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COMPLETUDE
Considerações Iniciais
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Doutoranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras - nível de Mestrado e
Doutorado - área de concentração Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE- câmpus de Cascavel, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Sebastião Ferrari Soares. Email:
roseligarbossa@hotmail.com
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Anais do IV Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso: Discursos e Desigualdades Sociais.
Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2016. ISBN: 978-85-7758-301-0.
Para esta perspectiva teórica, analisar o discurso é perceber as contradições
existentes nas relações sociais que produzem os sujeitos, ou seja, a materialidade
discursiva. Ao desenvolver as análises, a AD procura compreender como um objeto
simbólico produz sentidos e como ele está carregado de significados por e para sujeitos, já
que os sujeitos, ao produzirem os sentidos, remetem-se a memórias e a situações que
comprovam que os mesmos não se encontram apenas nas palavras, nas imagens, nos
textos, mas também (e mais ainda), na exterioridade, nas suas condições de produção. A
palavra, pois, é vazia de significado e não tem um sentido, mas efeitos de sentido que são
produzidos a partir das formações discursivas (FD) a que pertencem.
Cabe ressaltar que a noção de FD para a AD é essencial, já que ela controla a
produção do discurso situado em um momento social, histórico e ideológico determinado.
Para Pêcheux (2009, p.148, aspas e itálicos do autor), “a expressão processo
discursivo passará a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias
etc., que funcionam entre elementos linguísticos – ‘significantes’”. É o processo discursivo
que organiza e controla o uso de um significante e não outro em dada FD, de modo a
produzir um efeito de sentido. Assim, as palavras produzem efeitos de sentido nas relações
que estabelecem com outras palavras da mesma FD. Do mesmo modo, assim como se
admite que uma palavra mude de sentido ao passar de uma FD à outra, “é necessário
também admitir que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no
interior de uma formação discursiva dada, ter o mesmo sentido” (PÊCHEUX, 2009, p.148,
itálicos do autor). Essa é a tese de que, para a AD, não há significado, mas significantes;
por isso, as palavras não têm um sentido, mas um efeito de sentido de acordo com a FD em
que são empregadas.
Nessa perspectiva, a revista Capricho, ao discursivizar o corpo adolescente, o faz
movida pelas determinações da FD em que se inscreve, que, considerando a luta política e
econômica em uma sociedade capitalista como a nossa, é a FD dominante. Observamos
que ao construir o seu discurso sobre e para o adolescente, o periódico se utiliza de
discursos outros. No entanto, não são quaisquer discursos: apenas aqueles que se
“encaixam” na FD na qual ela está inserida e assim contribuem para reforçar aquilo que ela
afirma. Discursos outros, como de psiquiatras, psicólogos, professores, artistas famosos,
profissionais da moda e dos próprios adolescentes, que se juntam para legitimar a prática
discursiva do periódico. Vejamos um exemplo:
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(SD01) Ter autoestima é um exercício diário. A palavra chave é amor-
próprio!, Flavia Penteado, psicóloga. (CAPRICHO, Janeiro/2015, p.48).
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considerações podemos questionar: que amor-próprio é esse? Como aceitar a diferença em
uma sociedade que dita o que é ser belo, saudável e aceitável?
Quando a revista Capricho “seleciona” outras vozes discursivas para construir o
seu discurso, como a da psicóloga, na materialidade analisada, ela o faz interpelada
ideologicamente, de modo que haja condições, por parte de sua FD, para que esses
discursos outros nela se inscrevam, ou seja, sejam chamados a nela se inscreverem. Trata-
se, nas palavras de Maingueneau (2005) de uma “vocação enunciativa” que se caracteriza
por um ajustamento “espontâneo” dos sujeitos às condições exigidas. Nesse processo, a
autocensura leva a “se excluírem aqueles que não têm as qualificações exigidas ou a
possibilidade (por qualquer razão) de dotar-se delas” (MAINGUENEAU, 2005, p.137).
Nesse processo, a revista produz a sua prática discursiva de modo a construir a
imagem de uma instituição legitimada e autorizada a orientar modos de pensar, de ser e de
fazer do público leitor. Prática que se dá a partir de conselhos, sugestões e dicas diversas,
desde modos de se vestir a maneiras de pensar e agir.
E é nesse sentido que reiteramos a proposta da AD: compreender o funcionamento
do discurso, inscrevendo-o, para isso, na relação da língua com a história e buscando na
materialidade linguística as marcas das contradições ideológicas.
Podemos tomar aqui, o corpo como materialidade discursiva, pois o corpo possui
sistematicidade, historicidade, e logo, interdiscursividade, o que nos permite analisá-lo nas
edições da revista Capricho buscando compreender a sua estrutura, as suas determinações
e as suas relações de sentido. O corpo, nessa concepção, não é visto apenas como limitação
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que define o indivíduo, mas como um objeto do discurso, cujos efeitos produzem
significações, deslizamentos de sentido e também silenciamentos. Para Ferreira (2013),
no corpo, como nos demais objetos discursivos , vai haver sempre uma
tensão constante que vem da própria sistematicidade do objeto (que se
organiza como uma estrutura), da historicidade que o afeta, porque nele
se inscreve e da interdiscursividade que nele está presente, porque o
constitui. Essas seriam então as condicionantes do corpo que o tornam
um objeto discursivo – sistematicidade – historicidade –
interdiscursividade (FERREIRA, 2013, p.131).
É por esse viés que o corpo adolescente é tomado na revista Capricho: um objeto
discursivo construído em dadas condições de produção, que produz efeitos de sentido
marcados pelo conflito, pela contradição e pela equivocidade. Pensar a questão dos
sentidos emergidos pelo corpo discursivizado na revista, exige lembrar que não é do corpo
empírico que estamos falando, mas do corpo interpelado, do corpo simbólico, corpo que
produz sentidos, onde trabalha a ideologia, cuja materialidade específica é o discurso.
Nesse sentido, podemos afirmar que estamos lidando com o corpo discurso que é
quando, segundo Leonel (2010, apud ORLANDI, 2012, p.85)
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do corpo do homossexual, do corpo da travesti, do corpo do adolescente. O corpo é assim
construído e constituído de sentidos já dados: estabelecidos e estabilizados. E, pensando no
corpo adolescente da revista Capricho, podemos dizer que ele é (re)produzido de acordo
com a FD predominante.
Para pensar o corpo como um objeto discursivo é salutar considerá-lo como uma
produção cultural e ideológica. Não é possível, nesta perspectiva, tomá-lo como um corpo
empírico; como um corpo pertencente a um sujeito consciente que faz dele o que deseja.
“O que nos dá o corpo é a linguagem” (BARBAI, 2015, in:INDURSKY, FERREIRA,
MITTMANN, 2015, p.211). Assim, o que produz o corpo não é a anatomia humana, mas o
discurso que se produz sobre ele. Discurso que assim como os sentidos, não se constroem
fora da história, da memória e do interdiscurso.
Ao produzir a prática discursiva sobre o corpo adolescente, a Capricho é movida
e controlada pela FD em que se inscreve, pois, segundo a AD, esta controla todo o
funcionamento do discurso. Dessa maneira, ao construir a imagem do corpo adolescente,
não o faz por meio do retorno do que as coisas são, como se o discurso fosse sua origem,
mas por meio do interdiscurso, ou seja, por tudo o que já se pensou, já se viveu e já se
enunciou sobre o corpo em outras épocas e em outras circunstâncias, já que “o sujeito, ao
enunciar, age movido por uma formação ‘pedagógica’, não necessariamente consciente e
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sistemática (mas também), e que, portanto, diz o que diz à luz da ‘educação’ recebida”
(CATTELAN, in JELL 2011, p.155, aspas do autor).
Para melhor compreendermos esse processo, passamos à análise das materialidades
discursivas a seguir:
(SD03) Quero curvas “Não tenho cintura! Help!? Com 1,77 metro, Luiza
Carvalho, 17 anos, se acha desajeitada: muito alta, com pernas longas e
sem curvas. Fã das irmãs Jenner, ela acredita que marcar a cintura
deixaria seu corpo mais definido e curvilíneo. Tem razão, Lu. E algumas
peças podem te ajudar. A saia com babados fica mais solta nas pernas e
justa (oba!) na cintura. Já a jaqueta bomber, mesmo larga, tem um
elástico que cria esta linha afunilada na silhueta. Por último, dois
curingas: vestido ou macaquinho com elástico na cintura. [...]
Jaqueta(R$119,00) e camiseta (R$29,99) Marisa, minissaia Youcom
(R$119,90) e tênis Keds (R$139,90). (CAPRICHO, julho 2014, p. 79).
Quando a revista Capricho produz o discurso sobre o corpo adolescente ela o faz
como se fosse a primeira vez, como se fosse origem do seu dizer. No entanto, tudo que ela
afirma sobre o corpo ela retoma da memória discursiva, de sentidos já construídos acerca
do corpo: um corpo idealizado e desejado. Ao afirmar, na SD02, que “Todo mundo olha
no espelho e se incomoda com alguma coisa” parece-nos que se produz o efeito de sentido
de esta é
a visão da própria pessoa, ou seja, de que o sujeito é a origem de seu desejo. No entanto, ao
tomarmos a concepção de leitura da AD, podemos inferir que a análise da imagem que o
sujeito vê no espelho não é dele. Em outros termos, só é possível para o sujeito significar o
seu corpo, se este for tomado como discurso, uma produção cultural e ideológica. Os
sentidos que ele produz para o “seu” corpo não partem (só) dele, mas de tudo que já se
falou, já se mostrou e já se viu sobre o corpo. O corpo, além do organismo vivente, é o que
a língua designa como corpo (BARBAI, 2015, in: INDURSLY, FERREIRA, MITTMAN,
2015, p. 210).
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Ao afirmar que o adolescente está insatisfeito com o seu corpo, pois se incomoda
com a “barriguinha molenga”, o “bumbum meio grande” e as “coxas grossas demais”
silenciam-se que essas características não se encaixam nos padrões estereotipados de
beleza atuais. Na mesma materialidade discursiva nos deparamos com o questionamento:
“Será que estou mesmo gorda? ”A Capricho utiliza, dentre outros, o recurso linguístico da
pergunta retórica a fim de buscar a aproximação com o leitor, despertar a atenção e o
interesse e, consequentemente, tentar provocar uma mudança de postura a respeito do
assunto de que trata. O questionamento do periódico dialoga com a adolescente, inferindo
que, supostamente, a adolescente está se achando fora dos padrões de beleza impostos pela
sociedade. Em seguida, para responder a “definidora” pergunta, “entra em cena” a revista
Capricho como uma instituição conhecedora da adolescente e assim, legitimada e
autorizada a auxiliá-la nesta tarefa: “A gente te ajuda a responder”. Resposta que está
baseada nos moldes sociais atuais, moldes em que estar com “Uma barriguinha molenga,
bumbum meio grande, coxas grossas demais” não são aceitos, pois segundo Giddens
(2002) “todos nós, nas condições sociais modernas, vivemos como que cercados de
espelhos: neles procuramos a aparência de um eu socialmente valorizado, imaculado”
(GIDDENS, 2002, p.160, in: BORBA e HENNIGEN, 2015, p.249).
Na SD03 citamos outro discurso que segue nesta mesma direção: a insatisfação da
adolescente em relação ao seu corpo, pois “se acha desajeitada: muito alta, com pernas
longas e sem curvas”. Logo em seguida, a articulista afirma que a adolescente é “Fã das
irmãs Jenner”. Diante desta leitura, podemos inferir que o fato de a adolescente se
considerar fora dos padrões atuais de beleza não é seu, mas construído socialmente, pois o
fato de ela ser “fã” de uma modelo já diz muito sobre as suas concepções de beleza.
Ao construir a sua prática discursiva sobre o corpo adolescente, a Capricho o faz
trazendo, através da memória discursiva, saberes, crenças, estereótipos e sentidos que já
foram construídos sobre o corpo ao longo da história. Nas palavras de Pêcheux (in:
ACHARD et al, 2010, p.52, destaques do autor),
a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível.
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Dessa forma, a memória discursiva permite que o sujeito “veja”, “leia” e “produza”
efeitos de sentido sobre o corpo no discurso da Capricho, pois a memória é a reconstrução
dos discursos através do pré-construído e do discurso transverso, que, no fio do discurso,
vem se restabelecer. Isso faz com que o discurso não seja homogêneo, mas marcado pela
multiplicidade e pela alteridade, pois ele é sempre composto de outros sentidos, que vêm
sempre de já-ditos em outros lugares. Parafraseando e citando Authier-Revuz (1990, p.27),
nenhum discurso é neutro, mas inevitavelmente carregado, ocupado, habitado e
atravessado “pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada”. E,
nesse processo, a adolescente, ao afirmar que é fã das irmãs Jenner, (re)produz um
estereótipo de beleza construído socialmente, no qual ela não se encaixa por não possuir
algumas qualidades, dentre elas, não ter cintura.
Logo à frente, a articulista afirma “Tem razão”. Podemos compreender que: a
adolescente admira um padrão de beleza imposto que é o da mulher com cintura; ela não se
considera acinturada; a articulista concorda que a adolescente não é acinturada como as
irmãs Jennner. E, então, a revista se coloca à disposição para resolver o suposto problema
da adolescente.
Para tal empreendimento, a Capricho sugere peças de roupas que a ajudarão a
tornar-se parecida com as suas fãs, pelo menos naquilo que é o seu desejo (momentâneo): a
cintura! Essas soluções são apresentadas pelo periódico na forma de produtos: “ vestido ou
macaquinho com elástico na cintura. [...]Jaqueta (R$119,00) e camiseta (R$29,99) Marisa,
minissaia Youcom (R$119,90) e tênis Keds (R$139,90). (CAPRICHO, julho 2014, p. 79).
Parece-nos que aqui reside o principal interesse da revista: propor e vender às adolescentes
um sonho de completude.
Podemos pensar que é essa vontade de se tornar, no caso, parecida com as fãs e,
supostamente estar próximo de uma suposta perfeição de beleza, que controla a produção
dos discursos, dos comportamentos e dos sentidos. Uma “força” que move o motor do
modo de produção atual, o capitalista, pois os sujeitos estão sempre em busca de algo que
os completaria e, em se tratando do corpo, estão, não raras as vezes (para não generalizar)
procurando alguma maneira de ilusoriamente atingir, ou pelo menos encontrar um artifício
para “disfarçar” a falta, e, atingir a suposta perfeição.
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Algumas considerações (não) finais
Referências
ACHARD Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In: ACHARD, Pierre et al.
Papel da memória.Trad. José Horta Nunes. 3 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010.
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BARBAI, Marcos Aurelio. O fracasso do intervalo semântico: significante, sentido e
corpo. In: INDURSKY, Freda, FERREIRA, Maria Cristina Leandro, MITTMANN,
Solange (organizadoras). Análise do discurso: dos fundamentos aos desdobramentos (30
anos de Michel Pêcheux). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2015.
BORBA, Mário Pereira e HENNIGEN Inês. Composições do corpo para consumos: uma
reflexão interdisciplinar sobre a subjetividade. Psicologia e sociedade, vol. 27(2), p.246-
255, Belo Horizonte maio/ago. 2015. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822015000200246&lng=
pt&nr m=iso&tlng=en. Acesso em: 18/10/2015.
CATTELAN, João Carlos. Que eu fico de olho. In: As línguas em diálogo : perspectivas e
desafios na atualidade. JELL - 14ªJornada Regional e 4ª Jornada nacional de Estudos
Linguísticos e Literários (14;2011).p.153-172. Marechal Cândido Rondon – PR:
Edunioeste, 2011.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni
Puccinelli Orlandi et al. 4 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009 [1988].
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