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dos Sistemas?
Crítica, teoria social e direito
Organizadores:
Lucas Fucci Amato
Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke
Arte de Capa: Escher
http://www.abecbrasil.org.br
Teoria crítica dos sistemas: crítica, teoria social e direito [recurso eletrônico] / Lucas Fucci Amato; Marco Antonio
Loschiavo Leme de Barros (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.
430 p.
ISBN - 978-85-5696-470-0
CDD: 340
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito 340
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Uma comparação mais completa e um desenvolvimento maior dos argumentos sintetizados aqui
estão em Amato (2017).
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Para Luhmann, embora haja “avanços pré-adaptativos” que permitam localizar diferenciações de
papéis, teorias, estruturas jurídicas, políticas, econômicas ao longo da história ocidental, um sistema
jurídico, um sistema político, um sistema econômico só se definem enquanto tais na “modernidade”.
Para precisar essa vaga datação, Bachur (2010, p. 180) propõe a identificação histórica entre
“diferenciação funcional” e “capitalismo”, datando da consolidação da economia monetária na Europa
ocidental (segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX) a aceleração da
diferenciação funcional (e de seu correlato indispensável: os acoplamentos estruturais entre os
sistemas diferenciados). Luhmann (1997a, p. 70), porém, já fornece uma indicação cronológica:
“[d]iferenciação funcional é um arranjo histórico específico que se desenvolveu desde a Idade Média
tardia e foi reconhecido como disruptivo apenas na segunda metade do século XVIII”.
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Da mesma forma, Luhmann (2012 [1997], pp. 335-49) é ambíguo ao colocar as “formas de
diferenciação” na dimensão material de sentido, fora, portanto, da teoria da evolução, que constituiria
a dimensão temporal de sua sociologia. Já Unger, em um primeiro momento, adotava uma
metodologia baseada na imersão da ação na crença e na contextualização dessas unidades de crença e
ação dentro de totalidades classificadas como tipos ideais. O método tipológico lhe parecia uma espécie
de explicação análoga à interpretação da obra de arte e uma alternativa à descrição puramente lógica
(ideal) ou causal (mecânica). “O tipo é um esquema conceitual desenhado para elucidar uma situação
histórica única, como um trabalho de arte representacional apresenta a imagem de um fenômeno
único. Ainda assim, o tipo também é desenhado para mostrar como certas espécies de ações e crenças
caminham junto com outras espécies. Assim, permite-nos melhorar a qualidade de nossa compreensão
geral da sociedade” (UNGER, 1976, p. 22). Depois, porém, Unger (2001 [1987], p. 620) defendeu que
a tipologia weberiana das formas de dominação e as variáveis-padrão de Parsons (uma tipologia das
formas de ação em papéis sociais complementares) “oscilam entre serem uma classificação sem claros
usos ou pressupostos explanatórios e servirem a um papel evolutivo residual”.
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Além da questão dos marcos temporais, pode-se considerar que a sociedade mundial “moderna”, que
se mundializaria a partir da Europa (e, em geral, do Atlântico Norte – “o Ocidente”), é expressão
apenas de mais um ciclo de mundialização, com antecedentes em outros períodos e civilizações. Ver
e.g. Gunder-Frank; Gills, 1993.
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Luhmann (2013 [1997], p. 25; 2006 [1999], pp. 269-70) vacilou em sua própria tese ao especular que,
provavelmente, a diferença inclusão/ exclusão será a “metadiferença” da sociedade mundial. Mas não era a
própria forma de diferenciação a forma da inclusão e exclusão (Luhmann, 2013 [1997], pp. 17-27)?
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É difícil concordar com Luhmann (2013 [1997], p. 289) na hipótese de que classes sociais sejam apenas
uma “semântica de transição” entre a sociedade estratificada e a sociedade funcionalmente diferenciada.
Afinal, a extinção das classes seria uma transição suficientemente longa a ponto de não haver sido (ainda)
observada (resistindo, de algum modo, mesmo nas experiências do socialismo real)...
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Bachur (2010, p. 215) propõe algo semelhante, mas associado a uma tendência inerente da
diferenciação funcional, que solapa a si mesma ao engendrar estratificação, regionalização e
segmentação social, em um movimento comparável à “lógica” autossubversiva do “capital”.
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vezes, o próprio Luhmann (2013 [1997], pp. 121, 127-31; 2009a [1995])
recai na ideia (típica das teorias da modernização) de que formas de
diferenciação “anteriores” só se apresentam hoje como “revivals” ou
são inerente “corrupção” ou “desdiferenciação” funcional, entendida
como uma peculiaridade cultural idiossincrática de certos povos do sul
global. É esse o caminho “barbarológico” sugestionado por Luhmann,
ainda quando inverte o discurso colonial (de localizar anomalia, déficit
ou negatividade na periferia), ao dizer que “pode bem ser que a atual
proeminência do sistema jurídico e a dependência da própria
sociedade e da maioria de seus sistemas funcionais de uma codificação
jurídica que funcione não sejam mais que uma anomalia europeia, que
bem pode se amenizar com a evolução da sociedade global”
(LUHMANN, 2004 [1993], p. 490).
Para sairmos dessa vertente de interpretar como “anomalia”
o que não é diferenciação funcional, e descrevermos melhor, um
caminho é tomar as formas de diferenciação como índices para
descrevermos como, em determinado contexto, elas se integram:
qual é o mix de critérios segmentários, geográficos, hierárquicos e
funcionais que opera em dada trajetória regional? E como as outras
formas da estrutura social são traduzidas em termos dos sistemas
funcionalmente diferenciados?
Esse sincretismo das formas de diferenciação precisa ser
esclarecido. A diferenciação funcional não apenas “reconstrói”
assimetrias dadas por outras formas de diferenciação, fagocitando-
as sem eliminá-las, mas também é restringida e entrecortada por
elas. Por exemplo, a diferença segmentária parece não ser uma
decorrência meramente da segmentação interna do sistema político
mundial, da organização do estado nacional8. Diferenças
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Como querem Luhmann, 2006 [1999], p. 264; Neves (2015, p. 18); Dutra (2016, p. 99). Já Villas Bôas
Filho (2009 [2006]) mantém um conceito como o de “sociedade brasileira”, incabível nos termos
luhmannianos de uma única sociedade (mundial); mas o próprio Luhmann, que considera um
“obstáculo epistemológico” pressupor “que sociedades são entidades regionais, territorialmente
definidas, de modo que o Brasil como sociedade difere da Tailândia, e os Estados Unidos da Rússia,
assim como o Uruguai do Paraguai” (LUHMANN, 2012 [1997], p. 6), refere-se à tal “sociedade
brasileira” (LUHMANN, 2018 [1992], p. xviii)!
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Ver também Luhmann (1995 [1975], pp. 141-5), sobre conversibilidade dos meios simbólicos.
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Luhmann (2010a [1965], p. 86) define: “As instituições são expectativas de comportamento
temporal, objetual e socialmente generalizadas e como tais formam a estrutura dos sistemas sociais.”
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Villas Boas Filho (2009 [2006]) enfatiza a importância desse aumento de escala, observando os tribunais
como centro do sistema jurídico. Campilongo (2011 [2000]) destaca a diferença entre centro e periferia do
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direito. Enfatizo, além dessa diferença, a presença dos “ambientes internos” (ou “esferas públicas”) e do que
chamo de “mecanismos de triangulação” (AMATO, 2017, pp. 216-22). Sobre o centro e a periferia dos
sistemas político, jurídico e econômico, ver Luhmann, 2004 [1993], cap. 7; 1993 [1991], pp. 180-4; 2009b
[1998], pp. 272-9. Sobre os acoplamentos estruturais entre política, economia, direito, ciência e educação,
ver Luhmann, 2013 [1997], pp. 108-15; 2009 [1998], cap. 10; 2004 [1993], cap. 10. Sobre as esferas públicas
dos sistemas econômico, político e científico, ver Luhmann, 2017 [1988], cap. 3; 2009 [1998], cap. 8; 2013
[1997], p. 102. O conceito de esfera pública como ambiente interno do sistema é devido a uma sugestão de
Dirk Baecker, como reconhece Luhmann (2000 [1996], p. 104). A diferença entre esfera pública e esfera
organizada (que inclui as organizações centrais e periféricas) dos sistemas funcionais é enfatizada por
Teubner (2012, pp. 88-96).
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É o que proponho (AMATO, 2017, cap. 4), por contraste com o conceito de Neves (2008, cap. 4), o
qual fala de uma “esfera pública constitucional” que, sob influxo habermasiano, parece indistinta entre
os sistemas político e jurídico, e entre o plano estrutural e o plano semântico. Em Neves (2013 [2008],
p. 122, destaques originais), “[a] esfera pública é formada pelo conjunto de valores, interesses,
expectativas e discursos que emergem dos diversos sistemas funcionais e do chamado ‘mundo da vida’
(operacionalizado mediante as inumeráveis interações cotidianas não estruturadas sistêmico-
funcionalmente nem sistêmico-organizacionalmente, e reproduzido por meio da linguagem natural
não especializada) e perdem a sua pertinência de sentido específica às respectivas conexões sistêmicas
de comunicações e às referências concretas do mundo da vida, com a pretensão e a exigência de
influenciar os procedimentos de produção e concretização normativa, bem como os de tomada e
execução de decisões política no Estado constitucional.”
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Banco central
Partidos políticos, Produção, comércio
grupos de pressão e consumo
Judiciário
Arbitragem
Ação
Personalidade jurídica
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No “manifesto” do movimento de Estudos Críticos do Direito, Unger (2017a [1982], cap. 5 e 6) a
qualificava de “doutrina desviacionista”.
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Para um exemplo no campo do direito constitucional e dos direitos fundamentais, ver Amato, 2018.
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Ver as críticas de Luhmann (2002 [1990]; 1994 [1993]; 2012 [1997], p. 13; 2013 [1997], pp. 223-6; 2006
[1999]) à teoria crítica da escola de Frankfurt. Ver os comentários de Unger (1987, pp. 135-99; 2017b [2015],
pp. 28-9), sobre “superteoria”, “ultrateoria” e o marxismo que enfatiza a “autonomia relativa” da cultura
ou da política diante da determinação da base econômica. Ver também as críticas de Unger (2017b [2015],
pp. 48-64) às correntes dos critical legal studies e outras tendências globais da teoria jurídica. Para a crítica
da “indeterminação radical”, ver Unger (1996, pp. 120-2; 2017b [2015], pp. 26-8).
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Ver, porém, Amato (2017, cap. 3), para o contraste da sociologia com o racionalismo iluminista – o
tema luhmanniano do “iluminismo sociológico”.
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Referências
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social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.
GUNDER FRANK, Andre; GILLS, Barry K. (Eds.). The world system: five
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redescribing the descriptions of modernity. Tradução de Joseph O’Neil e
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Stanford University Press, 2000 [1996].
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Amato. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017b [2015]. pp. 25-94.
______. Social theory: its situation and its task. A critical introduction to Politics,
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Press, 1987.
VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2009 [2006].