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AULA 3 -1 7 /0 8 /9 5

O GENEALOGISTA
MICHEL FOUCAULT EM AÇÃO

Nesse primeiro momento desse nosso encontro, eu pretendo falar de


mais 10 anos e pouco da vida e da obra de Foucault, e no outro momento
propor que se leia e discuta o texto “Verdade e Poder”, do livro M icrofisica
do Poder.
Então seguiremos nas pegadas de Foucault no mínimo até 1975, para
encontrar-nos com a história desse texto. “Verdade e Poder” nasce de um
encontro quando Foucault esteve no Brasil e de um diálogo entre ele e Fontana
(professor universitário e aluno do Foucault na época).
Foucault veio ao Brasil pela primeira vez em 1975, mas foi um pouco
rápido, antes da publicação d e /L Palavras e as Coisas. Ele veio mais para
discutir o texto do livro com Gérard Lebrun, um filósofo, francês de nasci­
mento, quejá morava no Brasil há muitos anos.
Gerárd Lebrun propõe uma série de coisas, e no final Foucault acres­
centa aquilo que não havia colocado ainda no livro, que é a análise do qua­
dro, “As Meninas”, de Velásquez. Para quem abrir As Palavras e as Coi­
sas, o primeiro capítulo é uma análise deste quadro. A razão pela qual ele
coloca este primeiro capítulo aparentemente não teria a ver com o esquema
de A s Palavras e as Coisas - aquele que expus para vocês no encontro
passado. Tive a oportunidade de ver esse quadro no Museu do Prado, em
Madri, e é realmente impressionante. A grande diferença de “As Meninas”,
comparado às outras obras de Velásquez, é a luminosidade intensa. E tão
forte a impressão que causa, que quando você está de frente para o original,
que é imenso e ocuparia, digamos, metade de uma parede inteira como a
desta sala, você se volta na certeza de que há alguma luz muito forte ilumi­
nando-o. Surpreendentemente o jogo de luz e sombra vem do quadro e
integra as regiões de luz com os efeitos de poder produzidos pelas pessoas
ali retratadas.
Depois disso, Foucault demorou a voltar ao Brasil, mas esteve mais três
vezes aqui. Nessas ocasiões ele deu cursos, mas no último ele se negou a
proferir as aulas como reação à morte de Wladimir Herzog. Dos cursos

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participaram professores e demais interessados. Várias pessoas que manti­
veram diálogo com ele gravaram entrevistas e acabaram por ser responsá­
veis pela divulgação do seu pensamento no Brasil.
Vocês devem lembrar que na última vez, quando fazíamos a trajetória da
vida de Foucault, estávamos em Clermont-Ferrant, uma universidade meio
distante, para onde ele tinha que viajar de trem, ir e voltar; aquela coisa que
qualquer professor universitário também enfrenta. Então aparece uma vaga
em um país onde ele tinha uma certa curiosidade em viver, a Tunísia, país do
Terceiro Mundo, aonde se chega atravessando o Mediterrâneo.
E também o primeiro momento na vida de Foucault em que pode viver
mais tranqüilamente com Daniel Defert, que o acompanha, compartilhando
uma casa durante dois anos e pouco com certa privacidade.
Foucault, nesse período, é imensamente feliz. Faz um contrato com a
Universidade de Túnis por três anos, mas antes disso se vê obrigado a voltar.
Neste período ele está preocupado em responder às críticas que haviam sido
feitas ao seu livro As Palavras e as Coisas. Essa resposta às críticas ele
escreve num outro livro posterior chamado Arqueologiado Saber.
Então, nesse tempo todo que passa na Tunísia, as pessoas que conheci­
am Foucault naquele período lembram que ele amanhecia escrevendo perto
da janela da vila em que morava. O mar, visto de Túnis, é muito bonito, com
muita luz, muita claridade, o que diferencia um pouco da França e muito mais
ainda da Suécia, Alemanha e outros lugares onde ele tinha vivido.
As pessoas lembram dele sentado na escrivaninha, de frente para esta
janela onde se vê o mar, escrevendo. Na verdade, ele está preocupadíssimo
em tom ar absolutamente claras certas idéias que a crítica - embora tenha
sido maciçamente a favor dele, porque vendeu mais de 100.000 exemplares
de A s Palavras e as Coisas - aponta como partes ainda não muito claras.
Ele fala sobre “enunciados”, “dispositivos” e uma série de categorias, de
palavras às vezes inventadas por ele, às vezes trazidas de outros lugares do
saber, ou até usadas por outras pessoas, mas que, no seu trabalho, têm um
sentido próprio. E a crítica cobra muito a especificidade desse sentido. E o
que ele tenta responder com Arqueologia do Saber.
Até tem uma parte aqui que eu gostaria de ler para vocês, porque parece
que esclarece bastante. Ele diz o seguinte:

“Explicar o que eu quis fazer nos livros onde tantas coisas ainda ficaram
obscuras? Não só, não exatamente, mas, indo um pouco além, retomar, como
em outra volta da espiral, aquém do que empreendí; mostrar de onde eu falava;
delimitar o espaço que possibilita essas pesquisas e outras, talvez, que nunca
realizarei; em suma, dar significado a essa palavra ‘arqueologia’ que eu tinha
deixado vazia... E onde a história das idéias, decifrando os textos, procura re-

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velar os movimentos secretos do pensamento (sua lenta progressão, suas lutas
e recaídas, os obstáculos contornados), eu queria evidenciar em sua es­
pecificidade o nível das ‘coisas ditas’: as condições de seu surgimento, as
formas de sua cumulação e de seu encadeamento, as regras de suas transfor-
'~ t> mações, as descontinuidades que as escondem. O terreno das coisas ditas é o
que se chama àrquivo; q arqueologia destina-se a analisá-lo”1.

Não sei se vocês estão lembrados que no encontro passado eu estava


insistindo com a história da regra na formação do enunciado. É a mudança
de regra que determina a mudança de épistémè. É com essas palavras que
Foucault inicia a apresentação de A Arqueologia do Saber, que vai ficar
pronta justamente quando ele está saindo da Tunísia. Na verdade ele não
está saindo da Tunísia porque quer. O que acontece é que o Maio de 68 da
França começa mais cedo na Tunisia, em 1966,1967. Os estudantes tunisianos
são bastante diferentes dos estudantes de Clermont-Ferrant e de outros lu­
gares onde Foucault havia trabalhado. Ele encontra estudantes um pouco
indecisos e não entendendo muito bem de que lugar Foucault fala, porque
como na maioria dos países do Terceiro Mundo - e para nós isso aí é muito
claro, porque nós também vivemos essa coisa -, ou a pessoa é de direita ou
é de esquerda. Se o intelectual é de esquerda, geralmente ele se diz marxista;
em todo caso, faz um discurso marxista. Existe, portanto, no pensamento
desses estudantes uma associação entre um discurso de esquerda e um dis­
curso marxista. Parecería que, conseqüentemente, se o sujeito não fizesse
um discurso marxista, então ele é de direita. Assim é que funciona a lógica
do pensamento do professorado e do estudantado no Terceiro Mundo, tan­
to na Tunísia como aqui no Brasil também. Não existe essa possibilidade de
haver “outros olhares”, de se olhar as coisas de outros lugares que não se­
jam os opostos. Isso é uma coisa muito forte, que nos incomoda, mas que
existe e a gente também sente os efeitos.
Foucault percebe essa situação com relação aos alunos. Ela só vai dimi­
nuir, quando ele, e muito pela iniciativa do Defert, começa a se envolver de
uma maneira muito presente nas coisas que acontecem na Tunísia em relação
aos estudantes. Eu dizia que o Maio de 1968 começava ali mais cedo do
que na França, porque existiam algumas coisas que serviríam de estopim.
O fato dos estudantes não poderem pagar a passagem de ônibus, e por
isso serem espancados pela policia, detona um movimento muito grande na1

1. Nessa aula utilizo, basicamente, a biografia de Didier Eribon sobre Foucault, bem
como dois números do jornal Le Nouvel Observateur, de 1975, onde Foucault é entre­
vistado. Tais entrevistas, se encontram em Dits et Écrits, sendo que uma delas, com o
título “Quebrar as barras do silêncio”, sobre as prisões, traduzi e foi publicada na
revista libertária brasileira Letralivre, da Editora Achiamé.

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Universidade, uma reaçao muito rone. / \ s guenos, as uaiomos ta m p o u m u t
polícia e estudantes, polícia e professores, começam a acontecer na Tunísia
bem antes de acontecerem na França e em outros lugares. E isso envolve de
uma maneira decisiva Foucault, porque ele reconhece naquele estudantado,
esquerdista na sua maioria, uma força de vontade muito grande de mudar as
coisas, de transformar a sociedade, e também reconhece que esse espírito
político “revolucionário” faz algumas coisas funcionarem, faz as pessoas rea­
girem contra determinadas dominações. No entanto, ele percebe que esse
mesmo espírito faz desenvolver nos estudantes, como conseqüência da Guerra
dos Seis Dias, uma vinculação com palestinos do tipo “eles são nossos ir­
mãos”, e por outro lado uma guerra absurda, um ódio, em relação aos israe­
lenses. Essa,
presente nos estudantes, tem a mesma raiz de pensamentã Esses estudantes
estão sendo presos porque querem se associar e reconhecer como irmãos os
palestinos, e como inimigos os israelenses. Foucault comenta que não conse­
gue entender por qual estranha astúcia ou estupidez da história o marxismo
acabou dando oportunidade para isso: a associação entre racismo e nacio­
nalismo.
Então essas coisas incomodam Foucault, mas ao mesmo tempo ele toma
partido dos estudantes porque sabe o que os anima: a vontade de lutar con­
tra as injustiças, de mudar o mundo, de modificar as coisas, de construir
outro tipo de sociedade. E ele percebe que o que está acontecendo na uni­
versidade é desastroso: invasão, violência contra estudantes e professores.
Na mesma ocasião, Jean Gattegno, Georges Lapassade, franceses que
também lecionam na Universidade de Túnis, são solidários com os estudan­
tes. Georges Lapassade é expulso da universidade, Jean Gattegno é preso e
condenado a cinco anos de prisão. Foucault, por ser mais famoso, oficial­
mente não é perseguido pela polícia. Sendo francês e estrangeiro, facilita por
um lado, porque permite que ele traga para casa estudantes que tinham sido
presos e que ele ajudou a fugir. Então ele dá abrigo a esses estudantes, mar­
xistas, maoístas, trotskistas, e co-auxilia na reprodução dos panfletos de rua.
Embora seja conhecido como intelectual de renome, a polícia, é claro,
não vai tolerar isso indefinidamente. Há um momento em que, fazendo uma
das viagens entre a universidade e a casa dele, parapoliciais param o carro,
retiram-no para fora e dão-lhe uma surra. Foucault compreende então que a
situação está ficando difícil mesmo para ele, com todo o seu prestígio. (
Alguns alunos dele são presos e ele não consegue que fujam da prisão.
Ele tenta elaborar a defesa, especialmente de um desses alunos, Ahmed Ben
Othman, que não tem nem condições de pagar um advogado. Ele tenta lê-la
publicamente, chega até mesmo a tentar uma saída via diplomacia francesa,

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mas não consegue. Foucault promete que vai ficar longe até o momento em
que seja relaxada a prisão dos estudantes. Por isso, sai da Tunísia antes dos
três anos de contrato acabarem.
Oferecem uma vaga a ele em Nanterre, perto de Paris, mas fica em
dúvida em assumir essa posição porque não queria disputá-la comum psi­
canalista amigo seu, PierreKaufman.
Nessa mesma ocasião, os acontecimentos de Maio de 1968 na França
ainda estavam repercutindo. A invasão das universidades e outros fatos já
haviam forçado o governo francês a tomar algumas atitudes reformistas, e
entre elas está a criação de uma universidade nova, que é a de Vincennes.
Ela vai ser feita em um espaço muito grande, nas proximidades de Paris, em
um terreno cedido em parte pela OTAN e em parte de terras do exército. O
governo francês havia negociado essas terras e estava construindo vários
edifícios para abrigar essa universidade que, por ser nova, iria ter um caráter
experimental.
Foucault achou uma boa idéia. Nessa universidade experimental talvez
ele pudesse viver coisas que ele não tinha tido oportunidade de experimen­
tar assim tão facilmente nas universidades tradicionais. O governo acaba
indicando uma comissão de 20 pessoas, da qual faz parte Georges Cangui-
lhem, velho amigo dele, para chamar professores para os departamentos de
Filosofia, Psicologia, Psicanálise, enfim, para os diferentes departamentos.
A primeira coisa que Canguilhem faz é indicar Foucault para o Departamen­
to de Filosofia, que está sendo criado. Isso alegra muito Foucault, porque
ele quer lecionar Filosofia. Por outro lado, o governo francês, embora não
tendo nenhuma relação de amizade com Foucault, vê nele a possibilidade de
desequilíbrio de forças com os marxistas de plantão do Maio de 1968.
O que Foucault tinha visto na Tunísia eram estudantes em ação direta e
professores também. O que Foucault vê, quando chega a Paris, é um monte
de grupinhos, de “grupelhos” que estão se matando uns aos outros em ter­
mos intelectuais, e a partir de discussões estéreis. O que tinha acontecido em
Maio de 1968 tinha acontecido. A partir daí, a guerra se faz nos grupinhos
de tendências diferentes dentro do esquerdismo.
O governo francês, mesmo não simpatizando muito com Foucault, via
nele uma pessoa que no mínimo não era marxista. Então aprova a sua entra­
da como diretor da Faculdade de Filosofia, uma faculdade recém-criada e
que possibilita a Foucault chamar para lecionar neste departamento as pes­
soas que ele gostaria. Foucault se predispõe a chamar o que há de melhor na
França, que para ele é Deleuze, há muito seu conhecido. Mas Deleuze está
muito doente e não consegue aceitar o convite. Quem aceita é Michel Ser-
res, que inclusive tem obras editadas no Brasil, entre elas Filosofia Mestiça.
Convida também alunos de A lthusser- embora não concorde com ele, re­
conhece a sua capacidade pedagógica e competência. Convida inclusive a
filha de Lacan para lecionar no departamento. Enfim, reúne algumas pessoas
que são muito significativas no mundo da produção de idéias na França,
naquele momento. Ele desejava que Vincennes se tomasse o lugar de elite da
filosofia francesa. Isso vai acabar acontecendo muitos anos depois, quando
ele já havia saído de lá - bem mais tarde, quem vai cuidar do lado administra­
tivo é Châtelet, enquanto do lado filosófico é mesmo Giles Deleuze. Vincennes
vai conhecer um brilho filosofal muito grande em função de pessoas que
Foucault reuniu e outras que acabam indo para lá.
É dezembro de 1968, quando Vincennes abre suas portas administrati­
vamente. Os cursos só vão começar no outro ano, em 1969. Foucault deci­
de, com o grupo colegiado, que cada um ensinaria o que soubesse ensinar, o
que significa: não mais programas, não mais disciplinas fixas. Os cursos que
acabam acontecendo no Departamento de Filõsófià é n rl 969, 1970 são,
para a mentalidade oficial, os mais desbaratados possíveis. Foucault é um
dos que passa o ano de 69 trabalhando história da sexualidade, e isso, para
a mentalidade tradicional, não é filosofia, não trata de sistemas de pensamen­
to. No ano de 1970 passa a trabalhar sobre Nietzsche e sua produção. Es­
ses cursos sobre Nietzsche reúnem numerosos assistentes. Há situações em
que Foucault tem 600 pessoas assistindo o curso. Os estudantes encontram
em Vincennes uma possibilidade de reinventar a universidade. Inclusive/nés^
sa Universidade não há notas. Todos os professores envolvidos não admitem
esse sistema de notas, de exames. Isso se torna um verdadeiro escândalo.
QuandõVincennis^Bresuas portas em 1969, os cursos estão começan-
do e a polícia está invadindo o campus. Como a universidade era recém-
construída, os alunos resolveram ocupar a reitoria que ainda estava localiza­
da no Collège de France, do outro lado da cidade.
Enquanto 900 estudantes vão à reitoria, os professores, entre assistentes
e pessoal administrativo, que são mais ou menos 220, se defendem em
Vincennes, fazendo barricada com cadeiras e mesas, para conter a invasão
da polícia. Dois mil policiais acabam cercando o pessoal no pátio da univer­
sidade e ali é preso um bom número de pessoas. Foucault é visto, e não só
ele, jogando pedras na polícia. O professorado é preso no campus, e os
alunos são presos do oytro lado, no Quartier Latin.
Foucault é preso, Sartre também. Na mesma ocasião fora visto com
alto-falante na boca, enquanto Foucault distribuía panfletos. No outro dia,
quando todos são liberados, a primeira coisa que Foucault faz é chamar a
imprensa do Le Nouvel Observateur para perguntar coisas como: “Afinal
de contas, por que aquela comunidade universitária era considerada tão pe­

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rigosa? Por que tal enfrentamento? Por que a filosofia de Vincennes seria tão
perigosa? Por que se estimula a criação de uma universidade experimentál e,
quando ela se instala, é reprimida? Em nome do que não se aceita que cada
um lecione o que sabe?”
Então este questionamento todo invade os jornais durante meses. E isso
impede que o pessoal, como aconteceu na Tunísia, fique preso e seja conde­
nado. Vincennes continua existindo, apesar de ser posta em dúvida a sua
continuidade, porque o governo e o Ministério da Educação - na época o
ministro era Edgar Foure - duvidam que naquele caos a universidade conti­
nuasse existindo, principalmente sendo levada à frente pelo Departamento
de Filosofia. Isso significa ser levada à frente por Foucault, porque ele era
oficialmente o coordenador do Departamento de Filosofia.
Nesse mesmo período, a única punição muito séria que acontece é a da
filha de Lacan, que era maoísta e tinha sido convidada por Foucault para
lecionar em Vincennes. A imprensa e outras pessoas discutiam sobre os
.métodos de não-avaliação da universidade, e ela responde afirmando que
em Vincennes se estava interessado nas pessoas, e não na instituição en-
f quanto tal. Com isso ocorre um escândalo que a leva à prisão e o ministro
cancela a possibilidade dela lecionar na universidade, fazendo com que retome
• para o ensino secundário.
Foucault, que retoma toda essa situação através da imprensa, vai se tor­
nando uma figura pública. Se, por um lado, torna-se um sujeito absoluta­
mente visível, pertencente à esfera pública, por outro lado também cria uma
espécie de ajuda muito sui generis para aquilo que ele mais deseja, que é
trabalhar no Collège de France. Ele sabe que existe uma diferença muito
grande entre o Collège de France e Vincennes.
Vincennes é experimental, em termos oficiais é o caos, o que agrada
muito a Foucault. A palavra de Foucault, a partir do Collège de France,
passaria a ter um peso muito maior do que a partir de Vincennes. Essa pre­
ocupação o acompanhava desde 1966. E, na verdade, é desde essa época
que algumas pessoas estavam se articulando para que isso acontecesse,
para que ele conseguisse chegar ao Collège de France como professor. É
uma instituição muito tradicional e a mais famosa da França. E Foucault
é uma pessoa capaz de pensar o que não se pensou e também de fazer
certas coisas que a maiona não faz, principalmente a maioria que pleiteia
lugares privilegiados.
Pessoas como Dumézil e Canguilhem estavam interessadas na vida do
Foucault e nos progressos que ele pudesse ter, e a eles se junta também
Vuillemin, todos trabalhando no sentido de Foucault ser admitido no Collège
de France. Não se cria a vaga para o candidato, cria-se a disciplina que,

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supostamente, o candidato vai lecionar. Então, para se criar a disciplina, os
candidatos interessados mandam o memorial de seu trabalho e um programa
de estudos da disciplina a ser criada.
O que Foucault começa a elaborar para isso é tudo o que ele fez, o que
escreveu e, a partir do que produziu, o que ele se sente capaz de inventar
como disciplina. Essa invenção vai chamar-se de “Sistemas de Pensamento”.
Mas ele vai esclarecer que os sistemas de pensamento que quer trabalhar
não têm nada a ver com a sistematização do pensamento de Platão, Aristóteles,
Santo Agostinho. O que ele entende por sistemas de pensamento é, por
exemplo, demonstrar como os excluídos são excluídos e nunca são conside­
rados sujeitos fundadores. Como determinados pensamentos chegaram a se
constituir, ser pensados, como eles permaneceram na história, sendo privile­
giados com estatuto de sistema filosófico de pensamento. Por que isso acon­
tece? & T'7
Essa maneira de olhar é uma mudança radical no jeito de trabalhar filoso­
fia, quer dizer, não mais através do pensamento/discurso dos filósofos. Para
Foucault, não há um sujeito que funda, que institui, que origina. As subjetivi-
dades são atravessadas pela épisíémè da época e atuam como vetores de
força nos diagramas de poder. Por isso entende oçdiscursosjèomo efeito de
superfície. O que ele está interessado em ver é comcTos sistemas de pensa­
mento chegaram a ser pensados e dizíveis, e por que, com tudo isso aconte­
cendo, outros discursos sumiram e outras práticas nunca viraram práticas
discursivas. E nessa abordagem que a história dos sistemas de pensamento
será trabalhada no Collège de France por Foucault. E uma proposta arqueo­
lógica completamente diferente da forma como se costuma ensinar Filosofia.
E, é claro, sistemas de pensamento vistos por Foucault vão além da filosofia
propriamente dita, pois vai transitar pela arte, pela ciência, pela história, pe­
los saberes eruditos, mas não enquadrados em disciplinas.
Ele está disputando a vaga deixada por Jean Hyppolite com outros: Paul
Ricoeur e Yvon Belaval. São três pessoas com perspectivas diferentes e atu­
antes no Collège de France que vão “brigar” pelas candidaturas concorren­
tes à vaga. No caso de Foucault, quem vai apresentar o relatório é Vuillemin,
defendendo a sua candidatura. Consta da apresentação, além do que Foucault
já produziu, seu método de trabalho, o conteúdo da disciplina que ele pre­
tende criar e também o tipo de trabalho de pesquisa que pretende trabalhar
dali para frente.
Foucault cumpre os requisitos, mas diz que trabalhará um tipo de pesqui­
sa em cima da questão da hereditariedade. Ele não faz isso depois que entra
no Collège de France, e sim trabalhará aspectos que se relacionam com seu
próximo interesse de pesquisa: as prisões.

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VuiUemin apresenta a candidatura de Foucault e isso passa por uma vo­
tação do colegiado do Collège de France. E essa votação é interessante
pois é assim: quantos votos para o primeiro, segundo, terceiro candidatos e
quantos votos em branco ou marcados por uma cruz, que significa que quem
classifica não deseja aquele candidato. A primeira votação favorece Foucault,
mas também marca um número significativo de cruzes, quer dizer, havia mui­
tas pessoas que não queriam nem pensar na idéia de ter Foucault no Collège
de France. Então tem que haver uma segunda votação. Nessa segunda vo­
tação, o VuiUemin consegue vencer e Foucault tem aprovada a sua candida­
tura. Foucault sempre foi muito bom estrategista, ele sabia perseguir seus
interesses e se tornar o menos possível vulnerável. O Collège de France
fazia parte dos seus objetivos.
A primeira coisa que acontece quando alguém é eleito no Collège de
France é a aula inaugural. A primeira aula de Foucault se intitula “A Ordem
do Discurso” . E é uma coisa muito curiosa, no mínimo porque tudo isso
acontece em 1970, próximo a Maio de 1968, e ainda não haviam terminado
as invasões da polícia nas universidades.
No dia em que Foucault vai dar sua aula inaugural no Collège de France,
uma quantidade de pessoas de todo tipo se junta para assistir, não só em
função do espetáculo, mas também está se vivendo o momento das ocupa­
ções das universidades, e Foucault é obrigado a passar pelo meio de toda
essa gente até chegar ao lugar onde vai dar a aula inaugural. E passar, inclu­
sive, pelo próprio policiamento, em prontidão, cercando o Collège de France.
E dezembro de 1971, quando ele vai fazer essa apresentação .P o r um lado,
estão sentadas lá para assisti-lo pessoas extremamente significativas: o
Dumézil, considerado o maior mitólogo de todos os tempos; o velho amigo
Gilles Deleuze e Canguilhem. O outro velho amigo, Jean Hyppolite, já mor­
rera. E é justamente a vaga de Hyppolite no Collège de France que Foucault
vai assumir.
Essa aula inaugural é extremamente significativa para aquele momento,
até porque o que ele vai falar passa pejo discurso que cala. D discurso que
não aparece por causa do medo. O medo que cala o discurso e cala a
enunciação de tudo aquilo que poderia ter aparecido, mas não havia condi­
ções de possibilidade. Na realidade, ele vai falar de dentro do considerado
templo de saber da França, contra toda a miséria que significa a produção
do medo, a produção de outras impossibilidades de dizer. É claro que ele
também vai trazer a impossibilidade de dizer do louco, do doente, do prisio­
neiro. E ele vai analisar, então, essa hipótese que vamos ver daqui a pouco,
da ausência do dizer, daquele que tem sua fala opacizada porque os seus
discursos estão fora da épistémè da época. E aí ele vai citar Bataille, Nietzsche,
Artaud e uma série de eruditos que estão fora, porque não estão dentro do
dizível para a época. Ele cita também a palavra dos homens infames, daqueles
que não têm fama, não têm glória, daqueles que tanto algumas vezes produzem
efeitos de poder e outras vezes têm sua palavra relegada ao silêncio.
Na disciplina Sistemas de Pensamento, ele vai começar discutindo com
os alunos um outro tipo de silenciado, o prisioneiro" Ele já trabalhara sobre r^ r~
os loucos, doentes e outros tipos também silenciados. Então, o primeiro cur­
so dele é sobre a vida de um camponês chamado Pierre Revière - sobre
este assunto Foucault escreveu um livro - , que no século 19 matou a mãe, o
irmão e a irmã e se suicidou enquanto estava preso. E esse caso, o processo
desse jovem, que ele vai vasculhar, para mostrar aos estudantes que uma
coisa é o que a psiquiatria diz, outra são os jogos de verdade entre a justiça
penal e a psiquiatria na situação de acusação e defesa do rapaz, e outra ainda
é o qúeestá no processo, o que está nos documentos, o que é a própria fala
do camponês, muitas das quais não aparecem. Nos documentos oficiais apa­
recem a defesa e a acusação; é o advogado e o promotor que falam, e falam
em nome de! Não é o camponês que fala. /
Então Foucault vai buscar tudo que existe sobre as falas do camponês,
sobre as falas do psiquiatra, enfim, todas as coisas que estão empoeiradas
nos arquivos e documentos e que não é possível de se ficar sabendo a partir
do que oficialmente é relatado. Nisso ele vai passar um ano.
Novamente ele está vivendo com Defert em Paris, e a situação dos prisi­
oneiros é uma coisa complicada nesse momento, porque, além dos presos
comuns, há um número significativo de presos políticos do Maio de 1968.
Foucault começa a pensar, junto com Defert, em obter as informações das
prisões do mesmo jeito ou de forma semelhante como as conseguiu sobre
Pierre Revière. Só que esse era um caso do século 19, e os prisioneiros da
França, na prisão de Toul, Fleury-Mérogis etc. são contemporâneos, estão
vivos. Então eles organizam o Grupo de Informações sobre a Prisão - GIP j-
(Groupe d’Information sur les Prisons).
H á uma infinidade de ocorrências nas prisões e que não vazam para so­
ciedade, que tem o direito de saber. O GIP propõe questionários, e quem é
parente de prisioneiro, quem de alguma forma já foi aprisionado, quem tem
relação com os presos e que queira responder o questionário, deveria entrar
em contanto com o grupo no endereço particular de Foucault em Paris. Em
seguida, alguns intelectuais de vários matizes de pensamento começam a se
juntar a eles: Jean-Claude Passeron, Claude Mauriac, Jacques Rancière,
Donzelot e pessoas ligadas à intelectualidade francesa.
As cartas começam a aparecer e também começam a surgir comitês de
informação em outras cidades, não só em Paris. Como resultado, eles têm,

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em um ano, entre duas a três mil pessoas envolvidas com essa questão, e um
número crescente de respostas e depoimentos sobre condições de saúde,
alimentação, vigilância, comportamentos dos vigias, natureza das relações
entre os prisioneiros e a segurança, razões do aprisionamento, o que signifi­
ca em nossa sociedade um ex-detento, enfim, coisas bem localizadas e es­
pecíficas. Em resposta e em decorrência disso, os próprios detentos em
prisões próximas a Paris,começam a também organizar seus grupos, comi­
tês de prisioneiros políticos para elaborar petições, colher documentos e
trocar informações entre s i . ___ ____.
È ssa ^vari^ d á máquina úístítucionai) ou seja, colocar em julgamento a
institniçãn pngãn an invw Hp Hptpnt0> q fazer a instituição se confessa^dÊ
com isso que Foucault vai se preocupar, é nisso que esse pessoal todó Vai
centrar forças e é a esses elementos que ele promete que, com a abundante
matéria, colocaria tudo na imprensa, para divulgar a toda a sociedade. E
efetivamente isso acontece, desestabilizando a instituição penal. Os serviços
de segurança, juizes, toda a máquina judiciária toma-se transparente à socie­
dade. Afinal, essas coisas nunca tinham sido expostas assim. Essa claridade
toda que é jogada no lado obscuro dos acontecimentos, que Foucault, Defert
e esse grupo conseguem fazer, tem efeitos de saber-poder imediatos. E ele
ainda convoca não só os prisioneiros, mas também os advogados para que
comecem a falar, os psiquiatras, que são contratados para trabalhar com os
prisioneiros, para que comecem a contar sobre o lado obscuro dos aconte­
cimentos nos quais estão envolvidos. Não fazendo a crítica do sistema peni­
tenciário e psiquiátrico por generalidades e se utilizando de discursos reite­
rados, coisas que não levariam a nada, mas começando a falar naquilo que
\y
acontece presentemente e em local próximo. Por exemplo, o que aconteceu
hoje, quando eu, psiquiatra, fui na prisão trabalhar com essa ou aquela pes­
soa? E assim o promotor, o juiz etc.
Então acabam se juntando, nesse Grupo de Informações sobre a Prisão,
magistrados, juizes, promotores, advogados, psiquiatras, médicos, religio­
sos, muita gente deste tipo. Não são só os prisioneiros que começam a falar,
muita gente envolvida o faz. Isso provoca greves de fome dentro e fora das
prisões. Provoca espancamentos nos manifestantes, campanhas como a contra
a “ficha de bons antecedentes” - documento que os prisioneiros não podem
ter e cuja ausência marca definitivamente a vida de uma pessoa que ficou na
cadeia cinco ou seis anos, e que, quando sai, não consegue emprego porque
não tem essa ficha. Então se desenvolve uma campanha para acabar com a
ficha de bons antecedentes, para o ex-detento poder se misturar com os
outros e se tomar mais anônimo no meio deles. No âmbito desse movimen­
to, aparece um livro-depoimento de um prisioneiro, Serge Livrozet, que se

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chama D a Prisão à Revolta, e isso antes não estava acontecendo. Também
aparecem folhetos escritos pelos prisioneiros, e mais quatro folhetos, com o
nome Intolérable (Intolerável), produzidos pelo Grupo de Informações so­
bre a Prisão. Cada folhetcMrata de algum assunto em particular, e o primeiro
é mais geral e nós iremos apresentar mais adiante.
Toda esta situação, o envolvimento de Foucault com a prisão, os prisio-
neirose o Grupo de Informação, torna-se infra-estrutural para ele trabalhar
VigiarePuniP^m} a publicação, em 1975, o tom ou mais conhecido, mais
famoso, e alguns dizem que é o livro mais bonito que ele escreveu.
Alguns prisioneiros colaboram na construção de Vigiar e Punir: o nas­
cim ento das prisões, onde Foucault pesquisa, desde o século 16 até o 20,
as variações desse tipo de confinamento e o surgimento da prisão tal como a
conhecemos hoje. Ele mostra, através de documentos, como, na Idade Clás­
sica, o confinamento nas masmorras existia com outra finalidade. O sujeito
era deixado na masmorra para, no momento adequado, haver um grande
espetáculo de tortura. Então o que elevai perceber é como ogrito do suplí­
cio, que é levado a efeito publicamente no século 17, se transforma no silên­
cio do confinamento nas prisões. Nelas, os acontecimentos e efeitos do po­
der nos detentos e sentenciados passa à penumbra, em espaço fechado.
Ele usa, para mostrar como se dá o espetáculo do exercício do poder nà
sociedade de soberania, um caso, o de Damiens, um jovem que um dia feriu
Luiz XV com um canivete. A partir daí o “desgraçado” é escolhido para ser
exemplarmente punido, sofrendo torturas públicas terríveis, e por fim acaba
sendo esquartejado. Foucault conta esse acontecimento utilizando pormeno­
res e acaba afirmando ser um acontecimento que assinala uma forma especí­
fica de punição da sociedade de soberania. Na sociedade disciplinar, o
confinamento tem por objetivo reeducar os prisioneiros, no sentido de
readaptá-los à sociedade. Essa modificação do olhar sobre a punição é o
que Foucault vai chamar de um acontecimento que promove uma des-
continuidade nas formas punitivas no Ocidente. Aquelas histórias que a gente
vê em filmes sobre o século 17, dos prisioneiros serem acorrentados, de
atravessarem a cidade com eles, um acorrentado ao outro, nessa situação
eles falavam por si ao povo que reagia: uns jogavam flores, outros jogavam
pedras.
No século 18, no advento do que Foucault chama de sociedade discipli­
nar, o que acontece é o silêncio da prisão, do aprisionado e da sociedade
sobre ele. O aprisionado que atravessava a cidade acorrentado para que a
sociedade pudesse vê-lo, mais tarde a atravessa dentro de um veículo fecha­
do que se chama “célula”, onde ele passa o tempo todo, até dois dias. Não
há janela para o mundo. O povo vê passar a “célula”, mas não o prisioneiro.

73
(^A punição desdobra-se do poder do soberano para o de uma instituição
impessoal que pune em nome da sociedade, supostamente para servi-lá. E
Foucault vai pesquisar por que isso muda. O prisioneiro não sabe quantos
deles vêm atrás e quantos deles vão na frente, em outras “células”. No tem­
po das correntes, ele sabia quantos condenados seguiam com ele e o que
tinham feito para caírem em desgraça. Agora ele não sabe disso, pois está
em absoluto isolamento. Sabe apenas que não pode se movimentar. Ele per­
de a noção de quantos e quais são os outros companheiros das outras célu­
las. Essa “zona cinza”, essa agonia sem gritos em que é “jogado” o prisionei­
ro, esse silêncio, é uma coisa que aparece junto com o confinamento, como
a prisão moderna, disciplinar.
Essas modificações, seu como e porquê é o que Foucault vai estudar em
Vigiar e Punir, a partir de exemplos também, e é conseqüência do trabalho
com o Grupo de Informações sobre a Prisão.
Eu vou continuar, lendo algumas coisas para vocês sobre Foucault, que
talvez explicitem mais o que eu quis dizer até aqui. A primeira coisa que eu
quero ler é sobre uma entrevista pública para o Le N ouvel Observateur
sobre os acontecimentos envolvendo professores e estudantes em Vincennes.
Ele diz assim:

“Como dar cursos desenvolvidos e diversificados com 950 alunos para oito
professores? Digam-me claramente o que é a filosofia e em nome de que, de
que texto, de que critério, de que verdade rejeitam o que fazemos.
O essencial do discurso do ministro não são as razões que ele apresenta: é
a decisão que ele quer tomar. Decisão clara: os estudantes que tiverem cursa­
do Vincennes não terão o direito de lecionar no secundário. Eu faço algumas
perguntas: por que esse cordão de isolamento? Q que.a filosofia (a classe de
filosofia! tem de tão perigoso que é preciso tanto cuidado para protegê-la? E o
que há de tão perigoso-effl Vincennes?”

Uma das coisas que o Ministério da Educação faz, depois daquela mo­
dificação total no sistema de exames, de seleção de conteúdo pelo Departa­
mento de Filosofia de Vincennes, é cancelar as formaturas de 1969, 1970
nessa disciplina, não fornecendo os diplomas que dariam condições aos es­
tudantes de lecionarem no ensino secundário. O Ministério simplesmente
nega os diplomas a essas pessoas que fizeram seus cursos nesses anos. E
respondendo a isso que Foucault dá essa entrevista.
Foucault consegue reverter essa situação, mas foi muito difícil, porque
durante esses anos de 1969 e 1970 simplesmente o Ministério não quis
reconhecer os diplomas, alegando que aspessoas não tiveram programas
fixos e nem foram submetidas a exames, não tendo notas. E era verdade,

74
simplesmente ernm feitas listas dc nomes com a aprovação de todos, e o
Ministério nrto aceitava isso I ssa luta Foucault acaba vencendo por algum
tempo, e a tradição de Vincennes continua sendo esta de ser instituinte.
Outra coisa que eu queria ler para vocês é o que Foucault diz sobre sua
obra, quando apresenta sua candidatura ao Collège de France. Ele diz o
seguinte:

“Na Histoire de la folie à l ’âge classique quis determinar o que se podia


saber sobre a doença mental em dada época. Tal saber, evidentemente, se
manifesta nas teorias médicas que nomeiam e classificam os diferentes tipos
patológicos e procuram explicá-los; encontramo-lo também nos fenômenos de
opinião - nesse velho medo que os loucos provocam no jogo das credulidades
que o rodeiam, na maneira como são representados no teatro ou na literatura.
Cá e lá análises feitas por outros historiadores podiam me servir de guia. Mas
uma dimensão me pareceu inexplorada: era preciso pesquisar como os loucos
eram reconhecidos, separados, excluídos da sociedade, internados e tratados;
que instituições estavam destinadas a acolhê-los e mantê-los, às vezes a cuidar
deles; que instâncias decidiam sobre sua loucura e segundo que critérios; que
métodos eram utilizados para reprimi-los, puni-los ou curá-los; em suma, em
que rede de instituições e de práticas o louco se encontrava ao mesmo tempo
preso e definido. Ora, analisando-se seu funcionamento e suas justificativas na
época, essa rede parece muito coerente e bem ajustada: todo um saber preciso
e articulado se encontra engajado nela. Então se delineou para mim um objeto:
o saber investido nos sistemas complexos de instituições. E um método se im­
punha: ao invés de consultar apenas a biblioteca de livros científicos, como em
geral se faz, convinha visitar uma série de arquivos compreendendo decretos,
regulamentos, registros de hospitais ou de prisões, atos de jurisprudência. Foi
no Arsenal ou nos Archives Nationales que realizei a análise de um saber cujo.
corpo visível não é o discurso teórico ou científico, nem a literatura, mas uma
prática cotidiana e regulamentada”.

Eu acho que aqui fica bem claro o que ele entende por arqueologia, na
prática, o que é o trabalho arqueológico. E continua:

“O exemplo da loucura me pareceu, todavia, insuficientemente tópico; nos


séculos 17 e 18 a psicopatologia ainda é rudimentar demais para que se possa
distingui-la de um simples jogo de opiniões tradicionais; pareceu-me que por
ocasião de seu surgimento a medicina clássica colocava o problema em termos
mais rigorosos; no começo do século 19 ela está ligada a ciências constituídas
ou em processo de constituição, como a biologia, a fisiologia ou a anatomia
patológica; mas por outro lado está ligada a uma série de instituições como os
hospitais, os estabelecimentos de assistência, as clínicas-escola; a práticas tam­
bém, como os inquéritos administrativos. Eu me perguntei de que maneira, en­
tre esses dois pontos, um saber podia ter nascido, se transformado e se desen­
volvido propondo à teoria científica novos campos de observação, problemas

75
inéditos, objetos até então despercebidos; mas como, em troca, conhecimentos
científicos foram importados, adquiriram valor de prescrição e de normas éti­
cas. O exercício da medicina não se limita a compor, niuna mistura instável,
uma ciência rigorosa e uma tradição incerta; ela é construída como um sistema
de saber que tem seu equilíbrio e sua coerência própria.
Poderiamos, pois, admitir campos de saber que não se identificariam com
ciências e no entanto não seriam simples hábitos mentais. Procurei então, em
Lés Mots et les Choses, uma experiência inversa: neutralizar, mas sem aban­
donar o projeto de voltar a isso um dia, todo o lado prático e institucional,
considerar numa época dada vários desses saberes (as classificações naturais,
a gramática geral e a análise das riquezas nos séculos 17 e 18) e examiná-los
altemadamente para definir o tipo de problemas que colocam, conceitos que
manusearam, teorias que testaram. Não só se podia definir a ‘arqueologia’
interna de cada um desses campos, tomados um por um, como se percebiam, de
um a outro, identidades, analogias, conjuntos de diferenças que exigiam descri­
ção”.

Lembram quando nós estávamos trabalhando no esquema? A mesma


regra de pensamento que vai atravessando a história natural, a análise das
riquezas, os domínios de linguagem e a filosofia. E continuando:

“Aparecia uma configuração global; estava longe de caracterizar o espírito


clássico em geral, claro, mas organizava de forma coerente toda uma região
do conhecimento empírico. Eu estava, portanto, em presença de dois grupos
de resultados muito diversos: de um lado, havia constatado a existência especí­
fica e relativamente autônoma dos ‘saberes investidos’; do outro, notara rela­
ções sistemáticas na arquitetura própria a cada um deles. Tomava-se neces-
v sário um ajuste. Esbocei-o em Archéologie du Savoir: entre a opinião e o
conhecimento científico pode-se reconhecer a existência de um nível particu­
lar, que se propõe chamar o do saber. Esse saber ganha corpo não só nos
textos teóricos ou nos instrumentos de experiência, mas em toda uma série de
práticas e de instituições; todavia não é seu resultado puro e simples, sua ex­
pressão meio consciente; na verdade comporta regras que lhe pertencem ex­
clusivamente, caracterizando assim sua existência, seu funcionamento e sua
história; algumas dessas regras são peculiares a um só campo, outras são
comuns a vários; pode ocorrer que outras sejam gerais para uma época. O
desenvolvimento desse saber e suas transformações põem em jogo relações
complexas de causalidade (...)”

Aqui Foucault fez uma síntese das obras principais dele, até então. É
aquilo que eu tentei fazer até aqui com a vida dele, é o que se está fazendo
nessas várias páginas citadas pelo Eribon. Eu falei na História da Loucura,
ri A s Palavras e as Coisas, temas que Foucault explicita quando apresenta
sua candidatura para o Collège de France.

76
Sobre o método dele dar aula e fazer pesquisa, ele diz o seguinte:
“Nunca perder de vista a referência de um exemplo concreto que possa
servir de campo de experiência para análise; elaborar os problemas teóricos
com os quais me deparei ou que terei oportunidade de encontrar”.
Uma última coisa que eu queria colocar para vocês é uma análise de um
jornalista, Jean Lacoutère, do LeM onde, que descreve Foucault dando súa
aula inaugural no Collège de France. Ele diz o seguinte: ’
“Quando Foucault entra na arena, rápido, dinâmico, como alguém que se
joga na água, passa por cima de algumas pessoas para chegar a sua cadeira,
afasta os gravadores para colocar os papéis, tira o paletó, acende uma lâmpada
e arranca a 100 por hora. Voz forte, eficaz, amplificada pelos alto-falantes,
única concessão ao modernismo de uma sala fracamente iluminada pelas lâm­
padas que se projetam de taças de estuque (...)”.
Aqui preciso chamar a atenção que as salas não são suficientemente gran­
des para comportar os ouvintes de Foucault na ocasião e também durante
seus cursos no Collège de France. Então havia uma sala onde ele falava - e
pedia que permanecessem ali em tom o de 25 pessoas - , mas em geral so­
bravam mais de 100 que ocupavam outras salas secundárias, onde era ouvi­
da a voz de Foucault através de alto-falantes. Havia meia dúzia de salas no
Collège de France onde, nas quartas-feiras, Foucault falava. E o jornalista
continua dizendo:

“Há 300 lugares, mas 500 pessoas amontoadas, ocupando o menor espaço
livre. Um gato não se arriscaria por ali. Cometi a imprudência de chegar ape­
nas 40 minutos antes do início da aula. Resultado: me dói tudo. Passar quase
duas horas sentado num peitoril de janela é duro. E ainda por cima é sufocante.
(...) Nenhum efeito de oratória. Límpido e terrivelmente eficaz. Sem a menor
concessão à improvisação. Foucault tem 12 horas por ano para explicar em
curso público o sentido de sua pesquisa durante o ano que acaba de terminar.
Então é conciso ao máximo e enche as margens como esses correspondentes
que ainda têm muito a dizer quando chegam ao fim da página. Dezenove e
quinze. Foucault pára. Os estudantes correm para sua mesa. Não para lhe
falar, mas para desligar os gravadores. Sem perguntas. Na confusão Foucault
está sozinho”. '------------------ -

Ao jornalista que o procura mais tarde, depois dessa aula, Foucault con­
fessa:

“Precisaria discutir o que propus. Às vezes, quando a aula não foi boa,
bastaria pouca coisa, uma pergunta, para consertar tudo. Mas essa pergunta
nunca vem. Na França o efeito de grupo toma impossível qualquer discussão
autêntica. E como não há canal de retomo o curso se teatraliza. Tenho uma

77
relação de ator ou de acrobata com essa gente que está aí. E quando termino
de falar, uma sensação de completa solidão.”

Essa é a leitura de um repórter que faz uma pesquisa sobre os professo­


res mais famosos da França e do Collège de France, incluindo Foucault e o
que ele diz, e a impressão que ele tem dessas aulas. As aulas do Collège de
France são também abertas a um público que não é determinado e a fre-
qüência depende do prestígio do professor, da pesquisa que está fazendo.
Essa é a época em que o prestígio de Foucault chegou ao máximo na carrei­
ra dele, está com 43 anos de idade nessa ocasião. Dois de dezembro de
1970 é o seu momento de triunfo nessa aula inaugural.
Vamos falar agora sobre A Ordem do Discurso. E um texto pequeno e
se encontra nas referências bibliográficas que vocês receberam. O que ele
levanta como “hipótese” está colocado nos seguintes termos:

“Eu suponho que, em toda a sociedade, a produção de discurso é ao mes­


mo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
número de procedimentos que têm por objetivo conjurar os poderes e os peri­
gos, dominar-lhe os acontecimentos aleatórios de esquivar-lhe o peso, a temí­
vel materialidade”2.

y Com essas palavras ele delimita uma hipótese, uma opinião a partir da
qual vai decifrar quais os procedimentos que realizam tudo isso. Quais as
forças que tomam os discursos e reduzem essas falas, selecionam pedaços,
cortam, fragmentam, distribuem, organizam; enfim, transformam, por exem­
plo, certos saberes em saberes escolares e certos saberes em saberes cien­
tíficos e outros em programáticos curriculares, porque é importante conside­
rar que, antes de se fazerem enunciáveis, ocorrem práticas. Há um momento
em que essas práticas são descritas, analisadas, interpretadas, reinventadas
e elas viram falas, palavras, enunciados, elas viram saberes enunciáveis, que
podem ser escritos e arquivados. Esses saberes vão sofrendo uma série de
interferências: exclusão, inclusão, reconhecimento ou de morte, ocultação,
eliminação. Ele primeiro propõe isso como hipótese e a seguir mostra como
isso acontece: guais são os procedimentos que fazem com que alguns sabe­
res seiam excluídos e outros, incluídos, reconhecidos.
A minha preocupação com isso é muito grande, porque nos dá pistas
para estudarmos o discurso da educação e dos conteúdos escolares. Esses
conteúdos são os fragmentos filtrados por uma infinidade de obstáculos de
legitimidade e interesses, e impropriamente denominados de “conhecimen-

2. Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. Ijuí: Fidene, 1973 (Tradução de POSSENTI,


Sírio).

78
tos históricos sistematizados” Então, que procedimentos de mutilação do
saber que excluem, incluem, reconhecendo outros, trazem como efeito esses /
fragmentos de saber que nós consumimos na escola e que se chama “conteú­
do escolar”? Isso nos interessa muito, para justamente usarmos essa aula v
inaugural de Foucault no Collège de France como ferramenta de análise de
um ponto de vista que a partir de Foucault é sempre a vista de um ponto
radical, porque vai às raizes. ___________
Foucault diz que a verdade é apenas produção de verdade, e essa pro­
dução é muito variada em educação. O que o próprio Nietszche diz com
relação a isso passa por uma frase muito conhecida e interessante para a
gente pensar e se sentir desafiado a duvidar das afirmações categóricas. Ele
diz: “Não existem fatos, existem interpretações”.
Resta saber por quais procedimentos um discurso, um conjunto de enun- A
ciados, é reconhecido como verdade, enquanto outros são “condenados ao
desaparecimento” . E nisso que consiste essa análise. Quais as formas de
fazer isto, ou como, historicamente, se constituíram esses procedimentos?
Isso é instigante para nós pensarmos em termos de conteúdos escolares:
como e por que se fala que eles são os conhecimentos universais historicamente
construídos? Essa “universalidade”, que é insistentemente repetida nos am­
bientes escolares, é, no mínimo, duvidosa, se considerarmos a análise de pro­
cedimentos a que Foucault se refere em A Ordem do Discurso. Na aula inau­
gural do Collège de France, ele divide esses procedimentos em três categorias.
Os procedimentos de exclusão, e ele coloca que o primeiro desses pro-
cedimentos de exclusão é a proibição: n ãn é em qualquer h o rae em qual-
quer lugar que se pode dizer qualquer coisa. Por exemplo: seria impensável
eu dizer aqui e agora que, como estou sentindo calor, estou com vontade de
ficar nua. Vocês acham graça porque o que eu disse neste lugar onde estou e
deste lugar de onde falo é “proibido”. Ninguém me diz para não dizer, mas eu
não digo. Eu sei que em determinados lugares, momentos e situações eu não
devo dizer isso. Ninguém precisa me chamar a atenção a respeito. Ninguém
me disse para não dizer, não existe nenhuma regra didática que me informe
sobre isso. Talvez alguém tenha me ensinado, mas não lembro, não localizo,
não sei como. Mas está no ar, é tudo circunstancial. Mas também as proibi­
ções tácitas são muitas, constantes e presentes.
A segunda categoria de procedimentos são: divisão, isolamento e re-
jeição. São processos de exclusão que excluem tipos de pessoas catego­
rizadas pela segregação e suas falas. A fala do louco é rejeitada; mesmo que
ele use a oralidade, a fala dele não é considerada saber. E exemplo de exclu­
são que atua por divisão, isolamento e rejeição. Nos ambientes acadêmicos,
especialmente em cursos avançados, estudantes e profissionais de educação

79
em geral são divididos entre aqueles que sabem baseados no “senso co­
mum”, na sua experiência anterior, e aqueles que lá estão para teorizar a
partir dos clássicos. O “infeliz” estudante com “senso comum” se isola e é
isolado pelos demais. Então se cala e sofre rejeição, porque o seu discurso,
baseado na experiência, é supostamente “incompetente”.
Foucault não usou esses exemplos, mas aqueles ligados aos temas que
estudava mais. A fala de Artaud, por exemplo, dificilmente entra na acade­
mia, enquanto a fala de Nietszche é aceita com reservas nessa mesma aca­
demia. Para a pintura de Van Gogh, por sua vez, há também reservas no
meio intelectual e artístico, e assim poderiamos ter outros tantos exemplos.
Então, a fala daqueles que não pertençam ou que aquilo que disseram não se
coloca no regime de verdade da época, pode passar ou como loucura ou
como sujeita a outro tipo de exclusão chamada vontade de verdade, que
separa em verdadeiros ou falsos os enunciados.
-£> Quanto à vontade de verdade, Foucault mostra, em A s Palavras e as
Coisas, que toda época assinala regras de enunciação, que são aquelas
regras de construção de verdade, e isso vai separar a épistémè de uma
época da outra, com descontinuidade de saberes. Toda vontade de verdade
no saber do século 17 está presa a uma sociedade de soberania. No século
19 é uma vontade de verdade presa a um diagrama de poder da sociedade
disciplinar. Isso quer dizer que existe uma vontade de verdade dentro dessa
épistémè que vai dizer o que está certo e o que está errado, ainda que
pensável dentro das regras que normatizam o dizível da época.
Foucault diz que não são só esses os procedimentos de exclusão. As
formas de classificar, ordenar, distribuir, hierarquizar as falas também são
procedimentos que podem incluir ou excluir. Ele chama a atenção para a
questão do comentário e para a noção de autor. Cada vez que se comenta,
se aumenta ou diminui, se dá ênfase, se classifica, se atribui, se distribui.
Ao comentar, eu pratico um certo tipo de distribuição, de ordenação e
classificação, e assim se lê com ênfase aquilo que me parece essencial para
um certo tipo de compreensão e que parece necessário para favorecê-la.
Eu, por exemplo, vou falando da vida de Foucault, juntamente com a obra,
porque isso é significativo para mim. Isso quer dizer que o meu comentário é
um procedimento que inclui e exclui. Então o comentário é o que ele coloca
como um dos procedimentos de exclusão. Cada vez que a gente tem a pre­
tensão de ensinar alguma coisa, efetivamente sobre aquele tema se está ex­
cluindo algumas aspectos e incluindo outros tantos, e muitas vezes acrescen­
tando.
Quanto à idéia de autor, ou seja, de onde a autoria parte, ele diz que isso
é um outro tipo de distribuição e ordenação das idéias que é excludente. Por

80
exemplo, se você escreve um livro, é um autor. Mas quem e que iaja naqucit
livro? Não é só você que fala nesse livro, mas também falam as circunstânci­
as, aqueles que contigo conviveram, que te amaram ou odiaram. Você está
respondendo para um outro com o qual está envolvido numa relação de
força. O que você está dizendo ali, de sua autoria, é alguma coisa que não é
constitutiva de você, somente. É constitutiva inclusive de uma época, do que
é possível pensar naquela época.
Autoria é outro procedimento de classificação, ordenação, distribuição.
Aquilo que parece natural no tratamento dos discursos, para Foucault instiga
a quebrá-los, extraindo a ordem a que foram submetidos. Profunda desor­
dem da produção da verdade, que acaba por caracterizar a maioria dos
discursos, especialmente os legitimados nas relações de poder como discur­
sos da ordem vigente. Nestes se incluem os reformistas, que aparentemente
anunciam uma nova ordem que parece instituinte. E bom lembrar que o
instituinte convive muito mal com o instituído porque o destitui, necessaria-
menté. Nunca aparece como mais uma alternativa possivélr
Nei. Gostaria que você explicasse melhor essa questão da autoria, de
como o autor atua.
Oly : A autoria produz efeitos de poder e efeitos de saber relativos.
Foucault, enquanto autor de Vigiar e Punir, é, no diagrama de poder, muito
mais privilegiado, porque é professor do Collège de France, do que como
autor de A s Palavras e as Coisas, pois aí ele estava em outro lugar, onde
não era ainda aquele sujeito público que é reconhecido pelas pessoas na rua
e que dizem. “Olha! Aquele é o Foucault!”. O autor reconhecido produz
efeitos muito diferenciados do desconhecido. O efeito de convencimento do
autor que está na moda é muito diferente. Isso está muito preso à autoria e a
onde a autoria está presa. Não é qualquer um que diz qualquer coisa em
qualquer lugar, mesmo que essa coisa seja uma proposta especial.
Foucault vai, por exemplo, analisar os quadros de Van Gogh e de Manet.
Ele escreve sobre a pintura moderna, partindo de Manet. Do lado da arte,
ele vai fazer a mesma reflexão que está fazendo no lado da filosofia e no
discurso sobre os seres vivos. A arte, como produção de verdade, vai tam­
bém sofrendo descontinuidades, fazendo parte de cada nova épistémè que
surge. Antes de Manet, e aí ele o situa como um marco, a validade de um
quadro era vista pela sua profundidade, isto é, um quadro tinha valor, a qua­
lidade artística era reconhecida quando existia profundidade. Manet pinta
diferente: ele acaba com a idéia de profundidade e faz o apreciador se deslo­
car na frente do quadro, olhando-o de vários ângulos, de forma que é ele que
se desloca, e não é o quadro que funda a profundidade. Isso é uma mudança

81
ue episieme, ou seja, uma mudança de regras na elaboração do pensamen­
to artístico. Pintar um quadro antes do Impressionismo significava colocar
nesse quadro a noção da profundidade. A partir do Modernismo, pintar
significa criar uma imagem em duas dimensões, com verticalidade e
horizontalidade. O Impressionismo é contemporâneo, na arte de pintar, à
sociedade disciplinar. Isso éum acontecimento no pensamento de Foucault,
implicando uma ruptura das regras de saber. Na época de Goya, de Velásquez,
por exemplo, sem profundidade não se está pintando com arte; mas a partir
de um determinado momento, pintar sem profundidade tem validade artísti­
ca ou estatuto de saber legítimo.
Nei: Eu queria recordar um elemento aqui de quando você diz que os
marcos históricos tradicionais como, por exemplo, a queda da Bastilha e a
Revolução Francesa, não coincidem, para Foucault, significativamente com
a elaboração que ele faz do acontecimento que promove descontinuidades
epocais. Agora, como eu gosto muito de arte e leio muito sobre isso, eu
lembro que Johan Sebastian Bach, na configuração da obra dele toda, não
representa um marco histórico, mas estética e artisticamente ele significa um
marco em que talvez, de alguma forma, mudam as regras de composição da
época. Ele organiza uma escola e tem toda uma história.
Oly: Bach e Hándel é um tipo de composição musical específica que
não havia pensado. Mas a mudança para a música polifonica é um aconte­
cimento. Compor como Hándel e Bach, para o que vem depois, significa
romper com um tipo de composição para a música polifonica. Não é mu­
dar o tipo de música, mas sim mudar as regras de composição da música.
Seria a mesma coisa analisar, por exemplo, o acontecimento da dissonância
na composição musical. Stravinsky marca o début na composição musical
erudita de qualidade. A música polifonica tinha toda uma consonância, era
toda composta dentro de um tipo de regra, isto é, acordes sonantes, acor­
des musicais, harmônicos. De repente, a música de Stravinsky é a introdu­
ção do que alguns chamariam de ruído, o acorde dissonante. Aquele acor­
de que provoca uma sensação estridente no ouvido. E possível chamar
isso de um acontecimento.
Nei: De certa forma Beethoven, por exemplo, não significaria um acon­
tecimento porque ele não rompe com os princípios, ele simplesmente apri­
mora, criando uma nova configuração
Oly : Mas dentro da mesma épistémè. Se a gente fizesse uma arqueolo­
gia da composição musical, Beethoven estaria dentro de uma mesma épistémè
de Verdi, Puccini, Wagner. As inovações que são feitas, são feitas com a

82
música polifonica, com acordes sonantes. Então não há um corte, uma ruptu­
ra na regra dojogo, na regra da composição.
Voltando às restrições, que são a terceira classe dos procedimentos de ( j —
exclusão do discurso, tem os rituais que estão sempre presentes e são outro
tipo de restrição com os quais nós convivemos muito, e Foucault também
conviveu. Quem vive na universidade, por exemplo, passa por ele numa de­
fesa de dissertação: a pessoa sabe exatamente o que fez, mas ela vai se
“defender” . A pressão acaba metamorfoseando a circunstância de uma dis­
cussão entre entendidos num assunto em um espetáculo onde se exacerbam
as relações de poder-saber entre os atores.
O que aconteceu com Foucault na aula inaugural do Collège de France
foi submeter-se a um ritual de passagem. Toda vez que, com toda a sua
sapiência, ele ia para um ritual desses, a fala dele saía rouca, atravessada,
entrecortada. Ele detestava ter que se expor a estes rituais, porque sabia ser
apenas um campo de batalha onde forças se chocam, onde todos lutam con­
tra todos.
Uma outra coisa arrolada por Foucault como procedimento de exclusão
do discurso é a sociedade de discurso, espécie de tribos. Nessa guerra de
todos contra todos, alguns se juntam, montando enunciados no mesmo tom e
matiz; às vezes acontecem aparentes dissonâncias que reafirmam o mesmo.
Esses grupos de discurso são outras formas, outros procedimentos de esva­
ziar de significado alguns saberes, porque neste jogo de poder-saber alguns
saberes são esmagados, outros sequer podem aparecer. Na universidade
convém referir-se a alguns e não pode falar de outros. Quando é que você
fala de determinados discursos que são “proibidos”? Quando estrategica­
mente construiu ou tem um pertencimento a uma sociedade de discurso, ou
então você “não fez escola”, como se costuma dizer no meio acadêmico.
Nos grandes ou pequenos espaços só se vai mexer com isso, quando tiver
condições estratégicas para a formação de uma “tribo” . Um discurso que se
quer hegemônico, por exemplo, porque dentro da sua lógica interna a con­
quista da hegemonia representa ganho na batalha, é elemento estratégico
fundamental e acaba quebrando um monte de outras sociedades de discur­
so, para atingir a hegemonia.
Agora, outro procedimento de exclusão do discurso é a doutrinação?3^—
um procedimento muito corriqueiro na produção de verdade é convencera
outros grupos sobre determinados enunciados como sendo verdadeiros.
E por último, a apropriação social dos discursos, que a educação for-
mal faz de uma forma muito interessante: metabolizando e metamorfoseando
através de códigos herméticos tudo aquilo que poderiamos chamar de dis­
curso popular. Isso depois de ter se apropriado do conteúdo deles.

83
E no final da palestra da aula inaugural, Foucault faz uma página de agrade­
cimentos a algumas pessoas. Ele lembra de Dumézil, ao qual ele conotauma
importância muito significativa na formação do seu pensamento; ao amigo
Jean Hyppolite, que morreu e a quem ele está substituindo no Collège de
France; ao Georges Canguilhem, o amigo que inclusive está na banca e que
assinou sua tese de doutoramento {História da Loucura).
Agora eu queria falar um pouquinho sobre esse jeito de pesquisar de
Foucault e seu engajamento militante ao mesmo tempo, porque alguns críti­
cos costumam dlzer que Foucault nunca se meteu em nada político. Éum a
compreensão do que seja o político. Foucault sempre esteve metido até o
âmago na política institucional, investindo na prática contra as instituições
que cristalizam nelas próprias o exercício de poder de dominação. A partir
da Tunísia, ele está comprometido coniõdêsínstituciohàlízar, ou seja, ele
está metido no movimento dos estudantes, na dissolução do poder professoral
na universidade, e quando ele dá trégua a esta luta institurinnal na universi­
dade, ele parte para outra luta institucional que é através do Grupo de Infor­
mações sobre as Prisões, um trabalho profundamente político, mas político
de uma maneira diferente de outros entendimentos parlamentares e/ou re­
presentativos doutrinários do que seja o político, mas corroendo pela raiz as
instituições.
Então eu queria marcar um pouco essa questão, pensando um pouco até
para as pesquisas que a gente faz, e até porque eu estou muito interessada
nessa questão dos referenciais metodológicas que Foucault utiliza na sua
pesquisa. Eu também estou interessada na forma operacional de fazer es­
sas pesquisas, ou seja, como Foucault elabora este questionário do Grupo
de InformaçõesLsobre as Prisões.
Ele faz primeiramente uma proclamação que diz o seguinte: “Nenhum de
nós está livre da prisão” . Vejam que nessa fala há uma clareza, o uso de um
vocabulário não hermético, é completamente diferente da fala do Foucault
nos livros, onde a fala é hermética, é fechada, onde é preciso entender dos
seus instrumentais metodológicos para compreender as abordagens. Nesta
proclamação, não! Qualquer pessoa entendería. E ele continua:

“(...) Hoje, menos do que nunca. A vigilância policial se intensifica sobre


nossa vida de cada dia: na rua e nas estradas; com relação aos estrangeiros e
aos jovens reaparece o delito de opinião; as medidas antidroga multiplicam a
arbitrariedade (...)”

Agora vejam aqui uma colocação que é fruto da opinião de Foucault no


momento e no local onde se encontrava, como isso aqui: “As medidas antidroga
multiplicam a arbitrariedade” . Então Foucault inverte a situação da forma

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como ela nos é corriqueiramente proposta. Não é a arbitrariedade que é
exigida por causa da existência dos drogados. Não é isso que ele está afir­
mando. Essa inversão, embora tenha sido dita de uma forma trivial, é absolu­
tamente importante, porque desloca o motivo das arbitrariedades nas medi­
das antidrogas, e não na existência do drogado. Lutar contra as instituições
intoleráveis da sociedade ocidental passa por ai. —
E continua: “Estamos sob o signo de guarda à vista”. E vejam bem, que
isso aqui é novamente o pensamento de Foucault em ação, como um vetor
de força apontado contra as arbitrariedades policiais. Isso está longe de ser
uma declaração de que a polícia é segurança. Muito ao contrário, a polícia é
nefasta à sociedade. “Estamos sob o signo de guarda àvista” ... Entre recor­
rer^àquele5 u e ^ “mveirtadq^comcicriminoso, e recorrer àquele que éinven-
tado como segurança, Foucault prefere apostar no que é inventado como
criminoso. Prefere o excluído ao incluído, institucionalizado.
“(...) Dizem-nos que a justiça está sobrecarregada. Isso já sabemos. Mas
se foi a própria polícia que a sobrecarregou?” . Ele quer dizer que, se não
houvesse tanto policiamento em cima de denúncias, denúncias, e denúncias
pelos serviços de segurança, a justiça não estaria tão sobrecarregada. Isso
não é comum de se ouvir de um intelectual privilegiado. “(...) Dizem-nos que
as prisões estão superpovoadas. Mas se foi a população que foi super-
encarcerada?”. Ataca, perguntando como se constituiu este superpovoamento
da prisão. Se constituiu porque a população está sendo superencarcerada. E
de uma forma muito simples, termina.

“Publicam-sejxnjcas informações sobre as prisões. São regiões escondi­


das do nosso sistema social, uma das zonas de sombra da nossa vida. Temos o
direito de saber. Queremos saber. Por isso formamos com magistrados, advo­
gados, jornalistas, médicos, psicólogos um Groupe d’Information sur les Prisons.
Nós nos propomos divulgar o que é a prisão: quem vai lá, como e por quê; /
o que acontece no cárcere; que vida levam os prisioneiros e o pessoal da vigi- (
lância; como são os prédios, a comida, a higiene; como funcionam o regula-
mento interno, o controle médico, as oficinas; como se sai da prisão e o que é '
ser, em nossa sociedade, um dos que lá saíram.
Não encontraremos essas informações nos relatórios oficiais. Vamos pedi-
las a quem, por um motivo ou outro, tem uma experiência de prisão ou uma
relação com ela. Pediremos que entrem em contato conosco e nos comuni­
quem o que sabem. Foi redigido um questionário que podem nos solicitar. As­
sim que se tomarem bastante numerosos, os resultados serão publicados.”

Esse texto é assinado por Foucault, Pierre Vidal-Naquet e Jean-Marie


Domenach. Pierre Vidal-Naquet viveu na Argélia e denunciou as torturas
que o exército francês fazia com o povo argelino e se tomou conhecido por

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isso. Jean-Marie Domenach é diretor de uma revista católica chamada Esprií.
Apesar de Foucault não ter muito gosto pelos cristãos praticantes, é estrate­
gicamente interessante a presença da Igreja assinando esse tipo de declara­
ção. ~
Então nesse texto do GIP, eu tentei chamar a atenção de vocês sobre
como é a forma operacional da pesquisa, seus procedimentos e a conse-
qüência disso: envolvimento no Grupo de Informações de pessoas famosas
como Jean-Claude Passeron, Jean Gattegno, aquele professor que tinha sido
preso na Tunísia e condenado a cinco anos de prisão, Robert Castell, Gilles
Deleuze, Jacques Rancière, Jacques Donzelot e Claude Mauriac. Inclusive o
Claude Mauriac é filho de um outro Mauriac que era muito próximo do De
Gaulle, que não tem nenhuma proximidade com Foucault.
Os comitês do GIP são criados na França com 2.000 pessoas envolvi­
das. Os prisioneiros criam comitês de ação dos prisioneiros e publicam um
livro. Não é muito fácil que um livro de um prisioneiro desconhecido se tome
conhecido. Revolta das pessoas, greve de fome, a polícia em busca de no­
vas prisões, e o governo instaura a comissão de inquérito. Toul é uma prisão
na França com sérios problemas acontecendo lá. E Foucault organiza um
comitê “Verdade-Justiça” para reunir informações sobre a prisão. Ele decla­
ra para o Le Nouvel Obervaíeur o que acontece: “(...) o fiue salta aos olhos
(...)”. E aqui eu quero chamar a atenção da forma especial com que Foucault
fala para a imprensa, ou seja, para atingir a população. Ele não está produ-
zindo verdade para a academia, ele está produzindo verdade para quem lê
jornal, enãFrãnça, no mínimo um jornal qualquer um lê diariamente.
% ..) o que salta aos olhos? A desonestidade de um? As irregularidades
de outro? Muito pouco Na verdade o que Foucault quer chamar a
atenção aqui não é saber quais são as relações que se dão entre o vigilante e
o prisioneiro para“dedurar” o vigilante; não é aí que incide o vetor de força
foucaultiano. Não nesse “sujeitinho” vigilante, que era para deixar a mulher
do preso ficar meia hora com ele privativamente, mas fica de olho e assim
não deixa eles fazerem sexo a não ser que seja na frente dele.
Foucault se interessa é em fazer a instituição se confessar Não é aquele
sujeito idiota lá, que está fazendo aquela besteira. Por que então “salta aos
olhos”? O que aparece nesses questionários todos respondidos?

“Nos simples fatos que ela expõe o que se esconde, ou melhor, o que salta
aos olhos? A desonestidade de um? As irregularidades de outro? Muito pouco.
J É j r violência das relações de poder. Ora, a sociedade, cautelosa, ordena des-
\TãFòsolhos de todos os acontecimentos que traem as verdadeiras relações de
poder (...)”.

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Por que? O senso comum é de que o poder está situado em algum lugar
alto. O poder está situado na mão de quem supostamente o detém. E o que a
sociedade quer de uma certa forma ocultar é que o poder também se exerce
nas micro-relações. Quando um policial espanca áquéTésquêêstavam sendo
despejados, como a gente viu e vê diariamente na televisão, o que ele está
fazendo aí? Ele está exercendo um micropoder que momentaneamente passa
por ele. Ninguém mandou ele proceder assim, mas o faz porque quis. Manda-
ram-no revistar, apenas. E o que produz esta subjetividade? São as relações
de poder que constróem essas pessoas. Não existe escrúpulo. Essas pessoas
são construídas dessa forma por relações de poder de dominação .
Quando alguém de nós abre a boca esta exercendo um poder de resis­
tência ou de dominação, e está no fundo dizendo que conhece um pouco do
autor ao qual está se referindo. Estamos exercendo uma relação de saber-
poder na relação com os demais. Tem meia dúzia de vocês que pensa: “Se eu
abrir a boca aqui dentro, eu estou perdido. Eu não posso dizer que eu não
estou entendendo, porque se eu disser, eles vão olhar para a minha cara e rir,
como se eles soubessem tudo” . Mas isso são relações de poder em funcio­
namento. -----------
Então o que o Foucault quer dizer é que o poder circulai Esse poder
produz efeitos de saber. Eles calam, fazem falârdeterminados discursos e
não outros. Não é que neste momento o poder esteja em mim ou no chefe do
departamento. Ele está ali, mas também está circulando. Cada um de nós
produz efeitos de poder a cada gesto, a cada olhar, a cada momento, em
qualquer situação. É isso que ele está dizendo.
Como se dão as relações de poder chamadas moleculares ou micro-rela­
ções. Sobre isso as instituições e a sociedade em geral cala. Continuando:

“(...) A administração só fala através de quadros estatísticos e curvas: os


sindicatos em termos de condição de trabalho, orçamento, verbas de recruta­
mento. Cá e lá se quer atacar o mal só onde ninguém o vê nem o sente - longe
do fato, longe das forças que se defrontam e do ato de dominação. Ora, a
psiquiatra de Toul falou. Ela virou o jogo e rompeu o grande tabu (...)”.

É a psiquiatra da prisão que resolveu falar, e não foi um discurso crítico


sobre a instituição penitenciária, sobre generalidades distantes, sem
endereçamento. Não, o discurso dela foi: “Olha, aqui e agora aconteceu isso!” .

“(...) Ela, que estava dentro de um sistema de poder, ao.invés de criticar


seu füncionamento, denunciou o que acabava de acontecer ali em tal dia e tal
lugar e em tais circunstâncias... O discurso de Toul será, talvez, um aconteci­
mento importante na história da instituição penitenciária e psiquiátrica”.

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Por que é um acontecimento importante? Porque ele muda as regras do
jogo. Ela não faz a critica do sistema penitenciário: “Eu fora! O lugar onde eu
trabalho fora, a minha posição fora”. Ela diz que chegara na prisão e o paci­
ente havia se enforcado. No dia anterior, ficara sabendo que a mulher deste
paciente tinha sido proibida de visitá-lo. A intenção dela era só mostrar que
determinadas coisas estavam acontecendo. Ela não foi aos jornais para dizer
que o sistema penitenciário era deficiente, que o sistema psiquiátrico era
incompetente. Ela estava dizendo que o que estava vivendo ali naquela pri-
são eraintolerável.
O GIP lança a campanha pela eliminação da declaração de bons antece­
dentes. O grupo publica quatro folhetos. Esse, o Intolerable, de maio de 1971,
é que eu queria apresentar para vocês, porque ele assinala aspectos sobre
os instrumentos metodológicos de Foucault. Ele está transcrito na biografia
do Foucault, feita por Didier Eribon e está nos Ditos e Escritos de Foucault,
que foram publicados agora na França. O Intolerable começa assim:

“São intoleráveis:
os tribunais,
os tiras,
os hospitais, os asilos,
a escola, o serviço militar,
a imprensa, a televisão,
o Estado”.

Este folheto tem 48 páginas. Isso é para dar uma idéia de onde Foucault
v localiza o que é intolerável na sociedade contemporânea no Ocidente. Aí ele
diz numa certa altura: “Estas pesquisas não se destinam a melhorar, abran­
dar, tornar mais suportáveTumsistgfna opressivo (...)”. Porque às vezes dá
para confundir : faZ-se uma reforma, arruma-se a prisão, se tem um lugar
onde cabe 10 mas tem 30, faz-se um lugar para caber 30, dá-se uma comida
razoável. Mas não se trata disto. Na escola também acontecem reformas:
coloca-se uma sala de aula mais adequada, coloca-se um computador, me­
renda escolar etc. Mas então essas pesquisas que o GIP propõe não são
para abrandar, melhorar, tornar mais suportável o sistema opressivo. “Des­
tinam-se a atacar o ponto em que tal sistema se expressa sob outro nome -
o da justiça, da técnica, do saber, da objetividade” . Portanto, esse folheto
era o primeiro episódio de uma luta. Acho que aqui Foucault centra muito
bem o que ele defende em Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Foucault
escreve uma parte assim:

“(...) Uma velha herança dos calabouços da Idade Média? Antes uma
tecnologia nova. O aprimoramento, do século 16 ao 19, de toda uma série de

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procedimentos para enquadrar, controlar, medir, formar os indivíduos, tomá-los,
ao mesmo tempo, úteis e dóceis, politicamente dóceis, economicamente úteis.
Vigilância, exercícios, manobras, anotações, fileiras de lugares, classificações,
exames, registros, toda uma forma de sujeitar os corpos, dominar as
multiplicidades humanas [as diferenças, as singularidades que diferenciam,
por exemplo, a Neli da colega que está ao lado dela, da Sílvia e da outra
colega. Tomar todo mundo muito parecido ] e regular suas forças, desenvol­
veu-se ao longo dos séculos clássicos nos hospitais, no exército, nas escolas,
nos colégios ou nas oficinas - a disciplina”3.

Então vocês vêem aqui no Vigiar eP urür\jin enfoque da disciplina que \ —


não é mais só um enfoque arqueológico em termos de produção de verdade,
em termos de produção de saber: é um enfoque genealógico, é um enfoque
de relações de poder também.
Essa dísciplinaque Foucault está falando, é conseqüência de relações de
poder que^vão tomar, nestas instituições, o corpo dos indivíduos dóceis, e
sua eficácia cada vez melhor. Não é eficácia do aluno tirar nota alta. E a
eficácia do aluno se construir enquanto aluno, enquanto escolar. A instituição
de ensino é economicamente eficaz. Esses procedimentos tomam os sujeitos
eficazes. Isso tudo vai construindo-os como alunos, dóceis, submissos, acei­
tando tudo com normalidade.
Tudo isso vai acontecer tanto no exército, como na fábrica, na prisão, na
escola e nas oficinas e em outras situações de confinamento, a partir do seu
advento. E isso se justifica como bom para o indivíduo. E para o bem dele, e
ele gosta disso. Justamente por serem construídos como tal que a maioria
das subjetividades se reafirma com a disciplina e desejam esses procedimen­
tos disciplinares. Elas são construídas como sujeitos-alunos e requerem este
tipo de dominação.
É dessa disciplina que Foucault está falando em Vigiar e Punir. E uma
disciplina de ordem genealógica, não mais de ordem arqueológica. O século
18, sem dúvida, inventou a liberdade, mas lhe deu um subsolo profundo e
sólido: ajtQr.ip.dadp disciplinar, da qual sempre dependemos. A prisãodeve
ser recolocada na formação^dessa sociedade,—
Sobre a forma operacional dessa pesquisa, Foucault diz que “não é em
Hegel, nem em Augusto Comte que a burguesia fala de modo direto (...)” . E
aqui é muito curioso porque aparecem duas coisas interessantíssimas. Pri­
meiro: a burguesia fala através desses autores. quer dizer, fala através de seus
ideólogos. Mas não é através deles que a burguesia fala diretamente:

3. Foucault, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 7 ed. Petrópolis:
Vozes, 1989.

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“A o lado destes textos sacralizados, uma estratégia absolutam ente co n sci­
ente, organizada, refletida, se evidencia numa m assa de docum entos d esco­
nhecidos que constituem o discurso efetiv o de uma ação política.”

Isto quer dizer que todas aquelas coisas que não vêm a público, que não
aparecem—aqueles arquivos, os segmentos para os quais a sociedade não
dá muita importância não fazem parte do discurso oficial nem do discurso
sobre as idéias - daqueles autores citados acim a-, nem daqueles outros que
fazem o discurso das idéias.
E então que Foucault diz que a burguesia fala de modo direto, e fala
desse modo, quando opaciza, acinzenta, sombreia esses substratos, onde o
poder e o saber se mostram de uma forma mais claramente visível.
Na leitura da entrevista “Verdade e Poder”, onde Alexandre Fontana e
Foucault conversam, vocês poderão reencontrar isso que estivemos discu­
tindo hoje.

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