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POESIA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS:

ENDOGAMIA E TOLERÂNCIA

Ronald Augusto

O fato de nos depararmos com uma produção poética


“ainda sendo feita”, um gesto, por assim dizer, “em tempo
real”, fugaz e live, isto é, que não se estabeleceu, não
MXVWL¿FDRVLOrQFLRQHPDHVTXLYDFUtWLFDDFRQWUDJRVWRD
seu respeito.
Em outras palavras, insiste-se na alegação de que
devido a sua condição de fenômeno in progress, a poesia
atual acabaria por impor um óbice à tarefa crítica, visto
TXHSRUGH¿QLomRHVWDDWLYLGDGHWHULDDIXQomRGHUHJXODU
e julgar, calcada sobre certa estabilidade de valores,
apenas aquele objeto cuja trajetória pudesse ser abarcada
desde o ponto-zero do seu impulso, passando por suas
FRUUHo}HVGHURWDHFKHJDQGRDWpRVHXSURYiYHOWHUPRGH
repouso. Portanto, uma experiência tão fugidia, como essa
que aqui se discute, talvez não permitisse a prospecção
judicativa de seu conjunto.
Por causa de sua base larga; sua radicalidade que
atinge os antros da terra; suas ferramentas argênteas,
D FUtWLFD VH PRVWUDULD VXSRVWDPHQWH VHP FRQGLo}HV
de perscrutar semelhante alvo em movimento, esse ser
transitório. Vantajosa inadequação da crítica, às vezes tão
fora do lugar! O mundo é leviano demais para a sua lerdeza

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magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir)
implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e
anuncia.
Portanto, a poesia contemporânea, como
IHQ{PHQRLQFRQFOXVR¿OKDHSURWDJRQLVWDGHXPSUHVHQWH
contínuo, signagem manifestada dentro do “horizonte do
provável” do nosso tempo, não estaria em situação de ser
mapeada “cabalmente”, pois como coisa viva, algo de sua
efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico
consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção,
melhor, de superestimação. Parece estar-se exigindo, para
o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico
TXHHQTXDGUDQGRRPDLVtQ¿PRHGLVWDQWHH[HPSODUGHVVD
poesia, capturasse num mesmo golpe o mundo e o tempo
conhecidos que o envolvem. Mas, o fazer, o saber e o julgar
inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados
numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras,
crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de
abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se
UHODFLRQDDRSRVVtYHODRLPSHUPDQHQWHGDVOLPLWDo}HVH
das parcialidades do sujeito. Desta maneira, a leitura, ou a
crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser,
tal como ela, uma expressão em construção, ainda não
FDQ{QLFDHQmRFDQRQL]DGD6HTXrQFLDGHLQWHUSUHWDo}HV
e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por
assim dizer, “câmera-na-mão”, ou para usar outro lugar-
comum, crítica mais como transpiração do que como
inspiração. Leitura interessada, severa e experimental
embrenhada na nervura do dissenso.

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Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica
totalizadora que “de fato” venha a dizer, quem sabe um dia
— pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós
— aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos)
ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também
reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio
de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia
perante a nossa recepção.
Às vezes fala-se a propósito da poesia
contemporânea em termos de que tratar-se-ia de uma
experiência capaz de provocar um estranhamento e um
incômodo em determinadas zonas da audiência similares
àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea.
Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora
SDVVD ORQJH GH TXDOTXHU JHVWR LFRQRFODVWD QmR S}H HP
cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da
frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte.
Então, por que reivindicar para a produção contemporânea
um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do “meu
tio iauaretê”, na presunção de glosá-la eruditamente e de
uma vez por todas?
'HVGH D UHDOLGDGH LQVRVVD GDV PDQLIHVWDo}HV
poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta
cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento
dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça
justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não
passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade
HH¿FLrQFLDGHVVDPHVPDSRHVLDSRUPHLRGDFKDQWDJHP
cult de um metadiscurso que assomaria para “pôr as coisas

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em ordem”, problematizando uma farsa com outra.
Assim, desde um ponto de vista fatalmente precário,
pretendo destacar alguns aspectos do estado de espírito
dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro
aspecto: a) os poetas de agora-agora, grosso modo,
dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem
poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da
tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz
dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos
GD YHUVL¿FDomR TXHU VHMD OLYUH TXHU VHMD PHWUL¿FDGD H
SRU ¿P VLPSDWL]DU QDWXUDOPHQWH FRP SURSRVLo}HV GDV
YDQJXDUGDV GH TXDWUR GpFDGDV DWUiV $ VR¿VWLFDomR QR
caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais
uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos
têm uma consciência de linguagem de causar inveja (aos
seus pares, naturalmente). A propósito disso, Heloisa
Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia (26
Poetas Hoje) em que discute, entre outras, essa questão.
Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora
avança na contramão daqueles que denunciam na poesia
contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga
da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos,
VHULDPUHVXOWDQWHVGHVVDRSomRSHODH[WUHPDVR¿VWLFDomR
A autora não nega a existência desse traço requintado,
algo emasculado, mas no recorte que nos apresenta,
¿FD GHPRQVWUDGR TXH HVVHV SRHWDV QmR SDUWLFLSDP
inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente
em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição
intertextual não estão necessariamente em contradição

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com a consciência política e social e também histórica.
Vejamos outro aspecto: b) a poesia atual se
acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo.
Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão
“ecletismo retrô” para provocar ironicamente essa geração
que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível
depois das vanguardas históricas das décadas de
1950/60. A tolerância poeticamente correta permite desde
o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu.
É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar
das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo
afã talibanesco do alto modernismo. As vanguardas tão
esclarecidas quanto totalitárias (porque indecorosamente
utópicas) da virada do século 19 para o século 20,
talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do
banho. O poeta carioca Alexei Bueno, defende essa
tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica
toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela
parelha dicotômica novo-velho, suportada pelos diversos
discursos do modernismo (que serve de escopo a eles,
TXHRVLQIRUPD 2SRHWDFUtWLFRUHSURS}HRVQRPHVGHSRU
exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos,
Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta
criticando o que chamou de “uma apropriação midiática e
totalitária do neoconcretismo” e dos seus epígonos, entre
eles é mencionado o poeta Nelson Ascher. Não obstante o
tom algo tresloucado e mesmo ofensivo – motivado talvez
pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo – o conteúdo
da carta foi e é importante na medida em que mexe com

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um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em
torno do valor e das consequências da poesia concreta
±DSRORJLDTXHVHGHIDWRH[LVWHQmRFRQGL]HP¿PGH
contas, com o radicalismo desse movimento – e que, por
tabela, denuncia na espinha do sistema literário esse
constante risco de estagnação a que está sujeito.
Um terceiro aspecto também interessante da poesia
atual é o seguinte: c) nunca, como hoje, vimos os poetas
WmR HQWUDQKDGRV QDV UHJUDV GH H¿FLrQFLD H FRPSHWrQFLD
exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer,
VH FRQ¿JXUD HP UHSUHVHQWDomR HVSHFXODU HPERUD FRP
suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos
abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que
outra razão haveria para a grande presença de poetas
dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra
¿OLDo}HV FRQVDJUDGDV H FRQVDJUDGRUDV $OH[HL %XHQR
pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos;
SHORVSRHWDVVHPSUR¿VVmRHQ¿PSHORVSRHWDV³jPDUJHP
da margem”: onde estão eles? Isso parece coisa de outro
WHPSR8PDSDUFHODVLJQL¿FDWLYDGRVSRHWDVYLYRVLVWRp
nascidos no século passado, se formam ou se formarão no
interior dos muros acadêmicos. Mestrandos e doutorandos
em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não
faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o
JrQLRPRQVWUXRVRFXMDRULJLQDOLGDGHVHPFRPHoRQHP¿P
ofusca a nossa compreensão.
Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo
vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática
corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir,

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SRUH[HPSORXPDVH[WLQDGHXPVRQHWRLGHQWL¿FDUWDQWR
nos traços fonológicos quanto nos grafológicos, insumos
estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste
sentido que uma formação burocratizante numa atividade
HTXtYRFD FRPR D SRHVLD WHUPLQD VHQGR DR ¿P H DR
cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja
~WLODSHQDVSDUDUDWL¿FDUDH[LVWrQFLDRXDLPSRUWkQFLDGR
nosso “censor interno” (W. H. Auden dixit) numa situação
que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis
Borges diz que “o poeta não condena nem absolve”.
Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por
cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos
quanto à informação nova, por discursos presunçosamente
totalizadores? Esses questionamentos precisam ser
feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o
“literário” do mercado livreiro-editorial) não restem tão-
só a serviço do “controle institucional da interpretação”
(Frank Kermode dixit), representado pela universidade,
pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem
relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou
privados ligados à cultura.
Dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto
TXH LGHQWL¿FR QD DWXDOLGDGH GD SURGXomR SRpWLFD GL]
respeito ao espaço para o exercício da experimentação:
d) a bem da verdade, um espaço reconhecido um
pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou
vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra
ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro
virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de

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vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite
da aporia.
Ainda é interessante experimentar uma suspeita
UHÀH[LYDFRPUHODomRDXPDLGHLDTXHDTXLHDFROiLQVLVWH
em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que
estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um
vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento
a uma noção de vanguarda que busca conquistar
WHUULWyULRVDF~PXORGHIHLWRVQXP³HQVDLRGHWRWDOL]Do}HV´
0RYLPHQWR TXH YLVD D XPD ³HWDSD ¿QDO´ RX XP pGHQ
Vanguarda que se apresenta como “ponto de otimização
da história”. Devir utópico calcado sobre linearidade
progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o
risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no
âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo
na arena da “politicagem literária”, tudo isso faça algum
VHQWLGR SRLV DSHUIHLoRDPHQWR SUHVVXS}H D DFHLWDomR GH
H[FOXV}HV H REVROHVFrQFLDV FXMR TXHVWLRQDPHQWR ² D
bem de “um mundo transformado”, digamos, para melhor
—, é deixado de lado “por tempo indeterminado”.
3UH¿UR LPDJLQDU XP TXDGUR GH WHQV}HV GH
perspectivas, propostas de linguagem em confronto.
)RUPDV H SRHVLDV HP ³FRQMXQo}HV H GLVMXQo}HV´
sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado
pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato
lamentável) pode ser revogado a qualquer momento.
Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da
obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer,
QmR VLJQL¿FDUi QHFHVVDULDPHQWH LQYROXomR$ SRHVLD VH

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GHVGREUD QXPD UHGH GH FRQRWDo}HV H R OHLWRUSRHWD VH
comporta como o administrador das intraduzibilidades e
GDV HYHQWXDLV UHDELOLWDo}HV LQHUHQWHV j WDUHID GD OHLWXUD
criativa e desobediente. Com relação à dialética das
FRQVDJUDo}HVHUHYLV}HVDOJXQVSRHWDVFUtWLFRVGHDJRUD
DJRUDEXVFDPDWUDYpVGHWH[WRVHSXEOLFDo}HVHQWURQL]DU
outros artistas e mestres, fazendo-os ocupar um lugar de
proeminência e destituindo, por consequência, outros que
com o passar dos anos começaram a representar, segundo
VHXVVLPSDWL]DQWHVLQÀXrQFLDVXSRVWDPHQWHQRFLYDSDUD
a formação do nosso repertório. Sou forçado a fazer essa
consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui
e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método)
PDQLIHVWDo}HV FXMR WHRU JURVVR PRGR p DFXVDWyULR D
propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por
assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua
YH]LPSRULDLQWHUGLo}HVjVOLQJXDJHQVPDLVHPRFLRQDGDV
imagéticas e descomprimidas. Os “seguidores” da juvenília
presente e os retardatários da beat generation e de uma
escrita delirante e magmática vêm, nos últimos anos,
chamando a atenção para a poesia de Roberto Piva como
uma espécie de “solução para o problema”.
5REHUWR3LYDSDUHFHWHUVLGRWDPEpPDSUH¿JXUDomR
GHWRGDXPDSRHVLDTXHKRMHVHEHQH¿FLDFDGDYH]PDLV
de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás,
UHÀHWHXPDHVSpFLHGHSUHIHUrQFLDFXOWXUDOFRQWHPSRUkQHD
no que respeita ao gênero. Preferência que pretende
farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim
GL]HUPDLVFXULRVRVHH[LVWHQFLDLV&RPHIHLWRVLWXDo}HV

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GH VLJQL¿FDomR DQWHV VHFXQGiULD WDLV FRPR VH R SRHWD
é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a
poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da
periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o
fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de
monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zen-
EXGLVPR HQ¿P WRGRV HVVHV HOHPHQWRV GH FDWDORJDomR
TXH FRPSDUHFLDP VHPSUH DSyV D YtUJXOD MXVWL¿FDP H
tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje.
Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se
imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o
lugar de sua diferença social, sexual e antropológica.
$V FRQVLGHUDo}HV DFLPD PH REULJDP D HYRFDU
um episódio que vivi há mais de duas décadas e que diz
respeito ao debate da literatura negra ou afro-descendente.
No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia,
¿QDO GD GpFDGD GH  IXL SURFXUDGR FHUWD RFDVLmR
por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil
disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura
negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande
entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava.
Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio
de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial
Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente,
estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores
também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me
lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo
entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa
GHVVDV UHXQL}HV DSUHVHQWHLOKH VHP SUpYLR FRPHQWiULR

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XP SRHPD FDOLJUi¿FRYLVXDO $ MRYHP DOHPm FXMR QRPH
SUH¿UR RPLWLU VH S{V D H[DPLQDU H UHH[DPLQDU DTXHODV
traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam
senão mínimos índices de informação verbal. Com um
PLVWRGHGHVFRQ¿DQoDHLQTXLHWDomRSDUHFLDSURFXUDUQD
folha de papel a porta de entrada ou, desesperadamente, a
primeira fresta por onde escapar. Não demorou muito para
TXH HOD HUJXHQGR D FDEHoD ORLUD PH ¿]HVVH D VHJXLQWH
indagação. Onde está o Negro neste poema?
Com efeito, até hoje não sei ao certo a que negro a
loira estudante quis se referir. No entanto, sua indagação
PHIRUQHFHXDOJXPPDWHULDOSDUDUHÀH[mR$VVLPFKHJXHL
à conclusão de que tal pergunta traz em seu bojo algo
como uma expectativa ready-made no que diz respeito às
constantes que, supostamente, deveriam servir de marca,
de escopo a uma poética negra. Apresento agora ao leitor
algumas variantes que talvez traduzam ou, melhor, que
talvez façam vir à tona aquilo que restava subjacente ao
questionamento da minha entrevistadora: (1) onde está
o típico?; (2) onde estão as palavras chibata, tronco,
quilombo, liberdade?; (3) o que é feito do Lamento, da Dor,
da Magia Negra?; (4) onde está o almost extinct?. Pois
bem, esta expectativa consagrada à força da repetição,
e que sobrevive sob o véu esbranquiçado desta(s)
pergunta(s) constitui a matéria que pretendo discutir aqui.
Felizmente, uma parcela pequena, porém viva, de
escritores negros vem nos oferecendo, há algum tempo,
outros e necessários escurecimentos. Por meio de suas
obras, conseguimos vislumbrar o posicionamento mais

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radical ou plural da idéia de transnegressão. Atentos ao risco
da diluição  os esclarecimentos do controle institucional
da interpretação , que acompanha como sombra os bem-
intencionados defensores de uma “verdadeira” literatura
negra; estes autores transnegressores e seus poemas vão,
aos poucos, tornando cada vez mais complexa qualquer
GH¿QLomRSUHWHQVDPHQWHFRQVLVWHQWHHDFDEDGDDUHVSHLWR
das linhas de força do total desta escritura.
Semelhante tomada de posição nos permite detectar
o seguinte: a pergunta angustiada da estudante germânica
também comparece com um peso considerável nos
critérios de gosto e de valoração da maior parte daqueles
que têm fundamentado o seu sucesso debruçando-se
sobre o caso ímpar dessa literatura, quer seja através da
organização de antologias fortemente temáticas, onde
os conteúdos inessenciais VH VREUHS}HP j UHDOL]DomR
poética mais penetrante, quer seja através da publicação
de ensaios que investigam estes objetos literários tão só
FRPRH[HPSORVGHXPDD¿UPDomRidentitária, cuja função
EiVLFDFRQVLVWLULDHPDPSOL¿FDUHGDUQREUH]DGRFXPHQWDO
aos anseios de uma coletividade ou segmento étnico.
Em outras palavras, toda essa fortuna crítica aponta para
a responsabilidade social do escritor; o compromisso
KLVWyULFR GR SRHWD FRPR SRUWDYR] GH TXHVW}HV VLWXDGDV
aquém ou além do âmbito mesmo da invenção verbal.
E segundo estes intérpretes, almas quase renomadas,
tal literatura, para fazer jus ao apodo negro, precisa dar
mostras claras, incontestes da presença do Negro. Ou
seja, o texto examinado (“a patient etherised upon a table”,

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7 6 (OLRW  SUHFLVD UHVSRQGHU D¿UPDWLYDPHQWH H FRP
provas cabais àquela pergunta da estudante estrangeira;
deve sustentar o paradigma imaginado, promovê-lo à
YHUGDGH LUUHWRFiYHO TXH SRVVD VHU UHL¿FDGD DR ORQJR GH
um discurso-livro de, pelo menos, umas duzentas páginas
e que, por um efeito dominó, faça escola e granjeie
defensores argutos e/ou indignados. As provas de que
há um negro HQWUHPHDGR DR WH[WR LQVXÀDQGROKH vida,
VmRLGHQWL¿FDGDVSHODIUHTXrQFLDFRPTXHDSDUHFHPSRU
exemplo, além daquelas palavras já mencionadas acima,
as de origem africana que adoçam e singularizam a fala do
brasileiro, tais como: moleque, bunda, cachaça, empate,
etc. Ou ainda, outra prova, por uma insistente reiteração
de um nós negros, ideologicamente correto, indicando
uma espécie de irredutível essência negra que cumpriria,
principalmente ao criador e complementarmente ao
exegeta, preservar a todo custo, como se tal essência fora
um santuário repleto de ex-votos curiosos ou uma reserva
natural ameaçada. Como consequência, temos a literatura
feita pelos negros comodamente atada ao tronco da
temática transitiva ou circulando livremente pela senzala
de um estreito ismo.
O grande dano deste traçado programático,
GHOLPLWDGRUHGHUHVWRH[WUHPDPHQWHH¿FD]SDUDFRQ¿QDU
esta prática poética dentro do universo dos estudos
culturais e das literaturas de testemunho, é a exclusão
sumária de outros textos/autores que apontam hoje –
ou que apontaram no passado – para zonas limiares,
imprecisas, abertas à sedução da instabilidade dos

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VLJQL¿FDGRV RQGH D LQWHOLJrQFLD HP PRYLPHQWR FRVWXPD
puxar o tapete à mediocridade conformadora; o esforço
dos poetas/escritores que focalizam a sua atenção mais
no como dizer e menos, bem menos, no que é urgente
dizer talvez ao ouvido do pesadelo da História.
0DV SRU ¿P WRGRV RV GLOHPDV RX RV YtFLRV H
virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam
ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que
é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero
insistir em dizer que o “ciclo histórico do verso está
HQFHUUDGR´SDUHFH¿FDUFDGDYH]PDLVFODURTXHRYHUVR
livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria
pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas
FRQWUDGLo}HVHSRVVLELOLGDGHVFRQVWLWXWLYDV²H[SHULPHQWD
um momento de estagnação. Em artigo publicado
UHFHQWHPHQWH 3DXOR )UDQFKHWWL HVWXGD QD YHUVL¿FDomR
contemporânea a “crise de verso” ou “crise do verso” na
linguagem de alguns poetas. De acordo com o crítico,
tornou-se já prática consagrada a “quebra arbitrária da frase,
sem que se perceba na quebra mais do que o desígnio de
quebrar”. Há algum tempo, num artigo publicado em Sibila,
onde avaliava a cena das revistas literárias, me referi a
esses poetas que operam sobre o verso a partir tão-só
do corte como “convencionais versemakers da fratura, da
fragmentação”. Para Franchetti, uma parcela da poesia de
hoje representa um “atestado de recusa do verso livre, ou
GH GHVFRQ¿DQoD QHOH FRPR H¿FiFLD SRpWLFD´ (QTXDQWR
isso, irmandades de poetas apuram suas ferramentas
no aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na

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estabilidade de uma sempre e afetada elipse sintática.
Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a
“música sem-versista”: o poema como uma constelação
suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram
mudar o quadro. É como se as coisas atinentes ao verso
e seus modais corressem num trilho à parte. Talvez isso
se deva, em alguma medida, à precoce canonização do
versilibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo
UHSUHVHQWRX XPD SRVVLELOLGDGH H[SUHVVLYD PDLV D¿P
àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto,
HVVD PiTXLQD SDUQDVLDQD RQGH RV SRHWDVPHGDOK}HV
se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara
a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso não-
PHWUL¿FDGR HP DOJXQV FDVRV IRL WmR GRJPiWLFD TXDQWR
a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre
²PDLVFRPRSUiWLFDLQHUFLDOGRTXHFRPRD¿UPDomRRX
ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem
PXLWDFRLVDDYHUFRPRYHUVRPHWUL¿FDGRTXHSUHWHQGHX
substituir. Ou seja, embora pareça, o debate não se
encerra aqui.
Em resposta à poesia “em greve”, isto é, negativa,
daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século
SyVXWySLFR FRQ¿QD FRP XP FLQLVPR IDVKLRQ H QmR WHP
compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda
(e principalmente como movimento coletivo) deixa de
ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito,
perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de
performance dentro de um determinado repertório oferecido
pela tradição. A este propósito caberia dizer uma ou duas

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palavras sobre o tema da “poesia em meios não impressos”
que, hoje, parece fazer as vezes de uma vanguarda.
Segundo as boas almas envolvidas direta ou indiretamente
com a coisa, a poesia digital representa o último refúgio
da experimentação na literatura contemporânea. A “arte-
LQLFLDO´GDSRHVLDQmRYHUEDOHSyVWLSRJUi¿FDGHDOJXPDV
GpFDGDVDWUiVVXFXPEHIUHQWHjDUWH¿QDOhigh-tech¿QDOLVWD
H ¿QDQFLVWD GDV SUiWLFDV SRpWLFDV GH KRMH 2V SRHWDV GH
tal vertente fazem uso pesado da tecnologia digital. Os
recursos computacionais, de simples ferramentas para a
otimização e a realização de projetos editoriais, de uma
hora para a outra passaram a lançar os dados disso que
(com a permissão de Mallarmé) talvez se converta em
nada ou quase em uma arte. Pode-se dizer que para a
preguiça vigente, esses recursos foram investidos de um
poder criativo graças à sua capacidade de manipulação
e deformação de fontes, imagens e sons retocados
YLUWXDOPHQWH SRU PHLR GH GLVWRUo}HV DQLPDo}HV IXV}HV
HDQLPDo}HVHP'6HDWpDSRXFRSDUDID]HUFKRYHU
no piquenique dominical da poesia bastavam papel, cola e
tesoura (ver, por exemplo, o poema “Organismo” de Décio
Pignatari, publicado em 1960), agora sequer se imagina
a fatura de um poema intersemiótico sem a parceria de
computadores, celulares de última geração, câmeras
GLJLWDLVHQ¿PGHVVHVYLGHRJDPHVDGXOWHVFHQWHVRQGHR
letrismo sem fundo dos caracteres luta consigo mesmo:
IHUUDPHQWDVPHUFDGRULDV WtSLFDV GH XPD FRQ¿DQoD RX
GH XP HQWXVLDVPR DR ¿P H DR FDER QDwI FRP UHODomR
aos poderes e avanços que marcam a ultramodernidade

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A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narcisista. Vírus da virtualândia. Joan Brossa (1919-1998),
com seu sorriso esturricado à la Buster Keaton, dizia que
a nossa não é uma época multimídia, mas “multimerda”.

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