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AULA 1 -03/08/95

ACONTECIMENTOS: SEGREGAÇÃO,
CONFINAMENTO E SABERES DISCIPLINARES

A trajetória de investigação e pensamento de Foucault é muito diferen­


ciada daquela de outros pensadores com os quais em geral temos contato,
estudamos academicamente. Singulares são as temáticas: crime, sexualida­
de, saberes, confinamentos, e inéditas as formas de pesquisar ou a
“metodologia”, se chamarmos assim a lógica que preside seu olhar, bastante
diferenciado. Isso às vezes nos atrapalha um pouco no início, devido às orto-
doxias que já naturalizamos no pensar.
Pessoalmente, já me sinto um pouco mais à vontade para trabalhar nas
pegadas de Foucault. Mas isso foi árduo para mim. Inclusive quero descre­
ver para vocês o contexto no qual eu me encontrei com esse pensador. Isso
não passa pela minha escolaridade, que é bem longa, incluindo doutoramento,
no qual me utilizei de outras ferramentas para investigar que não as
foucaultianas: arqueologia, genealogia e analítica.
Eu me encontrei com Foucault em função de uma prática de trabalho de
dissertação de mestrado com alunos, colegas que foram meus orientandos.
Nós sentimos necessidade de dar conta de algumas questões que não conse­
guíamos encaminhar. Nessa busca, fomos passando para outros referenciais,
até que, em Foucault, conseguimos algumas respostas que não conseguíra­
mos com outros teóricos trabalhados.
Acho isso bastante compreensível, e acredito mesmo que, ao longo da
escolarização de vocês, os encontros com Foucault também tenham sido
raros, tanto para o pessoal que está fazendo graduação como aqueles que
fazem mestrado ou doutorado. Se eu pensar na minha escolaridade, en­
contrei pessoas e grupos que trabalhavam com pensamento fenomenológico,
marxista, neomarxista, anarquista, com outros positivismos, inclusive, e mui­
tos humanismos; excelentes professores dentro de seus campos de discur­
so. Mas não me encontrei com foucaultianos, com deleuzeanos, com pes­
soas que trabalhassem Nietzsche, Illich, Clastres, enfim, autores que des­
concertavam o pensar e o viver “naturalizados” das pessoas.
Mas como explicar essa situação de, nos cursos de educação, não se
encontrar com esses autores? E mais ou menos compreensível, embora não
seja muito admissível, que eu, tendo passado na década de 80 por universi­
dades brasileiras e estrangeiras, não tenha me encontrado com esses auto­
res. São justamente aqueles que na década de 70 estavam no âmbito das
discussões e dos estudos avançados em humanidades. E essas ausências
acabam sendo transferidas para universidades menores. Então, me parece
que as coisas acabam funcionando mais ou menos assim, como nesse caso
local onde me incluo já como professora. No mestrado em Educação que
nós temos aqui, do qual eu participei alguns anos, também Foucault passa
mais ou menos despercebido, e isso não é de se estranhar.
Um olhar foucaultiano sobre essa situação revelaria até circunstâncias
riquíssimas, oportunizadas por análises de relações de poder-saber. Mas
isso fica para quem, de posse das “ferramentas” que Foucault põe à dispo­
sição, queira, efetivamente, lançar esse olhar.
Sem se deter muito, há que se reconhecer que a tradição acadêmica
brasileira naturalizou um olhar humanista sobre o que elegeu como objetos
dignos de estudo. Com uma herança de saber erudito veiculada predomi­
nantemente por padres e freiras, os “humanismos” já constituíam um “avan­
ço do olhar”, comparadas às ferramentas da metafísica. Ora, na década de
70 do século 20, tardiamente, a academia brasileira inaugurava cursos de
pós-graduação, inclusive de Educação, ainda com professores oriundos dos
seminários religiosos, irmãos leigos graduados, tornados às pressas douto­
res livres-docentes para poderem atuar como professores em tais cursos;
burocratas que, na Escola Superior de Guerra, eram ensinados a substituir o
jeito de olhar-metafisico pelo positivista; e aspirantes à inlelligenlsia brasi­
leira, que de 1953 a 1964 se experimentavam num positivismo de vanguarda
no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e que viriam a constituir,
em décadas posteriores, o embrião marxista do pensamento universitário de
vanguarda no Brasil. Esse embrião, desenvolvido, tornou o pensamento
marxista hegemônico nos meios educativos mais avançados entre nós, expli­
cando a história através das contradições, determinada, e naturalizou a lógi­
ca dialética como a “caixa de ferramentas” por natureza dos olhares cultos,
inteligentes e avançados. Sem contar que os outros positivismos, mesmo
opacizados pela perspectiva revolucionária do marxismo, continuavam cons­
truindo cabeças e construindo olhares.
Óticas genealógicas como as de Nietzsche, que buscam na articulação
de pequenos e longínquos poderes pistas para a gênese das ocorrências das
instituições e a naturalização delas, desestábilizam profundamente outras óti­
cas assentadas nas determinações dos vários positivismos. E é justamente

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Nietzsche que vai fornecer inéditas pistas para leitores argutos como Foucault,
Illich, Deleuze e Clastres, que precisaram ser por muito tempo banidos da
academia brasileira para a naturalização das leis de todos os positivismos e
humanismos tradicionais.
Acredito que, à medida que formos conversando, vai se tomar mais cla­
ro porque Foucault é inconveniente, inclusive na formação dos futuros pro­
fessores. Só para adiantar, se olharmos a educação formal através das lentes
foucaultianas, não nos deteremos nas teorias pedagógicas ou no pensamento
dos pedagogos, insignificantes efeitos discursivos de superfície, mas nas mes­
quinhas relações de poder-saber que estão na gênese da escola qu eçonhe-
cemos hoje. Não nos deteremos nos seus objetivos explicifacíos, mas nos
efèitõs que marcam a subjetividade dos que por ela transitam. E esses efeitos
de poder-saber ai instituídos nos parecerão, no mínimo, alarmantes. Se olhar­
mos o funcionamento da sociedade pela ótica de Foucault, surpreenderemos
acontecimentos “menores” que não constam dos tratados usuais das ciências
sociais. E nos surpreenderemos com verdades que desestabilizarão profim-
damente as viciosas instituições nas quais assentamos nossas vidas: liberda­
de, moral, sexualidade, direitos, história e tudo mais instituído à nossa volta e
que nos constitui. Contradições, oposições, transgressões, contrários já re­
presentarão quase nada e a quase nada responderão. Vai nos restar esque­
cer Foucault ou ousar pensar o até então não pensado, viver anarquizando o
instituído, não para reinventá-lo, mas para “surfar” no instituinte, na dobra de
fora do pensamento, como diz Deleuze acerca de Foucault.
Isso foi um trailer, espécie de jogo que eu arbitro fazer com vocês, para
deixá-los à vontade para ou fechar o livro e deixar a sala, ou apoderar-se
dessa nova “caixa de ferramentas” que Foucault nos oferece para entender
“o mundo” e situar-se nele.
Isso que estou falando é só para justificar para vocês como esse encon­
tro com Foucault não era de se esperar que se desse na Universidade. Ele
acontece porque, a partir do mestrado, instituímos, eu e alguns estudantes,
grupos de formação instituinte e de índole libertária, que nós chamamos de
autoformação. Neles, fomos experimentando limitações para desenvolver
certas coisas ao nível do pensar e do fazer. Então escolhemos trabalhar cer­
tos autores que não são muito conhecidos da prática corriqueira da educa­
ção formal brasileira. E é assim que eu continuo me encontrando com Foucault,
e muito à vontade.
Agora já podemos começar, efetivamente. E um modo que me parece
conveniente para iniciar é diferente de uma das coisas que caracterizou o
meu tempo de estudante, acho que caracteriza o tempo de estudante de
qualquer um de vocês. Passamos por teorias, conhecemos teorias de pesso-

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as, mas não conhecemos a vida dessas pessoas e não sabemos das relações
que existem entre a vida e o pensamento que essas pessoas desenvolvem.
Isso me parece essencial. Eu consegui entender um pouco mais de Foucault
quando eu li boas biografias sobre ele, além de entrevistas e declarações à
imprensa por ele feitas. Isso me ajudou muito, e acho conveniente passar
alguns elementos desses para vocês, até porque, quando lemos um livro
referenciado em pesquisa, nós o tomamos como uma obra isenta de subje-
tividades, como uma declaração de pensamento científico, de idéias gerais,
\> sem endereçamento, e em geral não é essa a função do escrito. Em geral o
livro é uma arma, um instrumento de luta ou uma estratégia de poder.
Quando alguém publica alguma coisa, está respondendo a outro alguém
ou está questionando alguma coisa; ele está em luta com alguma coisa e, às
vezes, há uma relação com muitas pessoas, a favor de uns, contra outros. E
determinados escritos aparecem como obras importantes, e outros nunca
aparecem. Porque tudo isso está muito vinculado a uma trama de poder em
que determinadas falas, determinadas interpretações, determinados olhares
acabam tendo “condições de possibilidade”1de aparecer e outros não estão
com essas condições de possibilidade no momento em que surgem ou do
lugar de onde falam.
O Foucault “escavou”, e acho que muito bem, essas condições de pos­
sibilidade para que a obra dele fosse aparecendo na Europa e fosse reco­
nhecida pela academia na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, no Brasil.
Inclusive ele esteve quatro vezes no Brasil, fez seminários aqui. Só que o
pensamento de Foucault é um pensamento nada marxista. E por ser nada
marxista, é um pensamento que se disseminou paralelo às faculdades de
Educação nos ambientes cultos do país.
Parece-me que cruzar esses elementos, cruzar a obra de Foucault com a
construção metodológica que ele vai fazendo enquanto pesquisa e enquanto
pensa, e trabalhar com a vida dele ao mesmo tempo é um bom plano. E algo
fundamental para a gente se tornar íntimo. Saber um pouco dessa vida mes­
clada com a obra, mesclada com a construção de elementos metodológicos
fundamentais, que para ele foram a arqueologia e a genealogia, me parece
uma receita para aulas úteis. Especialmente na genealogia ele deve muito a
Nietzsche e deixa isso muito claro através de inúmeras declarações. Afinal
de contas, objetiva-se ser íntimo dessa pessoa, poder colocar sua “caixa de
ferramentas” no meio de nossas pesquisas e conversar com ele.
Organizei uma bibliografia para vocês. Nela estão os livros de Foucault
escritos por ordem de publicação, desde o seu primeiro livro até o último.

1. A noção de “condições de possibilidades”, ligada ao conceito de épistémè , será


detalhada na 2o aula.

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Livros grandes, obras muito importantes, obras menores, mas obras em
livros. No segundo momento, coloquei as biografias de Foucault que exis­
tem em português. Existem outras em outros idiomas. Depois coloquei ar­
tigos, conferências e entrevistas de Foucault em português ou em espa­
nhol.
Foucault tem uma vasta publicação composta por muitas entrevistas a
jornais franceses, a jornais estrangeiros, inúmeras conferências, cursos, prin­
cipalmente cursos no Collège de France, onde ele lecionou de 1970 a 1984.
Foi o último lugar onde ele trabalhou e alcançou um reconhecimento maior.
Foram cursos de grande sucesso e procura, extremamente inéditos na forma
de interpretar os acontecimentos e as instituições. Inclusive foram assistidos
por intelectuais brasileiros como Roberto Machado, que se tomou o primei­
ro divulgador do pensamento de Foucault no Brasil, introduzindo, comen­
tando e traduzindo para o português partes de trabalhos elaborados por
Foucault.
Também constam na bibliografia entrevistas e artigos. Fiz essa relação
em português e em espanhol de tudo aquilo que está disponível. Depois
aparecem também textos sobre Foucault em português. H á um número
bem grande de autores que escrevem sobre Foucault, a favor ou contra, ou
então utilizam a obra de Foucault para desenvolver temáticas específicas,
utilizando a arqueologia ou a genealogia como instrumental de pesquisa.
Indiquei até a coleção Dits eíEcrits (lançada ano passado pela Gallimard),
caso alguém tenha interesse, com todos os artigos, conferências e entrevistas
do Foucault. Mas essa obra são quatro volumes, está em francês e tem qua­
se 2.000 páginas. É só para saber que existe e está aí, à disposição2.
Como as pessoas que foram se inscrever quiseram saber quais eram os
conteúdos do curso, então eu escrevi aqui cinco títulos que me parecem ser
significativos e que vão constar no verso do certificado que a Reitoria de
Extensão vai dar aos cursistas. É, portanto, uma listagem de conteúdos orga­
nizados disdplinarmente, que não çoincide com os títulos que estou atribuin­
do às aulas, cuja estrutura é para funcionar numa ordem não-disciplinar.
Seria incoerente falar de Foucault sem anarquizar a ordem disciplinar dos
conteúdos de ensino3. Os títulos ofidaissão:

2. Esta fala foi feita em 1995, quando fazia alguns meses já havia adquirido esta coleção
e traduzido algumas partes para uso interno de nossos grupos de estudo, agora pondo
à disposição dos cursistas.
3. Ordem disciplinar dos conteúdos de ensino implica: ir do geral (conceitos e contex­
tos) para o particular (aplicações e textos); do local (pessoas, pequenos espaços e
coisas) para o universal (sociedade, territórios, leis); do fácil para o supostamente

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1 - Vida e obra de Foucault;
2 - Arqueologia e genealogia nas relações poder-saber em Foucault;
3 - Limites e possibilidades de pensar a educação como ferramenta em
Foucault;
4 - 0 intolerável da educação;
5 - A didática como discurso científico do disciplinamento.
Para fins institucionais e acadêmicos, é a partir desses títulos que nós
vamos começar a trabalhar, iniciando pela vida e obra de Foucault. Vivere­
mos “tudo ao mesmo tempo agora”, como vocês perceberão.
Nós vamos falar de “instrumentos metodológicos”, mas eu peço para
vocês que usem essa expressão com reserva. Foucault não ficaria nada sa­
tisfeito se falássemos nos instrumentos metodológicos do pensamento dele.
Mas como eu entendo que método é um jeito de pensar e umjeito de olhar
um objeto de conhecimento, por isso chamo então a arqueologia e a
genealogia de instrumentos metodológicos que Foucault utiliza, ou seja, uti­
lidades essenciais de uma espécie de “caixa de ferramentas” usadas para
quebrar as palavras, extraindo delas o que elas dizem, e quebrar as coisas,
pondo à mostra suas visibilidades.
E não sou a única a fazer isso. Outro que também usa essa expressão é
o Roberto Machado, autor do livro Ciência e Saber: a trajetória arqueo­
lógica de Foucault. Ele participou de seminários realizados por Foucault
quando esteve no Brasil, e inclusive organizou um livro chamado Microfisica
do Poder, onde escreve o capítulo de introdução: “Por uma genealogia do
poder” .
Foucault não inventa umjeito de olhar as coisas arbitrariamente. Essa
ótica, que atua sem se fixar em nenhuma ortodoxia, vai se construindo ao
longo das pesquisas dele. Então as pesquisas mais importantes coincidem
com os nomes dos livros mais importantes, onde está mais explicitado esse
jeito original de olhar as çoisas que Foucault desenvolve.
Começa com a H istoriada Loucura, passa pelo Nascimento da Clíni­
ca, A s Palavras e as Coisas, por V igiar e Punir e passa também pela
H istória da Sexualidade. Ao longo desses resultados de pesquisa, Foucault
vai construindo uma arqueologia, vai ampliando essa arqueologia em
genealogia, vai complementando ambas com a analítica, a ponto da gente

difícil (do mais próximo para o mais distante), de tal forma que essas instâncias estejam
separadas, incomunicáveis, e que a primeira seja sempre considerada pré-requisito da
seguinte. Do ponto de vista disciplinar, isso é estrutura lógica do conteúdo de ensino,
o que facilita o aprendizado. Do ponto de vista não-disciplinar essa ordem do discurso
é apenas uma amostra de como o discurso da ordem institui o desconhecimento como
conhecimento oficial.

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poder dizer: o instrumental metodológico que está presente na H istoriada
Loucura, que é a tese de doutoramento de Foucault, ri O N ascim ento da
Clínica e ri A s Palavras e as Coisas são instrumentos metodológicos vin­
culados à arqueologia de Foucault. E o que vem depois são instrumentos
metodológicos vinculados à genealogia.
Só para dar uma idéia melhor: a arqueologia trata das relações de sa­
ber, produção de saber, “condições de possibilidade” para a produção de
saber, e a genealogia trata das relações de poder. Isso vai ser construído, o
jeito de olhar, os domínios de objeto, arqueológica e genealogicamente ao
longo de sua obra. —
A loucura é um domínio de objeto, a sexualidade outro domínio, o hospi­
tal, a clínica outros domínios, o encarceramento, de Vigiar e Punir, outro
domínio. Esses domínios de objetos vão sendo vistos, olhados e investiga­
dos arqueologicam ente nas três primeiras obras, e arqueológica e
genealogicamente em Vigiar e Punir e nos três volumes de H istória da
Sexualidade. O último volume foi escrito, mas Foucault morreu antes da
publicação. Na História da sexualidade soma-se o instrumental da analítica
para a pesquisa da construção das subjetividades, numa história de longa
duração, reinventada pelo autor.
Apontaremos elementos, com os quais conseguiremos fazer algumas per­
guntas que só aparecem por efeito do uso dessas ferramentas. São algumas
perguntas que eu me faço e que algumas pessoas em suas pesquisas vêm se
fazendo, respondendo ou não, e que para um olhar menos arguto podem
parecer menores. A pergunta básica que eu me faço a cada instrumental
metodológico é: E isso na educação? O que significa olhar a educação dessa
forma, com esse instrumental? São essas as perguntas que nós queremos
responder nesse curso: o que significa olhar o domínio de objeto de interesse
de cada um de vocês assim? Aqui estão presentes educadores, advogados,
psicólogos e estudantes dessas áreas, ou seja, gente envolvida com diferen­
tes domínios de objeto: educação, justiça, saúde etc. Foucault olhou a loucu­
ra, olhou a clínica, o encarceramento, as diferentes formas de prisão, incluin­
do a escola, e também olhou a sexualidade.
Agora, como nós podemos, nos utilizando desse material, desse instru­
mental, olhar a educação? Por isso eu faço essa pergunta insistente no final do
estudo de cada um desses instrumentos presentes na “caixa de ferramentas”:
O que vem a ser a pedagogia olhada por esse esquema?
O que vem a ser a escola olhada por esse esquema?
O que vêm a ser os exercícios, os rituais, as práticas da escola olhadas
por esse esquema?
A vocês cabe fazer as mesmas perguntas, voltadas aos objetos de inte­
resse de vocês.

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O contexto onde as pessoas se desenvolvem vai oportunizar aconteci­
mentos diferenciados em suas vidas. Michel Foucault nasceu em 1926 em
Poitier, uma cidade do interior da França. Sua família era de classe média
alta, portanto não tinha problemas financeiros. O pai era médico, a mãe,
dona de casa. Ele tinha irmãos e foi um menino bastante introvertido e frágil.
Foucault vai para a escola. Os primeiros cursos elementares na França,
na época e lugar em que Foucault estuda, implica estudar grego, latim, uma
série de coisas que a gente não estuda. E isso significa ter uma familiaridade
com os textos escritos nessas línguas. Isso predispõe Foucault a uma dispo­
nibilidade para a busca de documentos em línguas que não são acessíveis a
maior parte dos escolarizados do ambiente social do nosso país e de nossa
época. Hoje, um menino com 12 ou 13 anos, na França, não estuda nem
grego nem latim, mas em 1930 estudava. E a forma como Foucault vive na
escola é uma forma comum, igual a qualquer outro estudante, sem ser muito
ou pouco destacado.
A vida de Foucault começa a ter um certo destaque acadêmico quando
ele vai para a Ecole Normale Supèrieure. É um reduto, e não é mais em
Poitiers, para onde as pessoas bem situadas, que pretendem estudar filoso­
fia, psicologia, ciências humanas, migram. Eram essas pessoas bem situadas
que em geral acabavam ocupando cargos importantes nas universidades e
em outros setores vinculados à educação na França, na época. Foucault não
foge a essa situação: ele vai à Ecole Normale e nela começa a se destacar
como um sujeito de muito brilho, extremamente eloqüente, com uma fala
extremamente fácil, erudita e sedutora. Ele já utiliza um jeito de se colocar
diante dos objetos de conhecimento com certas diferenças em relação aos
outros seus colegas. Isso faz com que ele se tome um pouco líder, um pouco
chefe do seu grupo de estudos. E quem compõe seu grupo de estudos?
Essas pessoas com 20 anos ou um pouco mais que estavam estudando na
escola normal com Foucault. Um deles é Jean Claude Passeron. Vocês já
devem ter ouvido falar na teoria reprodutivista da educação. Ele é um filóso­
fo que teve muita projeção dentro dos ambientes educacionais. Outra pes­
soa bem interessante, que é colega de Foucault na escola, é Paul Veyne,
alguém que se tomou um historiador muito famoso e que admirava profim-
damente Foucault, com quem conviveu desde muito jovem e que mais tarde
escrevería um livro que se tomou muito conhecido, intitulado FoucctulíRe-
voluciona a H istória.
Ao terminar o curso, o aluno da École Normale presta um exame de
agrégation. E, através desse exame, ele tem a oportunidade de lecionar na
escola secundária. Na primeira vez em que Foucault tenta esse exame, ele é
reprovado. Isso é uma surpresa imensa, porque diante dos colegas ele

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é visto como alguém extremamente competente e erudito para a idade dele,
mas ele é reprovado. Sofre um golpe tremendo, mas se recupera, e no outro
ano presta exame novamente e consegue passar em terceiro lugar. É nessa
época que Foucault conhece uma pessoa que vai ser renomado intelectual na
França e que, do mundo intelectual francês, vai acompanhá-lo ao longo de
muitos anos nesses rituais de passagem e servir muito a Foucault. E o Jean
Hyppolite. que ele encontra no segundo exame do agrégaíion, e entre eles
surge um proíiindo respeito.
Ele não quer lecionar na escola secundária, equivalente ao nosso segun­
do grau. Não tem muita vontade de ser professor, jornalista, ser qualquer
uma dessas profissões consideradas de classe média, profissões burguesas
que levam a um jeito de vida mais ou menos burguês e que fazem parte de
todo um contexto de vida burguês. Isso não lhe agrada. Foucault quer con­
tinuar estudando, essa é a coisa que mais o fascina. Ele toma-se um “rato de
biblioteca”. Quer permanecer nas bibliotecas a maior parte do tempo possí­
vel, quer pesquisar documentos. Está instrumentalizado para isso: ele lê gre­
go, latim e uma série de línguas que lhe possibilitam vasculhar documentos
antigos. Todos os tipos de documentos, especialmente originais de proces­
sos, regulamentos, onde aparece a vida de pessoas famosas e de pessoas
comuns.
E como o pensamento dele tem o privilégio de não estar preocupado em
repetir coisas, então Foucault vasculha esses documentos de uma forma muito
despreconceituosa, quer dizer, ele olha como quem olha pela primeira vez.
Isso significa sem trazer sistemas teóricos de enquadramento acerca daque­
les documentos. Isso o ajuda. Além do mais, se refugiar nas bibliotecas é um
jeito que ele enxerga para se ver livre da maioria das pessoas, com as quais
ele não gosta de conviver. Convive com colegas e tem alguns de que ele
gosta muito, com quem se dá muito bem. E o líder ou a “raposa”, como esses
colegas o chamam, que está sempre atenta.
Ele é um sujeito que vai se fazendo bastante pretensioso, pelo menos
nessa época de juventude. Não o atraem interpretações ortodoxas que são
comuns no meio acadêmico, tanto estudantil como professoral. E, conse­
quentemente, ele se distancia. Além do mais, a prática afetiva e sexual dele é
diferenciada, e a França não é um país tolerante com relação aos homosse­
xuais. Então, toda essa gama de situações fazem com que Foucault se tome
um sujeito briguento. Ele explode facilmente, tem acessos de raiva e prefere
se refugiar nos lugares onde não tenha que se incomodar muito, onde possa
fazer coisas que o satisfaçam.
O ato de lecionar, no início da vida de Foucault, não é uma coisa que o
agrade muito. Consegue uma bolsa de pesquisa e passa três anos por conta

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da pesquisa. Isso o ajuda mais uma vez. Ele acaba, assim, arranjando tempo
para estudar, tomando-se uma pessoa extremamente erudita. Alguém que,
quando fala das coisas, se reporta a inúmeras situações, a mil ambientes, a
diferentes épocas.
Acaba também indo lecionar em Lile, como auxiliar de ensino. Leciona
Psicologia, e é aí que ele encontra espaço de reflexão em contato com os
alunos. E bem verdade que está interessado na Psicologia, não definitiva­
mente, mas interessado. Então, a passagem de Foucault pela Psicologia,
mais especificamente pelo estudo da Psiquiatria e da Psicanálise, tem como
referências de vida esses encontros e desencontros. Nessa situação, a ques­
tão do hospital, do doente, do hospício e do louco são questões que passam
a instigar Foucault. Lecionar Psicologia se avizinha destas questões. E 1953,
ele começa a arrumar jeitos diferentes de lecionar Psicologia, ou seja, reúne
grupos de três, quatro estudantes e vai para espaços psiquiátricos, clínicas
psiquiátricas juntamente com eles. Juntos assistem as conversas entre o psi­
quiatra e o psiquiatrizado. Entre o chamado de doente mental e o psicólogo
ou psiquiatra. Esse tipo de exercício é uma constante no trabalho com
Foucault, que depois volta com seus estudantes para discutir isso num lugar
que ele chama de laboratório. Ele mesmo se diverte com o nome que dá,
porque no laboratório só tem uma caixinha com um ratinho dentro. Na rea­
lidade, o que há mesmo é o espaço de discussão entre pessoas que fazem
essas observações, que assistem esses encontros entre o psiquiatra e o
psiquiatrizado e dos quais algumas discussões são extremamente interessan­
tes, no sentido de conduzir Foucault a escrever o seu primeiro livro.
E um livro em que ele diz cometer vários erros e que mais tarde acaba
modificando o título e o último capítulo. O primeiro título ele chama de
Doença M ental e Personalidade; depois troca para Doença M ental e Psi­
cologia. Essas mudanças mostram que ele está um pouco indeciso ao es­
crever e faz reformulações bem grandes. Esse é o primeiro material que
Foucault escreve e não é um dos que ele considera importante. E mais fruto
de uma experiência enquanto professor de Psicologia.
A questão que faz Foucault continuar perseguindo a psicologia, passan­
do pela psiquiatria, é a questão daloucura. E um tema que persegue Foucault
e que, quando ele se muda p a rá a Suécia, quando vai viver em Uppsala,
consegue levar a efeito. Durante os anos de 1952a 1955, ele participa do
Partido Comunista Francês a convite de um grande amigo, Althusser, que é
um nome extremamente representativo dentro dos meios marxistas e dentro
da teoria reprodutivista em educação. Althusser convence Foucault a in­
gressar no Partido Comunista. Ele vai, mas nunca chega a ser “militante” . O
funcionamento do Partido Comunista incomoda muito Foucault: as palavras

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de ordem, a necessidade fundamental de concordar sempre com Stalin. Essa
concordância ilimitada era uma coisa que Foucault não aceitava, nunca acei­
taria, e aí as ligações dele com o Partido Comunista tomam-se truncadas. Ele
vai ficando, até que sente que o fato de ser homossexual não é aceito no
Partido Comunista. Isso o aborrece profundamente.
Nesse período ele tem um romance com um músico. Acaba indo para a
Suécia, em busca de um ambiente um pouco mais adequado para viver e que
julga ser um pouco mais livre do que o ambiente francês. Não vai para lecio­
nar, e sim como uma espécie de adido cultural, para dirigir a Maison de
France na Suécia.
Foucault entra em contato com algumas pessoas da Universidade sueca,
e prindpalmente com alguém que vai ser bastante importante em sua vida: um
antropólogo e mitólogo de nome Georges Dumézil, altamente significativo
nos meios intelectuais europeus, e que vai ter uma influência muito grande no
pensamento de Foucault. Além da influência dessas pessoas mais próximas,
entre 1953 e 1955, Foucault se encontra comNietzsche através das leituras.
É realmente a partir da leitura de Nietzsche que Foucault faz uma ruptura
com muitas das suas leituras anteriores. Até então, Foucault lia, como os
intelectuais da época, Hegel, Marx, Heidegger e também outros autores,
mas são basicamente esses, que são considerados os clássicos. A partir da
leitura de Nietzsche, Foucault faz uma ruptura e passa a ler, no âmbito
da filosofia, Kant. Inclusive, é com Análise da Antropologia de K ant que
Foucault vai construir sua tese complementar, a tese menor de doutoramento.
Na França, quando alguém ia defender um doutoramento, precisava fazer
duas teses, uma pequena e uma grande.
A partir de Nietzsche, Foucault corta os laços com a filosofia de
Heiddegger, Hegel, e Marx, e passa a criar laços, a pensar muito a partir do
pensamento de Kant e do próprio Nietzsche. E é através das leituras de
Nietzsche que ele é convidado a ler autores que pouco se lia e pouco se
estudava na França. Esses autores, Bataille, Blanchot, Artaud, não passam
pela academia francesa com aceitação. Eles tratam de assuntos que a
intelectualidade filosófica francesa na época considerava banais, pequenos,
não seriam assuntos interessantes para os filósofos trabalharem. Bataille, por
exemplo, trabalha com o erotismo, um dos pensamentos-chave desse autor.
Artaud é poesia, poema, literatura. Blanchot é literatura. E é um tipo de lite­
ratura que faz mexer com as vísceras das pessoas. Não são temas clássicos,
afinal de contas, são temas mundanos e isso não passa muito bem pelos
“intestinos” da intelectualidade francesa. Da mesma forma, no equivalente à
pintura, um Goya, um Van Gogh (também louco) ou mesmo Nietzsche (tam­
bém considerado louco).

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a niosotia de Nietzsche é uma filosofia, como ele mesmo diz, para “mar­
telar” . A fala, a literatura, o poema em Artaud são desrazoados; a pintura em
Van Gogh, a pintura em Goya trazem muito desses elementos mundanos,
—-5 onde a loucura é uma temática No pensamento francês da época eram
temáticas menores. São essas temáticas menores que Foucault vai em bus­
ca, vai trabalhar no sentido de montar as 1.000 páginas da tese de dou­
toramento dele com H istória da Loucura.
N a Suécia o inverno é terrível e as noites são extremamente longas.
Aprende-se essa coisa horrível que é escrever seis, sete horas seguidas para
a noite passar. E é nesse espaço de escrever, de ficar noites e noites em
bibliotecas que se desenvolve a pesquisa de Foucault. Havia uma biblioteca
- Rediviva - de que Foucault gostava muito, em função da herança de uma
senhora ilustre que havia deixado arquivos fantásticos sobre declarações de
loucos em processos psiquiátricos, verdadeiros arquivos sobre pessoas que
foram internadas em diversas épocas. Foucault fica fascinado por isso. En­
contra ali o material documental que precisa para estudar aqueles temas
considerados menores e que para ele são fundamentais, mas que não o são
para a maioria dos estudiosos, inclusive para aqueles de psicologia e de
psiquiatria.
O que são esses achados diferenciados que Foucault basicamente en­
contra para construir História da Loucura? Ele percebe que em um deter­
minado tempo, e esse tempo poderiamos situar antes do século 17 ou até
início do século 17, o louco está misturado com o povo, ele convive com os
supostamente não-loucos. O louco não está enclausurado, não está confina-
v do. Com ele convivem os mendigos, os mágicos, os libertinos, como convi-
vem outros sacanas em geral ou outros debüóides. Isso significa que os mar­
ginais, ou esses diferentes, convivem livremente na sociedade. Inclusive a
relação com o louco é uma relação bem especial. O louco é aquele sujeito
que fala do sonho, que fala de alguma coisa que o não-louco não entende
muito bem, mas se aproxima e quer ouvir. Parece que ele fala de alguma
coisa que não é, mas que pode ser ou poderia ter sido. Ele fala de algu­
ma coisa que não tem sentido, mas poderia ter um sentido. E ele convive.
Mas o século 17, é um século que fica caracterizado pelo confinamento.
O confinamento, para Foucault, significa um acontecimento, uma coisa muito
importante e que não passa só pelo confinamento dos loucos. É o
confinamento dos marginais, dos mendigos, dos indivíduos diferenciados de
alguma maneira, que são os mágicos, os sádicos, os sadomasoquistas, os
libertinos. Só que essa gente é confinada num espaço em comum. E aí que
Foucault vai demarcar períodos diferentes em ftmção de acontecimentos
que assinalam formas diferentes de saber e poder.

26
Para Foucault, essa ruptura provocada por um evento da cotidianidade,
o confinamento, é um marco de data. A datação para Foucault, o período
histórico, não é assinalado pelos eventos que em geral temos na memória,
dos estudos de história que fizemos nas escolas por onde fomos construindo
nossa formação acadêmica, e que marcam o advento e final de períodos
históricos: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Contemporânea
Ele se refere a essas expressões comuns aos historiadores em geral, mas os
elementos que para ele são significativos são aqueles que representam ruptu­
ras fundamentais, rupturas na forma de conhecer as coisas ou na forma das
relações de poder. Um acontecimento muito especial, foi o confinamento. O
grande confinamento acontece no século 17, mas não fica por aí, porque
depois do século 17 o louco, o sujeito despossuído da razão, ele é como que
extraído daqueles outros, dos mendigos, dos pobres, dos libertinos. Ele pas­
sa a ser confinado não mais no hospital geral, ele passa a ser asilado.
Criam-se os asilos, outra ruptura importante, outro acontecimento im­
portante. O asilo que abriga o louco não é para pobre, nem para mendigo,
não é para sádico, nem para o mágico; é para esse tipo específico de diferen­
te. Esse confinamento gera saberes. Saberes que são extraídos do louco e
que passam a fazer parte de um corpo de conhecimento, que é a psicologia,
e de um corpo de especialidade, que é a especialidade psiquiatra. E aí, diante
desses elementos, é que vai acontecer uma outra ruptura radical: o indivíduo
deixa de ser asilado, louco, despossuído de razão e passa a ser doente men­
tal. Aí aparece a figura do psiquiatra, para cuidar dele, e também a clínica. E
nesse momento passa a funcionar outro tipo de instituição que não é mais o
asilo, é a clínica psiquiátrica. É o lugar da reeducação do antes louco, que
agora é doente mental.
Então, essa seqüência de descontinuidades num domínio de objeto
constitui um dos elementos fundamentais do pensamento de Foucault, que
vai acompanhando-o em todas as outras pesquisas e as outras formas de
construir uma verdade nova, inédita, sobre o domínio do objeto pesquisado.
Vai acontecendo um processo de confinamento de determinados ele­
mentos para se extrair deles um certo saber e se produzir uma especialidade
científica eum domínio de conhecimento chamado disciplina. Isso é funda­
mental no pensamento de Foucault: surpreender o aparecimento de discipli­
nas e poder descrever sua gênese. Ele depois vai utilizar isso para outros
estudos de outros domínios. E um dos instrumentais metodológicos que a
gente poderia chamar de saber no mundo moderno ocidental. Por isso
Foucault observa que existe uma diferença muito grande sobre o saber disci­
plinar inventado no mundo moderno, que coincide com o saber da ciência e
que também coincide com o saber das disciplinas científicas e a totalidade

27
dos saberes perceptíveis sobre qualquer objeto de estudo. Ou seja, saber é
uma coisa muito maior do que ciência, do que conhecimento, do que uma
disciplina científica. Ele está dizendo que o conhecimento sobre o loucanão
começa e termina na psiquiatria, porque a existência do louco é anterior à
psiquiatria. Por sinal, a psiquiatria só existe porque houve o louco confinado
e tãínbemhouve possibilidade de extrair dele um saber arbitrado como legí­
timo no mundo moderno. Constroem-se nessa situação discursos, de tal
forma que eles sejam legitimados e constituam políticas de verdades que
aparecem como verdades absolutas. A partir daí, não é mais um louco que
informa sem querer seu saber sobre ser louco, mas é o psiquiatra que diz
sobre o doente mental e encaminha a sua reeducação.
O que acontece faz com que Foucault analise a disciplina científica como
um encarceramento do saber. As fronteiras espaciais e temporais do saber
sobre um objeto de conhecimento são imensamente maiores, anteriores e
posteriores, aquém e além de tudo quanto é dado na disciplina científica.
Elas são enunciados de verdade que adquirem grande staíus, ou seja, o
síatus da cientificidade, que é o saber por excelência do século 19. E o
conhecimento passa a ser ditado pela disciplina é pelos seus especialistas,
que vão falar sobre a psiquiatria, e os psiquiatras, que também vão deter a
palavra e a verdade sobre o psiquiatrizado. Essas passagens, essas rupturas
são marcos fundamentais no pensamento de Foucault e ele vai investigar em
alguns outros objetos. Se nós quisermos, também podemos utilizar esses
elementos metodológicos para pensar os objetos que pesquisarmos, para
pensar a educação, por exemplo. Vocês vão se surpreender como a educa­
ção vai dar voltas bem diferentes daquelas que nós estamos acostumados a
ouvir falar, a repetir etc. Essa é a “ferramenta” que Foucault vai agregar com
o estudo da H istória da Loucura, em que se vale dos documentos para
surpreender acontecimentos, continuidades e descontinuidades.
A Suécia, para Foucault, trouxe essa grande vantagem. Fora disso, nes­
se país ele deixa de ser aquela pessoa briguenta e passa a ser bem mais
cordial. Na Maison de France ele consegue não dar aquelas aulas que ele,
como auxiliar, era obrigado a ministrar, sobre determinados temas determi­
nados por outros e não sobre aqueles que desejaria, isto é, sobre suas pes­
quisas. Agora ele está em um centro cultural onde pode dar aula sobre lite­
ratura, pintura, línguas. Foucault pode reunir na Maison de France - e ele
tem financiamento para isso, porque o reconhecem como grande erudito -
grupos de pessoas com quem pode discutir, sem restrições disciplinares.
R aquel: Ele deixa de ser o professor que dá a matéria, para explicar e
discutir as pesquisas que ele faz. Então é uma diferença que a gente vê, por

28
exemplo, daquilo que se faz aqui na própria Universidade, de se preparar
aula para dar uma disciplina e se isolar quando você está fazendo uma pes­
quisa de dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, onde você não
tem onde falar da tua pesquisa. Há uma diferença entre essas duas coisas:
uma em que o conteúdo já vem pronto, da outra em que você fala daquilo
que faz, da sua prática, do cotidiano, da realidade da pesquisa.

O ly: E isso alegra imensamente Foucault. Inclusive ele resolve que só


lecionaria onde pudesse fazer isso, ou seja, não ficar preso ao conteúdo
arbitrário das disciplinas orientado por critérios de cientificidade, e, sim, pas­
sar a explorar os saberes para além das chamadas disciplinas científicas.
Na Suécia, Foucault não consegue um doutor para assinar a sua tese de
1.000 páginas. Trata-se de uma verdadeira revolução metodológica no jeito
de encarar os objetos de conhecimento, e Foucault não encontra um doutor
que a reconheça, para que ele possa defendê-la. Então muda-se para a Polônia,
mas fica um bom tempo na França antes, e passa a procurar quem podería
assinar sua tese. Ele encontra Jean Hyppolite, aquele mesmo que o aprovara
no agrégaíion. Além de defender a tese, ainda há uma outra exigência na
França: é preciso publicá-la antes de defender. Então, além de encontrar um
orientador, ele ainda tem que encontrar um editor que se comprometa a efe­
tivamente editar a tese, para que, com a tese publicada, se forme a banca e
ele possa defendê-la publicamente. Nessa época, Jean Hyppolite está muito
atarefado, espanta-se com a densidade do trabalho da tese, mas diz a Foucault
que analisaria a tese pequena, aquela sobre a antropologia de Kant, e pedirá
para um outro colega seu, Georges Canghillem, que trabalha a questão do
normal e do patológico, que analise a tese grande. Na perspectiva de Jean
Hyppolite, Canghillem, que era epistemólogo, podería não concordar intei­
ramente com Foucault, mas seria capaz de compreender os seus avanços
metodológicos e certamente assinaria a tese.
Foucault conhece Georges Canguilhem, que lê o trabalho e fica fascina­
do, afirmando que seria uma honra para ele assinar a tese, elogiando-a por
seu ineditismo, e ele próprio busca uma editora. A Plom aceita editá-la, pela
interferência de Philippe Ariès.
Nessa época, Georges Canguilhem tinha substituído Bachelard no Collège
de France, onde lecionar é considerado prêmio de reconhecimento para os
intelectuais mais destacados. Lecionar ali implica comentar com os estudan­
tes o andamento da pesquisa do professor, e era desta maneira que Foucault
desejava lecionar. Mas o Collège de France está muito longe para ele naque­
le momento, e Foucault sabe perfeitamente disso. Nós estamos nesta época
em 1961, e ele vai prestar exame para essa instituição 10 anos depois, so-

29
mente em 1971. Até lá ele tem um caminho, depois de H istória da Loucu­
ra, que passa por Nascim ento da Clínica e As Palavras e as Coisas. Ao
longo da pesquisa sobre o nascimento da clínica, ele vai desenvolvendo ou­
tros instrumentais metodológicos.
O primeiro instrumento fora a arqueologia, que é um instrumental geral.
E o estudo das épistémès, que para Foucault trata das condições de possi­
bilidade internas dos saberes, ou seja, como os saberes aparecem e se trans­
formam. Exemplifiquei com a história de como o saber sobre o louco apare­
ce, como ele se transforma, como ele se modifica, como alguns saberes
aparecem enquanto outros desaparecem; como alguns saberes são tom a­
dos enunciados importantes, significativos, enquanto outros não têm estatuto
de verdade, mas não deixam de ser saberes.
A arqueologia vai sendo explorada em H istória da Loucura, dizendo
não à forma disciplinar de se tratar o saber. O que é a forma disciplinar de
tratar o saber? E, por exemplo, estudar a história da loucura como se ela se
esgotasse com a história da psiquiatria, ou a história da educação como
se apenas a história da pedagogia desse conta de esclarecer todo o saber
sobre educação. E contra essa limitação disciplinar do saber que Foucault
se opõe. Ele descobre nos achados dele que estudar a loucura não é estudar
a psiquiatria somente. E muito mais que isso e muito antes disso. Entãçué
preciso estudar os saberes e não apenas a disciplina psiquiátrica. As discipli­
nas sâo uma construção de verdade que arrumaram um estatuto de
legitimação de verdade no âmbito dos saberes modernos.
Continuando, por que Foucault diz sim ao conceito de saber? Como se
utiliza esta ferramenta para o domínio do objeto da loucura? É estudar a
história da loucura como as condições de possibilidade dos enunciados so­
bre ela e de suas modificações, ou seja, como o louco se transforma em
doente mental, como se exige a invenção de um espaço de confinamento
específico (do hospital geral até a clínica psiquiátrica), como a psiquiatria é
inventada. Portanto, o conceito de saber não se limita às fronteiras espaciais
—jy e temporais da psiquiatria. Então, quem quiser estudar, pesquisar com esse
olhar, não pode se limitar à disciplina específica correspondente ao seu
objeto de investigação.
Como trabalhar com essa “ferramenta” na educação? Não conside­
rando o saber sobre ela de forma contínua e linear. O que é tratar o saber
de forma linear, contínua? No exemplo da loucura, seria estudar a anti-
psiquiatria como continuidade ou desdobramento da história da psiquia­
tria. Para Foucault não existe essa continuidade de conceitos porque al­
cança o estatuto de verdade legítima posteriormente; depende dos pode­
res e interesses que o legitimam, e não da coerência interna de seus con­
ceitos.

30
Foucault diz não aos novos paradigmas de tratar o saber. Ele diz não à
continuidade, mas também diz não a certas formas de descontinuidade, que
seriam os “novos paradigmas”. A ruptura de que Foucault fala não é na or­
dem dos conceitos, na ordem dos discursos. A ruptura é na ordem do acon­
tecimento. Foucault entende a descontinuidade, a ruptura como aconteci­
mentos, e não como mudanças de discurso, mudanças de conceituação, no­
vos paradigmas. O que realmente muda na sua concepção são as regrasjlo
jogo que legitimam saberes e relativizam outros. O que Foucault chama de
regime de verdade são as regras da construção dc-yerdade. A mudança
paradigmática refere-se apenas à mudança conceituai, não à regra que monitora
a organização dos conceitos. O acontecimento é uma mudança no regime de
verdade, ou seja, na regra de construção do conceito, não se limitando ao
discurso para dar conta da formação histórica de um domínio de objeto.
Foucault pensa que estudar a loucura é também investigar as relações
que se dão nos espaços institucionais. Isso é muito mais do que discurso: são
relações de poder, são relações de saber, são correlações de força, enfim,
de todo tipo, que constituem essas relações e que acontecem nos espaços
institucionais.
E aí há algo muito interessante que Foucault percebe no estudo da histó­
ria da loucura. Ele descobre que os psiquiatras falam certos discursos sobre
o louco que não se realizam na clínica psiquiátrica. Lá acontecem relações de
outra ordem, que não têm nada a ver com o discurso da psiquiatria: são
relações de poder que põem em curso um certo funcionamento da clínica
psiquiátrica como máquina de disciplinamento, ao mesmo tempo em que o
discurso psiquiátrico tratará da reeducação do psiquiatrizado. O mesmo acon­
tece com a educação, se compararmos pedagogia, enquanto discurso, e es­
cola, enquanto máquina. Isso não se trata de teoria versus prática. Mas sim
que, enquanto as palavras do discurso pedagógico pronunciam um dizivel^
que tem a ver com os saberes - ou seja, com o que se escreve, o que se
proclama e o que se legisla sobre Educação - , as máquinas escolares reali­
zam a escolarização, que é o visível que tem a ver com as relações de poder
que se desenvolvem na escola e na sociedade. A pedagogia, assim como a
psiquiatria* funcionam no regime dos enunciados, enquanto que a escola e
a clínica funcionam no regime das forças.
Bem, por aqui ficam as grandes inovações da História da Loucura e de
O Nascim ento da Clínica que nos reorientam a repensar a Educação.
As vezes não sabemos se determinados autores são úteis para referenciar
as nossas pesquisas ou não. Isso é equívoco, porque para qualquer objeto
de pesquisa existem inúmeros olhares e o que vai determinar a nossa escolha
é um olhar de autor que coincida com o nosso olhar. Exemplificando, pode­
mos tratar do tema sexualidade com inúmeros autores. Não se trata de es­
colher Foucault porque ele tenha escrito H istória da Sexualidade, e sim
porque a maneira como ele investiga a sexualidade é diferente de outros
autores, e se essa maneira nos atrair, então optamos por Foucault para estu­
dar esta temática.
A singularidade do olhar de Foucault é que fez a diferença da sua tese de
doutoramento, porque ele não foi o primeiro a estudar a loucura, mas foi o
primeiro a investigá-la arqueologicamente. Assim, isso traz efeitos: a arqueo­
logia desestabiliza as ciências e a suposta superioridade dos especialistas,
incomodando os psiquiatras, os psicólogos, epistemólogos e as especialida­
des acadêmicas e científicas, porque no estudo dos saberes ele traz visibili­
dade para aqueles saberes que foram opacizados pela ciência, e a academia
so considera o científico disciplinar. Enfim, é o mundo acadêmico todo que
está posto em xeque a partir da leitura de H istória da Loucura. Ele traz
documentos, é um “rato de biblioteca” que encontra as provas e mostra que
se pode olhar de uma outra maneira que não reitera a academíã^mas esscf
outro olhar se sustenta, ele é provado documentalmente, mostrando que os
objetos de conhecimento podem ser olhados dialeticamente, fenomeno-
logicamente, humanisticamente, e todos estes métodos ratificarão as ciênci­
as, seus especialistas e a universidade, sua agência formadora. Mas o olhar
foucaultiano desestabiliza tudo que os outros olhares citados ratificam e isto
incomoda muito. Eu acho até que Foucault foi uma pessoa de sorte e tam­
bém era bastante político: sabia lidar com as relações de poder, mesmo não
concordando com muitas coisas e com muita gente. Ele soube caminhar
muito bem nestes espaços, estrategicamente.
Até aí a tese de doutoramento que fez sucesso. Depois de Nascimento
da Clínica, os elementos que ficam mais evidentes tratam dos critérios de
datação de períodos de tempo e suas regras de transformação. E fixar no
nascimento da clínica o momento em que se deixa de pensar na distinção
entre louco e normal, ou seja, se deixa de investigar em termos classificatórios,
através dos princípios de organização das taxionomias, para pensar a loucu­
ra no corpo do louco, isto é, investigar conforme os princípios de organiza-
O Ção funcional. Aqui há uma mudança fundamental: os princípios de organiza­
ção, ou seja, as condições de possibilidade para construir discursos de ver­
dades se alteram enquanto regra. Na medida em que a regra de construção
de verdade muda, há um ruptura na ordem do saber. Quando os psiquiatras
estão preocupados em distinguir o dotado de razão do louco, o princípio de
organização do regime de verdade é classificatório, então, há preocupação
de segregar e confinar, classificando normais e anormais. Quando muda a
épistémè, mudando também a regra de organização do regime de verdade,

32
o interesse no caso do estudo da loucura passa a ser estudá-la no corpo do
louco, que então é considerado doente mental e separado dos outros tipos
de anomalias.
Foucault está alertando para o seguinte: a datação dos períodos históri­
cos ele o faz por acontecimentos que determinam rupturas ou descontinuidades
na ordem do saber ou na ordem do diagrama de poder. Fatos como a inva­
são da Europa por Napoleão Bonaparte, o início da Primeira Guerra Mundi­
al, o processo de colonização, que são marcos significativos de datação para
a história tradicional, para Foucault não tem tanta relevância quanto as con-
tinuidades e descontinuidades promovidas por acontecimentos na ordem dos
saberes e dos diagramas de poder. A épistémè moderna, disciplinar ou cien­
tífica é inaugurada com uma ruptura na ordem do saber, que substitui as
taxionomias como regra. Isso implica invenção de disciplinas como a Biolo­
gia, que vai estudar o funcionamento da vida; a psicologia, que estudará o
funcionamento da mente de normais e anormais; a pedagogia, que estudará o
comportamento das crianças e suas formas de aprender, e outras disciplinas
científicas inventadas como depósitos de saber legítimo para o estudo da
vida e dos indivíduos.
Depois disso Foucault vai fazer um trabalho imenso, extremamente radi­
cal, de grande receptividade no mundo intelectual e que se chama As Pala­
vras e as Coisas. Ali ele vai radicalizar esse projeto arqueológico e dizer
quando se inventou o homem, quando se inventaram as ciências humanas.
Quando eu digo “se inventou o homem”, significa dizer quando o homem
passa a ser objeto de saber, objeto de estudo.
Nei: É para poder entender sobre essa questão de datação de períodos.
Se Foucault não justifica estas mudanças como, por exemplo, na tomada da
Europa por Napoleão, mas por mudanças de regras na construção de ver­
dade, essas mudanças não poderíam ser, por exemplo, resultado ou conse-
qüência dessas revoluções, dessa tomada, digamos?
Oly . Foucault não vê assim, porque o que ele entende como estratégico
para a datação histórica é, por um lado, a produção de verdade e, por outro,
as relações de poder que explicam o porquê dessas construções de verdade.
Então, esses acontecimentos e fatos históricos para ele não têm um significa­
do representativo para responder ao como e ao porquê do que acontece.
Para ele, fundamental é a arqueologia e a genealogia, que respondem ao
como e ao porquê das continuidade e descontinuidades. Então, o que conta­
va para ele? As regras que permitem a construção de verdade, quer dizer, o
que se afirma, o que é possível ser enunciado, o que é possível ser dito, ou
seja, as relações de poder que vão dizer o porquê desse como.

33
R u te: Até porque eles não observam esses fatos com a mesma amostra
que Foucault observou. Eles têm essa noção de continuidade, que uma coisa
leva a outra; isso aconteceu, aquilo vai acontecer depois. Tem causa e tem
efeito. Para Foucault, o que acontece agora pode não ter nada a ver com o
que aconteceu antes e com o que aconteceu depois.
Oly: Isso que a Rute está dizendo é bem a idéia de acontecimento. Acon­
tecimento: que é inédito, inusitado, não tem nada a ver com causa e conse-
qüência. Tem a ver com o acaso e a necessidade movida pelas relações de
poder, que ainda não era o interesse metodológico de Foucault, mas que
mais tarde viria a ser em Vigiar e Punir.
R aquel. O que acontece com essa noção de acontecimento aqui na
Universidade? Por que algumas coisas vão para frente, recuam e depois
parece que a coisa retoma? São as relações de força que se estabelecem
dentro da própria instituição que fazem com que sejam privilegiados alguns
discursos de verdade e outros não. É o que diz Foucault: alguns são susten­
tados e outros são menosprezados nestas relações que se estabelecem. A
gente está muito acostumado a esses acontecimentos.
Oly : E aí a gente fica sem saber como algumas coisas inesperadas aconte­
cem ou como alguns saberes são tidos como marcos significativos e outros não.
F ernando: Na biologia isto ganha visibilidade para mim agora. A gente
começa a estudá-la a partir do nascimento da ciência moderna, com a revo­
lução científica. Então é uma datação que vale da revolução científica em
diante...
O ly: E! N a modernidade, o que fica válido em termos de saber se res­
tringe aos limites das disciplinas científicas. Nas relações de poder, o que vai
datar, separar grandes etapas vai ser um diagrama de poder, vamos dizer,
uma organização das malhas de poder de ordem da soberania, de ordem
disciplinar e de ordem de controle, que são diagramas de poder diferencia­
dos que vão caracterizar o tipo de sociedade organizada a partir de rupturas
mais ou menos coincidentes com as épocas Clássica, Moderna e Contem­
porânea. Foucault se refere constantemente a termos como a época clássi­
ca, época moderna, acontecimentos que se deram na época clássica, por
exemplo. E essas rupturas vão se refletir na forma de produção de diversos
saberes, nos regimes de verdade, e até mesmo isso vai ser explicado por
relações de poder. Mas nessa época a questão de poder ainda não estava
interessando tanto a Foucault, ele analisava os acontecimentos que surpre­
endiam suas investigações através das continuidades e descontinuidades nas
relações de saber.

34
i\u ie. m e porque eles não observam esses fatos com a mesma amostra
que Foucault observou. Eles têm essa noção de continuidade, que uma coisa
leva a outra; isso aconteceu, aquilo vai acontecer depois. Tem causa e tem
efeito. Para Foucault, o que acontece agora pode não ter nada a ver com o
que aconteceu antes e com o que aconteceu depois.
Oly: Isso que a Rute está dizendo é bem a idéia de acontecimento. Acon­
tecimento: que é inédito, inusitado, não tem nada a ver com causa e conse­
quência. Tem a ver com o acaso e a necessidade movida pelas relações de
poder, que ainda não era o interesse metodológico de Foucault, mas que
mais tarde viría a ser em Vigiar e Punir.
R aquel. O que acontece com essa noção de acontecimento aqui na
Universidade? Por que algumas coisas vão para frente, recuam e depois
parece que a coisa retoma? São as relações de força que se estabelecem
dentro da própria instituição que fazem com que sejam privilegiados alguns
discursos de verdade e outros não. E o que diz Foucault: alguns são susten­
tados e outros são menosprezados nestas relações que se estabelecem. A
gente está muito acostumado a esses acontecimentos.
Oly : E aí a gente fica sem saber como algumas coisas inesperadas aconte­
cem ou como alguns saberes são tidos como marcos significativos e outros não.
Fernando: Na biologia isto ganha visibilidade para mim agora. A gente
começa a estudá-la a partir do nascimento da ciência moderna, com a revo­
lução científica. Então é uma datação que vale da revolução científica em
diante...
Oly : É! Na modernidade, o que fica válido em termos de saber se res­
tringe aos limites das disciplinas científicas. Nas relações de poder, o que vai
datar, separar grandes etapas vai ser um diagrama de poder, vamos dizer,
uma organização das malhas de poder de ordem da soberania, de ordem
disciplinar e de ordem de controle, que são diagramas de poder diferencia­
dos que vão caracterizar o tipo de sociedade organizada a partir de rupturas
mais ou menos coincidentes com as épocas Clássica, Moderna e Contem­
porânea. Foucault se refere constantemente a termos como a época clássi­
ca, época moderna, acontecimentos que se deram na época clássica, por
exemplo. E essas rupturas vão se refletir na forma de produção de diversos
saberes, nos regimes de verdade, e até mesmo isso vai ser explicado por
relações de poder. Mas nessa época a questão de poder ainda não estava
interessando tanto a Foucault, ele analisava os acontecimentos que surpre­
endiam suas investigações através das continuidades e descontinuidades nas
relações de saber.

34
A terceira pesquisa fundamental de Foucault foi A s Palavras e as Coi­
sas. Aqui Foucault radicaliza seu projeto metodológico da arqueologia. O
objetivo, em As Palavras e as Coisas é aprofundar e generalizar inter-rela-
ções conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências hu­
manas. Qual é a tese central, ou seja, o que ele defende? Só pode haver
ciências humanas (psicologia, antropologia, pedagogia, sociologia) a partir
do momento em que aparecem, no século 19, as ciências empíricas (biolo­
gia, economia etc.) e as filosofias modernas (como a do pensamento de Kant).
Essas regras, que vão dando origem à produção de novos saberes, inclusive
os saberes disciplinares sobre o homem, é o que nós vamos ver no próximo
encontro.
A conclusão é que se inventou a rede conceituai que criou espaço de
existência para o Homem, enquanto sujeito e objeto de saber. Claro que
esses são flashes para As Palavras e as Coisas serem minimamente enten­
didas por nós. Do livro As Palavras e as Coisas são editados 100.000
exemplares, a Europa toda lê, o próprio Foucault começa a se tornar extre­
mamente famoso. O livro é editado em 1966, quando Foucault estoura no
mundo editorial e intelectual, e as grande editoras passam a procurá-lo. A
Gallimard passa a procurar Foucault e nunca mais o abandona. Foucault
passa a dar entrevistas seguidamente e se relaciona com grandes amigos e
grande inimigos.
Arqüêotogiãdo Saber é um livro para responder àquilo que os antago­
nistas de seu pensamento achavam que era lacuna em As Palavras e as
Coisas. Então ele escreve Arqueologia do Saber para explicar aquilo que,
para alguns, ele não explicara suficientemente.
E agora vamos deixar o estudo de As Palavras e as Coisas para o
próximo encontro, porque eu acho essa história muito importante para en­
tender o olhar de Foucault, e deixar para o seguinte a genealogia, e aí as
relações de poder, o instrumental metodológico ligado à genealogia, que vai
aparecer em Vigiar e Punir na H istória da Sexualidade.
Agora eu vou pedir a vocês que pensem um pouco nas perguntas que é
possível fazer, utilizando o referencial metodológico de Foucault que nos re­
ferimos até aqui.

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