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Paulo Roberto de Almeida

Marxismo e socialismo
no Brasil e no mundo

Trajetória de duas parábolas da era contemporânea

Edição do Autor
Marxismo e socialismo
no Brasil e no mundo
Marxismo e socialismo
no Brasil e no mundo
Trajetória de duas parábolas da era contemporânea

Paulo Roberto de Almeida


Doutor em ciências sociais
Mestre em economia internacional
Diplomata

Edição do Autor
2019
Direitos de publicação reservados: Asked whether he pleaded guilty, the accused Rubashov
© Paulo Roberto de Almeida answered ‘Yes’ in a clear voice. To a further question of the Public
2019 Prosecutor as to whether the accused had acted as an agent of the
counter-revolution, he again answered ‘Yes’ in a lower voice… (…)
Asked whether he wanted an advocate for his defence, the
Revisão accused declared he would forgo that right. The court then proceeded
Carmen Lícia Palazzo
to the reading of the accusation. (…)
Diagramação The Definition of the Charges states that the accused Rubashov
samuel.tabosa@gmail.com is proved guilty on all points contained in the accusation, by
documentary evidence and his own confession in the preliminary
Capa
investigation. In answer to a question of the President of the Court
Imagem retirada de Google images
Long Live Marxism-Leninism – Soviet Poster c. 1975 as to whether he had any complaint to make against the conduct of
Legenda da arte: Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Ilyich Lenin, USSR the preliminary investigation, the accused answered in the negative,
and added that he had made his confession of his own free will,
in sincere repentance of his counter-revolutionary crimes… (…)
At the Prosecutor’s request, the accused Rubashov now proceeded
Ficha Catalográfica to describe his evolution from an opponent of the Party line to a
counter-revolutionary and traitor to the Fatherland. (…)
ALMEIDA, Paulo Roberto.
After a short deliberation, the President read the sentence. The
A447 Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas
parábolas da era contemporânea – Brasília: Edição do Autor, 2019. Council of the Supreme Revolutionary Court of Justice sentenced the
304 p. accused in every case to the maximum penalty: death by shooting
ISBN: and the confiscation of all their personal property.

1. Marxismo. 2. Socialismo. 3. Ideologias. 4. Comunismo. Arthur Koestler, Darkness at Noon


5. Políticas econômicas. 6. Paulo Roberto de Almeida. I. Título. (New York: Bantam Books, 1989, pp. 196-203)

CDD: 320.981
CDU: 321.02(81)

Elaborada por: Maria Aparecida Costa Duarte – CRB/6-1047

Contato com o autor:


www.pralmeida.org
E ste livro é dedicado a todos os marxistas teóricos e aos socialistas
práticos que souberam superar suas ilusões (entre eles, o autor
destas páginas), em busca das melhores políticas públicas dotadas
pralmeida@me.com de racionalidade e, sobretudo, de humanidade.
Índice
À guisa de prefácio: minhas relações com o marxismo e o socialismo............. 13

1. A parábola do marxismo em perspectiva histórica ..................................... 21


1.1. Ascensão e declínio de uma ideia ............................................................... 25
1.2. A “acumulação primitiva” da economia planejada .................................. 31
1.3. O marxismo enquanto “concepção burguesa” da História ..................... 36
1.4. Desventuras da dialética na periferia capitalista ...................................... 40
1.5. O marxismo como doutrina da globalização capitalista ......................... 42
1.6. A astúcia da razão e as surpresas da História ........................................... 45

2. A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro ............................. 53


2.1. Itinerário teórico-prático da revolução burguesa no Brasil .................... 55
2.2. Demiurgos e epígonos: os grandes mestres do marxismo brasileiro..... 58
2.3. Caio Prado Júnior e o capitalismo incompleto no Brasil ........................ 70
2.4. Werneck Sodré e a trajetória da revolução nacional democrática ......... 76
2.5. Florestan Fernandes e a revolução burguesa na periferia ....................... 83
2.6. Os intelectuais marxistas e a revolução burguesa no Brasil .................... 89
Orientações de leitura ......................................................................................... 92

3. Agonia e queda do socialismo real .................................................................. 99


3.1. O exterminador de futuros........................................................................ 101
3.2. A maior “invenção” da humanidade ........................................................ 104
3.3. Uma contradição insanável ....................................................................... 110
3.4. O socialismo é contra o mercado? ........................................................... 112
3.5. Um modo de produção “inventivo” ......................................................... 119
3.6. O fim do socialismo e o laboratório da história ..................................... 126

4. O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil ............. 135


4.1. Uma falácia persistente: a deformação do marxismo nas academias.... 137
4.2. Marxistas e “marquissistas”: duas espécies, de duas classes diferentes ... 138
4.3. As forças produtivas do modo repetitivo ................................................ 144

7
Índice Índice

4.4. As relações de produção do modo repetitivo ......................................... 148 10. Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia? ... 265
4.5. As contradições insanáveis ........................................................................ 152 10.1. Uma tradição passadista que não passa............................................... 267
Referências bibliográficas ................................................................................. 155 10.2. Um exemplo, entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido... 270
10.3. Comunismo: apenas um sistema de crenças, sem consistência real.... 278
5. O Fim da História, de Fukuyama: o que ficou? ........................................... 157
5.1. O que restou, finalmente, da tese controversa de Fukuyama? .............. 159 Apêndices:
5.2. O que Fukuyama de fato escreveu? .......................................................... 160 Notas sobre os originais dos ensaios coletados ............................................ 287
5.3. Fukuyama tinha razão? .............................................................................. 165 Breve nota biográfica: Paulo Roberto de Almeida....................................... 293
5.4. Do fim da História ao fim da Geografia .................................................. 172 Livros e trabalhos de Paulo Roberto de Almeida ........................................ 295
5.5. Existem opções aos órfãos do socialismo? .............................................. 173

6. Os mitos da utopia marxista........................................................................... 179


6.1. O que é uma utopia e como o marxismo se encaixa no molde? .......... 181
6.2. Utopia marxista e falácias acadêmicas: qual sua importância relativa? 184
6.3. Quais são os mitos da utopia marxista?................................................... 188
6.4. As falácias econômicas do marxismo ...................................................... 193

7. O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático ......................... 201


7.1. Cercando o “animal” e mostrando a arma .............................................. 203
7.2. Sete anos que mudaram o mundo ............................................................ 204
7.3. Resistível reação à decadência irresistível do socialismo ...................... 209
7.4. A seleção natural das espécies mais resistentes ...................................... 211

8. A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos ........................................... 215


8.1. Antimercado................................................................................................ 218
8.2. Igualitarismo ............................................................................................... 223
8.3. A esquerda é contra a democracia formal ............................................... 227
8.4. A esquerda é estatizante ............................................................................. 229
8.5. A esquerda é anti-individualista ............................................................... 233
8.6. A esquerda é populista e popularesca ...................................................... 236
8.7. A esquerda é voluntarista e antirracionalista .......................................... 238

9. Sobre a responsabilidade dos intelectuais ................................................... 245


9.1. Uma visita rápida a Norberto Bobbio ...................................................... 249
9.2. Desvios cristãos e marxistas: similares, semelhantes, comparáveis? ... 251
9.3. O que Marx tem a ver com o socialismo do século XX? ...................... 254
9.4. O que fez Lênin para aplicar as ideias de Marx, e as suas próprias... .... 255
9.5. O que isso tem a ver com a responsabilidade dos intelectuais?............ 260

8 9
Minhas relações com o mar ismo e o socialismo

Minhas relações com o marxismo e o socialismo

à guisa de prefácio

Minhas relações com o


mar ismo e o socialismo

11
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

E
ste livro — na verdade, uma coletânea de ensaios escritos em
diferentes etapas dos últimos vinte anos — tem um modesto
predecessor, publicado justamente mais de vinte anos atrás:
Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização
(São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999). Era um pequeno
volume, de menos de cem páginas, cuja peça de maior impor-
tância consistia numa releitura do Manifesto original de Marx
e Engels, de 1848, revisto, reescrito, corrigido, adaptado para
as novas condições do capitalismo global, um século e meio
depois que os dois jovens revolucionários alemães atendiam ao
convite de uma liga de operários alemães, emigrados na Ingla-
terra vitoriana, para redigir o documento fundador de um novo
partido socialista. O panfleto passou quase despercebido, mas foi
traduzido paulatinamente em outras línguas europeias, antes de
iniciar uma carreira de estrondoso sucesso mundial no decorrer
do século XX, desempenho glorioso que provavelmente não se
repetirá neste século.
A razão pela qual decidi redigir um Manifesto Comunista
alternativo deveu-se a convite recebido de colega acadêmico para
colaborar com um novo periódico de ciência política — que já
nem existe mais —, justamente no ano em que o velho Manifesto
completava 150 anos de vida, e as editoras lançavam reedições
daquele texto caído no domínio público. Os marxistas realmente
existentes no Brasil se dedicavam, de seu lado, a cantar loas ao
panfleto “gótico”, concordando com sua atualidade e utilidade
reafirmada, um século e meio depois de um obscuro lançamento
em Londres. Decidi fazer diferente, consoante meu espírito sempre
contrarianista: tendo lido, relido e estudado o velho Manifesto
desde minha precoce juventude marxista, resolvi reescrever
aquela peça ultrapassada em sua forma e na sua essência, para
adaptá-lo a um fin-de-siècle decididamente pós-comunista. Afinal,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Minhas relações com o marxismo e o socialismo

a grande pátria do socialismo, a União Soviética, já tinha deixado de elites atrasadas com capitalistas protegidos e subvencionados,
de existir desde o início daquela década, e a outra promotora de adeptos da corrupção em larga escala.
suas recomendações, a China “socialista”, já tinha empreendido, O livro de 1999 abria-se, portanto, pela reescritura do
desde a década anterior, uma vigorosa marcha em direção a uma velho Manifesto, seguida por duas provocações que eu fazia a
economia de mercado, ainda que formalmente tutelada por um meus amigos e colegas acadêmicos ainda socialistas (mas de
Partido Comunista que continua exercendo o poder em nome estilo vieille-manière), um dedicado aos elogios que Marx fez
do proletariado e dos camponeses. ao livre comércio, no seguimento da abolição das Corn-laws
Eu mesmo, de um marxismo juvenil bem mais teórico do na Inglaterra, o outro ainda mais iconoclasta, encontrando
que prático, já tinha começado a evoluir para um socialismo méritos e virtudes na velha “exploração do homem pelo homem”.
nouvelle-manière desde minha partida para a Europa no início O volume engajava então uma discussão sobre a ascensão e queda
dos anos 1970, para um novo estágio de estudos universitários do marxismo e do socialismo no decorrer do século XX, o único
e de visitas aos socialismos realmente existentes, estabelecendo dos ensaios retomado nesta nova coletânea, ainda que revisto
comparações com os capitalismos avançados e outros em dife- em questões de caráter tópico; ele finalizava pela reprodução do
rentes estágios de desenvolvimento na periferia da economia Manifesto original, para efeitos de comparação com minha versão
global. Voltei da Europa sete anos depois, para iniciar uma car- contrarianista. Aquele primeiro experimento de revisão de um
reira de burocrata estatal, na diplomacia profissional, com uma texto consagrado inaugurou, aliás, a minha série de “clássicos
dedicação acadêmica invariavelmente mantida desde sempre. revisitados”, que continuou com Maquiavel (O Moderno Príncipe),
A combinação de atividades mantidas sucessivamente nos planos com Tocqueville (duas vezes enviado ao Brasil e à América Latina,
do setor privado, no mundo universitário e no serviço exterior para examinar o frágil estado do regime democrático), Benjamin
do governo brasileiro, as duas últimas simultaneamente, me Constant (l’ancienne et la nouvelle diplomatie, sob o governo dos
permitiu agregar a um conjunto de observações registradas na- companheiros), Sun Tzu (A Arte da Guerra para diplomatas) e
quelas muitas viagens e experiências de vida o estudo intensivo que ainda deve continuar com vários outros clássicos no pipeline.
para a redação de uma tese de doutoramento, ao cabo da qual Esta nova coletânea, com a repetição indicada de uma
emergi com novas credenciais políticas e intelectuais. O marxis- versão revista do capítulo sobre a parábola do marxismo em
mo acadêmico é inerente a qualquer estudioso ou praticante da perspectiva histórica, reúne ensaios elaborados no decorrer
sociologia, como é o universo conceitual no qual me desempenho. dos vinte anos que se seguiram ao pequeno livro de 1999;
Mas, a capacidade de interpretar os novos dados da realidade estes novos escritos representam modalidades diversas de meu
econômica e política, no terreno mundial e no âmbito brasileiro, “ajuste de contas” com o marxismo e o socialismo, processo que
impõe a necessidade de elaborar novas explicações, e propor novas já tinha sido iniciado nas três décadas anteriores, desde meu
respostas, aos problemas permanentes do desenvolvimento de autoexílio na Europa e o contato direto com todos os socialismos
uma sociedade como a brasileira, que justamente combina velhos realmente existentes no centro-leste europeu. Nunca houve a
vícios de uma sociedade escravista-patrimonialista com novas intenção deliberada de enfrentar os “demônios” da academia ou
deformações de um sistema político formalmente democrático, os desafios do debate público sobre a qualidade e o conteúdo
mas de muito baixa qualidade, contaminado pela promiscuidade específico das políticas econômicas aplicadas no Brasil desde a

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Minhas relações com o marxismo e o socialismo

grande estabilização da segunda metade da última década do Minha impressão, retirada desses embates e diatribes, é a
século XX, mas o fato é que os dez ensaios aqui coletados foram de que esses acadêmicos sonhadores não tiveram, justamente,
concebidos e elaborados como respostas a tomadas de posição a mesma oportunidade que eu tive de conhecer diretamente os
por parte de acadêmicos da grande tribo marxista e socialista diversos socialismos reais que visitei ao longo das últimas décadas
que ainda pontifica impavidamente em auditórios geralmente de sua existência, e que por isso mesmo continuavam mantendo
receptivos de estudantes de humanidades e ciências sociais, um conhecimento apenas livresco sobre seus princípios de
quando não em outras vertentes do ambiente universitário. funcionamento. Raramente puderam perceber que, bem mais do
Como membro de comitês editoriais de periódicos da área, ou que a miséria material de todos esses regimes — abastecimento
na qualidade de colaborador de alguns veículos desse universo, precário, lacunas disseminadas no plano do bem-estar, ausência
sou frequentemente levado a ler, a comentar, a oferecer pareceres de progressos econômicos reais —, o que mais os caracterizava, de
sobre essa produção engajada. fato, era uma espécie de miséria moral, sustentada por um Estado
Vários dos ensaios aqui reunidos, escolhidos entre dezenas policialesco, repressor, obscurantista, promotor da mediocridade
de outros que pertencem à mesma família de “escritos de combate”, burocrática e apoiada na violação sistemática de todas as
foram justamente publicados num típico pasquim da esquerda liberdades democráticas que eles diziam defender num país pobre,
universitária, com o qual colaborei durante uma dezena de anos, corrupto e desigual como o Brasil. Sobre isso ainda agregavam
sempre a contra corrente das tendências majoritárias (e recebendo a defesa de regimes estatizantes e de políticas econômicas que
críticas e contestações diretas a vários deles). Minha colaboração justamente tinham o objetivo de preservar privilégios corporativos
foi descontinuada sintomaticamente depois que sustentei uma e contribuíam para aprofundar as desigualdades sociais que
discussão sobre a responsabilidade dos intelectuais nas grandes pretendiam combater, numa inconsciência espantosa sobre os
tragédias do socialismo totalitário, vindo ela finalmente a termo efeitos nefastos que essas orientações econômicas provocavam
depois que eu questionei a inteligência daqueles que continuavam em termos de prosperidade e criação de riqueza.
aderindo à liturgia comunista. Depois de minha proposta para Não foram poucas as vezes em que fui acusado de ser
um novo “manifesto comunista” adequado aos nossos tempos “neoliberal”, uma designação tão ridícula quanto totalmente
de globalização capitalista, um dos ensaios mais acerbamente desprovida de qualquer fundamento real. Mas essa é uma
criticados nesses meios foi exatamente aquele no qual eu tentava vertente que pertence mais ao terreno dos debates sobre políticas
ajudar a esquerda a se liberar de “sete pecados dialéticos” que econômicas, e que escapa, portanto, ao universo estrito do
atrapalham o seu desenvolvimento mental. Mesmo pertencendo “diálogo” — se ele existiu — em torno do marxismo e do socialismo,
ao que eu chamei de “cultura da esquerda”, nunca abandonei que constitui o núcleo da dezena de ensaios aqui oferecidos.
a racionalidade econômica, e uma estrita adesão a valores e Os interessados em conhecer a antologia de 1999, para efeitos
princípios democráticos, para seguir de forma quase religiosa de comparação com a atual, podem agora descarregar o arquivo
essas crenças nascidas no século XIX — que acompanhei na fase livremente em Academia.edu, na seção de livros de minha
juvenil — e que se prolongaram de forma irracional durante página nessa plataforma de interação acadêmica. Vários outros
décadas de experimentos brutais de engenharia social e de artigos e ensaios nesse mesmo universo — que eu classificaria
desastres econômicos e humanitários. de contestação do “socialismo para os incautos”, ou de críticas

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Minhas relações com o marxismo e o socialismo

aos defensores do “fetiche do Capital”, de Marx, obviamente — jovens, com base em meu conhecimento adquirido nos livros, na
foram publicados em veículos diversos, e a maior parte pode ser atenta observação da realidade, na experiência adquirida ao longo
consultada nessa minha página de divulgação aberta de meus de uma dupla carreira extremamente absorvente, no exercício da
escritos. diplomacia profissional e nas lides acadêmicas desempenhadas
Objetivo diverso teve a reavaliação feita em torno dos de modo voluntário.
argumentos defendidos por Francis Fukuyama, em seu famoso Acredito que eu ainda tenho muito mais a oferecer no
artigo sobre o “fim da História”, não exatamente para sustentar sua campo da divulgação de escritos produzidos no âmago ou à
tese principal, e mais para debater a validade do posicionamento margem dessas duas atividades, no decorrer desse longo período
sobre a ausência de alternativas às democracias liberais de de intensas atividades intelectuais, prometendo, portanto, compor
mercado, depois da derrocada dos sistemas socialistas e do início novas seleções de trabalhos dotados de alguma resiliência
do processo de transição nos antigo países do sistema socialista. expositiva ou interpretativa, em outros setores que não mais o
Minha opinião é a de que a tese de Fukuyama é válida em sua debate histórico-político num pequeno círculo de iniciados no
concepção geral, mas que os processos concretos de transição não marxismo. A parábola descrita e analisada aqui está praticamente
obedecem a um padrão único de organização política, econômica concluída. O que nos resta fazer, aliás desde a independência,
e social, já que o processo histórico sempre se desenvolve por vias é completar a missão de resgatar a nação de um passado de
únicas e originais. O Brasil oferece justamente uma demonstração iniquidades e de subdesenvolvimento — não apenas material, mas
de como se pode avançar, ainda que lentamente, no caminho da sobretudo mental — e projetá-la numa trajetória de prosperidade
modernidade superficial, mesmo preservando os vícios do velho e bem-estar, com base na educação, no conhecimento do itinerário
patrimonialismo e do populismo renovado. de outros povos mais bem sucedidos do que o nosso, numa
visão crítica do passado e apoiados em políticas inclusivas num
ambiente de uma vibrante democracia de mercado.

E sta antologia resume e expõe, portanto, minhas relações


de afinidade e distanciamento em relação ao marxismo e
ao socialismo, mas ela não tem o objetivo de supostamente me
Continuarei nessa missão...

Paulo Roberto de Almeida


situar no campo de uma “direita conservadora”, que de toda forma Brasília, novembro de 2019
não existe no Brasil, nem no plano teórico, nem no terreno da
prática. Detesto rótulos redutores e simplificadores, preferindo
exercer meu direito ao ecletismo doutrinário e ao ceticismo sadio,
e por isso mesmo estou sempre pronto a defender argumentos de
estrita racionalidade econômica, na busca das melhores soluções
aos angustiantes problemas do Brasil, que sempre estiveram
no coração de minhas leituras, estudos, reflexões e escritos no
último meio século pelo menos. A coletânea aqui realizada é uma
pequena amostra dessas preocupações com a educação dos mais

18 19
Capítulo 1

A parábola do mar ismo


em perspectiva histórica
A
parábola, em sua versão eclesiástica, é uma narração alegó-
rica dos livros santos, possuindo um claro fundo moral ou
pretendendo registrar um ensinamento. Em sua acepção
matemática, o conceito significa uma linha curva, com um lado
arredondado e uma base truncada, na qual todos os pontos se
situam a igual distância do centro. Com base tais parâmetros, a
trajetória do comunismo na era contemporânea, tanto em seu
sentido religioso como no geométrico, pode ser efetivamente
comparada ao itinerário de uma parábola. Esta é pelo menos é
a conclusão a que chegaria o observador imparcial que, numa
fase decididamente pós-comunista, se decidisse por um balanço
do estado desse movimento político (mas também social e
econômico) que marcou indelevelmente, junto com o fascismo,
uma “época de extremos”, como Hobsbawm caracterizou de
forma pertinente o “breve século XX”.1
Com efeito, como no caso da alegoria religiosa, o comunis-
mo também pretendia realizar, com base nas “santas escrituras”
de Marx e Lênin, um objetivo moralmente elevado — o ideal
do socialismo perfeito — que representaria o acabamento da
verdadeira democracia prometida pelas revoluções de 1905 e
de 1917. E, como em seu equivalente geométrico, o itinerário
do comunismo reproduziu o dessa curva oblonga que segue
para o alto e para baixo a partir de uma base plana e na qual
os pontos estão sempre à mesma distância de um ponto fixo
ou de uma diretriz — o marxismo —, este servindo de álibi e
de justificativa ideológica durante os setenta anos que durou
a experiência. Tendo alcançando o ápice de seu processo
de desenvolvimento durante o período áureo do stalinismo

1 Ver Eric Hobsbawm, Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991.
Londres: Michael Joseph, 1994; ver em especial os capítulos 13, “Real Socialism”,
e 16, “End of Socialism”, pp. 372-400 e 461-499.

23
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

triunfante (no imediato pós-segunda guerra), o comunismo 1.1. Ascensão e declínio de uma ideia
veio a declinar progressivamente enquanto guia moral, para
conhecer, no final dos anos 1980 e princípios dos 90, uma Na primeira fase, o itinerário inicial de afirmação da ideia
brusca interrupção de seu movimento real, desfazendo-se então marxista apresenta um começo tímido, no sopé da base, sob a
em suas contradições insuperáveis na outra ponta da parábola, iniciativa teórica de diletantes e de filósofos autodidatas que
quando ele já não tinha nada mais a ensinar.2 estavam desejosos de se vincular ao movimento concreto das
Como interpretar esse final surpreendente para um massas trabalhadoras para guiá-las no curso de sua “missão his-
movimento que, desde a segunda metade do século XIX, tórica”. Marcado, talvez, pela consciência algo ingênua de leitores
dispôs, aparentemente, de sólidas raízes sociais nos movimentos pioneiros do Manifesto, ou de socialistas “pequeno-burgueses”
sindicais e político-partidários de inúmeros países e que apelava dotados de uma concepção orgânico-partidária tipicamente
fortemente para os ideais de igualdade e de justiça social presentes pré-bolchevique, esse movimento difuso de militantes disper-
no imaginário popular? Para o historiador francês François Furet sos nos vários centros industriais do primeiro capitalismo via
essa ruptura histórica foi causada por iniciativas do próprio a eliminação da exploração capitalista e a construção de uma
partido que ocupava o poder na “pátria do socialismo”, tendo sociedade solidária como uma tendência “irreversível” resultante
o universo comunista se “desfeito por suas próprias mãos”.3 da crescente afirmação do próprio progresso social ou como
Essa obra seminal, apresentada pelos editores como “a primeira uma decorrência inevitável da propagação das “ideias socialistas”.
grande síntese histórica sobre o comunismo no século XX”, não Essa vertente deu origem ao socialismo revisionista no final
constitui, exatamente, uma história política do comunismo no do século XIX, não mais revolucionário, como pretendia Marx
século passado, mas um ensaio sobre a permanência da ideia nas suas obras sobre a luta de classes na França, em especial na
comunista — a grande ilusão — nos países em que ela vicejou Comuna de Paris, mas bem mais orientado para a luta política e
material ou intelectualmente. A trajetória teórico-prática eleitoral, em direção a transformações progressivas no quadro da
do comunismo no Brasil apresentou, igualmente, o curioso segunda revolução industrial. Num esquema teórico elaborado
movimento elíptico de uma parábola: como seu equivalente com base em alguns dos cânones marxianos, a passagem pela
geométrico, o processo de afirmação e declínio dessa ideia revolução burguesa era considerada, sem muita sofisticação
transformadora da sociedade e da política se desenvolveu em intelectual por parte do marxismo europeu da época, como uma
etapas sucessivas, tendo sido bem mais afastado na prática do etapa necessária, ou mesmo indispensável, na construção da
que, aparentemente, no domínio das ideias, terreno no qual sociedade socialista. Tal é a origem da Internacional Socialista,
a leitura sacramental do “evangelho” marxista permaneceu ou II Internacional, na última década desse século, depois de
vigorosa nos meios acadêmicos. um experimento frustrado com as divisões entre marxistas e
bakuninistas na Associação Internacional dos Trabalhadores,
2 Ver Massimo L. Salvadori, La parabola del comunismo. Bari: Laterza, 1995; a obra reunida uma primeira e única vez em Londres, em 1864.
traça um rápido panorama da história do comunismo, de suas origens à queda do Numa segunda etapa, militantes mais radicais provo-
império soviético.
3 François Furet, Le passé d’une illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle. cam uma divisão orgânica com os “reformistas”, pregando
Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995; cf. pp. 11-14. a organização do movimento comunista sob a égide de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

“revolucionários profissionais”, origem da corrente “bolchevique”, De fato, existiu, na prática, uma oposição-atração entre
mais propriamente identificado com uma fração do Partido essas duas ideologias que surgiram nas entranhas do imenso
Socialista Operário e Democrático Russo, cujo itinerário inicial cataclismo militar, político, econômico e social representado pela
se confunde com a trajetória de Vladimir Ilich Ulianov, vulgo Grande Guerra, que explica, em grande medida, a emergência
Lênin. As novas concepções doutrinárias algo rígidas da corrente desses sistemas antinômicos, mas bastante próximos um do
bolchevique, mais adiante consubstanciadas na III Internacional, outro. Ambas tinham na democracia pluralista e no capitalis-
a Comunista, passariam a dispensar a anterior necessidade de mo liberal inimigos comuns aos movimentos políticos que as
uma passagem pela “revolução burguesa”, antes de se empreender sustentavam. De maneira mais precisa, apenas o comunismo
o “assalto ao céu” pelo movimento proletário liderado por sua rejeitava de forma absoluta o capitalismo, enquanto forma de
vanguarda revolucionária. organização econômica e social, mas também o fascismo tinha
Essa etapa é marcada fundamentalmente pelo putsch alimentado sua penetração nas camadas proletárias da socie-
bolchevique de outubro de 1917, que representa um divisor dade com esse ódio ao “ burguês capitalista” que é sua marca
de águas na história do marxismo, pela suposta emergência distintiva nos anos de ascensão ao poder.
do “primeiro Estado operário” na era contemporânea, no Um novo conflito global encontrava-se praticamente em
seguimento da “revolução burguesa” de fevereiro do mesmo germe desde o final da Grande Guerra, mas seu deslanchar foi
ano, derrocando o absolutismo czarista e inaugurando uma paradoxalmente permitido por um acordo sórdido entre Hitler
“democracia de fachada”, como a designou o sociólogo alemão e Stalin sobre a partilha da Polônia e a incorporação de novos
Max Weber. A revolução se congela em seguida, no “socialismo territórios ao renascido império russo. A reintegração da URSS
em um único país”, sob a férrea direção de Stalin, o sucessor de ao antifascismo e a aliança com as potências ocidentais, depois
Lênin, quando o novo líder consegue consolidar-se no poder e do traiçoeiro ataque de Hitler em junho de 1941, e a vitória na
apimentar seu leninismo com algumas pitadas de nacionalismo Grande Guerra Patriótica consolidarão a imagem e o prestígio
e grandes doses de brutalidade. de uma ditadura comunista chegada ao suprassumo do totalita-
Na etapa seguinte, que se estende grosso modo dos rismo: é o “stalinismo, etapa suprema do comunismo”, bastante
anos 1930 aos 50, assiste-se a um rápido e vigoroso impulso bem acolhido pelos partidos comunistas afinados com a URSS.
multiplicador da ideia marxista, sobretudo a partir da difusão A partir desse momento, o sucesso acadêmico da doutrina
do “marxismo científico” pelo aparelho partidário do Partido marxista projeta a ideia de revolução ao ponto alto de sua curva
Comunista da União Soviética. A experiência soviética repre- ascendente e suscita em vários países uma historiografia enqua-
sentou uma “ilusão fundamental” na interpretação de François drada na linearidade sucessiva típica do marxismo ossificado
Furet, ilusão que foi constitutiva de sua própria história, mas pela teoria marxiana dos “modos de produção”. O “comunismo
que também explica seu declínio nas fases seguintes, depois do da guerra fria” conhece, entretanto, as primeira fissuras no
brutal enfrentamento com um outro movimento coletivista, o edifício do sovietismo, com Tito na Iugoslávia e vários outros
fascismo, tão totalitário quanto o comunismo, mas organizado dissidentes da ideia comunista, os intelectuais independentes
em bases ideológicas distintas daquelas apoiadas na doutrina nos próprios países do “socialismo real”.
marxista.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

O começo do fim do comunismo se abre com a morte de A ilusão comunista durou enquanto a URSS lhe emprestou
Stalin, período marcado aliás pelas surpreendentes revelações consistência e vida, embora suas condições materiais — em
de Krushev durante o 20° congresso do PCUS: seu relatório, especial as econômicas — fossem eminentemente frágeis, o que
sobre o culto da personalidade, representa um outro grande explica, talvez o colapso relativamente rápido do sistema no
divisor de águas na história do comunismo; a crise do sistema seguimento da queda do muro de Berlim. Poucos observadores
monolítico se amplia com as dissidências chinesa e albanesa, com imaginavam que as tentativas de reforma gorbatcheviana fossem
o fenômeno revolucionário cubano, com o distanciamento dos conduzir ao impasse e, finalmente, à derrocada de todo o edifício
partidos europeus do “euro-comunismo” em relação a Moscou e a comunista. Lembre-se a propósito que nem mesmo o “profeta”
multiplicação de muitos outros dissidentes do coração do sistema do “fim da História”, Francis Fukuyama, previu a falência da
soviético. A fase final se prolonga na dominação esclerosada da estrutura soviética: ao contrário, ele estava convencido de que
gerontocracia comunista, até que a escolha de um novo dirigente, a URSS seria preservada, mesmo com o abandono completo
Gorbatchev, precipita a implosão final do comunismo soviético. dos dogmas econômicos do socialismo.4
Não se tratou, contudo, da derrocada final da ideia marxista, A despeito do declínio prático tem-se a impressão de certa
pois ela ainda parece preservar seguidores nos países centrais, permanência e mesmo resiliência da ideia socialista, não obstante
assim como nas sociedades periféricas. a evidente degenerescência política e manifesta incapacidade
Com efeito, a “grande ilusão” do comunismo, como do planejamento coletivista em assegurar o funcionamento
analisada no livro de Furet, se deve, basicamente, à “cegueira” adequado do aparelho econômico da sociedade. Ainda que
literal que se abateu sobre levas sucessivas de intelectuais e espíritos mais argutos (como Emannuel Todd, por exemplo)
militantes na Europa e no resto do mundo durante décadas tenham antecipado o final do comunismo, a queda brutal da
inteiras, fenômeno, aliás, que já tinha sido denunciado por URSS foi uma surpresa para muitos.5 A razão da preservação da
Raymond Aron nos anos do pós-Segunda Guerra (O Ópio dos ilusão comunista (como, de certo modo, do fascismo, durante
Intelectuais). A fascinação do projeto comunista só pode explicar-
se, à esquerda, pela força da filosofia marxista, que prometia 4 Cf. Francis Fukuyama, “The End of History ?”, The National Interest, n. 16, 1989,
um mundo novo, liberado das misérias do real e aparentemente pp. 3-18. Ele afirma, por exemplo: “A questão real do futuro é o grau pelo qual
as elites soviéticas lograram adequar-se à consciência do Estado homogêneo
mais conforme à “razão da História”. Mesmo à direita, ainda
universal [conceito que Fukuyama retira da leitura feita por Alexandre Kojève
que recusando os princípios da organização soviética, não se da obra de Hegel] que é a Europa depois de Hitler. (...) Ainda que possam restar
deixava de reconhecer que a Revolução de Outubro possuía alguns verdadeiros crentes isolados em lugares como Manágua, Pyongyang ou
Cambridge (Massachusetts), o fato de que não exista um único grande Estado no
certa filiação com as grandes revoluções do passado europeu, a qual [o marxismo-leninismo] represente a idéia-chave elimina completamente sua
Revolução francesa em primeiro lugar. A aparente imobilidade pretensão de ser a vanguarda da história humana”, pp. 17-18. Ver também seu livro
e rigidez da sociedade socialista então criada tampouco deixou The End of History and the Last Man. New York: Free Press, 1992.
5 Na sequência de sua derrocada, tentei fazer, numa série de artigos interligados, uma
de surpreender os sociólogos: mesmo para analistas esclarecidos, análise evolutiva sobre o fenômeno da “transição do socialismo ao capitalismo”
parecia inconcebível que o mais perfeito modelo de ditadura nos países do socialismo real: “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional no
burocrática — uma verdadeira “gaiola de ferro” na visão de Max Horizonte 2000”, “Retorno ao Futuro, Parte II” e “Retorno ao Futuro, Parte III:
Agonia e Queda do Socialismo Real”, publicados na Revista Brasileira de Política
Weber — pudesse desmembrar-se como um castelo de cartas, Internacional, Rio de Janeiro, ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, pp. 63-75; ano XXXIII,
como ocorreu ao final dos anos 1980. 1990/2, n. 131-132, pp. 57-60; ano XXXV, 1992/1, n. 137-138, pp. 51-71.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

e após sua vigência efetiva) pode estar, sob o risco de parecer relações sociais. A concepção “liberal” de Tocqueville sobre as
óbvio, na própria força das ideologias políticas, geralmente origens da Revolução francesa tende a descartar os elementos
consideradas, no seguimento da crítica arrasadora de Marx, de crise econômica privilegiados na análise marxista tradicional
como um simples disfarce do real, a serviço de interesses das — a famosa contradição entre forças produtivas “capitalistas”
classes dominantes ou de grupos organizados. emergentes e relações de produção ainda “feudais” —, preferindo
Numa época em que alguns representantes modernos dos em seu lugar o choque político provocado ou precipitado por
ideólogos — que são os sociólogos — identificam sinais de “fim um confronto entre elites sociais já próximas do poder, num
das ideologias” (Daniel Bell) e mesmo de “fim da História” (Francis contexto de tentativa monárquica de reforma moderada. Na
Fukuyama), perde-se por vezes a visão de como o elemento verdade, fatores mais estruturais estavam em jogo desde muito
ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. tempo antes, como argumentou demógrafo francês Emmanuel
Caberia com efeito recordar que a Europa e o mundo em geral, Todd, que, já em 1976, indicava a deterioração do sistema como
no decorrer da maior parte do século XX, viveram sob o signo e refletida na alta da taxa de mortalidade infantil.7
conviveram com a “promessa” ou a “ameaça” (segundo a posição
do interessado) de uma ou de ambas as ideologias paralelas, o 1.2. A “acumulação primitiva” da economia planejada
comunismo e o fascismo. O historiador alemão Karl Bracher,
que sintomaticamente caracterizou a época contemporânea Não se pode, por outro lado, esquecer que grande parte
como a “idade das ideologias”, indicou com razão: “O século da atratividade do socialismo enquanto sistema de organização
XIX foi dominado pelo desenvolvimento das nações e pelas social — não apenas o soviético, mas também o chinês e alguns
reivindicações dos Estados nacionais; o século XX, pelo confronto do “terceiro-mundo”, onde existiu — tinha como fundamento
entre os nacionalismos e as ideologias, entre a independência a ideia (falsa) de que ele trazia o final das crises capitalistas
dos Estados individuais e os novos universalismos”.6 de produção e emprego, introduzia um nível de subsistência
O próprio François Furet confessa em seu livro a surpresa mínimo e aceitável para o conjunto da população e permitiria,
com a qual foi recebida a derrocada final do sistema soviético: progressivamente, liberar excedentes que o fariam alcançar e, em
“Mesmo os inimigos do socialismo não imaginavam que o última instância, ultrapassar os sistemas capitalistas “realmente
regime soviético pudesse desaparecer, e que a Revolução de existentes”. As ideias econômicas marxistas sobre uma futura
Outubro pudesse ser ‘apagada’; menos ainda que essa ruptura “idade da abundância”, sobre a racionalidade superior do
pudesse ter por origem iniciativas do partido único no poder” sistema socialista e em especial as profecias engelsianas sobre
(p. 11). Em grande medida, a interpretação de Furet guarda o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um segundo
certa relação com a análise tocquevilliana sobre os perigos da suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”)
reforma política num sistema caracterizado pela rigidez das alimentaram, em muito, a ilusão comunista no decorrer do
século XX, e podem estar na origem do relativo “sucesso” da
6 Cf Karl Dietrich Bracher, Zeit der Ideologien. Stuttgart: Deutsche Verlags, 1982, ideia comunista nesse período.
consultado em sua edição italiana: Il Novecento: secolo delle ideologie. Bari: Laterza,
1984, p. 206; esse livro possui uma edição norte-americana: The Age of Ideologies: a 7 Cf. Emmanuel Todd, La Chute Finale: essai sur la décomposition de la sphère
history of political thought in the XXth century. New York: St Martin’s Press, 1984. soviétique. Paris: Robert Laffont, 1976.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

Ora, desde o final do século XIX, pelo menos, que o debate econômicas socialistas, ou pelo menos vinculados à aceitação
em torno das ideias marxistas e socialistas se prolongava no da inevitabilidade (ou mesmo ‘desejabilidade’) de uma maior
terreno econômico, chegando até mesmo a influenciar o curso intervenção do Estado na economia, em contraposição ao
da economia política “burguesa”. Sem referir-se às primeiras menor poder transformador ou modernizador das estruturas
críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John “capitalistas” de mercado.
Stuart Mill ao próprio Marx, caberia lembrar que Vilfredo Em outras palavras, a legitimação ideológica do comu-
Pareto dedicou dois alentados volumes ao estudo dos sistemas nismo se deu tanto pela via da economia como da política, em
socialistas, que Hobson antecipa a análise leninista sobre a que pese o balanço francamente desfavorável na confrontação
natureza econômica do imperialismo contemporâneo, que com o capitalismo (mas, explicável em termos de guerra civil,
Hilferding e Rosa Luxemburgo terçaram armas em torno do de destruições “imperialistas”, de espoliação “colonial” etc.), que
capital financeiro e da acumulação capitalista, que toda uma tanto a URSS como a China ou outros países menores (Cuba,
“teoria das crises cíclicas” frequentou a produção acadêmica Vietnã) nunca deixaram de apresentar, mesmo em comparação
na economia (de Schumpeter a Keynes, de Robinson e Sraffa a com países capitalistas “subdesenvolvidos”. Os partidos comu-
Kindleberg) e que, ainda no começo dos anos 60, economistas nistas dos países capitalistas europeus — em especial na Itália
respeitados como John Kenneth Galbraith ou sociólogos atentos e na França — conseguiram reter uma certa audiência popular
como Raymond Aron podiam prever uma certa convergência mesmo durante os anos de descrédito político do socialismo real
entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem com base na antiga crença de que uma “economia planificada”
ambos os sistemas chegados a uma etapa industrial avançada. ou pelo menos controlada pelo Estado conseguiria refrear a
De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências “exploração capitalista” e introduzir um pouco mais de igual-
de planificação sob a República de Weimar, a própria organização dade na repartição funcional capital-trabalho. No continente
econômica do coletivismo fascista, os projetos de welfare state nos latino-americano, a única justificativa para a ausência completa
países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações de liberdades democráticas e até mesmo de direitos humanos
e o acentuado intervencionismo (com agências estatais dedicadas na Cuba “socialista” — aceita, de certo modo, pela própria “di-
ao planejamento indicativo) conduzidos no segundo-pós reita” — era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais
guerra nos principais países capitalistas europeus, podem ser (saúde, educação, esportes, cultura), continuamente agitados em
considerados como o resultado direto do impacto exercido pelas face das desigualdades e mazelas sociais existentes nos demais
ideias econômicas “comunistas” nas sociedades do Ocidente países da região.
desenvolvido. Da mesma forma, a suposta industrialização rápida Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que
da URSS, a “solução” do problema da fome na China socialista aquela derivada da “paixão revolucionária” que mobilizou
(contra a sua suposta manutenção na Índia “capitalista”), o intelectuais em todos os países do Ocidente, avançados ou em
desenvolvimento “acelerado” dos países atrasados do Terceiro desenvolvimento: a afirmação da vontade na História, a invenção
Mundo, todos esses elementos, reais ou imaginários, da “grande do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês (alimentado
transformação” da segunda metade do século XX foram, com não tanto por proletários verdadeiros, como por artistas e
ou sem razão, creditados à alavancagem ideológica das ideias intelectuais “burgueses”), a promessa de um novo mundo de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

justiça social construído pela própria coletividade redimida Mesmo um historiador bem informado como Hobsbawm
pela classe operária, a recusa do individualismo em favor da se deixou iludir pelas chances de sobrevivência do “socialismo
liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou realmente existente”, ainda que reconhecendo seu desempenho
de um povo como no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia medíocre. A primeira coisa a ser observada a respeito da região
o “charme universal de Outubro” e que pode ser considerado socialista do globo, disse ele em seu livro sobre o “breve século
como a grande herança da Revolução francesa de 1789. De certo XX”, “é que durante a maior parte de sua existência ela formou
modo, a grande ilusão econômica do socialismo talvez seja a um sub-universo separado e largamente autossuficiente tanto
única a sobreviver à derrocada do regime político baseado no economicamente como politicamente. Suas relações com o resto
partido único, este definitivamente enterrado pela superioridade da economia mundial, capitalista ou dominada pelo capitalismo
filosófica, moral e empírica da ideia democrática. Se as ideias dos países desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas.
movem o mundo, as ideias econômicas com muito maior razão Mesmo durante a fase alta do grande boom do comércio
podem ter a pretensão de continuar a determinar o curso de internacional nos Anos Dourados, apenas algo em torno de 4%
nossos destinos individuais e de nossas realizações coletivas. das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam
A essa título, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela para as ‘economias centralmente planificadas’ e, em torno dos
que se baseia no papel regulador e distribuidor do Estado) não anos 80, a parte das exportações do Terceiro Mundo dirigidas a
parece perto de extinguir-se, mesmo depois de ter sido bastante elas não era muito maior”.9 Hobsbawm desenvolve uma análise
maltratada por várias décadas de planejamento centralizado e da “economia política” do socialismo real que tende a acreditar,
de “socialismo real”. Finalmente, o grande objetivo do projeto mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo
comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto agente estalinista, que “evidenciariam” um crescimento superior ao das
social — objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas economias capitalistas nos anos 1930 (“acumulação primitiva
de Outubro e seus êmulos em outras partes — como construir socialista”) e durante certa fase do pós-guerra.
um sistema socialista de organização social da produção O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho
em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia econômico efetivo dos socialismos realmente existentes — que
eliminar da face da terra. Era essa a promessa contida no poderia ser objeto de uma história econômica do socialismo —
Manifesto Comunista, reafirmada no programa leninista e ainda mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das ideias
confirmada em pleno revisionismo krusheviano.8 Aliás, até o econômicas na formação e manutenção da “ilusão comunista”,
final de sua administração, quando ele já tinha consentido em durante a maior parte do século XX. Com efeito, as ideias
introduzir elementos de mercado no funcionamento econômico econômicas devem ser consideradas como parte integrante da
do socialismo, Gorbatchev também preservou sua confiança “ilusão comunista”, como elemento indissociável da mitologia
num futuro comunista, isto é, não capitalista, para a URSS. política do socialismo de tipo soviético, mas elas contaminaram
igualmente a avaliação do desempenho dos regimes socialistas
nos países ocidentais.
8 Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Krushev prometia ultrapassar
a produção “per capita” dos Estados Unidos por volta de 1970 e construir uma
“sociedade comunista acabada” perto de 1980. 9 Cf Hobsbawm, Age of Extremes, op. cit, p. 374.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

1.3. O marxismo enquanto “concepção burguesa” da História Meiji, que combinou aspectos de modernidade e de tradição
na ascensão do Japão à era moderna.
De certo modo, o marxismo também representa uma O marxismo teórico, tanto o dos “mestres” quanto o dos
“concepção burguesa da História”, que não foi de todo abandonada epígonos, nunca conseguiu explicar de maneira satisfatória essas
mesmo depois do declínio teórico da ideia marxista em muitos experiências “dissidentes” de modernização econômica, essas
dos países que, entre os anos extremos de 1917-1945 a 1989- rupturas paradigmáticas em relação ao modelo consagrado de
1991, encarnaram a suposta materialização prática das ideias transição entre uma organização social de produção identificada
marxistas. Em vários países essas ideias foram sendo substituídas inteiramente com os princípios do mercado e da propriedade
por novos modelos teóricos, alguns baseados na ideia gramsciana privada e um sistema político caracterizado por um regime
de “revolução passiva”, outros na abordagem “bismarckiana” da institucional formalmente democrático. Marx, no Capital,
revolution von Oben e da modernização conservadora, outros pretendeu, como se sabe, encaixar o futuro da Alemanha num
ainda, de forma mais incisiva e original, pela afirmação de uma molde britânico, o berço da transição original, a partir da
vertente reacionária e mesmo autocrática da revolução burguesa, qual as modernizações ulteriores deveriam se espelhar: de te
típica do capitalismo dependente da periferia latino-americana. fabula narratur. O campo explicativo do marxismo clássico
Esta última concepção representa, na verdade, uma inversão do sempre foi delimitado por um modelo econômico baseado no
modelo original marxista e uma espécie de inovação conceitual capitalismo de tipo manchesteriano e por uma análise política
sobre as concepções tradicionais a respeito da revolução social “feuerbachiana”, isto é, baseada numa crença voluntarista sobre
em países da periferia. a transformação radical nas condições de exercício do poder
Esse tipo de conceituação contraditória — na qual os político. A experiência prática de mudança seria dada, de
fatos não se encaixam com a modelização teórica marxista preferência, pelo modelo considerado supostamente exemplar
— não é exclusivo da América Latina, podendo igualmente da Revolução francesa. A linguagem econômica marxista —
ser observado em determinadas conjunturas históricas de mais-valia, teoria do valor-trabalho — é toda ela retirada dos
“transformação passiva” de antigas sociedades tradicionais, mestres do laissez-faire e do liberalismo individualista, ao estilo
de processos delongados de modernização conservadora, de de um Adam Smith e de um David Ricardo, assim como sua
mudanças sociais enquadradas num contexto de capitalismo terminologia política — esquerda e direita, entre outros — se
tardio, de ausência, enfim, de uma verdadeira revolução burguesa inspira diretamente nos pasquins que sustentaram os embates
suscetível de romper as alianças espúrias do antigo regime e passionais entre jacobinos e girondinos observados na arena da
inaugurar uma nova era de progresso social e incorporação grande revolução que sacudiu a França no final do século XVIII.
cívica das camadas subalternas ao jogo político-institucional. Foi Num certo sentido, Marx prolonga e leva a seu apogeu
o caso, talvez, da “revolução passiva” descrita por Gramsci — o a “concepção burguesa” da história: o Manifesto Comunista,
trasformismo da experiência política que se seguiu à unificação por exemplo, é um verdadeiro hino em louvor da burguesia
italiana —, da Revolution von oben da mais aristocrática revolucionária, podendo ser considerado, no campo econômico,
modernização conservadora alemã — de inspiração bismarckiana como um legítimo predecessor dos modernos estudos sobre a
e de sustentação junkeriana — ou ainda da transformação globalização. Esse panfleto trata, com efeito, de maneira brilhante,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

da primeira fase do processo de globalização sob a égide do jamais tido a possibilidade de experimentar o que Marx, na
capitalismo industrial — o anterior tinha sido inaugurado desairosa expressão do Dezoito Brumário, classificou de “cretinice
na época dos descobrimentos, sob a preeminência do capital parlamentar” da democracia burguesa. O Termidor soviético
mercantil —, movimento retomado apenas recentemente, durou o tempo necessário para que se fizesse a acumulação
depois de um “breve” parênteses histórico motivado por duas primitiva do socialismo num só país, projetando-se, no pós-
guerras mundiais e por setenta anos de desafio alternativo ao guerra, naqueles países ocupados pelo Exército soviético que
capitalismo realmente existente, representado pelo socialismo tampouco tinham tido a “felicidade” de conhecer uma revolução
de tipo soviético. A ideia marxista de revolução burguesa burguesa “em carne e osso”, mas que desfrutavam de graus
incorpora e supera — aufheben — a teoria burguesa da História variados de “despotismo burguês” e de subdesenvolvimento
e sua materialização prática deveria servir, na verdade, à etapa capitalista.
burguesa do modo de produção social. Nenhum desses movimentos de transformação política
As esperanças dos demiurgos eram sabidamente projetadas, foi bem sucedido no empreendimento radical de aportar
inclusive por questões de “preferência nacional”, no coração do abundância material, de construir uma verdadeira democracia
continente europeu, mais exatamente na Alemanha guilhermina social ou na superação da “penúria” da sociedade burguesa e a
e bismarckiana. Os epígonos — Liebknecht, Kautsky, Rosa “inocuidade” da democracia formal. A esse respeito, se poderia
Luxemburgo — não tiveram sucesso, contudo, na implementação argumentar que o fracasso do “assalto ao céu” e da “organização
prática das promessas libertadoras de Marx e Engels. O marxismo do paraíso” nas mãos de intelectuais e “proletários” não se deveu
russo — o único, finalmente, com Plekhanov e Lênin, a lograr tanto a defeitos intrínsecos à doutrina marxista e seu respectivo
transpor para a realidade as ideias do mestre — reproduz de receituário de economia política, mas a dificuldades inerentes
maneira defasada os grandes debates que os marxistas alemães ao próprio mundo real, num contexto de atraso material
exilados mantiveram, duas décadas antes, na busca de uma dos sistemas capitalistas nacionais e de rigidez política das
revolução impossível — a révolution introuvable de muitos respectivas estruturas sociais alemã e russa (ademais de outras
intelectuais ocidentalizados —, de uma tentativa de reprodução sociedades, porventura engajadas nessas aventuras da dialética
combinada da modernização capitalista ocorrida na Inglaterra na Mitteleuropa e nas estepes asiáticas).
vitoriana do século XIX e das mudanças políticas radicais Outra linha de justificação foi buscada no “cerco capitalista”,
introduzidas na sociedade francesa dos séculos XVIII e XIX. na “agressividade” do imperialismo e na participação finalmente
O voluntarismo bolchevique, por sua vez, decide passar marginal das economias socialistas nos grandes fluxos mundiais
diretamente para o modo superior de produção sem ter sequer de comércio, investimento e tecnologia. O argumento é, na
permitido que as estruturas produtivas da velha Rússia — que verdade, bastante especioso, no sentido em que, com a possível
Lênin tinha analisado no Desenvolvimento do capitalismo na exceção das relações econômicas bilaterais entre Cuba e os
Rússia — conhecessem o purgatório da exploração capitalista; Estados Unidos, nem o intercâmbio comercial nem as transações
do ponto de vista político, o novo poder soviético empreende financeiras foram absolutamente suspensas ou proibidas
a construção jacobina de uma ditadura do “proletariado” — entre países dispondo de regimes economicamente distintos e
na verdade, do partido — sem que a sociedade russa tivesse politicamente opostos. Por outro lado, muitas das organizações

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

onusianas do pós-guerra foram concebidas e desenhadas — como realidade — é propriamente irrealizável, não só enquanto
o GATT, por exemplo, ou a Carta de Havana, que criou uma programa filosófico, mas, também, como projeto político, ou
primeira, mas natimorta, Organização Internacional de Comércio pelo menos enquanto guia de ação prática.
— de maneira a acomodar as particularidades dirigistas das Essa necessária simplificação de um processo bem
economias socialistas, sendo que a URSS foi contemplada, na mais complexo de emergência, expansão e declínio de uma
conferência de Bretton Woods, com uma alocação de quotas das ideologias mundiais, o marxismo, mais vigorosas que
originais no FMI totalmente desproporcional a seu peso real frequentaram o pensamento ocidental nos últimos séculos —
na economia e no comércio mundiais. possivelmente o movimento secular de maior sucesso social,
político e espiritual desde a Reforma luterana do século XVI
1.4. Desventuras da dialética na periferia capitalista ou mesmo desde o advento do cristianismo —, talvez não faça
justiça aos inegáveis e reconhecidos méritos heurísticos de uma
Contrariamente a suas desventuras ou sucessos práticos doutrina que, independentemente dos crimes que possam ter
nos países de capitalismo “tardio”, o marxismo conheceu uma sido cometidos em seu nome ao longo de um trágico, felizmente
trajetória de relativo prestígio — ainda que essencialmente “breve”, século XX, acumulou muitos bons serviços analíticos
acadêmica e intelectual — nos países do capitalismo avançado, e metodológicos no decurso de uma carreira que pode ser
no quais, finalmente, a “revolução burguesa” era decididamente considerada, finalmente, como extremamente bem sucedida do
um assunto do passado e a “revolução proletária” um projeto ponto de vista do establishment acadêmico e dos instrumentos
sem futuro. Paralelamente, a doutrina marxista era posta intelectuais de análise da realidade social.
politicamente à prova nos países do capitalismo periférico, Com efeito, as desventuras práticas e notórias da dialética,
colonial, atrasado ou dependente, nos quais nem a burguesia nem em alguns dos terrenos presumivelmente mais férteis e receptivos
o proletariado estavam preparados para cumprir suas respectivas à sua afirmação intelectual e ao seu desenvolvimento social e
“missões históricas”. Seu relativo sucesso enquanto força social político — ou seja, os países socialistas —, não nos deve fazer
ou ideológica nestes últimos, entre eles no Brasil, se deve, talvez, esquecer que os aportes teóricos do marxismo constituíram,
à própria ausência de uma verdadeira revolução burguesa e à desde o último quarto do século XIX, a base indispensável
falta de uma transformação real das condições materiais de para a emergência da moderna teoria social, tanto no campo
produção durante boa parte da história contemporânea desses das disciplinas naturalmente propensas a recolher seu “húmus”
países. Da mesma forma, o fracasso intelectual e político do enriquecedor — como a história, a sociologia, a ciência
marxismo nos países desenvolvidos pode provavelmente ser política ou até mesmo a psicologia social —, como no terreno
atribuído a uma inadequação fundamental entre o discurso e daquelas ciências mais suspeitas de “deriva burguesa”, de desvio
a realidade ou a uma impossibilidade material de se transpor individualista ou de descomprometimento social — como a
o diagnóstico teórico para o terreno da prescrição prática, de economia, a geografia, a teoria literária ou a própria psicanálise.
saltar do domínio da especulação filosófica para o da terapia Em todas elas, e em muitas outras mais, o marxismo
política. Isso se deve, talvez, a que a décima-primeira tese sobre atuou como um diluidor dos equívocos “idealistas” de um
Feuerbach — aquela sobre a transformação “voluntarista” da passado pouco científico, para servir, em seguida, de alavanca

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

“materialista” ao avanço inquestionável dos métodos de pesquisa Sem pretender recusar o que de verdadeiramente revolucio-
e das variáveis analíticas, introduzindo conceitos aparentemente nário existe no marxismo em termos de análise e interpretação do
inovadores — como os de “modo de produção” ou de “formação mundo real, deve-se reconhecer que ele foi bem menos feliz, ou
econômico-social”, quando não aqueles algo banais de “forças tão simplesmente menos efetivo, na transformação desse mesmo
produtivas” e de “relações de produção” — ou mesmo favorecendo mundo, como pregava a décima-primeira tese sobre Feuerbach.
abordagens límpidas e claras, como o obviamente irrecusável Com efeito, a parábola prática do marxismo real no século XX
primado das forças econômicas — mas apenas em “última alcança tão somente setenta anos de ensaios e erros, o que, em
instância” — sobre as outras formas de determinação social. No termos históricos, trata-se de um parênteses realmente curto:
século XX, mesmo um historiador católico e pouco suspeito de três gerações, se tanto. Sua trajetória acadêmica é, contudo, bem
simpatias pelo marxismo, como Pierre Chaunu, por exemplo, mais longa, o que pode ser explicado pelo próprio itinerário
afirma a inquestionável dominação do econômico no esforço histórico de seu objeto preferido de “demonologia” prática,
de reconstrução analítica da realidade social. o capitalismo. Tendo iniciado sua trajetória ainda durante a
própria vida de Marx, o marxismo teórico promete estender-se
1.5. O marxismo como doutrina da globalização capitalista por um horizonte ainda não limitado em suas fronteiras tem-
porais ou espaciais, o que corresponde, finalmente, às próprias
Se o marxismo constitui, ou não, o horizonte insuperável possibilidades práticas de disseminação geográfica progressiva
de nossa época, como pretendia Sartre, esta é uma questão que do modo capitalista de produção, sua base real inquestionável.
deve ser deixada aos filósofos e outros ideólogos sociais. O que Também neste sentido, o marxismo representa uma “concepção
é certo é que ele representou uma das mais vigorosas forças burguesa” da História.
de transformação social e de interpretação do mundo real, de A parábola do marxismo poderá, talvez, seguir a própria
forma coerente aliás com a vocação messiânica e prometeica trajetória sinuosa do capitalismo, num itinerário histórico
de seu criador genial — muito embora Marx tivesse sido sempre rico em manifestações de criatividade. O movimento de
menos bem sucedido enquanto propagandista prático. Engels, expansão mundial do capital, tal como anunciado por Marx no
o companheiro de lutas políticas, financiador constante — Manifesto de 1848 — mas frustrado em sua marcha ascendente
ainda que involuntário — e “editor” cuidadoso e dedicado do e universalizante, desde então, pelas revoluções anti-capitalistas
demiurgo do marxismo, acreditava que essa doutrina encarnava, e anti-burguesas no centro e na periferia do sistema —, retoma
ao lado das teorias newtoniana da gravidade e darwiniana da agora, num fin-de siècle praticamente “liberal”, sua curva
evolução, o que de mais “científico” o espírito humano poderia efetivamente ascensional. Depois de duas guerras mundiais, uma
haver concebido em termos de “leis sociais” para explicar as depressão econômica memorável, várias outras crises cíclicas
origens, o desenvolvimento e a inevitável “síntese dialética” e muitas turbulências financeiras — e concluído o funeral do
das sucessivas vagas civilizatórias conhecidas pelas diferentes sistema alternativo que prometia, apenas e tão somente, enterrá-
formações sociais desde os albores da humanidade até o final lo enquanto modo de produção dominante —, o capitalismo
dos tempos históricos. volta mais vigoroso do que nunca.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

Pode-se prever, nesse sentido, uma brilhante carreira capitalistas, mas de uma “nova classe” de dirigentes políticos e
teórica para o marxismo, ou pelo menos um itinerário assegurado partidários ulteriormente identificados como “nomenklatura”.
de sucesso intelectual e de respeito acadêmico, na exata medida da As dificuldades práticas de atualização dessa poderosa
continuidade das iniquidades sociais produzidas por um sistema ideia social diminuíram um pouco seu grau de atratividade,
que se mantém, em muitas das novas fronteiras de conquista, sobretudo nos países avançados, mas não na periferia geográfica
basicamente manchesteriano (como ele é ainda hoje na China, do capitalismo, o terreno de eleição por excelência — ainda que
por exemplo), tal como Engels, pouco antes de redigir com historicamente marginal — dos profetas do desaparecimento
Marx o famoso panfleto comunista, analisou na obra Situação inelutável deste último, considerado teórica e materialmente
da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Enquanto, com razão, inferior ao modo socialista de produção, este bem mais
o capitalismo permanecer predatório e “explorador” — o que racional do ponto de vista econômico e socialmente mais justo.
aparentemente ele nunca deixará de ser —, não há motivo para O marxismo da periferia, mais do que uma proposta original
se aguardar o desaparecimento do marxismo enquanto filosofia de socialismo, sempre foi basicamente um anticapitalismo,
política e doutrina social igualitária e libertadora. Ainda que tanto mais poderoso quanto o país em causa era mais atrasado
algumas de suas manifestações mais brutais — que na verdade do ponto de vista capitalista. Marx e Engels trataram muito
derivam mais do leninismo do que propriamente do marxismo pouco da problemática da transição nos países atrasados —
— parecem hoje condenadas ao museu das antiguidades, ao lado apenas alguns artigos de jornal, para condenar os “bárbaros”
do machado de bronze e da roca de fiar (mas não do Estado, indianos e chineses, ou os “idiotas” dos mexicanos e espanhóis,
como pretendia Engels), pode-se augurar à ideia socialista, tal que se opunham à marcha do capital e da civilização, um
como concebida por Marx, un succès d’estime apenas comparável à sendo o equivalente do outro —, mas o que se sabe é que eles
filosofia cristã enquanto movimento social que busca transformar condenavam irremediavelmente o despotismo asiático ao
o mundo — e antes de mais nada os homens — num sentido purgatório do capitalismo europeu, não tendo sido capazes
mais fraterno e igualitário. de jamais imaginar que sociedades pré ou semicapitalistas
Nesse sentido, enquanto sistema ideológico dotado de pudessem um dia encarnar os ideais elevados e progressistas
méritos analíticos “científicos” e de atributos sociais mobili- de um socialismo moral, política e materialmente superior ao
zadores, o marxismo é indissociável do próprio capitalismo sistema que ele estava destinado a substituir.
enquanto sistema de organização social da produção, mesmo se
suas antigas pretensões à universalidade estejam hoje seriamente 1.6. A astúcia da razão e as surpresas da História
comprometidas por um fracasso persistente — sob a forma de
socialismo realmente existente — na implementação efetiva de Mas, a História tem, como se sabe, suas ironias, e a
condições aceitáveis de vida. Finalmente, longe de ter consegui- razão as suas astúcias, para não dizer surpresas. Constitui
do extirpar de maneira resoluta os aspectos tradicionalmente evidentemente um dos maiores paradoxos da história do
condenados no sistema capitalista, o socialismo real apenas marxismo o fato de que os únicos países a entrarem no “livro
organizou modalidades mais sutis de “exploração do homem dos recordes” do comunismo realmente existente tenham
pelo homem”, não mais em proveito de uma classe diminuta de sido, todos, ou mesmo exclusivamente, sistemas econômicos

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

atrasados do ponto de vista capitalista, nações que jamais na aplicação concreta da ideia marxista enquanto exemplo
conheceram — em carne e osso, se se pode assim dizer — as de “concepção burguesa da História”. Em outros termos, eles
delícias de uma “revolução burguesa” e que preservaram, contra deixaram de pagar tributo a esquemas teóricos que faziam da
as recomendações do iniciador da doutrina, sistemas políticos “revolução burguesa” uma simples antecessora de sua irmã-
que mais se assemelharam ao despotismo asiático desprezado por gêmea social, a “revolução proletária”, aderindo aos esquemas
Marx do que aos democráticos conselhos operários concebidos práticos mais realistas da “política burguesa”.
a partir das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris. Em todo Sem pretender fazer ironias com a História, caberia
caso, contrariamente ao programa histórico desenhado por observar que a crise e a débâcle do comunismo soviético podem
Marx para os proletários e intelectuais socialistas dos países ser interpretadas inteiramente em termos das ideias marxistas.
desenvolvidos — isto é, levar a seu termo a “missão histórica” Com efeito, ninguém melhor do que Marx sabia colocar com
do capitalismo burguês, para só então dar início à idade do ouro clareza, ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar
socialista —, foram os intelectuais e “proletários” dos países do processo histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio
menos avançados que julgaram por bem saltar a etapa histórica à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), “numa
da democracia burguesa e do capitalismo empresarial para certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas de
penetrar de imediato na democracia socialista e na propriedade uma sociedade entram em contradição com as relações de
estatal. Esses intelectuais — muito poucos proletários legítimos produção existentes, ou, o que é apenas sua expressão jurídica,
participaram da aventura marxista na periferia — foram, com as relações de propriedade no seio das quais elas se tinham
portanto, basicamente anticapitalistas, falhando, no entanto, desenvolvidos até então. De formas de desenvolvimento das
o movimento real do comunismo enquanto partido de massas forças produtivas, essas relações [de produção] se tornam seus
precisamente devido à crônica e notória insuficiência de próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução social.
capitalismo real em suas formações sociais respectivas. A transformação na base econômica altera mais ou menos
Em contrapartida, foram esses mesmos intelectuais que, rapidamente toda a enorme superestrutura”.10
na periferia atrasada, produziram algumas páginas brilhantes da Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo
teoria social contemporânea, renovando o pensamento marxista de tipo soviético a partir do final dos anos 1970, muito embora
e as ciências sociais como um todo. Alguns deles permaneceram suas sementes existissem desde muito tempo antes. As razões
aferrados a concepções tradicionais do marxismo, condenando- dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada
se à irrelevância prática na mesma medida em que obtinham em termos “marxistas”, foram as mesmas que, no passado,
sucesso acadêmico. Outros souberam renovar-se e, ainda que levaram ao declínio do feudalismo como “modo de produção”:
mantendo em alta conta as virtudes metodológicas da teoria as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente
marxista, passaram a reconhecer, de modo pragmático, as convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das
limitações que o real impõe à esfera da “razão prática”. Alguns forças produtivas e ao avanço das condições econômicas
deles — mesmo legitimando a validade da interpretação marxista
sobre o capitalismo tardio e a democracia retardatária no 10 Tradução livre a partir da edição francesa; vide Karl Marx, Contribution à la
Brasil — chegaram a alcançar elevado grau de sucesso político Critique de l’Économie Politique. Paris: Editions Sociales, 1957.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

de produção. Qualquer marxista não comprometido com da revolução bolchevista —, elas sempre representaram (no
os esquemas de poder existentes na área soviética poderia vocabulário do próprio Marx) “uma forma antagônica do
reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava, processo de produção social, não no sentido de um antagonismo
em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições
do processo de produção social. sociais de existência dos indivíduos”.
Um especialista italiano do comunismo soviético, fez Segundo os próprios termos da análise histórica marxista
o mesmo tipo de análise “marxista” sobre a contradição seria portanto inevitável esperar o deslanchar de uma etapa
fundamental desse sistema: “Aplicando ao caso soviético as revolucionária no desenvolvimento do socialismo, uma vez que
categorias marxianas, se pode dizer que na União Soviética, a a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde
superestrutura sufocava dali em diante [anos 1980] as condições o final da estagnação “brejnevista”, estava conduzindo a um
de desenvolvimento da sociedade, criando uma situação de impasse, ele mesmo anunciador de uma mudança radical em
crise orgânica do sistema. Tornava-se mais e mais evidente, toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista. É
de fato, que a rigidez planificadora burocrático-centralista, assim muito provável que, ao iniciar seu período de “reformismo
que tinha podido obter substanciais sucessos no âmbito da esclarecido”, Gorbatchev tenha chegado à conclusão que a base
modernização tardia baseada na indústria pesada, na cadeia técnica do sistema socialista, enquanto forma de organização
de montagem, no controle autoritário da mão-de-obra, na social da produção, fosse essencialmente conservadora, uma
compressão do consumo em proveito dos investimentos vez que, ao contrário do sistema capitalista, não possuía em
nos setores considerados estratégicos, em primeiro lugar si mesma os impulsos para uma contínua transformação das
militares, não estava estruturalmente em condições de realizar condições de produção.
o salto qualitativo indispensável para conduzir o sistema à era Gorbatchev, aparentemente em bom marxista, admitiu-o
da telemática disseminada e de produções sujeitas à rápida abertamente: antes mesmo de assumir a liderança do PCUS, em
obsolescência e, portanto, adaptá-lo à necessidade de rápidas dezembro de 1984, ele advertia que a injustificada preservação
reconversões, implementadas por uma pluralidade de centros de “elementos obsoletos nas relações de produção pode ocasionar
de decisão sensíveis às exigências da inovação permanente”.11 uma deterioração da situação econômica e social”. Em junho
De fato, as relações socialistas de produção sempre foram de 1985, já como Secretário-Geral do PCUS, ele declarava
uma forma contraditória de organização social da produção, que “a aceleração do progresso científico e técnico requeria
uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a sociedade insistentemente uma profunda reorganização do sistema de
burguesa não poderia desaparecer — e assim dar lugar ao planejamento e de administração do mecanismo econômico em
socialismo — sem que ela pudesse antes desenvolver todas as suas sua totalidade”.12 O que Gorbatchev pretendia implementar era
potencialidades intrínsecas em termos de forças produtivas. Mas, uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem mais complicado,
uma vez implementadas essas relações socialistas de produção deve-se reconhecer, que as banalidades conceituais em torno
— de maneira mais ou menos improvisada no seguimento
12 Citado por Francis Fukuyama, “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs,
11 Cf. Massimo Salvadori, La Parabola del Comunismo, op. cit., p. 56. vol. 64, n. 4, Spring 1986, pp. 715-731.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A parábola do marxismo em perspectiva histórica

do modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o desenvolvimento, o processo de ruptura com o ancien régime
“socialismo mais a eletricidade”. foi, evidentemente, político, e não poderia deixar de ser
Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer exclusivamente político, como observaram Furet e Hobsbawm.14
aquele socialismo tomar o “carro da História” a partir das relações O ponto de não retorno, escreveu ironicamente Hobsbawm, foi
de produção existentes: não só a “base técnica” do socialismo atingido na segunda metade de 1989, bicentenário do deslanchar
estatal, nos termos de Marx, era essencialmente conservadora, da Revolução francesa, “cuja não existência ou irrelevância para
como também sua base social e política era profundamente a política do século XX, os historiadores franceses ‘revisionistas’
reacionária. A União Soviética parecia representar para estavam ocupados em tentar demonstrar naquele momento.
Gorbatchev o que a Alemanha guilhermina representava para A ruptura política seguiu-se (como na França do século XVIII) à
Marx no século passado: um país atrasado e dividido que tinha convocação de novas assembleias democráticas, ou passavelmente
necessariamente de passar por uma revolução política radical democráticas, no verão daquele ano. A ruptura econômica
para quebrar os grilhões que impediam sua modernização tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses
econômica e social. cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990”.15
Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se- A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de
ia dizer que as relações socialistas de produção e a classe um modo de produção a um outro. Para chegar a um verdadeiro
burocrática associada ao Partido Comunista representavam, na sistema econômico de mercado, na antiga zona soviética, os
maior parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o
sistema corporativo e a classe aristocrática desempenhavam no
14 Hobsbawm, por sua parte, combina elementos políticos e econômicos em sua
ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível ao análise sobre a queda final do comunismo: “O que levou a União Soviética em
desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave marcha acelerada em direção ao precipício foi a combinação da glasnost, que
formidável ao progresso político da sociedade. Como afirmaram significava a desintegração da autoridade, com a perestroika, que resultou na
destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia funcionar, sem prever
Marx e Engels no Manifesto Comunista: “numa certa etapa do
nenhuma alternativa; e consequentemente o colapso crescentemente dramático
desenvolvimento dos meios de produção e de troca... as relações do padrão de vida dos cidadãos”; “A desintegração econômica ajudou o progresso
feudais de propriedade deixaram de corresponder às forças da desintegração política e foi alimentada por ela”; op. cit., pp. 483 e 485.
produtivas em pleno crescimento. Elas entravavam a produção 15 Hobsbawm, op. cit., p. 486. Salvadori também faz uma análise similar:
“O sistema [já sob a direção de Grobachov] demonstrou não ser renovável
em lugar de fazê-la avançar. Elas se transformaram em grilhões. por causa de sua rigidez; e o movimento de reforma, que investiu a economia
Esses grilhões tinham de ser quebrados: eles foram quebrados”.13 e as instituições políticas, teve efeitos destabilizadores, de tal forma a romper
No que concerne as relações socialistas de propriedade, a máquina existente e provocar um verdadeiro processo de ‘descolamento’.
O primeiro resultado foi o precipitar da crise econô mica, que em 1990 assume
esses grilhões foram efetivamente rompidos nos países da antiga o caráter de catástrofe”. “O sistema... desagregou-se sob o peso de dois elementos
área soviética, muito embora o processo de construção da nova fundamentais, um ligado ao outro. O primeiro foi a incapacidade estrutural de
ordem esteja ainda a meio caminho. Em suas manifestações e um sistema centralístico-burocrático-totalitário (...) em responder aos desafios
colocados pela economia complexa do mundo capitalista entrado na era pós-
industrial. O segundo foi a incapacidade final do sistema de poder comunista
13 Tradução livre a partir da edição da Pléiade; vide Karl Marx, Oeuvres I: Économie. em controlar, seja pelo consenso, seja pela coerção, a sociedade, colocada sob um
Paris: Gallimard, 1968. domínio brutal...”; cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., pp. 57 e 91.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

países sob sua esfera tiveram de atravessar aquilo que Marx


chamava de “purgatório capitalista”. O comunismo chegou
efetivamente ao final de sua parábola no decorrer do século
XX: ele constituiu, finalmente, uma longa etapa de transição
que levou do capitalismo ao... capitalismo.

Capítulo 2

A ideia de revolução
burguesa no mar ismo
brasileiro

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

2.1. Itinerário teórico-prático da revolução burguesa no Brasil

A
ideia de revolução burguesa é consubstancial ao próprio
desenvolvimento do marxismo no Brasil, conhecendo seus
momentos de ascensão teórica ou de declínio prático, de
projeção exclusiva no establishment intelectual ou de concorrência
com outros modelos analíticos típicos da academia, pari-passu
aos progressos teóricos ou percalços práticos da ideologia
marxista no País. A bem da verdade, essa noção — que é também
uma “personagem” da própria história do marxismo enquanto
doutrina da mudança social revolucionária — caracterizou-se
antes por seu charme discreto do que por uma presença ruidosa
nos palcos do movimento social brasileiro. Colocada em situação
de realce para fins desta análise histórico-conceitual, deve-se
reconhecer que essa “personagem” perpassa, mesmo de maneira
inconsciente, grande parte da produção intelectual situada no
campo teórico do marxismo, alcançando seu ponto máximo,
enquanto “tipo-ideal” da conceptualização marxista sobre o
desenvolvimento capitalista brasileiro, na obra do sociólogo
Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil (1975).
Com efeito, a trajetória teórica da ideia de revolução
burguesa no Brasil apresenta, contrariamente a seu itinerário
prático, um notório caso de sucesso intelectual, resultado de um
lento processo de “acumulação primitiva conceitual” do marxismo
brasileiro em suas etapas sucessivas de desenvolvimento e
afirmação política e social. Vejamos quais foram essas etapas
e seus intérpretes mais importantes. Numa primeira fase, são
poucos os intelectuais autodidatas que, entre o final do século
XIX e princípios do XX, conheciam as obras dos mestres, como
Tobias Barreto e Silvério Fontes. Numa segunda fase, que se
estende grosso modo dos anos 30 aos 70, assiste-se a um rápido e

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

vigoroso impulso multiplicador da ideia de revolução burguesa, O movimento dessa parábola “teórica” no Brasil não
sobretudo a partir da difusão — ou mesmo vulgarização — do é, evidentemente, linear e previsível como uma equação
“marxismo científico” pelo aparelho partidário do PCB e de sua matemática, nem, como seu equivalente bíblico, apresenta-se
incorporação teórica aos estudos sociais de base universitária, desprovido de sinuosidades interpretativas ou de surpreendentes,
a partir dos primeiros ensaios de interpretação materialista da senão oportunas, correções de rota, algumas explicáveis pela
realidade brasileira por Caio Prado Júnior. própria história mundial do comunismo, outras impostas pelas
É, assim, com base nas virtudes heurísticas do marxismo, conhecidas desventuras da democracia no Brasil. Do ponto de
convertido em principal suporte teórico do pensamento vista teórico, em todo caso, a ascensão e declínio da ideia de
acadêmico, que a ideia de revolução burguesa torna-se o ponto revolução burguesa não observou, no Brasil, o timing histórico
necessário de inflexão do movimento social global, etapa de outras experiências interpretativas e exegéticas conhecidas
temporária da formação social brasileira em direção de um na história do marxismo: uma certa defasagem cronológica
novo tipo de sociedade, idealmente desprovida das injustiças na importação de conceitos e doutrinas pela elite intelectual
sociais do agrarismo “feudal” e do mal absoluto da exploração brasileira poderia explicar por que certas ideias, mesmo as mais
capitalista e imperialista, ambos associados à dominação poderosas ou prometeicas, dão a impressão de se encontrar
deformada do “modo burguês de produção” inaugurado em um pouco fora de seu lugar ou deslocadas em seu tempo de
1930. Mesmo as controvérsias entre partidários dos “restos realização efetiva.16 De certa forma, a discussão da ideia de
feudais” e defensores do “modo capitalista de produção” não revolução burguesa no Brasil intervém quase um século após
descartam, antes reforçam, a ideia de uma revolução burguesa os conhecidos debates teóricos do marxismo clássico.
como central ao processo de construção do capitalismo no A trajetória prática de uma hipotética “revolução burguesa”
Brasil e sua superação ulterior pelo socialismo. O historiador
no Brasil, por sua vez, não só fugiu aos padrões explicativos
e crítico literário Nelson Werneck Sodré foi provavelmente o
desse mesmo marxismo como inovou em termos dos modelos
mais conhecido e bem sucedido defensor dessa visão etapista
historicamente conhecidos de modernização social e econômica
da transformação radical da sociedade brasileira, segundo os
e de transformação política. A Revolução de 1930, por exemplo,
cânones mais apurados da ideologia “oficial” marxista.
a melhor candidata a figurar no panteão ideal de uma revolução
Finalmente, numa terceira etapa, tem-se a constatação — já
burguesa “concreta” no Brasil, não foi um movimento exclusivo
numa espécie de curso descendente da parábola marxista — de
da classe burguesa contra uma suposta aristocracia “feudal”
um declínio algo melancólico do esquema prático “burguês”
nem tampouco se realizou em defesa do industrialismo capi-
para o projeto de revolução social no Brasil, a despeito mesmo
de uma disseminação relativamente satisfatória do marxismo talista contra supostas travas nas relações sociais de produção
teórico nos mais variados meios culturais da academia e do impostas por uma formação social de base essencialmente
establishment escolar. Florestan Fernandes foi um dos mais agrária. As interpretações simplistas dessa Revolução, baseadas
brilhantes representantes do marxismo acadêmico, elevando no primeiro esquematismo de fundo marxista, já foram há muito
a interpretação marxista da história brasileira a um plano
certamente elevado de conceptualização, sobretudo com o 16 Ver Fernando Henrique Cardoso, As Ideias e seu Lugar: ensaios sobre as teorias
clássico A Revolução Burguesa no Brasil. do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

descartadas pela sofisticada historiografia que se desenvolveu conceitual relativamente heterodoxa no próprio Brasil. Muito
no âmbito universitário a partir dos anos 70.17 embora tenham sido vários os autores dignos de serem citados
O modelo de “modernização varguista” — que domina o em qualquer história do marxismo acadêmico no Brasil, três
Brasil desde o final dos anos 30 até praticamente o auge do regime podem ser considerados como intelectuais de primeiro plano,
militar de cunho industrializante de meados dos anos 70 — isto é, influentes ao longo do tempo, nesse terreno relativamente
não poderia, para sermos estritos em termos de comparabilidade bem frequentado por historiadores, sociólogos, economistas e
histórica, ser equiparado a uma revolução burguesa en bonne cientistas políticos: são eles Caio Prado Júnior, Nelson Werneck
et due forme. As dúvidas e questionamentos — inclusive por Sodré e Florestan Fernandes.
parte de representantes do próprio marxismo acadêmico, como Caio Prado, já definido — em mais de um sentido — como
Francisco de Oliveira, por exemplo — são diversos: como e um historiador revolucionário, foi provavelmente o mais fecundo
quando, exatamente, teria sido efetivada a hegemonia burguesa dos três, ao dar início a uma reflexão pioneira e inovadora
na esfera política?; quando essa classe teria transformado de sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira e
forma radical, ou decisivamente, as relações de produção no suas possibilidades de transformação nos quadros do modo de
campo; em que medida, com que extensão e sob quais condições produção capitalista. Werneck Sodré, talvez o mais ortodoxo
ela teria colocado as bases de um processo de acumulação do grupo, buscou fornecer armas intelectuais para a etapa da
capitalista de base autônoma e self-reproducing? Como se vê, revolução nacional capitalista no Brasil, pensada enquanto
os contrastes com o “modelo ideal” de revolução burguesa, resultado de uma aliança de classes. Florestan, finalmente,
tal como enunciado na literatura marxista tradicional — tipo o mais bem aparelhado conceitualmente, foi um acadêmico
Werneck Sodré — ou mesmo inovadora — como em Florestan integral, dedicado na maior parte da sua vida à elaboração
Fernandes —, são aparentemente enormes. de um pensamento socialista original e criador, que tenta
desvendar os segredos e descobrir os caminhos pelos quais se
2.2. Demiurgos e epígonos: os grandes mestres do marxismo estabelece num país periférico do ponto de vista da economia
brasileiro central uma modalidade particular de capitalismo, dependente e
autocrática. Sua trajetória política no final da vida corresponde
O presente ensaio trata de alguns dos exemplos de a uma fase de menor elaboração teórica, durante a qual o
anticapitalismo na periferia do sistema, discorrendo sobre os “leninismo” instintivo do articulista de jornal deixa de lado a
“marxismos” teóricos e práticos desenvolvidos numa moldura finesse terminológica dos primeiros tempos de funcionalismo
sociológico e de weberianismo acadêmico.18
17 No Brasil, os trabalhos de Boris Fausto desmontaram grande parte o “charme
muito pouco discreto” da concepção tradicional sobre a interpretação marxista
O exame das obras respectivas desses três autores não
da Revolução de 1930; cf. A Revolução de 30: historiografia e história. 16ª ed., esgota, por certo, a discussão sobre a trajetória intelectual
revista e ampliada; São Paulo: Companhia das Letras, 1997; a 1ª edição é de
1969. No plano mais geral da região, ver, por exemplo, para uma alternativa à 18 Para uma breve reconstituição biográfica-intelectual da carreira e da vida do
concepção social dessa fase revolucionária no continente, o interessante artigo principal representante da chamada “escola paulista de Sociologia”, ver o livro
de Ilan Rachum, “The Latin-American Revolutions of 1930: a non-economic de Eliane Veras Soares, Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo:
interpretation”, América Latina. Rio de Janeiro: ano 17, 1976, pp. 3-17. Cortez, 1997.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

do marxismo no Brasil, aqui identificado com a emergência Uma primeira geração, nas primeiras décadas do século
e afirmação de uma teoria social relevante e pertinente para XX, de pensadores do “problema nacional brasileiro” teve
uma discussão fundamentada sobre os grandes problemas da muito pouco a ver com o “marxismo” de cunho cientificista
nacionalidade. Tampouco se pretende oferecer, neste ensaio, que se insinuava em alguns textos precoces de Tobias Barreto
uma análise detalhada do conjunto das produções elaboradas ou de Euclides da Cunha. Alguns representantes do “socialismo
ao longo de várias décadas — dos anos 30 aos 90 — por esses prático” — como Silvério Fontes, pioneiro na introdução-
intelectuais. Diversos outros autores, de impacto diverso e adaptação do Manifesto de 1848 no Brasil — deixaram marcas
de influência por vezes não negligenciável no debate político quase que imperceptíveis no pensamento acadêmico ou no
interno, ocuparam com maior ou menor intensidade e variável próprio movimento social. Historiadores de extração mais
volume de publicações as estantes de obras marxistas no Brasil. moderna como Capistrano de Abreu ou Pandiá Calógeras não
Caio Prado, Sodré e Florestan trabalharam na efervescência aderiram, é verdade, ao tipo de materialismo histórico ainda
política e intelectual de suas épocas respectivas, convivendo imberbe que vigia em princípios do século XX, mas tampouco
com outros pensadores igualmente notáveis na maneira de recusaram totalmente as condicionalidades materiais no devir
interpretar o Brasil, partilhando uma mesma vocação voltada histórico, vendo nas condições econômicas de cada época
para a transformação do País. Mas, eles representam seguramente aspectos determinantes da formação social brasileira. Outros
o que de melhor foi produzido em termos de marxismo inovador intelectuais belle époque como Alberto Torres, Eduardo Prado
no Brasil, buscando respostas teóricas ou práticas às dúvidas ou Oliveira Vianna, trabalhando segundo métodos de inspiração
que uma parte de nossa elite intelectual e política legitimamente sociológico-política, colocaram ênfase sobretudo no peso das
entretinha sobre nossas chances de desenvolvimento capitalista instituições “tradicionais”, na vocação “agrária” do País ou na
nos escombros de uma ordem independente não totalmente tradição “paternalista” e “oligárquica” dos sistemas de poder.
liberada das amarras e defeitos estruturais da economia colonial Um “outsider” como Manoel Bonfim não hesita em condenar
exportadora. as “taras” das elites brasileiras, trabalhando com conceitos como
Com efeito, do conjunto de pensadores da “nacionalidade”, “dominadores” e “dominados”, mas sua concepção é bem mais
foram eles os que melhor interpretaram o significado histórico nacionalista e socialista radical do que marxista.
e a necessidade prática de uma verdadeira “revolução burguesa” No terreno concretamente marxista, os primeiros
no Brasil, muito embora muitas outras interpretações tenham propagadores ou divulgadores da doutrina trabalharam quase
sido oferecidas por teóricos declaradamente ou instintivamente que em circuito fechado. Octavio Brandão, desde 1924, com
marxistas na busca de explicações para as insuficiências de nosso base numa leitura mecanicista dos principais textos marxistas,
desenvolvimento capitalista e seus reflexos ao nível do sistema faz uma interpretação staliniana — avant la lettre, como
político. Sem pretender fazer um levantamento completo — sublinhou Quartim de Moraes19 — das contradições entre os
neste caso não limitado ao marxismo — das “visões do Brasil”
oferecidas por gerações de ideólogos engajados, pode-se ainda
19 Cf. João Quartim de Moraes, “A influência do leninismo de Stalin no comunismo
assim citar algumas etapas importantes da constituição de uma brasileiro” in Daniel Aarão Reis et alii, História do Marxismo no Brasil, I. Rio de
teoria social legitimamente brasileira. Janeiro: Paz e Terra, 1991, pp. 47-87, ver pp. 75-80.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

diferentes setores das classes dominantes, propondo uma leitura aquele trazido pelo precursor da história econômica no Brasil,
cruamente dialética — tese, antítese e síntese, que emerge com Roberto Simonsen, cuja preocupação principal, num terreno
a fundação do PCB — das etapas da revolução no Brasil.20 bem mais prático que o de suas aulas na Escola de Sociologia
A revolução burguesa é em seu texto mais uma possibilidade do Política de São Paulo, era com o potencial transformador da
que um projeto político concreto e decorreria eventualmente da industrialização em face do imobilismo econômico do “Brasil
luta travada entre agraristas “feudais” sustentados pelo capital essencialmente agrícola” de muitos de seus colegas da elite. Alguns
financeiro inglês e “burgueses industriais” apoiados pelo novo marxistas autodidatas e ativos militantes, como o próprio Octávio
capitalismo americano. Edgardo de Castro Rebello, por sua vez, Brandão e Leôncio Basbaum, consideravam instintivamente a
realiza, num ensaio sobre Mauá (1932), segundo Francisco de permanência do agrarismo — cujos representantes achavam a
Assis Barbosa, “um livro pioneiro: o primeiro estudo com base indústria uma atividade “artificial” — como uma das raízes do
na interpretação materialista da história”, 21 mas o trabalho atraso nacional.
permanece praticamente ignorado. A repercussão do marxismo No pós-guerra, uma corrente “nacional-burguesa” —
nos trabalhos de interpretação histórica da realidade brasileira só representada por Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Celso
emerge, verdadeiramente, a partir de Caio Prado e seu Evolução Furtado, Ignacio Rangel, Alberto Guerreiro Ramos — e
Política do Brasil (1933). outra “nacionalista” tout court — como Álvaro Vieira Pinto,
Na vertente classicamente acadêmica, a abordagem foi bem Cândido Mendes de Almeida, João Cruz Costa — formularam
mais eclética e enriquecedora: interpretações de tipo “cultural”, interpretações que se aproximaram por vezes da concepção
como as de Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de marxista sobre a “revolução burguesa” e chegaram mesmos a
Holanda deixaram uma marca indelével, sobretudo os dois conceber projetos “burgueses” de desenvolvimento econômico
últimos, nos estudos sociais sobre o Brasil. Não se poderia e social para o País. Mas, as contribuições desses pensadores
tampouco olvidar o aporte de um estudioso “capitalista”, como tinham tendência a diluir a burguesia numa entidade obscura
chamada “povo”, quando não privilegiaram categorias quase
20 Ver a análise de sua principal obra em Angelo José da Silva, “Agrarismo e filosóficas, tais como a “vontade nacional”, no confronto com
industrialismo: uma primeira tentativa marxista de interpretação do Brasil”, outras de extração bem mais “materialista” que estavam sendo
Revista de Sociologia e Política. Curitiba: n. 8, 1997, pp. 43-54. oferecidas nessa mesma época por pensadores como Caio
21 Cf. Francisco de Assis Barbosa, “Introdução” a Edgardo de Castro Rebello, Mauá
e outros estudos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1975, p. xxix, comentando o
Prado e Werneck Sodré, precisamente. Outros intelectuais
ensaio “Mauá - Restaurando a verdade”, que tinha sido escrito em 1931 (e publicado dessa época permanecem numa vertente “culturalista” (Manuel
no ano seguinte pela Editorial Universo do Rio de Janeiro) em contraposição à Diegues) ou quase “funcionalista” (Costa Pinto), mas não deixam
reconstituição panegírica de Alberto de Faria em seu Mauá (de 1926). Castro
Rebello propunha, efetivamente, que a solução da questão operária e social tinha
menos de enriquecer o grande canal da teoria social brasileira
de passar pela supressão da propriedade individual e, desde 1922, falava, em em construção. O sociólogo Guerreiro Ramos, por exemplo,
carta a Max Fleuiss — autor da História Administrativa do Brasil, publicada pelo faz referência explícita à noção de “revolução burguesa” em
Instituto Histórico e Geográfico no quadro das comemorações do centenário sua reflexão sistemática sobre a mudança social no Brasil,
da independência —, da “exploração do homem pelo homem” como “fonte das
instituições administrativas do Brasil” e afirmava que “foi o fato econômico a mas ele está pensando na verdade numa simples “revolução
determinante imperiosa de nossa evolução administrativa”; cf. p. 186-187. industrial”.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

Os anos 60, num movimento paralelo ao do aprofun- “revolução nacional” que estaria em curso no Brasil desde o
damento da crise econômica e política do Brasil em fase de final do século XIX (basicamente a partir do final da Abolição).
industrialização, assistem a um florescimento extraordinário O historiador Nelson Werneck Sodré é, certamente, o repre-
da produção acadêmica, sobretudo em suas vertentes marxista sentante mais típico da interpretação marxista ortodoxa da
e weberiana, muito embora algumas poucas correntes universi- “revolução brasileira”.
tárias de inspiração liberal tenham continuado se desenvolver Mas, o verdadeiro iniciador da historiografia marxista
mesmo nos ambientes mais “contaminados” pela mística da no Brasil, Caio Prado Júnior, era, entretanto, muito menos
transformação social e das reformas radicais — agrária, urba- ortodoxo nesse particular. Tendo inaugurado a interpretação
na, educacional. O exemplo de Cuba e o aparente sucesso da materialista da sociedade brasileira, esse decano da história
industrialização socialista como via alternativa ao capitalismo econômica e social influenciou, como veremos, mais de uma
dependente e periférico, agitam o debate acadêmico e motivam geração de pesquisadores, desde seu pioneiro Evolução Política
as pesquisas sobre o Estado, os empresários e as classes sociais do Brasil (1933), passando pela Formação do Brasil Contempo-
por herdeiros de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque ou de Caio râneo (1942) e pelo História Econômica do Brasil (1945). Mas,
Prado. É a voga dos trabalhos monográficos ou de amplo esco- o debate se instala verdadeiramente a propósito de seu livro
po que fazem a revisão crítica da “visão ingênua” que tiveram polêmico A Revolução Brasileira (1966), no qual Caio Prado
seus predecessores sobre a marcha do capitalismo no Brasil: nega à burguesia brasileira qualquer “papel revolucionário” ou
Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, e anti-imperialista, como pretendia a “visão etapista” defendida
muitos outros colegas ou discípulos daqueles founding fathers e pelo PCB e pelos demais ideólogos da esquerda ortodoxa.
seus continuadores na chamada “escola paulista de Sociologia”, Fora da historiografia, os partidários de uma “revolução
onde começava a pontificar, precisamente, Florestan Fernandes. nacional” ou “burguesa” são tão numerosos quanto seus
O que se poderia chamar de “teoria social brasileira” se adversários, estes recrutados nas mais diversas tendências da
inspira essencialmente no marxismo, muito embora o ecletismo esquerda marxista. Alguns, adeptos da tese do “capitalismo
seja de rigor, com muitas doses de weberianismo acadêmico desde o começo” ou da “superexploração imperialista”, situando
e algumas pitadas de historiografia francesa. A unidade de o crescimento e a estagnação capitalistas no contexto do
pensamento é muito mais aparente do que real. No terreno sistema internacional dominante, operam uma redução radical
da historiografia, por exemplo, a escola marxista comportava da autonomia social da classe burguesa. Os que adotaram
tanto representantes da corrente ortodoxa como pesquisadores nessa época a concepção relativamente inovadora dita do
“revisionistas”. No primeiro grupo se situariam os adeptos de “subdesenvolvimento satelitizado” — inaugurada por André
uma “etapa feudal” no desenvolvimento histórico da sociedade Gunder Frank e revista pelos teóricos da “dependência”, entre
brasileira. De uma certa maneira, eles seguiam nesse ponto as eles Ruy Mauro Marini — atacaram com razão o falso binômio
teses da historiografia tradicional sobre o período colonial. Pela “tradicional-moderno”: não há uma dualidade estrutural entre
conceptualização que eles fazem do “modo de produção” que os setores colonial-exportador e o industrial-capitalista, mas
teria precedido o capitalismo no Brasil, essa corrente inscreve uma só cadeia de exploração imperialista ligando entre elas
sem qualquer equívoco uma “etapa burguesa” no quadro da as atividades econômicas as mais diversas, desde o centro

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

dominante até a periferia dominada. A debilidade “orgânica” da Os anos 70 constituem, paradoxalmente, um período de,
burguesia “nacional” — interpretação que tinha o assentimento por um lado, brutal repressão contra a intelligentsia marxista dos
do sociólogo Fernando Henrique Cardoso — seria devida, cenáculos acadêmicos e contra seus êmulos guerrilheiristas nas
portanto, não tanto à natureza intrinsecamente perversa dessa ruas das grandes cidades brasileiras e, por outro, de disseminação
burguesia, mas ao caráter deformado, desigual e dependente do das ideias marxistas nas gerações mais jovens, a ponto da
desenvolvimento do capitalismo periférico, o que não impediu “concepção marxista da história” ter-se tornado propriamente
os mais afoitos de abandonar a hipótese da “revolução burguesa” dominante nos cursos secundários e nos ambientes universitários.
e de inscrever na agenda da história um projeto de “revolução Trata-se, na maior parte das vezes, de um marxismo de ocasião,
socialista” (como Wanderley Guilherme ou Theotônio dos baseado em algumas poucas ideias mal digeridas de leituras
Santos, por exemplo). apressadas de vulgatas elaboradas a partir de alguns textos de
Outros, colocando mais ênfase no caráter “específico” estilo stalinista de Marta Hannecker ou de cunho “estruturalistas,
dos modos de produção dominantes durante as fases colonial como em Louis Althusser. O tipo de crítica antimarxista dos
e nacional — identificados como sendo o “escravista” e o nouveaux philosophes ou aquela mais antiga de intelectuais
“dependente” —, dividiam-se também quanto ao papel social dissidentes do marxismo real quase não aportou na terra brasílica,
e político da classe burguesa vis-à-vis o poder do Estado e da povoada em grande medida de socialistas improvisados.
potência do imperialismo. A teoria da “dependência”, por exemplo Mas, ao lado desse triunfo do marxismo simplista,
— que deriva dos conceitos de centro e periferia já aplicados desde estudiosos de renome continuam a produzir uma teoria
os anos 40 por um economista inovador como Raul Prebisch —, social digna do nome, basicamente preocupada em encontrar,
constituía uma espécie de “funcional-estruturalismo” aplicado como seus predecessores liberais de princípios do século XX,
à velha teoria leninista e luxemburguiana do imperialismo: explicações consistentes para as raízes do atraso econômico e
ela buscava combinar a análise classicamente marxista com social do Brasil. Com exceção do próprio mestre Florestan, a
uma abordagem macronacional sobre a interação de sistemas Escola Paulista de Sociologia — Fernando Henrique Cardoso,
econômicos complementares e desiguais. Os conceitos de Octavio Ianni, Gabriel Cohn, Paul Singer, Francisco Weffort e
“burguesia” e de “Estado” ocupam um espaço preponderante muitos outros mais — não pode ser exatamente identificada
nessas análises — conduzidas, a partir da inspiração de Florestan, como um templo dedicado ao culto exclusivo do marxismo.
por jovens sociólogos como Cardoso, Ianni, Weffort, Cohn Em todo caso, esses intelectuais praticam outras vertentes da
—, mas o argumento da Revolução burguesa está longe de se doutrina, numa espécie de sincretismo modernizador que não
constituir em variável analítica independente como na obra ficaria nada a dever, em termos de pot-pourri litúrgico, à maior
do mestre da Escola Paulista de Sociologia: não se nega a parte das religiões brasileiras.
possibilidade de uma “hegemonia burguesa”, mas esta permanece A noção de “revolução burguesa”, elevada ao panteão
limitada pelas “ligações perigosas” mantidas pela elite industrial da ideologia marxista nessa época, continuava a se situar no
com a oligarquia e o imperialismo (se fala mesmo de uma centro das preocupações da maior parte dos estudiosos. Mas,
“internalização da dependência” na própria estrutura social). nem todos professam os instrumentos do culto. A recusa
desse modelo pode ser explícita, como no caso do marxista

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

Jacob Gorender, grande estudioso do “modo de produção Outros teóricos, utilizando muitas vezes o mesmo tipo
escravista”: para esse antigo ortodoxo do PCB reciclado no de conceptualização — capitalismo “tardio” ou “dependente”,
marxismo independente, a revolução burguesa, levando-se manutenção do poder oligárquico, “incapacidade política da
em conta algumas particularidades da formação econômica e burguesia” etc. — colocam a revolução burguesa no centro
social do capitalismo brasileiro, seria uma categoria analítica de seus esforços interpretativos. Evidentemente, a concepção
inaplicável à história do País.22 O afastamento pode ser também “nacional-burguesa” ou “capital-funcionalista” em vigor no final
tácito, como no caso do sociólogo e cientista político Luciano dos anos 50 — como a do já citado Guerreiro Ramos, para quem
Martins: ele preferiu passar diretamente à tese “barringtoniana” a “revolução industrial” então em curso seria uma espécie de
da “modernização conservadora” para explicar tanto a ausência equivalente histórico-funcional da revolução burguesa — tornou-
da hegemonia burguesa no Brasil como a circulação das elites se largamente desacreditada. Em contrapartida, as contribuições
no seio do Estado.23 Mais recentemente, alguns sociólogos de marxistas independentes como Florestan Fernandes e Octavio
preferiram voltar ao conceito de modo de produção para Ianni são muito mais consistentes nesse particular. Ambos
explicar alguns dos momentos decisivos da passagem ao “Estado autores de uma vasta produção sociológica sobre o Brasil
burguês” no Brasil. As analogias explícitas ou implícitas em contemporâneo e representantes legítimos da Escola Paulista
relação ao “modelo ideal” de revolução burguesa transparece de Sociologia, Fernandes e Ianni aceitam plenamente o conceito
no trabalho do principal defensor dessa vertente, Décio Saes: e o modelo da revolução burguesa em suas análises respectivas
para esse autor, são as classes populares (escravos e classe média sobre a formação social brasileira.
urbana) que, como no exemplo da grande revolução “burguesa” É sobretudo a obra do primeiro — ao lado dos já referidos
da França, sustentam, sem esperar a liderança dos setores Caio Prado e Werneck Sodré — que deve merecer uma atenção
dominantes, os processos de transformação do sistema político particular, tendo em vista que a contribuição de Ianni apresenta
e da ordem econômica no Brasil de 1888-1891, movimentos a curiosa tendência de conceber a revolução burguesa apenas do
que, tomados conjuntamente, conformariam uma Revolução ponto de vista do caráter do Estado e de sua organização efetiva
política antiescravista e burguesa.24 no Brasil. No seio do próprio “marxismo estabelecido” se poderia
certamente encontrar outros defensores teóricos dessa hipótese,
mas nenhuma contribuição séria emergiu a esse respeito. Assim,
22 A ruptura analítica nos textos de Jacob Gorender pode ser exemplificada, numa
com exceção de alguns exemplos pouco representativos —
primeira fase, pelo ensaio “The Brazilian Problem: a Communist View” in inclusive o próprio Gorender no período antecedendo o “golpe
Irving Louis Horowitz, Revolution in Brazil: Politics and Society in a Developing burguês” de 1964 —, o marxismo ortodoxo não conseguiu pensar
Nation. New York: E. P. Dutton, 1964, p. 328-41, que consagra a noção marxista
tradicional da necessidade de uma revolução burguesa no Brasil, ao passo que em
sistematicamente a problemática da revolução burguesa no
A Burguesia Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981, ele recusa peremptoriamente Brasil. O historiador Werneck Sodré permanece provavelmente
tal possibilidade. o mais forte defensor de uma visão classicamente marxista
23 Luciano Martins, Pouvoir et Développement Économique: formation et évolution sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira;
des structures politiques du Brésil. Paris: Anthropos, 1976.
24 Cf. Décio Saes, A Formação do Estado Burguês no Brasil: 1888-1891. Rio de Janeiro: considerando-se entretanto a precedência histórica de Caio
Paz e Terra, 1985. Prado Júnior na elaboração de uma interpretação legitimamente

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

marxista do desenvolvimento econômico e social do Brasil, Brasil Contemporâneo: Colônia e sobretudo História Econômica
ainda que “revisionista” e pouco complacente com a noção de do Brasil, constituem, de maneira permanente, uma referência
“revolução burguesa”, é por sua contribuição historiográfica e de básica da pesquisa subsequente nesse terreno
economia política que deve começar qualquer discussão sobre Evolução Política do Brasil (1933) apareceu em suas duas
a parábola do marxismo acadêmico em nosso País. primeiras edições com o subtítulo: “Ensaio de interpretação
materialista da história brasileira”. Apesar da brevidade do texto,
2.3. Caio Prado Júnior e o capitalismo incompleto no Brasil pela primeira vez, segundo Francisco Iglesias, “o marxismo
era inteligentemente aplicado na historiografia brasileira, pois
Caio Prado Júnior não poderia, a rigor, ser incluído na as tentativas anteriores eram débeis”.25 Formação do Brasil
categoria do marxismo acadêmico no Brasil, uma vez que sua Contemporâneo (1942), sobretudo, oferece um vasto panorama
produção intelectual se processa largamente à margem das da situação econômica do Brasil entre o final do século XVIII e
instituições de pesquisa e docência, tendo sua obra sido pensada princípios do XIX, com forte ênfase na organização interna da
mais para o público externo do que para os colegas de academia. economia colonial. Os capítulos estão organizados em torno de
A despeito do fato de que sua produção tenha sido elaborada três grandes temas: o “povoamento”, a “vida material” e a “vida
de maneira independente, fora dos cenáculos universitários, social” do Brasil pré-independente.
ela exerceu uma influência decisiva sobre mais de uma geração Refletindo sobre o “sentido da colonização”, Caio Prado dá a
de pesquisadores. Historiador resolutamente marxista, Caio chave para a compreensão das relações econômicas internacionais
Prado nunca foi, contudo, um simples copista do pensamento ulteriores dessa formação social que se constitui como Estado
ortodoxo, tendo precocemente condenado a importação de nacional na terceira década do século XIX: a ocupação do Brasil
modelos conceituais retirados de seu contexto europeu para deve ser vista, antes de mais nada, como um mero subcapítulo
serem aplicados mecanicamente à realidade brasileira. da “história do comércio europeu”. Se, de um lado, as formações
Opositor declarado da teoria do “feudalismo brasileiro”, sociais da zona temperada da América do Norte se constituem
Caio Prado propôs, muito tempo antes de outros historiadores, enquanto colônias de povoamento, isto é, um “escoadouro
uma interpretação essencialmente capitalista do regime colonial. para excessos demográficos da Europa que reconstituem no
Seria preciso notar, entretanto, que, mesmo de um ponto de vista novo mundo uma organização e uma sociedade à semelhança
estritamente marxista, o argumento não é isento de ambiguidades, do seu modelo e origem europeus”, nos trópicos “surgirá um
uma vez que o caráter “capitalista” do empreendimento colonial tipo de sociedade inteiramente original”, que apresentará “um
é afirmado mais em função de um “mercado mundial capitalista” acentuado caráter mercantil” e que, enquanto “vasta empresa
do que da organização social da produção, deixando, portanto, de comercial”, estará destinada a “explorar os recursos naturais
lado o aspecto propriamente produtivo do regime de plantação. de um território virgem em proveito do comércio europeu”.
Dentre os “clássicos” da historiografia econômica brasileira, Segundo a caracterização de Caio Prado, tantas vezes citada: “Se
Caio Prado Júnior apresenta-se, sem dúvida alguma, como o
mais citado dos “deterministas econômicos”, cujos trabalhos 25 Francisco Iglesias (org.), “Um historiador revolucionário”, Introdução ao livro
principais, em especial Evolução Política do Brasil, Formação do Caio Prado Jr, História. São Paulo: Ática, 1982.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade pelo método “materialista” de análise e pelas críticas formuladas
nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros à política econômica implementada em várias épocas pelas
gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em elites brasileiras. A condenação é recorrente nos trabalhos de
seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. Caio Prado: ele critica severamente a organização da produção
É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país exclusivamente para a exportação, a negligência do mercado
e sem atenção a considerações que não fossem o interesse interno, a subordinação em relação aos interesses do capital
daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia estrangeiro, a fragilidade da base industrial, em uma palavra, o
brasileiras”. Esse caráter inicial da colonização brasileira, segundo caráter incompleto do capitalismo brasileiro. Seu problema era,
Caio Prado, permanecerá como elemento básico do “sentido” pois, o de completar esse capitalismo, o que para ele significava
da evolução econômica do Brasil nas primeiras etapas de sua tratar do próprio cerne de desenvolvimento brasileiro.
história independente e mesmo até um relativamente recente, Marxista, mas não idealista —, membro consciente que
até praticamente as primeiras décadas do século XX. A análise era de uma classe dominante, a dos plantadores de café, ainda
histórica de Caio Prado tende a confirmar a permanência, no relevante na estrutura econômica e social do Brasil —, Caio
Brasil contemporâneo, dos “caracteres fundamentais da nossa Prado não luta simplesmente por um utópico modo de produção
estrutura econômica e social”, tal como determinados pelo socialista nas condições que eram as da sociedade brasileira de
passado colonial: “produção extensiva para mercados do exterior sua época: industrialização insuficiente, péssima infraestrutura,
e correlata falta de um largo mercado interno solidamente educação deficiente do povo, dependência financeira do exte-
alicerçado e organizado. Donde a subordinação da economia rior. Ele aspira, na verdade, pela realização de um capitalismo
brasileira a outras estranhas a ela; subordinação aliás que se industrial autônomo e acabado, voltado para o mercado interno
verifica também em outros setores”. e destinado a preparar o terreno para uma organização racional
No volume seguinte, História Econômica do Brasil (1945), da produção, da distribuição (inclusive no setor financeiro), do
Caio Prado aproveita muito, para o período colonial, do que já consumo e do comércio exterior; essa organização racional de-
tinha escrito no Formação do Brasil Contemporâneo. De 1808 veria ser, via de regra, orientada, senão controlada pelo Estado.
para a frente, o livro apresenta consistência e densidade analítica, No trabalho que preparou para disputar concurso para
mas a obra é mais interpretativa do que informativa, havendo a cátedra de Economia Política da Faculdade de Direito da
mesmo uma certa aversão às séries estatísticas e ao quantitativo. Universidade de São Paulo, Diretrizes para uma política econômica
Trata-se, como diz Iglesias, de uma história econômica feita do brasileira (1954), Caio Prado retoma vários temas de seus
ponto de vista de um historiador e não exatamente do de um livros anteriores. Continua a ver no Brasil um centro produtor
economista. de matérias-primas para o mercado externo e o capitalismo
O enfoque marxista, ou pelo menos de esquerda e como um sistema ainda em formação, mais aspiração do que
contestador, não é dado tanto pelos temas enfocados — que realidade. Ele denuncia o “liberalismo econômico” que dominou
são aqueles que os historiadores conservadores também tinham o Brasil até 1930 e critica o modelo de industrialização seguido
abordado: tratados desiguais de comércio, caráter monocultor depois, responsável segundo ele por “uma débil indústria leve
da agricultura, predominância da grande propriedade —, quanto que repousa de fato na indústria estrangeira”.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

Em trabalho teórico ulterior, Esboço dos Fundamentos de lutas democráticas no Brasil. Caio Prado nega à burguesia
da Teoria Econômica (1957), Caio Prado “aponta o entrave brasileira qualquer “papel revolucionário”, como pretendia a
ao desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, como o “visão etapista” defendida por ideólogos da esquerda ortodoxa
Brasil, pela dependência e subordinação em que se acham do (inclusive Jacob Gorender) nessa época.
sistema internacional do capitalismo trustificado”. A questão Imediatamente após a publicação desse livro, Caio Prado
da dominação econômica estrangeira, em particular a do foi, é preciso dizer, acerbamente atacado, e não apenas no
imperialismo financeiro e industrial (britânico no início, depois plano intelectual, pelos “teóricos” do Partido Comunista,
norte-americano) é quase uma obsessão na obra de Caio que procuraram demonstrar suas “falhas” históricas e suas
Prado, sobretudo num período em que se acelera o processo insuficiências “ideológicas”. Desgostoso com algumas críticas
de industrialização e a entrada do capital estrangeiro em vários — que julgou infundadas e até mesmo distorcidas —, ele
ramos do secundário. Nessa mesma época, tendo fundado e evitou polemizar com o Partido do qual tido sido militante
passando a dirigir a Revista Brasiliense (1955-1964), Caio Prado de base e representante eleito, tanto mais que o regime militar
publica uma série de artigos sobre a estrutura fundiária na começava a endurecer suas posições contra todos aqueles que
agricultura brasileira, mais tarde inseridos no livro A Questão pudessem representar uma liderança intelectual na luta contra
Agrária (1979). A defesa do caráter “capitalista da agricultura as orientações políticas do momento. O clima exacerbado
brasileira exercerá um grande impacto nos debates teórico- daqueles anos terminou por jogar Caio Prado nas masmorras
políticos dos anos 50 e 60, e os argumentos de Caio Prado da ditadura pretoriana que se abateu sobre o País a partir de
passam a se situar no centro da reflexão sobre a “questão agrária. 1969, decisão a que não é alheia a influência notável desse livro
Mas, sua grande contribuição ao debate sobre a natureza da sobre as orientações de uma parte da esquerda brasileira na sua
modernização capitalista no Brasil vem em meados dos anos 60, luta contra a “burguesia”, o “imperialismo” e seu sustentáculo
com uma crítica devastadora do pensamento marxista aplicado castrense nacional.
à realidade brasileira: A Revolução Brasileira (1966). O projeto Ainda que o debate sobre a natureza da “revolução
de uma “revolução capitalista” (na verdade, “democrática”), brasileira” não tenha hoje maior significado político, deve-se
conduzida por uma “burguesia nacional”, seria, segundo ele, reconhecer que a visão de Caio Prado, tanto quanto seus métodos
apenas um dos numerosos mitos elaborados por escribas de trabalho, renovaram profundamente a maneira de pensar a
mais interessados em programas políticos do que na realidade história da sociedade brasileira e levaram toda uma geração
histórica. Ele não deixa de alinhar-se, com o marxismo oficial, de jovens pesquisadores, quando não os militantes políticos, a
a uma concepção quase cominterniana do desenvolvimento do reconsiderar as linhas de pesquisa e de interpretação, bem como a
capitalismo no Brasil: apesar de estar em progresso constante, redefinir as estratégias de luta política. Todos os que participaram
o modo capitalista de produção teria sido sempre freado pela dos embates ideológicos e das atividades militantes nos anos
ação combinada da oligarquia e do imperialismo. Mas isso é 1940 a 70 têm em Caio Prado uma referência indispensável na
tudo, pois que ele aponta nesse livro as graves consequências análise e exposição dos problemas brasileiros. Algumas outras
para a ação da esquerda das teorias absolutamente irrealistas que obras propriamente “marxistas” de Caio Prado, Dialética do
estavam em voga no Partido Comunista durante todo o processo Conhecimento (1952) e Introdução à Lógica Dialética (1959),

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assim como seus livros de viagem aos países socialistas, URSS, mais extremadamente nacionalistas que participaram das
um novo mundo (1934) e O Mundo do Socialismo (1962), grandes lutas políticas dos anos 50 e 60 no Brasil, continuando
não apresentam, para o debate marxista no Brasil, nenhuma ainda hoje a defender teses vinculadas a um programa para
importância relevante e poderiam ser, tranquilamente, riscados um Brasil “soberano” e “independente” em relação ao capital
de uma bibliografia que visasse dar um conhecimento acurado estrangeiro.
de sua contribuição substantiva para a formação de uma teoria Sua produção começa ainda nos anos 30, com o ensaio
social brasileira. Caio Prado será sobretudo lembrado como Panorama do Segundo Império (1939), prossegue no período
um historiador econômico por excelência, aquele que de fato da guerra com ensaios sobre a literatura nacional, mas é com
introduziu o marxismo na historiografia nacional, procedendo Formação da Sociedade Brasileira (1944), que ele se lança num
de maneira não mimética em relação aos modelos estrangeiros, debate de maior perspectiva sobre a natureza do processo
mas colocando inteligência e criatividade em suas pesquisas e histórico e político no Brasil. Como capitão da ativa, ele
interpretações. colaborou regularmente na Revista Militar Brasileira e n’A Defesa
Nacional, ademais de diversos outros órgãos da imprensa diária
2.4. Werneck Sodré e a trajetória da revolução nacional e revistas especializadas. Seus trabalhos ulteriores, especialmente
democrática Introdução à Revolução Brasileira (1958), Formação Histórica
do Brasil e História da Burguesia Brasileira (todos com várias
O historiador e ensaísta Nelson Werneck Sodré, de edições sucessivas nos anos 50 e 60) confirmam um visão
formação militar e autor de uma vasta produção historiográfica, classicamente marxista sobre o desenvolvimento histórico da
político-econômica, memorialística e de crítica literária, é sociedade brasileira. Já em 1954, Guerreiro Ramos dizia que
provavelmente o mais típico representante da interpretação Sodré, ao expor o desenvolvimento das classes no Brasil, se
marxista ortodoxa sobre a “revolução brasileira”. Apesar de que deixa impressionar um pouco pelo esquema ou modelo de
Werneck Sodré não deva ser considerado como um porta-voz desenvolvimento capitalista europeu.
do marxismo oficial, nem simplesmente como um “intelectual Durante os dez ou quinze anos que se seguiram, Sodré foi
orgânico do partido do proletariado”, ele seria, dentre os extremamente prolífico em termos de livros de interpretação
pensadores de esquerda, aquele que mais se aproximaria do da história, da economia e da sociedade brasileiras, resultado
modelo doutrinário oficial. Trabalhando igualmente fora do de suas conferências e aulas ministradas durante o clima
ambiente acadêmico — ele, na verdade, enquanto militar, foi político efervescente que sucedeu ao suicídio de Getúlio Vargas
instrutor na Escola de Comando e Estado Maior do Exército e e prosseguiu durante os primeiros anos do regime militar
depois na Escola Superior de Guerra, instituições “universitárias” inaugurado em 1964. Passando à reserva no contexto do golpe
militares, ademais de conferencista no Clube Militar e, mais militar, Sodré aumentou ainda mais sua participação no processo
tarde, no famoso ISEB —, Sodré exerceu, entretanto, uma de lutas políticas no contexto da oposição entre “nacionalistas” e
influência não desprezível na bibliografia destinada ao público “entreguistas”. Seus muitos livros dessa época — História Militar
universitário. De modo geral, ele se identifica com as correntes do Brasil, A História da Imprensa, A Ideologia do Colonialismo

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e a série que ele dirigiu com alguns “revisionistas” da história permanece ainda submetida à classe oligárquica da qual tinha
tradicional, História Nova do Brasil — marcaram o debate emergido.26
público dentro e fora das Forças Armadas e em particular no O aspecto determinante da transição brasileira para
Exército brasileiro. o capitalismo é, non variatur, um processo de “acumulação
A contribuição propriamente historiográfica de Nelson primitiva” de capital; mas, diferentemente da transformação
Werneck Sodré para o conhecimento do passado colonial e decisiva observada nos primeiros focos do capitalismo, no Brasil
independente foi questionada por alguns especialistas, na esse fenômeno de acumulação original se produziria ainda hoje.
medida em que ele foi mais um sistematizador de leituras, um A revolução burguesa, segundo essa perspectiva, é não apenas
“didático nacionalista” digamos assim, do que um produtor uma necessidade histórica, mas ela se confunde também com a
original de pesquisas, mesmo no terreno do marxismo. As própria modernização capitalista. Entretanto, desenvolvendo-se
“vantagens comparativas” de Sodré estariam, assim, mais na durante a fase imperialista do capitalismo, ela tem de enfrentar
interpretação política dos processos e eventos considerados, ademais do “latifúndio”, a dominação econômica externa. Apesar
segundo uma visão de cunho classicamente marxista, do disso, depois de uma etapa decisiva em 1930 — data na qual se
que na elaboração original do conhecimento histórico. Mas, teria assistido a uma revolução política “objetivamente burguesa”
deve-se reconhecer que ele leu todos os livros relevantes relativos —, o processo da “revolução brasileira” se desenvolveria ainda
ao passado brasileiro, como o atesta seu ainda hoje utilíssimo sob nossos olhos.
O que se deve ler para conhecer o Brasil. Para a interpretação marxista tradicional, representada
Segundo Nelson Werneck Sodré, o Brasil colonial teria pela obra desse “Albert Soboul brasileiro”, a Revolução de 1930
conhecido, fora das grandes plantações escravistas-mercantis, representa tão simplesmente um “golpe da burguesia”, mas talvez
formas “feudais” de produção e de organização social. Ao essa visão defendida por Werneck Sodré não seja mais típica
ingressar na era independente, sua economia continuou, porém, das novas abordagens da corrente marxista na historiografia.
dependente. Ele acredita mesmo que o grau de integração da Na verdade, as teses simplistas sobre esse movimento não tinham
economia dependente na economia mundial, comandada pelo mais curso, mesmo no período em que Sodré produzia seus
capitalismo ascensional, é muito maior do que o da economia trabalhos a respeito — História da Burguesia, por exemplo —, e a
colonial. Mais tarde, com a abolição do trabalho escravo,
em 1888, se teria produzido, nas regiões onde a forma de 26 Num texto ulterior, Sodré é bastante explícito quanto ao que ele considera, ou
produção sob regime de grandes plantações era dominante, não, revolução burguesa em determinados movimentos históricos: “A ausência
uma espécie de “regressão feudal” (o que, de acordo com a de passado feudal permitiu aos Estados Unidos operar, no mesmo movimento,
a autonomia política e a revolução burguesa, fugindo ao modelo clássico. (…)
sucessão clássica dos modos de produção, significaria um No Brasil, a autonomia, herdando escravismo e feudalismo, não tem traço algum
progresso econômico em direção de formas superiores de de revolução burguesa. No fim do século XIX, a república assinala um avanço
organização social da produção. Ainda durante essa fase de burguês na vertente mais conservadora. O movimento de 1930, condicionado
transição econômica e política (fim da escravidão em 1888 e pela crise de 1929, assinala, depois, a ação violenta para acelerar e aprofundar a
revolução burguesa, mantendo o latifúndio e conciliando com o imperialismo.”
queda da monarquia no ano seguinte), aparece um “embrião” Cf. Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. 2ª ed.; Rio de Janeiro: Graphia,
de dominação política da burguesia, apesar de que essa classe 1997, pp. 87-88.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

tendência era a de afirmar o caráter objetivamente revolucionário, efetiva de sua realização histórica sempre esteve, em sua visão,
mas socialmente difuso, do movimento em causa. na dependência da espoliação estrangeira. O surto industrial
Com efeito, outras tendências e escolas da “nova vinculado às relações capitalistas teria sido limitado e ilhado pela
historiografia” e da teoria social brasileira — Boris Fausto, estreiteza do mercado interno e pela supremacia das relações
por exemplo — estavam de acordo em minimizar o caráter pré-capitalistas, numa descrição que não deixa nada a desejar
“burguês” da Revolução de 1930, ainda que preservando sua ao Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia de Lênin. São
significação simbólica na emergência de uma era inédita para comuns, também, frases que indicam que cada etapa política ou
a sociedade brasileira. Com efeito, se a mudança do regime econômica contém em germe a etapa seguinte: “começam a surgir
de poder não é excessivamente radical, o sistema político em contradições antes desconhecidas, enquanto velhas contradições
contrapartida se modifica amplamente, já que a oligarquia não se aprofundam; no desenvolvimento dessas contradições, a
consegue mais distribuir sozinha as cartas do jogo. O Estado, estrutura econômica vai sendo moldada, como que a golpes de
apesar da sustentação inicial à economia cafeeira, começa apesar martelo”. A terminologia é basicamente cominterniana: a relação
de lentamente o apoio à modernização do sistema produtivo causal entre acumulação e industrialização é, evidentemente,
nacional; deixando de se apoiar essencialmente no setor rural, “dialética”; a Revolução de 1930 permitiu fazer avançar a
a industrialização recebe dele seu impulso decisivo. “revolução burguesa”, isto é, as relações capitalistas de produção;
O que é típico na análise de Werneck Sodré é uma espécie a industrialização do pós-guerra se dá porque o imperialismo
de aproximação mecânica entre as principais características aceita, finalmente, a industrialização nos países dependentes,
desses momentos de crise e de transição política, de conjuntura já que o capitalismo mundial entrou na fase de “crise geral”;
histórica de transformação — movimento da independência, o movimento de 1964 é uma revolução burguesa singular, pois
abolição da escravidão, Revolução de 1930 — e aqueles ele pretende excluir o proletariado de seus benefícios.
processos conhecidos e fartamente repetidos na sociologia As analogias e correlações entre processos políticos e
marxista: contradições entre as forças produtivas de dois econômicos são fartamente utilizados: assim, a terceira fase
sistemas econômicos diferentes e sucessivos, entre as classes do desenvolvimento industrial brasileiro, entre 1945 e 1954,
sociais respectivas que representam esses sistemas, entre as começou e terminou por golpes de Estado. A morte de Vargas
forças nacionais e os interesses estrangeiros etc. As classes, não não teria apenas encerrado uma fase da política brasileira,
personalidades políticas individuais, encarnam racionalmente dominada pela sua figura, como expressão do avanço das
esses processos e comandam as diferentes fases de mudança. relações capitalistas no país; encerrou também um período do
Como ele afirma na Formação Histórica do Brasil a propósito desenvolvimento econômico, num momento em que a economia
da transição para a independência, conforme a classe que mundial atingia a fase do “capitalismo monopolista de Estado”,
comandar o processo, ele terá determinado conteúdo, e o alcance este exigindo alterações essenciais na exploração dos países de
e profundidade desse processo fica na dependência da classe economia dependente, em busca do lucro máximo e do maior
que o comandar ou da composição de forças que o efetivar. aperto nos velhos processos de exploração. Tudo anuncia o
Na História da Burguesia Brasileira, a preocupação com o golpe de 1964: a busca empírica de um novo modelo passaria
conceito de acumulação primitiva é evidente, mas a possibilidade por uma fase preparatória, quando se gerariam as condições

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

para que o imperialismo lançasse as bases de seu domínio. 2.5. Florestan Fernandes e a revolução burguesa na periferia
Nenhum manual de sociologia stalinista, tomado in abstracto,
conseguiria reproduzir tão bem esse caráter “inevitável” do Florestan Fernandes é, sem dúvida alguma, o representante
processo histórico quanto as análises do caso “concreto” brasileiro principal do que se poderia chamar, a falta de melhor desig-
por Werneck Sodré. nação, de “teoria social brasileira” e sua obra mais importante
A revolução nacional brasileira, nessa perspectiva, significa — A Revolução Burguesa no Brasil — constitui o esforço mais
a superação do subdesenvolvimento pela autonomia das decisões, acabado empreendido na academia brasileira para elaborar uma
poder dispor de seus próprios recursos e, principalmente, destruir teoria regional do desenvolvimento capitalista na periferia da
os laços coloniais e os laços de dependência para estruturar “economia-mundo” capitalista.
uma economia capaz de proporcionar melhores condições de Egresso de uma das primeiras turmas de Ciências Sociais
vida para o povo. O “modelo brasileiro de desenvolvimento” da USP, onde recebeu aulas de mestres franceses — dos quais
gerado pelo regime de 1964, contrariamente a esse programa tornou-se assistente —, Florestan realizou pesquisas sobre o
passavelmente vago de independência nacional, produziu novos folclore em São Paulo e terminou, em 1947, seu mestrado pela
laços de dependência, transferiu para o exterior os centros de Escola de Sociologia e Política, com uma tese sobre a organização
decisão e submeteu o País às exigências dos interesses externos. social dos tupinambá. Sua tese de doutoramento, já pela USP
Para chegar a esse modelo, os interesses externos realizaram um em princípios dos anos 50, representou uma continuidade desse
processo político cirúrgico que foi a eliminação da democracia, trabalho, tendo examinado a função social da guerra entre
reforçando-se a dependência do País em relação ao “capitalismo os tupinambá. Sua aproximação ao marxismo, ainda durante
monopolista de Estado”. os anos de estudos universitários, bem como às correntes de
A Revolução Brasileira, segundo Nelson Werneck Sodré, pensamento socialista se deu basicamente em função de sua
coloca o problema nacional e o problema democrático como própria condição social de “oprimido”, tendo sido aperfeiçoada
fundamentais. Nisso ele não se distingue em absoluto da con- em leituras, em traduções de Marx — Contribuição à Crítica da
cepção marxista tradicional, defendida pelo Partido Comunista Economia Política , por exemplo — e em contatos frequentes
como programa de desenvolvimento para o Brasil, a mesma com grupos de socialistas e trotsquistas dos meios jornalísticos
concepção que estava sendo, no mesmo momento, desmante- e intelectuais.
lada por Caio Prado Júnior. No centro desse processo, estava Mas, nessa primeira fase de sua vida acadêmica, em
a possibilidade de que uma revolução burguesa autêntica, ao que atuou como professor assistente de Fernando Azevedo e
estilo da grande revolução francesa, pudesse vir a instaurar o depois de Roger Bastide, e como responsável pela cadeira de
capitalismo nacional e a democracia política reclamados pelos Sociologia-I na USP, Florestan seguiu o ecletismo típico de seus
ideólogos do proletariado. Desvendar, ou desmistificar, essa mestres franceses: uma pitada de cada teórico acadêmico —
possibilidade seria a tarefa mais importante na carreira do maior com destaque para Durkheim, Weber e Marx — e um diálogo
marxista da academia brasileira, o mestre da Escola Paulista de constante com os grandes mestres contemporâneos: Mannheim,
Sociologia, Florestan Fernandes. Freyer, Sombart, Tönnies, Linton e vários outros expoentes das
escolas europeias e norte-americanas. Uma pesquisa sobre as

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

relações raciais em São Paulo formou a base de seus grandes o processo histórico de (trans)formação da sociedade brasileira,
trabalhos sobre o problema da integração do negro na sociedade buscando em nosso passado dependente, escravocrata e periférico
de classes. Desde cedo, contudo, ele também é levado a pensar — ou seja de capitalismo incompleto e tardio e subordinado ao
os problemas do subdesenvolvimento e da dependência, que era imperialismo e de insuficiente “mutação burguesa” das estruturas
por ele chamado de heteronomia, conceito derivado de Marx e de dominação política — as razões e as raízes das deformações
Weber. Estava tendo início ali um pensamento original dentro do do período contemporâneo, marcadas pela ditadura militar —
que se poderia chamar de Sociologia Brasileira ou, de forma mais uma “autocracia burguesa” no entendimento de Florestan — e
ampla, de Sociologia Latino-Americana, bastante conectada às por um desenvolvimento econômico desigual, retardatário e
contribuições econômicas “periféricas” e “desenvolvimentistas” caudatário dos principais centros da economia mundial.
de Raúl Prebisch e Aníbal Pinto — da chamada escola cepaliana Florestan Fernandes pretendia, com seu monumental
— e aos aportes propriamente sociológicos de José Medina “ensaio de interpretação sociológica”, resumir as principais
Echavarria e de Rodolfo Stavenhagen. linhas da evolução do capitalismo e da sociedade de classes no
A análise interpretativa dos problemas raciais e das relações Brasil. Mas, ao colocar no centro de sua interpretação o conceito
de classe no Brasil conduz Florestan ao estudo da formação específico de “revolução burguesa”, a summa sociologica de
econômica e social e às especificidades da “transformação Florestan não deixa de apresentar algumas especificidades em
burguesa” no País, base ulterior de seu grande trabalho sobre relação a uma pretendida “filiação” marxista, tanto de forma
a “revolução burguesa” no Brasil. Com efeito, detentor isolado como de substância. Algumas características propriamente
do copyright do conceito de revolução burguesa na produção “heterodoxas” dessa grande obra são de natureza estilística: uma
sociológica brasileira, o grande intérprete da mudança social em redação que se estendeu durante cerca de uma década (1966-
nosso País não encontrou, até agora, muitos seguidores nesse 1974) justifica provavelmente insuficiências como a ausência de
campo minado da reflexão histórico-social. O único discípulo unidade global e de uniformidade no texto, o caráter descosido
a adotar o conceito e a problemática da revolução burguesa na ou fragmentado de alguns capítulos e mesmo mudanças
análise do desenvolvimento histórico brasileiro, Octavio Ianni, propriamente conceituais no desenvolvimento do discurso,
vincula, na verdade, essa noção ao estudo das formas assumidas como a substituição da abordagem classicamente weberiana e
pelo Estado, mas no trabalho de Ianni o conceito designa, na durkheiminiana da primeira parte pelo enfoque mais claramente
verdade, o seu contrário, isto é, a “contrarrevolução burguesa”, “leninista” dos capítulos finais. A adesão de Florestan ao que
o que é, pelo menos, um contrassenso heurístico. ele mesmo chama de “sociologia engajada e radical” faz com
O opus magnum de Florestan, A Revolução Burguesa que sua análise da “revolução burguesa” no Brasil acuse, em
no Brasil (1975), integra, mediante instrumentos conceituais diversas passagens, o dilema entre a objetividade científica e a
recolhidos nas melhores fontes da sociologia — sobretudo em opção política.
Marx, em Durkheim e em Weber —, o essencial da produção Essa obra constitui, fundamentalmente, uma forma
historiográfica, sociológica e política relativa aos diferentes peculiar de utilização da teoria marxista na reconstrução de
aspectos do processo de modernização econômica e social do processos históricos sempre únicos e originais, no caso, a
Brasil. Trata-se, nada mais nada menos, do que interpretar todo transição brasileira para a modernidade social capitalista, que

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

é vista, por Florestan, segundo a ótica da revolução burguesa. política — e a revolução burguesa “periférica” — resultando no
Sua interpretação desse processo permanece, ainda hoje, um capitalismo dependente, na dominação externa e na autocracia
marco do pensamento sociológico brasileiro, sendo apresentada, burguesa —, mas, ele não diz porque o segundo processo deve
nos muitos escritos de seus epígonos acadêmicos, como um ser inserido na mesma família conceitual do primeiro.
prova mesma da vitalidade do marxismo aplicado à realidade A revolução burguesa de Florestan Fernandes apresenta-se,
social do Brasil. Entretanto, nessa obra máxima de Florestan, assim, como um paradigma na fronteira externa do capitalismo
o conceito de revolução burguesa não é qualificado de maneira mundial. Procurando estabelecer que o espécime brasileiro
estrita, nem possui um estatuto teórico muito preciso: passa-se pertence mesmo à família sociológica das revoluções burguesas,
de uma definição socioeconômica a uma outra essencialmente Florestan identifica o conteúdo essencial desses fenômenos
política desse fenômeno, sem que se possa aferir a parte da “longa históricos a um processo de “absorção de um padrão estrutural e
duração” e a da “conjuntura histórica de transformação” — para dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura”,
empregar os termos braudeliano e labroussiano bem conhecidos que seria o da civilização capitalista moderna. O paradigma
— na atualização brasileira desse conceito. Para Florestan, a da revolução burguesa se justificaria pelo fato que, no Brasil
revolução burguesa, definida de maneira genérica, constitui também se assistiu “à universalização do trabalho assalariado
“um fenômeno estrutural, que pode se reproduzir de modos e a expansão da ordem social competitiva”, isto é, ocorreu um
relativamente variáveis dadas certas condições ou circunstâncias, simples processo de modernização capitalista.
desde que certa sociedade nacional possa absorver o padrão de Florestan reconhece formalmente que o processo de mo-
civilização que a converte numa necessidade histórico-social”. dernização das estruturas sociais, políticas e econômicas das
Em outros termos, o argumento de Florestan sobre a formações capitalistas não tem um único modelo estabelecido.
atualização histórica da “revolução burguesa” no Brasil assume Seria vão, portanto, diz o mestre, pretender no Brasil “uma réplica
primeiramente uma qualificação positiva (a da “emergência e ao desenvolvimento capitalista característico das Nações tidas
consolidação do capitalismo”) para transformar-se, no final, em como centrais e hegemônicas”. O desenvolvimento capitalista no
seu contrário (a “crise do poder burguês”). O equivalente histórico, Brasil, a despeito das limitações internas e externas impostas ao
no Brasil, da conjuratio burguesa seria dado pela agregação processo, conseguiu, ainda assim, segundo Florestan, provocar
ideológica operada no movimento abolicionista. Florestan uma “revolução econômica autêntica”. Entretanto, devido pre-
não adota o método comparativo, senão indiretamente, mas cisamente à preservação da “dupla articulação” — latifúndio e
parece consciente dos dilemas e dos limites que o comparatismo imperialismo —, não existe “espaço histórico para a repetição
coloca ao pesquisador. Ele critica, por exemplo, os que negam das evoluções do capitalismo na Inglaterra, na França e nos
a existência de uma “Revolução Burguesa” no Brasil, “como Estados Unidos, ou na Alemanha e no Japão”. Ainda assim,
se admiti-la implicasse pensar a história brasileira segundo segundo o mestre paulista, “um desenvolvimento capitalista
esquemas repetitivos da história de outros povos, em particular da articulado não produz uma transformação capitalista de natureza
Europa moderna. O sociólogo paulista estabelece, por exemplo, diferente da que se pode observar nas sociedades capitalistas
uma distinção entre o modelo “clássico” de revolução burguesa — autônomas e hegemônicas. O que varia é a intensidade e os
que teria conduzido ao capitalismo independente e à democracia ritmos do processo”. Florestan reconhece, em primeiro lugar,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro

que a “economia competitiva [da periferia] tende a redefinir e central — isto é, economia mercantil, competitiva, mais valia,
a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o etc. — sem as quais ela “não seria capitalista”. A uniformização
desenvolvimento capitalista autônomo e autossustentado”, mas dos princípios de modernização não exclui, entretanto, a exis-
é para concluir imediatamente após: “Todavia, o desenvolvi- tência de “diferenças fundamentais” que decorrem do processo
mento capitalista logrado traz consigo, como nas sociedades pelo qual esse desenvolvimento capitalista torna-se “dependente,
centrais e hegemônicas, as mesmas tendências de organização subdesenvolvido e imperializado”.
e de evolução da economia, da sociedade e do Estado”. Florestan reconhece a existência dessas “diferenças fun-
Florestan jamais pretende a repetição, no Brasil, do que damentais”, típicas do capitalismo periférico, mas insiste em
ele chama de “modelo democrático burguês de transformação combinar os processos de transformação capitalista, de um lado,
capitalista”, chegando mesmo a negar a existência de “determi- e de dominação burguesa, de outro, como se ambos devessem
nantes universais” nesse processo. Ele reconhece, no entanto, permanecer estrutural e necessariamente ligados nas diversas
estar à procura das “conexões específicas da dominação bur- atualizações históricas concretas da modernização capitalista.
guesa com a transformação capitalista”, nos casos onde a “dupla A tese de Florestan sobre o “modelo autocrático-burguês de
articulação” foi preservada. Ele propõe o conceito de “modelo transformação capitalista” visa transcender o paradigma histó-
autocrático-burguês de transformação capitalista”, que seria rico consagrado sobre a revolução burguesa, representando ao
típico das formações dependentes do capitalismo periférico. mesmo tempo uma tentativa teórica de explicar os impasses e
Mais que um conceito, trata-se de verdadeira tese sociológica, limitações praticas da modernização capitalista na periferia do
e que se constitui no elemento crucial do modelo interpretativo sistema. O núcleo da explicação sociológica estaria no “caráter
construído por Florestan para explicar a modalidade específica retardatário das Revoluções Burguesas na periferia dependente
de modernização capitalista no Brasil. e subdesenvolvida do mundo capitalista”. No caso brasileiro,
A tese de Florestan possui, implicitamente, duas premissas: por exemplo, a “contrarrevolução burguesa” de 1964 e o sistema
primo, que a transformação capitalista apresente, em todos os “autocrático” que se instala ulteriormente seriam o produto
lugares, um caráter burguês; secundo, que a dominação burguesa inevitável da modernização tardia.
é inevitável, independentemente das formas políticas especí-
ficas de seu exercício. A implicação mais importante dessas 2.6. Os intelectuais marxistas e a revolução burguesa
duas proposições não estritamente formalizadas é, entretanto, no Brasil
a de que este modelo de transformação capitalista, apesar de
“autocrático”, se inscreve igualmente no quadro conceitual da Vinculados, de uma forma ou de outra, aos combates
revolução burguesa. políticos e sociais de suas respectivas épocas históricas e atuando
Florestan destaca a importância primordial da transfor- em contextos políticos específicos, os intelectuais marxistas
mação capitalista como fator essencial da mudança histórica analisados neste trabalho pensaram a questão da democracia,
nas formações periféricas ocidentais: o crescimento capitalista da revolução burguesa e do desenvolvimento social no Brasil.
é real, apesar de dependente. O que a periferia reproduz são as Essa reflexão foi conduzida segundo um pensamento marxista
“características estruturais e dinâmicas essenciais” do capitalismo inovador e propunha, de modo geral, uma inversão radical

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do tipo de capitalismo seguido até então — considerado talvez contra sua própria vontade — a burguesia nacional para
submisso aos interesses da oligarquia agrária e dependente do um tipo de capitalismo independente e um regime político
imperialismo — e, de forma coerente com a primeira premissa, democrático plenamente participativo.
uma incorporação das camadas subalternas ao processo político Uma particularidade desse tipo de raciocínio — derivada
democrático. Todos eles viam no socialismo um objetivo talvez da virtual tendência marxista em identificar uma determi-
razoável de organização social da produção e um princípio nada classe social com um “devir” histórico específico — pode
legítimo de estruturação do sistema político, ainda que eles ser apontada na conexão de tipo estrutural que se faz entre
reconhecessem a necessidade de uma lenta acumulação de sistemas econômicos e regimes políticos, como se se tratasse
forças — consubstanciada na ideia de revolução burguesa — de um modelo de tipo hegeliano, no qual uma determinada
antes de que se pudesse pensar em passar à “etapa superior” de categoria social encarna o “espírito” de cada época histórica.
modelização da sociedade. Eles foram extremamente influentes Os intelectuais marxistas brasileiros, atribuindo, com Marx, ao
nos círculos intelectuais, no pensamento acadêmico de modo capitalismo, uma força social transformadora superior às suas
geral e no próprio debate público de ideias no Brasil, desde os possibilidades históricas efetivas, frustraram-se amplamente ao
anos 30 até praticamente nossos dias. constatar as debilidades materiais, políticas, sociais e ideológi-
Caio Prado Jr. foi um pioneiro nesse tipo de reflexão cas de uma classe — a burguesia — que, supostamente, deveria
radical sobre os destinos econômicos do País e seu regime encarnar as principais virtudes e ideais do modo de produção
político, vistos como um sistema industrial em formação e “revolucionário”, de toda forma superior ao sistema monocultor
uma democracia possível, mas devendo antes se libertar das agrarista conhecido até então.
amarras do imperialismo e do latifúndio. Nelson Werneck Qualquer que seja o destino futuro do marxismo aca-
Sodré atuou sobretudo nas hostes nacionalistas — militares e dêmico no Brasil, sua trajetória faz parte da própria história
civis — buscando conformar uma agregação política de forças intelectual no País, tendo ela sido profundamente marcada
sociais suficiente para romper aqueles mesmos obstáculos pelas contribuições que ofereceram, em seus respectivos cam-
identificados por Caio Prado em seus escritos históricos e pos de atuação, pensadores como Caio Prado, Werneck Sodré
econômicos. Florestan Fernandes, o mais acadêmico dos e Florestan Fernandes. Eles foram paradigmáticos de uma certa
três, foi um verdadeiro maître-à-penser do desenvolvimento época e plenamente representativos de um determinado debate
brasileiro, um tribuno de seus ideais socialistas e um dos de ideias, assim como foram, para suas respectivas gerações,
maiores sistematizadores da teoria social moderna. Todos eles “lideranças carismáticas” na descoberta de “campos virgens”
identificaram na chamada “burguesia nacional” — com os de exploração teórica, na condução de pesquisas empíricas, na
qualificativos políticos que cada um lhe atribuiu — uma força orientação de leituras, na identificação de caminhos explicativos,
social importante, embora relativamente pusilânime em face dos na organização científica dos conceitos e outros instrumentos
desígnios, combinados ou não, do latifúndio e do imperialismo, analíticos, na apresentação de “contribuições relevantes”, assim
mas, ainda assim, necessária e central à tarefa de transformação como na própria mobilização política para o “bom combate”.
econômica e social da Nação. Suas respectivas contribuições A eles muito deve o vigor da teoria social brasileira nos últimos
intelectuais foram orientadas, de certa forma, a “empurrar” — sessenta anos e sobre sua obra deve repousar, em parte, o esfor-

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ço de reconstrução de uma teoria histórico-social adaptada ao ———. “Nova Contribuição para a Análise da Questão Agrária no
estágio atual de transformação da sociedade nacional. Brasil” Revista Brasiliense. São Paulo: n° 43, 1962, p. 11-52.
———. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
———. A Questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Orientações de leitura: Ricupero, Bernardo. “A aventura brasileira do marxista Caio Prado Jr.”,
Revista de Sociologia e Política. Curitiba, UFPR: n. 8, 1997, pp. 55-71.
A lista de obras compiladas a seguir não pretende compor uma
relação bibliográfica exaustiva da produção de cada um dos Nelson Werneck Sodré:
autores enfocados neste trabalho, mas destacar tão somente
Sodré, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. São Paulo:
o que de mais importante cada um deles produziu no decurso
Nacional, 1939.
de uma fecunda vida intelectual e política que se estendeu
durante as últimas cinco ou seis décadas de transformações ———. Orientações do Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1942.
econômicas, sociais e políticas no Brasil, processo que foi
também um “combate intelectual” do qual eles participaram ———. Formação da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: José
como “espectadores engajados” e como militantes da pluma. Olympio, 1944.
Ela é acompanhada de uma relação de livros e artigos de ———. Introdução à Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: José
caráter geral sobre o marxismo e o desenvolvimento brasileiro Olympio, 1958; 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
e latino-americano. ———. Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro. Rio de Janeiro:
ISEB, 1960.
Caio Prado Júnior: ———. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1962;
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Novais, Fernando A. “Caio Prado Jr. na historiografia brasileira”,
———. História Nova do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1964; com
in Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (orgs.),
outros autores.
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———. “Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil”, ———. Memórias de um Soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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96 97
Agonia e queda do socialismo real

Capítulo 3

Agonia e queda
do socialismo real

99
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

3.1. O exterminador de futuros

A
s mudanças sociais, políticas e econômicas no cenário
internacional do final do século XX foram tão rápidas e
relevantes que as análises prospectivas que foram feitas sobre
o seu desenvolvimento a partir dali não conseguiam separar
de forma adequada meras mudanças conjunturais, de impacto
imediato no quadro geopolítico, de tendências estruturais,
de maior densidade sistêmica, que poderiam influenciar ou
moldar componentes mais permanentes das novas realidades
em fase de conformação. O processo histórico sempre foi, por
sinal, um verdadeiro “exterminador” de futuros, eliminando
sucessivamente cenários plausíveis até pouco tempo antes,
substituindo-os por novas configurações igualmente perecíveis
no curso dos meses e anos seguintes. A marcha da história no
início do século XXI tornou caducas apreciações que possam
ter sido feitas sobre o futuro da ordem internacional depois da
derrocada final do “socialismo real” nas últimas duas décadas
do século XX.27
O cemitério do futuro, aliás, nunca deixou de estar repleto
de previsões não realizadas, desde o anúncio de grandes desastres
naturais iminentes ou das quebras nas principais bolsas de valores
até as estimativas lidando com preços do petróleo, desemprego
tecnológico ou ciclos de crescimento e de estagnação — de longo

27 O conceito de “socialismo real”, das Real existierenden Sozialismus, englobava,


em sua acepção propriamente econômica, o “modo de produção” inaugurado em
1917 pela experiência soviética e, em sua feição histórica e sociológica, os sistemas
políticos autoritários em vigor na “pátria do socialismo” e nas “democracias
populares” do Leste europeu no segundo pós-guerra, tendo vindo a termo a
partir da derrubada do muro de Berlim e implosão subsequente da antiga União
Soviética.

100 101
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

ou de curto prazo — nas economias nacionais, para não falar conseguiu desmentir, ao longo de sua curta história, os defensores
de especulações catastróficas envolvendo cenários nucleares de sua inevitável realização histórica. O capitalismo, ao contrário,
ou conflitos bélicos regionais. Geralmente, essas previsões cujo charme discreto nunca conseguiu seduzir muitos intelectuais
reproduzem, em maior ou menor medida, preocupações progressistas, resistiu galhardamente a todas as crônicas
eminentemente conjunturais e tampouco deixam de refletir a de sua morte anunciada. Isso se deve, provavelmente, ao
escala subjetiva de valores e opiniões de seus autores. fato de grande parte dos acadêmicos, em geral sociólogos e
A ideia e a prática do socialismo não escaparam a essa historiadores fizeram do capitalismo uma espécie de superlativo
mania de configurar o futuro a partir das injunções do momento. conceitual, influenciados, mesmo de forma inconsciente, pela
Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Nikita robustez analítica do seu suposto coveiro, Marx em pessoal,
Kruschev antecipava que a União Soviética ultrapassaria a deixando de considerar as múltiplas variedades dos capitalismos
produção per capita dos Estados Unidos por volta de 1970 e “realmente existentes”, todos eles variações nacionais ou locais
conseguiria construir uma “sociedade comunista acabada” perto de sistemas igualmente diversificados de economias de mercado,
de 1980. Naquela mesma época, abundavam as teses sobre a na prática bastante diferentes entre si, uma vez que derivadas de
convergência dos sistemas econômicos, das quais o mais insigne processos únicos e originais, conduzidos ao longo dos séculos de
representante foi o economista John Kenneth Galbraith, autor maneira impessoal e totalmente não controlados por quaisquer
de uma obra sobre a convergência das “sociedades afluentes”. forças humanas ou sociais. O socialismo, ele sim, derivou de
Nenhuma das previsões desse tipo foi jamais confirmada na concepções artificialmente formuladas por um cérebro genial,
prática. Recorde-se também o anúncio prematuro do “fim das mas naturalmente limitado aos conhecimentos disponíveis
ideologias” feito em meados dos anos 1950 por Daniel Bell, que em sua época, num tipo peculiar de economia em rápida e
pode ser legitimamente considerado como o pai espiritual da contraditória mutação para a modernidade industrial.
tese sobre o “fim da História”, enunciada três décadas depois Em termos propriamente históricos, a ideia do socialismo,
por Francis Fukuyama. Registre-se, em benefício de Fukuyama, considerado por seus epígonos como o “sucessor natural” do
que ele não defendeu exatamente uma “tese”, e sim aventou capitalismo, cobre um período de tempo relativamente maior
uma hipótese, tanto que o título de seu famoso artigo trazia que o de sua prática enquanto “modo de produção”. Pode-se
um ponto de interrogação ao final, e se situava num plano bem argumentar, a esse propósito, que, a despeito das frustrações
mais conceitual do que propriamente prospectivo.28 subsequentes de sua atualização histórica, a ideia do socialismo,
De maneira desconcertante, portanto, o socialismo, que, enquanto “intenção coletiva”, pode persistir, em tese, como
segundo os anúncios otimistas do Manifesto Comunista de possibilidade real de alguma sociedade do futuro, seja como
1848, prometia ser o coveiro do modo de produção capitalista, sucessor, seja como alternativa ao modo atual de organização
econômica da sociedade. É necessário recordar, porém, que os
28 Ver Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest, Summer modelos teoricamente disponíveis de organização social não
1989, p. 3-18, bem como seu livro sobre a questão: The End of History and the Last são em número infinito e que tampouco as sociedades reais
Man. New York: Free Press, 1992. Sobre sua “tese”, ver Paulo Roberto de Almeida,
“O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Meridiano 47, estão inventando, continuamente, novas formas de organi-
n. 114, janeiro 2010, p. 8-17. zação econômica e social. Admitindo-se, como o fez Marx no

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

18 Brumário, que os vivos também podem ser governados pelos Kong (fixada para 1997), o delegado do Partido Comunista
mortos, deve-se reconhecer, antes de mais nada, que o peso da chinês e representante oficial da RPC naquelas discussões teve
história passada oprime como um pesadelo o destino atual e a coragem, e também a humildade, de confessar candidamente,
o futuro eventual do socialismo, enquanto modo de produção mas dirigindo-se mais a seus próprios companheiros de partido
eventualmente eficiente no plano de suas realizações práticas. do que aos ingleses: “Alguns camaradas temem o capitalismo,
Diferentemente do filósofo, não incumbe ao historiador porque na verdade sabem muito pouco sobre ele. Esses camaradas
avaliar as probabilidades de sobrevivência dessa ideia nas não se dão conta de que o capitalismo mudou muito desde Karl
condições concretas do século XXI. O trabalho do primeiro, Marx. Na verdade, o sistema capitalista moderno é a maior
menos preso às exigências dos fatos — ou seja, a matéria-prima invenção da civilização humana.”
da história — pode ser efetivamente conduzido sob a forma O representante chinês tinha certamente razão quanto à
de interrogantes, ainda que estas sejam caracterizadas por um colossal ignorância, na China daquela época — em plena primeira
ceticismo apriorístico em relação às chances de sobrevivência fase das grandes mudanças operadas por Deng Xiaoping, sobre
futura do socialismo. O método do historiador, entretanto, não o modus operandi do capitalismo. O claro reconhecimento de
comporta projeções futuras, não tanto em virtude de uma falta que o sistema capitalista tinha alterado substancialmente sua
intrínseca de imaginação — já que se pode ser tão especulativo forma de funcionamento, desde o século XIX, era igualmente
em direção do passado como em relação ao futuro — mas em digno da mais venerável sabedoria confuciana; até mesmo
razão de um simples constrangimento de ordem analítica. Sendo um marxista radical, como tinha sido antes dessa época Mao
o trabalho de investigação histórica, a exemplo da metodologia Tsetung, poderia concordar com esse tipo de argumento. Mas,
seguida na biologia embrionária, uma tarefa antes de mais nada ele enganava-se redondamente no que se refere à terceira
“recapitulativa”, qualquer avaliação honesta sobre a ascensão assertiva, sobre a “invenção” do capitalismo pois que, se há
e queda do sistema socialista deve atender a determinadas um sistema econômico inventado pelo homem, este foi, e é,
exigências metodológicas e ao questionamento mesmo de seus indubitavelmente, o socialismo.
fundamentos originais, isto é, interrogar-se sobre os princípios Com efeito, o capitalismo, enquanto “modo de produção”
teóricos e os mecanismos estruturais que lhe deram sustentação (como gostam de dizer os marxistas), não surgiu de um projeto
prática durante o tempo de sua vigência histórica e que explicam filosófico prévia e sistematicamente definido, assim como seus
seu virtual desaparecimento no terço final do século XX, isto princípios organizativos não emergiram prontos e acabados de
é, sua irrelevância efetiva para todos os efeitos práticos do algum cérebro humano, por mais prolífico que este possa ter sido
processo histórico. (como parece que foi o de Karl Marx). O socialismo, ao contrário,
ele sim, deriva dessa vontade do homem de transformar hic et
3.2. A maior “invenção” da humanidade nunc a sociedade realmente existente, modelando-a segundo
certos valores morais e princípios éticos adequados às concepções
Quando das negociações entre o Reino Unido e a República momentâneas que uma sociedade (ou seus representantes
Popular da China, realizadas desde o final dos anos 1980, para a mais esclarecidos) possa entreter sobre seu próprio futuro.
retrocessão ao domínio de Beijing da colônia britânica de Hong O socialismo seria assim, para parafrasear o filósofo alemão

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

Reinhart Koselleck a propósito dos projetos iluministas, uma alemão, igualmente alertado para a ação decisiva das complexas
“projeção utópica sobre o futuro”.29 forças materiais que moldaram a civilização capitalista na Eu-
A confusão entre, de um lado, a “invenção” teórica dos ropa moderna. Uma das maiores preocupações intelectuais de
conceitos de socialismo e de capitalismo e, de outro, a emergên- Weber era, precisamente, a de explicar porque a forma moderna
cia, na prática, de cada um dos sistemas em causa é, no entanto, do capitalismo tinha surgido numa sociedade de passado tão
inevitável quando se lida com dois paradigmas conceituais que, recente quanto a europeia, ausentando-se do cenário histórico
em virtude de um intenso e nem sempre qualificado uso político, de civilizações tão antigas como as da Índia ou da China.31
perderam muito de sua capacidade explicativa. O economista O burocrata do PCC que representava Pequim junto ao
Milton Friedman também achava que o capitalismo foi uma das governo de Sua Majestade britânica em Hong Kong provavel-
maiores “conquistas” da civilização, apesar de considerá-lo uma mente nunca tinha lido Max Weber e não poderia, assim, apre-
instituição tão “natural” quanto, digamos, a cobiça humana. A di- ciar devidamente a valiosa capacidade heurística do conceito
ficuldade é tanto maior quanto a chamada “civilização humana”, weberiano de “racionalidade”. Este conceito é, no entanto, a
a que se referiu o representante chinês, não costuma pautar-se chave explicativa do extraordinário desenvolvimento material
em função de conceitos teóricos elaborados por “inventores da sociedade ocidental moderna, comparativamente ao das
geniais”, mas segundo princípios bem mais prosaicos ligados ao “civilizações clássicas” da Índia, da China ou do Oriente mu-
terreno da contingência histórica, onde “acaso” e “necessidade” çulmano, ou mesmo no caso de “civilizações contemporâneas”,
combinam-se continuamente para produzir resultados sempre como as do finado “socialismo real”. O Ocidente não inventou
inéditos do ponto de vista do desenvolvimento social. o capitalismo, uma vez que este é fruto de um longo processo
Não se deduza daí que a ação humana esteja ausente de racionalização de estruturas sociais, econômicas e políticas,
dos palcos históricos. Apenas acontece que, como dizia Marx desenvolvidas de maneira impessoal, de forma não programada,
no 18 Brumário, ela só se desenvolve em circunstâncias bem ao acaso de diferentes impulsos econômicos e sociais ao longo
determinadas e quando o faz, apresenta-se cingida por forças de séculos.
sociais bem mais poderosas, presentes no substrato material Mas, assim como não se pode esperar que uma sociedade
da própria sociedade. Fernand Braudel dedicou parte substan- “invente” espontaneamente um determinado “modo de produção”,
tiva de sua análise sobre a formação do capitalismo europeu a por mais funcional que este seja para suas necessidades de
desmentir a tese, de suposta paternidade weberiana, segundo a desenvolvimento, a aplicação do princípio de racionalidade não
qual determinadas seitas protestantes teriam, de alguma forma, deriva logicamente de um projeto humano de transformação
“inventado” o capitalismo.30 Nada mais falacioso em termos social, se ele não está entranhado no próprio “código genético”
históricos, disse, em substância, o grande historiador francês, dessa sociedade. Em outros termos, a racionalidade deve estar
com o que concordaria integralmente o eminente sociólogo integrada à própria estrutura social, na ausência da qual o

29 Ver Reinhart Koselleck, Critica Iluminista e Crisi della Società Borghese. 31 David Gellner, “Max Weber, Capitalism and the religion of India”, Sociology,
Bolonha, Il Mulino, 1972. vol. 16, n. 4, november 1982, pp. 526-543. Ver também Gordon Marshall,
30 Cf. Fernand Braudel, Afterthoughts on Material Civilization and Capitalism. In search of the Spirit of Capitalism: an essay on Max Weber’s Protestant ethic thesis.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1977. Londres: Hutchinson, 1982.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

fenômeno deixa de ser operacional para o conjunto da sociedade, fossem dinamicamente mobilizados para a consecução da
produzindo efeitos imprevistos apenas nos escassos setores maior parte das tarefas ligadas à organização produtiva da
vinculados a um padrão modernizador externo. sociedade. Mas, esse processo, nas antigas sociedades socialistas,
Este sempre foi um dos maiores desafios enfrentados era sempre limitado “geneticamente”, no sentido em que ele
pelos países que adotaram, voluntária ou involuntariamente, o dependia mais das correias de transmissão que operavam ao
“modo socialista de produção”. Eles dispunham, estruturalmente nível da subjetividade política, do que de fatores propriamente
falando, de uma capacidade bastante restrita para “digerir” e endógenos ligados à ação involuntária dos agentes sociais e
“reproduzir” padrões tecnológicos superiores, uma vez que operadores econômicos, trabalhando com as sinalizações de
a organização social da produção obedecia, nesses países a preços livres do mercado.
uma lógica de comando propriamente autoritária — ou seja, Aí talvez se situava a origem do entusiasmo legítimo com
vinculada ao monopólio do poder político exercido pelos partidos o capitalismo demonstrado pelo representante de Beijing nas
comunistas —–e não à lógica da atomização espacial do poder negociações sobre o retorno da colônia britânica à soberania da
econômico e social, tal como ela se desenvolve espontaneamente República Popular: as extraordinárias capacidades adaptativas
sob a “cultura” do capitalismo. A “racionalidade” específica do do capitalismo, ao longo de toda a sua história, encontram-se
capitalismo situa-se, precisamente, na ausência de comando de alguma forma concentradas no microcosmo étnico e social
unificado para a ação social dos agentes econômicos, a que que é Hong Kong, uma pequena vitrina do sistema capitalista
se contrapõe a “irracionalidade” intrínseca do planejamento situada às portas do grande socialismo pobre que era a China
centralizado. A aparente desorganização e “irracionalidade” do final dos anos 1980.
do mercado capitalista — na verdade, deve-se falar de uma A grande dúvida, naquela época, em torno da incorporação
atomização de suas estruturas de apropriação e de distribuição de Hong Kong ao resto do continente era a de saber se ela se
— contrapõe-se à aparente “racionalidade” de um sistema faria ao custo de uma involução histórica do ponto de vista do
“coletivo” — isto é, controlado socialmente — de repartição sistema econômico e social em vigor naquele promontório do
do trabalho e do produto final. Em última instância, porém, “capitalismo realmente existente” ou se, de alguma forma, seria a
a “lógica anárquica” do mercado revela-se superior à “lógica China a incorporar-se ao grande sistema internacional capitalista
fria” de algum burocrata calculista, sobretudo se se considera a que já vigorava na então colônia de Sua Majestade. Em outros
que ganhos e perdas, no sistema de apropriação privada, são termos: que relações sociais de produção deveriam predominar
eminentemente individuais e imediatamente perceptíveis em na pequena ilha de liberdades econômicas infinitas, as capitalistas
termos reais, por meio da mais simplória contabilidade. ou as socialistas? A julgar pelo ritmo das reformas econômicas
Isto não impediu, evidentemente, que muitos dos empreendidas na China, tudo indicava que o novo pragmatismo
países socialistas tenham incorporado, em alguma fase do da era Deng Xiaoping recomendava uma combinação de
desenvolvimento de seus projetos nacionais, a essência da “socialismo de mercado” com as virtudes do capitalismo
“racionalidade” propriamente ocidental, a saber, a capacidade propriamente “manchesteriano” que sobreviveu em Hong Kong
de inovar e de encontrar respostas originais aos desafios do de forma até mais dinâmica. Cabe igualmente registrar que, já
cotidiano, bem como a possibilidade de que esforços individuais naquela época, Hong Kong exibia uma renda per capita superior

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

à da metrópole britânica, a despeito da existência de centenas levaram ao declínio do feudalismo como “modo de produção”:
de milhares de chineses pobres emigrados do continente, desde as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente
o início da época maoísta, e que ainda viviam em cortiços ou convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das
barcos no rio das Pérolas. A imensa riqueza criada pelo regime forças produtivas e ao avanço das condições econômicas
de liberdades econômicas da pequena colônia transformada em de produção. Qualquer marxista não comprometido com
grande centro financeiro internacional, depois de ter atraído os esquemas de poder existentes na área soviética poderia
muitas indústrias — doravante se transferindo gradativamente reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava,
para o continente com a abertura da economia estimulada pelas em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo
novas lideranças “comunistas” —, deve ter impressionado outros do processo de produção social.
mandarins do “socialismo de mercado”, incitando-os a repetir De fato, as relações socialistas de produção sempre foram
algumas das ferramentas usadas por Hong Kong ao longo de uma forma contraditória de organização social da produção,
quatro décadas: os principais eram a liberalização comercial uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a sociedade
e os baixos impostos, que foram adotados pela grande pátria. burguesa não poderia desaparecer — e assim dar lugar ao
socialismo — sem que ela pudesse antes desenvolver todas as
3.3. Uma contradição insanável suas potencialidades intrínsecas em termos de forças produtivas.
Mas, uma vez implementadas essas relações socialistas de
Ninguém melhor do que Marx sabia colocar com clareza, produção — de maneira mais ou menos improvisada no
ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar do seguimento da revolução bolchevista de 1917 —, elas sempre
processo histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio representaram (no vocabulário do próprio Marx) “uma forma
à Crítica da Economia Política (1859), “numa certa etapa de antagônica do processo de produção social, não no sentido
seu desenvolvimento, as forças produtivas de uma sociedade de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que
entram em contradição com as relações de produção existentes, nasce das condições sociais de existência dos indivíduos”. Era,
ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de assim, “marxistamente” inevitável o deslanchar de uma etapa
propriedade no seio das quais elas se tinham desenvolvidos até revolucionária no desenvolvimento do socialismo, assim como
então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, era “marxistamente” previsível que a necessária transformação
essas relações [de produção] se tornam seus próprios entraves. da base econômica, operada desde o final da estagnação da
Abre-se então uma época de revolução social. A transformação era Brejnev, conduzisse a uma substancial mudança em toda a
na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista.
enorme superestrutura”. É possível, talvez mesmo provável, que ao iniciar seu
Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo período de “despotismo esclarecido”, Gorbatchov tenha dito a
de tipo soviético a partir do final dos anos 1970, muito embora seus companheiros mais chegados: “OK, camaradas, o Capital
suas sementes existissem desde muito tempo antes. As razões venceu!”. Marx, aliás, tinha sido o primeiro a reconhecer que,
dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada historicamente, só foi possível surgir uma forma dinâmica de
em termos “marxistas”, foram as mesmas que, no passado, organização social da produção sob o sistema capitalista, que

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

possui nele mesmo os impulsos para uma contínua transformação tomar o ”carro da História” a partir das relações de produção
das condições de produção. “A sua base técnica é revolucionária, em vigor: a “base técnica” do socialismo estatal, poderia dizer
ao passo que a de todas as formas de produção anteriores era Marx, era essencialmente conservadora, e sua base social e po-
essencialmente conservadora”, escreveu ele no Capital. lítica, acrescentaríamos nós, era profundamente reacionária.
Essa luta para mudar as condições “medievais” de produção A comparação histórica surge aqui de forma inevitável: as rela-
e de distribuição existentes no regime soviético era tão antiga ções socialistas de produção e a classe burocrática associada ao
quanto a própria URSS e, numa perspectiva histórica mais Partido Comunista representavam, nos países da área soviética,
ampla, estava ligada à história secular da modernização na velha o mesmo papel do sistema corporativo e da classe aristocrática
Rússia. Tanto o autocrata modernizador Pedro, o Grande, como no ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível ao
o bolchevique “tayloriano” Lênin enfrentaram, cada um em seu desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave
tempo, o desafio do atraso social e o da paralisia da máquina do formidável ao progresso político da sociedade.
Estado. A saída encontrada pelo autocrata reformista do início
da era moderna foi a de trazer a tecnologia ocidental (fundição, 3.4. O socialismo é contra o mercado?
construção naval) para os portos e estepes russas. Por sua vez, ao
tomar o poder em 1917, o líder bolchevista colocou com clareza A obsolescência precoce — menos de 70 anos de vida útil
as alternativas que se ofereciam à Rússia pós-revolucionária: — do “modo socialista de produção” constituiu, sem dúvida,
“ou imitar o exemplo dos países mais avançados e alcançá-los um dos mais curiosos fenômenos do laboratório da história.
economicamente, ou sucumbir”. Os poucos anos de “comunismo Por uma dessas ironias que parecem frequentar os palcos da
de guerra” convenceram-no a inflexionar substancialmente a História, a sucessão progressiva dos modos de produção, tal como
via econômica da construção socialista, introduzindo critérios teorizada por Marx n’A Ideologia Alemã , revelou-se conduzir à
de mercado para a produção e distribuição. O “socialismo num regressão antecipada da forma socialista de organização social
só país” estalinista encerrou dramaticamente, como se sabe, a da produção.
primeira experiência de “socialismo de mercado” que se conhece, Essa transição sui generis nos registros históricos
uma modalidade híbrida de organização social da produção não derivou apenas de uma crise de legitimidade política do
que Marx provavelmente rejeitaria como irremediavelmente socialismo autoritário, mas decorreu fundamentalmente de
contaminada por “proudhonismo econômico”. uma crise estrutural de sua própria forma de organização
O que Gorbatchev certamente teria gostado de imple- econômica. Ainda que não se possa desconhecer o elemento
mentar era uma espécie de NEP — a Nova Política Econômica, essencialmente legitimador de todo sistema político, que é o
um breve retorno à economia de mercado dois anos depois do exercício da capacidade individual de voto numa determinada
putsch bolchevique —, mas da era microeletrônica, o que era, arena política mais ou menos livre, o determinante principal
todavia, bem mais complicado do que as banalidades concei- de sua sobrevivência no tempo não está tanto no maior ou
tuais em torno do modelo leninista de comunismo primitivo, menor grau de liberdade política à disposição do cidadão, mas
como tendo de construir o “socialismo com eletricidade”. Não na funcionalidade desse sistema em termos de performance
havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer o socialismo econômica.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

O exemplo chinês de abertura econômica e repressão o consequente desprezo pelas leis mais elementares do jogo
política indica, aliás, que uma organização mais “racional” do econômico. A derrota inegável do socialismo, no final do século,
processo produtivo sob o socialismo não implica, obviamente, a mais do que uma vitória “política” do capitalismo ocidental,
adoção da via liberal-burguesa de desenvolvimento econômico representou, assim, a revanche “econômica” do mercado.
e social. Quando se fala, assim, de uma transição do socialismo Poderá esse monumental erro de apreciação ser corrigido
ao “capitalismo” não se está assumindo a volta — impossível — apenas pela reintrodução de elementos de mercado num
às formas capitalistas “clássicas” de produção e de distribuição. “socialismo nouvelle manière”, como intentam fazer agora os
O atual “retorno ao futuro” do socialismo chinês significa, tão chineses, ou se terá de ir a uma “restauração capitalista” tout court,
simplesmente, uma volta ao sistema de “mercado”, de onde, como operado em todos os países do socialismo real europeu?
aliás, ele nunca deveria ter saído. O abandono dos princípios Uma Realpolitik econômica para o socialismo é compatível
de mercado sob o socialismo real resultou de um equívoco com o mercado ou se terá realmente de operar um “retorno ao
propriamente epistemológico — para retomar uma noção futuro” sob a égide do capitalismo realmente existente?
althusseriana — em relação ao conceito de mercado, em resultado A dificuldade de uma análise conduzida apenas ao
do qual ele foi equacionado à apropriação privada dos meios de nível dessas duas noções dicotômicas está em que tanto o
produção e dos bens finais liberados pelo processo produtivo. “capitalismo”, como o “socialismo” se transformaram, do ponto
Vejamos esse equívoco mais de perto. de vista sociológico, em verdadeiros “superlativos” conceituais,
A “invenção” do socialismo prático, em princípios do o que bloqueia a apreensão de suas atualizações concretas no
século XX, foi baseada em especulações imperfeitas sobre desenvolvimento das sociedades contemporâneas. Essas duas
o funcionamento da economia capitalista, em condições de categorias não são, ademais, intercambiáveis do ponto de vista da
mercado, e em suposições ainda mais falhas sobre o modo de prática social, já que, como já se disse, o capitalismo não resulta,
organização da produção em regime coletivista. As críticas como seu suposto sucessor histórico, de um projeto humano
dirigidas à “economia política” do socialismo, seja na própria de mudar a História e a sociedade. Em sua forma moderna,
época de Marx — por John Stuart Mill, por exemplo — ou ele é o resultado de um longo processo de desenvolvimento
posteriormente — por Vilfredo Pareto, entre outros — nunca histórico e social, no qual está embutida uma forma específica
foram respondidas ou sequer seriamente discutidas pelos de racionalidade ocidental, mas que constitui, se tanto, apenas
marxistas “práticos”. um capítulo particular no itinerário mais amplo da civilização
A partir de conjeturas incompletas sobre a sociedade material do ocidente moderno.
socialista, de duvidosa paternidade marxiana (pois que O argumento em favor da transição direta do socialismo
derivadas de uma crítica ao programa de Gotha do partido ao “capitalismo” é, nesse sentido, duplamente falho. Por um lado,
socialdemocrata alemão), se buscou legitimar a ruptura histórica porque não se “inventou” ainda uma espécie de capitalismo
com o capitalismo através da abolição pura e simples das leis prêt-à-porter, que estaria disponível na seção dos “modos de
de mercado. No seguimento desse equívoco, a forma histórica produção” de algum supermercado da História. Por outro,
de atualização do socialismo real, no século XX, confundiu-se porque, como ensina Braudel, ainda que a hegemonia social
excessivamente com o planejamento central de tipo estatal e e econômica do capitalismo seja hoje em dia inegável, ela

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não deve ser superestimada a ponto de converter essa forma system”, compreendendo e superando (Aufheben) o subsistema
específica de organização social da produção no deus ex capitalista. O estabelecimento de um mercado do trabalho na
machina do desenvolvimento histórico possível das sociedades Inglaterra do século XVIII, por exemplo, implicou na destruição
contemporâneas. completa do tecido social da sociedade rural tradicional.
A “civilização material” que se desenvolveu nos últimos O restabelecimento do princípio do mercado na economias
três séculos no mundo ocidental não pode se confundir com “pós-socialistas” deve, igualmente, afetar o conjunto da estrutura
um único tipo predominante — capitalista — de atividade social existente.
econômica. Essa civilização multifacetada, segundo o esquema Sendo transhistórico e totalizante, o mercado deve poder
de Braudel, se compõe, de fato, de diversos níveis de atividade igualmente abarcar um sistema “socialista” de produção, muito
produtiva, estruturados em função de uma hierarquia econômica, embora esta possibilidade represente, de alguma forma, uma
social e espacial, cujas partes integrantes — centro, periferia e contradictio in adjecto, uma vez que, nesse caso, o mercado
semiperiferia — estão desigualmente integradas numa mesma deixaria de ser self-regulating para tornar-se administrado. Sem
Weltwirtschaft, ou seja, uma economia-mundo.32 O capitalismo, embargo, as economias pós-keynesianas já acumularam uma
sobretudo, não pode ser confundido com uma simples economia enorme experiência em matéria de intervencionismo estatal
de mercado; do ponto de vista braudeliano, ele seria mesmo nos diversos mercados econômicos.
uma espécie de “antimercado”, com tendências ao oligopólio. Em todo caso, a opção pelo mercado “livre”, que aparece
Mais precisamente, o capitalismo disputa, ao lado da “economia como inevitável na transição do socialismo ao “capitalismo”
mercantil”, frações progressivamente mais amplas de um mesmo empreendida a todo vapor pelas economias “pós-socialistas”,
espaço social e econômico que era majoritariamente ocupado, implica, assim, aceitar todas as suas distorções e efeitos desesta-
até o século XVIII pelo menos, pela “economia natural”. bilizadores sobre as unidades produtivas e sobre a distribuição
Fernand Braudel — e por isso ele é importante para esta de renda ao nível dos consumidores. Uma vez que o sistema de
análise sobre o “retorno ao futuro” do socialismo — se afasta preços de mercado consiga guiar toda a economia e que tenha
das concepções tradicionais, marxistas ou weberianas inclusive, sido abolido o “pecado original” da abolição dos mercados, o
sobre a organização social do capitalismo, que consideram o socialismo se terá enfim desfeito seus últimos mitos econômicos,
mercado como a pedra de toque desse sistema econômico. penetrando assim naquela etapa histórica que Marx chamava
Na verdade, em seu sentido mais amplo, o mercado abarca e de “purgatório” do sistema capitalista.
atravessa o capitalismo, mas continua a operar igualmente sob No que se refere a essa travessia de alguma forma
outros regimes de produção e distribuição, algo que já tinha sido “dantesca”, a opção, embora difícil do ponto de vista prático,
constatado por Karl Polanyi.33 Como lembra este último autor, foi resolutamente aceita nos países “pós-socialistas” do Leste
a economia de mercado é fundamentalmente “an uncontrolled europeu e, de forma mais hesitante, na própria Rússia. Nesta
última ainda parecem persistir dificuldades algo ideológicas.
32 Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV- Nikolay Shmelyov, um dos antigos conselheiros econômicos
XVIII siècles. Paris: Armand Colin, 1979.
33 Cf. Karl Polanyi, The Great Transformation: The political and economic origins of do partido da reforma na finada URSS, chegou a declarar
our time. Boston: Beacon Press, 1957; existe edição brasileira. expressamente que a atitude de desconfiança em relação ao

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lucro era uma espécie de “mal-entendido histórico”, o custo argumentar que a adoção dos princípios de mercado conforma
da ignorância econômica de pessoas que pensaram que o o melhor terreno para lutar contra o capitalismo.
socialismo poderia eliminar lucros e perdas. A legislação para
introduzir um sistema de taxação individual e para legalizar o 3.5. Um modo de produção “inventivo”
papel do lucro, finalmente introduzida, consagra, entretanto,
esse reencontro com a história. No que se refere ao sistema de Karl Marx foi, certamente, um dos maiores “inventores”
preços livres, sua implementação exigiu um penoso sacrifício da teoria social moderna. Não lhe cabe, obviamente, o mérito
de adaptação às exigências da competitividade, eliminando do de ter “inventado” o conceito ou a realidade mesma da luta
mercado diversos dinossauros que tinham sido criados pelos de classes: como ele mesmo disse, os historiadores burgueses,
antigos planos quinquenais. antes dele, já tinham se referido a essa poderosa alavanca do
Outra passagem pelo “purgatório” capitalista foi o progresso social, essa verdadeira “parteira da História”, nada
estabelecimento de um modo de “coexistência pacífica” com mais fazendo o filósofo alemão do que profetizar o final da
o fenômeno do “intercâmbio desigual”, típico do sistema sociedade de classes em decorrência da revolução socialista e
internacional de comércio. Mais difícil de tudo, porém, foi aceitar da ditadura do proletariado.
uma brutal inserção no regime de desigualdades estruturais que Sem embargo, Marx “inventou” um dos conceitos mais
acompanhou toda a história da moderna civilização industrial. fecundos empregados atualmente pela “ciência” histórica, qual
O “socialismo de mercado” nouvelle manière teve de aprender a seja o de modo de produção. Seu esboço n’A Ideologia Alemã e
conviver com a ideia, bem braudeliana, de que a concentração seu desenvolvimento ulterior, tanto na Contribuição à Crítica
e a centralização de recursos e de riquezas são feitos em certos da Economia Política como no Capital, representaram uma
lugares privilegiados de acumulação e que as desigualdades das grandes contribuições da imaginação dialética ao discurso
daí decorrentes — inerentes ao mercado e não restritas ao histórico contemporâneo.
capitalismo — são realidades estruturais geralmente rápidas a Não seria adequado estabelecer aqui a lista de todos os
se estabelecerem e muito lentas a se desfazerem.34 conceitos criados ou desenvolvidos por Marx na busca de uma
Em seu famoso Discurso sobre o Livre-Comércio (1848), “cientificidade” para a História, a Economia ou a Filosofia
no qual ele considerava que o sistema democrático, instaurado Política, como tampouco deveria ser nossa preocupação
pela burguesia, era o terreno indispensável para lutar contra a desvendar o conteúdo “ontológico” do conceito de “modo de
burguesia, Marx afirmava igualmente que o sistema de livre- produção”. Cabe no entanto registrar que o discurso histórico
comércio era do interesse do proletariado, pois que unificava elaborado nas academias reteve esse conceito como uma espécie
a classe trabalhadora em escala transnacional e apressava a de paradigma interpretativo das diversas formas historicamente
revolução social. Coerentemente com a lição marxista, as poucas possíveis de organização social da produção, mesmo quando a
lideranças “socialistas” ainda existentes também poderiam “ciência histórica burguesa” rejeitou a sucessão linear implícita no
esquema marxista original, ou quando a “ciência do materialismo
34 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Neo-Détente & Perestroika: agendas para o futuro”, histórico”, de inspiração stalinista, atirou na lata de lixo da
Política e Estratégia. São Paulo, vol. VI, n. 1, janeiro-março 1988, pp. 67-74. História o conceito de “modo de produção asiático”.

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Durante muito tempo, intelectuais ocidentais e dirigentes substanciais em termos de transferência de tecnologia
do socialismo real não hesitaram em reconhecer no “modo (adicionalmente àquela que não passava pelos circuitos
de produção socialista” uma forma superior, pelo menos em oficiais), de acesso a mercados (ainda que vigorassem regras
escala histórica, de organização social da produção. Mas, de salvaguarda pela não-reciprocidade) e de fluxos financeiros
teve-se finalmente de reconhecer que nem acumulação de (provocando, ulteriormente, algumas das maiores dívidas per
“crises gerais” no capitalismo nem o movimento nacionalista capita do mundo). A rationale conceitual a sustentar a nova
e anticolonialista dos “povos oprimidos” conseguiriam abater “coexistência” econômica entre parceiros desenvolvidos do
as bases da sociedade burguesa contemporânea, o que de certa Primeiro e do Segundo Mundos se situava um pouco no universo
forma levou a prática do socialismo real a se distanciar cada galbraithiano da “convergência” entre sociedades industriais
vez mais de seus fundamentos políticos. É bem verdade que a “capitalistas” e “socialistas”. As primeiras se teriam tornado
“miséria da teoria”, depois de três décadas de stalinismo, impediu menos “selvagens”, sob o impacto de políticas keynesianas de
o surgimento de um novo “revisionismo” à la Bernstein — ou intervenção estatal, e as segundas teriam perdido muito de sua
seja, uma reforma no próprio marxismo — e o movimento pureza doutrinária ao reconhecerem que a queda do capitalismo
reformista ficou reduzido a uma restruturação no modo de não estava na ordem do dia. O utópico discurso kruscheviano
funcionamento do socialismo real. sobre o “enterro” do capitalismo e a vitória “próxima” do
Excluindo-se a experiência iugoslava de “autogestão”, socialismo foi discretamente remetido para baixo do tapete
datam dos anos 1950 as primeiras experiências de reforma no pelo realismo cínico do brejnevismo triunfante, cada vez mais
mecanismo econômico do socialismo, com a introdução de uma estéril em termos de reformas liberalizantes.
certa autonomia na gestão das empresas e do cálculo econômico A despeito disso, a partir dessa época, as sociedades
no processo de formação de preços. Não se pode dizer que a socialistas, que se beneficiaram, tanto quanto inúmeros países
tentativa tenha sido exatamente um sucesso, apesar dos resultados em desenvolvimento, de vários surtos de crescimento econômico
mitigados então obtidos na Hungria e na Tchecoslováquia. De e de expansão comercial nas últimas décadas, nada mais
qualquer modo, a simples perspectiva de um retorno a uma fizeram senão afundar-se numa lenta esclerose econômica.
aplicação mesmo moderada de alguns princípios de mercado Já na segunda metade dos anos 1970, o Japão ultrapassava a
no funcionamento do aparelho econômico socialista permitiu produção bruta da União Soviética, para não falar do progressivo
que fossem legitimados o incremento do intercâmbio comercial gigantismo da antiga Comunidade Econômica Europeia em
e a expansão das relações políticas com a área capitalista: sob a face do definhamento igualmente progressivo de seus vizinhos
cobertura de arranjos especiais, entraram no GATT a Polônia do Comecon, o simulacro de “mercado comum socialista”.
(1967), a Romênia (1971) e a Hungria (1973), enquanto a A estagnação era tanto mais visível que, em termos qualitativos,
Tchecoslováquia e Cuba mantinham o status de founding fathers o socialismo não estava habilitado a obter, no campo das novas
(1947) desse acordo geral de comércio. tecnologias, resultados similares ou equivalentes aos alcançados
O desenvolvimento acelerado das relações econômicas durante a fase de industrialização pesada. Ou seja, os progressos
Leste-Oeste, a partir dos anos 1960 e particularmente nos se tornaram letárgicos, senão inexistentes.
anos 1970, permitiu às economias do socialismo real ganhos

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A sucessão marxista dos modos de produção se encontrou sociais. O que Marx propôs, na verdade, foi um modelo
assim cada vez mais comprometida pela pobre performance, explicativo para a transição original europeia do feudalismo
em todos os sentidos, do modo que deveria encarnar a etapa ao capitalismo, deixando a seus discípulos — sobretudo Engels
superior de organização da sociedade. A experiência histórica — a tarefa de encontrar “leis do desenvolvimento histórico das
ensina que cada vez que os fatos não se encaixarem com a sociedades”. Não há, contudo, em sua obra, uma teoria acabada
teoria, deve-se reformular esta última. É o que, modestamente, dos modos de produção que possa pretender ao estatuto de
fizeram os “revisionistas” da linha Deng Xiaoping do Partido chave explicativa para a evolução de todas as formações sociais
Comunista da China, e com maior ênfase ainda os novos historicamente concretas. Em outros termos, o conceito de modo
burocratas e carreiristas empenhados em aplicar o programa de de produção é uma grande “ficção histórica” pós-marxista, que só
reformas econômicas chinês (o mais correto seria referir-se aos sobreviveu intelectualmente graças à necessidade metodológica
movimentos decisivos em direção de uma maior “racionalidade” de instrumentos analíticos para interpretar a realidade.
do aparelho econômico). Os “comunistas” chineses abandonaram Falar de “modo capitalista de produção”, nesse sentido,
qualquer pretensão de “enterrar” o capitalismo, e passaram a pode ser tão falacioso quanto pretender ressuscitar o chamado
aprender com ele, numa velocidade pouco vista em qualquer “modo asiático” de produção, que Marx procurava identificar
outra experiência de transição do socialismo ao capitalismo. nas sociedades hidráulicas do Oriente tão bem analisadas,
Estaria, dessa forma, o “modo de produção socialista” posteriormente, por Karl Wittfogel ou por Max Weber. Aliás,
enfim superado na prática e condenado historicamente a ser o próprio Weber não acreditava que o capitalismo fosse um
suplantado pelo modo imediatamente anterior na tradicional sistema especificamente ocidental, dedicando grande parte de
sucessão linear marxista? O maior impedimento intelectual a suas pesquisas históricas à busca de exemplos de “capitalismo”
uma correta compreensão desse fenômeno de “retrogressão” nas antigas civilizações do Oriente ou na própria Roma clássica.
histórica parece ser a própria sacralização do conceito de “modo Para Weber, grosso modo, o capitalismo é encontrado sempre
de produção”, tal como proposto e utilizado por Marx e seus quando se tem um tipo de organização social voltada para a
discípulos. Na verdade, não existem “modos de produção”, produção de bens correntes, que depois serão distribuídos no
compartimentalizados de forma sistemática, desenvolvendo-se mercado. Assim, não existe o capitalismo demonizado por Marx,
sucessivamente de maneira exclusiva, tal como proposto pela mas tão simplesmente diferentes tipos de organização social da
teoria marxista. O que existe na história, tão simplesmente, são produção que podem, com maior ou menor precisão, serem
diferentes formas de organização social da produção, dotadas identificados a um dos possíveis regimes econômicos de tipo
de maior ou menor capacidade para se renovar e para alcançar capitalista. Nesse sentido, se se pretende especificamente falar
etapas superiores de desenvolvimento. de “modo de produção” a propósito do capitalismo ocidental
As rupturas verdadeiramente endógenas de um “modo do moderno, não se pode confundir o substantivo com o adjetivo,
produção” específico numa determinada formação social não strictu et latu sensi. Feitas essas ressalvas, é preciso encontrar
seguem necessariamente o receituário marxista e se o fazem, uma razão para o sucesso espetacular do sistema de produção
em certas circunstâncias e sob certas condições, tal experiência do Ocidente moderno.
histórica não pode ser generalizada para outras formações

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Segundo algumas interpretações “revisionistas”, se os países base econômica depende, em grau bastante elevado, de uma
do Ocidente puderam exercer, durante os últimos quatro séculos estrutura social compatível com os requisitos da inovação
e até uma data ainda recente, uma hegemonia incontestável tecnológica e sua difusão ulterior por todos os segmentos sociais.
sobre as demais regiões do planeta foi porque eles conseguiram A Europa conheceu um processo desse tipo desde a época dos
estabelecer um verdadeiro sistema de crescimento sustentado descobrimentos, para culminar no auge da Revolução industrial
por um constante processo de inovação, seja no que concerne e do bourgeois conquérant, quando esse sistema também
os meios de produção, seja na confecção dos instrumentos começou a se difundir em outras regiões e continentes (EUA,
propriamente militares de dominação. Japão).
Esse modo inventivo de produção, que permitiu o Assim, ao lado dos fatores específicos ligados à orga-
desencadear da Revolução Industrial e das revoluções científicas nização social do trabalho nesse sistema produtivo, é preciso
que lhe são associadas, só se tornou possível a partir de uma mencionar a difusão de um conhecimento técnico de base,
sólida base de conhecimentos técnicos difundidos em círculos largamente facilitada pela ampliação da rede escolar nas di-
cada vez mais amplos da população. O triunfo histórico do que versas sociedades que se modernizaram nesse período. Por
se convencionou chamar de “racionalismo ocidental” pode ser outro lado, nenhum outro processo social foi tão responsável
em grande parte atribuído à notável expansão das oportunidades pelo desenvolvimento contínuo das forças produtivas nessas
educacionais permitida pela consolidação dos Estados nacionais sociedades como a disseminação da inovação técnica ao nível
nos séculos XVII e XVIII. E foi a racionalidade científica que da unidades de produção. Mais uma vez, a Europa saiu na
permitiu o dinamismo social, a competitividade econômica, frente desse processo, uma vez que a educação universal de
a eficiência industrial, a performance militar, a dominação base se disseminou a partir do século XVIII, ampliando-se o
política, enfim, das potências ocidentais.35 fenômeno para a educação técnica a partir de finais do século
O sucesso histórico do modelo econômico ocidental já seguinte.
foi explicado — nos moldes do esquema “colonial” de exploração A complexidade dos sistemas técnicos contemporâneos
— pela dominação externa de outros povos e sociedades, tornou a inovação uma tarefa essencialmente empresarial.
seguida da consequente extração de seus recursos produtivos. O inventor isolado, se ainda existe, está cada vez mais rara-
Mas, se esquece muitas vezes de dizer que nenhum poder mente associado à novas fronteiras do conhecimento humano.
imperial se sustenta sem uma adequada base econômica de Contrariamente à utilização da energia para a transformação
natureza propriamente interna, isto é, sem a manutenção de da matéria, como se fazia nas fases anteriores da revolução
taxas relativamente altas e constantes de produtividade. Essa industrial, a elaboração, a transferência, o tratamento e uti-
lização da informação, que passaram a caracterizar o cenário
35 Ver, a propósito, Nathan Rosenberg e L. E. Birdzell, Jr., How the West Grew Rich: tecnológico do final do século XX, superam as possibilidades
The Economic Transformation of the Industrial World. New York: Basic Books, do pesquisador isolado. A pesquisa científica e a inovação
1986; existe edição brasileira: A História da Riqueza do Ocidente: a transformação técnica tornaram-se tão solidárias uma da outra que as antigas
econômica do mundo industrial. Rio de Janeiro: Record, s.d. Ver também, dos
mesmos autores, “Science, Technology and the Western Miracle”, Scientific distinções entre pesquisa fundamental e pesquisa operacional
American. vol. 263, n. 5, novembro 1990, pp. 18-25. tendem a diluir-se. A evolução tecnológica depende tanto do

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laboratório como da fábrica, da universidade, da empresa, dos respondida pelo historiador, já que a experiência chinesa de
cientistas e administradores e do Estado.36 “socialismo” ainda não se encerrou, mesmo se aquilo que os
Não é preciso dizer que esse sistema de crescimento — que, próprios mandarins da autocracia partidária chinesa chamam
preferivelmente à designação de capitalista, deve ser chamado de “socialismo com características chinesas” se parece cada vez
de “inventivo” — nunca conseguiu coexistir com um regime menos com o antigo “modo de produção” e se apresente agora
caracterizado pelas “relações socialistas de produção”, mesmo se, como um capitalismo submetido a determinadas injunções
no plano intelectual, países como a URSS tenham feito grandes estatais.
contribuições para o estoque mundial de conhecimento científico. A mudança histórica costuma ser vista em termos de
Mas, o que diferencia o “modo socialista de produção” dos ruptura ou de continuidade. A Revolução bolchevista de 1917
regimes de “exploração do homem pelo homem” é precisamente inscreve-se seguramente à sombra do primeiro conceito,
a falta de capacidade em transferir o conhecimento científico enquanto que os três lustros da era brejnevista teriam certamente
para a atividade produtiva, uma capacidade que depende de de ser vistos sob o ângulo da continuação, quando não da
características institucionais — entre as quais a apropriação estagnação. Os “anos Gorbatchev”, que culminaram na completa
privada do sucesso tecnológico — a que são alheias as economias “dessovietização” da Europa central e oriental entre 1989 e 1991,
de tipo centralizado. podem ser vistos como a mais importante ruptura histórica desde
o final da Segunda Guerra Mundial, etapa culminante, no dizer
3.6. O fim do socialismo e o laboratório da história de um historiador, da “segunda guerra de Trinta Anos” vivida
pelo continente europeu a partir da Primeira Guerra Mundial.37
Durante muito tempo os estudiosos do “socialismo Para a própria União Soviética, contudo, usando-se a
realmente existente” se perguntaram se os sistemas de tipo terminologia da école des Annales, o período gorbatcheviano
soviético, em que pese toda a rigidez weberiana — a famosa pode ser considerado como correspondendo a uma “conjuntura
“gaiola de ferro” — das burocracias totalitárias, poderiam histórica de transformação”, nos termos do historiador Ernest
realmente passar por algum outro tipo de mudança que não fosse Labrousse. Na verdade, tendo falhado na tentativa de operar uma
de natureza traumática, reconhecendo, implicitamente, que eles brusca mudança política que afastasse do passado comunista
tinham pouca ou nenhuma possibilidade de evoluir ou de se o imenso edifício carcomido da URSS, esse curto período se
reformar a partir de dentro. Depois dos grandes acontecimentos contentava em administrar um confuso processo de mutação
políticos no Leste Europeu, a partir de finais da década de 80, o social e econômica, mais de acordo com a “longa duração”,
que se questiona agora é se os regimes socialistas remanescentes cara a Fernand Braudel, do que com os “saltos para a frente”
— muito poucos, por sinal — podem ainda adaptar-se às novas do receituário maoísta. Foi preciso uma tentativa de golpe de
realidades, ou se eles serão simplesmente jogados na “lata de lixo estado, bem ao estilo conhecido na América Latina, para acelerar
da História”. Essa pergunta ainda não pode ser positivamente o processo histórico e transformar a simples “conjuntura de

36 Cf. Jean-Jacques Salomon e André Lebeau, L’Ecrivain Public et l’Ordinateur: 37 A caracterização é do historiador Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime:
mirages du développement. Paris: Hachette, 1988. Europe to the Great War. Londres: Croom Helm, 1981; existe edição brasileira.

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transformação” numa verdadeira revolução política, já sob o aventuras reformistas dos séculos XV a XVII, chegando mesmo
comando não mais de Gorbatchev, mas de Boris Iéltsin. a traçar paralelos entre a tentativa transformista de Gorbatchev e
Os processos de transformação social, econômica ou os processos deslanchados por figuras históricas como Henrique
política numa determinada sociedade e numa época determinada VIII ou Lutero.
não podem ser facilmente catalogados em função de modelos As analogias históricas são, em parte, mistificadoras, mas
dicotômicos de racionalização histórica senão a posteriori, não se pode realmente negligenciar a capacidade “sintetizadora”
quando todos suas possíveis consequências e implicações já se dos exemplos do passado para auxiliar no esforço explicativo
fizeram sentir, deixando aos historiadores o cuidado de medir dos tempos recentes. O problema da maior parte dessas análises
a amplitude da transformação social. O caso das revoluções centradas sobre o que se poderia chamar — retomando mais
violentas é evidentemente particular, uma vez que, antes do uma vez conceitos trabalhados pela escola dos Annales — de
historiador, o cronista mundano já teve oportunidade de sentir histoire événementielle (inclusive no que se refere o apelo a
seus efeitos devastadores para o cenário social em que atua. figuras exponenciais), é a tendência à personalização do jogo
Mas, as transformações verdadeiramente revolucionárias são político e social, com a consequente atribuição do “sucesso”
extremamente raras nos laboratórios da História, a maior parte ou “fracasso” de um determinado movimento às qualidades
das sociedades conhecendo apenas processos relativamente pessoais de seu líder.
pacíficos de modernização social. Que Mikhail Gorbatchov possa ter sido comparado a
Nesse sentido, a finada perestroika gorbatcheviana poderia Henrique VIII ou a Lutero — Calvino, aliás, conviria melhor,
ser interpretada, em termos históricos retrospectivos, como já que se tratou igualmente de uma tentativa de reestruturação
um modelo de transformação revolucionária, isto é, como um autoritária de uma visão do mundo formulada anteriormente38
movimento capaz de alterar fundamentalmente a estrutura social —, não modifica em nada o conteúdo historicamente original
e econômica da sociedade soviética e de operar a passagem a dos desafios enfrentados em seu tempo pelo ex-líder soviético.
um novo regime de poder e a um novo sistema político? A esse título, se poderia, por exemplo, dizer do movimento
Alguns observadores diriam que faltaram à perestroika os de reformas políticas na ex-URSS que este significou, para a
elementos estruturais mais essenciais de uma típica transformação autocracia socialista, o que o despotismo esclarecido representou
radical da ordem social ou política, não cabendo, pois, a para as monarquias absolutas do Ocidente entre os séculos XV
identificação com o modelo teórico proposto pela maioria dos e XVIII. A busca de “déspotas esclarecidos” é, no entanto, um
historiadores para o conceito de ruptura fundamental na expediente maliciosamente utilizado pela imaginação histórica
continuidade histórica. quando o curso dos acontecimentos se confunde com o destino
Não obstante, a conjuntura histórica de transformação particular de um líder providencial, sem que o “historiador”
na URSS do período gorbatcheviano foi vista, em perspectiva consiga separar o contingente do necessário. Nesse exemplo
comparada, como assumindo um significado similar ao dos
grandes processos reformistas do início da era moderna. Com
38 Vide a propósito, o capítulo sobre o autoritarismo de Calvino no livro de ensaios
efeito, os observadores não deixaram de notar a similitude de de sociologia histórica e de metodologia de Barrington Moore Jr., Poder Político
intenções entre o novo “revisionismo” socialista e as grandes e Teoria Social. São Paulo, Cultrix, 1972.

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específico, por acaso, a comparação não é de todo absurda: o a reforma do sistema tinha de ser dirigida precisamente contra a
“comunismo esclarecido”, que eventualmente teria emergido estrutura ossificada do Partido Comunista, que se converteu no
do entrechoque de posições entre o partido da reforma e o da principal obstáculo à mutação econômica e política da sociedade.
conservação na URSS de Gorbatchov, visava permitir ao dirigente A tarefa foi tanto mais árdua e contraditória na medida em que
soviético reunir condições políticas para acelerar o processo de o partido renovador na finada URSS nunca pôde implementar
modernização do país, de forma a aproximá-lo das nações mais o conjunto de reformas sem passar, num primeiro momento,
avançadas, como queria Lênin em princípios do século XX, ou pelo intermédio do aparelho organizacional do velho Partido
Pedro, o Grande, no final do século XVII. burocratizado. Aqui residia a contradição fundamental do
Sem pretender descurar o peso decisivo muitas vezes “revisionismo” socialista de tipo gorbatcheviano: a solução
exercido por certas personalidades individuais sobre o curso de para a maior parte dos problemas estruturais da sociedade
determinados acontecimentos históricos, o recurso à analogia socialista passava por uma reforma radical do sistema de
histórica, no caso do movimento reformista na ex-União organização econômica, mas essa transformação teria de ser
Soviética, talvez ganhasse em consistência se se fizesse referência operada necessariamente em detrimento do monopólio político
a certos processos do passado que igualmente serviram para partidário. A experiência de diversos países anteriormente
alterar as bases de funcionamento da sociedade em causa, sem socialistas da Europa central e oriental indicou, aliás, que a
modificar no entanto a composição social das elites envolvidas única forma de avançar no caminho das reformas econômicas
na transformação social. passava pela demolição da exclusividade da representação política
Nesse sentido, se poderia comparar a “revolução” da atribuída ao Partido Comunista; em uma palavra, passava pela
perestroika com a Inovação Meiji, no Japão do século XIX, quando volta à velha democracia burguesa tout court.
a elite dominante se abriu para uma maior ocidentalização O socialismo, para sobreviver, teria assim de aprender a
do país, no sentido da abolição de certos privilégios feudais, coexistir com o liberalismo político e aceitar a interdependência
na constituição de um parlamentarismo de fachada e na econômica; ou seja, além de “democrático”, o socialismo teria de
incorporação acelerada das conquistas estrangeiras em ciência ser cada vez mais “de mercado”, o que foi reconhecidamente difícil
e tecnologia. Como no caso, igualmente, da transformação para as antigas lideranças autocráticas. Os países pós-socialistas
bismarckiana operada nas instituições políticas, sociais e da Mitteleuropa deram passos enormes no estabelecimento
econômicas da Alemanha imperial, assistiu-se, na União de regimes formalmente democráticos, mas eles passaram a
Soviética, a uma Revolution von oben, cujo objetivo era o de enfrentar diversas dificuldades para organizar, em bases mais
modernizar o país sem trazer prejuízo àqueles que ocupavam racionais, um sistema de “exploração do homem pelo homem”.
as alavancas do poder político. Vários deles não conseguiram se adaptar à realidade, e alguns
Mas, cada processo histórico é único e original, respondendo voltaram a apelar aos antigos esquemas de organização política,
a forças contingentes dificilmente repetíveis em outra conjuntura ou aos líderes dos velhos regimes.
histórica. A deterioração do processo de reestruturação da Se o socialismo, tout court, não desaparecer nesse movimento
economia soviética tinha um preço político a ser pago. A despeito de recomposição radical de suas bases de funcionamento, ele
de afirmações em contrário formuladas nos círculos dirigentes, inevitavelmente se converterá em uma espécie de socialismo

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Agonia e queda do socialismo real

“formal”, onde o mercado e a democracia política convivem seria preciso esperar que as contradições ao nível das relações
tranquilamente com esquemas diversos de seguridade social socialistas de produção se tornassem um pouco mais agudas
e de intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como na para provocar a queda final. Elas chegaram duas décadas depois.
maior parte dos países do “capitalismo realmente existente”. O cenário de lutas e enfrentamentos internos idealizado
Seu caráter formal — isto é, respeitador das desigualdades no entre guerras por Silone continua a se reproduzir nos poucos
individuais que tendem inevitavelmente a se desenvolver sob socialismos remanescentes. A ideologia marxista, contudo, já
as mais diversas formas — não deve, contudo, assustar os mais tem muito pouco a ver com a natureza dos conflitos políticos
puros ideologicamente. Se a chamada “democracia burguesa” que se desenvolvem no último “bastião do socialismo” que
conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente devido é a China. A revolução política em curso no país, ao colocar
a seu caráter essencialmente “formal”, ou seja, uma democracia clãs e facções em terrenos diversos dos processos de reforma
simplesmente política, destituída de qualquer conteúdo real, em econômica, é uma revolução do Estado contra o Estado, ou seja,
termos de direitos econômicos ou sociais. A simples garantia uma revolução pelo Estado e para o Estado. Nesse sentido, ela
da igualdade jurídica e da liberdade individual representa, não se diferencia muito das revoluções políticas do passado,
contudo, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade caracterizadas por uma simples substituição das elites políticas
civil, pelo menos para grande parte da Humanidade. O exemplo que ocupavam momentaneamente as rédeas do poder. Por uma
chinês de “capitalismo com autocracia”, contudo, parece ter, espécie de ironia do destino, seria a última vitória do longo ciclo
até o momento, desmentido esse “axioma” da transformação de “revoluções burguesas” sobre a única — e efêmera, em escala
econômica e social do socialismo real. histórica — “revolução camponesa” da História.
Ignazio Silone, um dos primeiros dissidentes do Komintern, É, com efeito, possível, que uma autêntica “revolução
previa, no início dos anos 1930, que o enfrentamento culminante burguesa”, dessas que costumam se esconder sob as dobras
que marcaria o “final do socialismo” enquanto ideologia, não sempre inesperadas da História, possa ainda ocorrer na China,
se daria contra qualquer inimigo doutrinário externo, mas trazendo com ela o capitalismo e a democracia tão desejados
entre os comunistas e os ex-comunistas.39 O impacto real dos por gerações de “liberais sonhadores”. Seria, contudo, altamente
“renegados do socialismo” na evolução doutrinária e sobretudo improvável, que ela repita as características mais salientes de
prática do comunismo foi, no entanto, extremamente reduzido. suas antecessoras “clássicas”, em especial a Revolução francesa.
As dissidências trotsquista, titoísta e maoísta, no curso das Não se trata apenas de poupar o “reinado do Terror”; depois
décadas seguintes, bem como a própria ruptura sino-soviética, que os “clássicos do marxismo-leninismo” deixaram de ser
no final dos anos 1950 e princípios dos 60, se deram mais bem leitura obrigatória, poucos, hoje em dia, estariam dispostos a
entre facções rivais dentro do próprio movimento comunista. morrer por uma ideologia, seja ela qual for. Confrontado a esta
Mas, elas não significaram o final do sistema socialista, enquanto possibilidade, o líder revolucionário nouvelle manière poderia
regime econômico, naquelas conjunturas históricas particulares: responder como o poeta Georges Brassens:

39 Declaração de Silone a Palmiro Togliatti, lider do Partido Comunista Italiano;


“Mourir pour des idées ?
cf. “Ignazio Silone” in Richard H. Crossman (ed.), The God that Failed. Chicago,
Regnery Gateway, 1983 [1ª edição: 1949], pp. 76-114, pp. vi e 113. D’accord, mais de mort lente!”.

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O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

Capítulo 4

O modo repetitivo de
produção do mar ismo
vulgar no Brasil

135
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

4.1. Uma falácia persistente: a deformação do marxismo


nas academias

E
xiste, no mundo acadêmico das humanidades — em especial
na América Latina e, com certa ênfase, no Brasil —, uma
categoria de repetidores mecânicos do marxismo, basi-
camente superficiais, que jamais deveriam merecer qualquer
inclusão nessa escola de pensamento, que é ainda funcional para
fins da moderna teoria social. Eles são os atuais representantes
daqueles papagaios de pirata já imortalizados no cinema e na
literatura: ficam em cima dos ombros de algum personagem
principal, captam algumas migalhas de seu pensamento —
pescadas em manuais de segunda mão — e se contentam em
repetir slogans de fácil memorização: luta de classes, exploração,
burguesia, imperialismo, hegemonia, mais-valia, acumulação
ampliada, e assim segue, numa repetição infinita que chega a
ser enfadonha. O que poderia ser tolerado em romances de
aventura fica, no entanto, mais problemático quando se trata
de trabalho intelectual que deveria ser, supostamente, de quali-
dade. Este é o quadro que é possível encontrar em várias facul-
dades de humanidades, geralmente públicas, mas em privadas
também.
Tenho encontrado vários representantes do gênero, tanto
em minhas andanças e lides acadêmicas, quanto em contato
com estudantes (alguns desesperados), que me escrevem para
reclamar de alguns desses papagaios de pirata que ficam despe-
jando conceitos abstratos sobre essa classe de passivos ouvintes,
obrigados a conviver com o que se poderia chamar de “mar-
quissismo” vulgar. Cabe, no entanto, antes de qualquer análise
mais detalhada desse lamentável fenômeno da mediocrização

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

de nossas academias,40 distinguir formalmente os papagaios de pensamento, que continua ainda a prestar bons serviços à
repetidores dos verdadeiros representantes da espécie: é o que academia de boa qualidade, como nos prova ainda um sociólogo
fazemos numa primeira seção, dedicando as seções subsequentes que muitos dos repetidores colocariam no campo dos pensadores
à listagem dos slogans mais frequentes e fornecendo algumas de “direita”; trata-se de Raymond Aron, especificamente em
evidências sobre esse tipo de prática, que pode ser enquadrado sua obra sobre o marxismo de Marx.42 Antes que algum desses
na categoria mais geral da desonestidade intelectual (ou da repetidores mecânicos pense em descartar Aron como um mero
ingenuidade inculta, pura e simples). representante do pensamento conservador, caberia lembrar
O que fazem, o que pregam e o que praticam os atuais que ele foi um arguto analista de Marx e, no plano econômico,
representantes universitários dos antigos papagaios de piratas dizia ser um “keynesiano com alguma nostalgia do liberalismo
não deixa de constituir aquilo que já foi chamado de “falácias econômico”, querendo dizer com isso que achava inevitável, nas
acadêmicas”, ou seja, equívocos conceituais e erros de lógica sociedades abertas da modernidade, um papel significativo para
elementar, que se situam no seguimento de uma série já longa o Estado no ordenamento econômico e social.
(mas, ainda assim, apenas em seu início) dedicada às falácias A missão principal de Raymond Aron, durante toda a sua
mais comuns nesse meio.41 Que fique claro, portanto, que o que vida de intelectual, foi a defesa da ordem liberal clássica — ou
está em causa aqui não é o marxismo, enquanto tal, ou seja, a seja, das modernas economias de mercado e das democracias
eventual validade heurística da metodologia materialista para formais — contra a ameaça de sovietização da Europa ocidental,
fins analíticos — embora isso possa ser igualmente objeto de bastante real na época da Guerra Fria. Liberdades democráticas
críticas epistemológicas —, mas a contrafação do marxismo, e propriedade privada eram os pilares dessa ordem, como
ou sua utilização de modo primário e superficial nas “análises” ele não deixou de sublinhar em vários escritos seus, cabendo
acadêmicas de baixa qualificação substantiva. também registar seus demais trabalhos de natureza geopolítica,
sobre o equilíbrio do terror nos enfrentamentos bipolares da
4.2. Marxistas e “marquissistas”: duas espécies, de duas era nuclear. Visto em retrospecto, ou seja, pelo registro dos
classes diferentes experimentos do socialismo real na parte centro-oriental do
continente, a disseminação do modelo socialista soviético ao
Seria útil, portanto, antes de examinar a segunda espécie, conjunto da Europa só poderia prometer aquilo que foi servido
ou seja, os praticantes do que foi chamado de “modo repetitivo aos povos cominados do leste europeu: um regime de penúrias
de produção”, reconhecer os méritos analíticos da velha escola materiais, de controle absoluto sobre as vidas privadas, uma
ordem totalitária, de ausência completa das liberdades mais
40 A questão da decadência intelectual no ramo das humanidades das universidades elementares, enfim, um sistema baseado na mentira, na fraude
brasileiras já foi tema de um artigo meu: “A Ignorância Letrada: ensaio sobre a intelectual e na coerção física dos indivíduos (sem que seja
mediocrização do ambiente acadêmico”, Espaço Acadêmico, n. 111, agosto 2010,
preciso mencionar novamente os milhões de mortos produzidos
p. 120-127; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/
article/download/10774/5859 . ao longo do tempo).
41 Para a lista dos estudos de caso já efetuados na rubrica das falácias acadêmicas,
ver este link: https://www.academia.edu/38521549/Falacias_Academicas_um_ 42 Cf. Raymond Aron, Le Marxisme de Marx. Paris: Fallois, 2002; ver referências
livro_incompleto_2010_ . bibliográficas completas sobre algumas obras desse autor ao final deste ensaio.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

Curioso que tendo em vista toda essa materialidade atual- em relação aos problemas do capitalismo de sua época, ou seja,
mente disponível para quem deseje se informar, tantos papagaios o industrialismo de tipo manchesteriano de meados do século
repetidores do marxismo vulgar no Brasil continuem a defender XIX. Algo nesse sentido foi também intentado por Kautsky,
não apenas o socialismo histórico, enquanto sistema econômico em relação ao problema agrário na Alemanha imperial, ou
e social possível, mas também seu pequeno avatar numa ilha do por Lênin, para a transição do agrarismo ao industrialismo na
Caribe, que só trouxe miséria, repressão e sofrimento aos seus Rússia do final daquele século. Eles são os chamados “clássicos”
habitantes.43 Aparentemente, esses papagaios distraídos ficaram do marxismo, e não é preciso insistir sobre suas obras, bastante
na janela contemplando a estratosfera, enquanto a história real conhecidas e lidas (por marxistas inteligentes).
se desenrolava no mundo real, sem qualquer reflexo em suas Marxistas, ainda, são alguns historiadores do início do
digressões abstratas: queda do muro de Berlim, derrocada do século XX, que reinterpretaram a história passada — mediata e
socialismo e da União Soviética, marcha acelerada em direção imediata — à luz dos conceitos fundamentais do materialismo
ao capitalismo na China, eleições em todas as partes e crescente histórico, a exemplo de Charles Beard — que nos legou, em 1913,
perda de legitimidade das poucas ditaduras remanescentes em uma Economic Interpretation of the Constitution, analisando o
alguns cantos do mundo (tanto é que ditadores potenciais preci- congresso constitucional americano não em termos das ideias
sam “fabricar” eleições e plebiscitos para justificar seus regimes políticas dos “pais fundadores”, mas de suas posições econômicas
autoritários). Nada disso parece abalar ou mudar convicções e interesses materiais; ou, mais adiante, Maurice Dobb, que
arraigadas, o que denota mais um problema psicológico do que tentou explicar a transição do feudalismo ao capitalismo, na
propriamente uma reflexão embasada nos dados da realidade, Europa, com base quase que inteiramente no modelo marxista
enfim, aquilo que Raymond Aron chamou, já em 1955, de “ópio da transição, caminho interpretativo seguido também por outros
dos intelectuais”; parece que, apesar de tudo o que se passou, a historiadores marxistas ingleses, como Edward Thompson
droga continua eficaz. (The Making of the English Working Class, 1963) ou Eric J.
Marxistas acadêmicos são aqueles que, com base nos Hobsbawm, autor de muitas sínteses históricas abordando
conceitos fundamentais do pensamento marxiano, estariam em desde os primórdios da revolução industrial até o capitalismo
condições de oferecer análises fundamentadas e originais sobre e o imperialismo modernos, que ainda fazem sucesso entre os
as questões mais relevantes de seu tempo e de suas sociedades, acadêmicos. Na tradição americana, relativamente distante dos
retomando, com certo rigor analítico, a tradição das grandes modismos europeus, alguns se distinguiram no marxismo de boa
sínteses interpretativas que Marx operou, depois de muito estudo qualidade, como Paul Sweezy (e seus estudos sobre o capitalismo
e muita pesquisa — e alguma liberdade imaginativa também —, monopolista), Wright Mills (análises sobre a estrutura de classes
americana), ou ainda Immanuel Wallerstein e o europeu André
43 Critiquei a inexplicável e a indesculpável cegueira dos amigos brasileiros de uma Gunder Frank, com trabalhos históricos de largo escopo sobre
das mais antigas, e mais resistentes, ditaduras do planeta neste artigo: “A História o desenvolvimento da economia do sistema-mundo (modelo
não o Absolverá: Fidel Castro e seus amigos brasileiros: um caso de renúncia à analítico que seduziu sociólogos históricos como Giovanni
inteligência?”, Espaço Acadêmico, ano 6, nº 64, setembro 2006. Voltei ao assunto da
revolução cubana, e aos mitos sobre ela entretidos, num ensaio da série “Falácias Arrighi).
Acadêmicas”, sobre o mito da Revolução Cubana (ver referência na nota 41).

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

O que se observa, no Brasil, é, mais usualmente, a tribo Florestan Fernandes, por exemplo. Os dois primeiros, contudo,
dos “marquissistas”, os papagaios de pirata, acadêmicos sem não podem ser considerados como produtos ou expoentes da
pesquisa e sem análises contextualizadas — menos ainda academia brasileira, tendo se formado e desempenhado suas
baseadas em dados econômicos reais ou em observação direta funções à margem do establishment universitário (muito embora,
da realidade —, que ficam repetindo slogans a partir de algumas por suas obras e posturas, eles influenciaram poderosamente
frases conhecidas ou de alguns conceitos mais utilizados pelos a produção naquele ambiente). Mesmo alguns filósofos e
epígonos, pessoas que leram superficialmente os clássicos do sociólogos uspianos — os mais identificados com a corrente —
marxismo — possivelmente em edições resumidas ou adaptadas, não chegaram propriamente a constituir uma “escola marxista”,
a partir de Althusser ou de Martha Harnecker, por exemplo já que divididos em orientações diversas e voltados a pesquisas
— e que se dedicam a vulgarizar ainda mais o que já era uma com outras tonalidades (inclusive nas vertentes clássicas da
aplicação superficial, geralmente equivocada, dos problemas sociologia weberiana ou francesa). A corrente mais conhecida
políticos e sociais. nesse universo, a chamada “escola paulista de sociologia”, não
A partir de uma salada de conceitos — mais frequentemente pode ser chamada exatamente de “clube marxista”. Seu expoente
frases soltas — eles praticam uma apresentação — que sequer mais visível e conhecido, o sociólogo Florestan Fernandes,
merece o nome de análise — claramente falaciosa dessas questões esteve primeiro vinculado a correntes funcionalista de análise
— quando não de questões de outras realidades sociais — com sociológica para só depois de 1964 impregnar seus escritos de
o uso repetido de um verniz tênue dos conceitos arquetípicos laivos marxistas que se convertem mais em invectivas contra
do marxismo. Eu consigo classificar nessa categoria vários a “ordem burguesa” do que constituem análises objetivas da
exemplos da espécie, o que vou, contudo, eximir-me de fazer realidade brasileira.45
neste ensaio, que se pretende uma crítica geral de um tipo de O que restou, finalmente, do marxismo brasileiro depois
comportamento, não um libelo acusatório contra pessoas em que os grande mestres se foram e os existentes já não aderem
particular, que de resto reagiriam com as acusações e até mesmo mais aos preceitos do culto? Infelizmente para o itinerário
os impropérios conhecidos em “debates” deste tipo.44 do “marxismo brasileiro” (desta vez entre aspas), ficaram
A academia brasileira, no entanto, já produziu marxistas os acadêmicos mais incultos, no mais das vezes desligados
de qualidade, embora os mais conhecidos, justamente, não dos requisitos da pesquisa séria — ou seja, dotada de algum
frequentaram as universidades na condição de professores — embasamento empírico —, pouco afeitos ao raciocínio lógico
como Nelson Werneck Sodré ou Caio Prado Júnior —, usualmente e menos ainda à análise econômica, e que realizam uma
situados ao lado de outros tipicamente acadêmicos, como assemblagem heteróclita de frases desconexas, retiradas aqui
e ali de alguns textos mais conhecidos (raramente lidos no
44 Eu mesmo já enfrentei algumas experiências desse tipo, a partir da publicação original, ou com base em edições críticas (como aquelas do tipo
de um artigo, “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham de Maximilien Rubel na Pléiade ou de outros exegetas da área).
seu desenvolvimento”, publicado originalmente no periódico esquerdista Espaço
Acadêmico (n. 47, abril 2005), objeto de muitos ataques, o me obrigou a responder
com outro: “Manifesto Comunista, ou quase...: dedicado a “marquissistas” à beira 45 Analisei a obra de Caio Prado Jr., de Nelson Werneck Sodré e de Florestan
de um ataque de nervos”. Fernandes em ensaio disponível neste volume.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

As tarefas a que se dedicam mais comumente os “repetidores” valor”? Eu desconfio vagamente de quais sejam as ameaças
são justamente as de um “copy and paste” rudimentar, a repetição terríveis que pairam sobre nós, anunciadas por esse autor não
cansativa de alguns chavões de aparente filiação marxista e que identificado, mas a exata compreensão do que ele quis exatamente
estão no centro do foi aqui designado por “modo repetitivo dizer não tem mesmo nenhuma importância. Para os fins que
de produção”, uma contrafação do que seria um verdadeiro são os nossos — que não são, exatamente, o de fazer a exegese
empreendimento marxista digno desse conceito. desse “marquissismo de opereta” —, basta tentar entender
como chegamos a esse estado de coisas, a todos os títulos
4.3. As forças produtivas do modo repetitivo lamentável, na academia brasileira. Quem são, finalmente, os
motores intelectuais — se o adjetivo não é exagerado — desse
Veja, caro leitor, se você consegue compreender o que está vasto empreendimento de mistificação ideológica e como seus
escrito neste trecho transcrito abaixo: representantes exercem esse papel pouco dignos de professores
da vertente Groucho?
Deste modo, o capitalismo global como capitalismo Essas locomotivas autoproclamadas do processo histórico
manipulatório nas condições da vigência plena do fetichismo determinista estão representadas, geralmente, por professores
da mercadoria, expõe uma contradição crucial entre, por universitários das ciências sociais — ou seja, das faculdades de
um lado, a universalização da condição de proletariedade e, humanidades, num sentido lato —, uma espécie auto-reproduzida
por outro lado, a obstaculização efetiva — social, política e
e auto-reprodutora, que se alimenta de seus próprios textos e
ideológica - da consciência de classe de homens e mulheres
que vivem da venda de sua força de trabalho. discursos — e também de algumas propostas organizativas
—, com uma outra consulta fugidia aos cânones originais do
Não entendeu? Não é grave. Eu também não entendi o pensamento marxista (de vez em quando é preciso legitimar o
que o autor pretendeu dizer com a tal de “proletariedade” nas que se vê transcrito acima). Mas poucos, hoje em dia, vão aos
condições de “fetichismo da mercadoria” (que era um fetiche textos originais, com a ansiedade com que os “velhos” marxistas
do jovem Marx, ainda semi-hegeliano quando escreveu isso), iam, meio século atrás, às fontes do saber científico: as obras
obra de um perverso “capitalismo manipulatório” (acho que escolhidas de Marx e Engels, alguns volumes das obras completas
esse não tem nada a ver com o pobre Marx). Tentemos agora a de Lênin, textos filosóficos e de vulgarização de mestres
sua capacidade de compreensão com este outro trecho: insuperáveis. Eles se contentam agora com alguns pastiches
mal traduzidos e mal costurados, onde se sobressaem os nomes
Entretanto, ao invés de prenunciar a catástrofe final do capi- de alguns discípulos pouco conhecidos e outros vulgarizadores
talismo mundial, a crise estrutural do capital prenuncia, pelo que já saíram de moda (mas que ainda são citados porque é o
contrário, uma nova dinâmica sócio-reprodutiva do sistema que existe em bibliotecas mal atualizadas).
produtor de mercadorias baseado na produção crítica de valor. Não é preciso citar aqui os nomes desses expoentes
mais em voga nos nossos museus de cera do marxismo vulgar,
Continua sem entender? Experimentou reler? Você não embora seja possível encontrar vários deles nas estantes, ou até
faz a mínima ideia que raios quer dizer “produção crítica de em congressos acadêmicos alimentados com dinheiro público,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

o que poderia até gerar algum convite a duelo contra o autor capacitação profissional dessas diversas camadas de proletários
destas linhas. Pode-se ficar, simplesmente, em duelos virtuais a e burgueses, dos trabalhadores dos serviços — aliás, um setor
partir de uma consulta aos folhetins que circulam nesses meios considerado improdutivo por Marx — pois o que importa é
do “marxismo redivivo”, especialmente ativo, como mencionado afirmar sempre o primado da luta de classes e a inevitabilidade
nos departamentos de humanidades das universidades públicas. de um confronto final entre elas. Tampouco importa saber que
Sua força de persuasão é, contudo, enorme, na medida em que a noção de “classe dominante” recobre uma realidade difusa,
são responsáveis pela produção dos mestres que se disseminam feita de uma mistura de elites tradicionais, novas lideranças
depois por todos os estabelecimentos, públicos e privados, de industriais e dos serviços dinâmicos, latifundiários rentistas e
ensino. capitalistas agrários inseridos no comércio internacional, assim
Eles dispõem de uma audiência cativa: alunos submetidos à como representantes daquilo que os marxistas de antigamente
ditadura acadêmica do titular da disciplina, que são obrigados a ler chamavam de capitalismo financeiro monopolista; importa
os materiais insossos que lhes são repetitivamente recomendados menos ainda saber que a tal de vanguarda revolucionária não
— não é difícil citar os nomes mais frequentes nessa bibliografia seja mais composta de batalhões proletários e de pequenos
ambulante —, e que não desfrutam, os alunos, da faculdade de burgueses em ruptura com a velha ordem carcomida, e sim
desafiar intelectualmente a retórica vazia que lhes é servida de de uma minúscula fração de funcionários públicos (menos
forma recorrente já que paira sobre eles a espada ameaçadora na França, claro, onde ela é maiúscula), muitos encastelados
da condenação política e da avaliação redutora. A verdade é em empregos universitários, ou no aparato de Estado (enfim
que as “forças produtivas” do marxismo vulgar no Brasil nem conquistado), no mais das vezes ocupados em garantir apenas a
são tão produtivas assim: eles apenas aproveitam o molde reprodução de suas próprias “forças produtivas” (com dinheiro
formal do marxismo original para a partir daí construir, com público, obviamente).
as ferramentas de uma outra época e de outros lugares, suas Para quê e por que se preocupar em reproduzir a realidade
propostas e argumentos opinativos falsamente revolucionários, corrente, feita de muitos números, estatísticas complicadas,
em nome de uma utópica sociedade socialista. Não que não dados monetários confusos, relações complexas entre tantos
possa existir uma sociedade socialista, mas a que vem servida agentes econômicos interconectados, quando belas histórias
não corresponde a nada do que se conheceu no passado, nem podem ser contadas, bastando encontrar aquela frase de efeito
vem explicitada na sua sonhada arquitetura futura: são conceitos genial do velho Marx, condenando as patifarias do parlamento
vazios, nada mais. burguês e o complô sinistro dos banqueiros e especuladores?
O que menos importa aos representantes do “modo Não cabe aqui reproduzir as tiradas recriminatórias de Marx
repetitivo de produção” são os dados concretos, aferíveis e sobre a “idiotice da vida rural”, já que os camponeses sem terra
verificáveis, dos personagens que eles pretendem descrever são os aliados objetivos da causa. Para quê se dedicar a pesquisas
em suas perorações: trabalhadores, burgueses, especuladores ingentes, preparar aulas inovadoras, quando os estudantes
e tutti quanti frequentam suas diatribes em classe e nos textos estão condenados à repetição esperada das mesmas velhas
postados na internet. Não é preciso saber o perfil exato, a ideias esclerosadas, sem ter condições de reagir à altura ou de
composição social e a inserção produtiva, os níveis de renda e a se revoltar contra as novas idiotices pasteurizadas?

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

4.4. As relações de produção do modo repetitivo ensaio “Politics and the English Language”.47 Numa vertente
tipicamente acadêmica, veio a ser novamente exposto e dissecado
O que seria, então, esse “modo repetitivo de produção criticamente na famosa denúncia feita por Alan Sokal e Jean
acadêmica” que consiste em, como diz a expressão, retomar Bricmont contra intelectuais franceses e americanos do gênero
e repetir, mas fora do contexto, os conceitos mais comuns de desconstrucionista, que praticam uma língua franca feita de
um marxismo pasteurizado? Ele consiste, precisamente, numa pastiches aparentemente eruditos (apoiados em alguns autores
operação de assemblagem de frases soltas e vazias sobre todas consagrados do mundo científico), mas que se revelam, ao fim
e quaisquer coisas, geralmente condenatórias do capitalismo e ao cabo, um total “non sense”.48
(jamais do socialismo) e, portanto, altamente simbólicas de uma Pode-se, assim, dizer que os “marquissistas” brasileiros
escola vulgar que foi retirada de uma costela (talvez quebrada) são os reis do pastiche e os campeões do “non sense”, já que
do corpo já alquebrado do marxismo. Esse modo repetitivo de eles também costumam “desconstruir” Marx para rechear sua
produção não chega propriamente a ser um “pensamento”, já logorréia de invectivas anticapitalistas, contra a burguesia e a
que ele pratica o mimetismo e o ‘espelhismo’ conceitual no mais economia de mercado, exercício que nada mais constitui senão
alto grau de vacuidade substantiva em relação às realidades que um fluxo de palavras desordenadas, um ajuntamento de perfeitos
ele pretenderia supostamente analisar. Tudo se passa como se clichês, segundo uma técnica que bem revela uma incapacidade
estivéssemos em face de uma reprodução especial — pois que de conduzir uma análise coerente da realidade, a começar
dotada do jargão típico da área — desses jogos de palavras pelo fato de o mercado tão condenado ser o mesmo que gera
que consistem em acoplar substantivos e adjetivos genéricos, riquezas das quais resultam salários e prebendas provavelmente
intercambiáveis, e que podem ser reagrupados de diversas formas imerecidos (mas não reconhecidos como tais).
e nas mais diferentes direções, para compor esses discursos E quais seriam as “realidades” do nosso mundo imperfeito
laudatórios que podem servir a qualquer ocasião, ou a qualquer que eles pretendem julgar e geralmente condenar? São — sem
tipo de temática.46 nenhuma ordem, pois isso não tem a mínima importância
Esse tipo de logorreia vazia é um exercício que já tinha nesse tipo de exercício pueril — a luta de classes no Brasil; a
sido denunciado, desde 1948, por George Orwell, em seu famoso crise terminal do capitalismo, infelizmente sempre adiada, para
desespero dos mais apressados; a dominação imperialista sobre
46 Não é difícil encontrar, na internet, diversos programas, sobretudo em inglês, que uma sociedade dependente como a nossa, e por extensão de
praticam esse tipo de assemblagem de palavras genéricas para a construção de
discursos empolados, que recebem a designação geral de “foggy programs”. Noam toda a América Latina e o chamado terceiro mundo, ou mais
Chomsky, um típico acadêmico enganosamente prolixo, famoso por suas frases
vazias e falsamente progressistas (já que sempre condenatórias do capitalismo 47 Esse famoso ensaio pode ser lido no original, na internet; em Português encontra-se
e do imperialismo americano), está situado bem no centro dessa tradição de nesta coleção de escritos: George Orwell, Porque escrevo e outros ensaios. Lisboa:
“repetidores” supostamente marxistas; ele já mereceu um inteiro programa Antígona, 2008.
dedicado a montar discursos com base em frases sem sentido (anteriormente 48 Ver, de Alan Sokal e Jean Bricmont, Impostures Intellectuelles (Paris: Odile Jacob,
localizado no seguinte link: http://en.wikipedia.org/wiki/Chomskybot, atualmente 1997); em inglês: Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science
substituído por um equivalente genérico (link: https://en.wikipedia.org/wiki/ (New York: Picador USA, 1998); no Brasil foi publicado como: Imposturas
Parody_generator). Para um exemplo em Português, entre muitos outros, ver Intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. 3a. ed.; Rio de Janeiro,
este site: http://www.lerolero.com/ . Record, 2006.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

exatamente, a periferia; a aliança objetiva entre a burguesia A burguesia, evidentemente, e o latifúndio e o imperialismo,
industrial, os banqueiros e o latifúndio (conceito quase fora de claro, mas isso seria resolvido no terreno da práxis, pela luta
moda, atualmente, pelo virtual desaparecimento da categoria), revolucionária do proletariado (e sua vanguarda acadêmica,
sempre com o apoio do imperialismo (americano, por certo, alguns ainda por aí).
mas sobra para os europeus, também), até chegar no nec plus Tudo isso parece muito Terceira Internacional, eu sei,
ultra dessas análises superficiais: o avanço da consciência de mas existem ainda alguns da velha geração que continuam
classe do proletariado industrial que, sob a liderança esclarecida a escrever nesse estilo gótico de meio século atrás (eles são,
do partido da vanguarda — eventualmente em aliança com o sobretudo, próximos do PCdoB e seitas assemelhadas). Quanto
campesinato, que para isso deixou de ser idiota —, conduziria aos mais jovens, alguns já elegeram, marcusianamente (se
o conjunto da sociedade a uma situação de ruptura com a é verdade que ainda se lê esse tipo de coisa, atualmente), os
velha ordem burguesa, inaugurando assim a construção da setores marginais, geralmente adolescentes, para a condição
sociedade socialista, inerentemente igualitária, justa, baseada de novos revolucionários aguerridos das atuais rupturas, num
na propriedade coletiva dos meios de produção, numa nova estilo certamente diferente dos velhos marxistas do passado:
organização social e política dominada pelo planejamento ecologistas (também conhecidos como ambientalistas, mas
centralizado do Estado, o instrumento (temporariamente) geralmente sem formação científica adequada), humanitaristas,
redentor e abolidor da exploração do homem pelo homem, que antiglobalizadores, enfim, uma fauna variada de batalhadores
deixaria de existir na futura sociedade comunista. Tudo isso, das causas nobres, que coincidem entre si apenas em sua virtual
claro, passando pelo desmantelamento do Estado burguês e oposição à economia de mercado e às empresas multinacionais
da sua democracia formal, e a emergência e a consolidação de (que são as mesmas que lhes dão as ferramentas — celulares,
uma democracia de massas — participativa, ou direta, como computadores, blogs e sistemas gratuitos de comunicação e de
proposta pelo socialismo do século XXI, que apresenta bizarras informação — pelas quais eles se organizam e se comunicam,
semelhanças com o fascismo — que pode eventualmente com bastante sucesso, aliás, pelo menos midiático).
redundar na ditadura do proletariado (uma noção herdada de O que dizer, então, daqueles professores que não são
Marx, mas perfeitamente leninista, menos bem acolhida hoje exatamente da antiga geração — que ainda lia Marx e os clássicos
em dia). de maneira séria — mas que agora pontificam atualmente nas
Ufa! Parece piada, mas era nisso tudo em que se acreditava academias brasileiras e latino-americanas? Eles tampouco são
piamente alguns anos (talvez décadas) atrás. Que isso ocorresse muito jovens, situação etária que explicaria (mas não justificaria)
numa época de socialismo ascensional — em sua pátria inaugural, a inconsciência, a ingenuidade ou a ignorância beata de muitos
na finada União Soviética, e no novo farol da luta de classes, a dos recrutas das causas equivocadas que eles defendem. Pode-
China de Mao — não era finalmente tão estranho, pois se estava se dizer que os mais jovens constituem a massa de manobra de
caminhando, a despeito de todos os percalços — a resistência alguns velhos espertos — não preciso lembrar os nomes, pois
dos capitalistas, a ofensiva imperialista, aquelas coisas perversas eles estavam em todos os encontros do Foro Social Mundial —
—, no sentido determinado pela teoria científica materialista. que atuam com a audiência que lhes restou, pois não desfrutam
Se a História estava conosco, quem poderia ser contra nós? — se alguma vez desfrutaram — de qualquer respeitabilidade

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

acadêmica, ou exibem uma “produção” que é basicamente comércio Norte-Sul de tempos antigos). A palavra crise não só
jornalística, sem maior profundidade. é uma constante, como constitui verdadeira obsessão, a ponto
Os representantes principais da espécie, no Brasil, são de legitimar a pergunta sobre algum abuso conceitual: de crise
aqueles que esposam ideias que tinham curso em certas em crise, das crônicas às terminais, a sociedade burguesa e a
épocas, mas que se tornaram anacrônicas atualmente, e que economia capitalista vêm resistindo bravamente nos últimos
não veem nenhum problema em continuar defendendo-as, dois séculos e meio (um pouco menos no Brasil). Quanto ao
independentemente de todas as astúcias e surpresas da história, conceito de capitalismo, pode-se contar com ele em pelo menos
que não se cansa de desmentir cabalmente seus projetos 120% dos casos, inevitavelmente vinculado as qualificações
cientificamente pré-determinados e suas previsões catastróficas. esperadas: dominação, exploração, superexploração, agravamento
das condições de trabalho, produtor de desigualdades, de
4.5. As contradições insanáveis desemprego, de pobreza, de opressão cultural, de machismo,
quem sabe até fome e miséria.
Do que exatamente se ocupam as “forças produtivas” de O curioso — mas isso não vem explicado nos textos dos
marquissismo vulgar, que se apoiam metodologicamente em suas repetitivos — é que uma minoria de capitalistas vem conseguindo
“relações de produção” conceituais para produzir uma repetição resistir, nos últimos 200 ou 300 anos, a tanta gente explorada,
interminável de lugares comuns travestidas numa terminologia às massas famélicas (bem, nem tão famélicas assim), enfim,
supostamente marxista? Quais são os problemas, os processos, as às amplas camadas de trabalhadores assalariados que estão
contradições estruturais, os conflitos sistêmicos e as tendências invariavelmente e naturalmente em oposição à dominação e
determinísticas que mobilizam a atenção, concentram os esforços, a exploração da classe dominante, sobretudo se essas massas
agitam o cérebro dos nossos bravos combatentes das boas causas, são animadas e conscientizadas por esses que fazem parte das
opositores da ideologia burguesa e da dominação das elites “forças produtivas”.
dirigentes? Sendo breve, é isso mesmo que está descrito acima, O cenário descrito em seus escritos é sempre dantesco,
com destaque para alguns temas e problemas, que aprecem feito de aumento das contradições (de classe, nacionais, entre
invariavelmente em seus textos, arengas e palavras de ordem. países, etc.), de agravamento da exploração (da burguesia, do
A burguesia, obviamente, é freguesa habitual, já que ela é imperialismo, etc.), de crises agudas, de crises larvares, sistêmicas,
a componente mais importante das elites, mesmo se atentarmos fatais ou finais, tudo isso como resultado das contradições
para o fato de que a burguesia que aparece nos textos de Marx não insanáveis do capitalismo. Mais curioso ainda é constatar como
tem absolutamente nada a ver com seu equivalente tupiniquim o capitalismo está sempre sendo corroído por essas mazelas
ou latino-americano. Existe também o imperialismo — por certo, terríveis e, ainda assim, consegue se manter de pé, aliás triunfante,
bastante diferente do imperialismo europeu colonialista que ao passo que o socialismo, que teria conseguido teoricamente
existia nos tempos de Marx — em suas diversas variantes, mas superar essas contradições, tenha praticamente desaparecido da
quando o conceito aparece sozinho, ele representa o imperialismo face da terra, sobrevivendo apenas em dois lugares miseráveis
americano em 99% dos casos (nada a ver, obviamente, com a situados nas antípodas de dois continentes decisivamente
estratégia atual da China, que ocupa espaços e reproduz o velho engajados nos fluxos de mercado, e colados aos centros mais

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

dinâmicos da economia capitalista. Curioso, também, que não que os repetitivos continuam a insistir em teses patéticas como a
existe nenhuma linha, pelo menos dos repetitivos, que se dedique que alerta para os perigos de sua própria situação, aparentemente
a explorar essas contradições socialistas e a crise terminal do ameaçados por um fantasmagórico processo de “mercantilização
modo de produção socialista. Trata-se de uma imperdoável do conhecimento produzido nas universidades”, quando eles
lacuna analítica, mas que já poderia ter sido remediada meio constituem a prova viva de que as universidades continuam a
século atrás. mergulhar na insanidade repetitiva de suas análises alienadas?
Com efeito, se os repetitivos se dedicassem à leitura de Quando é que os estudantes vão se libertar dos grilhões
algo mais do que pastiches de Marx, poderiam ter descoberto que os prendem a essas múmias do marxismo deformado, a
verdades elementares muito tempo atrás. O mesmo Raymond esses dinossauros de eras geológicas passadas, já soterradas por
Aron, em trabalhos dos anos 1950, já tinha constatado que décadas de conhecimento acumulado sobre o funcionamento das
o conceito marxista de mais-valia — que constitui o núcleo economias de mercado? Talvez não aconteça muito rapidamente,
central do modelo analítico dos que aderem ao “modo de nem, conhecendo-se a universidade brasileira, no futuro de
produção repetitivo” — não é nem materializável, na prática, médio prazo. É pena: a universidade brasileira, não toda ela, mas
nem operacional; em outros termos, ele não pode nem ser várias faculdades de humanidades, vão continuar sua trajetória
medido, nem integrado a equações operacionais de micro ou de para a decadência intelectual junto com seus promotores
macroeconomia. Nenhum economista sério conseguiu, jamais, repetitivos; um dia ela se regenerará, mas vai durar um pouco
partir da “economia marxista” — se existe algo do gênero — para para que isso aconteça. Enquanto isso não ocorre, as falácias
construir uma explicação das realidades econômicas do mundo acadêmicas vão continuar se acumulando repetitivamente, se
como ele é, como tampouco servir-se dela para construir uma ouso repetir. Nada ruim para um colecionador de falácias como
“economia socialista” (como aliás já tinha constatado Ludwig Von este que aqui escreve: trata-se de uma garantia de que não faltará
Mises desde 1920, em seu panfleto sobre o cálculo econômico matéria-prima para vários ensaios do gênero no futuro previsível.
no socialismo).
Nenhuma das contradições insanáveis do capitalismo
materializou-se em qualquer época no seguimento da análise Referências bibliográficas
contida nos trabalhos de Marx: nunca houve algo parecido com a
Almeida, Paulo Roberto. Falácias Acadêmicas (link para o conjunto de
“baixa tendencial da taxa de lucro”, que seria provocada por esse
artigos: https://www.academia.edu/38521549/Falacias_Academicas_
processo metafísico que se chama “redução do capital variável
um_livro_incompleto_2010_).
na composição orgânica do capital”. Não se conhece economia
capitalista consolidada que tenha provocado “pauperização ———. “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo
das massas”, e não foi por “exploração da periferia” das análises prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas”,
Espaço Acadêmico (106, março 2010; link: http://periodicos.uem.br/
leninistas e luxemburguianas. Por que os repetitivos nunca se
ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321).
atacaram aos ridículos argumentos de Louis Althusser ou de
Jean-Paul Sartre, sobre as “estruturas de dominação” do capital e Aron, Raymond. Le Marxisme de Marx. Paris: Fallois, 2002.
sobre o “horizonte insuperável do marxismo”? Inversamente, por ———. Mémoires. Paris: Julliard, 1983.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

———. D’une Sainte Famille a l’autre: essai sur le marxisme imaginaire.


Paris: Gallimard, 1969.
———: L’Opium des intellectuels. Paris: Calmann-Lévy, 1955.
Beard, Charles A. An Economic Interpretation of the Constitution.
New York: Macmillan, 1960 [ed. orig.: 1913].
Dobb, Maurice: Studies in the Development of Capitalism. London:
George Routledge and Sons, 1946.
Orwell, George. Porque escrevo e outros ensaios. Lisboa: Antígona, 2008.
Sokal, Alan D.; Bricmont, Jean. Impostures Intellectuelles. Paris: Odile
Jacob, 1997. Capítulo 5
———. Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science.
New York: Picador USA, 1998.
———. Imposturas Intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos
pós-modernos. 3a. ed.; Rio de Janeiro, Record, 2006. O Fim da História ,
de Fukuyama: o que ficou?

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

5.1. O que restou, finalmente, da tese controversa


de Fukuyama?

N
o verão de 1989, a revista americana National Interest
publicava um ensaio teórico — mais exatamente de
filosofia da História — do intelectual nipo-americano
Francis Fukuyama sobre os sinais — até então simplesmente
anunciadores — do fim da Guerra Fria, cujo título estava
destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso:
“The End of History?”.49 Três décadas depois, em vista das
muitas críticas feitas naquela conjuntura — e ainda hoje — às
principais teses do autor, vale a pena retomar seus principais
argumentos e verificar se eles ainda conservam alguma validade
para nossos tempos, que poderiam ser considerados como de
pós-Guerra Fria, mas que alguns interpretam, ou consideram
efetivamente, como de volta à Guerra Fria, ainda que sob novas
modalidades (com uma Rússia singularmente diminuída e
uma China apontada como novo contendor estratégico dos
Estados Unidos).
Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear
desses argumentos, qualquer que seja sua validade relativa
ou absoluta para o tema que nos interessa — qual seja, o da
natureza das opções abertas aos países em termos de reforma e
desenvolvimento paralelos do sistema econômico e do regime
político, que Fukuyama identificava com a redução dessas
opções à democracia de mercado — cabe chamar a atenção para
uma peculiaridade geralmente descurada no debate anterior

49 Ver Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest, Summer
1989, p. 3-18, bem como seu livro sobre a questão: The End of History and the
Last Man. New York: Free Press, 1992.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

(e talvez atual) sobre a validade das teses de Fukuyama, sobretudo seja o do triunfo inquestionável — an unabashed victory, nas
por aqueles que recusavam, in limine, a essência mesma do palavras de Fukuyama — do sistema liberal ocidental. Segun-
argumento do autor. Esta peculiaridade tem a ver, basicamente, do ele, tratava-se de um triunfo da “ideia ocidental”, tornada
com um simples sinal diacrítico: o ponto de interrogação ao evidente pela exaustão das alternativas viáveis ao liberalismo
final do título, geralmente ignorado pelos críticos das teses de ocidental. Esse triunfo era mostrado, em primeiro lugar, pela
Fukuyama, e provavelmente também por aqueles que apoiam, disseminação da cultura consumista ocidental nos dois países
em grande medida, o sentido dos seus argumentos. Ou seja, mais importantes do ‘mundo alternativo’, a China e a União
Fukuyama não fazia uma afirmação peremptória, mas levantava Soviética (cabe registrar, imediatamente, que em nenhum mo-
uma hipótese, a do final presumido da história, numa análise mento de sua análise, Fukuyama esperava a dissolução imediata
de corte essencialmente conceitual, ainda que fortemente do regime monocrático e o rápido desaparecimento do próprio
embasada nos fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma império soviético). Como ele mesmo observou logo ao início
sentença de caráter terminativo, indicando um “congelamento” do artigo, “a vitória do liberalismo ocorreu primariamente no
das formas possíveis de organização social, econômica e domínio das ideias, ou da consciência, e é ainda incompleta no
política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver mundo real ou material”.
com a possibilidade de alternativas credíveis às democracias Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama,
liberais de mercado, ponto. “há razões poderosas para acreditar que é essa ideia que irá
O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de governar o mundo real no longo prazo” (ênfase original).
desmantelar boa parte das críticas superficiais, embora ele não Se aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o
elimine uma discussão responsável sobre a essência de sua tese, qual, a longo prazo, todos estaremos mortos, essa afirmação
que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. do cientista político americano o deixa inteiramente à
A tese — vale a pena resumir desde o início — tem a ver com o vontade para acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos
caráter incontornável da democracia de mercado como sendo e econômicos imediatos e de médio prazo, retirando sua
uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa época’, como responsabilidade sobre a validade de sua tese na perspectiva
poderia argumentar — mas a propósito do marxismo — Jean do cenário de curto prazo. Esse fato pode transformar sua
Paul Sartre, um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da tese principal no equivalente acadêmico dessas previsões de
tese original de Hegel, através de Alexandre Kojève. cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido
a realização de seus exercícios de futurologia amadora, mas
5.2. O que Fukuyama de fato escreveu? caberia aceitar, em princípio, as premissas de Fukuyama como
uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia
A tese principal era a de que, após um século de emergên- rigorosa.
cia e declínio dos regimes fascistas e comunistas, de enormes Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma dis-
turbulências políticas e de crises econômicas, de contestação cussão em torno das questões teóricas relativas à natureza da
intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte mudança histórica, processo que ele remonta a Hegel e Marx,
ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

história universal.50 O fim da história, na concepção hegeliana do mundo real, fechando assim o ciclo de realização da ideia
(tal como interpretada por Kojève), estava identificado com universal.51
a afirmação dos princípios do direito universal à liberdade e A consequência prática dessa concepção seria a de que,
da legitimação de um sistema de governo apenas com o con- posto que as democracias de mercado provaram sua capacidade
sentimento e a aprovação explícita dos governados, o que foi de não apenas resistir aos desafios colocados por crises econô-
chamado de “Estado homogêneo universal”. Uma vez que todas micas e por guerras devastadoras, mas também de atender aos
as contradições anteriores já teriam sido resolvidas com a acei- requerimentos suscetíveis de trazer prosperidade e riqueza a
tação e por meio do estabelecimento desse Estado — e como, todos os países que aderiram a seus princípios organizadores,
para Hegel, o mundo real deveria corresponder ao mundo ideal, elas estavam habilitadas a cumprir seu mandato hegeliano de
pelo menos aquele que figurava na cabeça do filósofo —, então realizar o ‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um
não existiriam mais espaços para conflitos de maior escopo em ciclo completo da história. À pergunta — sempre o ponto de
torno da organização política desse Estado, restando apenas interrogação — de saber se chegamos ao fim da história, deve-se
encaminhar e resolver os pequenos problemas da atividade agregar esta outra, sobre se existem contradições tão fundamen-
econômica e da política corrente. O mundo se converteria, en- tais na vida humana que não possam ser encaminhadas através
tão, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econô-
de Engels para representar a situação das sociedades humanas mica que não o liberalismo moderno de mercado. Não se trata
na fase pós-socialista, quando supostamente já não mais exis- de saber o que pode ocorrer, em termos práticos, na Albânia
tiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação política ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos
sobre os homens. de ‘herança ideológica comum da humanidade’.
Obviamente, Hegel não era tão simplista como a expo- Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do
sição acima poderia sugerir, sobretudo com esse ‘idealismo século XX, foram dois os desafios mais importantes ao libera-
filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo real. Para o lismo político e econômico: o fascismo e o comunismo. Ambos
filósofo alemão — mais especificamente prussiano, talvez —, poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de
as contradições existentes no mundo real se formam a partir de regimes anti- ou i-liberais, no terreno político, e sob o concei-
um conflito de ideias, ou seja, de diferentes concepções sobre to de sistemas coletivistas no domínio econômico (embora o
como deveria ser organizado o mundo real da política e da comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido muito mais
economia. As distinções entre um mundo e outro seriam ape- ‘coletivista’ do que o fascismo). Tendo este último sido enter-
nas aparentes, posto que as ideias que encontravam abrigo na rado sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, restava o
consciência dos homens acabariam por se tornar necessidades comunismo, que, no momento em que Fukuyama redigia seu

50 Hegel não foi o primeiro, em termos absolutos; antes dele, filósofos escoceses (como 51 Marx inverteu esse processo, como se sabe, mas apenas para converter o socialismo
Ferguson) e franceses (como Condorcet) já tinham debatido a ideia do progresso na realização necessária, em última instância, da ideia universal, uma espécie de
da civilização, muitas vezes numa perspectiva linear, seguindo a flecha do tempo; fatalismo pelo lado da sucessão inevitável dos ‘modos de produção’, um conceito
mas foi Hegel quem deu à ideia de progresso um sentido de necessidade histórica, que ele cunhou e que ainda hoje é usado por discípulos, de modo geral, mas
que o fez situar-se no centro da evolução possível das sociedades humanas. também por opositores dos próprios sistemas hegeliano e marxista.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

panfleto hegeliano, ainda não tinha sido enterrado de vez. Essa que aparece como a base da vida econômica nos manuais
recordação é importante: afinal de contas, na segunda metade de economia.”
de 1988 e o início de 1989, quando Fukuyama redigiu seu ensaio Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra
especulativo, Gorbachev ainda se debatia para implementar em seguida Fukuyama, é essa mesma escola do materialismo
sua glasnost e sua perestroika, destinadas, como se sabe, não a determinista de Wall Street Journal que aponta para os notáveis
enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como
em seu funcionamento efetivo, de maneira que a nova NEP sob uma evidência da viabilidade da economia de mercados livres,
o comando de um reformista do Partido Comunista pudesse com a implicação decorrente de que todas as sociedades poderiam
assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro conhecer desenvolvimentos similares se elas simplesmente
lado, a China de Deng Xiaoping exibia, naquela conjuntura, deixassem as pessoas perseguirem livremente seus interesses
apenas 20% de sistema de mercado como locus da produção materiais. O próprio Fukuyama aponta para os elementos
global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC pretende “ideais” presentes nessa transformação e na ulterior transição
construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com do socialismo ao capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas
características chinesas”.52 fracassadas experiências do socialismo real já tinham constatado
Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os há muito tempo que o sistema simplesmente não funcionava.
maiores opositores do marxismo e das economias coletivistas Registre-se que Fukuyama escrevia antes que o socialismo
nos países ocidentais estão os ‘perfeitos materialistas’ de Wall implodisse de fato e que os chineses formalizassem sua receita
Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não original de transição do socialismo ao capitalismo, com as
deixam de ser defensores de princípios similares aos dos justificativas teóricas disponíveis, o que foi feito apenas a partir
marxistas. Como ele escreve: “A inclinação materialista do de 1991-92.
pensamento moderno é uma característica não apenas do pessoal
da Esquerda, que podem ser simpáticos ao Marxismo, mas de 5.3. Fukuyama tinha razão?
muitos antimarxistas passionais também. De fato, existe na
direita o que se poderia rotular de escola do Wall Street Journal Na terceira parte de seu ensaio, Fukuyama se pergunta se
do materialismo determinista, que relativiza a importância da atingimos, de fato, o fim da história. “Existem, em outras palavras,
ideologia e da cultura e vê o homem como sendo essencialmente quaisquer ‘contradições’ fundamentais na vida humana que não
um indivíduo racional, maximizador dos lucros. É precisamente possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e
esse tipo de indivíduo e a sua busca de incentivos materiais que poderiam ser solucionadas por uma estrutura político-
econômica alternativa? Se aceitarmos as premissas idealistas
52 Sobre essa verdadeira “contradição nos termos” — como disse Marx a propósito expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a esta questão
do sistema de Proudhon, exposto em Filosofia da Miséria, e criticado por ele em no terreno da ideologia e da consciência.” Seria verdade essa
Miséria da Filosofia (1847) —, ver meu ensaio sobre o mito do socialismo de afirmação de Fukuyama, em sua época e ainda hoje?
mercado na China, publicado originalmente em Espaço Acadêmico (ano 9, n. 101,
outubro 2009, p. 41-50; disponível: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/ A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História”, apre-
EspacoAcademico/article/view/8295/4691). sentada com um suporte hegeliano aparentemente consistente,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

é de tão fácil aceitação, do ponto de vista intelectual, quanto cidade de produzir, não mísseis nucleares, mas meias de nylon.
desprovida de maior importância explicativa, do ponto de vista Parodiando o autor da Critique de la Raison Dialectique, até se
prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece poderia adivinhar a brincadeira outre-tombe que, a propósito do
um excelente terreno de manobras para divagações ‘inocentes’ liberalismo ocidental, Aron dirigiria contra Sartre: à diferença
sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo ocidental. Quando do marxismo, ela, sim, a economia liberal de mercado, teria se
se trata, no entanto, de — parafraseando a décima-primeira tese tornado o “horizonte insuperável de nossa época”.
de Marx sobre Feuerbach — não mais “interpretar” o mundo, É altamente improvável, porém, que Aron concordasse
simplesmente, mas de “transformá-lo”, verdadeiramente, essa com a previsão de Fukuyama sobre os états d’âme associados a
nova tese ‘jovem hegeliana’ perde-se em seu próprio ‘pântano’ um liberalismo fin-de-siècle: uma clara época de tédio (a very
ideológico. sad time, prospects of centuries of boredom, como diz Fukuyama),
Em outros termos, se a História realmente aproxima-se de marcada pela preocupação quase que exclusiva com exigências
seu final filosófico — isto é, se a Razão exauriu as possibilidades materiais, sem as experiências ‘heroicas’ ou ‘excitantes’ que todo
conceituais de explicar o Real — e se a organização formal período maniqueísta sabe suscitar. Relativamente pessimista
do mundo material confunde-se com sua atual configuração — dotado de um scepticisme serein, preferiria dizer ele mesmo
histórica, isto não quer dizer que a história esteja perto de seu — no que se refere às realidades dos Estados e dos sistemas
final concreto — isto é, que o Real tenha esgotado de vez as de poder existentes, Aron não alimentaria nenhuma ilusão
possibilidades práticas de ordenar o mundo em conformidade quanto a que o alegre ‘enterro do socialismo’ operado na última
com o reino da Razão — ou que a organização material do década do século XX pudesse conduzir a uma ‘primavera das
mundo potencial esteja limitada a um determinado sistema democracias’ razoavelmente estável ou a uma versão atualizada
sócio-político. Sem dúvida alguma, muito ainda resta a ser feito da ‘paz universal’ prometida em meados do século XVIII por
para que o homem comum possa trabalhar pela manhã, pescar um prelado francês, e um pouco mais tarde pelo próprio Kant.53
na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como Em todo caso, a anarquia política característica da ordem
queria o Marx hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior interestatal contemporânea, bem como os enormes diferenciais
parte da humanidade não foi ainda advertida sobre essas novas de recursos e de poder entre os Estados, no quadro de um sistema
possibilidades de épanouissement individuel. internacional ainda fortemente hierarquizado, parecem garantir
Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente um “fim da História” bem movimentado para os atores que
correta em sua aparente simplicidade propositiva: não há mais continuarem a participar desse cenário ‘pós-socialista’. De fato,
contestação ideológica possível — de origem ‘socialista’, enten- não é credível que disputas hegemônicas e conflitos de poder
da-se bem — à hegemonia filosófica, política e econômica do
liberalismo ocidental. Este último emergiu claramente vencedor 53 Ver, a esse propósito, meu ensaio “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a
das contendas ideológicas do período de Guerra Fria; mas não guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria Celina d’Araujo
apenas ideológicas, as práticas também: com efeito, o socialismo e Samuel Alves Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas:
II Encontro da Abed. Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38 (disponível no
não foi ‘derrotado’ pelo capitalismo, de qualquer forma concreta seguinte link: https://www.academia.edu/5794498/080_Uma_paz_n%C3%A3o-
e visível, ele simplesmente implodiu pela sua absoluta incapa- kantiana_Sobre_a_paz_e_a_guerra_na_era_contempor%C3%A2nea_2009_).

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

venham a termo apenas porque a superestrutura ideológica do Numa época em os modernos ideólogos identificaram,
sistema mundial foi transformada pelo súbito desaparecimento de repetidas vezes, sinais de “fim das ideologias” (ou, agora, do
um dos seus polos, uma ‘invenção’ mal concebida de engenharia próprio “fim da História”), perde-se facilmente a visão de como
social, mais mal implementada ainda, que num certo momento o elemento ideológico influenciou a construção do mundo
fez ‘tilt’, deu dois suspiros e depois morreu, sem choro e sem vela contemporâneo. O Ocidente em geral, nos últimos setenta
(bem, ocorreram, sim, algumas lágrimas e condolências sentidas anos, e a Europa em particular, nos últimos quarenta anos,
de algumas viúvas do comunismo e de órfãos do socialismo, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais
aqui mesmo no Brasil). ameaçadora produziu o que, acertadamente, ficou identificado
Entendamo-nos bem: Aron certamente não se importaria sob o conceito de “guerra fria”. Depois de pelo menos quatro
em que os acasos da História conduzissem a Humanidade a décadas de livre circulação, essa verdadeira ameaça estratégica-
um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é, livre de uma vez ideológica parece agora ter-se finalmente encaminhado para o
por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da
ele, a superação da Machtpolitik da era bipolar não significava roca de fiar (como diria Engels).
em absoluto que as relações internacionais contemporâneas A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou
— e presumivelmente as do futuro próximo — passassem a indelevelmente toda a história da segunda metade do século XX,
ser desprovidas, mesmo num cenário multipolar, de todo e não foi, provavelmente, apenas um produto de ideologias
qualquer elemento de ‘política de poder’. A despeito da crescente conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas
afirmação do primado do direito internacional — ou seja, da e militares construídas a partir das “intenções malévolas” do
‘força da razão’ — a Machtpolitik continuaria a existir por largo concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão jamais
tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios
exercício puro e simples da ‘razão da força’. da antiguidade clássica, seja entre os Estados-nacionais da
A diferença está, provavelmente, em que, no cenário era moderna). Mais que tudo, foi a crença ideológica —
otimista traçado por Fukuyama, o desafio ideológico representado quase religiosa, podemos dizer — em uma missão histórica
pelo socialismo — the socialist alternative, em suas palavras — especificamente socialista, qual seja, a de enterrar não apenas o
simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’au- inimigo burguês, mas o próprio modo de produção capitalista,
delà) o ‘sorriso cético’ de Raymond Aron — que, todavia, nunca que exacerbou tremendamente o ‘conflito ideológico global’
reduziu o confronto interimperial a um mero enfrentamento (como diriam os generais da geopolítica), levando-o, em algumas
ideológico —, não podemos descartar, de plano, a versão ocasiões, ao limiar da escalada nuclear.
revista e melhorada por Fukuyama da tese de Bell sobre o ‘fim O afastamento da “espoleta ideológica” — a iskra leninista
das ideologias’. Para fins do argumento em espécie, isto é, para — do socialismo, antecipada pela tese sobre o “fim da História”,
a conformação de nosso ‘retorno ao futuro’ do socialismo, a significaria agora que o mundo estaria encaminhando-se,
differentia specifica representada pelo afastamento do concorrente finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra)?
ideológico pode ser funcionalmente explicativa para justificar Descartando-se a permanência dos chamados conflitos
um futuro “estado universal homogêneo” ao estilo hegeliano. regionais e das guerras locais conduzidas por motivos étnicos

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco a ver no caótico quadro político-militar da modernidade. A ‘ameaça
com o fim do desafio socialista: o abafamento das paixões bélicas socialista’ sempre foi menor do que se imaginou e poderia
nas sociedades contemporâneas é mais o resultado de mudanças mesmo ter sido simplesmente irrelevante, para todos os efeitos
substantivas na ordem econômica global do que devido a motivos práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso — os
de natureza política ou ideológica (a falência do socialismo, famosos ifs da história virtual — que costumam esconder-se nas
finalmente, não significou apenas a bancarrota de uma ideia, já mencionadas dobras da História.
mas o esboroamento de todo um ‘modo de produção’). Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento
Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu é
pelas “guerras de religião” contemporâneas (algo de que virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo,
não se pode acusar Fukuyama) nada mais significa senão ‘acidente’ histórico, desencadeado involuntariamente por um
uma racionalização filosófico-sociológica a posteriori pouco dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno
condizente com uma realidade histórica muito mais complexa à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, praticamente
que todas as vãs “filosofias da história”, mesmo em versão desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em
supostamente hegeliana. Num século marcado pelas ideologias, o sua terra natal. O voluntarismo oportunista da diplomacia do
socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor”
delas, perdendo para o fascismo em várias frentes. político na frente de guerra oriental, podendo servir a interesses
Um exame imparcial da história do período anterior militares imediatos, se transformou, porém, em cataclismo
a 1945, mostraria que não foi exatamente a oposição entre histórico de proporções inimagináveis, dando nascimento aliás
potências imperialistas, no quadro de capitalismos rivais, que ao próprio conceito de relações Leste-Oeste.
provocou o quadro de instabilidade política e militar durante Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas
a primeira metade do século XX e que precipitou os conflitos intervenções das potências ocidentais em território russo
que retirariam definitivamente da Europa as alavancas do (ou soviético) contribuíram mais para alimentar a oposição
poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma
quase “feudal” — como diria o historiador Arno Mayer54 —, suposta “luta de classes” em escala internacional. No segundo
latentes no continente europeu desde finais do século XIX, que pós-guerra, igualmente, a busca constante do rompimento
permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do do ‘cerco imperialista’ era mais ditada por considerações de
conflito ideológico global. Basta com mencionar a ação agressiva natureza estratégica (segurança militar) do que por reflexos
das novas potências da mittelEuropa para escapar ao cerco das de princípios ideológicos. Para Stalin, por exemplo, a razão de
velhas potências imperiais, ou o papel das ideologias fascistas Estado sempre teve preeminência sobre o ‘internacionalismo
do “espaço vital” e da “regeneração nacional” no entre guerras, proletário’, este último invariavelmente servindo de disfarce
para dar a exata dimensão da responsabilidade do socialismo ideológico aos interesses do Estado soviético. Exatamente por
causa da a razão de Estado, que prevalece sobre as ideologias,
54 A caracterização é do historiador Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime: não existe um “fim da história”, como o próprio Fukuyama
Europe to the Great War. London: Croom Helm, 1981; existe edição brasileira. reconhece ao final de seu ensaio.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

5.4. Do fim da História ao fim da Geografia basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas que foi
esperta o bastante para construir um sistema de dominação que
Seja qual for o destino futuro da ‘ideologia socialista’, seu transforma os novos capitalistas em seus aliados permanentes,
itinerário terá pouco a ver com o ocaso da História. Na verdade, uma vez que, como ensina Fernand Braudel, o capitalismo só
estamos assistindo, não tanto ao fim da História, quanto, mais triunfa, de verdade, quando ele se transforma em Estado, quando
propriamente, aos limites da Geografia, a partir da crescente ele é o Estado.55 Alguns observadores já chamaram esse novo
globalização dos circuitos produtivos e da interdependência sistema de “corporativismo leninista”,56 mas o nome, na verdade,
acentuada das economias desenvolvidas. O próprio Fukuyama importa menos do que a realidade tangível do novo sistema
observou que o desafio da alternativa socialista nunca esteve, chinês: esse sistema é essencialmente capitalista, mesmo se ele
realmente, no terreno das possibilidades concretas no Atlântico não é democrático e muito menos liberal, no sentido político
norte, região de capitalismos bem estabelecidos e de democracias da palavra; mas as políticas econômicas mobilizadas são, no
de mercado relativamente estáveis — com a exceção, talvez, da seu sentido básico, de corte liberal. Aliás, a partir da crise
periferia mediterrânea — e que o sucesso dessa alternativa foi, econômica mundial de 2008-2009, vários outros observadores
na verdade, sustentado por experiências em sua periferia: na se perguntaram se, depois do ‘comunismo’ chinês ter sido salvo
Ásia, na África e numa simples ilha da América Latina. pelo capitalismo, não seria ele agora, pela pujança da demanda
De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma e da produção manufatureira de alcance global, a salvar o
penetração duradoura — hoje largamente simbólica — mas é nas capitalismo. Ao que se sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu
universidades públicas da América Latina — em grande medida uma edição revista e atualizada para poder capturar esta última
medíocres em termos de produção humanística significativa ‘astúcia da Razão’, ou essa “artimanha da História”, uma ironia
— onde o marxismo esclerosado ainda consegue uma ridícula suprema que seria bem recebida por Marx, mas certamente não
sobrevivência, embora desprovido de qualquer inovação filosófica por Lênin e seguidores.
ou de melhorias significativas nas suas propostas econômicas
relevantes. Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ 5.5. Existem opções aos órfãos do socialismo?
da liderança plutocrática chinesa constitua um sobrevivência
qualquer da ideologia marxista, ou que ela represente um desafio Não é seguro que uma alternativa credível em termos
fundamental ao capitalismo real: os líderes chineses, desde Deng de sistema econômico e político se apresente nos palcos da
Xiaoping, perceberam que a sobrevivência do ‘comunismo’ História, ainda que as viúvas do comunismo e os deserdados
na China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua da causa mantenham uma esperança quase religiosa — que se
construção eles vem se dedicando com extraordinário esforço renova febrilmente a cada crise do capitalismo — de que isso
e o zelo engajado dos verdadeiros crentes, os ‘novos cristãos’ da seja possível em suas vidas terrenas. O mais provável é que as
verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados.
O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer
55 Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-
o destino do socialismo, mas pura e simplesmente o poder XVIIIème siècles. Paris: Armand Colin, 1979.
político nas mãos dos novos mandarins chineses, uma nova classe 56 Cf. Jean-Luc Domenach, La Chine m’inquiète. Paris: Perrin, 2008, p. 58 e 65-66.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente existente Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial
— que são alguns tresloucados ‘socialistas do século XXI’, consideram os arsenais nucleares como catapultas pouco práticas
perdidos em seus próprios desastres econômicos, e um punhado do ponto de vista das modernas técnicas de conquista, da mesma
mais numeroso de satrapias africanas, mas que não constituem forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos
Estados, no sentido hegeliano do termo — se juntem à locomotiva como querelas teológicas de reduzido poder agregador: os
da interdependência econômica mundial em algum momento hábitos de consumo unificam mais os povos, hoje em dia, do
deste século: embora atrasados, eles também serão bem-vindos, que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, mandarins ou
mesmo que tenham de desempenhar funções subalternas no gurus da nova era, os novos cavaleiros da economia mundial
trem do capitalismo, até sua própria qualificação produtiva. não buscam exatamente dominar ou converter outros povos,
Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem mas tão simplesmente extrair recursos pela via comercial.
existir, uma vez que as molas do poder respondem em grande A estratégia econômica desses novos cruzados é
medida bem mais às paixões humanas — o que os dramaturgos verdadeiramente internacional, no sentido mais planetário
gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre —, do do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas, rápido
que aos mecanismos de produção e de distribuição de ativos reais, deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados,
e isto vem sendo provado a cada instante da história mundial. em suma, uma globalização acabada dos circuitos produtivos
Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta pelo poder, e de distribuição. A característica mais saliente dessa nova
nas comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais
conflitos globais como os conhecidos desde a era napoleônica inseridos na economia de mercado. Mas, assim como na fábula
até a ‘segunda guerra de trinta anos’ do século XX. Nenhuma orwelliana sobre a ‘igualdade’ na fazenda ‘socialista’ dos animais,
Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o gênio do nessa nova ‘fazenda capitalista’ das nações, alguns membros são
poder nuclear saiu da garrafa. mais ‘interdependentes’ do que outros. Não se trata apenas de
Aliás, a Realpolitik da atualidade tem um novo nome, saber quem é mais ‘transnacional’ nessa confraria, mas sim de
superioridade tecnológica, e o cenário de seu desenvolvimento determinar quem melhor sabe maximizar os mecanismos de
é a própria weltwirtschaft, a economia mundial, num mundo controle da racionalidade instrumental própria à economia de
cada vez mais borderless, ou seja, sem fronteiras. Com efeito, mercado: o lucro e o investimento produtivo.
assiste-se hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, Assim, se o “fim da História” — compreendido não no
menos devido à força das canhoneiras do que ao peso dos sentido de que o mundo estaria a ponto de se tornar um porto
navios cargueiros (a China, por falar nisso, possui os maiores tranquilo para o exercício da democracia política, mas no do
portos do mundo). Mais exatamente, a tendência não é mais término da busca dos princípios fundamentais que devam
à constituição de rivais imperiais, mas ao estabelecimento de reger a organização da sociedade — está ou não próximo de
competidores mais eficazes, guerreiros de uma nova espécie, que converter-se em realidade, esta é uma questão ainda em aberto.
buscam não tomar de assalto velhas fortalezas, mas inundá-las Uma alternativa política ao liberalismo ocidental não parece,
com pacíficos obuses eletrônicos, manufaturados segundo os em todo caso, perto de nascer. Isto não quer dizer que não
mais modernos requisitos da tecnologia. existam alternativas práticas, reais, à democracia burguesa,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O Fim da História , de Fukuyama: o que ficou?

como o próprio caso da China o demonstra. O que se pretende ocorre, mais exatamente, é uma combinação do policentrismo
constatar é que o sistema chinês de dominação política não interestatal com a unificação dos espaços geoeconômicos, nos
oferece atrativos para qualquer país que se pretenda ‘normal’ no quais as competências estritas dos Estados nacionais no terreno
quadro da interdependência contemporânea: ele simplesmente econômico passam a ser exercidas por blocos de integração (zonas
não constitui um modelo que possa ser replicado em caráter de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns). Em
voluntário por outras comunidades políticas. Não fosse assim, todo caso, não parece haver muito espaço para o socialismo nesse
a plutocracia chinesa não precisaria manter um formidável “admirável mundo novo” do ‘fim da Geografia’. Ele só consegue
aparato de repressão, disseminar a censura pelos terrenos sobreviver nas academias esclerosadas de certas faculdades de
sempre fugidios da internet, continuar a condenar “dissidentes” ciências sociais de universidades públicas de países periféricos,
e “violadores da legalidade” com o mesmo ardor — embora com como mais uma demonstração de certas profecias corrosivas
menor brutalidade — que seus antecessores declaradamente (como aquela de Millor Fernandes, que dizia que quando as
marxistas-leninistas. A tese de Fukuyama, em seus contornos ideologias ficam bem velhinhas, elas se mudam para certos
filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do ancien países latino-americanos que conhecemos todos).
régime leninista. Na prática, como as economias de mercado conseguem
Em outros termos, a boa e velha democracia burguesa, conviver com todos os tipos de regimes políticos, o que se tem é
em que pese algumas rugas vitorianas, ainda não parece ter que o mercado e a democracia política convivem tranquilamente
sido vencida por alguma “contradição insanável”, do tipo das com esquemas diversos de controle social e de intervencionismo
que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo estatal, um pouco, aliás, como em diversos países periféricos do
clássico. Em contrapartida, no terreno da economia, o ‘fim da ‘capitalismo realmente existente’. Isso não representa exatamente
Geografia’ parece mais à vista, sobretudo quando se considera o um problema filosófico do ponto de vista das teses de Fukuyama:
escopo espacial das atividades empresariais. O mundo material se a chamada ‘democracia burguesa’ conseguiu sobreviver
está sendo progressivamente unificado por uma ‘cultura comum’, durante tanto tempo, foi exatamente devido a seu caráter
senão da abundância, pelo menos de consumismo, posto que essencialmente ‘formal, ou seja, uma democracia simplesmente
jovens iranianos de uma das teocracias mais reacionárias que política, destituída de qualquer conteúdo real, em termos de
possam existir, jovens chineses do “socialismo de mercado” e direitos econômicos ou sociais. Contudo, a simples garantia da
jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos igualdade jurídica e da liberdade individual representa, ainda
eles desejam encontrar satisfação para padrões de consumo assim, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade
relativamente similares: filmes série B de Hollywood, fast-food, civil, pelo menos para grande parte da Humanidade. É possível,
iPhone e internet. Os que ficam de fora — cubanos, coreanos assim, que a administração da ‘coisa pública’ nesses regimes
do norte — estão loucos para entrar... híbridos que existem no mundo real seja uma tarefa tão
Esse processo de constituição de um borderless-world ‘aborrecida’ e fastidiosa quanto, digamos, a atividade política
não deve ser confundido com o pretenso ‘declínio do Estado- em certas democracias avançadas do Ocidente, algo que já tinha
nação’, tendência já desmentida pelo acelerado ressurgimento sido percebido por um filósofo tão pouco hegeliano quanto
do ‘nacionalismo’ nos mais diversos quadrantes do globo. O que Norberto Bobbio.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Os mitos da utopia marxista

O fato, porém, de que nenhum sistema social humanamente


concebido poderá resolver a contento a questão da distribuição
dos bens raros e socialmente valorizados — e a mercadoria
‘poder’ é a primeira a inscrever-se nessa categoria — garante que
os palcos da História continuarão, durante muito tempo, a ser
excitantes. Não há, aqui, nenhum pessimismo de princípio quanto
a que, no terreno do mundo material pelo menos, se possa um
dia realizar a conhecida utopia socialista: “de cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Mas,
é altamente improvável, conhecendo-se a natureza humana,
que se possa cumprir, com ou sem ‘final da História’, a profecia Capítulo 6
engelsiana segundo a qual, no futuro, “o comando dos homens
será substituído pela administração das coisas”.

Os mitos da utopia mar ista

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

6.1. O que é uma utopia e como o marxismo


se encaixa no molde?

U
topia, no sentido original do criador da expressão,
representava uma crítica indireta (ou alegórica) da situação
existente, pela descrição imaginária de um lugar diferente
— situado em lugar nenhum, como corresponde ao sentido do
vocábulo, mas que era, presumivelmente, uma ilha do Novo
Mundo, não muito bem localizada geograficamente. Em seu
sentido mais amplo, a obra pode ser lida como a expressão de um
desejo consciente de que a realidade corrente, feita de misérias
e injustiças, pudesse ser transformada pela ação de homens
racionais, aproximando-se, assim, de um cenário mais conforme
aos desejos da maioria. De fato, a maior parte das leituras feitas
a partir do texto original — no decorrer dos séculos de exegeses
e interpretações que se seguiram — sustenta que a obra é um
argumento em favor da reforma social e em defesa da propriedade
privada, embora também existam aqueles que a consideram
um manifesto pregando uma sociedade autoritária, dominada
por um Estado todo-poderoso, na qual não mais existiria a
propriedade privada, considerada por um dos personagens da
‘história’ como a fonte de todo o mal social.57
Thomas More (ou Morus, na versão latina), o autor da
‘fábula’ — terminada em 1516 e publicada em latim, em 1518, para
atingir um público mais vasto —, estava, obviamente, criticando
a Inglaterra do seu tempo, e propondo uma organização política

57 Ver, por exemplo, a crítica de Alexander Marriott, “A Slave State: Society in Sir Thomas
More’s Utopia”, Capitalism Magazine (12/01/2004). Para outros ensaios e estudos
sobre esta obra de Thomas More, recomendo este site de estudos renascentistas, que,
aliás, reproduz o famoso quadro de More por Hans Holbein, o jovem, pertencente
à coleção Frick, de Nova York: <http://www.luminarium.org/renlit/tmore.htm>.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Os mitos da utopia marxista

e social na qual a justiça, a verdade e a equidade pudessem ‘fantasias’) criticadas. Em defesa de sua posição, Marx e Engels
prevalecer, sem o temor da violência arbitrária dos soberanos, a argumentavam que não estavam partindo de propostas totalmente
corrupção dos juízes ou a perversão dos líderes espirituais. Não imaginárias ou de reformas da organização social existente,
terminou sua vida na cama, como é sabido, mas deixou uma artificialmente construídas pela ação idealista de homens de
lição de moral que se converteu em símbolo literário universal boa vontade — como as de More, de Tomaso Campanella,
da busca pelo bem comum através da organização racional de de Charles Fourier, de Robert Owen ou de Pierre-Joseph
uma sociedade ideal. Aliás, considerado um mártir da causa Proudhon — mas, sim, formulando as bases da sociedade futura
católica — ou melhor, da Igreja oficial —, Thomas More foi a partir de uma crítica radical da situação existente, com base,
beatificado pelo Vaticano em 1886 e canonizado pelo Papa Pio XI portanto, em suas próprias premissas capitalistas. A partir
em 1935. da constatação, óbvia para eles, de que o capitalismo encerra
Nos séculos seguintes, o sentido original da expressão foi em si mesmo uma contradição fundamental — qual seja, a
perdendo seu significado de crítica a uma situação perversa e da natureza social da produção e sua apropriação privada —,
de exposição de um estado ideal, atingível pela ação racional eles estavam simplesmente tirando as consequências lógicas
dos homens, para converter-se em seu contrário, isto é, a de do desenvolvimento necessário das contradições em curso na
uma exposição idealista de objetivos inatingíveis, misto de sociedade para prefigurar a futura organização social.
ingenuidade e de ilusionismo, promessa vazia de uma organização O pretenso caráter “científico” do socialismo marxista foi
impossível de concretizar-se, posto que fundamentada em exposto pelos pais fundadores em diferentes ocasiões, mas sua
objetivos e metas irrealistas, próximos do fantástico ou da pura evolução natural a partir do capitalismo realmente existente
ficção filosófica. Foi com esta interpretação negativa que Marx e é bastante conhecida a partir da descrição sintética feita na
Engels designaram, em meados do século XIX, todas as propostas Introdução à Crítica da Economia Política: a partir de uma certa
anteriores de realização de uma sociedade socialista, colocando etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade
em seu lugar o que eles pretenderam classificar como a única entram em choque com as relações de produção existentes,
modalidade factível de socialismo, o “científico”, que seria o deles e essas contradições acabam provocando uma ruptura entre
mesmos. Socialismo “utópico” tornou-se, assim, sinônimo de a superestrutura da sociedade, já correspondendo ao caráter
ingenuidade, idealismo e ilusão, devendo ser necessariamente social das relações de produção, e a sua base, ainda dominada,
descartado em benefício de uma versão autojustificada de no caso do capitalismo, pela apropriação privada dos meios
organização socialista, apresentada como suscetível de romper de produção. Uma era revolucionária então se abre e a nova
séculos de miséria e sofrimento, encerrando, portanto, uma sociedade emerge da velha para realizar a reconciliação entre
etapa da história para dar início a uma outra, alegadamente mais forças produtivas e relações de produção, sem os grilhões da
avançada ou mais conforme a um mundo supostamente ideal. propriedade privada e da opressão política das classes dominantes
É desde já curioso constatar que a proposta marxista de sobre a maioria da população (necessariamente formada por
um socialismo “científico” se aproxima bastante, pelas suas trabalhadores assalariados).
motivações e propósitos idealistas, de uma ‘utopia’ terrena, Independentemente, porém, da correção (ou não) dessas
pertencendo, portanto, ao mesmo gênero das propostas (ou considerações sociológicas sobre os processos de mudança

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Os mitos da utopia marxista

social, o fato é que o marxismo, enquanto doutrina política, avassaladora, sendo disseminada horizontal e verticalmente
se aproxima basicamente da essência do modo de organização mesmo quando seus propositores não o fazem explicitamente,
social existente na ilha utópica de Thomas More, qual seja, um ou que sequer tenham consciência de que estão aderindo a
modo de vida comunal, com base numa economia totalmente esse tipo de explicação a partir de suas raízes diretas. Pense-se,
‘desmonetizada’, o que, ao fim e ao cabo, representa o objetivo por exemplo, nos muitos livros didáticos e paradidáticos de
último do comunismo, etapa superior do socialismo concebido segundo grau que falam naturalmente de ‘classes sociais’ —
por Marx. Nesse sentido, o marxismo se encaixa inteiramente no como instrumento de dominação, obviamente —, de ‘modo de
mesmo molde messiânico das utopias que ele pretendia criticar, produção’, de ‘contradições’ entre os diferentes interesses de classe
em primeiro lugar no modelo original exposto na fábula de More na sociedade, enfim de uma variedade de conceitos atinentes à
(mas que este, no íntimo, rejeitava, pelas mesmas razões pelas vida social e produtiva que passam por absolutamente normais
quais se opôs ao autoritarismo de Henrique VIII). e necessários e que nada mais são do que expressões da mesma
concepção fundamental de conhecimento e interpretação da
6.2. Utopia marxista e falácias acadêmicas: realidade profundamente vinculada ao edifício teórico marxista.
qual sua importância relativa? O marxismo é de tal modo dominante na academia
brasileira que seus defensores ou promotores sequer percebem
Pois bem: ao considerar que o conjunto do edifício marxista quando estão cometendo as falácias mais evidentes ligadas a
inscreve-se na categoria das utopias — inclusive e principalmente seu uso indiscriminado como meio de argumentação e debate.
a partir de suas raízes marxianas — caberia, preliminarmente ao Veja-se, a título de exemplo, a introdução a um debate lançado
desenvolvimento de argumentos para sustentar essa afirmação, por um veículo simpático a (quando não dominado por) essa
detectar onde estariam as falácias acadêmicas vinculadas a corrente, que pretende discutir o marxismo e o século XXI,
essa questão, entre os equívocos mais comuns encontrados cujo autor, um dos mais conhecidos marxistas da academia
na academia brasileira, no âmbito das disciplinas clássicas brasileira, Francisco de Oliveira, não hesita em escrever o que
da tradição universitária das humanidades, especialmente na segue: “O marxismo seguramente foi a doutrina mais importante
vertente escolástica que adere, implícita ou explicitamente, às do século XX, no amplo sentido de um “campo” (Bourdieu) ou
grandes linhas explicativas do marxismo acadêmico. ainda no sentido de ideologia (Gramsci) e não no dos próprios
Pode-se considerar, inicialmente, que à diferença da Marx e Engels (como doutrina dominante da classe dominante).
academia americana, por exemplo, na qual a tradição marxista A tal ponto que se pode dizer que o século XX foi o século do
é praticamente marginal nas fundamentações teóricas e nos marxismo.”58
estudos empíricos — restringindo-se a poucos núcleos bem O marxismo pode ter sido mais importante do que o freu-
identificados das ciências sociais, ainda assim com um número dismo, a outra ideologia que com ele ocupou parte significativa
muito reduzido de praticantes — no Brasil e em outros países dos afazeres acadêmicos durante várias décadas do século XX.
de formação similar (como os latino-americanos em geral,
ou a França e a Itália, no continente europeu) a dominação 58 Cf. Francisco de Oliveira, “Texto de apresentação”, In: Carta Maior lança debate:
do marxismo, nessas mesmas áreas de estudo, é literalmente o Marxismo e o Século XXI, site Carta Maior em (01/04/2009).

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Mas dizer que ele foi a doutrina mais importante no período personalidade histórica, quase como um personagem que interage
constitui um exagero — e uma falácia — que requer imediato com forças e processos sociais tangíveis e inquestionáveis. Assim,
questionamento. O século XX foi claramente o século das ideo- o mesmo autor acima citado, argumenta de forma totalmente
logias — nacionalismo, fascismo, socialismo e comunismo —, ingênua e a-histórica: “A partir das formulações originais da
assim como o século XIX tinha sido o do liberalismo e (apenas dupla Marx-Engels, o marxismo foi se constituindo numa
em parte) do darwinismo; mas daí a privilegiar uma dessas ide- concepção de história, numa visão de mundo, numa prática
ologias como tendo sido a mais importante, e colocá-la quase de luta, numa política, diretamente na crítica ao capitalismo,
como sinônimo do próprio século, vai um evidente exagero e seu inimigo figadal”.59
um descompasso com a realidade que requer correção. O que Trata-se de uma evidente falácia, uma vez que o capitalismo
foi importante no século XX, depois da derrocada dos regimes não pode se constituir em inimigo de nenhuma doutrina,
fascistas — que, na verdade, só submergiram na voragem da já que ele não constitui um corpo filosófico e doutrinal em
Segunda Guerra Mundial porque se lançaram em aventuras busca de adeptos ou seguidores, e sim o que os marxistas
expansionistas, do contrário teriam provavelmente sobrevivido chamariam de ‘modo de produção’ (outra falácia aberrante),
muito tempo mais, inclusive porque chegaram a fazer alianças convivendo em termos razoavelmente funcionais com diferentes
táticas com seu suposto inimigo —, foi o socialismo, mais espe- doutrinas políticas: democracia de massas, fascismo, ditaduras
cificamente o de tipo soviético, que dominou boa parte (mais personalistas, parlamentarismo aristocrático e, provavelmente
exatamente setenta anos) de um século especialmente mortífero até, com o marxismo de muitos dirigentes espalhados pelo
e destruidor. mundo em diversas épocas.
A falácia acadêmica talvez esteja, aqui, na identificação do Mas essa falácia de um marxista acadêmico nos permite
socialismo real com a doutrina marxista, quando ambos guardam, situar o campo no qual discutir as falácias da utopia marxista,
se tanto, vinculações tênues em termos de legitimação teórica e geralmente situadas em dois terrenos de interesse teórico e
de busca de fundamentação instrumental. Muitos marxistas, na prático: o materialismo histórico, que tende a se disseminar
verdade, recusam essa vinculação entre o socialismo soviético pelas demais ciências sociais a partir da história, e a economia,
e o marxismo teórico, pela inevitável contaminação criminosa cujos efeitos são mais importantes, na medida em que seus
do segundo pelo primeiro: o número de vítimas (atestadas) discípulos podem influenciar políticas públicas (à diferença
do marxismo prático — ou socialismo real — é muitas vezes dos primeiros, que influenciam, no máximo, a concepção
maior do que seus congêneres coletivistas da vertente fascista. do mundo de alunos passivos). Ambas vertentes, ao fim e ao
(Parênteses: não há como descartar o fato de que tanto Mussolini cabo, são relevantes para o nosso exercício de identificação e
quanto Hitler pretendiam construir o ‘socialismo de Estado’ e que desmantelamento das falácias acadêmicas mais importantes,
nos fundamentos de ambas as doutrinas se encontra o regime pois que fundamentadas na mesma concepção geral que vê as
econômico coletivista dominado amplamente pelo Estado). ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ devendo, natural
Uma outra falácia típica desse tipo de raciocínio acadêmico e necessariamente, evoluir de seu envelope capitalista atual,
enviesado consiste em atribuir ao marxismo — simples ‘doutrina
universitária’ para todos os efeitos práticos — atributos de uma 59 Cf. Oliveira, “Texto de apresentação”, op. cit., loc. cit.; ênfase no original.

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opressivo, desigual e injusto socialmente, para um conteúdo — não pode existir sem revolucionar constantemente os meios
claramente socialista, caracterizado pela socialização dos meios de produção; que sua tendência à expansão contínua a levaria
de produção, supostamente mais conforme aqueles desejos de a conquistar o mundo todo, oportunamente — constituindo,
igualdade, justiça social e liberada da exploração do homem portanto, a mais formidável promoção da globalização de que
pelo homem. se tem notícia, aliás totalmente ignorada pelos altermundialistas
Sem a necessidade de apontar aqui as tragédias sociais e e atuais opositores da globalização capitalista, que Marx
o tremendo custo humano a que conduziram essas tentativas consideraria como totalmente irracionais; e que o capitalismo traz
de construção de outra ordem social no ‘século do marxismo’, em seu próprio seio a promessa de crises regulares, inevitáveis,
podemos passar a considerar as falácias mais correntes desse tipo eventualmente devastadoras, falhando ele apenas em achar que
de engenharia social cujos objetivos últimos são alegadamente o sistema inteiro seria finalmente tragado numa dessas crises
humanistas e conformes ao ‘sentido da história’. Na verdade, seus de grandes proporções (e aqui vem o componente messiânico,
resultados práticos são por demais conhecidos para refazer a lista ou poético, da mensagem utópica marxiana).
dos casos mais exemplares; bastaria apontar que as tentativas A crítica contra o capitalismo conduzida nas páginas do
remanescentes, nenhuma delas exemplar, situam-se, atualmente, Manifesto — e mesmo em muitas passagens do Capital — é
nas antípodas do mundo, um canto recuado da Ásia e numa inteiramente correta e verdadeira, embora Marx tenha praticado
ilha do Caribe, num cenário de misérias humanas que dispensa esse equívoco monumental — totalmente preservado nos
qualquer descrição. equívocos ainda maiores de seus seguidores e propagandistas
atuais — de confundir modo de funcionamento do capitalismo
6.3. Quais são os mitos da utopia marxista? com a forma mais geral de organização da produção numa
sociedade de mercado, daí advindo os formidáveis erros de
Antes de tratar dos mitos da utopia marxista, conviria concepção econômica que levaram, ao fim e ao cabo, ao desastre
abordar seus muitos acertos e análises corretas. Curiosamente, total de todos — sem exceção — regimes socialistas existentes na
a maior parte dos ‘acertos’ marxistas não se situa propriamente face da terra (e não vale apontar para o ‘socialismo’ escandinavo
nesta obra de ‘economia gótica’ que se chama Das Kapital, como possível solução para um socialismo democrático ou
considerada por muitos como o nec plus ultra do cientificismo liberal, pois que as sociedades nórdicas jamais aboliram a
marxista, mas que tem seu lugar apenas na estante de história das propriedade privada ou o regime econômico de mercado, como
ideias, não numa biblioteca de teoria econômica. Esses ‘acertos’ fundamento de seus modelos social-democráticos).
figuram num panfleto de propaganda feito expressamente com Tanto essas críticas são corretas que a maior parte dos
esse objetivo que se chama, obviamente, Manifesto do Partido órfãos do socialismo e das viúvas do marxismo esfregam as
Comunista (1848). Esta pequena obra representa a mais poderosa mãos e sorriem de contentamento interior ao apontar — com
defesa da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista base inclusive em transcrições seletivas de obras marxianas — a
jamais produzido por qualquer apólogo do sistema de mercado crise de 2008 do capitalismo (não exclusivamente financeiro)
desde então. O texto aponta corretamente que a sociedade como ‘prova’ de que as ‘lições’ de Marx estavam certas e que o
burguesa — que para Marx era quase sinônima de capitalismo capitalismo é, sim, sinônimo de anarquia e caos no processo

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produtivo e que ele só pode existir quando guiado pela mão sociedades existentes e sua evolução para a comunidade socialista,
visível do Estado, a que supostamente se opunha um economista a partir das contradições da sociedade capitalista, desdobrando-
‘burguês’ como Adam Smith (quem, aliás, nunca se opôs à se numa série de proposições altamente questionáveis. Em
ação visível do Estado nos muitos campos em que essa atuação primeiro lugar, e de maneira mais geral, situa-se a crença num
é indispensável). Mas, atenção, reconhecer a correção básica ‘fim da história’, alegação que os desatentos críticos atuais do
da análise marxiana do capitalismo — o que Max Weber, por ‘marxista-hegeliano’ Francis Fukuyama atribuem aos promotores
exemplo, também o fez, ainda que parcialmente, apenas — não do ‘pensamento único’ de extração liberal clássica (que eles
significa que as previsões poéticas do marxismo sobre a crise final acusam falsamente de ser neoliberal, quando esse conceito não
do capitalismo e sua superação pelo socialismo sejam corretas e significa rigorosamente nada).
aqui entramos, justamente, na descrição das utopias marxistas. Marx e Engels (sobretudo este último, com suas construções
Quais são, então, os mitos da utopia marxista? As falácias mecanicistas sobre a ‘evolução’ da sociedade e do Estado)
do marxismo são muitas, inumeráveis mesmo, tendo em vista acreditavam que a resolução final das contradições da sociedade
que mais de um século e meio se passou desde que as primeiras capitalista se daria no quadro da sociedade comunista, na qual
hipóteses sobre o ‘desenvolvimento histórico’ foram formuladas cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia
pelos demiurgos originais e que, desde então, epígonos e em função de suas necessidades, sem a opressão do capitalista
discípulos têm-se encarregado de perpetuar essas falácias, sem explorador. A falácia moderna, partilhada por um número
o mínimo cuidado em efetuar sua crítica e evitar sua repetição. inacreditavelmente alto de acadêmicos, consiste em acreditar
Essas falácias têm a ver com a famosa ‘interpretação econômica que o Estado provedor conseguirá atender à maior parte das
da história’ — e seus derivativos sob a forma de ‘modos de necessidades sociais, sem as distorções típicas de um sistema
produção’ e ‘lutas de classes como motor da história’; e também privado de apropriação do produto social. Se isto fosse verdade,
com toda a parte analítica no terreno da economia, que quiçá foi não apenas teoricamente, mas sobretudo do ponto de vista
a que produziu os maiores desastres já conhecidos na história prático, os sistemas mais fortemente estatizados conhecidos ao
econômica mundial, com todo um cortejo de experiências falidas longo do século XX teriam sido exemplos acabados de sucesso
e uma perda desnecessária de bem-estar para muitos povos. econômico e de dinamismo tecnológico, e não o desastre
Uma última categoria de falácias tem a ver com a natureza da econômico e o fracasso tecnológico que foram.
sociedade comunista; mas as especulações marxianas a esse Em segundo lugar, coloca-se o fio condutor desse processo,
respeito pertencem mais ao terreno da ficção política do que sob a forma da famosa proposição sobre a luta de classes como
ao domínio da análise das sociedades capitalistas existentes ao o motor da história. A tese não é especificamente marxista (ou
tempo de Marx, e podem ser perfeitamente ignoradas como marxiana), sendo uma espécie de lugar comum explicativo
simples expressão de um desejo irrealizável (pois que não nas décadas imediatamente posteriores à Revolução francesa,
sustentadas em qualquer exposição objetiva das condições que como tal propagada pelos próprios publicistas e panfletários do
levariam a tal ‘utopia’). processo revolucionário e depois disseminada pelos primeiros
A primeira categoria, inscrita no campo geral do historiadores dos grandes eventos da França naquela conjuntura.
materialismo histórico, vincula-se ao desenvolvimento das Marx apropriou-se do conceito e o generalizou para o conjunto

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da história passada, antevendo que a luta final se daria entre Não é preciso dizer que, para Marx, a sucessão dos
a burguesia e o proletariado, este encarregado de inaugurar a ‘modos de produção’ — do escravismo antigo ao capitalismo,
nova era e de comandar à implementação do novo ‘modo de passando pelo feudalismo e por um pouco definido ‘modo
produção’, inevitavelmente socialista. asiático de produção’, inventado a partir de certa etapa de
Em terceiro lugar, justamente, apresenta-se o famoso suas pesquisas para acomodar aspectos incongruentes em sua
conceito de ‘modo de produção’, supostamente capaz de organizar caracterização rígida — deveria conduzir inevitavelmente ao
a história em função de formas possíveis de organização social ‘modo socialista’, quase que tirado por um fiat filosófico das
da produção em etapas sucessivamente evolutivas — não entranhas do capitalismo, chegado em sua fase madura. A falácia
necessariamente lineares ou sequenciais —, conceito que ainda fundamental não consiste apenas em imaginar que formações
hoje frequenta certos manuais universitários como sendo a econômico-sociais tão diversificadas como as historicamente
única maneira adequada de descrever o substrato material existentes possam ser encaixadas, ou aprisionadas, em categorias
das sociedades existentes (e, claro, sua superação pelo modo tão estanques quanto, simplesmente, redutoras; mas, sobretudo,
socialista). Nem é preciso recordar aqui o ridículo debate em acreditar que um ‘modo de produção’ possa ser inventado
pretensamente historiográfico travado no Brasil, durante a a partir das elucubrações de um cérebro, por mais genial que
fase áurea do stalinismo triunfante, no sentido de decidir se este possa ter sido.
o “modo de produção” da era colonial era feudal ou se ele já
era capitalista, para constatar a que absurdos pode levar uma 6.4. As falácias econômicas do marxismo
concepção rígida do processo histórico orientado por esse tipo
de camisa de força conceitual. Bem mais importantes, porém, do que as falácias ‘histórico-
As transformações ocorridas ao longo dos séculos nas materialistas’ de Marx (e Engels) são os equívocos analíticos
sociedades agrárias tradicionais seguem padrões extremamente e conceituais de seus textos de análise econômica, inclusive
diversificados em direção de formações mercantis, crescentemente pelas consequências práticas que eles tiveram para a vida de
manufatureiras, progressivamente industriais e, com maior centenas de milhões de pessoas, durante grande parte do século
intensidade a partir destas últimas, gradualmente pós-industriais, XX, sendo a maior parte desses efeitos de trágicas dimensões,
com a chamada economia do conhecimento reforçando um setor como o escravismo stalinista, por exemplo. Essa outra categoria
de serviços integrado aos demais setores produzindo a maior de falácias não é bem percebida por uma parcela substancial
parte do valor agregado. Marx, como é sabido, considerava dos acadêmicos, tanto porque são poucos os que se decidem a
várias atividades do terciário (ou seja, os serviços, justamente) enfrentar as 2.500 páginas do Capital, as 300 páginas da Crítica
como ‘improdutivas’, o que é um equívoco monumental para da Economia Política, as mais de 400 páginas das Teorias da
quem se pretendia economista — mas ele sempre foi, apenas e Mais-Valia, a prosa gongórica da Crítica do Programa de Gotha,
tão somente, um filósofo social — e estava preso ao seu tempo, a terminologia barroca da Ideologia Alemã ou a de vários escritos
concebendo a grande indústria manufatureira como o fenômeno esparsos, como os Manuscritos Econômico-Filosóficos. A maior
econômico dominante e decisivo, em seu horizonte histórico parte dos ‘estudiosos’ se contenta com resumos dessas obras,
de reflexão. com as avaliações generosas que seguidores complacentes delas

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Os mitos da utopia marxista

fizeram ou, no máximo, com a leitura rápida do Manifesto e do fórmulas rápidas extraídas de algumas dessas obras citadas
18 Brumário. para daí construir um dos mais monumentais equívocos
Realmente não é fácil fazer a crítica econômica da economia econômicos de que se tem notícia na história da economia
política de Marx e não será aqui que tal empreendimento poderá prática e das políticas públicas: refiro-me, obviamente, ao
ser realizado a contento; tanto por falta de espaço (e para não socialismo de tipo soviético, ‘teoricamente’ (mal) bosquejado
abusar da paciência dos leitores), como, sobretudo, por uma por Lênin e implementado a marretadas pouco teóricas por
sensação de inutilidade, uma vez que poucos argumentos Stalin e outros improvisadores econômicos. Ainda que se
‘econômicos’ marxianos podem ser transpostos na linguagem possa dizer que esses experimentos semibárbaros de militantes
da economia contemporânea e receber, assim, o tratamento de uma sociedade pré-capitalista pouco tinham a ver com os
empírico-factual a que se submetem as teorias, teses ou ‘verdadeiros’ fundamentos teóricos marxistas, é um fato que eles
construções correntes produzidas em ambiente universitário. procuraram se legitimar através da crítica à economia política
Antes que me critiquem por incapacidade analítica, convido ‘burguesa’, tal como conduzida pessoalmente por Marx, e que
os defensores da economia política marxista a tentar elaborar eles se sustentaram numa concepção do mundo que tinha como
criticamente, isto é, com os instrumentos da teoria econômica suportes fundamentais duas elaborações centrais do próprio
contemporânea, a respeito das seguintes noções — que são mestre: a teoria da exploração e a ‘previsão’ da crise geral do
centrais no pensamento econômico marxiano — que constituem capitalismo (não exatamente em virtude da pressão política dos
um conjunto de falácias que só são preservadas nas aulas movimentos socialistas, mas por suas próprias contradições
das humanidades, e muito raramente nas faculdades que se internas, de tipo estrutural).
dedicam ao ensino sério da economia: teoria do valor-trabalho A teoria da exploração, como se sabe, está no centro daquilo
(um equívoco, diga-se de passagem, que Marx partilha com os que os marxistas consideram ser a contribuição fundamental de
clássicos que o precederam); tempo de trabalho socialmente Marx à crítica da economia política, a saber, a teoria da mais-
necessário; fetichismo da mercadoria; doutrina da miséria valia. No Capital, Marx divide o seu objeto analítico em duas
crescente; taxa de mais-valia; composição orgânica do capital; partes: capital constante e variável, sendo o primeiro a parte
taxa decrescente de lucro; superprodução de mercadorias; incorporada nos equipamentos e nos produtos utilizados no
superabundância de capital. Existem outras noções bizarras, processo de produção, e transferido inteiramente para o valor
certamente, mas estas bastam para o desafio. do produto (parcialmente no caso dos equipamentos, apenas
Na verdade, essas elaborações prolixas da pluma de Marx a parte correspondente ao seu desgaste físico), e o segundo a
não foram compreendidas ou desenvolvidas nem por seus parte relativa ao custo da força-de-trabalho, da qual apenas
seguidores e discípulos,60 que se contentaram com algumas uma parte constitui a remuneração do trabalhador, sendo o

60 Não estou referindo-me aqui a discípulos marxistas como Bukarin ou Preobajensky, o colapso do capitalismo, tendo ele sido aluno de Eugen Böhm-Bawerk, um
que tentaram elaborar sobre a transição socialista-soviética a partir das categorias importante analista das teorias econômicas marxistas, junto com Vilfredo Pareto,
marxistas, mas que não foram muito longe em suas contribuições teóricas (inclusive Ludwig von Mises e, muito antes deles, John Stuart Mill. Os marxistas nunca
porque foram eliminados por Stalin). O mais importante teórico marxista dessa souberam responder às críticas especificamente econômicas que esses economistas
época, Rudolf Hilferding, foi, na verdade, um crítico da previsão marxista sobre fizeram às teorias econômicas de Marx (ênfase deste autor).

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resto apropriado pelo capitalista como mais-valia justamente. por abundantes citações de relatórios oficiais — geralmente
Marx pretendia ter descoberto ali o segredo do processo de parlamentares, mas de funcionários do governo também —
acumulação capitalista, sendo que a taxa de mais valia (s) criada sobre o trabalho nas fábricas inglesas (que ele lê na British
pelo capital variável (v) — expressa na fórmula v/s = trabalho Library e cita muito seletivamente) e por ainda mais abundantes
necessário/sobre-trabalho — corresponderia exatamente à taxa comentários em estilo literário sobre os horrores da produção
de exploração do trabalho pelo capital. Nenhum economista sério fabril e sobre a cupidez dos capitalistas. Existem passagens
consegue trabalhar economicamente com uma falácia desse tipo; realmente brilhantes, jocosas ou irônicas segundo a ocasião, e
desafio qualquer economista marxista a me provar a utilidade descrições tão pungentes da miserável situação dos trabalhadores,
instrumental dessa formulação para fins de teoria econômica ou que são capazes de comover os corações mais duros e as almas
como mero instrumento analítico no plano da microeconomia mais cândidas.
(isto é, a parte da economia dedicada especificamente ao processo A falácia mais evidente, aqui, é a de ter confundido
de produção, que é justamente a parte da critica à economia a dinâmica de uma economia de mercado — com seus
política que Marx alegava ter desenvolvido de uma maneira desequilíbrios inevitáveis — com as contradições insanáveis
superior aos economistas ‘burgueses’ do seu tempo). de todo o sistema capitalista, que na verdade representa uma
A falácia mais importante do marxismo, porém, a que o parte muito pequena da economia de mercado. Esta falácia foi
distingue particularmente no conjunto de teorias econômicas perpetuada não apenas pelos seguidores imediatos de Marx,
críticas do (e ao) capitalismo, é, evidentemente, a que trata da como também por seus êmulos contemporâneos, sobretudo
crença — sinto muito, mas não encontro outro substantivo para na academia, onde se costuma misturar as duas coisas numa
este equívoco — de que os desequilíbrios regulares e constantes salada indigesta que passa por economia política. Os primeiros
da economia de mercado — de toda e qualquer economia pretenderam destruir o capitalismo a marretadas; o que mais
de mercado, que esses mesmos críticos confundem com o conseguiram fazer foi impedir o funcionamento de uma
capitalismo, a partir do erro original de Marx — conduziriam economia de mercado minimamente condizente com o cálculo
a contradições insuperáveis nos limites do sistema existente, econômico indispensável à aferição do valor relativo dos bens e
apenas superáveis pela sua substituição ‘natural’ pelo modo de serviços, condenando assim à esclerose precoce o seu pretendido
produção predestinado como sucedâneo e sucessor, o socialismo. ‘modo socialista de produção’.61 Pode-se dizer, em sua defesa,
Marx tentou formular seu desejo filosófico em termos que eles não tinham uma ideia muito precisa de como construir
especificamente econômicos, mas que são, na verdade o socialismo ‘científico’ apregoado por Marx, já que este não
sociológicos. No Capital, ele se ocupa, sobretudo, de: acumulação
61 Uma crítica contemporânea aos experimentos bizarros de Lênin em matéria
capitalista; taxa de salários; exército industrial de reserva; econômica foi conduzida simultaneamente — e antes mesmo que seus resultados
monopólios; deficiências na demanda; desequilíbrios na desastrosos se revelassem em sua inteireza — por um jovem economista austríaco,
produção (como resultado da superprodução de mercadorias Ludwig von Mises, cujo Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), na
e da superabundância de capital); diferenças entre os processos verdade uma demonstração da impossibilidade de qualquer cálculo econômico
racional, na ausência do mecanismo de preços, constituiu uma antevisão teórica
de produção e de circulação; descompassos entre o crescimento do desastre econômico que seria o socialismo na prática. Ver suas obras no site
da produção e a expansão dos mercados. Tudo isso ilustrado dedicado a esse economista: www.mises.org.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Os mitos da utopia marxista

havia deixado nenhum manual de instruções, uma escusa de tais medidas não estão dispostos a reconhecer (por problemas
que não dispõem os segundos, que puderam observar várias filosóficos compreensíveis), mas que são importantes para o
décadas de experimentos fracassados e desastres práticos, com futuro das economias de mercado (característica fundamental
todas as evidências empíricas ao seu alcance, desde que eles se que eles, pelo menos isso, aprenderam a respeitar).
dispusessem a raciocinar, está claro.
Mas parece óbvio hoje em dia — pelo menos confio na Pode ser que, ao fim e ao cabo, a falácia do marxismo em
inteligência humana — que nenhum marxista consciente está proclamar a utopia da sociedade socialista seja comparável à
propondo, atualmente, o socialismo em suas formas conhecidas falácia capitalista — se é que ela existe — de uma economia de
no século XX, sobretudo em sua versão clássica do Gosplan mercado sem crises e sem perda de riquezas, o que ainda não foi
soviético; e menos ainda nos modelos embalsamados das inventado por nenhum cérebro genial. Na verdade, o capitalismo
tristemente célebres experiências da pavorosa Coréia do Norte não tem a pretensão de fazer engenharia social ou de operar
e da patética ilha caribenha. O que os marxistas estão pedindo toda a economia de mercado: ele se contenta em gerir seus
— e alguns governos atendendo, ainda que não se pretendam próprios negócios privados, abrindo com isso o caminho para a
socialistas — é a nacionalização, ou seja, a estatização, do sistema construção de um poderoso sistema de criação (e distribuição)
bancário, como forma de acabar com o aspecto mais detestável, de riquezas, o que não é pouca coisa. Em todo caso, nenhum
moralmente falando, do capitalismo, que é a especulação sistema — socialista, coletivista, ou qualquer outro ‘inventado’
financeira, algo que qualquer marxista contemporâneo pratica pela ação humana — foi capaz, até o presente momento, de
regularmente quando joga na loteria, a mais desenfreada oferecer tantas oportunidades de criação de riquezas quanto
especulação financeira administrada pelo Estado. as economias de mercado operando de modo mais ou menos
Eles também pedem — e nisso os governos do G20 espontâneo. Entre essas economias se situa o capitalismo, que
financeiro também parecem dispostos a atendê-los — uma constitui ainda uma pequena parte dos ‘modos de produção’
regulação ainda mais estrita dos mercados pelo Estado, como disponíveis nos supermercados da história, e uma fração
forma de interromper, pelo menos momentaneamente, a crise relativamente diminuta das formações sociais historicamente
devastadora que não deixa de representar desemprego, pobreza existentes, inclusive no plano espacial-geográfico, a despeito do
temporária para os que não dispõem de seguro-desemprego (e que possam pensar os marxistas; mas eles costumam exagerar
isso se aplica a boa parte da força de trabalho brasileira) e outras no poder de fogo do capitalismo.
consequências variadas, todas vinculadas às supostas misérias que
o capitalismo seria capaz de produzir na concepção desses seus Thomas More, se vivo fosse, teria certamente muito mate-
utópicos detratores. Trata-se, obviamente, de um contrassenso rial para novas utopias se tivesse conhecido todas as propostas
econômico, uma vez que uma regulação mais rígida e burocratas de engenharia social contidas nas formulações marxistas para
estatais no comando dos bancos conseguirão produzir, se um novo modo de produção e um novo tipo de sociedade. Mas,
tanto, menor crescimento econômico, menor flexibilidade talvez ele não tivesse sobrevivido a alguns experimentos do
dos mercados e, portanto, menores possibilidades de criação século XX, bem mais terríveis do que as diatribes anti-papistas
e de distribuição de riquezas, pontos que os propositores de e anti-Vaticano de um Henrique VIII...

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O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático

Capítulo 7

O fracasso do
mar ismo teórico e do
socialismo prático

201
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

7.1. Cercando o “animal” e mostrando a arma

N
ão creio que os fieis cultores do credo e, menos ainda, os
pouquíssimos praticantes da crença nas supostas virtudes
do coletivismo econômico e do planejamento estatal cen-
tralizado — não se sabe bem onde isso poderia ainda existir
—, possam apreciar esta peça opinativa sobre um dos mais
notórios fracassos teóricos e práticos do século XX. Acredito
que os que assim pensam fariam bem em deixar de ler desde já
este ensaio, que trata, como já antecipa o seu título, do rotundo
insucesso, tanto no plano filosófico como no material, de um
dos mais prometedores movimentos transformistas que nos
tenha legado o século XIX. Com quase tanto sucesso quanto o
freudismo — a outra ideologia dominante em nossos tempos
—, o marxismo dominou de tal maneira os corações e mentes
de tantos homens no século XX a ponto de quase se confundir
com ele, e de ainda deixar um rastro facilmente identificável,
embora evanescente. É minha opinião que grande parte dos
meus leitores universitários ainda se deixa seduzir por seu
charme muito pouco discreto, e certamente não apreciarão o
que vão ler nos parágrafos abaixo.
Isso talvez não tenha nenhuma importância: os argumentos
aqui expostos não se destinam aos sinceramente convertidos, pois
acredito que a maior parte deles é propriamente “irrecuperável”,
lobotomizados que foram, anos atrás, por uma das mais
atraentes filosofias da práxis que possa ter existido, sendo
assim praticamente incapazes de qualquer reconversão racional.
Escrevo para aqueles jovens que ainda não conseguiram se
dotar de uma concepção geral sobre o mundo e que podem ser
vítimas involuntárias de professores motivados por um tipo de

202 203
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático

distorção ideológica que dificilmente poderia ser enquadrada sua permanência parecia relativamente garantida, uma vez que
nas práticas acadêmicas correntes. nem mesmo o profeta do “fim da História”, Francis Fukuyama,
Meu propósito neste pequeno ensaio é muito simples: fazer previu, em seu famoso ensaio de 1989, a derrocada inevitável
uma síntese analítica e oferecer o balanço de uma experiência do socialismo.
— que compreende a minha própria, se me permitem a A ideia socialista, especificamente em sua versão marxista,
referência pessoal — em torno de um dos mais grandiosos e constituiu uma das mais poderosas heranças teóricas do século
espetacularmente catastróficos projetos de engenharia social XIX, à qual veio agregar-se, já no século XX, sua derivação
dos tempos modernos. O marxismo pode ser considerado o leninista, num terreno bem mais prático. Esta última não estava
equivalente, em seu escopo e pretensões teóricas, às guerras interessada apenas em “interpretar o mundo”, como o fez o “pai
de religião e às mudanças políticas deslanchadas, justamente fundador” da doutrina, que denegava qualquer viabilidade
no início dos tempos modernos, pelas reformas protestantes prática ao capitalismo e à democracia burguesa; ela queria,
que cindiram e minaram o poder material e espiritual da Igreja sobretudo, transformar esse mundo, no sentido da construção
Católica Romana. O marxismo produziu tantas seitas quanto de uma sociedade guiada por princípios coletivistas e baseada
o movimento protestante e, se ele chegou a ter um centro num regime político supercentralizado, apelidado de “ditadura
organizado e responsável teoricamente pela doutrina oficial, do proletariado” (mais exatamente, um sistema totalitário regido
não conseguiu se firmar numa única “igreja”, a despeito do por um partido único). A ascensão dessa ideia constituiu um dos
volume comparável de seguidores, nem se apresentar, de fato, mais notáveis fenômenos do século XX, bem mais, obviamente,
como uma alternativa credível ao sistema econômico e ao do que a ideia fascista, com a qual, aliás, ela guarda diversas
regime político que ele deveria, supostamente, suceder, quase semelhanças de forma e vários vínculos objetivos, até algumas
que naturalmente. Desse ponto de vista, o marxismo constitui, relações incômodas em certas fases de sua trajetória prática, o
como afirma o título do ensaio, um fracasso teórico e prático. que não é muito bem lembrado pelos seus defensores e afiliados
menos ilustrados em matéria de história. Enfim, aqueles menos
7.2. Sete anos que mudaram o mundo fundamentalistas ganhariam em conhecer os detalhes de pelo
menos uma dessas relações (o pacto Ribbentrop-Molotov, de
Para uma doutrina e para um sistema que, em suas fases agosto de 1939, por exemplo, que permitiu a Hitler deslanchar
de maior expansão, chegaram a cobrir 2/3 das terras emersas e sua insana guerra não apenas contra a Polônia, mas também
2/5 da população mundial, a derrocada do marxismo teórico e contra as demais potências ocidentais, antes de se lançar contra o
do socialismo prático, em não mais do que sete curtos anos de próprio regime stalinista com o qual acabara de firmar o pacto).
crise e queda final — de 1985 a 1992 — pode surpreender, já Como e por que o socialismo veio a seu termo — de forma
que a falência de ambos (mais o segundo do que o primeiro, é espetacular em alguns países, de maneira mais diluída, em outros
verdade) não se deve a um assalto frontal das hostes capitalistas, —, constitui um tema ainda sujeito a variadas interpretações,
nem a um ataque em regra por parte das democracias burguesas, dependendo do ponto de vista particular de quem se arrisca a
cabendo a causa mortis à falência múltipla de seus órgãos, uma explicação. Os trotskistas, por exemplo, acreditam que foi a
seguida de implosão fatal. Antes que isso ocorresse, porém, degeneração burocrática do Estado soviético, com o consequente

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afastamento da classe trabalhadora do poder político, que a combinação de novas ideias, poder institucional (os centros
passou a ser controlado por uma “não-classe social” (sic), que de comando do sistema político tinham caído nas mãos de
lançou as sementes do retorno da URSS ao capitalismo, processo reformistas radicais) e escolhas políticas (quando outras opções
identificado com a perestroika de Mikhail Gorbatchev.62 Resta poderiam ter sido escolhidas) que levou ao final do poder
saber como os trotskistas interpretariam o fenômeno da volta ao comunista na Europa.”63
capitalismo — mais exatamente da construção do capitalismo
— na China, com a preservação de um Estado comunista; talvez Mas não é preciso refazer aqui a história singularmente
não se deva esperar muita coerência nos modelos explicativos fatídica do marxismo e do socialismo no decurso dos seus 70
de marxistas tão pouco imaginativos. anos de existência efetiva — de vida útil, ou inútil, segundo se
Um dos maiores especialistas conhecidos na história do prefira — para confirmar que, hoje, tanto a ideia original quanto
comunismo, Archie Brown, é mais circunspecto: “Na escala de suas manifestações práticas estão em decadência irremediável.
longo prazo, fatores sociais e econômicos são de fundamental Este conceito, em sua etimologia, refere-se à queda ou abati-
importância para explicar como o comunismo veio a ser mento, mas num sentido lato transmite noção de regressão,
rejeitado na União Soviética e, em consequência, entrou em declínio, corrupção ou progressiva inviabilidade prática de uma
colapso na Europa Oriental. As razões mais imediatas para as ideia ou configuração social que já tiveram preeminência em
mudanças dramáticas do final dos anos 1980 foram, entretanto, épocas passadas, mas que já não conseguem atender às novas
o resultado de escolhas políticas particulares. As escolhas feitas demandas do presente.
foram bastante devidas, inicialmente, ao estímulo provocado Nenhum observador sensato do itinerário político e
pela falência econômica relativa, mas as mudanças políticas econômico do século XX poderia, em sã consciência, recusar
radicais introduzidas na União Soviética depois de 1985 não a realidade e a materialidade — com perdão pela redundância
foram de nenhuma maneira economicamente determinadas. — da decadência do socialismo teórico e prático nas duas ou
(...) O nacionalismo contribuiu enormemente para o colapso três últimas décadas. Quem pretende refutar o argumento —
do comunismo na Europa Oriental, mas na União Soviética ou considera que se trata de simples regressão temporária,
ele tornou-se uma força poderosa, conduzindo à ruptura da algo como uma fase de dificuldades passageiras — faria
URSS, apenas depois que mudanças fundamentais já tinham sido bem em interromper a leitura deste ensaio aqui mesmo, pois
colocadas em vigor no sistema político. Em última instância, foi não tenho a intenção de abalar convicções tão arraigadas
(e ingênuas).
62 Cf. Pedro Benedito Maciel Neto, “Trotski: nem profeta, nem traidor, um
revolucionário e pensador original”, Fundação Lauro Campos, Socialismo e
Liberdade (18/02/2010). A despeito de ser um admirador de Trotski, o autor é
Aos que desejam continuar a leitura, ofereço uma
filiado ao PCdoB; de forma não surpreendente, ele afirma que: “Não há dúvidas explicação mais concisa para essa decadência teórica e queda
sobre o fato de que a revolução russa de 1917 foi o maior acontecimento da história prática final: a ineficiência produtiva, em primeira instância, e
no século XX, pois o capitalismo, sua lógica, seus principais operadores e seus
estafetas foram abalados com a possibilidade de novos sistemas, econômicos e
políticos, serem implantados em todo o mundo, com a participação direta da 63 Cf. Archie Brown, The Rise and Fall of Communism. New York: HarperCollins,
classe trabalhadora.” 2009, p. 587-588; ênfases no original.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático

a falência econômica final, em última instância, do socialismo, Quanto ao adjetivo “fatídico” acima empregado, tampouco
enquanto “modo de produção” — para reter um conceito caberiam extensas e detalhadas explicações para quem já ouviu
caro aos marxistas, mas que constitui apenas mais um fetiche falar do número verdadeiramente fenomenal de mortos — dire-
terminológico dessa filosofia da história —, tinham sido tos e indiretos — e sobre os sofrimentos humanos acumulados
submetidas a uma implacável análise econômica desde 1920, por esses experimentos totalitários ao longo do século XX.
pelo economista Ludwig von Mises.64 No plano político, como Qualquer pessoa que tenha lido um pouco que seja de história,
qualquer pessoa sensata pode suspeitar, todo e qualquer sistema e particularmente a história do socialismo no século XX —
comunista estava baseado num regime de partido único, que pode-se recomendar alguns livros de Alexander Soljenitsyn, ou
se confundia com o Estado, que era autoritário em sua forma a História do Gulag, de Anne Applebaum — e não tenha tido
mais benigna, e totalitário na pior hipótese possível, com a a mente toldada por viseiras ideológicas ou por esses mesmos
supressão completa de qualquer liberdade política e dos mais professores politicamente motivados, não ousaria contestar esses
elementares direitos civis. Sua sobrevivência dependia, assim, simples argumentos, que não são opinativos, nem constituem
de um Estado policial baseado na censura total, na repressão matéria subjetiva, mas são apenas factuais.
preventiva e nos controles disseminados sobre todas as instâncias
da vida privada dos cidadãos (um conceito mais adequado Pois bem, creio que não cabem muitos argumentos
seria, talvez, o de “súditos”). Estas são as razões de sua longa contrários quanto à realidade da decadência e quanto ao caráter
permanência na Europa, na Ásia e na ilha caribenha, uma vez fatídico da ideia e da prática socialista ao longo do século XX. As
que o seu modo irracional de não-funcionamento econômico já tentativas risíveis de ressuscitá-lo, sob a roupagem tão indefinida
deveria tê-lo conduzido à implosão prematura (como o próprio quanto ridícula do “socialismo do século XXI”, estão não apenas
Lênin descobriu rapidamente, sendo por isso mesmo obrigado condenadas ao fracasso ab initio, como já revelam, de fato,
a implantar a NEP). Não creio que seja necessário estender-me suas limitações concretas quanto às possibilidades de produzir
mais sobre os motivos econômicos e políticos da decadência e crescimento, prosperidade e bem-estar. A única realização
do fracasso final do sistema.65 efetiva desse “remake” surrealista é o caráter totalitário de sua
organização política, inteiramente em linha com a tradição
leninista, apenas que insuficientemente realizado em virtude
64 Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade
da resistência da sociedade civil em consentir com tal regressão
Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras do principal inaceitável para os padrões da vida política do século XXI.
economista da escola austríaca: www.mises.org. A razão estava, simplesmente, na
ausência completa dos sinalizadores essenciais a qualquer atividade econômica
racional: os preços dos insumos produzidos e dos bens ofertados, que são 7.3. Resistível reação à decadência irresistível do socialismo
normalmente formados num mercado submetido às leis da oferta e da procura.
Preços administrados por burocratas jamais conseguiriam traduzir o princípio Cabe examinar agora o qualificativo de “resistível” que
básico da economia, que é a lei da escassez. acoplei ao conceito de decadência irresistível do socialismo.
65 Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver o ensaio sobre os mitos
da utopia marxista, disponível neste volume, publicado originalmente na revista O termo pode ter duas acepções: uma passível de ser identificada
eletrônica Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009). com a resistência ativa dos socialistas ao seu processo de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático

decadência prática e teórica; a outra vinculada ao fenômeno socialistas profissionais — em grande medida professores uni-
“normal” de sua diluição gradual, um pouco como o processo versitários e sindicalistas profissionais — poderão conseguir
de perda progressiva de borbulhas em bebidas gasosas. preencher as duas condições supracitadas. A elaboração teórica
O socialismo está sendo “desgaseificado”, à medida que suas dessa tribo em via de extinção — os socialistas e comunistas,
“borbulhas” ativas — que são os true believers e suas pretensas não os professores e sindicalistas — é muito pobre e os partidos
obras teóricas — vão desaparecendo aos poucos (fadding ou que restaram já não pretendem mais construir o socialismo,
vanishing away...). que permanece, portanto, um conceito atraente apenas para
A reação e resistência efetiva dos socialistas e comunistas nostálgicos geriátricos ou para jovens ainda mal formados
ao seu processo de desaparecimento — se não é uma simples (e pessimamente informados). Os poucos exemplos de “reno-
luta de retaguarda de uma tribo isolada, concentrada em seu vação teórica” do marxismo — supõe-se que ninguém pretenda
pequeno “território de caça”, que é constituído geograficamente renovar o leninismo — se situam todos no âmbito universitário,
pelas faculdades de ciências sociais — dependeria de duas con- aqui exclusivamente constituído pelo público passivo dos estu-
dições cumulativas: (1) a existência de partidos competitivos, dantes inermes das faculdades de humanidades (que parecem
chamados comunistas ou socialistas no sentido marxista, capazes estar cansando-se do mingau insosso que lhe é servido quase sem
de oferecer plataformas atrativas para uma cidadania doravante variações desde muitos anos). Em resumo, a “resistível reação”
mais exigente, em sociedades largamente urbanizadas — e co- parece atingir apenas o reduzidíssimo número de adeptos já
nectadas ao mundo — e não simples slogans redutores agitados convencidos, não exercendo qualquer efeito prático no terreno
em nações atrasadas, essencialmente rurais, nas quais o socia- político-eleitoral.
lismo foi implantado por via de revoluções legítimas — Rússia
e China, por exemplo — e não por imposição militar (como em 7.4. A seleção natural das espécies mais resistentes
praticamente todos os casos da Europa central e oriental após a
Segunda Guerra Mundial); (2) a produção e oferecimento, por Reduzidas as chances, como se constata, de “resistência
parte desses mesmos partidos e movimentos, de “soluções” aos ativa”, restou o processo natural de seleção darwiniana, a partir
principais problemas sociais — aumento da renda disponível de “animais” cada vez menos adaptados às novas condições
para o bem-estar social, serviços de saúde e educação satisfa- ambientais do capitalismo global. Um pouco como o panda,
tórios, segurança pessoal, emprego e lazer, liberdades políticas que adquiriu comportamentos excessivamente rígidos e hábitos
e religiosas, etc. — que sejam reconhecidamente superiores às alimentares muito restritos, e que por isso corre o risco de
soluções (por certo imperfeitas) oferecidas hoje pelas democra- extinção, os socialistas contemporâneos estão singularmente
cias de mercado, que os marxistas chamam desdenhosamente despreparados para enfrentar o mundo globalizado. Trata-se,
de democracias burguesas ou capitalistas. também, de um mundo mais instruído e pouco propenso a
Tendo em vista que o registro histórico dos socialismos e aceitar a mensagem tradicional dos socialistas: a da revolução
comunismos reais, ao longo do século XX, foi particularmente violenta e a posse exclusiva e excludente do poder político pelos
infeliz (como os exemplos remanescentes de Cuba e Coréia do trabalhadores organizados, o que nunca foi o caso, diga-se de
Norte são ainda mais infelizes), não se vê bem como os últimos passagem. Esse tipo de programa tem hoje chances mínimas de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático

realização: mesmo em face da realidade da “exploração” e da na árvore de Lineu, um enigma da sempre diversificada e
“extração de mais-valia” por capitalistas gananciosos, poucos se surpreendente mãe-natureza.
deixam seduzir, hoje em dia, pela perspectiva de uma “ditadura do
proletariado”, embora o número dos que acreditam sinceramente Em última instância, os marxistas resistem bem em seus
nas virtudes supostas da economia socialista e centralmente “nichos de mercado” — que são as faculdades de ciências sociais,
planificada seja maior. mas eu sei que eles detestam essa menção a “mercados” —,
Ainda numa linguagem zoológica, não é o caso de se dizer especialmente em países pouco capitalistas, como o Brasil em
que socialistas e comunistas correm o mesmo risco de extinção particular, e a América Latina em geral, mas também em alguns
do que, por exemplo, o infeliz dodô. Ninguém, nas democracias bastiões do capitalismo global. Eles são, finalmente, úteis ao
de mercado, está “caçando comunistas” para extinguir a espécie. processo de desenvolvimento sustentável, já que contestando a
Os poucos exemplos de “tiro ao alvo” implacáveis na história cada passo as conquistas materiais do capitalismo, questionando
contemporânea — no Brasil do Estado Novo e do regime suas bases teóricas — como se o capitalismo precisasse de uma
militar de 1964, na Indonésia em 1965, e no Chile em 1973 — — e fremindo de expectativas positivas a cada nova crise do
estão ligados a crises políticas agudas, com profunda divisão sistema, torcendo pela derrocada final. Trata-se, obviamente, de
da sociedade em torno de projetos alternativos muito radicais uma missão sempre bem-vinda no processo de seleção natural:
e que conduziram, justamente, à “subida aos extremos”, com espécies muito acomodadas em seus nichos naturais, estabilizadas
excessos cometidos em todos os lados. pela falta de competição, acabam sendo presa fácil de espécies
Sem novos riscos de perseguições físicas, os comunistas mais evoluídas ou vítimas de uma rápida mudança nas condições
e socialistas estariam, assim, condenados ao desaparecimento ambientais, se não estiverem sendo constantemente desafiadas
gradual, não fosse pela equivalência funcional desses insetos que em suas premissas básicas de existência. Acredito que, graças
resistem desde a era paleozoica a grandes mudanças geológicas justamente aos marxistas, o capitalismo não corre esse risco.
ou até mesmo a catástrofes naturais, talvez pela sua própria Estamos falando aqui, cabe precisar, de marxistas teóricos.
inserção oportunista em pequenos nichos ambientais — que Quanto aos socialistas e comunistas práticos — mas quem ainda,
são as faculdades de humanidades —, pois é certo que não se hoje em dia, se apresenta como comunista real? —, dificilmente
trata mais de dinossauros extremamente exigentes em termos se enquadrariam no conceito de “espécies mais evoluídas”, já
de alimentos e ambiente. Os comunistas contemporâneos, os que não resultaram de uma seleção natural darwiniana, e sim
socialistas remanescentes — muitos deles apenas marxistas de uma invenção de laboratório, um pouco como aquele famoso
diáfanos, uma vez que não leram Marx, alguns gramscianos conto sobre uma criatura fantástica, feita de diferentes partes
desprovidos de armas teóricas mais elaboradas desde que se disponíveis aqui e ali. De fato, o socialismo do século XX — mas
foi o seu guru, trotskistas, divisionistas e folclóricos — já não não existem evidências do que o seu arremedo do século XXI seja
lutam mais pela primazia absoluta na escala zoológica (já foi-se diferente, em qualquer hipótese — constitui uma assemblagem
o tempo), apenas e tão somente pela sua sobrevivência física de contribuições diversas por demiurgos conhecidos: um
na selva bruta do capitalismo globalizado. Eles são como esses pouco de hegelianismo radical aqui, uma dose de blanquismo,
ornitorrincos que não se sabe muito bem como classificar outro tanto de sindicalismo revolucionário, um molho de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

economia política inglesa, temperado com alguma filosofia


política francesa, servido por profissionais de vanguarda que
desaguaram no stalinismo, com uma passagem pelo despotismo
asiático em sua versão camponesa. Nada de muito brilhante, se
pensarmos no grau inexcedível de violência embutida em todos
esses projetos de engenharia social, com seu imenso cortejo
de vítimas. Mas, como sabemos, as piores tragédias humanas
foram aquelas cometidas por homens decididos, que estavam tão
certos de cometer o bem para os seus povos que não hesitaram
em mobilizar todos os meios disponíveis para atingir seus fins
supostamente beneméritos. Capítulo 8
Ao fim e ao cabo, a história completou um ciclo de desen-
volvimento muito pouco determinista. O socialismo real, de
extração leninista, poderia, talvez, ter durado um pouco mais — e
de fato ele perdura, sob forma autocrática, mas com um conteúdo
A cultura da esquerda:
econômico inteiramente capitalista no país mais populoso do
planeta — se ele não tivesse contrariado de forma tão canhestra
sete pecados dialéticos
a economia de mercado, que líderes incultos em economia
confundiram com o sistema capitalista. Tendo contrariado as
leis elementares da oferta e da procura, o socialismo do século
XX constituiu, segundo uma velha piada, a mais longa transição
entre o capitalismo e o capitalismo. Não deve ser diferente com o
seu arremedo atual, sob a forma do “socialismo do século XXI”.
Espera-se apenas que este dure menos, bem menos, inclusive
porque ele exibe traços de monopolização do poder político
que, manifestamente, pertenceram ao outro sistema coletivista
e totalitário do século XX, provavelmente irmão do primeiro...

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

F
aço parte daquilo que poderia ser classificado, à falta de melhor
definição, como “cultura de esquerda”, algo suficientemente
disseminado no Brasil para desobrigar-me aqui de maiores
elaborações sobre seu conteúdo específico. Talvez eu devesse
dizer que pertenço hoje bem mais à “cultura” do que à “esquer-
da”, et pour cause: adjetivos desse tipo, one-sided, são em geral
reducionistas ou simplificadores e os maniqueísmos que usamos
na vida corrente não estão adaptados aos matizes da realidade e
a uma visão abrangente dos processos sociais, sempre complexos
em sua totalidade. Dicotomias como “esquerda” e “direita” são
partes de um todo, mas relutam em abrigar as particularidades
que não se encaixam em seus moldes pré-concebidos.
Sem maiores considerações terminológicas ou meto-
dológicas, pretendo listar e em seguida discorrer sobre o que
considero serem os sete grandes pecados da cultura da esquerda,
características pouco defensáveis e que parecem atrapalhar sobre-
maneira seu desenvolvimento e sucesso público. Alguns desses
pecados são “veniais”, como a visão popularesca da cultura e da
vida social, outros são “mortais”, como a ojeriza ao mercado ou
a objeção à democracia simplesmente formal, mas todos eles me
aparecem como “inutilidades históricas” ou “relíquias bárbaras”
que já deveriam ter desaparecido do discurso da esquerda, se é
verdade que ela pretende se colocar como alternativa credível
de poder e de administração pública.
Quais são, afinal, esses “pecados dialéticos” que afligem a
esquerda, no Brasil e no mundo? Listei apenas sete, como os sete
pecados capitais, mas eles poderiam ser mais. Contentei-me, no
momento, com estes sete, mas aceito sugestões “amplificadoras”.

1. A esquerda é estupidamente antimercado.


2. Ela é (falsamente) igualitarista.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

3. Ela se posiciona contra a “democracia formal”, preferindo Mercados (e moedas) são antiquíssimas instituições
a “democracia real”. humanas — ou melhor, “societais” — que muito contribuíram
4. A esquerda é geralmente estatizante (o que é, realmente, para “empurrar” as sociedades a patamares mais avançados
uma pena). de organização social da produção e de distribuição de bens e
5. Ela é anti-individualista, preferindo os “direitos coletivos”. serviços. São não apenas indispensáveis como insubstituíveis,
6. Ela é tristemente populista e popularesca. já que permitem operacionalizar, na prática, a velha lei da
7. Também costuma ser voluntarista e anti-racionalista. oferta e da procura, sinalizando o encontro de produtores e de
consumidores, mediante esta outra instituição intangível, mas
Voilà: feita a listagem dos pecados “dialéticos” que julgo tremendamente real, que se chama “preço”. A esquerda pode
identificar na esquerda, certamente atribuídos a uma história até não gostar da lei da oferta e da procura, mas ela não tem
de lutas que remonta ao século XIX (mas que ela se esqueceu de o direito de negar sua realidade social e sua validade históri-
atualizar para nossos tempos de globalização), vejamos como ca. Ela pode também achar que a sociedade estaria mais bem
explicar cada um deles e, quiçá, contribuir para sua superação. organizada segundo o princípio vagamente utópico que pro-
clama, seguindo Marx na sua “Crítica ao Programa de Gotha”
8.1. Antimercado (da socialdemocracia alemã do século XIX), “de cada um se-
gundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
Eu disse que a esquerda é “estupidamente” antimercado, De fato, a ojeriza da esquerda contra os mercados deriva
e tenho, infelizmente, de reforçar o adjetivo estúpido, pois isso diretamente de Marx, pois ela não é típica de outras correntes
constitui um flagrante atestado de incoerência e de irracio- socialistas (como as proudhonianas ou de autogestão, por
nalidade da parte de um grupo que, supostamente, cultiva as exemplo), e provavelmente se explica pelos horrores da exploração
boas virtudes do método dialético. Trata-se, porém, de uma do trabalho durante a primeira Revolução Industrial, dos quais
atitude muito frequente no meio acadêmico e comum às várias Marx tinha conhecimento pela leitura de relatórios oficiais
vertentes do movimento. Ela deriva de um preconceito origi- britânicos e pelo livro de seu amigo Engels sobre a situação da
nal, filiado geneticamente ao velho barbudo, mas que sempre classe trabalhadora na Inglaterra (não consta que ele jamais
constituiu o mais grave pecado que prejudicou terrivelmente tenha adentrado numa fábrica). O pecado original está aí: Marx
a carreira da esquerda em todo o mundo. Suas consequências concluiu, de modo hegelianamente falso, que o vilão da história
foram verdadeiramente trágicas, pois que não apenas redun- era essa instituição singular e onipresente chamada “mercado”,
daram em inúteis sofrimentos sociais, incompreensíveis in- e não um fator real e diretamente responsável, chamado “mercado
consistências econômicas, além de catastróficos atentados aos laboral”, então, e ali na Inglaterra, caracterizado pelo “excesso”
direitos humanos nos vários países nos quais experimentos de de oferta de trabalhadores, o que deprimia o “preço de mercado”
esquerda tentaram “corrigir” as chamadas “insuficiências do dos trabalhadores em questão. Concluindo pela perversidade
mercado”, como elas continuam a obstaculizar os progressos natural dos mercados, Marx recomendou sua abolição, mas ele
da esquerda em direção a uma administração mais racional o fez de modo puramente teórico, sem maiores consequências
das “coisas”. para a humanidade. Em todo caso, mesmo em sua época,

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

economistas como John Stuart Mill e Vilfredo Pareto já tinham mente capitalista (e até mesmo aristocrática), como Saint Simon
criticado as posições de Marx sobre a “extração de mais-valia” por exemplo, puderam incorrer na ilusão de que mercados e
como inexequíveis e irracionais, mas a esquerda se “esqueceu” sistemas produtivos pudessem ser organizados pelos homens de
de ler esses críticos do profeta maior. maneira mais “racional” do que aquela permitida pelo simples
As coisas se complicaram quando Lênin, um gênio em funcionamento da lei da oferta e da procura. O inacreditável
matéria política, mas um inculto em economia, resolveu concre- é que, ainda hoje, pessoas que se consideram de esquerda —
tizar as poucas ideias vagas de Marx sobre o funcionamento de mantendo, portanto, certo comprometimento com o progresso
uma “economia socialista”, na sua concepção podendo prescindir social e o bem estar das pessoas — mantenham o preconceito
dos mercados. Não deu outra: foi um desastre completo, tanto totalmente equivocado contra o mercado alimentado pelos pais
que ele resolveu, rapidamente, voltar a aceitar o funcionamen- fundadores do marxismo. Marx certamente cometeu um erro,
to parcial dos mercados, na chamada NEP, a “nova economia Lênin persistiu no equívoco e Stalin simplesmente acumulou
política”. Mas, mesmo nesse regime, as grandes fábricas foram crime sobre crime, ao pretender fundar uma nova economia na
nacionalizadas, burgueses e latifundiários foram devidamente ausência total de mercado e de sinalização de preços. O fracasso
expropriados e se começou a lançar as bases do “planejamento só poderia ser completo.
econômico socialista”, algo que Stalin aperfeiçoaria tremen- Tanto isso é verdade que os primeiros experimentos de
damente alguns anos depois, com os custos humanos que se “reforma socialista”, no pós-Segunda Guerra, inspirados por
conhecem. economistas que tinham vivido sob o capitalismo como Oskar
Desde o início, entretanto, um economista “liberal” Lange, pretenderam introduzir mecanismos de mercado na
como Ludwig Von Mises advertia para a impossibilidade de “economia planejada”, voltando a utilizar os preços como
funcionamento de uma “economia socialista” naquelas bases, sinalizadores do cálculo econômico. Não deu muito certo, nem
pela ausência do mecanismo absolutamente indispensável ao naquela época, nem posteriormente, em tempos de glasnost e
cálculo econômico: a fixação dos preços via mercado, ou seja, perestroika, uma vez que a autonomia operacional e gestora
a velha lei da oferta e da procura. A esquerda também preferiu requerida pelos mercados, com livre disposição dos bens em
ignorar essas advertências e seguiu construindo o socialismo a função do custo de produção e apropriação de renda segundo
seu risco e perigo. Deu no que deu: um imenso desperdício de as oportunidades de mercado, revelou-se incompatível com o
“forças produtivas”, uma coerção absolutamente inimaginável, monopólio partidário exercido por uma nomenklatura que se
em termos históricos, das “relações de produção”, e uma ausência apropria do processo de decisão sem medir a raridade relativa
notável de progresso econômico sob aquele “modo de produção”, dos fatores de produção e organizando ela mesma a distribuição,
em virtude dos reduzidos (ou inexistentes) incentivos à inovação segundo critérios não econômicos de “mérito”.
tecnológica, em vista da recusa de “riqueza proprietária” (ou de Esse desastre conceitual se perpetua ainda hoje pelo
acumulação em bases individuais). simples fato de que os principais produtores e disseminadores
Podemos até compreender, e de certa forma aceitar, que de “conhecimento”, que são os professores da rede pública, em
tais erros tenham sido cometidos no passado, uma vez que até especial os universitários, mantêm a ilusão (e o autoengano)
mesmo “engenheiros sociais” de espírito e vocação eminente- de viver à margem do mercado, pois que eles recebem sua

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

paga independentemente dos seus níveis de produtividade de imenso risco social, como aliás já deveríamos ter descoberto
relativa. Esta é uma das muitas distorções do serviço público, aqui no Brasil. A esquerda precisaria refletir sobre isso.
mas que sempre são sancionadas pelo mercado e pelos preços
(neste caso indiretamente, via retorno social dos investimentos 8.2. Igualitarismo
feitos ou gastos incorridos no sistema de ensino público),
independentemente do que possam pensar tais “disseminadores” A esquerda é igualitarista, o que é compreensível: isso faz
de cultura antimercado. parte de seu credo evangelizador e legitima o discurso político
O preconceito da esquerda contra os mercados, e seus pelo qual ela pretende conseguir adeptos e ter sucesso social.
sinalizadores, pode até ser aceito no pequeno mundinho semipro- O mesmo ocorre com outros cultos ou mesmo religiões intei-
dutivo da cultura universitária, mas ele se revela absolutamente ras: pregar a simplicidade na vida, uma partilha equitativa dos
catastrófico quando transmutado para o terreno das políticas bens e um usufruto razoavelmente equilibrado dos recursos
públicas, em especial as de cunho diretamente econômico. disponíveis sempre soou como disposição de bom senso e de
A pretensão de certos intelectuais, em geral diretamente saídos inegável mérito humanitário. Mas, existe um problema aqui:
do mundo universitário, de organizar a sociedade e a economia não existe almoço grátis, como reza uma velha arenga, e se você
em bases “socialmente justas”, isto é, “corrigindo as imperfeições está se alimentando de graça é porque alguém está pagando
dos mercados”, traduziu-se em desastres incomensuráveis do por isso. Em outros termos, como não existe maná dos céus
ponto de vista da riqueza social, o que geralmente se refletiu ou uma cornucópia infindável jorrando alimentos a partir do
na “desacumulação”, no “desinvestimento” e em manifestações nada, os recursos escassos têm de ser organizados para servir
mais prosaicas como fuga de capitais, alocação sub-ótima a fins socialmente úteis.
(senão totalmente errada) de recursos escassos e assistencia- A sociedade humana inventou uma outra instituição tão
lismo inconsequente do ponto de vista da produtividade do velha quanto os mercados e as moedas para tentar organizar
trabalho humano. essa escassez relativa: a propriedade. Ela é apropriada indivi-
Os “intelectuais” que assim procedem pensam que seu dualmente (sempre quando isso é possível) porque a fonte de
trabalho de “planejador” é pago com “recursos públicos”, quando toda a riqueza é o trabalho humano — como ensinavam Adam
a única fonte de riqueza, em qualquer sociedade, é o trabalho Smith e Marx — e se supõe que as instituições estatais (que tam-
diretamente produtivo dos agentes econômicos que possuem bém surgem muito cedo na história das sociedades) respeitem
ou manipulam fatores de produção (e a administração estatal esse princípio da “acumulação individual”. Quando isso não
não é um deles, muito menos o ensino universitário, ainda que ocorre é mais do que provável que não haverá um incentivo à
este possa contribuir para “acumular conhecimento”, base do acumulação e, portanto, ao aumento da riqueza social, com o
progresso tecnológico). Em todas as instâncias de geração de que todos serão mais pobres, mas especialmente os mais pobres
riquezas, repito “em todas”, os mercados são absolutamente dentre os pobres, uma vez que os verdadeiramente ricos sempre
indispensáveis para o bom funcionamento do mecanismo distribuem um pouco de seu patrimônio em torno de si, sob a
econômico da sociedade. Pretender ignorá-los, e a seus forma de trabalho doméstico e outros serviços “aliviadores” do
sinalizadores imediatos que são os preços, constitui uma atividade seu próprio trabalho.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

Mas eu disse que a esquerda é falsamente igualitarista Isto se dá porque o capitalismo plenamente eficaz e
porque não conheço, em qualquer parte do mundo, uma funcional implica em relativa “anomia” dos mercados, isto é,
sociedade que tenha conduzido um experimento inovador de total “anarquia” dos sistemas produtivos e distributivos. Em
igualitarismo radical. Aceitando-se que alguns possam dispor princípio, todos são livres para produzir e vender o que desejam
de bens sem qualquer correspondência com sua contribuição fabricar e distribuir, nada se opondo à constituição de pequenas
efetiva para a criação da riqueza que os sustenta, como todas as firmas ou grandes empresas que arriscam o patrimônio de seus
sociedades socialistas admitem, tem-se que existe uma igualdade proprietários (e os ativos de outros participantes, acionistas
para os simples iguais e um pouco menos de igualdade para diretos ou investidores longínquos) no livre jogo da oferta e
os “mais iguais”. Admitamos que estes sejam “detalhes” numa procura de bens e serviços, triunfando apenas o menor preço e
situação distributiva bem mais complexa e tratemos daquilo a maior qualidade. Quando os mercados são verdadeiramente
que incomoda realmente a esquerda: o excesso de desigualdade livres, o capitalismo exerce todas as suas qualidades de melhor
distributiva e os absurdos da ostentação social de riqueza, por sistema para criar e distribuir riquezas; quando eles, ao contrário,
um punhado de ricos, entenda-se, numa situação de relativa são pouco livres, até o capitalismo ostenta suas mais horrendas
penúria para a maior parte da sociedade. feições, sob a forma de cartéis e de monopólios que distorcem
Essa situação realmente existe e sua origem é geralmente a concorrência e alimentam, aí sim, o mais iníquo dos perfis
atribuída, pela esquerda, ao capitalismo, aos mercados, à distributivos de riqueza (pois que baseado na exploração
apropriação individual de riquezas, ou a todos esses fatores impiedosa daqueles que foram alijados do mercado por critérios
reunidos. Passemos por cima da tremenda simplificação que outros que não os diretamente econômicos).
significa equacionar capitalismo a mercados, quando o primeiro O problema da distribuição, que está na base das vocações
convive com os mais diferentes tipos de mercados e se puder (e das pretensões) supostamente igualitaristas da esquerda,
tenta contornar e conformar os mercados segundo seus gostos e deriva justamente do fato de que ela pode ser organizada em
preferências particulares (sempre no sentido da acumulação e da bases que não têm diretamente a ver com a dotação de fatores
concentração). Existe, por certo, certa tensão entre “acumulação existentes num determinado sistema produtivo. Ou seja, havendo
capitalista” e distribuição de riqueza, mas as relações causais um Estado que atua como agente regulador e “distribuidor”
entre uma e outra não são unívocas ou unidirecionais: um de bens e serviços “públicos”, é muito provável que os atores
dos países nos quais é maior o crescimento das desigualdades estatais sejam tentados a organizar a distribuição desses bens,
distributivas é justamente a China atual, formalmente descrita mesmo daqueles que não são necessariamente “públicos”, em
como “socialista de mercado” ainda oficialmente comprometida bases “socialmente justas”, praticando um pouco de “Robin
com a igualdade de condições dos cidadãos. Devemos assim Hood” a serviço dos mais pobres. É até “normal” que isso
observar que os diferenciais mais gritantes de distribuição de ocorra e plenamente compreensível nos termos “morais” em
riqueza geralmente são encontrados em sociedades muito pouco que o assunto é colocado pelo discurso da esquerda (que nesse
capitalistas pela sua organização e tradição e que as sociedades caso se confunde com as pregações religiosas de muitos cultos).
plenamente ou tipicamente capitalistas apresentam um perfil O problema começa quando se passa do “fluxo” de riquezas
distributivo bem mais, arrisquemos a palavra, “igualitário”. para a gestão dos “estoques”.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

Expliquemos mais um pouco, pois a esquerda tende A melhor forma de praticar “igualitarismo” é, portanto,
geralmente a confundir fluxos com estoques. Os fluxos são atuar sobre os fluxos, isto é, fazer com que os atores sociais
constituídos por todo produto do trabalho humano, sendo possam retirar o máximo de remuneração e de retorno social
tanto maiores quanto forem elevados os índices de produtivi- possíveis de suas atividades diretamente produtivas (também
dade desse trabalho. Já os estoques são simplesmente riqueza distributivas, isto é, nas áreas que têm a ver com a intermediação
acumulada, ativos de diversos tipos em formas por vezes não e os serviços, inclusive o ensino público). Isto geralmente
diretamente líquidas, e que representam apropriação individual consegue-se elevando os padrões de produtividade do trabalho
ou coletiva. Tanto fluxos como estoques variam tremendamente, humano, o que tem a ver com a capacitação educacional e
entre as sociedades e dentro delas, dependendo da capacidade profissional dos atores sociais. Daí se conclui que a melhor
produtiva e da maior ou menor propensão a poupar dos agentes forma de se fazer uma distribuição “igualitária” das chances
sociais (a poupança é uma atitude eminentemente individual, de sucesso social (e de acumulação de riqueza, portanto)
mas existem indutores estatais de poupança “compulsória”). seria via qualificação educacional de todos, segundo padrões
A poupança e o investimento são dois elementos absolutamen- universais (e mínimos, mas quanto maiores melhor) de ensino
te indispensáveis ao crescimento da riqueza social, e sem eles e de aprendizado técnico profissional. Isso se consegue por
simplesmente não haveria o que distribuir, pois que os estoques um ensino fundamental de boa qualidade, o que geralmente
existentes seriam simplesmente dilapidados entre os atores do é admitido pela esquerda, mas apenas teoricamente, pois que
jogo social. ela prefere se dedicar ao ciclo universitário (que pode ser tudo
Um dos problemas da esquerda não é o de pretender num país, menos universal). Quando a esquerda admitir que a
ao igualitarismo social — o que poderia ser até perdoado on melhor forma de ajudar os “pobres”, no Brasil, seria praticando
moral grounds —, mas é o de pretender fazê-lo atuando sobre os uma revolução educacional radical (mas isso deve ser feito
estoques existentes, em lugar dos fluxos continuamente criados essencialmente em favor dos mais pobres, que não passam do
para aumentar a riqueza disponível. A esquerda parece querer segundo ciclo), talvez possamos começar a pensar na diminuição
realmente ser “Robin Hood”, ou seja, tomar dos ricos para dar dos níveis absurdamente altos (iníquos e imorais, em todos os
aos pobres, quando o que ela consegue fazer, por essa via, é planos) de concentração de riqueza em nosso país.
incitar os ricos a esconder ou expatriar sua riqueza, diminuindo a
poupança, ou os investimentos, e em geral a ambos, o que impede 8.3. A esquerda é contra a democracia formal
o aumento contínuo de riqueza social. Que o mundo seja injusto
e desigual, isso é conhecido desde os tempos bíblicos e até antes A esquerda sempre foi contra a “democracia burguesa”,
disso. Que a correção dessa desigualdade — equiparada ou não por ela considerada como simplesmente formal, ou “vazia de
a uma “injustiça social” — possa ser feita mediante repartição conteúdo social”, com consequências trágicas para as liberdades
dos estoques existentes, significa que esse tipo de “engenharia em várias épocas e circunstâncias. O que ela pretende é uma
social”, quando praticada, pode teoricamente acarretar outras “verdadeira” democracia, querendo com isso dizer que todos
injustiças individuais, irracionalidades econômicas e até mesmo devem dispor de igualdade de chances, e de um patamar mínimo
certo grau de violência social. de subsistência, para exercer plenamente os “direitos políticos”.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

Isto é um equívoco grave, pois é como se o conteúdo deriva da educação política da população —, seja no que
do regime político fizesse parte de seu “envelope” social. se refere ao exercício mesmo das funções delegadas, muito
A democracia nada mais é do que um “método”, um conjunto pouco controladas pelo povo representado e, sobretudo, se
de regras do jogo que se situa na esfera das relações sociais, mas prestando a diversos abusos de forma e de conteúdo (como o
que não podem determinar, essas mesmas regras, as formas fato de que certos delegados do povo façam dessa representação
pelas quais os membros da sociedade irão repartir as riquezas um verdadeiro negócio privado). Quanto mais formal for a
e administrar as competências individuais, na produção de bens democracia brasileira, isto é, menos sujeita a injunções pessoais
e no seu consumo. e idiossincrasias das corporações em que se organiza o Estado e
Em outros termos, a democracia não pode ultrapassar sua mais atenta às regras da boa gestão pública, com controle social
vocação original, que é a de simplesmente determinar como os das funções delegadas, melhor será para a população.
cidadãos delegarão mandatos e poderes a seus representantes A democracia brasileira não será mais ou menos “burguesa”
para o desempenho de funções administrativas (executivas e se ela se apresentar como simplesmente “formal”, mas ela será
legislativas), técnicas (serviços públicos), corretivas (justiça) ou de melhor qualidade se esse formalismo for capaz de diminuir
defensivas. Mas todas essas funções — e algumas outras não ou simplesmente minimizar as demandas particularistas — seja
eventualmente compreendidas nessas acima — são meramente da burguesia, do proletariado ou de qualquer outra categoria
redistributivas de alguma riqueza previamente criada em social — em direção de um sistema de organização política que
outras esferas da vida social, e não podem, elas mesmas, pretende, meramente, dispor sobre as “regras do jogo” (na feliz
criar riquezas para que a “democracia” as distribua. Isso é definição de Norberto Bobbio), sem avançar na definição de
virtualmente impossível. Pretender o contrário seria pedir “direitos sociais” ou “econômicos” que podem inviabilizar seu
demais à democracia. modo de funcionamento. A esquerda brasileira deveria parar
Por isso mesmo que a democracia deve permanecer formal, de pretender atribuir rótulos à democracia e empenhar-se, tão
pois qualquer outra atribuição concreta e real, no plano das simplesmente, em construir uma “boa democracia formal” em
desigualdades distributivas, implicaria certo grau de “violência nosso país.
social” que comprometeria as bases do regime democrático. A
esquerda deveria lutar para aperfeiçoar o regime democrático 8.4. A esquerda é estatizante
no plano da representação — não necessariamente de tipo
corporativo — e no âmbito do controle dos recursos públicos É realmente uma pena que assim ocorra, pois que o
(que são eminentemente “privados”, como já se esclareceu) próprio Marx não era estatizante, pelo menos não no sentido
que são colocados à disposição desses representantes para o finalista. Verdade que no Manifesto do Partido Comunista, texto
desempenho de suas funções eminentemente políticas (e não que alguns consideram a “bíblia” do comunismo ideal — mas
econômicas). que não constituiu senão uma plataforma preliminar para a
Parece óbvio, por exemplo, que a democracia brasileira, tomada do poder pelos trabalhadores, escrita muito rapidamente
plenamente existente no plano das instituições, é de “baixa no início de 1848 para responder à onda revolucionária então
qualidade”, seja no que se refere à representação — o que em curso na Europa —, várias das medidas preconizadas

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

“para os países mais avançados” comportam uma estatização acredita a cultura de esquerda, do que pela intervenção direta
integral de diversos setores da economia: sistema bancário, do Estado, uma instituição que deveria ser colocada acima
transportes, latifúndios e instrumentos de produção em geral. das classes e servir tão somente de instrumento temporário de
Tratava-se, contudo, de um programa imediato de correção das redistribuição equânime de riquezas.
desigualdades sociais, não de uma proposta definitiva para a Por características próprias das sociedades modernas, o
organização social da produção em regime socialista, já que logo Estado acabou assumindo um papel econômico exagerado em
em seguida se afirmava que “uma vez desaparecidas no curso relação aos velhos princípios da economia política de Adam
do desenvolvimento as diferenças de classe e concentrada toda Smith e do próprio Marx: guerras, revoluções e outros conflitos
a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público civis, e mais frequentemente crises financeiras e bancarrotas
perde o seu caráter político”. industriais, acompanhados ou não de ciclos econômicos
Marx certamente não era anarquista, mas ele via o Estado depressivos, com alto desemprego e sofrimentos sociais, levaram
como um instrumento de dominação de classe, podendo, o Estado a assumir um papel incomparavelmente maior do que
portanto, desaparecer uma vez superada essa situação, como o normalmente esperado numa economia de livre mercado.
registrado nos textos posteriores à Comuna de Paris. Ele Por outro lado, a forma especificamente estatizante assumida
pretendia mesmo, como confirmado por Lênin em uma de pelo socialismo bolchevista, com a expropriação completa dos
suas últimas obras “teóricas”, o fim do Estado e, na expressão produtores privados e o desenvolvimento do planejamento
de Engels, a “substituição do comando dos homens pela centralizado, também contribuiu para essa concentração
administração das coisas”. O Estado era visto por Marx e por enorme de poderes econômicos nas mãos do Estado moderno,
Engels, como também (hipocritamente) por Lênin, como algo inédito, mesmo para os padrões dos antigos “despotismos
um mero expediente temporário, um “mal necessário” na orientais”.
transição para uma sociedade sem classes. Deixemos de lado Disso redundou que, durante todo o decorrer do século
essa pretendida (e ilusória) abolição da sociedade de classes, XX, tanto nas sociedades capitalistas como nas socialistas, o
que acarretaria a consequente eliminação do Estado, para nos Estado assumiu um papel central na organização e na gestão
concentrarmos no seu papel econômico, que não é, obviamente, de diversas atividades econômicas que, ainda que estivessem na
um simples comitê gestor dos negócios da burguesia, como está esfera dos chamados “bens públicos” (serviços de infraestrutura
escrito no Manifesto. e de comunicações são os mais típicos, mas educação e saúde
Os socialistas marxistas partilham, de certa forma, da também podem ser arroladas), poderiam ser fornecidas e
boutade de Proudhon, segundo a qual toda propriedade é um garantidas em bases totalmente privadas, ou segundo a conhecida
roubo. No sentido mais especificamente marxista, a eliminação fórmula dos mercados regulados. Com efeito, não existe nenhuma
da extração de mais valia e de sua apropriação individual razão racional, à exceção daqueles serviços de retorno difuso
pelo capitalista, por meio da revolução proletária, deveria e contabilidade aleatória — como são as atividades de defesa e
resultar em uma gestão coletiva dos meios de produção, com justiça —, pela qual a maior parte dos bens e serviços “públicos”
uma administração igualmente coletiva dos mecanismos não possa funcionar em bases de mercado: a demanda por
redistributivos. Ora, não há forma mais eficiente de fazê-lo, determinados serviços, como se sabe, é desigual segundo as

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

famílias e não há justificativa econômica, por exemplo, para que mais bem desempenhadas se o Estado a elas se dedicasse de
solteiros ou casais sem filhos paguem pela educação dos filhos maneira mais focada. A esquerda deveria refletir sobre essas
de terceiros. O mesmo se aplicaria à saúde e à maior parte das realidades e revisar um pensamento já por si anacrônico e
chamadas public utilities: o critério de mercado é o que melhor responsável, nos dias de hoje, por perdas sociais cumulativas,
se ajusta à alocação ótima de recursos segundo a demanda, que só podem acarretar prejuízos para os mais pobres, como
evitando desperdícios indevidos que sempre vêm associados à sempre ocorre.
chamada apropriação coletiva de serviço públicos.
Trata-se de uma posição absolutamente racional, suscetível 8.5. A esquerda é anti-individualista
de convencer aqueles que mais deveriam prestar atenção ao
bom uso dos recursos públicos, de maneira a maximizar os Este é um axioma do pensamento da esquerda, pelo menos
ganhos de bem estar do conjunto da sociedade. Um Estado desde a Revolução Francesa, ou quiçá antes, desde alguns filósofos
eficiente, bom gestor dos recursos que lhe são atribuídos iluministas. Esta não é, obviamente, a tradição do liberalismo e
pela sociedade — e sabe-se que esta possui um limite de do utilitarismo britânicos, dos iluministas escoceses e dos liberais
tolerância para a imposição tributária —, estaria em melhores ingleses. Karl Popper já tinha feito amplos esclarecimentos
condições de prestar serviços aos verdadeiramente desprovidos sobre algumas das raízes dessa tradição, que ele faz remontar
de meios e condições de prover à sua própria subsistência, a Platão e vem dar direto em Hegel e Marx no século XIX.
ou à educação e saúde dos familiares. Da mesma forma, uma A Revolução Francesa atravessa e alimenta essa corrente, de
gestão não estatal do sistema de previdência social poderia, forma algo contraditória aliás, pois ela tinha começado por
provavelmente, obter melhores resultados em termos de retorno uma proclamação sobre os direitos do homem e do cidadão, de
futuro, eventualmente sob a forma de contas individuais de cunho absolutamente liberal e “burguês”. Mas a esquerda prefere
capitalização das contribuições recolhidas, do que o atual sistema apoiar a tradição termidoriana que se manifesta com clareza em
de fundos difusos, administrados na base do pay-as-you-go, Robespierre (seguido por Lênin quase que ipsis litteris). É a linha
que coloca todos os recursos nas contas globais do Estado, dos direitos coletivos, da “razão do Estado”, que vai resultar no
de onde eles saem segundo as necessidades momentâneas da Stato totale de Mussolini e outros (como Salazar, em Portugal,
administração em vigor. com seu “Estado novo”, e nossos autoritários caboclos, que o
O culto que a esquerda devota ao Estado, como provedor seguiram até meados do século XX pelo menos).
de “bens públicos”, é absolutamente antimarxista e, de toda Antes disso, Lênin já tinha manifestado sua apreciação
forma irracional, pois que ele não foi feito para arcar com pelos métodos de “justiça expedita” seguidos por Robespierre.
responsabilidades gestoras que têm uma dimensão própria Homenageando a criação da polícia política do novo Estado
e um modo peculiar de provimento, geralmente de cunho bolchevique, ele dizia, sem hesitação: “Nós não estamos lutando
microeconômico (como são os “mercados” já referidos, contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia enquanto
segmentados segundo os usuários, forçosamente desiguais em classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo
suas demandas), e que nada têm a ver com suas funções típicas pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão?
— legislativas, judiciárias ou de defesa nacional —, que seriam Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

do Terror Vermelho” (in Paul Johnson, Tempos Modernos. Rio Direitos coletivos constituem uma categoria especial de
de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, p. 56). Em síntese, os direitos direitos, geralmente de natureza social ou econômica, que se
individuais devem se anular face aos “direitos coletivos” e a somam, mas não substituem, os direitos individuais, que são
sociedade sempre tem preeminência em relação ao indivíduo. inalienáveis, segundo as declarações universais subscritas pelo
O problema não é apenas filosófico ou moral, uma vez governo cubano, relativas ao direito à vida, à liberdade de pen-
que ele tem consequências práticas, segundo o tipo de política samento e de circulação, inclusive o direito de dispor de sua
pública privilegiada pelos indivíduos que ocupam tempora- residência. A defesa dos direitos individuais, mesmo contra o
riamente (por vezes de modo delongado) o Estado. A questão Estado, constitui um dos mais notáveis progressos da consciência
é claramente exemplificada pelo caso de Cuba, que constitui, coletiva e da própria humanidade; eles não são simplesmente
como se sabe, um dos mais tradicionais bastiões de luta política ocidentais ou “burgueses”, mas são universais. Que novos di-
da esquerda brasileira. A defesa da Revolução cubana se faz reitos, de base coletiva, comunitária, étnica, social, econômica
de modo integral, em bloco, sem distinguir os aspectos meri- ou ambiental, venham se agregar aos direitos existentes trata-se
tórios da luta antiditatorial conduzida por Fidel Castro e seus de um progresso desejável, mas isto não pode se fazer em de-
seguidores — contra um regime, o de Batista, enfeudado ao trimento dos direitos naturais dos indivíduos.
imperialismo americano e praticando uma política de entrega A esquerda não pretende negar os direitos do homem
do interesse nacional —, de outros aspectos menos gloriosos, e do cidadão, mas ela tende a defender, em primeiro lugar, a
ligados à repressão política indefensável contra o direito dos soberania dos Estados e, em segundo lugar (e a isso ligado),
cidadãos cubanos desenvolverem atividades econômicas priva- os direitos coletivos, que podem ser formulados de maneira
das, de expressar opiniões diferentes das do partido único ou, a anular os direitos individuais. Os próprios acordos inter-
simplesmente, de emigrarem, de acordo com sua consciência nacionais preveem, em alguns casos, a derrogação de alguns
ou vontade própria. direitos, em caso de grave ameaça à segurança do Estado e à
O fato de alguns expoentes da esquerda brasileira terem defesa nacional. Sabemos, pela experiência histórica, que essa
justificado o julgamento sumário e o fuzilamento de indivíduos invocação é muito facilmente feita pelas ditaduras, em casos nos
— que não eram sequer dissidentes políticos —, simples “can- quais os direitos individuais tentam se opor ao poder discricio-
didatos” à emigração, não é apenas indefensável do ponto de nário desses governos, que invocam a segurança do Estado ou
vista político, mas é moralmente abjeto e condenável sob todos algum outro “perigo público” para denegar a observância desses
os critérios. A justificativa se fez, e se faz, a pretexto de “defesa direitos. Trata-se de um claro retrocesso, que não poderia ser
da Revolução”, contra seus inimigos internos e externos, ou sancionado por qualquer movimento político que aspira ao
seja, os “direitos coletivos” da sociedade cubana — o que quer direito de governar um país.
que isso queira dizer — devem se sobrepor aos direitos indivi- Dentre os direitos que não são derrogáveis, segundo a
duais dos cidadãos cubanos. Triste posição essa de expoentes Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), estão o
da esquerda brasileira, denegando direitos humanos a indiví- direito à vida, a prescrição da tortura, a não-sujeição à escravidão
duos cubanos em nome de uma ideologia e de um movimento ou servidão, a prisão por dívida, a não-retroatividade penal, o
político. direito de cada um ao reconhecimento de sua personalidade, bem

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

como a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. ocorreu em outubro de 2002. Recusar essa realidade é acreditar
Que a igualdade, a solidariedade, a participação no bem-estar naquelas imagens que veem a elite como um gordo capitalista
coletivo e outros direitos possam igualmente ser assegurados de cartola e charuto, sentado num monte de dinheiro, e achar
pelos Estados constitui, sem dúvida, um grande progresso no que o povo é unicamente formado por aqueles trabalhadores de
sentido da promoção de valores universais, mas essa promoção macacão com os quais a esquerda se identifica, mas, que de fato,
não pode se fazer em detrimento dos direitos individuais. esse povo não se reconhece nessa outra elite, a do pensamento.
A esquerda é dominante no establishment universitário, nos
8.6. A esquerda é populista e popularesca círculos culturais, nos meios de comunicação e em vários outros
ambientes influentes na sociedade brasileira. Ela conforma,
Invariavelmente, os textos da esquerda, de natureza cultural portanto, uma elite, no sentido pleno do termo. O fato da
ou mesmo política, estão repletos de frases derrogatórias das esquerda se recusar a ver a si mesma como elite, não lhe retira
“elites” e valorizadoras das características do povo e da cultura o caráter de elite, nem de fato, nem de direito. Sua identificação
popular. É de certa forma patético constatar isso, mas tudo o com o povo é meramente retórica, tão ou mais populista do que
que vem da elite é considerado como intrinsecamente mau, ao os discursos da direita que pretende encarnar o “verdadeiro
passo que o que vem do povo é bom, por definição. Quando espírito nacional”, geralmente centrista e conservador. Com
esse tipo de discurso vem das hostes da direita, é identificado efeito, o pensamento progressista, de esquerda, só existe numa
com o chamado populismo e condenado de uma penada, sem fração esclarecida da população, geralmente da classe média para
apelação. cima, no máximo entre alguns poucos membros da “aristocracia
As culpas pelo nosso subdesenvolvimento material, as operária”, que também são a elite da classe trabalhadora.
características perversas do modelo social brasileiro, a cor- De resto, a condenação genérica das elites pelo discurso
rupção e o atraso são inevitavelmente atribuídos às elites e aos de esquerda é hipócrita e mal informada, pois que não refe-
seus “500 anos de dominação”. De certa forma, isso encerra o rida a uma elite concreta, mas sim a um simulacro de elite,
discurso, pois que essas elites não são em geral definidas, nem que só existe no pensamento da esquerda. Da mesma forma, a
identificadas em seu perfil próprio a cada época. Basta culpar exaltação dos valores do povo, de sua “genialidade” cultural e
as elites, elogiar as virtudes do povo e a “análise sociológica” inventividade “natural”, soa como um escárnio, aliás uma ver-
está feita. De certa forma, o antropólogo Darcy Ribeiro foi dadeira manifestação de elitismo cultural, pois que redundando,
um grande expoente desse tipo de pensamento, que passa por igualmente, numa aceitação acrítica e condescendente dos “pro-
progressismo de esquerda. dutos” populares, independentemente de seu valor intrínseco
Ao mesmo tempo, a esquerda não consegue perceber que e contribuição para o enriquecimento cultural da população.
ela também é de elite, ainda que não necessariamente do poder Esse tipo de atitude termina por justificar e legitimar formas
e do dinheiro. Elites sindicais, partidárias e intelectuais são tão erradas de expressão oral e letrada (por evidente incultura do
elites quanto quaisquer outras, com amplo acesso aos meios “produtor popular”), que podem até encontrar acolhimento no
de comunicação e, eventualmente, até aos círculos do poder, campo do folclore, mas jamais no campo do conhecimento a
quando não conseguem, elas mesmas, assumir esse poder, como ser promovido pelo Estado.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos

Ao assim fazer, a esquerda acaba confundindo manifestações duramente (por vezes cruelmente) as esquerdas, e onde as
da cultura popular, plenamente aceitáveis em seu contexto esquerdas finalmente chegaram ao poder ao início do século XXI,
próprio e que acabam fazendo parte do chamado “patrimônio” não se observa uma mudança radical de políticas econômicas
nacional, com a cultura formal, que não precisa ser erudita, ou mesmo de políticas sociais, em relação às políticas e práticas
mas que sempre é cientificamente rigorosa e dotada de certa anteriormente adotadas. Observa-se, incidentalmente, nos
lógica intrínseca, e que constitui uma condição indispensável países que elegeram dirigentes de esquerda, uma forte retórica
para a elevação cultural de qualquer povo. Os raciocínios mudancista, mas, de fato, práticas cautelosas, quando não
semiológicos e os exercícios de “intuição” típicos da cultura conservadoras de administração da “coisa pública”. As próprias
popular, cultivados por políticos e outros demagogos, mas que esquerdas são conscientes desse fato, pois elas são as primeiras
deveriam ser rejeitados por membros de uma elite intelectual a protestar contra a não-mudança, em ruidosas manifestações
e do pensamento, como pretende ser a esquerda, constituem de rua e em incontáveis manifestos de intelectuais.
contrassensos culturais e um desserviço à causa da elevação O que acontece, na verdade, é que se as propostas e
educacional do povo. Não há nada de mais populista ou sugestões de políticas que são oferecidas nessas manifestações e
popularesco do que cultivar acriticamente o popular apenas pelo manifestos fossem submetidas a referendo popular elas seriam
fato de ser popular. Quanto à condenação genérica das elites, fragorosamente derrotadas. Por outro lado, os movimentos de
a esquerda deveria olhar no espelho e fazer um sério exercício “esquerda” que foram eleitos tiveram sucesso pelo fato mais
de autocrítica. prosaico de terem revertido um discurso vazio e uma retórica oca
que prometia “grandes mudanças”, em prol de uma abordagem
8.7. A esquerda é voluntarista e antirracionalista mais realista e cautelosa das políticas macroeconômicas e
setoriais. Como as esquerdas “intelectuais” dispõem de ampla
O voluntarismo, aqui, se refere a uma suposta encarnação audiência nos meios de comunicação, elas tendem a acreditar
da vontade popular, da qual a esquerda pretende deter o que seu discurso mudancista, pela via da ruptura, é aceito
monopólio (não se sabe bem se por direito divino). Se olharmos pela sociedade, quando na verdade ele se move em círculos
o registro histórico, entretanto, veremos que as esquerdas, em concêntricos, falando para seus próprios convertidos. Quanto
suas diversas versões político-ideológicas, estiveram muito às esquerdas “práticas”, elas já se converteram, de modo sub-
pouco à frente de governos ou enquanto responsáveis de reptício, à socialdemocracia, praticando, sem dúvida, um discurso
políticas públicas. Esta não é uma afirmação gratuita e sim uma mudancista, agora pela via da reforma paulatina, mas sobre isso
simples constatação de fato: deve haver algo de errado com elas calam, têm vergonha ou hesitam em confessá-lo.
um movimento que se proclama vanguarda popular, mas que Isso nos remete ao segundo conceito selecionado neste
na verdade esteve muito pouco em condições de determinar sétimo (e último, até aqui) “pecado dialético” da cultura da
políticas que influenciaram a vida das sociedades nos últimos esquerda: o antirracionalismo. A esquerda se pretende aberta ao
150 anos, pelo menos. debate público e às controvérsias em torno de questões políticas,
Mesmo na América Latina, que conheceu por longos sociais e econômicas, mas isso habitualmente se dá no plano mais
períodos muitos governos de direita que, aliás, combateram geral das questões atinentes à própria sociedade nacional e aos

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problemas internacionais, ao passo que, no terreno das ideias, Dentre os cinco exemplos práticos apontados como
ela é sabidamente autista e infensa ao debate público sobre suas representando um avanço das ideias da esquerda latino-americana
próprias posições. O que é isso senão, de fato, antirracionalismo? no campo eleitoral, três pelo menos podem ser considerados
Antes que alguém me acuse de má vontade em relação às como excepcionais e não representativos. O Chile emergiu de
ideias da esquerda, se o conceito se aplica, gostaria de trazer dois uma transição cautelosa da ditadura e elegeu, primeiro, um
pequenos exemplos em apoio ao argumento. Tenho sido um leitor governo democrata-cristão, depois um de cunho socialista que,
habitual e frequente das publicações da esquerda, nos últimos ambos, voluntariamente ou porque concluíram que não havia
50 anos, pelo menos (confesso que com crescente cansaço em outro caminho, praticaram as mesmas políticas econômicas
relação a certa sensação de déjà vu). Se eu fizesse uma tabulação em vigor na fase final da ditadura militar. A Venezuela ainda
das matérias mais relevantes e dos temas mais frequentes nessas não se recuperou da grave crise de legitimidade que atingiu seu
revistas (agora boletins eletrônicos) os campeões absolutos sistema partidário, totalmente desacreditado politicamente, e
seriam, pela ordem: a crise do capitalismo, a agressividade do enveredou pelo caminho do populismo voluntarista, que só se
imperialismo, a nocividade das políticas sociais e econômicas sustenta economicamente graças à renda petrolífera, um maná
“burguesas” do ponto de vista dos interesses populares e do subsolo que representa ao mesmo tempo uma maldição em
a condenação absoluta do “consenso de Washington” e do termos de (baixa) diversificação de sua economia. A Argentina,
neoliberalismo, ambos no mesmo saco indistinto da globalização por fim, mergulhou num verdadeiro abismo econômico, também
capitalista, excludente e assimétrica. Estarei exagerando? Não por incapacidade de suas elites políticas, não apenas “radicais”,
creio, pois basta consultar os títulos das matérias dessas revistas mas, sobretudo, peronistas, e tem ainda um largo caminho pela
(que me eximo de citar para não fazer publicidade indevida e frente para recuperar o terreno perdido em anos de experimentos
gratuita). econômicos mirabolantes.
Gostaria que me indicassem quantas vezes compareceram A rigor, apenas o Brasil da era Lula e o Uruguai do Frente
artigos fazendo autocríticas dos próprios erros analíticos, Amplio poderiam ser apresentados como exemplos de legítimas
matérias de revisão das previsões erradas sobre a crise geral transições políticas de “esquerda”, ainda que o conceito seja
(em alguns casos final) do capitalismo, ensaios em torno de duvidoso do ponto de vista das políticas econômicas adotadas
algum (mesmo modesto) reconhecimento pela factibilidade por seus dirigentes. A retórica social progressista, que conseguiu
nula, ou marginal, das próprias propostas da esquerda para uma afastar os tradicionais partidos de centro-direita do poder, ainda
solução “inventiva” dos “graves desequilíbrios econômicos e não foi capaz de realizar uma verdadeira transformação das
sociais do capitalismo”, enfim, de discussão das próprias ideias estruturas econômicas e sociais e é mesmo duvidoso que intentem
da esquerda que foram (e são) sistematicamente derrotadas nas fazê-lo, a despeito de afirmações em contrário. Obviamente, o
urnas, mesmo quando pretendem encarnar a vontade geral do balanço final dos resultados concretos ainda precisa ser feito,
povo e a “recusa de tudo isso que aí está”. Esses exemplos são sendo cedo para avaliar corretamente essas experiências desses
mínimos, ou simplesmente inexistentes, pois o tom geral é de governos de esquerda” do ponto de vista de suas próprias ideias,
condenação das ideias dos outros, não de reconsideração das suas tal como expostas em programas eleitorais e repetidas em
próprias ideias. Mais uma vez: gostaria que me contestassem. incontáveis discursos nos meios de comunicação.

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Em todo caso, abstraindo-se os exemplos da Venezuela e como excludente e concentradora, quando todas as evidências
da Argentina, que conformam manifestações agudas de crises estatísticas e factuais vão de encontro a esses argumentos
gerais de seus sistemas políticos, alimentadas também por enviesados.
crises econômicas mais ou menos profundas, o único modelo Um pouco mais de modéstia, ou de simples atenção
de crescimento econômico, de transformação produtiva e à realidade, poderia fazê-los constatar que a globalização é
de progresso social na região parece ser o do Chile, não eminentemente progressista, que ela retira, sim, milhões de
por acaso sistemática e sintomaticamente desprezado pelas excluídos da miséria mais abjeta, e que seu caráter capitalista
esquerdas. A razão parece simples: se há um exemplo de não constitui uma marca de opróbrio ou uma maldição, pela
país que seguiu, de modo quase religioso, pode-se dizer, as simples razão de que o único “modo de produção” que restou
ideias do chamado “consenso de Washington” e as práticas nos supermercados da história foi o velho e duro capitalismo,
recomendadas pelos neoliberais, este país foi o Chile. Que ele por absoluta inexistência de qualquer modo alternativo de
venha experimentando anos e anos de crescimento sustentado, se organizar a produção material e a distribuição de bens e
de estabilidade macroeconômica e conhecendo progressos serviços em escala mundial. Relatórios e mais relatórios, estudos
reais, embora modestos, no caminho da elevação dos padrões empíricos de entidades não suspeitas de colusão ideológica
de vida da população, tudo isso pode ser mera coincidência, com os capitalistas triunfantes de Wall Street têm demonstrado
mas o exemplo poderia incitar, talvez, os analistas de esquerda suficientemente as transformações benéficas — que tendem
a se debruçarem um pouco mais de perto sobre esse modelo largamente a superar os impactos negativos — da globalização
“neoliberal” de desenvolvimento econômico e social. O real capitalista, mas isso não parece comover de nenhum modo os
progresso econômico e social não esconde, obviamente, agudos antiglobalizadores mais engajados.
problemas de desigualdades sociais e de carências específicas Que um “outro mundo” seja possível não é de se descartar,
aos sistemas educacional e de previdência social, questões que embora isso pareça pouco provável no horizonte histórico
podem encontrar soluções no quadro de um debate político previsível, mas os antiglobalizadores podem até fazer um
responsável sobre correções ao modelo adotado. esforço teórico adicional para expor de modo mais concreto sua
O segundo exemplo, finalmente, de autismo e de configuração precisa, em lugar de simplesmente ficar atirando
antirracionalismo nas esquerdas é representado pelo chamado pedras nas vitrines do capitalismo. Que esses antiglobalizadores
movimento altermondialista, que deveria ser chamado, mais não gostem do lucro, da acumulação capitalista e até das duras
apropriadamente, de simplesmente “antiglobalizador”, uma regras de mercado — como também acontece com as “velhas”
vez que ele recusa de modo peremptório a globalização, mas esquerdas — pode ser compreensível e mesmo esperado
não conseguiu, ainda, determinar qual seria esse “outro mundo em estudantes universitários dotados de indignação juvenil
possível”. Não se tem notícia de exemplo mais patético de recusa anticapitalista, mas eles estão geralmente “excluídos” da economia
da realidade, como a assemblagem de representantes progressistas de mercado pela via do trabalho direto (ainda que não deixem
e de esquerda, reunida sob o emblema do Fórum Social Mundial, de ser consumidores). Que esse tipo de crença seja alimentado
que proclamava, a cada encontro e de modo estridente, as também por velhos militantes da esquerda, por sindicalistas
carências da globalização capitalista, invariavelmente descrita experimentados e, mais ainda, por políticos profissionais, aí o

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

caso é bem mais grave, conformando um tipo de autismo que


pode ser incurável.

Voilà: encerro por aqui meus comentários sobre a cultura


da esquerda, não sem antes lembrar que minha lista não é
exaustiva. Existem, por certo, muitos outros “pecados dialéticos”
no comportamento, nas atitudes e sobretudo nas “disposições
mentais” da esquerda, mas prefiro no momento não comentar
essas outras deficiências.
Contento-me, em contrapartida, com apontar o fato de
a esquerda valorizar, reconhecidamente, muito mais o ensino Capítulo 9
universitário do que a educação popular, o que pode contribuir
para manter o Brasil nesse estado catatônico de indigência
produtiva, dada a baixa qualificação das massas trabalhadoras.
Ora, é sabido que a única fonte de riqueza de uma nação é a
produtividade do trabalho humano, que no Brasil apresenta
Sobre a responsabilidade
índices reduzidos.
Que tal se a esquerda operasse uma “revolução mental”
dos intelectuais
e passasse a defender, de modo resoluto, uma verdadeira
“revolução” no ensino público fundamental do Brasil?

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

O
tema é bastante conhecido e eu começo imediatamente
pelo enunciado do problema: deveriam os intelectuais
ser responsabilizados por suas ideias, por seus livros e
ensinamentos? Ou, dito mais precisamente: deveriam ser
considerados responsáveis pela utilização que se faz ou que se fez
de suas ideias e prescrições? Quem sabe até por suas omissões,
conivências e silêncios?
Aproveito para dizer logo o que motiva este meu pequeno
ensaio: deveriam intelectuais do século XIX, como Marx e Engels,
ser considerados culpados (ou inocentes, segundo argumentam
alguns) pelo que sucedeu, no século XX, a sociedades tão diversas
quanto a Rússia, a China, Cuba ou Coréia do Norte? Ou seja,
levam eles alguma culpa pelos milhões de mortos provocados
pelos experimentos socialistas em cada um desses países (e em
vários outros mais)? Estariam eles na origem do mal?
Interrompo para um breve parênteses: permito-me sugerir
aos que acreditam que esses ‘milhões de mortos’ são apenas um
‘pequeno detalhe da história’ e que o socialismo é, a despeito
dos ‘poucos erros’ cometidos’, uma boa coisa — posto que seus
princípios fundadores, os de uma sociedade sem classes, igua-
litária, livre do capitalismo, seriam ‘essencialmente positivos’
—, que eles desistam de ler este ensaio aqui mesmo. Pessoas
que preferem ignorar fatos concretos do século XX talvez não
devam ser perturbadas em suas crenças; elas têm todo o direito
de manter as fantasias de seu mundo imaginário. Não me dirijo
a essas pessoas; apenas àquelas que não pretendem esconder a
realidade, e que sabem, objetivamente, que os socialismos reais
provocaram dezenas de milhões de mortos ao longo do século
XX. Fecha parênteses.
Volto a perguntar: podemos concordar com aqueles que
pretendem isentar os intelectuais pelas consequências práticas

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

que decorrem de suas doutrinas e de seus ensinamentos? Em 9.1. Uma visita rápida a Norberto Bobbio
outros termos, deveríamos aderir ao velho mote que diz que a
teoria é uma coisa, mas que a prática é outra, muito diferente Antes, contudo, de voltar aos meus argumentos, permito-
daquela? Em suma, vamos concordar com a escusa de que só me citar um trecho de um dos ensaios mais conhecidos do famoso
poderíamos ser considerados culpados por aquilo que fizermos, jurista italiano: “Quale Socialismo?” (publicado originalmente
objetivamente, não existindo a figura da ‘culpa intelectual’? em MondOperaio, a. 29, n. 5, dez. 1976, p. 55-63), do qual
Levanto estas questões a propósito de um debate, entre- transcrevo (e traduzo do italiano) o seguinte trecho, irônico,
cortado, que mantive com um colega acadêmico, que me disse para dizer o mínimo:
que Marx não era responsável pelos mortos do Gulag, assim
como Jesus Cristo não poderia ser considerado responsável Não gostaria de deixar passar em silêncio uma outra tese...: a tese
pelas cruzadas, pela Inquisição, pelas perseguições aos heréti- segundo a qual Marx não deve ser considerado responsável pelas
cos, enfim, por todos os crimes cometidos em nome da religião más aplicações da sua teoria (por exemplo, o stalinismo), não mais
cristã ou da Igreja Católica. do que Locke, Montesquieu ou Croce podem ser considerados
responsáveis pelas más formas do Estado representativo que temos
Minha resposta, na época, foi a de que, no primeiro
sob nossos olhos. Me surpreende que um estudioso sério... não leve
caso, deveríamos, sim, considerar Marx culpado pelos crimes em consideração que uma opinião desse tipo conduz diretamente à
cometidos em nome de sua doutrina, ao longo de um século tese, tão cara aos ‘evasores’, da ‘irresponsabilidade dos intelectuais’.
XX especialmente mortífero — no qual o fascismo e outras Um intelectual pode sustentar qualquer coisa: sempre é inocente.
perseguições odiosas também exibem sua cota de responsabilidade Nietzsche pode ter escrito perorações longas de um quilome-
por vários milhões de mortos, mas em escala inferior aos do tro (somando fragmentos de duas ou três linhas obsessivamente
socialismo de cunho marxista — mas que, no segundo caso, repetidas) em defesa do instinto contra a razão, da vontade de
as culpas objetivas precisariam ter sua ‘filiação’ traçada aos potência contra a democracia pacífica, da moral dos senhores
contra a dos escravos, para desmascarar ‘a conjuração universal
argumentos usados pelos perpetradores desses crimes. Expli-
das manadas, contra os pastores, animais predadores, solitários e
quei-me: se, por acaso, as pregações de Jesus Cristo abrigassem cesarísticos’, mas o nazismo não tem nada a ver com isso. Pareto
qualquer incitação à morte de “desviantes” — de qualquer pode ter tratado depreciativamente e diminuído a burguesia do
tipo —, ele poderia, ou deveria, sim, ser responsabilizado seu tempo por não ter sabido contrapor a violência contrarrevo-
por aqueles perversidades apontadas; mas restaria provar lucionária à violência revolucionária, mas o fascismo está fora de
essa vinculação de modo objetivo, com provas documentais questão. Hegel pode ter escrito que o Estado é tudo e o indivíduo
(e eu lançava o desafio, a qualquer pessoa, de encontrar nada (‘Tudo o que o homem é, ele deve ao Estado: apenas neste
nos textos dos evangelhos alguma incitação aos fenômenos ele tem a sua essência’), mas aqueles, Gentile à frente, que fizeram
dele o precursor do Estado ético da memória fascista, apenas
descritos acima). Esse era o estado do debate, infelizmente
divagaram, e o teórico da ética do Estado, sobretudo agora que
interrompido, não por minha iniciativa, mas que pretendo tornou-se o pai de Marx, é puro como um anjo.
retomar agora. Marx e seu amigo Engels desmantelaram o Estado
representativo, sustentaram que todo Estado, pelo simples fato de
ser Estado, é uma ditadura, que a passagem do Estado burguês ao

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

Estado proletário seria simplesmente a passagem de uma ditadura No mesmo sentido vai a observação crítica do sociólogo
a outra, sempre sustentaram que o importante era que se mudasse alemão Ralf Dahrendorf, numa conferência proferida na
o sujeito histórico e tudo teria corrido melhor, independentemente Columbia University, em1994, quando ele advertia que “os
das formas (se entende jurídicas) sob as quais o novo sujeito se
intelectuais têm responsabilidade pública. Onde eles se calam,
teria ‘organizado’, e agora [1976] nos permitimos nos surpreender
pelo fato de que os Estados socialistas continuam a ser ditaduras e
as sociedades perdem seu futuro.”67
que seus chefes se proclamam os únicos intérpretes do marxismo-
leninismo? Que Marx acreditasse de boa fé que a democracia 9.2. Desvios cristãos e marxistas:
proletária, pelo simples fato de ser proletária, fosse mais democrática
similares, semelhantes, comparáveis?
do que a burguesa, e que assim estivesse na origem de um novo
Estado que apressasse o processo de extinção do Estado, não nos
exime de observar que a única prova que ele teve à sua disposição, Pois bem, volto agora ao debate supracitado sobre a res-
as instituições da Comuna de Paris, eram muito fugazes para que ponsabilidade dos intelectuais sobre eventuais consequências
se pudesse construir uma teoria sobre elas; a história, até aqui, de seus escritos e propostas. Um dos argumentos comumente
não lhe deu razão. usados em meios acadêmicos para isentar os teóricos ‘funda-
Depois, não é de fato verdade que Locke, Montesquieu e cionais’ de qualquer responsabilidade sobre o que fizeram seus
Croce tenham sido absolvidos. Por quem? Não, certamente, pelos seguidores a partir das teses originais, no caso os crimes do
escritores marxistas. Com as obras anti-Locke, as anti-Montesquieu
socialismo no século XX, é o de que seria preciso diferenciar
(existe uma, inclusive, de Althusser) e as anti-Croce, chamados
Marx dos marxismos. Ou seja, Marx, que disse uma vez que não
recorrentemente de ideólogos da classe burguesa, de ‘lacaios’ da
classe dominante, ou de porta-bandeiras da reação, se poderia era ‘marxista’, não teria nada a ver com a obra prática de seus
preencher toda uma estante de biblioteca. Aquilo que é lícito aos seguidores, suas recomendações quanto à derrubada do poder
marxistas não deveria ser lícito a escritores não marxistas com da burguesia e a implantação da ‘ditadura do proletariado’ não
respeito a Marx, a Engels ou a Lênin? seriam absolutamente consideradas uma causa direta dos tota-
Muito cômodo, de fato muito cômodo, separar as obras inte- litarismos que se vincularam ao seu nome no século passado.
lectuais da história que elas geraram e daquela que elas ajudaram A justificativa corre aproximadamente segundo esta linha:
a gerar, mesmo pela via indireta, e colocá-las em uma espécie de da mesma forma que não podemos responsabilizar Jesus Cristo
status naturae incorruptae, em um estado de perpétua inocência,
pelo que os cristãos fizeram e fazem em seu nome, também
não maculadas pela lama da história. Nós, pequenos, pequenís-
simos, somos ou não somos responsáveis pelo que escrevemos? seria absurdo identificar de forma absoluta a teoria de Karl Marx
Claro que somos. E por que escreveríamos se não acreditássemos com as práticas, e mesmo as interpretações teóricas, dos seus
que alguém fosse ler? Nós, portanto, somos responsáveis, e os seguidores. Em outros termos, não podemos ter certeza de que
grandes, que dispõem de uma audiência bem mais vasta e dura- aquilo que foi construído em nome do marxismo seria a expres-
doura, não o são?66

67 Cf. Ralf Dahrendorf, Após 1989: Moral, Revolução e Sociedade Civil. São Paulo:
66 Cf. “Quale socialismo?”, In: Norberto Bobbio, Etica e Politica: scritti di impegno Paz e Terra, 1995; conferência: “A responsabilidade pública dos intelectuais: contra
civile Milano: Arnoldo Mondadori, 2009, p. 1306-1308; existe edição brasileira o novo medo do esclarecimento” (27/11/1994); a palavra “esclarecimento” — do
dessa obra: Qual Socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. alemão Aufklärung — talvez devesse ser traduzido como Iluminismo.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

são verdadeira da obra marxiana. Uma justificativa derivada é personagem não guarda conexão direta, pelo menos registrada,
a de que, como muitos disputam o legado histórico, a tradição com as fontes alegadas da doutrina. Mas, ainda que se fizesse
intelectual que a obra original representa, não se poderia, por tal vinculação, seria preciso também provar, no plano prático,
isso mesmo, vincular os malfeitos práticos que foram cometidos que os crimes realmente cometidos em nome do cristianismo
em nome da doutrina ao formulador original das proposições. — que seria o ‘marxismo’ dos cristãos — podem ser vinculados
A primeira dificuldade, intelectual e prática, desse tipo a pregações, normas, projetos e programas que encontrariam
de argumentação é a própria equiparação de Karl Marx a Jesus sustentação na doutrina original; quais seriam estes?: conversão
Cristo: ela não é apenas simplória e desprovida de qualquer forçada do ‘gentio’, eliminação de heréticos, perseguição e tortura
equivalência histórica real, mas é profundamente enganosa de ‘dissidentes’, censura ao pensamento e à expressão de outras
quanto ao conteúdo mesmo das mensagens de cada um. Senão religiões, proibição de reuniões e movimentos organizados com o
vejamos. fito de disseminar doutrinas julgadas em desacordo com a linha
Equiparar Cristo e Marx — de maneira totalmente arbi- original, interdição de obras expressando opiniões divergentes
trária e de uma forma completamente anacrônica do ponto de ou contrarias à ‘boa doutrina’ etc. Quais são as ‘parábolas’
vista da metodologia histórica — para, em seguida, desculpá- fundadoras desses crimes? Como e de onde citar? Seria, por
los, prévia e automaticamente, de qualquer bobagem, besteiras acaso, algo do estilo: “Cf. Jesus Cristo, apud Marcos, Mateus...”?
ou mesmo crimes, que seguidores, discípulos ou quaisquer O desafio aos que pretendem fazer esse tipo de equiparação
outros indivíduos posteriores possam ter cometido em nome é significativo: pode-se, com alguma certeza histórica, imputar a
da doutrina original, é uma operação no mínimo indevida, e Cristo alguma, uma sequer, das barbaridades que seus discípulos
no limite desonesta intelectualmente. Cristo, ao que se sabe, e seguidores fizeram em seu nome, em termos de massacres de
é um personagem histórico sobre o qual não temos fontes heréticos, cruzadas contra os infiéis, perseguição de desviantes?
originais completas e isentas de qualquer dúvida interpretativa, Ainda que não se saiba, ao certo, se os evangelistas foram ou não
o que obviamente não é o caso de Marx, cidadão com registros fiéis às suas prescrições (de resto, esparsas) — que é o que se
históricos disponíveis e obras publicadas em vida. Cristo, de seu poderia alegar em defesa de Marx, contra alguns ‘marxistas infiéis’
lado, não parece ter feito obra teórica ou empírica registrada —, quais seriam, de toda forma, os textos ou recomendações
diretamente, ou seja, ele não foi autor de nenhum manuscrito, a doutrinais que poderiam sustentar aqueles ‘trabalhos práticos’
não ser de parábolas, ensinamentos, predicações e outras formas de cunho repressivo? Ao contrário, as mensagens ‘transmitidas’
de transmissão oral de princípios, valores, concepções, das parecem padecer de certa ingenuidade humanitária e, sobretudo,
quais tomamos conhecimento pelo registro indireto e posterior exalam recomendações que poderiam ser julgadas, por qualquer
de quatro evangelistas e alguns comentaristas esparsos, dos pessoa normal, como excessivamente tolerantes ou ingênuas;
quais apenas dois conviveram ou foram contemporâneos do aquela coisa de ‘oferecer a outra face’, em lugar de simplesmente
personagem histórico. aplicar a lei do Talião, ou diretamente passar o adversário na
Ou seja, no plano teórico, não se poderia imputar espada, como alguns recomendariam.
diretamente a Jesus Cristo qualquer responsabilidade pelo Existe, pois, um obstáculo ‘estrutural’ a esse tipo de
uso que seguidores fizeram dessas predicações, pois o próprio equiparação que marxistas ‘tolerantes’ pretendem fazer em

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

direção de Marx ou mesmo de Lênin (embora neste caso as plano das fundações, pela edificação viciada, mas teoricamente
desculpas se tornem ainda mais forçadas). Não acredito que justificada, perpetrada por Lênin e seguidores.
qualquer tipo de exegese — do tipo da que se poderia fazer com Não é possível, simplesmente, escusar Marx pela autoria
o Alcorão, por exemplo — chegaria jamais a encontrar alguma intelectual da obra prática posterior de seus discípulos, posto
filiação genética ou mesmo filosófica entre o comportamento que, de forma alguma, ele pretende se isentar, ele próprio, de
de cristãos intolerantes de séculos posteriores e o conjunto de uma responsabilidade já anunciada desde a 11a. tese sobre
referências conceituais e prescrições de cunho moral atribuíveis ao Feuerbach. De resto, basta reler Miséria da Filosofia, para
personagem original da doutrina cristã. A pretensa similaridade constatar o desprezo com que ele trata Proudhon e os ‘socialistas
de funções ou de papéis é inepta no plano conceitual e totalmente utópicos’; Marx não tinha qualquer respeito ou tolerância com
incabível no plano da prática. aqueles que ele considerava seus adversários intelectuais; aliás,
ele os esmagaria pessoalmente se pudesse. Pode-se também
9.3. O que Marx tem a ver com o socialismo do século XX? reler os textos dos bakuninistas sobre Marx e todas as diatribes
intertribais que dividiram, desde essa época, blanquistas,
Minha tese é muito simples: desculpar Marx pelo que fi- revolucionários profissionais ou simples terroristas.
zeram os marxistas em seu nome não é apenas ilógico, no plano Marx era um homem de partido, e como tal atuou, desde
formal, como é totalmente equivocado no plano material, ou os tempos da Liga dos Comunistas, passando pela Primeira
seja, no da história concreta da humanidade desde o final do Internacional e mais adiante, pela Comuna de Paris, até as
século XIX até os nossos dias. Marx não apenas assinou textos, últimas etapas de sua vida. Desde o Manifesto Comunista (1848)
como recomendou a revolução proletária, a expropriação violenta até Lutas de Classe na França (1871) e a Crítica do Programa de
da burguesia e a implantação de uma ditadura do proletariado Gotha (1875), o trabalho organizacional e as prescrições quanto
como forma de transição para o socialismo, recomendações a medidas imediatas e de médio prazo para a constituição do
seguidas fielmente (e até agravadas) por Lênin, que mandou Estado revolucionário, sob a ditadura do proletariado, ocupam
simplesmente eliminar fisicamente todos os que pertenciam à grande espaço em sua obra e são por demais evidentes para
classe inimiga, independentemente de culpa individual. serem descartadas como simples recomendações teóricas, sem
Deve-se, em primeiro lugar, descartar como ridícula a conexão com o mundo real. As vinculações são tão diretas que
alegação de que Marx não pode ser responsabilizado pelo que a paternidade foi reconhecida em primeira mão por aqueles
ocorreu muito depois que seus escritos foram elaborados e mesmos que pretendiam representar fielmente o seu pensamento,
eventualmente circulados, num contexto — o do século XIX a começar por Lênin.
— totalmente diferente daquele que prevaleceu no século XX,
dominado por guerras terríveis, deslanchadas por contradições 9.4. O que fez Lênin para aplicar as ideias de Marx,
interimperialistas, segundo a conhecida interpretação leninista. e as suas próprias...
O equívoco aqui cometido consiste em pretender escusar o
arquiteto pela obra mal feita dos engenheiros que lhe seguiram, Os discípulos tentaram seguir fielmente o que Marx
ou seja, isentar Marx, autor da primeira concepção e do próprio escreveu e recomendou e, portanto, a mesma responsabilidade

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

incumbe a todos os demais seguidores do credo, tanto no plano dos primeiros campos de concentração claramente políticos70. Na
intelectual, como prático. Não é preciso ter lido Solzenitzyn e verdade, a raiz de tudo, do Gulag, dos julgamentos fraudulentos,
seu ciclo sobre o Arquipélago do Gulag para constatar aquilo que da crueldade inaudita contra os ‘inimigos de classe’, está em
os próprios comunistas já sabiam desde os tempos de Lênin e Lênin, que deve ser considerado como plenamente responsável
Trotsky, pelo menos. Aliás, o próprio Solzenitzyn traça, em seu pelo maior sistema escravocrata da era moderna, por ele
Lênin em Zurique, um poderoso retrato intelectual, e psicológico, montado, mas incrementado e desenvolvido em dimensões
do líder exilado, revelando em termos claros as bases do que verdadeiramente ‘industriais’ por Stalin.
viria depois, como obra intelectual e prática.68 Lênin, o verdadeiro inventor do terror moderno, apreciava
No terreno das ideias, os vínculos são evidentes. Basta veri- Robespierre e sua ‘justiça expedita’: desde os primeiros dias da
ficar o que se lia nas universidades soviéticas e chinesas ao tempo revolução de 1917 ordenou à Tcheka, a polícia política criada
da construção do socialismo: os pais fundadores, obviamente. para esmagar a ameaça ‘contrarrevolucionária’, que fuzilasse
Tudo isso é história, agora. Mas o que se pensa que constitui sem hesitação não só os opositores declarados do novo regime,
leitura obrigatória, em Havana ou Pyongyang? Adam Smith,69 mas também os representantes da classe proprietária em geral,
John Stuart Mill, Alfred Marshall? Marx e Lênin ainda estão capitalistas, grandes comerciantes e latifundiários, religiosos,
no currículo acadêmico nesses lugares, assim como estiveram enfim, os potenciais ‘inimigos de classe’. Criador do Gulag,
anteriormente nas economias precursoras. Dessa forma, Marx em sua primeira emanação, ele justificava assim o trabalho da
deve ser plenamente responsabilizado pelos desastres econô- Tcheka: “A Tcheka não é uma comissão de investigação nem um
micos do socialismo, que fizeram tantas vítimas, talvez mais, tribunal. É um órgão de luta atuando na frente de batalha de
do que os crimes diretos de Stalin e Mao Tsé-Tung. As fomes e uma guerra civil. Não julga o inimigo: abate-o... Nós não estamos
privações ocorridas na Ucrânia, nos anos 1930, e na China, na lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia
passagem dos anos 1960, foram o resultado direto das concepções como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o
econômicas originais, tanto quanto do voluntarismo de Stalin indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação
e Mao, provavelmente os ditadores absolutos num século que ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado.
conheceu vários outros da mesma espécie. Esta é a essência do Terror Vermelho.”71
Não se pode, contudo, isentar Lênin das barbaridades Stalin se encarregou de aplicar sistematicamente as
stalinistas e maoístas do século XX. Muitos true believers recomendações de Lênin, e o fez de forma completa, começando
acreditam que Lênin teria sido um líder genial, e que apenas por incorporar como ‘clientes’ da máquina de terror administrada
Stalin foi o monstro assassino de velhos bolcheviques e o criador por ele os seus próprios colegas de partido. A amplitude da
repressão, ampliada e desenvolvida no seu mais alto grau no
68 Cf. Alexander Solzenitzyn, Lénine à Zurich. Paris: Seuil, 1975.
69 Caberia, aliás, corrigir o título do consagrado livro de Giovanni Arrighi: Adam 70 Os primeiros campos de concentração, para maior precisão, foram feitos pelos
Smith em Pequim; deveria ser o contrário, uma vez que não ocorreu nenhuma ingleses na guerra dos Boers, na África do Sul, mas tinham, em princípio, utilidade
mudança na postura do filósofo escocês nos últimos dois séculos e meio, nem militar-estratégica.
sua obra foi corrigida; os chineses é que caminharam em direção aos preceitos 71 Citado por Paul Johnson, Tempos Modernos: o mundo dos anos 20 aos 80. 2ª ed.;
do filósofo da Escócia. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, p. 35.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

Gulag de Stalin, justifica que apliquemos a este a categoria para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia
de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura,
terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda que matou 6 ou 7 milhões de ucranianos ‘livres’ igualmente.
Guerra Mundial. Independentemente de suas funções ‘didáticas’, A taxa de mortos sobe para seu máximo de 25% em 1942, para
de intimidação direta e aberta contra a própria população da declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema
União Soviética, o Gulag teve um importante papel econômico ‘industrial’ do Gulag já tinha sido instalado em sua plenitude.
na história do socialismo naquele país, chegando a representar, No total, 2,7 milhões de cidadãos soviéticos podem ter
a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo representa
madeira e grandes quantidades de outras matérias-primas. Os apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante todo o
prisioneiros passaram a trabalhar em qualquer tipo de indústria, regime stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo
vivendo num país dentro de outro país.72 sistema soviético.74 Os autores do Livro Negro do Comunismo
O sistema do Gulag, que chegou a reunir 476 campos estimam em 20 milhões as vítimas do regime soviético, o que
em diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro do pode ser uma indicação plausível da realidade (outros colocam
Estado, regulando diversos aspectos de um universo concen- entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se
tracionário que não teve precedentes, teve poucos imitadores aproximam da cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para
efetivos (a despeito da terrível eficácia mortífera dos campos o número total de ‘clientes’ de todo o sistema concentracionário
de concentração nazistas) e certo número de seguidores, sendo soviético, em sua longa história de ‘terror vermelho.75
os mais efetivos exemplos os sistemas ‘correcionais’ da Coréia O Gulag foi a face mais visível da tragédia soviética,
do Norte e de Cuba (o do Khmer Vermelho, no Camboja, era mas certamente não a única ou exclusiva. O terrível legado
mais o de uma ‘máquina de matar’, como tinha sido o caso mais do socialismo do século XX comporta ainda sua modalidade
extremo de todos, o nazista). chinesa: com efeito, se outros experimentos centralizadores e
De acordo com os próprios dados do sistema,73 o número concentradores no domínio econômico também produziram
de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 pequenas e grandes catástrofes — como os sistemas fascistas do
para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. O turnover, entre guerras, bem como o próprio socialismo soviético, con-
obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, vertido em escravismo moderno desde o início da industrializa-
alguns escaparam (poucos), vários eram incorporados ao Exército ção forçada de Stalin — ao longo de suas histórias respectivas,
Vermelho ou à própria administração dos campos (cruel ironia).
As ‘taxas de desaparecimentos’ refletiram também as terríveis 74 Um número provavelmente maior foi sacrificado na fome epidêmica, em grande
condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de mortos em 1932 parte induzida por Stalin, no curso do violento processo de “deskulakização”
conduzida na Ucrânia no início dos anos 1930; ocorreram cenas de canibalismo
que depois seriam repetidas no “grande salto para a frente” da China (1958-1962).
72 Ver o livro de Anne Applebaum: Gulag: uma história dos campos de prisioneiros Ver, da mesma autora, Anne Applebaum, A fome vermelha: a guerra de Stalin na
soviéticos Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Ucrânia. Rio de Janeiro: Record, 2019.
73 Segundo estatísticas da própria NKVD, que foi sucessora da Tcheka e antecessora 75 Ver Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre noir du communisme. Crimes, terreur,
do KGB, informações consolidadas num apêndice ao livro de Applebaum, op. cit. répression Paris: Robert Laffont, 1997.

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poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso defensiva e evasiva: por um lado, se tenta diminuir o impacto
econômico e social que foi o experimento socialista chinês, em desses terríveis processos de eliminação de cidadãos — ou seja,
sua modalidade específica de maoísmo delirante. a violação repetida, continuada, extensiva, dos direitos humanos
Os historiadores — e os demógrafos — ainda não possuem de milhões de pessoas; e, por outro, se assiste ao continuado
os números definitivos, mas é provável que a trajetória maoísta esforço de rejeitar as economias de mercado e as democracias
tenha provocado algo como 50 a 60 milhões de vítimas, o burguesas, edulcorando (ou melhor, deformando) a verdadeira
que faz de Mao Tsé-Tung o campeão absoluto no registro das história do socialismo no século XX (provavelmente ainda
mortandades provocadas pelo homem ao longo do século XX, agora, no século XXI). As duas reações devem ser entendidas,
bem à frente de Hitler e de Stalin. Entre os mortos de fome e no contexto desta discussão, como uma tentativa de desculpar os
por canibalismo do “grande salto para a frente”, entre o final ‘pais fundadores’ da doutrina, alegando os costumeiros desvios.
dos anos 1950 e começo dos 60, passando pelos assassinados Não por outra razão o marxismo se encontra hoje em
e massacrados da revolução cultural, de meados dessa década, crise, e ela não é, simplesmente, derivada de diferenças de
e todos os encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao interpretação teórica em torno do “que Marx verdadeiramente
longo de 30 anos, o maoísmo conseguiu drenar como poucas quis dizer”, e sim em decorrência desse vínculo estrutural entre
dinastias antigas as veias da sociedade chinesa.76 Todavia, o a sua doutrina e suas consequências práticas no século que se
Khmer Vermelho, no Camboja, pode ter sido responsável, passou. Uma nova, e breve, visita, a Norberto Bobbio pode
proporcionalmente à população do país, por uma maior resumir a questão:
“produtividade” na eliminação de pessoas inocentes.
A crise atual não deriva de um erro de previsão, mas da constatação
incontrovertível de um fato real: a falência catastrófica da primeira
9.5. O que isso tem a ver com a responsabilidade tentativa de realizar uma sociedade comunista em nome de Marx
dos intelectuais? e do marxismo, ou então de Marx na companhia de Engels,
seguido de Lênin e depois de Stalin no decurso de uma sucessão
A compilação acima, de apenas algumas estatísticas, interpretada como uma filiação, ou derivação do mesmo pai.
sobre as experiências de exterminação de simples cidadãos — A comparação entre as igrejas tradicionais e a igreja comunista foi
muitos, inclusive, comunistas sinceros, talvez sinceros demais feita tantas vezes que parece uma banalidade ou uma perversidade
— não precisaria ser feita se os cenáculos frequentados pelos entre adversários irredutíveis. Mas mesmo sob esse aspecto, isto
assim chamados intelectuais não fossem caracterizadas por é, sob o aspecto da verdade fundamentada num princípio de
dois comportamentos típicos de uma atitude ao mesmo tempo autoridade e de sucessivas autorizações de outras autoridades,
é surpreendente. Existem aqueles que, em face de fatos reais,
tremendamente perturbadores como Auschwitz, chegaram a falar
76 Uma tentativa de balanço, não definitiva até abertura dos arquivos do regime da ‘falência de Deus’ (...). Por que, em face do gulag stalinista não
comunista chinês e até trabalhos mais acurados dos demógrafos profissionais, do se deveria falar da falência de Marx?77
custo humano do experimento comunista na China foi efetuada por Jean-Louis
Margolin, no capítulo “Chine: une longue marche dans la nuit”, In: Courtois, Le
Livre noir du communisme, op. cit. 77 Cf. Bobbio, Etica e Política, op. cit., p. 1374; ensaio: “Invito a rileggere Marx” (1993).

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Sobre a responsabilidade dos intelectuais

Em outros termos, com base no registro de enormes por alguns ícones tão falsos quanto desconhecidos, como o
violências cometidas pelos socialismos reais, em nome de Marx e de Ché Guevara), se esconde um dos empreendimentos mais
Lênin, ao longo do século XX, que todos os supostos intelectuais nefastos já conhecido na história da humanidade
conhecem, ou pelo menos deveriam necessariamente conhecer, Estes argumentos não se referem apenas à dimensão
parece, por um lado, inexplicável, e por outro lado, inaceitável, dos desastres econômicos e dos sofrimentos sociais infligidos
que os mesmos personagens que frequentam as mesmas a populações inteiras por uma ou duas gerações (e se supõe
academias que todos frequentamos, pretendam não apenas que isso seja por demais conhecido de todos, em vista das
diminuir, minimizar, ou claramente ignorar a dimensão desses estantes vazias dos empórios socialistas). Deve-se mencionar,
crimes, como pretendam, sem qualquer espírito crítico, sustentar principalmente, os crimes cometidos contra os direitos humanos
as mesmas teses e propostas de organização da sociedade que mais elementares, ou ainda aqueles situados no plano das
provocaram as situações descritas acima. misérias morais do socialismo: um regime de mentiras, de
Pode-se honestamente considerar a continuada defesa de fraudes, de delações organizadas, de regimes policialescos e de
equívocos históricos e políticos por parte desses acadêmicos mediocridades intelectuais como jamais ocorreu em muitas,
como sendo derivada de um insuficiente conhecimento da his- talvez a maioria, das ditaduras ditas de direita denunciadas pelos
tória, ou, então, provocada por uma ignorância metodológica mesmos acadêmicos que pretendem ainda defender a causa do
fundamental quanto ao modo de funcionamento econômico das socialismo marxista.
sociedades — equívocos, diga-se de passagem, que a ‘economia Em relação a esses regimes, que por boa parte do século
política’ distorcida do marxismo contribui para alimentar — XX se estenderam a territórios e populações imensas durante
mas é mais difícil aceitar, obviamente, a postura daqueles que praticamente três gerações, pode-se parafrasear a conhecida
preferem deliberadamente ignorar essas evidências amplamente frase marxiana do 18 Brumário: doravante, se espera apenas
conhecidas e registradas nos melhores livros de história. No que a história jamais se repita, sequer como farsa.
mínimo, se trata de miopia voluntária, no limite de um tipo de Não é correto que a ignorância do processo histórico
atitude intelectualmente desonesta e inaceitável. possa ser invocada em defesa dos que continuam a exibir
Pode-se considerar, igualmente, que os ‘marxistas’ equívocos monumentais do tipo aqui discutido; em todo caso,
brasileiros — as aspas se devem a que poucos, atualmente, um procedimento básico se aplica aos que fazem da academia o
parecem ter lido Marx, como se depreende dos escritos primários centro de suas atividades: a honestidade intelectual é a primeira
que circulam em certos periódicos — jamais conheceram os exigência de quem trabalha com o registro dos fatos históricos e
socialismos reais (aliás, em rápido desaparecimento, a ponto, sua interpretação no plano das ciências humanas. Espero apenas
talvez, de justificar a criação de algum museu de antiguidades que esta não seja mais uma frase vazia...
nessa área, para ajudar no esclarecimento dos mais jovens). De
fato, os acadêmicos mais jovens jamais tiveram contato direto
com as realidades descritas aqui, já que não conheceram qualquer
tipo de socialismo e não podem, por isso mesmo, sequer imaginar
que, por trás das belas consignas revolucionárias (emolduradas

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Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

Capítulo 10

Pode uma pessoa


inteligente pretender-se
comunista , hoje em dia?

265
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

10.1. Uma tradição passadista que não passa

A
pergunta do título não pretende contrapor-se, em geral, a
toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar alguém
em particular; as reflexões em torno dessa questão apenas
pretende questionar um paradoxo acadêmico encontrado não
apenas no Brasil, mas numa série de países ocidentais, nos
quais o comunismo ainda é apresentado como uma possível
solução às alegadas deficiências do capitalismo. Sua intenção
é a de questionar certas ideias bem delimitadas no universo
das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção
determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida
confunde-se com a teoria marxista (Por teoria marxista entenda-
se o conjunto de escritos e argumentos de Marx, Engels, Lênin e
alguns outros, que são comumente utilizados para fundamentar
a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação material
de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do
fato de que existem pessoas, em pleno século XXI, que nunca
negaram sua adesão a essa concepção vinda do século XIX e
que tampouco fizeram qualquer trabalho de revisão séria sobre
as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas ao
longo do século XX.
Vista pelo lado afirmativo, a questão do título poderia
indicar que qualquer pessoa que pretenda, atualmente, afirmar-
se comunista (ou socialista, na tradição marxista ou leninista)
corre o risco de ser considerada como singularmente carente de
inteligência mais sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista
como desprovida de senso crítico mais agudo. Em muitos casos,
na verdade, a origem da autodesignação pode revelar apenas
ignorância ingênua ou pura desinformação juvenil. Nos casos
mais renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais entusiastas da

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

causa como fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no Pois bem, estou fazendo uma pergunta, que é quase uma
caso dos mais velhos, de pura e simples desonestidade intelectual. acusação, e o faço de forma consciente, esperando com isso
Sem pretender ofender alguém em particular — muito suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma
embora eu tenha deparado com vários representantes desse vã esperança. A sugestão do título é a de que a pessoa que se
credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns afirma comunista, nos dias que correm, renunciou a pensar de
cruzamentos político-partidários — o objetivo principal deste modo livre, está dominada por premissas emboloradas, por
artigo é apenas o de examinar um conceito, o do comunismo, preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização
em seus determinantes lógicos, em sua eventual fundamentação desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a
empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o simples realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em
aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de termos diretos.
questões reais das sociedades existentes em nossa época. Não Tenho plena consciência, aliás uma quase certeza, de que
se pretende aqui tratar do sexo dos anjos, e sim de uma questão não haverá debate, pois os “indiciados”, podem sempre alegar
que costuma estar presente em nossas academias — com maior que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento
força nas áreas de humanidades — e também em algumas seitas do título, não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão
políticas, e que continua a mobilizar a atenção de certo número arrogante e tão desrespeitosa das crenças alheias. Voilà, acho
de pessoas, ainda que, nos dias que correm, em proporção que encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando
crescentemente diminuta (se me permitem o paradoxo verbal). basicamente de uma crença, já que não existem sociedades
Por que o faço? A resposta é complexa, mas vamos ficar comunistas atualmente e desafio qualquer um a provar que
com uma bem simples. As faculdades brasileiras de humanidades existem chances reais de que qualquer uma venha a existir no
estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de antigas camadas futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos Como alguns dos espaços e veículos em que escrevo
estudos sobre a sociedade e suas transformações. Em lugar de é frequentado por pessoas que se intitulam comunistas, que
focar os problemas correntes, professores que aderem ao clero de se pretendem comunistas e que defendem causas que elas
maneira totalmente acrítica, remetem os alunos a textos góticos consideram ser comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente,
do século XIX e os obrigam a interpretar a economia atual com mas como disse acima, duvido que elas venham a enfrentá-lo.
categorias defasadas, que nada têm a ver com as características Não obstante, formulo novamente o tema deste artigo e o deixo
essenciais do capitalismo globalizado. Como estou me colocando como problema a ser debatido. Minha hipótese de trabalho, a
mais do lado dos alunos do que dos professores, creio ser meu ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa
dever alertar aos primeiros que eles estão sendo enganados — inteligente pode, hoje em dia, razoavelmente falando, pretender-se
torturados seria uma expressão mais adequada — por mestres comunista ou defender causas comunistas.
preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar Dito isto, vamos ao que interessa, não sem antes um
e repassar velhos textos que confortam certos preconceitos comentário inicial. O autor destas linhas também já se proclamou
pessoais, mas que nada têm a ver com a realidade vivida por comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a
alunos, ou pelas pessoas, em geral. literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

da academia, já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do Antônio Cândido, cujos argumentos sempre foram recebidos com
credo e já pretendeu transformar o Brasil num país socialista. De toda a distinção que merecem as verdadeiras “vacas sagradas”
certa forma, é impossível ser sociólogo, em qualquer sociedade da intelligentsia brasileira?
contemporânea, sem ser também um pouco marxista, uma Entrevistado antes de seu falecimento por um jornal
vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria desse universo intelectual, Antônio Cândido assim respondeu
social. Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um à pergunta sobre sua condição de socialista (e, neste caso, e
conjunto de crenças, que devem ser testadas contra a realidade. para todos os efeitos, o adjetivo socialista é completamente
Ao ter aderido ao comunismo em fase ainda juvenil de sua similar à caracterização de comunista, uma vez que baseado nos
vida, este autor percorreu depois a realidade dos comunismos mesmos princípios ideológicos que sustentam esse sistema de
(ou socialismos) realmente existentes, praticamente todos, ou interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
pelo menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou
preciosas reflexões que contribuíram para a revisão de algumas Brasil de Fato: O senhor é socialista?
crenças juvenis; ele também aprofundou seu conhecimento dos AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é
uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo.
capitalismos realmente existentes — e de muitos outros sistemas
O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram
pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina, por juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria
exemplo), mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina
contribuiu mais ainda para uma saudável revisão de suas velhas e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre.
concepções. Sobre isso, caberia acrescentar leituras variadas, e não Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo
apenas dentro do universo conceitual do marxismo estabelecido, de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que
o que é sempre recomendável para quem pretende aperfeiçoar caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode
seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente, além ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo,
solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.78
e acima de quaisquer crenças com base em sistemas fechados
de ideias. Esta é a base, portanto, da discussão que pode agora
O que surpreende nesse tipo de manifestação, em pri-
começar, com base num exemplo concreto de um intelectual
meiro lugar, é a total falta de consistência do pensamento desse
socialistas brasileiro bastante conhecido.
autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores
sociólogos da nacionalidade, quanto às necessárias distinções
10.2. Um exemplo, entre outros, da crença persistente: entre, de um lado, processos reais, desenvolvidos ao longo dos
Antônio Cândido séculos como resultado de movimentos “tectônicos” no plano
das forças produtivas e das relações de produção (para ficar
Para não tornar esta discussão muito abstrata, conviria
na terminologia habitual), e, de outro, construções mentais,
ilustrá-la com declarações atuais sobre o tema em questão
partindo de um true believer, na expressão coloquial retirada
78 Ver “O socialismo é uma doutrina triunfante”; Antônio Candido, entrevistado
do inglês, ou seja, um verdadeiro crente. O que tinha a dizer por Joana Tavares, Brasil de Fato, edição 435, 8/08/2011 (disponível: http://www.
sobre o assunto um intelectual respeitado na academia brasileira, brasildefato.com.br/node/6819 ; acesso em 23/11/2019).

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

propostas ideológicas, projetos de engenharia social que só po- mais “geniais” que possam ser — e as contribuições de Marx
dem ser plataformas políticas, ou programas partidários a serem constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos para a
debatidos pelos movimentos sociais e agrupamentos políticos, compreensão das sociedades burguesas e das economias capi-
mas que jamais poderiam ser colocados no mesmo plano dos talistas — não representam senão o fruto de uma construção
processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e nunca intelectual não necessariamente compatível com os dados da
foi, o irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se realidade. Igualmente decepcionante é a sua compreensão do
trata de um sistema inventado pelo homem, não uma construção que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficien-
social, impessoal, progressiva e absolutamente desprovida de te, para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina
qualquer senso de direção pré-determinado. marxista sobre o socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de
O que o aclamado sociólogo ignora completamente, imprensa, sobre se “é possível o socialismo existir triunfando
em segundo lugar, é que todos os modos de produção social sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que segue:
existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente ba-
seados num “arranjo político” (como o socialismo, portanto) AC: (...) Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque
suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho
se baseiam em certa coerção ao trabalho, qualquer que sejam
cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo
as formas peculiares que assumem as relações de produção e foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não
as formas específicas de apropriação dos resultados do proces- foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalis-
so de produção. Não existe nenhum sistema de produção um mo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o
pouco mais complexo do que a simples organização extrativista lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição
rudimentar que não se baseie em divisão do trabalho (sexual ou econômica — que o homem civilizado tem, assim como tem
social), em algum sistema de trocas relativamente organizado ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens
(por forças que se destacaram do mundo do trabalho, portanto) materiais — com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa
equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que
e em mecanismos de interação e de solução de litígios que já
o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico
impliquem uma autoridade qualquer baseada na dominação típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o
política e na exploração econômica (inclusive, e sobretudo, máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor
no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à não-exploração, aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem,
ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador
premissas totalmente descoladas da realidade dos processos rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de
produtivos e absolutamente inaplicáveis em condições reais do enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está
bom, é o socialismo.79
mundo do trabalho e da satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica revelada pelo mestre é particu-
Em outros termos, o professor aposentado pensa o
larmente grave, uma vez que ele confunde o movimento real
socialismo como a realização da igualdade, ou mais exatamente,
das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as
sociedades, que podem, ou não, oferecer algum substrato real, 79 “O socialismo é uma doutrina triunfante”, entrevista com Antônio Candido,
ou serem apenas o reflexo de elaborações mentais que, por op. cit.

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa Pronunciando-se, logo em seguida, sobre como ele via
compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista a sociedade capitalista, o mestre consegue, em poucas frases
e com as premissas sobre as quais foram construídos os sistemas desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade
marxistas, ou dos socialismos realmente existentes, no século XX. de mercado — que pode ser, ou não, capitalista — e de como
Para os teóricos do marxismo, o socialismo — e, na sua sequência, funciona, de fato, a sociedade de consumo; ele revela, ademais,
o comunismo — seria a abolição das relações de produção uma ignorância fundamental sobre a própria natureza do
capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios processo produtivo — sob qualquer modo de produção, registre-
do trabalhador assalariado das categorias mais bem pagas da se —, já opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob
sociedade capitalista. A premissa básica seria a abolição do qualquer pretexto. A ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e
conceito mesmo de propriedade privada, com a socialização surpreende que banalidades desse tipo sejam recebidas sem
completa das forças produtivas, colocadas sob controle da qualquer comentário crítico por marxistas e não marxistas da
categoria universal alegadamente detentora da solução final para academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da coerência
as contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e epistemológica e da adequação dos argumentos aos fatos
que por isso mesmo redundaria na abolição de todas as classes materiais da vida como ela é. Registre-se alguns extratos finais,
sociais, especificamente na dominação política de uma classe portanto:
dominante sobre as demais. Quem não partilha dessas premissas
não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista AC: A coisa mais pérfida do capitalismo — por causa da ne-
marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se cessidade cumulativa irreversível — é a sociedade de consumo.
como social democrata, que seria a versão reformista, light, Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um
inculcamento sublimar [sic] de dez em dez minutos, na cabeça de
ou rósea, do socialismo marxista (e, como tal, denunciada em
todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à
vários escritos dos que se pretendem comunistas verdadeiros). Europa — cria necessidades. E claro que não dá condições para
O mais surpreendente, ainda, é que o velho mestre se concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessi-
mostra singularmente desinformado sobre as realidades do dades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à
socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa.
confuso sobre o tipo de sociedade existente sob o modo de O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou
produção capitalista. Perguntado sobre o que “o socialismo o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500
conseguiu no mundo de avanços?”, ele argumentou: dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e
o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais.
AC: O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e
Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O pro-
humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo duto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito
do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar,
justiça social. (Idem, loc. cit.) essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso,
passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime
que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar capitalismo aos desafios revolucionários que ele enfrentou ao
com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que
acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da
o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro produção, mas igualmente de alternativas ideológicas que foram
infinito, é do bem-estar infinito. (Idem, ibidem)
sendo servidas ao longo da história para tentar conceber um
sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais justo e igualitário,
Os dois conjuntos de argumentos são propriamente ou ambos.
inaceitáveis por quem quer que examine o mundo real, seja a Não é preciso retomar aqui o resultado efetivo dessa
situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais competição entre sistemas e ideias, pois sabemos que a forma
está organizada a sociedade de consumo — que pressupõe uma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo,
sociedade produtiva, em primeiro lugar — em qualquer regime anda que temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é
imaginável de organização social da produção, inclusive o da do que uma das formas da economia de mercado, aparentemente
produção “artesanal”. Tomar suas palavras como possuindo um tão desprezada pelo velho mestre Antônio Cândido. Chega a
grau mínimo de aderência à realidade — o que elas não possuem, ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade de
obviamente —, seria como se em Cuba não existisse sociedade consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam
de consumo, como se os cidadãos cubanos não consumissem do que uma incompreensão fundamental quanto ao modo de
produtos — de quaisquer origens — e como se a ausência de uma funcionamento das sociedades — de qualquer sociedade — e
maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de um do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas
regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, capitalistas ou protocapitalistas. O silêncio de marxistas, de
fosse a realização suprema da “justiça social”. O consumo existe socialistas, ou de comunistas — assumidos como tais — sobre
em qualquer sociedade do mundo, de qualquer época histórica tais tipos de argumentos pode representar concordância
e de qualquer sistema produtivo, sendo aliás inerente à natureza básica quanto às suas premissas, discordância discreta e não
do ser socialmente produtivo que é o homem — e isto é puro explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações
marxismo, estando mais explícito em textos de Engels — o fato tão absurdamente equivocadas, ou simplesmente incapacidade
de se estar sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de raciocinar com base na lógica elementar e nos princípios
de produtos ou de processos que permitam oferecer os bens da coerência epistemológica. Em qualquer dos casos, parece
essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”, aos melhores suficientemente grave, pois materiais desse tipo do registrado
preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade. neste texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo
No decorrer de um longo processo histórico, o sistema amplo pelas salas e corredores das universidades públicas
produtivo que mais próximo se acercou desse ideal de crescimento brasileiras e são comentados nos sites e blogs mais vinculados
sustentado com base em transformações produtivas incrementais a esse universo mental.
— algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras — e
na distribuição social dos benefícios desse crescimento foi
justamente o capitalismo, não o socialismo. Daí a resiliência do

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

10.3. Comunismo: apenas um sistema de crenças, sem em seu “caráter científico”. A lógica elementar e confronto
consistência real com os dados da história permitem esclarecer e descartar suas
afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente no caso
Retomemos, aqui, a questão central do que pretende ser de frases sem sentido como as transcritas aqui de um respeitado
um debate atinente aos cursos de ciências sociais de nossas intelectual brasileiro. Uma discussão final, atinente ao problema
academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos argumentos da apreensão do mundo real e à questão do registro histórico,
em defesa do socialismo — e por extensão do comunismo — tocará nestes pontos, ainda que de modo sumário.
que continuam a impregnar não só a didática e a docência O próprio da ciência é trabalhar com um conjunto de
no universo das humanidades, como também a estruturação hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas para que se
de movimentos políticos que pretendem oferecer um tipo comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até
qualquer de alternativa ao capitalismo realmente existente? existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o
A postura deste autor já foi colocada na seção introdutória, mais comum é que a teoria apareça após testes repetidos das
qual seja: o conjunto de argumentos que sustenta a defesa da concepções iniciais, para que daí se extraiam regras gerais e, por-
doutrina — e das propostas de organização social e econômica tanto, “leis” quase invariáveis de desenvolvimento. Nem sempre
— do comunismo (em seus fundamentos marxistas) remete é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na ausência de
a um universo mental que poderia ser chamado de crença ou testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma
assimilado às crenças. Estas constituem uma assemblagem de teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito
“explicações mágicas” sobre a realidade que não respondem difícil observar a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da
a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja, que não seleção natural darwiniana, com base nos registros geológicos
sustentam o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, e nos dados da história natural (para isso basta visitar qualquer
como todas as crenças, a suscitar adesões inquestionadas a suas museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar de
premissas equivocadas por alguma necessidade psicológica de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a
seus aderentes de não enfrentar o mundo real. aceitação dos princípios básicos da seleção natural. O trabalho
Resumindo: a pessoa que, hoje em dia, se proclama de laboratório é todo ele fundamentado nas ideias darwinianas,
comunista — algumas até orgulhosamente — está demonstrando que sustentaram gloriosamente os testes do tempo e da realidade.
uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo Pode-se, por acaso, dizer o mesmo do conjunto de
especial, o do salvacionismo, um movimento vinculado ao afirmações que sustentam a crença na “teoria materialista da
utopismo e a todas as seitas que pretendem ter a chave mágica história”, na luta de classes como fundamento da evolução
do universo, para a salvação da humanidade, com base num das sociedades humanas? É possível acreditar na “evolução”
conjunto de princípios de “engenharia social” e de valores não determinista das sociedades existentes em direção ao comunismo,
testados nos laboratórios da realidade. O comunismo (e não como apregoado pela “teoria marxista”? Por fim: existe alguma
apenas hoje em dia) é parente direto das concepções utópicas base real para confirmar as predições de Marx e seguidores sobre
sobre a organização social e econômica das sociedades, não o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção ao
obstante a pretensão de seus proponentes e seguidores de insistir comunismo?

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Os “testes” do tempo e da realidade, efetuados até aqui interna de qualquer regime socialista, ou seja, a seus fundamentos
nos “laboratórios” dos capitalismos e dos socialismos realmente materiais, o que também envolve o aspecto puramente lógico
existentes, desmentem — não apenas uma ou outra, mas — todas sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer
as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história sistema produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas.
e a evolução das sociedades. O registro “geológico” do longo — Essa questão tem a ver com o problema fundamental do cálculo
segundo as concepções arrighianas — ou “breve” — de acordo econômico, e com a função dos preços — como sinalizadores da
com Hobsbawm — século XX não permite sustentar, apoiar, escassez relativa — num sistema de organização da produção
comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção
premissas e previsões marxistas, que sustentam a fé — não existe concebível em uma sociedade complexa, seja ela escravocrata,
outro conceito — no ideal socialista ou do modelo comunista feudal, capitalista ou “socialista”. Esse problema, insolúvel num
de sociedade e de organização social da produção. sistema socialista puramente marxista — ou seja, comunista
Pode-se, assim, desafiar os marxistas, em geral, a retomar —, já tinha sido tratado desde os primórdios da revolução
qualquer uma das análises de Marx e de Lênin sobre o desenvol- bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von
vimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses Mises, que, com base numa análise puramente racional dos
de trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, fundamentos “lógicos” da economia socialista, concluiu que esta
com base nelas, comprovar que estas análises e hipóteses são, não conseguiria funcionar, justamente, por falharem princípios
não apenas logicamente dedutíveis de suas premissas (como básicos da organização racional da produção e distribuição de
ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas insumos, de bens intermediários e de bens finais.80
materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos E, no entanto, diriam os true believers da causa socialista
aferíveis (da mesma forma como ocorre em laboratórios de e comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas
biologia com as manipulações de espécies, no caso em exame). e condenatórias do socialismo enquanto doutrina e enquanto
Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o resultado na- forma alternativa de organização social da produção, o fato
tural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos, e nada
internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas
produtiva seja comparável ou superior ao do modo imediata- bases, corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu
mente anterior? Com base em qual tipo de raciocínio lógico, funcionamento mais eficiente da “primeira vez”. Como as apostas
pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria e as esperanças dos verdadeiros crentes na causa socialista não
superar contradições inerentes às economias de mercado, em se apoiam em evidências de fato, mas justamente num sistema
sua aparente “anarquia” produtiva?
Independentemente, porém, do registro histórico que 80 Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade
comprova o tremendo fracasso material do socialismo marxista, Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista
e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um (ver: https://mises.org/library/economic-calculation-socialist-commonwealth ).
Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver dois de meus ensaios
modo de produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro neste mesmo volume: “Os mitos da utopia marxista” e “O fracasso do marxismo
conjunto de testes que se vinculam ao modo de organização teórico e do socialismo prático”.

280 281
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

de crenças que demanda adesão inquestionada — sem que eles a desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não
sejam chamados comprovar suas teorias, um pouco como os adequação material que caracterizam as crenças socialistas, tal
criacionistas — não se prevê o desaparecimento fácil ou imediato como consubstanciadas em sua vertente marxista clássica. Ele
desse tipo de falácia fundamentalista. não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que “velhos socialistas”
Não seria, na verdade, a primeira, nem a última vez, ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua
que crenças equivocadas conseguem manter-se durante tanto estrutura mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas
tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, constatações de fato e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que
por exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos um número maior de alunos, talvez entediados pela repetição
homens e as explicações geográficas, até ser superada por uma aborrecida das mesmas velhas fórmulas ultrapassadas, possa
melhor explicação, com base na observação direta da realidade encontrar um novo campo teórico de explicações científicas
e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase que escape do terreno das crenças para o mais modesto das
de experimentação empírica — que foram as sete décadas de explicações possíveis em torno da modernidade capitalista.
experimentos de engenharia social desde o advento do modelo
bolchevique de organização social da produção e suas diversas
variantes ao longo do tempo — mas seu rotundo fracasso não
parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças
mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis pode ser o fato que a maior
parte dos aderentes ao credo não conheceu, não visitou, não
conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de
produção”, cujas bases de funcionamento são desconhecidas
aos true believers, que continuam a repetir algumas fórmulas
“sagradas” da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo,
parece próximo de acreditar que o socialismo marxista, tal como
materializado na Eurásia, constituiu o equivalente funcional de
formas modernas do escravagismo antigo ou do despotismo
oriental. Aparentemente, evidências não bastam, quando se
decide não aceitar evidências concretas que vão contra as
crenças.81
Em todo caso, o autor destas linhas acredita que um
trabalho sério de pesquisa histórica, de constatação de evidências
materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia ajudar

81 Ver o ensaio “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos”, neste mesmo volume.

282 283
Apêndices
Notas sobre os originais dos
ensaios coletados

Apresento a seguir os registros de cada um dos trabalhos originais


incluídos na presente coletânea, com informações relativas à sua
eventual publicação, e sobre links ainda funcionando dos veículos
onde possam estar disponíveis. A transposição dos textos obedeceu
rigorosamente à versão original, com uma adequada correção
ortográfica e complementos tópicos se necessário.

Minhas relações com o marxismo e o socialismo: à guisa de prefácio


3540. “Minhas relações com o marxismo e o socialismo”, Brasília,
24 novembro 2019, 5 p. Prefácio à coletânea de ensaios sobre o
marxismo e o socialismo, consolidados no livro confeccionado
sob n. 3541: Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo:
trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Brasília:
Edição do Autor, 2019).

1. A parábola do marxismo em perspectiva histórica


629. “A parábola do marxismo no século XX”, Brasília, 15 agosto
1998, 13 p. Reelaboração de parte do trabalho sobre a ideia
de revolução burguesa no Brasil, desvinculação do texto em
fase de redação para o “História do Marxismo no Brasil, IV” e
agregado, como capítulo 4, ao livro Velhos e novos manifestos:
o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez
de Oliveira, 1999). Relação de Publicados n. 231.
479. “A Parábola do comunismo no século XX: A propósito do livro
de François Furet: Le Passé d’une Illusion”, Paris, 8 maio 1995,
22 p. Artigo sobre o itinerário histórico do comunismo neste
século, com base na leitura crítica da obra de Furet, Le Passé

287
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Notas sobre os originais dos ensaios coletados

d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: e Terra, 1987, p. 209-229); e n. 630, de 1998, “A ideia de
Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, 580 p.). Publicado na revolução burguesa no marxismo brasileiro” (preparado para
Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 38, n. 1, o v. 4 do História do Marxismo no Brasil, sob a coordenação
janeiro-junho 1995, p. 125-145). Relação de Publicados n. 179. Marcos Del Roio e Angelo José da Silva e mantido inédito desde
então), com acréscimo parcial da primeira seção do trabalho
2. A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro 1465. Publicada em versão resumida a 18 p., sob o título
537. “A Parábola do Marxismo na Teoria Social Brasileira: intelectuais “A revolução burguesa na obra de Florestan Fernandes”, na
e acadêmicos em busca da revolução escondida”, Brasília, 21 revista Versões (São Carlos, UFSCAR, PPGCS, a. I, n. 1, 2005,
outubro 1996, 42 p. Ensaio sobre o marxismo acadêmico no ISSN: 1809-0443, p. 22-43). Versão integral disponibilizada
Brasil, com destaque para as obras de Caio Prado Jr., Nelson na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.
Werneck Sodré e Florestan Fernandes, destinado a integrar edu/5885297/1467_As_desventuras_de_um_conceito_a_
coleção de textos sobre o marxismo na América Latina, orga- revolu%C3%A7%C3%A3o_burguesa_na_obra_de_Florestan_
nizada por Luis Bernardo Pericás. Encaminhado em 22/10/96. Fernandes_2005_). Relação de Publicados n. 576.
Inédito.
630. A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro”, Brasília, 3. Agonia e queda do socialismo real
22 agosto 1998, 32 p. Colaboração destinada originalmente ao 242. “Retorno ao Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo
volume 4 do História do Marxismo no Brasil, sob a coordenação Real”, Brasília, 3 maio 1992, 32 p. Término da série sobre as
Marcos Del Roio e Angelo José da Silva. Encaminhada por mudanças no cenário mundial, com a crise final do socialismo.
via eletrônica em 2/09/98. Revisão em fevereiro de 1999 para Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio
eliminar o viés exclusivo sobre a revolução burguesa e para de Janeiro: ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, pp. 51-71). Relação
incorporar outros elementos relativos ao marxismo acadêmico de Publicados n. 081.
no Brasil. Não publicado.
1465. “Florestan Fernandes e a ideia de revolução burguesa no 4. O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil
marxismo brasileiro”, Brasília, 1 set. 2005, 19 p. Reelaboração 2283. “Falácias acadêmicas, 15: o modo repetitivo de produção do
do trabalho sobre FF, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré marxismo vulgar no Brasil”, Brasília, 26 junho 2011, 15 p.
(Trabalho n. 630). Publicado na revista Espaço Acadêmico Discussão das mistificações cometidas contra o marxismo
(a. V, n. 52, set. 2005). Reproduzido no site Monografias.com pelos repetidores de slogans superficiais. Espaço Acadêmico
(http://br.monografias.com/trabalhos/florestan-fernandes- (ano 11, n. 122, julho 2011, p. 111-122; link: http://www.
ideia-revolucao-burguesa/florestan-fernandes-ideia- periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/
revolucao-burguesa.shtml). Relação de Publicados n. 588. view/13823/7221). Relação de Publicados n. 1040.
1467. “As desventuras de um conceito: a revolução burguesa na
obra de Florestan Fernandes”, Brasília, 5 setembro 2005, 44 5. O Fim da História, de Fukuyama: o que ficou?
p. Reelaboração dos trabalhos n. 124, de 1986, “O Paradigma 250. “Do ‘Fim da História’ ao ‘Fim da Geografia’: Hegel no Divã de
Perdido: a Revolução Burguesa de Florestan Fernandes” Fukuyama”, Brasília: 2 junho 1992, 9 p. Artigo sobre a questão do
(publicado, com supressão de trechos, na antologia organizada “fim da História” em Fukuyama e as transformações econômicas
por Maria Angela d’Incao (org.), O Saber Militante: Ensaios sobre da ordem internacional. Anexo: “The End of History?”, The
Florestan Fernandes. São Paulo-Rio de Janeiro, UNESP-Paz National Interest (Summer 1989, p. 3-18). Inédito.

288 289
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Notas sobre os originais dos ensaios coletados

2101. “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que número de junho. Nova réplica de outro leitor, respondida
ficou?”, Brasília, 13 janeiro 2010, 15 p. Considerações sobre a com o trabalho n. 1432. Relação de Publicados n. 549.
tese de Francis Fukuyama e o fim de alternativas às economias
liberais de mercado. Publicado em Meridiano 47 (n. 114, 9. Sobre a responsabilidade dos intelectuais
janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219); disponível Academia. 2039. “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do
edu (link: https://www.academia.edu/5949002/2101_O_Fim_ Intelectual”, Brasília, 21 agosto 2009, 2 p. Intercâmbio com
da_Historia_de_Fukuyama_vinte_anos_depois_o_que_ Antonio Ozai sobre Marx e os marxistas, a propósito de sua
ficou_2010_). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com postagem “Marx e os marxismos” no Blog do Ozai (não mais
o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude existente). Postado no blog Diplomatizzando, com comentários
(Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 949. de leitores (21/08/2009; link: http://diplomatizzando.
blogspot.com/2009/08/1302-um-intercambio-academico-
6. Os mitos da utopia marxista sobre.html). Serviu de base à elaboração do trabalho
2002. “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista”, Brasília, n. 2103. Postado no blog Diplomatizzando (4/09/2017; link:
3 maio 2009, 15 p. Continuidade da série proposta, enfocando https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/sobre-
os principais equívocos do pensamento marxista nos campos responsabilidade-dos-intelectuais.html).
do materialismo histórico e da análise econômica. Publicado 2103. “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos cobrar-
na revista Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009). Relação lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília,
de Publicados n. 899. 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e
histórica sobre a falência do marxismo aplicado, elaborado
7. O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático com base no trabalho 2039. Revisto em 3/02/2010. Espaço
2117. “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN:
prático: um balanço objetivo e algumas considerações 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/
subjetivas”, Brasília, 21 fevereiro 2010, 9 p. Considerações EspacoAcademico/article/view/9275/5252). Postado no blog
sobre os marxistas e socialistas que sobrevivem nas academias. Diplomatizzando (4/09/2017; link: https://diplomatizzando.
Espaço Acadêmico (ano 9, n. 106, março 2010, p. 131-138; blogspot.com.br/2017/09/sobre-responsabilidade-dos-
ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index. intelectuais.html). Relação de Publicados n. 952.
php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321). Relação de
Publicados n. 954. 10. Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
2292. “Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista,
8. A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico
1412. “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que brasileiro”, Brasília, 2 agosto 2011, 13 p. Crítica às crenças
atrapalham seu desenvolvimento”, Brasília, 25 março 2005, fundamentalistas do socialismo marxista na substituição
22 p. Comentários sobre obsessões da esquerda (antimercado, de um modo de produção resultante de processos sociais
igualitarismo, estatismo, etc.), que conformam pensamento incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um
ultrapassado para suas tarefas políticas. Publicado na revista outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo
Espaço Acadêmico (a. IV, n. 47, abr. 2005). Objeto de crítica operar um exercício de engenharia social com base
na Espaço Acadêmico, com tréplica sob n. 1425, publicada no em premissas equivocadas e pressupostos equivocados

290 291
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

sobre o funcionamento de uma economia de mercado.


Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto 2011,
p. 125-136; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/
index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601;
link em pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.
Breve nota biográfica:
php/EspacoAcademico/article/download/14334/7601). Paulo Roberto de Almeida
Divulgado no blog Diplomatizzando (24/11/2017; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/alguem-
inteligente-pode-se-pretender.html). Relação de Publicados

N
n. 1042. asci em São Paulo, na exata metade do século XX, depois
de uma primeira metade conhecida como a mais mortal
de todas as épocas históricas anteriores. Por sorte (ou
talvez, como diria Raymond Aron, graças à arma atômica,
segundo o diagnóstico feito logo em 1947: “paz improvável,
guerra impossível”), a minha geração, e as duas seguintes, não
conhecemos nenhum novo conflito global, mas inúmeros,
incontáveis conflitos parciais, guerras civis, guerras limitadas,
sem mencionar uma imensa destruição econômica, inclusive no
próprio Brasil, em função de governos irresponsáveis, líderes
populistas, aventureiros políticos.
Creio que “aprendi” economia na prática, ao nascer numa
família de baixa classe média, com pais que não dispunham
sequer de primário completo, sem livros em casa, e tendo de
trabalhar desde muito cedo (e gostaria de sublinhar: desde
muito cedo).
Tive sorte de residir, mesmo numa casinha muito modesta,
muito próximo de uma biblioteca pública infantil, onde passei
toda a minha infância (mesmo antes de aprender a ler) e metade
da primeira adolescência. Devo à Biblioteca Infantil Municipal
Anne Frank os melhores momentos de minha infância, tendo
lido provavelmente tudo o que havia de disponível para um
garoto sedento de novos saberes, como eu era. Depois, devo ao
Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, na primeira adolescência,
tudo o que eu aprendi de importante, e que iria guiar a minha
vida doravante. Foi ali que fui “apresentado” aos problemas de

292 293
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo

relações internacionais, quando ouvi o que me pareceu uma


fascinante preleção de Oliveiros da Silva Ferreira sobre a crise
dos mísseis soviéticos em Cuba, um ano ou dois depois da famosa
confrontação russo-americana (1962) que levou o mundo ao Livros e trabalhos de
limiar de um holocausto nuclear. Nos anos seguintes, aprendi
de verdade economia nas páginas desse jornal reacionário que Paulo Roberto de Almeida
eu lia quase todos os dias, o Estadão, onde também aprendi a
conhecer Raymond Aron e muitos outros luminares do melhor
pensamento político do século XX.
(A) Livros individuais (http://pralmeida.org/autor/)
Chegado ao século XXI, creio que posso fazer um balanço
positivo de uma trajetória intelectual toda ela dedicada a ensinar
26) Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty,
aos mais jovens o que eu mesmo aprendi nos livros, na observação Brasília: Edição do autor, 2019, 184 p., ISBN: 978-65-901103-0-5;
da realidade, em incontáveis viagens, em contato com pessoas Boa Vista: Editora da UFRR, 2019, 165 p., Coleção “Comunicação
mais espertas, mas sobretudo na reflexão ponderada com base e Políticas Públicas vol. 42; ISBN: 978-85-8288-201-6 (livro
em todas as metodologias anteriores. Viajei muito, li muito (não impresso); ISBN: 978-85-8288-202-3 (livro eletrônico).
tanto quanto Carmen Lícia, minha adorável companheira de 40 25) Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações
anos, mas quase tanto) e sobretudo mantive uma atitude, em internacionais do Brasil (2014-2018) (Curitiba: Appris, 2019, 247
face de afirmações peremptórias e argumentos lidos e ouvidos, p.; ISBN: 978-85-473-2798-9)
que aprendi muito jovem: ceticismo sadio. O que isso quer 24) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas
dizer? Nunca tome uma opinião, uma afirmação, mesmo um internacionais no Império (3ª edição; Brasília: Funag, 2017;
2 volumes; 964 p.; ISBN: 978-85-7631-675-6).
argumento de autoridade, pelo seu “valor face”, mas procure
23) Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em
perguntar: é isso mesmo? Por que? Tem fundamento? Quais as
tempos não convencionais (Curitiba: Appris, e-book, 2016;
provas? Não seria de outra forma? Vamos examinar melhor... ISBN: 978-85-8192-429-8).
O que eu gostaria de deixar, como memória, como 22) Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: Démocratie
recordação, como lição a mim mesmo ou aos outros, ao longo de et autoritarisme au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires
uma vida dedicada aos estudos e aos escritos? Talvez apenas isto: Européennes, 2015, 496 p.; ISBN: 978-3-8416-7391-6).
aprendeu, refletiu, transmitiu conhecimentos, esforçou-se para 21) Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays
tornar o mundo um pouco melhor do que aquele que recebeu über die Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens
dos pais e das gerações passadas. A certeza de ter contribuído (Saarbrücken: Akademiker Verlag, 2015, 204 p.; Übersetzung
com o meu quinhão de conhecimentos para a elevação espiritual aus dem Portugiesischen ins Deutsche: Ulrich Dressel; ISBN:
da humanidade, ou pelo menos do Brasil, é uma das coisas mais 978-3-639-86648-3).
20) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira
gratificantes que tenho legítimo orgulho de exibir...
em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014, 289 p.;
ISBN: 978-85-8192-429-8).

294 295
Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Livros e trabalhos de Paulo Roberto de Almeida

19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do
174 p.; ISBN: 978-85-02-19963-7). Advogado, 1999, 328 p.; ISBN: 85-7348-093-9).
18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia 4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São
brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5).
309 p.; ISBN: 978-85-216-2001-3). 3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: LTr, 1998, 160 p.;
17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio ISBN: 85-7322-548-3).
de Janeiro: Lumen Juris, 2011, 272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6). 2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos desco-
16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (Brasília: Senado brimentos à globalização (Porto Alegre: UFRGS, 1998, 360 p.;
Federal, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9). ISBN: 85-7025-455-5).
15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas 1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo:
Bastos, edição eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8). Aduaneiras, 1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9)
14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo
entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE, 2006, 385 p.; (B) Organização, edição (http://pralmeida.org/editados/)
ISBN: 85-7238-271-2).
13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas 14) Roberto Campos, A Constituição Contra o Brasil: ensaios de Roberto
internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Senac-SP, 2005, Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (São Paulo:
680 pp., ISBN: 85-7359-210-9). LVM, 2018, 448 p.; ISBN: 978-85-93751-39-4).
12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e 13) Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira
sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias
atualizada; Porto Alegre: UFRGS, 2004, 440 p.; coleção Relações (organizadores); Brasília: Funag, 2017, 2 volumes, disponíveis na
internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4). Biblioteca Digital da Funag).
11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política 12) O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto
no Brasil (São Paulo: Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8). Campos (Curitiba: Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0).
10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain 11) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil
(avec Katia de Queiroz Mattoso; Paris: L’Harmattan, 2002, 142 p.; (Brasília: Senado Federal, 2016, 504 p.; ISBN: 978-85-7018-696-6).
ISBN: 2-7475-1453-6). 10) The Drama of Brazilian Politics: From 1814 to 2015 (with Ted Goertzel;
09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações interna- Amazon Digital Services; 2015, 278 p.; ISBN: 978-1-4951-2981-0).
cionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2002, 286 p.; 09) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com
ISBN: 85-219-0435-5). Rubens Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2016, 326 p.; edição
8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas digital; ISBN: 978-85-0212-208-6).
internacionais no Império (São Paulo: Senac, 2001, 680 pp.; ISBN: 08) Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais
85-7359-210-9). sobre o Brasil nos Estados Unidos (com Rubens Antônio Barbosa
7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: e Francisco Rogido Fins; Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN:
L’Harmattan, 2000, 160 p.; ISBN: 2-7384-9350-5). 978-85-7631-274-1).
6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Universidade 07) Envisioning Brazil: a Guide to Brazilian Studies in the United
São Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3). States, 1945-2000 (with Marshall C. Eakin; Madison: Wisconsin
University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6).

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Marxismo e Socialismo no Brasil e no Mundo Livros e trabalhos de Paulo Roberto de Almeida

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Contato com o autor:
Paulo Roberto de Almeida
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com

Composto em Word for Mac 2011

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