva do
sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo,
Como um movimento que se remete ao estranho e ao ex-
assombra-o com a instabilidade. Numa ótica desconstrutiva, se-
c ('lI! rico pode articular-se com a Educação, tradicionalmente
ria demonstrada a mútua implicação/ constituição dos opostos e
cI I'~paço da normalização e do ajustamen to? Como uma teoria
se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de
II,I\) propositiva pode "falar" a um campo que vive de projetos e
sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a nor-
dc~ jlmgrCj.mas, de intenções, objetivos e planos de ação? Qual o
ma, ou, mais do que isso, passou a ser concebida como "natural".
I ''11.11,1),
nesse campo usualmente voltado ao disciplinamento eà
Ao alerta r para o fato de que uma política de identidade I [Polil,para a transgressão e para a contestação? Como rom per
pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela preten- IIII I liinarismos e pensar a sexualidade, os gêneros e os corpos
de se insurgir, os teóricos e as teóricas queer sugerem uma If' 11111,1
Iorma plural, múltipla e cambiante? Como traduzir a
teoria e uma política pós-identitãrias. O alvo dessa política e ,,1'1111jlll'lT para a prática pedagógica?
dessa teoria não seriam propriamente as vidas ou os destinos
1"II'ilensaiar respostas a tais questões, é preciso ter em mente
de homens e mulheres homossexuais, mas sim a crítica à opo- '11111.1~
() alvo mais imediato e direto da teoria queer - o
sição heterossexual/homossexual, compreendida como a ca- ,li
11111 I H H k-r-saber que, assentado na oposição heterossexuali-
tegoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento 1llIltlmM'xualidade, dá sentido às sociedades contemporâ-
e as relações entre os sujeitos, Trata-se, portanto, de uma Iifll/1t.u li bérn considerar as estratégias, os procedimentos
mudança no foco e nas estratégias de análise; trata-se de ou- i iIII1.lc~11'1(' ela implica. A teoria queer permite pensar a
tra perspectiva epistemológica que está voltada, como diz 1\ldlldc', ,I multiplicidade e a fluidez das identidades
Seidman, para a cultura, para as "estruturas lingüísticas ou k 1',1111'1ti, mas, além disso, também sugere novas for-
discursivas" e para seus "contextos insti tucionais": Ij~ill 11udllll'a, O conhecimento, o poder e a educação,
!I 111 qlll:t'I" I .il como o feminismo, argumenta Tomaz
A teoria queer constitui-se menos numa questão de ex-
plicar a repressão ou a expressão de uma minoria homos-
sexual do que numa análise da figura hetero/homossexu-
""1,1 111i1l1vl'"I:l(lt-ira reviravolta epistemológica. A te-
aI como um regime de poder/saber que molda :1
11,1'1"(1'1 1(11«:1 I\OSfazer pensar queer (homossexual,
ordenação dos desejos, dos compormnu-mns (' das inSli
"11111":111"dil\'II'IlIt:") e não stmight (heterossexual,
lIIÍÇC)l'S sociais, da.~ 1'('1a~'[)('s
~()d,ti,\ 1111111.11'111.1
VI,I, a ('OI1S
i"ijd",~lll"11'1.1111,1<10"):l'I:\ nos obriza a considerar ()
tifllÍ~,ltI do ,rI/,I' doI .\111il'd,ulc'. (~IIIII\II\", 1')1)';, p. 12H)

II
impensável, o que é proibido pensar, em vez de sim- imprescindível dar-se conta das disputas, d.ls 11('gOI i.II,oes e dos
plesmente considerar o pensável, o que é permitido pen- conflitos constitutivos das posições que os sujl'Ílm lU t Ip.IIU.
sar. [... ] O queer se torna, assim, uma atitude episte-
Dentro desse quadro, a polarização heWI'OSM1(II,d/11I1IllOS-
mológica que não se restringe à identidade e ao
conhecimento sexuais, mas que se estende para o co- sexual seria questionada. Analisada a mútua (kpllldrllt LI dos
nhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer pólos, estariam colocadas em xeque a naturaliz.u.u. I 01 vu
significa questionar, problernatizar, contestar todas as perioridade da heterossexualidade. O combate :\ 111111111 (11
formas bem-comportadas de conhecimento e de iden-
bia - uma meta ainda importante - precisaria aV:1IH,.II. 1',11';1
tidade. A epistemologia queer é, neste sentido, perver-
uma pedagogia e um currículo queer, não seria suficicu It' tlf'
sa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, des-
respeitosa. (SILVA, 2000, p. 107) nunciar a negação e o submetimento dos/as homosscxu.ux, I

sim desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se 101

Uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de nam normalizados e outros marginalizados, tornando cvi
programas multiculturais bem-intencionados, em que as dife- dente a heteronormatividade, demonstrando o quanto é ne-
renças (de gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas ou são apre- cessária a constante reiteração das normas sociais regulatórias,
ciadas como curiosidades exóticas. Uma pedagogia e um currí- .1 fI!TI de garantir a identidade sexual legitimada. Analisar as

culo queer estariam voltados para o processo de produção das \· •.•1 rnrégias - públicas e privadas, dramáticas ou discretas - que
diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a '"I( I mobilizadas, coletiva e individualmente, para vencer o medo
precariedade de todas as identidades. Ao colocarem em discus- I ,I .1I ração das identidades desviantes e para recuperar uma
são as formas como o "outro" é constituído, levariam a questio- 1IIIIl.~la estabilidade no interior da identidade-padrão.
nar as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria l'roblcmatizar também as estratégias normalizadoras que,
de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compre- lIIi 'I 1I.leI 1'0 de outras identidades sexuais (e também no con-
endida como indispensável para a existência do próprio sujeito: 111 tI(· ou rros grupos identitários, como os de raça, nacio-
ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença IlItlltI~ld(· 011 classe)," pretendem ditar e restringir as formas
deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido,
assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os I;~-",\WI\ II ,1111'11I:1 que o "qucer tem se estendido ao longo de' dimensões que
inteiramente,
li'lillllul, li, ~('I,\I,hSlllllilh.~, ao gênero e à sexualidade: por exern-
processos que produzem as diferenças, o currículo passaria a
1'111, [l\i_lllIlIllI\ jI(·IC),~ quuis rnça, ccnicidndc, nacionalidade pós-colonial entre-
exigir que se prestasse atenção ao jogo político aí implicado: 111 11 , Ifllll'.~~r, r ,'11//1 11I11m! discllrsos de consticuição-dc-idcruidndc d!'
('111 v('z de meramente contemplar uma sociedade plural, seria IflloI, 1'\"/111.1".11'" (SI'IH;WII:I<Iljlllrl)/\!:n.w., I 99ó, p. 99),

48 1'1
de viver e de ser. Pôr em questão as classificações e os enqua- sabem pouco sobre a heterossexualidade. O que, pois,
dramentos. Apreciar a transgressão e o atravessamento das exigido do conhecedor para que compreenda a ignor.
da não como um acidente do destino, mas coma ,
fronteiras (de toda ordem), explorar a ambigüidade e a flui-
resíduo do conhecimento? Em outras palavras, que o, 111
dez. Reinventar e reconstruir, como prática pedagógica, es- rerá se lermos a ignorância sobre a homossexunlld,ul
tratégias e procedimentos acionados pelos ativistas queer, não apenas como efeito de não se conhecer os h()nH"~!
como, por exemplo, a estratégia de "mostrar o queer naquilo xuais ou como um outro caso de homofobia, mas, (,1\11'
ignorância sobre a forma como a sexualidade « 111111""
que é pensado como normal e o normal no queer" (TIERNEY
da? (BRITZMAN, 1996, p. 91) (destaques meus).
E DILLEY,1998, p. 60).
Transferir a outras polaridades esse mecanismo descons- A "reviravolta epistemológica" provocada pela temi.! '-P"
trutivo, perturbando até mesmo o mais caro binarismo do cam- 'r transborda, pois, o terreno da sexualidade. Ela PI' IVI li 11
po educacional, aquele que opõe o conhecimento à ignorân- perturba as formas convencionais de pensar e de {'olllll:n'l
cia. Seguindo o pensamento de Eve Sedgwick, demonstrar, sexualidade, polimorfa e perversa, é ligada à curiosid.ulr
como sugerem teóricas/os queer, que a ignorância não é "neu- r onhccirnento. O erotismo pode ser traduzido no 1".1I1'! f' 'I
tra", nem é um "estado original", mas, em vez disso, que ela "é ('I1<:rgia dirigidos a múltiplas dimensões da ('')(iSl,'1II1.1 \ 1
um efeito - não uma ausência - de conhecimento" (BRlTZ- Il\'tl.'gogia e um currículo conectados à teoria 1]111'('1 11'11

MAN, 1996, p. 91). Admitir que a ignorância pode ser com- 1 I. portanto, tal como ela, subversivos e proVIlt ,,,1111('1/, 'I
preendida como sendo produzida por um tipo particular .I, 1.1/,'1' mais do que incluir temas ou contelld,,!; 1.1"
de conhecimento ou produzida por um modo de conhecer. 1'"11" do que se preocupar em co nst ruir 11111("Isino 1'11
Assim, a ignorância da homossexualidade poderia ser lida como Ielll'" 'lllt'('r, "Urna pedagogia quccr dl'slp\ 11 ,= d,~~(rr"
sendo constitutiva de um modo particular de conhecer a sexuali- 1I11""ltlt) q\ll'('I' t- n.io-canôniro" (PINAII. 1l)l)H, p. \)
dade. O velho dualismo binário da ignorância e do conheci- /l, ,Ii,:h~••',ill improv.ivcis. '1:11 PI,(I.II,lpj\i,1 I)!lil p'id
mento, afirma Deborah Britzman, HltI tílllll' 1111101 p('d.lgo!',i,1 do "PI uuulu, "I"H! 1i1\i'II"""".
Ilili'í ít\t in, 1.\1111'1>\.11'.1 dI' 1'1111',.1\ 11.11111'1111111,Ji\,1t
não pode lidar com o fato de que qualquer conhecimento
jd contém suas práprias ignorâncias. Se, por exemplo, os/ IIINI\\i Ii/, ,,\Ir 111•• "1111" 1'\11 111.'"11"1'11 I"'ltir.í dll

as jovens e as/as educadores/as são ignorantes sobre a liil,ll'tlC,"·. ,\\W' 1.111 11'11 I,,', ~~I~fi.eg,l\rii'
homossexualidade, é quase certo que eles/elas também In'i pd, IN :;\lidl,'~",hfblCIIl'i
de viver e de ser. Pôr em questão as classificações e os enqua- sabem pouco sobre a hererossexualidade. O que, pois, é
dramentos. Apreciar a transgressão e o atravessamento das exigido do conhecedor para que compreenda a ignorân-
fronteiras (de toda ordem), explorar a ambigüidade e a flui- cia não como um acidente do destino, mas como um
resíduo do conhecimento? Em outras palavras, que ocor-
dez. Reinventar e reconstruir, como prática pedagógica, es-
rerá se lermos a ignorância sobre a homossexualidade
tratégias e procedimentos acionados pelos ativistas queer, não apenas como efeito de não se conhecer os homosse-
como, por exemplo, a estratégia de "mostrar o queer naquilo xuais ou como um outro caso de homofobia, mas como
que é pensado como normal e o normal no queer" (TIERNEY ignorância sobre a forma como a sexualidade é molda-
da? (BRlTZMAN, 1996, p. 91) (destaques meus).
E DILLEY,1998, p. 60).
Transferir a outras polaridades esse mecanismo descons-
1\ "reviravolta epistemológica" provocada pela teoria que-
trutivo, perturbando até mesmo o mais caro binarismo do cam-
I 11·IIII8horda,pois, o terreno da sexualidade. Ela provoca e
po educacional, aquele que opõe o conhecimento à ignorân-
1111111.1
.18formas convencionais de pensar e de conhecer. A
cia. Seguindo o pensamento de Eve Sedgwick, demonstrar,
IIldld.ld(" polimorfa e perversa, é ligada à curiosidade e ao
como sugerem teóricas/os queer, que a ignorância não é "neu-
O erotismo pode ser traduzido no prazer e na
Idll'l 1111\'11(0.
tra", nem é um "estado original", mas, em vez disso, que ela "é
litlll dltigidos a múltiplas dimensões da existência. Uma
um efeito - não uma ausência - de conhecimento" (BRITZ-
i I/'.i" I~ um currfculo conectados à teoria queer teriam de
MAN, 1996, p. 91). Admitir que a ignorância pode ser com-
1111.11111.
I.tI como ela, subversivos e provocadores. Teriam
preendida como sendo produzida por um tipo particular
I III!til. do que incluir temas ou conteúdos queer; ou
de conhecimento ou produzida por um modo de conhecer.
1111111."1''-'Pl'~'()cupar em construir um ensino para su-
Assim, a ignorância da homossexualidade poderia ser lida como .
jl1t1lj',"1)111.1pedagogia queer desloca e descentra; um
sendo constitutiva de um modo particular de conhecer a sexuali-
dI! íjllt'I'I"\ 1I.I(H':\nÓnico" (PINAR,1998, p. 3). As classi-
dade. O velho dualismo binário da ignorância e do conheci-
" 1111r"
Clv.tvt'is.Tal pcdagogia não pode ser reconhe-
mento, afirma Deborah Britzman,
1I!l1I I" d")'.Clgi,1do oprimido, como libertadora ou
não pode lidar com o fato de que qualquer conhecimento 11'11 1'1 '11 de' ('II<jll:ldr:lIl1Cllros.Evita operar com os
1111
jd contém suas pr6prias ignorâncias. Se, por exemplo, os/ 1í'1I1'i"" "(li' a lógica da subordinação.
111:111((',.
as jovens e os/as educadores/as são ignorantes sobre a ruu li 111 1t:1I It', ;i ,'i('gJ'(lg:l<;:IO
C ao segredo cxpcri-
homossexualidade, é qjlase certo que eles/elas também
IIh"lJlilSI I l'lelltes , 11l.1~
"",'" 1\:1t)Pl()p()(',IIIVII
.. ,.1( I('"
50
os objetivos definidos, as indicações precisas do modo de agir,
pnrn seu fortalecimento nem prescreve ações corretivas para
ns sugestões sobre as formas adequadas para "conduzir" os/as
nqucles que os hostilizam. Antes de pretender ter a resposta
estudantes, a determinação do que "transmitir". A teoria que
apaziguadora ou a solução que encerra os conflitos, quer dis-
Ihes serve de referência é desconcertantc e provocativa. Tal
cutir (e desmantelar) a lógica que construiu esse regime, a lógi-
como os sujeitos de que fala, a teoria queer é, ao mesmo tem-
ca que justifica a dissimulação, que mantém e fixa as posições
po, perturbadora, estranha e fascinante. Por tudo isso, ela
de legitimidade e ilegitimidade. "Em vez de colocar o conheci-
parece arriscada. E talvez seja mesmo ... mas, seguramente,
mento (certo) como resposta ou solução, a teoria e a pedagogia
ela também faz pensar.
queer [...] colocam o conhecimento como uma questão inter-
minável" (LUHMANN, 2000, p. 151).
Vistos sob essa perspectiva, uma pedagogia e um currícu- Referências
lo queer "falam" a todos e não se dirigem apenas àqueles ou IIIUTZMAN, Deborah. "O que é esta coisa chamada amor - identidade homos-
àquelas que se reconhecem nessa posição-de-sujeito, isto é, como ~rxlla1,educação e currículo". Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Educação e Realidade, v.

sujeitos queer. Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a I I (1), p. 71-96, jan./jun. 1996.

desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criati- II\ JTLER, Judith. "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do 'sexo'". 1n:
I ( )U RO, Guacira Lopes (O rg.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad.
vas para pensar qualquer dimensão da existência. A dúvida deixa 1111\1;tzTadeuda Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 151-172.
de ser desconfortável e nociva para se tornar estimulante e pro-
I )tI,RRIDA, Jacques.Margens dafilosofia.Trad. JoaquimTorres Costa e António
dutiva. As questões insolúveis não cessam as discussões, mas, t\ I Magalhães. Porto: Rés-Editora.
em vez disso, sugerem a busca de outras perspectivas, incitam a l'I'STE1N, Debbie; JOHNSON, Richard. Scbooling Sexualities. Buckinghan:
formulação de outras perguntas, provocam o posicionamento I )\1"n University Press, 1998.

a partir de outro lugar. Certamente, essas estratégias também I'I 1\ JCAULT, Michel. A hist6ria da sexualidade 1: a vontade de saber. Trad. Maria
111I"'<:zada Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11. ed. Rio de
acabam por contribuir com a produção de determinado "tipo"
11I1I·i
1'0:Graal, 1993.
de sujeito. Mas, nesse caso, longe de pretender atingir, finalmen-
1'\1 ;OSE, Annamarie. Queer Theory. An introduction. Nova York: New York Uni.
te, um modelo ideal, esse sujeito - e essa pedagogia - assumem
,I1I(yPress,1996.
seu caráter intencionalmente inconcluso e incompleto. I' li INSON, Barbara. Exccrto de The Critical Difference (1981), rccolhido cru
llIlÍlI 2001, do si te: http://prcleccur.stanford.edu/lccCLlI'I.:I·s/dt'I'lid.I!
Efetivamente, os contornos de uma pedagogia ou de um
I.. 1111~1
ruction.html.
currículo queer não são os usuais: faltam-lhes as proposições e

li'
52
a GandhiArgentina. Editorial. Ano 2 (3), novo 1998. "Estranhar" o currículo
LUHMANN, Suzanne. "Queering/Querying Pedagogy?01', Pcdagogy is a pretty
queer thing". In: PINAR, William F. (Org.). Queer Theory [n Education. New
Jerseye Londres: Lawrence Erlbaum Associates, Publishcrs, 1998. p. 141-156.

PINAR, William. "Introduction". In: PINAR, William (Org.). QucerTheory in


Education. New Jerseye Londres: Lawrence Erlabaum Associatcs Publishers, 1998.
p. 1-47.
Certo dia me perguntaram como eu podia expli: .11 111
SEIDMAN, Steven. "Deconstl'ucting Queer Theory or rhe Undcr- Theorizarion
ofthe Social and rhe Ethical". In: NICHOLSON, Linda; SEIDMAN, Steven. nha trajetória acadêmica, ou melhor, como podia cxpli, .11 t
(Orgs.). Social Postmodernism. Beyond identity politics. Cambridge: Cambridge me desviado da História, meu campo de origem, p.II.1 l ••tI
UniversityPress, 1995. p.1l6-141. lhar com temáticas tão "mundanas". Respondi quI' i.~~fldílh
SILVA,TomazTadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
ver com minha história como intelectual e como mulln I. Ilil
currfculo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
a ver com perguntas que estudantes me faziam c, 11I1\'uJ1"
SPARGO, Tamsin. Foucault and Queer Theory. Nova York:Totem Books, 1999.
palmente, tinha a ver com questões que me p:tll~eiall! í
TIERNEY, William; DILLEY, Patrick. "Constructing Knowledge: Educacional
Research and Gay and Lesbian Studies". ln: PINAR, William (Org.). Queer Theory tcs responder. Muito tempo depois, cncout rei uuru I1
in Education. New Jersey e Londres: Lawrence ErlabaumAssociates Publishers, mentário que pareceu se ajustar a tudo ;'%11 1)11111
1998. p. 49-71. que, para se saber reconhecer que qucsr'ro v.lI, .1 pl'!
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraiso: a homossexualidade no Brasil, da primeiro plano para reflexão e para illll'l Vt'III,llll
colônia à atualidade. 3. ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 2000.
v.~lar atenta ao into Ier áve 1". 1':'
C(' ,.
1', o que S('II,I 111mI(I
li p,'lii
plllld i:\ que não podia ser aqu i10 <\11<'1111111
"Itt' "\I ma das cond içõcs do illlOll'dv('ll( 11'11'. I'rll
I" 11I11I1('r;ivd, mas normal" (I.AIUV\UI\I, .lllIlIl

1·:.'\ s. 1 me parece 11111:111'"'1\1'1


piNtil
Ih., (~1I.1IId() COIlH'C(,i .1 1.11:11'1':11'1\(jll
1,llle f\~III:I() •.~(·llIpl'(· ('.q iVI:!lIf'l1ll1l'fll
11111/
1'1'(1iCII.\I' QI1I'.\I()(·I ~llIlIlIln
t , 11
nHI"I:ltlllIlcI.lcll·~ ,',,1111;11111>11111.(11
afirmava que essas "dimensões" são construídas discursivamen-
prazeres e desejos sexuais); e, ao mesmo tempo, instigaram-
te, eu percebia um movimento de escuta, até mesmo uma
me a analisar a história e as formas de instituição do lugar
disposição favorável a acolher tais idéias (ainda que houvesse
subordinado, desprezível ou lamentável do sujeito homosse-
resistências aqui e ali). No entanto, havia um claro limite para
xual e de Outras formas de sexualidade.
pensar nesse terreno - o limite estava na sexualidade ou,
mais especificamente, esbarrava na homossexualidade. Isso Desprezar o sujeito homossexual era (e ainda é), em nos-
não quer dizer que não me fossem feitas questões sobre sexu- sa sociedade, algo "comum", "compreensível", "corriqueiro".
alidade, pelo contrário, elas eram muitas; mas elas se dirigi- Daí porque vale a pena colocar essa questão em primeiro pla-
am, fundamentalmente e na sua mais expressiva maioria, para no. Parece-me absolutamente relevante refletir sobre as for-
descobrir a "causa" desse "problema" e para corrigi-Ia. "Como mas de viver a sexualidade, sobre as muitas formas de ser e de

1 idar com estudantes que demonstrassem de algum modo, de experimentar prazeres e desejo; parece relevante também re-
fletir sobre possíveis formas de intervir, a fim perturbar ou
qualquer modo, interesse por parceria com o mesmo sexo?"
alterar, de algum modo, um estado de coisas que considero
"Como suspeitar desses interesses?" E, em seguida: "como pro-
"intolerável". A escolha de meu objeto de estudo é, portanto,
eder para redirecionar estes sujeitos, reafirmando a forma
ao mesmo tempo política e teórica. Interessa-me entender não
'normal' de desejo?" Essas questões, constantemente repeti-
apenas como se constituíram essas posições-de-sujeito, mas
das, talvez tenham se constituído numa das razões primeiras
analisar como a oposição binária subjacente a esse regime se
para que eu dirigisse minha atenção para o estudo da sexuali-
inscreve na produção do saber, na organização social, nas prá-
dade e fizesse desse o meu campo primordial de interesse.
ticas cotidianas, no exercício do poder. Mais particularmen t
Questões "práticas", carregadas das urgências cotidianas
me interessa compreender como se dá, nas instâncias a que
do "como fazer", acabaram por me colocar questões de outra
.harnamo, de pedagógicas, a reiteração dessas posições c, par:!
ordem, levaram-me a tentar compreender com maior pro-
além disso, pensar sobre o que pode ser feito para desc:stahili
1III1didade como a heterossexualidade e o heterossexual fo- '~;\ las c desarranjar tais certezas.
1'11111instituídos como a posição e o sujeito centrais da cultura
'lIriOS:ll11cnte,talvez não sejam muitas as (';s'tldi(),~,I', I,
111 ItI"IlI:d moderna; levaram-me a examinar através de que
IIlill;81:1S bl':lsiIc:iras que se ocupam das qllc:srr)C~d"I1I'I(IIIII,
ti ,111'l',LIS essa posição se estabeleceu como norma (ou, mais
d,I"('. No l'111:11110, o corpo (da Illlllhcl') roi cll','ick H'III!!I
di", '1'\1: lo,.~(), estabeleceu-se como a expressão "natural" dos
1l/1)('I!) d.1 !I1.dOl :IICIl<,:to<1:18 v:i, j.I,~ (<lI'1 ('111 e," do 1""lÍldllil

56
a possibilidade de usar o corpo e de viver a sexualidade com Dizer que a produção dos/as teóricos/as queer se faz no
autonomia foi um propósito político do movimento; discutir Contexto do pós-modernismo e do pós-estruturalismo é dizer
a maternidade como destino ou como escolha, como privilé- muito pouco. Parece evidente que, por sua contemporanei-
gio ou como fardo também supunha remeter-se às formas de dade (essa é uma produção que se faz a partir dos anos de
viver a sexualidade. Os estudos que tinham a mulher ou as 1990) e pela problematização que lança ao "centro" da cul-
relações de gênero no centro de suas preocupações sempre tura, o movimento político e teórico deveria ser situado no
tiveram, direta ou indiretamente, que tocar em questões de pós-modernismo; além disso, sob o ponto de vista da teoriza-
sexualidade. Contudo, essas questões talvez só se tenham co- ção, aqueles que são "rotulados" como queer usualmente re-
locado de forma mais contundente a partir dos questiona- correm a Derrida, Foucault e Lacan em seus argumentos e
mentos feitos de dentro do próprio movimento feminista- suas análises, o que aponta para o pós-estruturalismo. Polê-
questionamentos lançados pelas feministas lésbicas que de- micas e debates são freqüentes entre esse grupo de intelectu-
nunciavam o princípio heterossexual implicado, aparente- ais que mantém, contudo, alguns pontos em comum, já que
mente, no conceito de gênero e que reclamavam que suas a maioria se apóia na teoria pós-estruturalista francesa e ape-
experiências e suas histórias também mereciam um protago- la para estratégias descentradoras e desconstrutivas em suas
I

nismo até então negado. análises. Sua produção tem pretensões de ruptura episrerno-
A relevância da sexualidade no campo feminista se acen- lógica; portanto, esses teóricos e teóricas querem provocar um
tua, portanto, a partir da consolidação dos Estudos Gays e jeito novo de conhecer e também pretendem apontar outros
Lésbicos e mais recentemente com os aportes de estudiosas e alvos do conhecimento. De modo geral, não produzem tcx
studiosos queer. Sem dúvida há sérias tensões entre esses cam- tos "Propositivos"; neles se encontram poucas indicações so
pos (Estudos Feministas, Estudos Gays e Lésbicos, Teoria Que- bre políticas programáticas afirmativas. A oposição bin:hi,1
cr) e, ainda que não vá explorá-ias aqui, não posso deixar de heterossexualidade/homossexualidade ganha cenrralidad" II,I~

indica!' que a tcorização mais recente perturba conceitos mui- análises de quase todos, uma vez que entendem ser ':SS:I 1111111

to 1H'1ll assentados, como, por exemplo, o de gênero. oposição que articula as práticas sociais e cu ln i 1':1is, q IIc' ,11 f I

'lda o conhecimento e o poder e que COI1! ri 1>11 i pa 1'.1pUle Itll./I


*** os sujei tos. A homossexual idade é :lIl:d iS:I<I" (OllJp I'illll' di' 11111

I'cgil11(; de poder/saber (Illais do qtll' «()lIln 1111I11 idf'llIlIllId

íR 0\1
próprios Estudos Gays e Lésbicos, ao sugerirem a inclusão des-
social minoritária), Então, pelas condições de sua emergên-
ses sujeitos e de suas histórias ou experiências nos cânoncs ofi-
cia e por suas formulações, é possível afirmar que essa é uma
ciais, nos currículos, etc.) , Em vez disso, para as teóricas e teóri-
teoria e uma política p6s-identitária: o foco sai das identida-
cos queer, a subversão "reside no momento mesmo ele n50
des para a cultura, para as estruturas lingüísticas e discursivas
inteligibilidade", ou seja, naquele "ponto" a partir do QU:1\ não
e para seus contextos institucionais,
se consegue explicar ou pensar, Ao trazer essas questões para o
O que os teóricos e as teóricas queer estão propondo é,
campo educacional, tomo de empréstimo uma pergunta ela
de certo modo, uma política de conhecimento cultural. E
borada por Suzane Luhman (1998, p. 147): "Se a subversão
esse pode ser o fio condutor para dizer das potencialidades
não é uma nova forma de conhecimento, mas reside na capaci-
dessa teoria para provocar outro modo de conhecer e de
dade de levantar questões sobre os detours de vir a conhecer e a
pensar que interessa particularmente a educadoras e edu-
fazer sentido, então o que isto significa para uma pedagogia
adores, O deslizamento do terreno da sexualidade para
que imagine a si mesma como queer?"
outros terrenos se fundamenta, em grande parte, na con-
Como traduzir o questionamento proposto por Luh-
vicção de que "a linguagem da sexualidade", como diz Eve
man? A tradução de teorias - na verdade, qualquer tradu-
Segdwick (1995. P: 245), "não apenas se intersecta com
ção - é sempre problemática, Afirma-se q.ue muitos concei-
outras linguagens e relações pelas quais nós conhecemos,
tos, ao viajarem, perdem sua potência crítica. Parece
mas as transforma" .
prudente ampliar essa afirmação e pensar que, ao viajarem,
A teoria se pretende subversiva, Mas são tantas as teorias
os conceitos e as teorias se deslocam, deslizam, entram em
t1"C se auto proclamam subversivas que tal qualificação pode
contato e interaçâo com outros espaços lingüísticos e cultu-
1I0S parecer um tanto gasta e esvaziada. Será necessário, pois,
rais marcados por relações de poder não idênticas àquelas
.ui.rlisnr o que diz Judith Butler(apudLuHMAN, 1998, P: 146):
de onde vieram, Olgária Matos (1998/99, P: 25) diz que
10 1'1;~Iir;ls subversivas têm de extrapolar a capacidade de ler, têm
"traduzir uma língua em outra, uma cultura em outra, re-
d, clt'I;:di.\1' convenções de leitura e exigir novas possibilidades
quer preservar aquilo que as faz estrangeiras, suas zonas de
.I. I, I1 I \I ,I". A suhversão da qual falam as estudiosas queer não
obscuridade e incomunicabilidade". Talvez requeira, l:llll
I IH IltI"lIl ,,11111;\ t'~1)(I,çit' ele contraconhecimento que se poderia
hórn, que se assumam os riscos da transformação, Uma Il'il
itklltHlcllj Itlr;:.tllIlI;\\lt· (o que, de certo modo era e é o que
d\l~'f1() implica, necessariamente, tra nxformaçfio l' 1)(1(' ('111
iIlilH Illíwi" 11:111 os sociais, como, por exemplo, os

(li
/,0
funcionamento uma série de questões I • Ao assumirmos tal
AIDS e com as redes de solidariedade que se formaram
empreitada, tornamo-nos uma espécie de tradutores cultu-
articuladas à doença (redes que u! trapassam claramente os
rais e nos envolvemos num processo muito mais complexo do
limites de uma identidade homossexual); têm a ver, também,
que a decodificação de palavras ou de expressões.
com o surgimento de núcleos e grupos de pesquisa e centros
Ao lidar com a teoria queer, vejo-me mergulhada nessas
universitários voltados para o estudo da s<.'xu:didadc e, em
questões: seus conceitos "fazem sentido" na nossa cultura? \...,omo
especial, para os estudos ligados a Jo'o lica li I, c ao pós-estrutu-
se sustenta sua força crítica? Como eles se transformam no con-
ralismo. De qualquer modo, as pC<':lIli.lridadl'.~
cldl\lrais Cpo-
texto brasileiro? Sem pretender atribuir uma "origem" ou um
líticas de nossa sociedade (de qual<.JlIt'f'sociedade) não sugc-
"começo" para a teoria, entendo que determinada formação
rem que a tradução de uma teoria se (;l~'.lSill1plcsll1Cl1lCpelo
discursiva permitiu sua emergência num dado contexto e seria
"transplante" de seus conceiros c proposiç-ões. Nesse processo
indispensável indagar se algo similar estaria em funcionamen-
acontecem transfigurações, rearranjos, invenções, aí sempre es-
to no Brasil. Minha resposta, ainda que tentativa, é afirmativa:
tará implicada alguma ousadia, sempre se tomará "liberdades".
penso que aqui também vêm se articulando condições que
Quero ensaiar, pois, traduzir a teoria na sua articulação com o
possibilitam um movimento queer (obviamente com marcas
campo da educação e, para tanto, experimento algumas possi-
próprias de nossa cultura)". Tais condições têm a ver com a
bilidades que me sugere a expressão queering the curriculum,
h istória do movimento homossexual em nosso país e com as
várias vezes repetida por estudiosas anglo-saxãs.
fraturas internas desse movimento; com uma mídia que vem
se desenvolvendo articulada a esse processo e também com o O que significaria tornar queer o currículo? Jogando com
surgirnento de espaços e produtos culturais voltados para o as acepções da palavra queer, ensaio uma resposta que, de
público gay; têm a ver com o surgimento e a expansão da algum modo, tenta transpor o "espírito" que a expressão su-
gere na formulação daquelas estudiosas. "O queer; como ob-
I A It"~pcito das "viagens de teorias" (em especial, das teorias feministas e dos mecanis- serva Tarnsin Spargo (1999, p. 8), pode ser tomado como
111tI\t· .ipnratos materiais e culturais que ai estão envolvidos) e, mais pontualmente, um substantivo, um adjetivo ou um verbo, mas ~empre defi-
11111,1,11I,tIiSt'dessas questões no âmbito brasileiro, ver o artigo de Cláudia de Lima
( '11'<1.1(I' 01l11<lSintegrantes do dossiê sobre "Publicações feministas brasileiras"),
nindo-se contra o 'normal' ou normalizante". A palavra tem,
1'1111I11,ulo li 01kruistn de Estudos Feministas, v, 11(1), de 2003. no COntexto anglo-saxão, mais de um significado: constitui-se
I', 11111111I11111
pOllm CSS:l questão no capítulo "Uma política pós-idenrirãria para na expressão pejorativa com que são designados homens e mu-
[1_1111 11._11.11
lheres homossexuais (equivalente à bicha, sapatão ou veado) c

63
corresponde, em português, a estranho, esquisito, ridículo, ex- Retomando às questões de Suzane Luh ma n (1998, p.147),
cêntrico, etc. Se a transformarmos num verbo, "estranhar", che- deparamo-nos com uma provocação: "Que tal ,~l'lima peda-
garemos a a Igo como "h"
estran ar o curncu Io. Parece-rne pro-
I
gogia queer colocasse em crise o que é conhecido l' como nós
dutivo, nesse caso, colocar em jogo o emprego que os gaúchos chegamos a conhecer?"
damos ao verbo estranhar e brincar um pouco com a palavra. A idéia é pôr em questão o conhecimento (e o currfculn),
No Rio Grande, quando alguém diz "tu tá me estranhando", pôr em questão o que é conhecido e as formas como rlwg:1
está sugerindo, com alguma dose de provocação, que o outro mos a conhecer determinadas coisas e a não conhecer (011 ;t

não o está tratando do jeito habitual. Como diz LuizAugusto desconhecer) outras. Não se trata, propriamente, de incor-
Fischer (1999), no seu Dicionário de Porto-Alegrês, a expressão porar ao currículo (já superpovoado) outro sujeito (o quccr) ,
se enquadra num contexto belicoso, de bravata, e se aplica quan- mas sim, mais apropriadamente, de pôr em questão a idéia
do alguém percebe ou imagina que está sendo malvisto ou de que se disponha de um corpo de conhecimentos mais ou
quando há desconfiança a respeito de si. É como se o sujeito menos seguro que deva ser transmitido, bem como pôr em
perguntasse: "tem algum problema em eu ter dito o que disse? questão a forma usual de conceber a relação professor-estu-
porque se tiver já vamos partir para a ignorâncià'. Então, quando dante-texto (texto aqui tomado de forma ampliada); trata-se
pretendemos "estranhar o currículo", nosso movimento seria ainda, e fundamentalmente, de questionar sobre as condi-
parecido com isso, ou seja, seria um movimento de desconfiar ções que permitem (ou que impedem) o conhecimento. Isso
do currículo (tal como ele se apresenta), tratá-Ío de modo não me remete ao ponto com o qual iniciei esta discussão, ou seja,
usual; seria um movimento para desconcertar ou transtornar o à idéia de que há limites para o conhecimento: nessa persp"
currtculo. Talvez se pudesse, ainda, colocar em ação algo que tiva, parece importante indagar o que ou quanto um dado
li\(' parece implícito no uso gauchesco de estranhar: "passar grupo suporta conhecer.
dos limites", abusar. Penso que é este o espírito de queeringo 5e tomarmos o curncu 1o como um texto ".gencl'l ('ICI<o
I I"
(:111
dn do: passar dos limites, atravessar-se, desconfiar do que t' scxualizado (o que ele também é), os limites parecem :-1('

1'ljl1\ posto e olhar de mau jeito o que está posto; colocar em inscrever nos contornos da premissasexo-gênero-scxlI:did.lde.
1I1111t;;IO
embaraçosa o que h~ de estável naquele "corpo de 1\ premissa que afirma que determinado sexo indica dl'l('lllIi
I (lltlll'l'illlt'IIIOS"j enfim fazer uma espécie de enfrentamento u.ulo gênero e este gênero, por sua vez, indica ou il1dll'/,() dl'S(~
111I!l1 I1IIIIil;r)( •.~ em que se dá o conhecimento. J'I. Nessn lógica, supõe-se que o sexo é "natural" t' S(' ('111 t'IIdl' o

4 65
natural como "dado". O sexo existiria antes da inteligibilidade,
na mesma medida em que o é o gênero. COIlSl'qíit:l1lt:tnCnre,a
ou seja, seria pré-discursivo, anterior à cultura. O caráter imu- própria distinção sexo/gênero fica perturbada, P;If';\ Burlcr, o
tável, a-histórico e binário do sexo vai impor limites à concep- gênero é o meio discursivo/cultural mediante () <111:11111
11 "sexo
ção de gênero e de sexualidade. Além disso, ao equacionar a 0111I'~I.~p.d.\
natural" é estabelecido como pré-discursivo. 1-:111
natureza com a heterossexualidade, isto é, com o desejo pelo vras, o sexo é, ele próprio, uma postulação, um COIlIiI
11f'10'111('
sexo/gênero oposto, passa-se a supô-Ia como a forma compul- se faz no interior da linguagem e da cultura.
sória de sexualidade. Dentro dessa lógica, os sujeitos que, por A coerência e a continuidade de alguém se <':011111 j1111'111,
qualquer razão ou circunstância, escapam da norma e promo- diz ela, em "normas de inteligibilidade", instituídas c 111:1111
Id""
vem uma descontinuidade na seqüência serão tomados como socialmente. A identidade é assegurada através de com "'10,\
"minoria" e serão colocados à margem das preocupações de estáveis de sexo-gênero e sexualidade; mas há sujeitos de g(lIH'
um currículo ou de uma educação que se pretenda para a ro "incoerentes", "descontínuos", indivíduos que deixam de Sl'
maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos "marginalizados" con- conformar às normas generificadas de inteligibilidade cultural
tinuam necessários, já que servem para circunscrever os con- pelas quais todos deveriam ser definidos. Em suas palavras:
ramos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem
nos sujeitos que importam. O limite do "pensãvel", no campo os espectros da descontinuidade e da incoerência são proi
bidos, mas também são produzidos pelas próprias leis q\l('
dos gêneros e da sexualidade, fica circunscrito, pois, aos con-
" buscam estabelecer essas linhas de coesão causais entre SI'XCI
tornos dessa seqüência "normal". Sendo a lógica binária, há biológico, gêneros culturalmente "expII'",.II'"
construidos c
<1m; admitir a existência de um pólo desvalorizado - um grupo ou "o efeito" de ambos na manifestação do d<':st'jo -'I'XII."
designado como minoritário que pode ser tolerado como des- através da prática sexual. (BUTLER, 1990, p. 17)

vi.uuc ou diferente. É insuportável, contudo, pensar em múl-


Não há lugar, no currículo, para a idéia de 1l11J!I'iplj"iclnd\
tIlllas sexualidades, A idéia de rnultiplicidade escapa da lógica
(de sexualidade ou de gênero) - essa é uma idéia illlilljlOII.1VI,1
'1"1' rcge toda essa questão.
E o é, entre outras razões, porque aquele/a que a :1I1'l1il<I'oel,
F.possfvcl, no entanto, subverter essa lógica, se pensarmos
ser tomado como particularmente implicado lia 111,dliplh.I,.b
'1'11'II,WX() é, também, um constructo cultural. É nessa direção
de. Conseqüentemente, há quem assuma, ('()I" r(~llo \1'1',1111111,
I ;lIllilll1.1flldilh Butler (1990). Ela rompe com a conexão
ignorar formas não-hegemônicas de scxunli.l.nl», 1\0 d,'( 1.11':11
'U Icura, ao sugerir que o sexo é cultural,
sua ignorância, ele/ela pretende afirmar, impli, il.lllll:lllt:, <lIIC

(>lI
67
"não têm nada a ver com isso", ou seja, que não se reconhece
de ser acolhido como verdade. Existem conhecimentos em re-
envolvido/a nessa questão, de forma alguma.
lação aos quais há uma "recusa" em se aproximar; conhecimen-
Estamos diante de outro ponto central na análise queer: a
tos aos quais se nega acesso, aos quais se resiste. Por tudo isso, ao
questão da ignorância. Eve Sedgwick (1993) e outros teóricos/
tratarmos de educação e de pedagogia, talvez devêssemos pen-
as propõem que se pense a ignorância não como falha ou falta
sar, como sugerem alguns, não propriamente na paixão pelo
de conhecimento, mas sim como resíduo de conhecimento,
conhecimento, mas sim na paixão pela ignorância e perguntar
como o efeito de um jeito de conhecer. A teoria queer coloca
o que essa ignorância ou esse desejo pela ignorância tem a nos
em questão um dos binarismos fundantes do campo educacio-
dizer. Não deveríamos pensar numa "incapacidade cognitiva"
nal, a oposição entre conhecimento e ignorância, ao demons-
de aprender algo, conforme sugere Suzane Luhman (1998),
trar que esses pólos estão mutuamente implicados um no ou-
mas sim entender o desejo pela ignorância como performati-
tro e ao sugerir que a ignorância pode ser compreendida como
vo, isto é, como produzindo a recusa (ou o não-desejo) a ad-
sendo produzida por um modo de conhecer, ou melhor, que
mitir a própria implicação naquilo que está sendo estudado
ela é, também, uma forma de conhecimento.
ou examinado. A resistência ao conhecimento deveria nos
No campo da Educação, a ignorância sempre foi concebi- levar, portanto, a tentar compreender as condições e os lim i-
da como o outro do conhecimento e, então, repudiada. Agora tes do conhecimento de certo gn-l;po cultural. Como educa
a idéia é compreendê-Ia como implicada no conhecimento, o doras/es nos interessa descobrir onde, em que ponto, um tcx
que, surpreendentemente, leva a considerá-Ia valiosa. Seguin- to ou uma questão deixam de "fazer sentido" para um grupo
do Deborah Britzman (1996, p.91), poderíamos admitir que de estudantes; onde ocorre a "ruptura" do sentido; e, aindu.
"qualquer conhecimento já contém suas próprias ignorân- como podemos trabalhar através da recusa a aprender. "() (/111
cias". Quando determinados problemas são formulados, isso há para aprender com a ignorância?" - é a questão que (;01(1

St· (:lZ com o suporte de determinada lógica que permite cam estudiosas queer.
11)1 mu lá-los e,que, por outro lado, simultaneamente, deixa de
Por certo a resistência a aprender pode se observa, I.l GIII ~IIII
I()I";l ou t ros problemas, outras perguntas. A própria formula-
manifestação individual e psicológica, mas talvez seja 111,1;,\ IlIorlt i
lj'ill) (11) prohlcrna indica o que será objeto do conhecimento eo
rivopensar tais questões numa ótica cultural. Pode 1'1('1 lílil, ,1'1"1, 11
'1111 I kVl'd ficar "desconhecido"; o que será reconhecido, acei-
.onceiro foucaultiano de episteme compreendido (ClIIUI t!lIl1pti
1(1,ddlllÍtldo t' o que permanecerá irreconhecível, impossível
'pistemológico no interior do qual determinadas l I li~.I~, 11',dflil M 1

68
69
concebidas ou podem ser ditas e outras não. Segundo Foucault quisermos pensar queer, teremos de imaginar (c)I'Inas de atra-
(1995, p. 11), os conhecimentos "manifestam uma história que vessar esses limires''. Quando digo atravessar, pt'I1S0 em várias
não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições possibilidades implicadas nessa ação, tais COII1O"p.issnr através",
de possibilidades". Há coisas e há sujeitos que podem ser pensados isto é, fazer uso dos próprios obstáculos vrfculo para
COIllO11111
110 interior de uma cultura e outros que são impensáveis, e o são penetra- 1os e supera- 1os, ccpercorrer
I I »
e tam I)('111 (1.11t~P()1'os
J n 11 I'I-
porque não se enquadram numa lógica ou num quadro adrnissí- mites. Isso supõe um movimento de ab:llldollll d,l\ regr:IS da
vcis àquela cultura, naquele momento. Coisas, ou sujeitos, ou prá- prudência, da ordem, da sensatez, Isso impli: ,I P('I (1111inr ,I 1;1-
ticas aos quais falta um solo, ou uma "tábua de trabalho". Funda- miliaridade do pensamento e pensar (01':1d,l l0l'tl( ,I 1\('1',111':\,
mentalmente, o que deixa de existir é um quadro de referências As questões que passariam a nos mohilizn: ,\('11.1111,11111<1:\.
que permita o pensamento operar - essas práticas e esses sujeitos mentalmente, aquelas que indagam CO\11011111
,\,dll I M'COIlS-
transgridem toda a imaginação, são incompreensíveis ou impen- titui e como outro saber não se const iIIII (011 u.ro (.0 II.'it'gll"
sáveis e, então, são recusados e ignorados. se constituir); como funcionam, ncsx« jogfl d(~:tllllIl,t<,'()CS c
A recusa é experimentada, freqüentemente, como in- de negações, as relações de poder,
transponível e paralisante. Não formulamos outras questões, O movimento que consiste em tflll'('/'ÍII,c::1 ( tllt( ,I~,I() pode
não há como sustentá-Ias dentro da lógica vigente. Não aco- ser pensado, ainda, como um movimento <1111:
llllplit,l (1IH:t{'l'O-
lhcmos curiosidades impertinentes, a menos que possamos tor- tização dos processos de conhecer, d(' ,11'1('lltI('1 t' dI; ensinar.
,d -Ias "pertinentes" ou domesticá-Ias. Perguntas que escapam A erotização será tomada num SCllt i(11)1,11'111
I (' ,ll.llg,l( 10, como

(Ia lógica são temidas, qualificadas como impróprias e inconve- uma energia e uma força motriz <lI\(' illll'ltI,'.I1111:1IIOSSOSatos
nicnrcs, Elas causam desconforto, não se "ajustam", são incon- cotidianos e nossa relação com os (lI IIm ....S('III (lt-ixar de lado a
I' ol.ívcis e incontroladas; elas perturbam o "domínio" do co- sensualidade e os corpos, certanu-nu, 1:111")(111implicados nes-
nlu-rirncnro que ambicionamos. ses processos, penso aqui num crnt i8111(1
1" ('WIII(' nu sala de aula
No C:ltnpO da sexualidade, operamos dentro da lógica
hitl:hi;1 C suportamos estender nosso pensamento aos sujeitos 3 É nessa direção que Tornaz.Tadcu :1l"('II,I,('111 ,\('111 !r/I/lI/II'/l11I1 ti" identidade (1 999),
t' WI I";H iCls que se relacionam a essa lógica. Fora desse qua- quando afirma que se deve "forç:lI n" /1111111'\ .1,1\ ('I"\II'IIIt'S dominantes". Aquilo
que se tem como "o campo elc s:lhl'l (1(),\\(v('1 dI' 11111.1 d:lda época" (c do qual o
ti r" 1li ).~tI<:p:\ramos com obstáculos epistemológicos muito
currículo é um recorte) teria deM'1 1'\ll'lIdld(l, ""'I'"ldo; rro/ltciras, barreiras e
di (((l'i .•1 11\1(I\I:\,~(' impossíveis de ultrapassar. No entanto, se obstáculos teriam de ser rompidos.

o 71
e em outros espaços educativos, que se liga à curiosidade, por- FOUCAULT, Michel.As palavras e as coisas. Trad. Salma'I:1I1111l" 1\111,h.ul, SolO
Paulo: Martins Fontes, 1995.
tanto, ao desejo de saber, As referências de Freud ao desejo
polimorfo e perverso que experimentamos em algum momen- LARRAUIU,Maite.LasexualidadsegtÍnMicheIFoucault. \':"('1111,1lllld'"I, '0110

to em nossas vidas permitem pensar que nosso erotismo não LUHMANN, Suzanne. "Queering/Querying Pedagogy? 01, l'l'dll',"i:l' 1
queer thing". In: PINAR, William F. (Org.). Queer ThcOly 1/1 I "doI
necessita de um alvo único, mas, em vez disso, pode se espalhar
]erseye Londres: Lawrence Erlbaum Associares, Publishcrx, I 'li/H I' I
em muitas direções,
MATOS, Olgária. A triste utopia. Rumos. Os caminhos do 111,/111 ,'//I 11;;I
Já se disse que sem a sexualidade não haveria curiosida- n. 1, dez.98/jan.99.

de e sem curiosidade o ser humano não seria capaz de apren- SEDGWICK, Eve. Axiomatic. 111: DUIUNG, S. (Org.) 1'111' (1/1111/
der. Tudo isso pode levar a apostar que uma teoria e uma der. Londres e Nova York: Routledge, 1993. p. 243-268,

política voltadas, inicialmente, para a multiplicidade da SILVA, TomazTadeu da. Documentos de identidade: um» ;,,1/(1/1/1(,
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
sexualidade, dos gêneros e dos corpos possam contribuir para
transformar a educação num processo mais prazeroso, mais SPARGO, Tamsin. Foucault and Queer Theory. Nova YCl.lII'I'''"III 1\[11"
1999.
efetivo e mais intenso,

Referências

IIIUTZMAN, Deborah. "O que é esta coisa chamada amor - identidade homos-
M'KII:1I,educação e currículo", Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Educação e realidade, v.
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\'11I1<:Rourlcdge, 1990.

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11.I,It""IO: I('l1cxócs do campo". Revista de Estudos Feministas. v. 11 (1), jan/jul,
'11I1 \, I' .l'itl l()tI,

! 11." ,I 1,; I{, I.lIi/ /\lIgIISIO, Dicionário de Porto-Alegrês. Porto Alegre: Artes e
(-"'', im, 1'1'1'1

7l
Marcas do corpo, marcas de pouer

Diz-se que corpos carregam marcas. Poderíamos, ('I !I flfl o


perguntar: onde elas se inscrevem? Na pele, nos pelos, 11;\.' (01

mas, nos traços, nos gestos? O que elas "dizem" dos c()rpo.~.
Que significam? São tangíveis, palpáveis, físicas?Exibem-se; f:,,'il
mente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, sugc
rindo, qualificando, nomeando? Há corpos "não-marcados'?
Elas, as marcas, existem, de fato? Ou são uma invenção do
olhar do outro?
Hoje, como antes, a determinação dos lugares SOCiaiS (lll

das posições dos sujeitos no interior de um grupo é referida .t

seus corpos. Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo i 1li Ii


ciados, classificados, ordenados, hierarquizados e definidos I'I{I
aparência de seus corpos; a partir dos padrões e 1'(:(('n~llI:11I
das normas, valores e ideais da cultura. Então, os rOIP()~Nnll 1i

que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; () (li 111:11(1 di,
olhos, do nariz ou da boca; a presença da vaginn ou cltlllt~Ili"llj
rnrnanho das mãos, a redondeza das ancas (.' dll
sempre, significados culturalmente e é assim Iple S(' 1111'illlill

(O1l não) marcas de raça, de gênero, de; (" 11i.1 o:III~Illl::'~I1IU di


(1;ls,~e;
c de nacionalidade. Podem valer Illoti,\tllI vnler I.Wlltl

5
Podem ser decisivos para dizer do lugar social de um sujeito, importância. Posteriormente, no entanto, ele ganhou 11111 1"'1'11
ou podem ser irrelevantes, sem qualquer validade para o siste- primordial- o corpo se tornou causa ejustificatiIJtld.l\ dll;'II'1I

ma classificatório de certo grupo cultural. Características dos ças. "De um sinal ou marca da distinção masculino/ (('I I I1 t I111I I 11
corpos significadas como marcas pela cultura distinguem su- características] passaram a ser sua causa, aquilo q 1Il' (U 111 't'r 111'
jeitos e se constituem em marcas de poder. afirma Nicholson (2000, p. 18). Tais mudanças não ,~!lll h:111111

Entre tantas marcas, ao longo dos séculos, a maioria das elas denotam profundas e relevantes transformações n:l~ 1111111.1

sociedades vem estabelecendo a divisão masculino/feminino de dar significado ao que representa ser homem ou rnu 1111' 11_'111
como uma divisão primordial. Uma divisão usualmente com- determinada sociedade, elas sugerem mudanças nas 811.1\ 1101,1

preendida como primeira, originária ou essencial e, quase sem- ções e, portanto, nas formas como o poder se exercita.
pre, relacionada ao corpo. É um engano, contudo, supor que Até o início do século XIX, conforme conta Laq l\(.'III, 1)('1

o modo como pensamos o corpo e a forma como, a partir de sua sistira o modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao I()I 'I'.Cl
materialidade, "deduzimos" identidades de gênero e sexuais seja de um único eixo, cujo telos era o masculino; portanto, t'111 ('I I

generalizável para qualquer cultura, para qualquer tempo e dia-se que os corpos de mulheres e de homens diferia 11 I ('ltI

lugar. A identidade sexual tem de ser pensada "como enraiza- "graus" de perfeição. As explicações da vida sexual apoiuv.un
da historicamente", diz Linda Nicholson (2000, p. 15). Preci- se na idéia de que as mulheres tinham, "dentro de seu corpo",
samos estar atentos para o caráter específíco (e também transi- os mesmos órgãos genitais que os homens tinham cxrcrnunu-r:
tório) do sistema de crenças com o qual operamos; precisamos te. Em outras palavras, "as mulheres eram essencialmenr., 1111

nos dar conta de que os corpos vêm sendo "lidos" ou compre- mens nos quais uma falta de calor vital- de perfci~'ilO_ h:l\'tll

ndidos de formas distintas em diferentes culturas, de que o resultado na retenção, interna, de estruturas quc II(),~ 111111 111',

modo como a distinção masculino/feminino vem sendo enten- eram visíveis"(LAQUEUR,


1990, p. 4).Asubstitlliç~() cI"\\t: III!!I.I

d ida diverge e se modifica histórica e culturalmente. 10 (de um único sexo) pelo modelo de dois sexos <lI li 1,\III~. 11111
No tempo em que a Bíblia era a "fonte da autoridade", era modelo que até hoje prevalece, tem de ser crucn.l id.I I;lJIII(lllill
no texto sazrado que se buscava a explicação sobre o relacio- culada a mudanças epistemológicas e políticas.
1'.IIIl(·lllO cnrrc mulheres e homens e sobre qualquer dife- O discurso sobre o corpo e sobre a s(,}((I.did.ldc IllUdl! 1\11
11111,.1 pt'I'l'('hidn entre eles. Nesse tempo, o corpo tinha menos medida em que o corpo não é mais COll1p":(,:tldttltl Uilll!l uru

77
microcosmo de uma ordem maior". A antiga concepção, que e se voltaram, então, para a disciplinarização t' 1'('l',I!laÇnC)
II:t
ligava a experiência sexual humana à realidade metafísica e à família, da reprodução e das práticas sexuais. N.lo.; dl{I:;ld:I!,
ordem social, cede espaço à outra, que permitirá desvincular o finais do século XIX, homens vitorianos, méd icos (' 1';111
ti 11111
corpo desse amplo contexto e, ao mesmo tempo, irá atribuir ao filósofos, moralistas e pensadores fazem "descobertas", (I(·r 11111,
/.11
sexo uma centralidade nunca vista. Experimenta-se uma trans- e classificações sobre os corpos de homens e mulheres. SII.I'; 1"11
formação de paradigmas. Formulações filosóficas, religiosas e clamações têm expressivos e persistentes efeitos de Vl.'1d"de.
teóricas ligadas ao Iluminismo; novos arranjos entre as classes
A partir de seu olhar "autorizado", diferenças entre slIj(·iIIlSI
sociais decorrentes da Revolução Francesa e do conservado ris-
práticas sexuais são inapelavelmente estabelecidas. N;lO « dI
mo pós-revolucionário; mudanças nas relações entre homens e
estranhar, pois, que a linguagem e a ótica empregadas em 1ais
mulheres, vinculadas ao industrialismo, à divisão sexual do tra-
definições sejam marcadamenre masculinas; que as mulheres se'
balho, bem como às idéias de caráter feminista então em circu-
jam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambfgun,
lação, são algumas das condições que possibilitam essa mudan-
escorregadia e potencialmente perigosa; que o comportamento
ça de paradigmas. Mas, como afirma Laqueur (1990, p. 11),
das classes média e alta dos grupos brancos das sociedades urba
"nenhuma dessas coisasprovocou a construção de um novo corpo
nas ocidentais tenha se constituído na referência para estabcle
sexuado, Em vez disso, a reconstrução do corpo é, ela própria,
intrínseca a cada um desses desenvolvimentos". Portanto, é pos- cer as práticas moralmente apropriadas ou higienicamente sas,

sfvcl dizer que novos discursos, outra retórica, outra episteme se Tipologias e relatos de casos, classificações e minuciosas hicr.u
i11S ralam e, nessa nova formação discursiva, a sexualidade passa quias caracterizam os estudos da nascente sexologia. Busca-se,
.1 ganhar central idade na compreensão e na organização da tenazmente, conhecer, explicar, identificar e também classií]: .11,
sociedade. Por certo o surgimento desse novo modelo não sig- dividir, regrar e disciplinar a sexualidade. Produzem-se d i,~('11,',li',
11ilkou o completo rechaço do anterior; por um largo tempo, carregados da autoridade da ciência. Discursos que se ('()11r 1111'
u.rv.rram-se disputas em torno do significado atribuído aos tam ou se combinam com os da igreja, da moral c da 11'1
I'(llpo,~,~ sexualidade e à existência de homens e mulheres. Tudo isso permite dizer, como faz judith 131111(;1"
1/'11 11
Ul'g:lllizados politicamente, os estados passaram a se pre- discursos "habitam corpos", que "eles se aC0!110d:111I
1'111 t 111

111-"
1':1I, c.ld.1vez mais, com o controle de sua população, com pos" ou, ainda mais contundentemente, que "os (,()lllI I~, 1111
\'I~I
Inl.l,d.l" (Pll: g;lranl isscm a vida e a produtividade de seu povo dade, carregam discursos como parte de seu pl't)pl1ll \'"11\11

8 79
(BUTLERem entrevista aPRINS eMEIJER, 2002, p. 163). Portan- e desenvolve sua sexualidade, tendo como alvo () 11(')1<1
I111C1\11
I, (111
to, antes de pretender, simplesmente, "ler" os gêneros e as ,t, II IIIIIIII(1.1111
seja, o corpo diferente do seu. Essa seqüência S<':I
sexualidades com base nos "dados" dos corpos, parece prudente perativa? Natural? Incontestável? Que garanti.l\ 11,\ell Ipll f'llI
pensar tais dimensões como sendo discursivamente inscritas nos ocorra, independente de acidentes, acasos? NoIO 11:1qllldlpll I
corpos e se expressando através deles; pensar as formas de gêne- i ICI1111'
garan tia. A seq üência não é natural nem segu r:I, 11111 11I1
ro e de sexualidade fazendo-se e transformando-se histórica e indiscutível. A ordem pode ser negada, desvind.i, A ~{'qflílll I1
culturalmente. Não se pretende, com isso, neg;ar a materialida- desliza e escapa. Ela é desafiada e subvertida. Para ,\11111111,\ 1111111
de dos corpos, mas o que se enfatiza são os processos e as práticas assegurar seu funcionamento são necessários inWSI illll·IIIII.~'c! .n
discursivas que fazem com que aspectos dos corpos se conver- tinuados e repetidos; não se poupam esforços p:t I,I Ild;'lldl~ ln
tam em defini dores de gênero e de sexualidade e, como conse-
A ordem só parece segura por se assentar solll (~II dllVidl-1
qüência, acabem por se converter em definidores dos sujeitos.
so pressuposto de que o sexo existe fora da culnun 1'. fllllhl
Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que qüenrernenre, por inscrevê-Ia num domínio :lP,11111111
IIII III!
determinado sexo (entendido, neste caso, em termos de carac- estável e universal, 6 domínio da natureza. A OIlk:111"111111_
lu
terísticas biológicas) indica determinado gênero e este gênero, na" como se os corpos carregassem uma essência de~dt' jl IllilciI
por sua vez, indica o desejo ou induz a ele. Essa seqüência su- !~I'
mento; como se corpos sexuados se constituísscru 1111111[1
põe e institui uma coerência e uma continuidade entre sexo- cie de superfície pré-existente, anterior à CI" t 111'11,O li d
g~nero-sexualidade. Ela supõe e institui uma conseqüência, ela encontrar, contudo, esse corpo pré-cultural? COIIICI.11I
:1fi rma e repete uma norma, apostando numa lógica binária Na tela do aparelho de ecografia que mostra os pllllll'lIl1,~ 11111

pela qual o corpo, identificado como macho ou como fêmea, mentos da vida de um feto, teríamos, afinal, um (,()II'CI,llIldll Ii[It
determina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino nomeado pela cultura? A resposta terá de ser IH','"IlIVII,t\!hl-I11
011Il:minino) e leva a uma forma de desejo (especificamente, o corpo que não seja, desde sempre, dito e fcito 1101 1,1dI lll'il! dnil'l
c 1C','iC'jo
dirigido ao sexo/gênero oposto). Ainda que o corpo possa to, nomeado e reconhecido na linguagem, :ttl'oIVf~.'i
IIn
c' 11.\ll.~()I"Inar, ao longo da vida, espera-se que tal transforma- dos dispositivos, das convenções e das tccnologi.rx,
1.1(1M' d(\ numa direção única e legítima, na medida em que A concepção binária do sexo, tomado COIII()!!!lI"eI.lellI '1111
1.' U II1H1;\dqll irc e exibe os atributos próprios de seu gênero indcpcnde da cultura, impõe, portanto, limilt'.\;'t C,(I!ILl'pt.""cl,

80 !lI
gênero e torna a heterossexualidade o destino inexorável, a for-
constantemente, reiterados, renovados e refeitos. Não há ne-
ma compulsória de sexualidade. As descontinuidades, as trans-
nhum núcleo efetivo e confiável com base no qual :t "norma",
gressões e as subversões que essas três categorias (sexo-gênero-
ou seja, a consagrada seqüência sexo-gêncro-sexu:didade possa
sexualidade) podem experimentar são empurradas para o terreno
fluir ou emanar com segurança. O mesmo se prx 1(' d izcr :1 res-
do incompreensível ou do patológico. Para garantir a coerên-
peito dos movimentos para transgredi-Ia. Esses f':1I11h«11l811põem
cia, a solidez e a permanência da norma, são realizados investi-
intervenção, deslocamento, ingerência. Em tllllh:I.'I.I.~djl'('~'()es,
mentos - continuados, reiterativos, repetidos. Investimentos
é no corpo e através do corpo que os processos de :dillll.l~·;io0\1
produzidos a partir de múltiplas instâncias sociais e culturais:
transgressão das normas regulatórias se rcalizun: (' SI' ('Xprl'S-
postos em ação pelas famílias, pelas escolas, pelas igrejas, pelas
sam. Assim, os corpos são marcados social, silllh6li( ,I('III.IIt'l'i:lI-
leis, pela mídia ou pelos médicos, com o propósito de afirmar e
mente - pelo próprio sujeito e pelos outros. I~:
pOlI( li l'('lrV.11I
te
reafirmar as normas que regulam os gêneros e as sexualidades.
definir quem tem a iniciativa dessa "marca~'ilO"ClIIqll;li.~.'I\1:\S
As normas regulatórias voltam-se para os corpos para indicar-
intenções, o que importa é examinar COl110()(111rem ('sses
lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de
processos e os seus efeitos.
coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam es-
ses limites ficam marcados como corpos - e sujeitos - ilegítimos, Uma multiplicidade de sinais, códigos (' .u.iIlIdell PI'()dll~

imorais ou patológicos. referências quefozem sentido no interior d.1(,1111111,1


(' </11<:
ddi.
nem (pelo menos momentaneamellte) '1"<:111(~O 811jl';IO.
Apesar de todo esse investimento, os corpos se alteram
A marcação pode ser simbólica ou ({s;c:t,pod(' M" i11(/i(':I<I,1
por
con tinuamente. Não somente sua aparência, seus sinais ou seu
pier-
uma aliança de ouro, por um véu, pcl:I (o/O( ,I~,I()dl' 11111
Iuncionamento se modificam ao longo do tempo; eles podem,
cing, por uma tatuagem, por li ma IllIlSCl":t~':I()"t 1':11
):d /):1(/:1"
.1 i1 1(.1
a, ser negados ou reafirmados, manipulados, alterados, trans-
pela implantação de uma prótcse ... O qu« ill'lHlrt:t l<que ela
f(lIlll:ldos ou subvertidos. As marcas de gênero e sexualidade,
terá, além de efeitos simbólicos, cxpn:!i."i:tosoc;:" (' 1ll:1lt:I';al.Ela
,':igllifkadas e nomeadas no contexto de uma cultura, são tam-
poderá permitir que o sujeito seja n.:conhecido COIllOpcrten-
IH~llIrnmhiantes e provisórias, e estão, indubitavelmente, en-
(Onda a determinada identidade; que seja inclu(do crn ou
vulvid.is em relações de poder. Os esforços empreendidos para
vxclufdo de determinados espaços; que seja acolhido ou rccu-
i1';1norma nos corpos (e nos sujeitos) precisam, pois, ser,
IIINIIIII
,Ido por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitos;
R
83
que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar
ou o delineador dos olhos, a "drag 'baixa'" _ con()I'IIIt: 11111:1
determinados postos; que tenha deveres ou privilégios; que seja,
delas afirma. É nesse momento que a drag efetiva 111 t'1I 1(' 111
em síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado.
pora, que ela toma corpo, que ela se materializa e passa ,I ('){ 1.\111
O argumento se torna mais convincente, se colocarmos
como personagem. Ela está, agora, pronta para ganha!' ,I 1'1111
em evidência o corpo de uma drag-queen. Embora alguns pos-
para se apresentar num show, a trabalho, para "fazcr" o (':11 fI.I
sam afirmar que esse é um corpo "excepcional" e, por isso, ina-
val ou simplesmente para se divertir. Anna Paula repl'Odll/, 11
dequado para pensar os corpos "normais", insisto no exemplo,
fala de umadrag, já montada e maquiada, numa noite d('(ill
confiando que ele poderá fornecer pistas importantes para
naval, tentando convencer a colega que resistia a se prodi Izj I,
pensarmos os corpos "comuns" e o cotidiano. Adragé, funda- porque "já não tinha mais corpo": "Corpo? Corpo se fabrit ,I ..•
mentalmente, uma figura "pública", isto é, uma figura que se eu não fabriquei um agora?" (VENCATO, 2002, p. 46).
apresenta e surge como tal apenas no espaço público. Desco-
A drag assume, explicitamente, que fabrica seu corpo;
bri-Ia no seu processo de produção é, pois, uma tarefa difícil.
ela intervém, esconde, agrega, expõe. Deliberadamente, rcn
Conduzidos por uma pesquisa realizada por Anna Paula Ven-
liza todos esses atos não porque pretenda se fazer passar por
cato (2002) comdrag-queensda Ilha de Santa Catarina, entra-
uma mulher. Seu propósito não é esse; ela não quer ser con
mos no camarim de umadrag, espaço usualmente interditado
fundida ou tomada por uma mulher, Adragpropositalmt'1l
aos olhos dos outros. É no camarim que ela "se monta", A "mon-
te exagera os traços convencionais do feminino, exorbirn "
taria" consiste na minuciosa e longa tarefa de transformação
acentua marcas corporais, comportamentos, atitudcs, VCSI j
de seu corpo, um processo que supõe técnicas e truques (como
mentas culturalmente identificadas como femininas. () <1'"
uma cuidadosa depilação, a dissimulação do pênis ou, ainda,
faz pode ser compreendido como uma paródia de g~fll" (I'
por exemplo, o uso de seis pares de meias-calças para "corrigir"
ela imita e exagera, aproxima-se, legitima e, ao rncsmo 11:'"
as pernas finas); um processo que continua com uma exube- 1'0, subverte o sujeito que copia.
rnruc vcstimenta, muita purpurina, sapatos de altas platafor-
Na pós-modernidade, a paródia se constitui n:1O SIIIIII'111
II\:\S c que se completa com pesada maquiagem (corretivo,
numa possibilidade estética recorrente, mas na fOI'JIl,1 Illill', rll
h:l.~t',h.uorn, muito blusb, cílios postiços e perucas). Ao exe-
I ivn de crítica, na medida em que implica, parad()(illlIlI~lllf'l 11
1;111;11', por fim, seus últimos movimentos, retocando o batom
Idl'ntificação e o distanciamento em relação ao ohjl'llI (111 .111

R'I
85
circunstâncias culturais em que vivemos. Os corpos considc-
sujeito parodiado. Conforme acentuam teóricas e teóricos con-
rados "normais" e "comuns" são, também, produzidos atrn
temporâneos, não se trata de uma imitação ridicularizadora,
vés de uma série de artefatos, acessórios, gestos e atitudes que
mas de uma "repetição com distância crítica que permite a
uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados
indicação irônica da diferença no próprio âmago da seme-
e legítimos. Nós também nos valemos de artifícios e de signos
lhança" (HUTCHEON, 1991, p. 47). Para exercer a paródia,
para nos apresentarmos, para dizer quem somos e dizer quem
parece necessário, pois, certa "afiliação" ou alguma intimida-
são os outros.
de com aquilo que se vai parodiar e criticar. A paródia supõe,
como afirma Judith Butler (1998/99, p. 54), "entrar, ao mes- Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero

mo tempo, numa relação de desejo e de ambivalência". Isso ou de sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo,

pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas da- embaralham e confundem os sinais considerados "próprios"

quele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los de cada um desses territórios são marcados como sujeitos di

mais evidentes e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí- ferentes e desviantes. Tal como atravessadores ilegais de ccrri-
tórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde'
los. Por tudo isso, a paródia pode nos fazer repensar ou pro-
blematizar a idéia de originalidade ou de autenticidade - em deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como in fral (l
'res e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de'
muitos terrenos.
alguma forma, ou, na melhor das hipóteses, tornam-se alvo (It
É exatamente nesse sentido que a figura da drag permite
correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a ,~II'
pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela permite questionar
bordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) l(1!11I1
a essência ou a autenticidade dessas dimensões e refletir sobre
seu caráter construído. A drag-queen repete e subverte o fe-
"minorias". Talvez sejam suportados, desde que encon 11'<:111 .~G' I

guetos e permaneçam circulando nesses espaços I'('SII itn:., ,111


minino, utilizando e salientando os códigos culturais que mar-
que não se ajustaram e desobedeceram às normas q\ll' 111',lIllIiil
am esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao
os gêneros e as sexualidades, são considerados rrn I1SI'.IC·'MII
exagerá-Ios e exaltá-Ios, ela leva a perceber sua não-naturali-
então, desvalorizados e desacreditados. Uma ,~«I ic .11"
d;ld('. Sua ftgura estranha e insólita ajuda a lembrar que as for-
gias e técnicas poderá ser acionada para I't't"\ 'IH'I
III,IS como \lOS :1prclicntamOs como sujeitos de gênero e de se-
cando curá-Ias, por serem doentes, ou salv;t Jus. pÚi l'hlnrl'il
xlI,did.Hk /"IIl, M'I\lpn', ('OI'Ill:1S inventadas e sancionadas pelas

87
HiI
em pecado; re-educando-os nos serviços especializados, por
mortos ou de tomar decisões quando clc/eln ('I di (;11111
PC'III',I I
padecerem de "desordem" psicológica ou por pertencerem a
de vida. Essas e outras privações precisariam ser l (1111/"
I:CIIlIIlI.I'"
famílias "desestruturadas"; reabilitando-os em espaços que os
como sugere Butler, como algo mais do que a 11l(~I;II~ilC
111.11,1111
mantenham a salvo das "más companhias".
de atitudes culturais indignas, ou seja, como "11111:1
(11'( 1.11,,111

A coerência e a continuidade supostas entre sexo-gêne- específica da distribuição sexual e da reprodução do" <1111:1111
ro-sexualidade servem para sustentar a normatização da vida legais e econômicos" (BuTLER,1998/99, p. 56).
dos indivíduos e das sociedades. A forma "normal" de viver
Definir alguém como homem ou mulher, como SII}I·illldi
os gêneros aponta para a constituição da forma "normal" de
gênero e de sexualidade significa, pois, necessariamenn-, 11<1
família, a qual, por sua vez, se sustenta sobre a reprodução
meá-Io segundo as marcas distintivas de uma cultu 1':1 ('()/I1
sexual e, conseqüentemente, sobre a heterossexualidade. É
todas as conseqüências que esse gesto acarreta: a atribuiç'flo de'
evidente o caráter político dessa premissa, na qual não há lu-
direitos ou deveres, privilégios ou desvantagens. Nomeados ('
gar para aqueles homens e mulheres que, de algum modo,
classificados no interior de uma cultura, os corpos se (,1Z(' 11I
perturbem a ordem ou dela escapem. Os custos cobrados
históricos e situados. Os corpos são "datados", ganham um vn
desses sujeitos são altos. São-lhes impostos custos morais, po-
lor que é sempre transitório e circunstancial. A significação que
líticos, materiais, sociais, econômicos, mesmo que, hoje, a de-
se lhes atribui é arbitrária, reiacionale, é, também, disputada.
sobediência a essa ordem e o desvio dela sejam mais visíveis e
Para construir a materialidade dos corpos e, assim, gar:11l1iI
até mesmo mais "suportados" do que em outros momentos.
legitimidade aos sujeitos, normas regulatórias de gênero tO (Ir-
ustos que vão além do seu não-reconhecimento cultural.
sexualidade precisam ser continuamente reiteradas e rdt.j"I"
mo lembra Judith Butler, são inúmeros os efeitos materi-
Essas normas, como quaisquer outras, são invenções s()( i.1i,."
ais e as privações civis que se articulam a esse não-reconhecimen-
Sendo assim, como acontece com quaisquer outras 110111111
.••
to. A família sancionada pelo Estado exclui gays e lésbicas.
alguns sujeitos as repetem e reafirmam e outros dcl.e, 11",.1 il" I
( .omo conseqüência, casais constituídos por sujeitos do mes-
escapar. Todos esses movimentos, seja para se aproxjlll;ll, IICJII
Il\() sexo enfrentam imensas dificuldades de manter a guarda
para se afastar das convenções, seja para reinvend-I.I,~, "cjn !,fllll
1 II~fi Ihos ou são sumariamente impedidos de adotar crianças;
subvertê-Ias, supõem investimen tos, reg li cr~'1I1(:";/~"\I1
IIlN 1II1:l11hrosdessas famílias "ilegítimas" usualmente se nega
implicam custos. Todos esses movimentos S:IO11';III!II.-!111j
I
li cljlC~itllde receber herança do companheiro ou companheira
funcionam através de redes de poder.

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Referências

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drag queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. D issertaçâo (Mestrado
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