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LUIS MALDONADO

À HOMILIA
pregação,liturgia, comunidade

PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maldonado, Luis, 1930-


A homilia : pregação, liturgia, comunidade / Luis Maldonado ; [tradução Isabel F.
L. Ferreira). — São Paulo : Paulus, 1997. — (Liturgia e teologia)

Titulo original : La homilia : predicación, liturgia, comunidad.


Bibliografia.
ISBN 85-349-0663-7

1. Comunidades cristãs 2. Liturgia 3. Pregação 4. Sermões1. Título. Il. Série.

95-5012 CDD-252

Índices para catálogo sistemático:


1. Homilias : Cristianismo 252

Coleção LITURGIA E TEOLOGIA


* A ceia do Senhor, eucaristia dos cristãos, L. Deiss
* Batismo,rito de iniciação cristã, A. Kavanagh
* O culto aos santos hoje, W. Beinert
* Como estudarliturgia, lone Buyst
* Descobrir a liturgia das horas, Isabelle-Marie Brault
* Orientações para ministros extraordinários da Sagrada Comunhão, Valter M.
Goedert
* Liturgias do futuro, Anscar J. Chupungco, osb
* Pesquisa em liturgia, lone Buyst
- Liturgia ontem e hoje, Gregório Lutz
* Páscoa ontem e hoje, Gregório Lutz
* “Cristo ressuscitou”, lone Buyst
* A homilia, Luis Maldonado
LUIS MALDONADO

A HOMILIA
pregação, liturgia, comunidade

DD
PAULUS
Título original
La homilia - predicaciÓn, liturgia, comunidad
O San Pablo, Madri, 1993

Tradução
t. F.L. Ferreira

Revisão
H. Dalbosco

Capa
Visa

O PAULUS — 1997
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 570-3627
Tel. (011) 575-7362
ISBN 85-349-0663-7
ISBN 84-285-1566-2 (ed. original)
INTRODUÇÃO

1. A homilética e a querigmática

Existem, devem existir, dois tratados teológico-pasto-


rais em torno do ministério da Palavra: um pode ser deno-
minado querigmática, o outro, homilética.
A querigmática ocupa-se como estudar esta grandeati-
vidade eclesial chamada pregação. A homilética gira em
torno da pregação específica e particular que é a homilia.
De fato, ambas as matérias costumam ser estudadas
unitariamente em uma única disciplina. Efetivamente, nas
universidades do mundo alemão e anglo-saxão há uma cá-
tedra que tem o título de homilética. Concentra-se na análi-
se da homilia, porém, sobre o pano de fundo da querig-
mática, ou seja, do que é a pregação cristã em geral.
Infelizmente, na Espanha, na maioria dos centros de
estudosteológicos (faculdades e seminários), não existe tal
cátedra nem se costuma estudar o assunto correspondente,
pelo menos com a amplitude de matéria ou disciplina teo-
lógica própria.
Creio que esta é a razão por que, entre nós, só se publi-
quem livros sobre o particular. Nos anos do concilio Vaticano
II saíram algumas obras valiosas. Mas, a partir de então,
sofremos uma escassez preocupante.
Tentando preencher um pouco este vazio, preparei o
presente ensaio, que quer abordar, justamente, o tema da
>
homilia, mas dentro da perspectiva da querigmática,isto é,
uma doutrina mais geral sobre a pregação. Desejo, outros-
sim, alcançar estes objetivos unitariamente, sem perder-me
em divisões ou compartimentos que possam acabar sendo
demasiado abstratos. Expressamente descartei a idéia de
fazer um livro de texto. Preferi escrever um ensaio que ti-
vesse a possibilidade de ser sugestivo, em vez de elaborar um
trabalho com estruturas muito sistemáticas. Não obstante,
acho que ao longo de suas páginas se delineia esquema su-
ficientemente claro e ordenado, que consiga ser o equiva-
lente a este manual inexistente em espanhol.

2. Que é homilia?

A homilia é a pregação cristã que ocorre no âmbito de


uma celebração litúrgica. São duas as suas características:
ser pregação e ser pregação litúrgica.
Como pregação deve corresponder às características
fundamentais desta tarefa pastoral básica na Igreja, que
podemos também denominar serviço à palavra de Deus.
Como pregação litúrgica reunirá e refletirá os traços e
elementos essenciais de toda liturgia. Desta maneira, não
há de ser corpo estranho dentro da celebração, nela inseri-
do apenas de modo extrínseco, mais ou menos forçado;
porém, enxertar-se-á harmoniosamente em seu contexto
como etapa mais de fluência ritual e como ingrediente per-
feitamente homogêneo dentro do conjunto do universo fes-
tivo celebrativo.
Ao longo do livro, tentarei desenvolver o sentido de
tais afirmações. Fá-lo-ei, como digo, muito per modumunius.
Não é minha intenção dedicar extenso item analisando o
que é a pregação em si, para depois aplicá-lo à pregação
homilética. Desde o princípio, terei presente a homilia, ain-

6
da que por certo situada em seu contexto mais geral: o de
ser forma particular de pregação cristã.

3. Quese entende por pregar?

Na linguagem do Novo Testamento, quando ele se re-


fere à atividade de Jesus e dos apóstolos, não existe palavra
equivalente ao nosso termo pregar. Esta palavra possui hoje
conotações bem mais clericais e eclesiásticas: é o que fazem
os párocos na igreja.
Nos evangelhos e em Paulo, a terminologia é outra. Os
termos mais próximos são três:

a) apregoar, proclamar, ser arauto (do grego keryssein,


de onde provém o substantivo kerygma);
b) anunciar, dar uma boa notícia, notícia jubilosa (de
euaggelidsein; dai o substantivo euaggelion);
c) ensinar (didaskein, de onde saem didaque,didaskalia)!.
São, portanto, termos originariamente nada eclesiásti-
cos, porém, são até mais profanos e seculares, sem as
conotações negativas de pregar. Seria conveniente fazer es-
forço tanto para mudar a linguagem quanto para modulá-
la de acordo com estas variantes, que podem trazer
oxigenação. Lembremo-nos, por exemplo, como hoje quase
desapareceu a palavra “sermão”.
Pregar deveria significar cada vez mais a síntese do
sentido mais rico expresso pelos vocábulos bíblicos. Nos
Atos dos Apóstolos, em alusão a Paulo, encontramos quar-
to termo: dar testemunho ou atestar. Seu serviço à Palavra

! Daremos as citações correspondentes mais adiante. No momento, podem


ser consultados os seguintes estudos, já clássicos: H. Fridrich, Eauggelisomar, em
Theol... 11, 705-718, citado como TWNT III; Id., Kerysso, em TWNT III, 695-717,; J.
Schmid, Evangelium, em Lexiconfiir Theologie und Kirche II, 1255-1259,citado des-
de já como LThK,; H. Schiirmann, Keryema, em LThK VI, 122-125.
consiste em testemunhar o evangelho, o Messias, o Reino.
O testemunho da Palavra é tarefa fundamental na vida da
Igreja, tanto dentro quanto fora dela.
Finalmente, algumas vezes, esporadicamente, aparece
homiletn, com o sentido de dirigir a palavra ou falar a um
grupo mais sob a forma de conversa. Assim Paulo em Trôade
(At 20,11; cf Lc 24,14). Este significado etimológico pode
enganar. À homilia é, ou pode ser, simples, sob a forma de
conversa ou diálogo, se se preferir... no tom; no entanto,ela
é ao mesmo tempo complexa por causa dos diversos aspec-
tos que estudaremos no decorrer dos capítulos seguintes.

2 At 18,5; 20,24; 28,23.


Capítulo 1

— AÇÃO
QUERIGMATICO-EVANGELIZADORA

1. À pregação no contexto da vida de Jesus


A atividade querigmático-evangelizadora não apare-
ce nos Sinóticos nem nos Atos como ação isolada, exclusi-
va, porém, costuma vir acompanhada de outras atividades:
realização de certos gestos ou ações que possuem valor de
sinais. Mas, além disso, se estabelece relação entre ambas
as atividades. A pregação alude a estes sinais e os sinais
fazem referência à pregação (confirmando-a, realizando-a,
levando-a à plenitude).
A pregação de Jesus tem, frequentemente, duas fontes
ou pontos de referência: as leituras ou os textos lidos na
sinagoga e os atos que ele realiza como forma de sinal. Dian-
te desta observação básica, fica relativizado um tópico bas-
tante difundido, o da pregação como pregação bíblica. A
pregação de Jesus é em parte bíblica (por causa de sua refe-
rência a leituras ou textos bíblicos) e em parte não, porque
ela é em parte leitura de sinais (poderíamos dizer semió-
tica)!
A constituição conciliar do Vaticano II Dei verbum apre-
senta formulação feliz a propósito desta realidade, embora
expressa de forma genérica:

!R. Zerfass, Grundkurs der Predigt I, Dusseldorf, 1987, 19 e 20 e II, 1992,20-21.

9
“Aprouve a Deus revelar-se a si mesmo (...). Este plano
de revelação concretiza-se mediante palavras e gestos
intrinsecamente vinculados entre si, de forma que as
ações realizadas por Deus na história da salvação ma-
nifestam e confirmam o ensinamento (...) significado
pelas palavras, assim como as palavras, por sua vez,
proclamam as ações” (DV 2).

Há diversas passagens bíblicas que confirmam, de


modo genérico, a tese afirmada:
“Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando em suassi-
nagogas, pregando o evangelho do Reino e curando
todas as enfermidades e doenças do povo” (Mt 4,18).
“Jesus percorria todas as cidades e povoados,ensinan-
do em suas sinagogas e pregando o Evangelho do Rei-
no, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermi-
dades” (Mt 9,35).
“Jesus enviou esses Doze com estas recomendações:
Proclamai que o Reino dos Céus está próximo. Curai
os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos,
expulsai os demônios” (Mt 10,5.7-8).
“E foi por toda a Galiléia, pregando em suas sinagogas
e expulsando os demônios” (Mc 1,39). >
“E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para
enviá-los a pregar, e terem autoridade para expulsar
os demônios” (Mc 3,14.15).
“Partindo, eles pregavam que todos se arrependessem.
E expulsavam muitos demônios, e curavam muitos en-
fermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6,12-13).
“Desceu então a Cafarnaum, cidade da Galiléia, ensi-
nava-os aos sábados. Eles ficavam admirados com seu
ensinamento, porque falava com autoridade. Encon-
trava-se na sinagoga um homem possesso de um espí-
rito de demônio impuro” (Lc 4,31-33).

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“A notícia a seu respeito, porém, difundia-se cada vez
mais, e acorriam numerosas multidões para ouvi-lo e
serem curadas de suas enfermidades” (Lc 5,15).
“Em outro sábado, entrou ele na sinagoga e começou a
ensinar. Estava ali um homem com a mão direita
atrofiada” (Lc 6,6).
“Desceu com eles e parou num lugar plano, onde ha-
via numeroso grupo de discípulos e imensa multidão
de pessoas de toda a Judéia, de Jerusalém e dolitoral
de Tiro e de Sidônia. Tinham vindo para ouvi-lo e ser
curadas de suas doenças” (Lc 6,17-18).
“Depois disso, o Senhor designou outros setenta e dois,
e os enviou à sua frente a toda cidade e lugar aonde ele
próprio devia ir. E dizia-lhes: 'O Reino de Deus está
próximo de vós” (Lc 10,1.9).
“Ora, estava ele ensinando numa das sinagogas no sá-
bado. E eis que se encontrava lá uma mulher, possuída
havia dezoito anos por um espírito que a tornava en-
ferma” (Lc 13,10-11).
“Querido Teófilo, fiz meu primeiro relato a respeito de
todas as coisas que Jesus fez e ensinou desde o início,
até o dia em que foi arrebatado ao céu” (At 1,1-2).

2. A pregação de Jesus em Lucas: o hoje


Temos o exemplo mais claro do que foi dito até aqui
na homilia que Jesus fez em Nazaré, segundo Lc 4,16. Aí
Jesus, dentro da liturgia sinagogal, lé um texto de Isaías
(61,1-2), um texto que anuncia uma série de sinais
messiânicos: curar os cegos..., dar liberdade aos oprimi-
dos, evangelizar os pobres. Concluída a leitura, Jesus co-
menta o texto, dizendo: “Hoje se cumpre diante de vós
esta Escritura” (Lc 4,21).

11
Que quer ele dizer com estas palavras? Evidentemen-
te, alude a suas ações, que seguem esta linha de curar, liber-
tar..., especialmente os pobres. Sabemos isto porque todo o
livro do evangelho dos Sinóticos consiste em narrar estas
ações que João chamará sinais (semeia)*. Além do mais, o
próprio Jesus o diz de maneira muito explícita nesta mes-
ma homilia, quando comenta: “Certamente ireis citar-me o
provérbio: “Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvi-
mos dizer que fizeste em Cafarnaum, faze-o também aqui
em tua pátria” ” (Lc 4,23). Isto significa que Jesus alude às
suas ações em Cafarnaum. Em Lc 4,31-33 nos é relatada uma
destas ações: cura de um possesso na sinagoga.
A homilia, portanto, segundo o que foi dito anterior-
mente, alude: a um texto bíblico antigo (de um profeta), e a
algumas ações atuais relacionadas com este texto. A relação
entre ambos os elementos consiste em que estas ações são a
realização hoje deste texto antigo. São seu sinal, seu comen-
tário e sua interpretação. Exemplificam o que querem di-
zer. São, sobretudo, sua atualização. A relação entre os dois
elementos mostra que o texto se cumpre (realiza o que diz)
e que é atual (possui dinâmica para hoje). O que aconteceu
in illo tempore, acontece também hoje.
A homilia fala não só de textos, porém igualmente de
fatos, não apenas do passado, mas também do presente, do
hoje (não só do que Jesusfez e disse então, mas do que faz e
diz hoje). É preciso, pois, mostrar, com fatos atuais, que a
palavra de Jesus se cumpre e é eficaz hoje.
Temos outro exemplo, bastante semelhante ao ante-
rior. É o episódio da embaixada que João Batista envia a
Jesus para perguntar-lhe se ele é o Messias que devevir (Lc
7,18-30). Jesus não responde imediatamente, porém, mos-

I
? Sobre os milagres de Jesus como sinais, cf. M. Trautmann, Zeichenhafte
HandlungenJesu, Vurzburgo, 1980,eK. Berger, Formgeschichte des Neuen Testaments,
Heidelberga, 1984, 32.

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tra que realiza uma serie de sinais. Diz o v. 21: “Nesse mo-
mento, Jesus curou a muitos de doenças, de enfermidades,
de espíritos malignos, e restituiu a vista a muitos cegos”.
Depois faz uma pequena catequese, como homilia, em que
volta a citar Isaías 61,1º. Apresenta uma recompilação de
citações, como leitura, mas inseridas no seguinte comentá-
rio: “Ide e contai a João o quevistes e ouvistes” (Lc 7,22). É
aí que se introduz a referência a Isaías: “Os cegos vêem, os
coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem,
os mortos ressuscitam, o evangelho é anunciado aos pobres
(Lc 7,22). Isto significa que a leitura está delimitada pelas
palavras: “Contai o que vistes e ouvistes”. Jesus quer dizer:
o que Isaías anuncia, agora, vós vedes realizado. Agora
se cumpre esta promessa mediante as minhas ações. Hoje
esta palavra se torna atual. Portanto, Jesus fala do hoje, do
atual, de fatos do presente relacionados com a palavra (pro-
nunciada e escrita em tempo anterior).
A homilia, por conseguinte, segundo este paradigma,
deve ser: a) comentário de um texto e b) leitura de alguns
sinais atuais, relacionados com este texto, que mostram a
atualidade do relato, seu cumprimento no hoje. Estes sinais
podem ser:
1) a vida da Igreja (de suas comunidades, de seus mem-
bros) como sacramento ou sinal primordial;
2) o sacramento celebrado, especialmente a eucaristia,
comosinal desta Igreja tornada presente e atualizada
aqui e agora na comunidade litúrgica; assim a homilia
se converte em liturgia, pois estabelece referência com
a celebração sacramental;
3) a vida de alguns homens, mulheres ou grupos da
sociedade, quais promotores de história libertadora e
salvadora, ou seja, como sinais dos tempos, na linha

3 Também Is 26,19 e 35,5-6.

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do cristianismo anônimo de K. Rahner; penetração nes-
ta mistagogia ou “mistério do mundo” de que fala E.
Jungel, nos movimentos profundos da atualidade, den-
tro dos quais existem cristianismo implícito, Igreja la-
tente (P. Tillich), presença do Espírito que, por meio
dos valores evangélicos, emerge e se cristaliza em fa-
tos e situações.

3. À pregação de Jesus em Marcos:


a boa nova

O lugar em que Lucas coloca este primeiro querigma


de Jesus (lugar que é o princípio não só cronológico, mas
teológico do evangelho) é ocupado em Marcos por episó-
dio similar, porém, com outro conteúdo.
O contexto é o mesmo: a inauguração da atividade de
Jesus. Mudam um pouco as circunstâncias (não se diz que
esteja falando em uma sinagoga nem em sábado), mas so-
bretudo o conteúdo é que é diferente: “Depois que João foi
preso, Jesus veio para a Galiléia proclamando o Evangelho
de Deus: 'Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deusestá pró-
ximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” ” (Mc 1,14),
muito semelhante ao que encontramos em Mt 4,17:
“Convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo”.
Aqui, em Marcos (e em Mateus) não há referência direta
a uma leitura, porque não se situa a pregação dentro do
cunho sinagogal. Não há, tampouco, alusão imediata a si-
nais. Existe, sim, a mediata, pois em seguida nos é narrado
que Jesus realiza uma cura na sinagoga de Cafarnaum onde
vai ensinar (Mc 1,21). O que há na realidade é a mudança
de conteúdo: aqui o conteúdo é a proximidade do Reino e o
chamado à conversão.

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Em Lucas, o conteúdo era mais cristológico: cumprem-
se as profecias — Jesus chega a dizê-lo — no que eu faço
como Messias. Aqui, em Marcos, fala-se claramente de
evangelizar: anunciar a boa nova da aproximação do Reino
confirmada pelos sinais que Jesus começa a realizar.
Por outro lado, parece que este relato dos primórdios
da atividade missionária de Jesus é mais antigo do que o de
Lucas. Portanto, nesta passagem temos a mais venerável e
originária forma de evangelização. Este é o núcleo de toda
pregação cristã, imperativo para qualquer modelo de ativi-
dade querigmática.
Querigma e evangelho estão unidos ao princípio da
pregação de Jesus. É este princípio não é mero começo tem-
poral, porém, fundamento intrínseco que, como acontece
com todo fundamento, desde logo acompanha para sem-
pre tudo o que vem depois. Evangelizar, anunciar o evan-
gelho, em sentido estrito, não é, por conseguinte, algo que
se ache apenas no começo da fé do crente ou do nascimento
de uma comunidade, mas algo perdurável e concomitante
com toda a vida posterior.
Aplicando isto à homilia como pregação cristã, pode-
mos dizer que, se formos fiéis a este modelo querigmático
que Marcos nos apresenta, estaremos evangelizando. No
entanto, vejamos de maneira mais concreta de que modo se
estrutura este modelo em Marcos. É simples e, de certa for-
ma, elementar, mas nós amiúde o esquecemos. Jesus cen-
traliza seu querigma evangelizador em: a) dar uma notícia,
b) uma notícia alegre, e c) pedir aceitação para esta notícia
mediante a conversão. A notícia refere-se a um fato (como
acontece com toda notícia), fato novo (do contrário, não se-
ria notícia, porém, redundância) e fato gratuito, imerecido
e realizado basicamente por Deus. O fato e o fato novo é o
Reino que se aproxima por meio de certossinais. É alegre
porque o Reinosatisfaz todas as expectativas do povo e da
humanidade. É gratuidadejá que se trata de dom de Deus,

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que surge por iniciativa e a partir de iniciativa deste, ainda
que mediante homens, como o Messias.
Até aqui já podemostirar alguma aplicação prática: a
homilia, como pregação cristã ou querigma evangelizador,
deve girar em torno do que Deus faz ou está fazendo por
iniciativa sua, se bem que por meio de homens; não em tor-
no do que devemos fazer como resposta; isto virá em se-
gundo momento. E, desde logo, não pode ser esquecido.
A homilia gira em torno dos acontecimentos que apro-
ximam o Reinoe quejá estão acontecendo, nos quais se vêem
a mão e o espírito de Deus e que ocorrem por meio dos
homens, porém, de homens movidos por Deus. Chegam,
portanto, até nós como dom de Deus. Quais são eles? Os
sinais dos tempos, a vida da Igreja e dos cristãos comotes-
temunhas autênticas de Deus. Depois, em segundo tempo,
a homilia deverá tratar de nossa resposta a estes fatos, de
nossa reação, de nosso seguimento ou imitação de tays fa-
tos, como testemunho na linha de conversão.
Com base nestes critérios e estruturas, depreende-se
algo bastante claro. A homilia deverá ter em primeiro lugar
caráter narrativo e contemplativo-doxolológico, e não
moralizante, exortativo ou admoestativo. É moralizante
quando metemos em primeiro plano o “tendes que fazer”,
em vez de o “Deusfaz, fez, está fazendo”. É importante li-
bertar a homilia de certo tom aflitivo e angustiante, que pro-
vém da falta de equilíbrio bem hierarquizado destes dois
pólos, que alguns chamam o indicativo e o imperativo. O
indicativo alude a este núcleo duro do querigma evangeli-
zador de anunciar acontecimentos objetivos que já estão
ocorrendo e situações que já estão surgindo comosinais de
que o Reino se acha próximo. O imperativo consiste no cha-
mado à nossa responsabilidade, para nos incorporarmos
neste dinamismoativo e transformador, próprio da ação de
Deus: incorporar-nos mudando nossa vida pecadora,
egolátrica.

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Certo cunho aflitivo e até com matizes um tanto sádi-
co-masoquistas ocorre quando insistimos no “quanto nós
somos maus” e nos esquecemos do que diz a Sacrosanctum
concilium: a homilia e “proclamação das ações admiráveis
realizadas por Deus na história da salvação” (SC 35,2).
Também não se deve entender mal o anterior, em sen-
tido falsamente inaciano. Nãose trata de dizer, segundo a
formulação liberal de algumas meditações dos Exercícios de
santo Inácio: Que fez Cristo por mim? Que vou fazer por
Cristo? Esta é formulação que soa como dicotomia pela-
giana. O enunciado bíblico: Que faz Deuse queestá fazen-
do mediante Cristo e mediante outros homens, discípulos
de Jesus e membrosde sua Igreja? E: que vai fazer Deus por
meio de nós? De que modo vai continuar atualizando a
historia salutis através do futuro de nossas vidas, de nossa
história; através da mediação de nossa conversão e da fé
que ele próprio suscita?
Outro modo de descrever a polaridade da homilia equi-
vale a referir-se a seu duplo caráter de anúncio e denúncia:
é anúncio de uma salvação que se inicia e denúncia de um
pecado que persiste e perdura. Temos, assim, um profetismo
gozoso, não apenas de crítica ou mau agouro (profetismo
de calamidades), porém, de esperança e ânimo.
Um adendo final. A tradução fiel da passagem de Mar-
cos é: “O Reino de Deus está perto”, e não: “o Reino de Deus
chegou”, como se dizia antes. Trata-se de matiz importan-
te. Com ele expressamos que a ação de Deus, nesta etapa da
história salvífica em que nos encontramos, não terminou
nem está em sua plenitude. Apenas começou. Portanto, a
ação de Deus nos projeta para o futuro do cumprimento
pleno das promessas. A história não pára nem se parali-
sa com a chegada de Cristo, concentrando-se no presente,
no aqui e no agora. Não podemos absolutizar o presente,
que está prenhe do futuro. A tarefa cristã consiste em se-
guir esta dinâmica que permita ao Reino acabar de chegar;
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realizar tudo o que aindaestá faltando nos desígnios de Deus
e abrir-se à dinâmica da esperança, reorientando tudo nes-
ta direção.
Antes de prosseguir o assunto, convém sugerir alguns
conselhos práticos, a fim de poder realizar os critérios ex-
postos. É claro, diante de tudoo quefoi dito, que a prepara-
ção da homilia exige certa documentação, a saber, reunir
material contendo fatos, situações (fatos de longa duração,
que evoluem de modo lento, mas real), relatos... Já K. Barth
dizia que ele preparava suas homilias com a Bíblia em uma
das mãos e o jornal na outra. Dom E. Angelelli, bispo de La
Rioja (Argentina), morto como mártir há poucos anos, acon-
selhava a viver “com um ouvido aberto para o evangelho e
o outro para o povo”. No povo descobrimos não só suas
necessidades e seu clamor pela justiça, porém, ainda sua
afirmação da vida, sua esperança até mesmo quando se acha
mais humilhado. São sinais evangélicos fundamentais”.
Certamente existe o perigo, por parte de alguns, de con-
verter a homilia em uma espécie de informe semanal, plá-
gio ou dublagem das crônicas de sucesso próprias dos
meios de comunicação. Isto significa entender mal a dou-
trina exposta. Esta doutrina diz-nos claramente queé preci-
so realizar na homilia uma ruptura de nível. Assim,os fatos
são transformados, reinterpretados e aparecem na prega-
ção com todo o seu sentido evangélico e teológico. Partindo
desta interpretação, impõe-se a seleção.E, infelizmente, não
são muitos os que cumprem os requisitos de tal herme-
nêutica ou interpretação teológica.

* V. Codina, “Sacramentos”, em I. Ellacuría-]. Sobrino (orgs.), Mysterium


liberationis. Conceptos fundamentales de la Teologia de la Liberación II. Trotta, 1990, 294.

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4. Pregação de João Batista:
o juízo, não o evangelho

Retomando a análise bíblica, é importante ressaltar a


diferença que existe entre a pregação de Jesus e a pregação
de João Batista, segundo a interpretação da maioria dos
biblistas atuais”.
João Batista anuncia o juízo e parece fazer o Reino de-
pender da conversão (cf Mt 3,7-8 ). Jesus anuncia o Reino
sem condicioná-lo à conversão e sem fazê-lo depender des-
ta: o Reino, sua vinda, é algo apodítico; não obstante, Jesus
também anuncia o juízo e pede a conversão, porém, como
algo posterior. O absoluto e não condicionado, para João,
parece ser o juizo (cf Mt 3,7b).
Na pregação de Jesus, evidenciam-se claramente a
gratuidade, o caráter de dom do Reino, a misericórdia de
Deus e sua atitude de perdão (neste não pôr condições à
vinda do Reino). O Reino pode ser rejeitado, mas nem por
isso deixa de aproximar-se, deixa de vir. Também para quem
o recusa, virá como oferta, oportunidade, kairós ou conjun-
tura, que tornarão muito mais difícil e improvável sua re-
cusa. Defato, Jesus se aproxima dos pecadores e publicanos
por sua própria iniciativa, sem que eles nada tenham feito
em direção a ele. Autodenomina-se “amigo” deles*.
Segundo João Batista, parece que o Reino não vem de
modo algum para os quea ele se fecham”. No pregador do
deserto predominam o imperativo e a pregação moralizante.
O João Batista de Lucas nada mais faz senão anunciar peca-
do, juízo, condenação. Diz: “Raça de viboras! (...). O macha-
do já está posto à raiz das árvores; e toda árvore que não
produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo (...). Vem

2X. Pikaza, El evangelio: vida y pascua de Jesiís, Sígueme, Salamanca, 1990,52-64.


é CfMc2,1-12.15-17;Lc 7,36-50; 15,11-32,e sobretudo Lc 7,34be par.; Mt 11,19b.
? H. Merklein, Jesu Botschaft von der Gottesherrschaft, Stuttgart, 1983, 30.

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aquele que é mais forte do que eu (...). À pá está em sua
mão; limpará a sua eira...; a palha, porém, ele a queimará
em um fogo inextinguível” (Lc 3,7.9.16-17). Para cada grupo
de pessoas dá seus conselhos sobre o que devem fazer (cf
Lc 3,10-14).
Em Mateus, anuncia o Reino próximo, mas acrescenta
discurso repetindo as ameaças (Mt 3,7-12). Parece que faz o
Reino depender da mudança das pessoas, ao passo que o
querigma de Jesus anuncia o Reino incondicionalmente, se
bem que exigindo a conversão. É curioso que em Mateusa
primeira pregação e apresentação de João Batista são as
mesmas de Jesus. Coincidem literalmente: “Naqueles dias,
apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e di-
zendo: Arrependei-vos porque o Reino dos Céus está pró-
ximo” (Mt 3,1-2). “A partir desse momento, começou Jesus
a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
Reino dos Céus” (Mt 4,17). Onde está a diferença? Nofato
de que Mateus põe noslábios de Jesus somente estas pala-
vras; ao invés, na boca de João, Lucas acrescenta as seguin-
tes (que Jesus não diz): “Como visse muitos fariseus e
saduceus que vinham ao batismo, disse-lhes: “Raça de
viboras , quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?
Produzi, então, fruto digno de arrependimento e não penseis
que basta dizer: “Temos por pai Abraão” (...). O machado já
está posto à raiz das árvores” (Mt 3,7-1 0). Parece, portanto,
que estão igualmente próximos o Reino e o juízo conde-
natório. Será que algumas vezes a nossa pregação nãofica
parada em João Batista?
Acredito, seguindo alguns comentadores de Lucas, que
João Batista aparece neste evangelho não tanto como exem-
plo a ser imitado, porém, antes, para delimitar fronteiras,
isto é, para mostrar a diferença entre João e Jesus, com a
novidade de Jesus: seu dom e sua gratuidadetotais?. É o

º H. Conzelmann,El centro del tiempo, Fax, Madri, 1974.

20
que Jesus diz em Lucas: “A Lei e os Profetas chegam até
João; dai em diante anuncia-se o Reino de Deuse todos se
esforçam para entrar nele” (Lc 16,16). O que Lucas quer di-
zer é o seguinte: a boa nova do Reino não começa realmen-
te a ser anunciada com João, porém, com Jesus. E, por isso,
Lucas não põe noslábios de João o que, ao contrário dele,
Mateus põe. Em João Batista ainda há confusão e ambigui-
dade entre o anúncio e a denúncia, como em certas passa-
gens proféticas do AT. K. Rahner costumava dizer: somente
a partir de Jesus é que não há mais passos dados para trás
na ação de Deus salvar os homens; Deus se uniu aos ho-
mens de maneira definitiva. Por isso, sua palavra é palavra
irrevogável de salvação. Uma passagem de Mateus nos ori-
enta nesta direção: “Asseguro-vos que não há homem mai-
or do que João Batista, porém, o menor no Reino dos Céusé
maior do que ele” (Mt 11,10).
Certamente Jesus fala também do juízo e fez o famoso
discurso sobre o juízo (Mt 25,31-46); contudo,ele o situa na
parusia, isto é, na vinda do Messias na glória, no fim da
história, não na vinda em kénosis ou humildade dentro do
curso da história. Aí o que chega é o início do Reino de modo
incondicional. Confirmação muito clara de tudo o que se
disse anteriormente nós a temos na observação que a exegese
faz hoje sobre o modo como Lucas (em 4,19) cita Is 61,1-2,
suprimindo a segunda parte de Is 61,2 (“para proclamar um
dia de vingança para nosso Deus”), deixando somente a pri-
meira parte do versículo: “Enviou-me para proclamar um
ano de graça do Senhor”. Isto significa que aquilo que se
realiza com a chegada de Jesus Messias é o que prefigurava
o ano jubilar ou sabático: a libertação dos escravos, o per-
dão das dívidas e a devolução das terras possuídas pelos
que desrespeitavam a distribuição justa, equitativa ou igua-
litária da propriedade dentro das doze tribos.
Assim, está mais nítida a diferença entre a pregação de
Jesus e a de João Batista. Eis o que pretende expressar a
21
reação das pessoas à homilia, de Jesus segundo Lc 4,22. Efe-
tivamente, hoje a exegese nos oferece uma tradução deste
versículo muito diferente da tradicional. Antes se costuma-
va traduzir do seguinte modo: “Todos ficavam admirados
com as palavras cheias de graça que saíam da sua boca”.
Pois bem, parece que o texto original quer dizer exatamen-
te o contrário: as pessoas estavam indignadas porque Jesus,
diversamente de João Batista e da maneira geral de pensar
da época, apresentava um Reino de misericórdia e não de
castigo para o pecador. A tradução da Nova Bíblia Espa-
nhola é esta: “lodos se declaravam estarrecidos porque só
mencionava as palavras sobre a graça”. E, certamente, em
seguida, continuava uma polêmica muito dura com Jesus,
que termina de modo dramático, com a intenção de jogá-lo
do cume de um monte, depois de o haverem expulsado de
sua cidade natal (“onde tinha sido criado”, diz Lc 4,16).E o
desfecho da primeira homilia de Jesus, de sua primeira pre-
gação evangelizadora e litúrgica, que se costuma esquecer
ou ignorar, mas que é bem impressionante e que serve de
grande lição.

5. À pregação de Jesus em João:


sinais e palavras
Podemos perguntar-nos agora de que maneira se apre-
senta a nossa problemática no quarto evangelho. À respos-
ta é que, de forma muito semelhante à dos Sinóticos, apesar
de sua estrutura, sua teologia e época de sua composição,
tão diferentes.
Efetivamente, João tem uma categoria global para
compendiar a vida pública de Jesus: erga, que podemostra-

? Apóiam esta tradução J. Jeremias, B. Violet... Cf]. A. Fitzmyer, El evangelio


segun Lucas II, Cristiandad, Madri, 1987, 438-439.

22
duzir por “ações”. Ora, esta categoria abrange e compreen-
de duas realidades ou subcategorias especificas: semeia e
remata, sinais e palavras.
Ossinais são os que comumente se chamam milagres!º.
Consistem em ações cheias de força (dynameis segundo os
Sinóticos) ou atos eficazes de serviço aos enfermos, aos pos-
sessos, aos famintos, aos pobres... chamados erga em João!!.
As palavras (a ação querigmática) são outra atividade de
Jesus: são também erga (Jo 14,10). Vemos, pois, que em João
a atividade de Jesus possui esta unidade de falar e agir, não
há palavra sem ação nem ação sem palavra. No entanto,
além disto, João, assim como os Sinóticos, relaciona a pala-
vra com a ação, com sinal.
Com efeito, observamosque os diferentes discursos que
vão balizando o quarto evangelho se situam justamente
depois de cada um de seus sinais. Assim, após os sinais rea-
lizados nas bodas de Caná e na purificação do templo, vem
o longo diálogo de Jesus com Nicodemos (Jo 3,1-21); depois
da cura do paralítico, faz uma longa catequese sob a forma
de diálogo com os judeus sobre o filho do homem (Jo 5,10-
47); depois da multiplicação dos pães e dos peixes, situa-se
a grande pregação eucarística (Jo 6,26-71); depois do per-
dão à mulher adúltera, há longa conversa e ensinamento
sobre a pessoa de Jesus (Jo 8,12-59), e, finalmente, após a
cura do cego de nascença, está outro amplo discurso sobre
Cristo como luz que julga o mundoe Jesus como bom pas-
tor (Jo 10,1-42).
Há um matiz e um último dado no quarto evangelho
que acaba de esclarecer esta dupla ação de Jesus (seus erga),
constitutiva do que hoje chamamos sua atividade evange-
lizadora: seus sinais e suas palavras. São, segundo João, as
ações do Pai, que está presente ou se prolonga em Jesus.

10 Cf Jo 2,11-12, 77.
4 Jo 7,21, onde se alude a Jo 5,1-18.

23
Dizendo de outra maneira, Jesus como Filho nos aproxima
do Pai e o viabiliza para nós. Por isso, o termo ergon, em
forma de verbo (ergadsesthai), é aplicado ao Pai: “Meu Pai
não deixa de trabalhar (ergadsetair) e eu também trabalho
(ergadsomai)” (Jo 5,17); “o Pai que está em mim é quem rea-
liza suas próprias obras (erga) (Jo 14,10). Estas ações (ou erga)
são, segundo os LXX, a criação e o êxodo. E assim Jesus, em
um de seus sinais, ao curar o cego de nascença, mistura terra
e saliva, imitando o ato criador de Deus, quando forma o
homem com a argila do paraíso (Gn 2,7).
Concluindo, a atividade messiânica de Jesus, compos-
ta de sinais e palavras, leva a seu ápice a ação criadora e
exodal de Deus,a criação e a história salvífica!?. A homilia
deverá levar em conta este grande horizonte da palavra de
Deus.

6. O Deus desconhecido

Antes de abandonarmos o quarto evangelho, podemos


mencionar uma passagem que encontramos em suas pági-
nas e que é de grande interesse para o nosso tema. Extraí
um fragmento da pregação de João Batista. Neste relato
vemos que o precursor, apesar das limitações que manifes-
ta ao ser comparado com Cristo, possui valores importan-
tes com relação à tarefa querigmática. Há elementos de sua
pregação que conservam vigência para nós, ao apresentar
facetas a ser levadas em conta, pois correspondem de modo
muito sugestivo aos critérios que expusemos a propósito
do que deve ser a homilia.
Refiro-me ao fragmento mencionado em João, onde se
diz: “No meio de vós está alguém que não conheceis; ele

2 R. E. Brown, El evangelio segin Juan, Madri, 1979, 1494-1511.

24
vem depois de mim, porém, eu não sou digno de desatar a
correia de suas sandálias” (Jo 1,26-27). Eis um texto
querigmático que esclarece o que deve ser uma pregação
sobre sinais dentro de perspectiva evangelizadora. Homilia
nesta linha será aquela que saiba desentranhar a presença
oculta de Jesus em uma série de acontecimentos aparente-
mente profanos ou seculares, mas que encerram em si al-
guns valores evangélicos. Aí se acha enterrado, como que
ignorado, porém com presença real, o Cristo evangélico, qual
grande sustento da vida, da história e do universo. Aí te-
mos o “Cristo desconhecido” pressentido pelas religiões
(R. Panikar), o Cristo anônimo (K. Rahner), o Cristo latente
(P. Tillich) e o Logos spermatikós de são Justino.
A tarefa da homilia consiste em ajudar a reconhecer o
que é desconhecido, ajudar a dar nome próprio ao inomi-
nado. Assim, ela evangeliza ou anuncia a boa nova do Rei-
no, que parece longe, mas que já se aproximou ou se tornou
iminente, sem que tenhamos percebido isto. Perceber, “fa-
zer dar-se conta” de certos fatos, ou melhor, de seu signifi-
cado, é a tarefa relevante da pregação cristã e também da
homilética.
Estas palavras de João Batista não se encontram isola-
das no evangelho. O próprio Jesus insiste na mesma men-
sagem, referindo-se precisamente ao Reino, quando diz: “A
chegada do Reino não será espetacular. Não se dirá: “Está
aqui ou ali”, porque o Reino de Deus está dentro de vós”
(Lc 17,20-21). Segundo outra versão, dever-se-ia traduzir do
seguinte modo: “O Reino de Deus já está no meio de vós”.
Isto significa que precisamos ter a delicada arte de saber
entreabrir a interioridade e desenterrar os níveis profundos
da pessoa, suas camadas recônditas, para que Cristo viven-
te possa emergir. Trata-se de hermenêutica pascal que mos-
tra de que maneira ressuscita o que se achava enterrado,
soterrado. Maiêutica parteira, que ajuda a dar à luz o deus
absconditus, seguindo a tradição sapiencial socrática.

29
A tarefa anterior, gozosa e jubilosa, traz consigo outra
de cunho contrário e, portanto, dolorosa. Ela consistirá em
ajudar a discernir os contra-sinais ou sinais da ausência de
Cristo, os rastros do anti-reino. A ela Cristo se refere quan-
do diz, prevenindo-nos:

“Então, se alguém vosdisser: “O Messias está aqui ou


ali”, não o creiais. Surgirão falsos messias e falsos pro-
fetas e realizarão grandes sinais e prodígios para vos
enganar, e, se fosse possível, enganar até os próprios
eleitos. Reparai que eu vo-lo disse tudo de antemão. Se
vos disserem que ele está no deserto, não saiais; se em
lugar escondido, não o creiais” (Mt 24,23-26).

Não é fácil viver a vinda do Senhor, ainda mais no seu


começo. De onde nos vem ele ao encontro? Onde o encon-
tramos? Onde não devemos buscá-lo? Eis a pedagogia com
que se deve iniciar a pregação.
São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, deixou-nos um
exemplo que ilustra essa tarefa propedêutica, que alguns
denominam pré-evangelização, porém que nãoé exclusiva
de um primeiro tipo de evangelização, a pregação orienta-
da no sentido de suscitar a fé, mas que deve acompanhar
toda pregação, também a que se dirige aos convertidos. Pode
chegar, portanto, ao coração da homilia, porque não só os
catecúmenos, mas todos os cristãos se encontram nesse tipo
de situações. Refiro-me ao famoso discurso querigmático
feito por Paulo no Areópago de Atenas:
“Atenienses, sob todos os aspectos, vejo que sois mui-
to religiosos. Ao percorrer vossa cidade e contemplar
vossos monumentos, encontrei-me até diante de um
altar com esta inscrição: 'Ao Deus desconhecido”. Ora,
o que venerais sem conhecer é o que vos venho anun-
ciar” (At 17,22-23).

26
Começar valorizando todo o positivo que nosso am-
biente possui, fazer um reconhecimento desinteressado e
leal dos valores que também existem fora da Igreja, consti-
tui não apenas cortês captatio benevolentiae, mas ainda ato
teológico de envergadura e leitura teológica da realidade
na linha que vimos expondo. As palavras paulinas “o que
venerais sem conhecer” poderiam ser assim glosadas: “O
que quereis sem conhecer, o que sois sem dar-vos conta”.
Isto quer dizer que a pregação cristã tem que sintoni-
zar com as aspirações profundas das pessoas e do povo.
São aspirações muito fundas que, por isso mesmo, podem
passar despercebidase ficar ocultas por outras mais super-
ficiais. Não se trata de fazer proselitismo fácil, apontando
como se estivessem em nosso grupo os que se acham fora
dele. Trata-se de atitude de respeito e simultaneamente de
apreço, sem com isso querer negar as diferenças reais.
A homilia deve sintonizar com seus destinatários, para
avaliar tudo o que neles se acha relacionado com o plano de
Deus e sua vontade. Depois, deve estimular e reforçar estes
valores. Deve tornar-se porta-voz do que se silencia, se es-
quece e se ignora, mas que, tantas vezes, é o mais importan-
te. Deve iluminar o que existe no fundo de uma pessoa e de
uma consciência coletiva. Na realidade, a profundidade
suprema de que são portadoras as pessoas, mesmo as não
batizadas ou não crentes, é a imagem de Deus, segundo a
qual todos nós fomos criados. Esta imagem é o sacramento
de uma presença, a presença do Espírito e da graça, dom do
Pai, que quer que todos se salvem. E o efeito eficaz, real, da
vontade salvífica universal de Deus (cf 1T'm 2,4).
E, junto à imagem de Deus, está a adoração de Deus.
Porque a imagem não é realidade estática ou inerte, porém,
energia dinâmica sempre criadora, que cristaliza em inquie-
tações permanentes e em atitudes de busca e de amor. A
imagem, dizem os teólogos orientais, jamais se apaga; pode-
se enterrá-la, isto é, cobrir e ocultar por muitas coisas, mas

27
nunca apagar. Por conseguinte, pode e deve ser exumada,
resgatada.
Podemos, outrossim, chamar esta realidade de pala-
vra interior, que nosfala no intimo de nós mesmos. E a “se-
mente do Verbo”, depositada no sulco de nossa liberdade.
Por havermossido criados através do Verbo, trazemos a sua
marca, a palavra interior. À Palavra exterior corresponde a
interior. Por isso pode existir e existe sintonia entre quem
fala em nome de Deus e quem escuta, entre a pregação e as
aspirações profundas da comunidade ouvinte. O servidor
da Palavra deve ter sempre presente esta realidade. Assim
sendo, manter-se-á cheio de confiança em seu ministério.

7. O Reino de Deus

Agora, devemos prosseguir a análise da pregação de


Jesus segundo Marcos 1,15, análise que apenas iniciamose
em que é mister aprofundar-nos, porque se trata de texto
da maior importância. Constitui o pórtico da atividade pas-
toral e querigmática de Jesus; portanto, seu paradigma:
modelo de toda pregação segundo Marcos. Além disso, é
mais antigo do que o texto apresentado por Lucas (4,16-21),
dado que aumenta a sua importância. Poder-se-ia dizer que
aqui temos um capitulo básico de toda a querigmática.
À primeira coisa que se deve acrescentar ao que se dis-
se é que as palavras de Marcos: “Jesus foi para a Galiléia, a
fim de pregar o evangelho de Deus; e dizia: 'Cumpriu-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo”” (Mc 1,14-15), pos-
suem estreita relação com um texto que se costumava ler
frequentemente na sinagoga, o Targum (versão aramaica)
do Dêutero-Isaías.
Embora Marcos não faça referência explícita, como
Lucas4,16, ao fato de Jesus estar pregando depois de haver

28
feito uma leitura bíblica profética, não obstante, indireta-
mente, diz-nos algo equivalente, ao apresentar Jesus esco-
lhendo texto muito lido na sinagoga, para acrescentar seu
comentário pessoal no sentido (como acontece em Lucas)
de que este anúncio profético se está cumprindo, se está
aproximando. Por isso, podemos dizer que a pregação de
Jesus em Marcos 1,15 também é bíblica e, de certo modo,
litárgico-homilética. Concretamente falando, as palavras de
Jesus neste versículo de Marcos utilizam a passagem de
Isaías 52,7:

“Como são belos, sobre os montes, os pés do mensagei-


ro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anun-
cia a salvação, do que diz a Sião: “O teu Deusreina”
(Is 52,7).

Jesus inspira-se, pois, em Isaías 52,7, e o faz de modo


muito concreto. Vejamo-lo de maneira mais particular. Já
no tempo de Jesus a liturgia sinagogal constava de duas
leituras: uma extraída da torah ou lei, isto é, do Pentateuco,
e outra dos profetas. À primeira se cnamava parasá e a se-
gunda, hafatarã!º. Este ritual se acha contido mais explicita-
mente em At 13-15. Ora, parece que o único rolo de textos
proféticos que as sinagogas da Galiléia possuíam naquele
tempo era o Targum do Dêutero-Isaías. Jesus, portanto, ou-
viu com frequência este texto nas visitas que, sem dúvida,
fez à sinagoga ao longo de sua vida.
Este largumfoi, portanto, fonte imediata de inspiração
para Jesus. Em sua evolução humana, que por certo teve
como verdadeiro homem que era, ajudou-o a formar sua
consciência messiânica e sua vocação em relação ao evan-
gelho e à proximidade do reino.

3P, Grelot-M. Dumais, Homilías sobre la Escritura en la época apostólica, Herder,


Barcelona, 1991, 12.

29
O que há de importante nesta passagem profética é que
nela se acham reunidas as três categorias fundamentais da
pregação de Jesus (segundo Marcos): a do evangelho ou boa
nova que é apregoada, a do Reino que Deus quer e a de pro-
ximidade, iminência e cumprimento deste. No texto em ques-
tão, o Dêutero-Isaías, dirigindo-se ao povo no exílio, procla-
ma o Reino de Deus como acontecimento histórico futuro,
que deve enchê-lo de esperança. Trata-se da libertação de
Jerusalém e do retorno dos exilados: à sua terra, à sua pá-
tria, O que significa que este profeta desconhecidositua a
soberania régia de Javé não mais no culto, porém, no meio
da história, como esperança concreta que vai irromper !
O símbolo e a categoria de “reino de Deus” expressa
tensão e esperança em face do futuro, na linha de salvação
libertadora integral. " Jesus, como o Dêutero-Isaías, dirige-
se ao povo oprimido, desaparecido em meio a profunda crise
de identidade. Por isso, o povo o segue. Mas Jesus acres-
centa: o tempo deste anúncio gozoso cumpriu-se; a boa nova
é questão de atualidade, do aqui e agora.
Que significa Reino de Deus para Jesus? Significa o
senhorio, a soberania de Deus que procura ser aceito pelos
homens. Ele não se impõe pela força, porém, se oferece com
humildade e respeito. Por outro lado, luta contra o senho-
rio conseguido por Satanás, o espírito do mal. Reino tam-
bém possui a conotação de povo concreto a quem é destina-
do e que é chamadoa aceitá-lo e a torná-lo visível, vivendo

NR. Aguirre, Del movimiento de Jesis a la Iglesia cristiana, DDB,Bilbao, 1987, 45-
63; Id., “Introducción a los evangelios”, em VV.AA,, Evangelios sinópticos y Hechos
de los apóstoles, Verbo Divino, Estella, 1992, 13-98; O. Camponovo, Kônigtum,
Kônigscherrschaft und Reich Gotts in denfriihchrislichen, Friburgo, 1984; B. D. Chilton,
God in Strenth. Jesu Annoucement of Kingdom, Freidstadt, 1975; X. Pikaza, El evangelio:
unidad y pluralismo, SM, Madri, 1989, 16; A. Rodríguez Carmona, “Evangelio según
san Marcos”, em VV.AA., Evangelios sinópticos y Hechos de los apóstoles, Verbo Divi-
no, Estella, 1992, 99-191.
15 Seguem a mesmalinha profética Mg 2,12-14; 4,6-8; Zc 14,6,11.16; Dn 2,34-44;
7,13. Cf., também,Is 40,9-10; 60,6; Sl 96,2.10.11-13.

30
de acordo com os valores que ele traz consigo, anunciando-
o a todosos outros. A responsabilidade deste povo — Israel
e, em seus dias, a Igreja — consiste em aceitar o Reino de
Deus e visibilizar a transformação humanizante, que supõe
esta aceitação da soberania de Deus.
A comunidade e a missão são inseparáveis do que-
rigma, do evangelho. Assim, o Reino se converte, no meio
de nosso mundo, no anúncio e no germe da esperança que
pode e deve inspirar toda a realidade humana, toda a cria-
ção, toda a humanidade. Ao mesmo tempo, converte-se em
denúncia de toda injustiça, violência, escravidão, sujeição,
pobreza e morte. Porque Deus é justiça, amor, paz, liberda-
de, riqueza, abundância e vida. E o Reino de Deus exige
que estes valores se vão realizando e, assim, se vá cumprin-
do a vontade soberana de Deus no mundocriado.
A proclamação de que o Reino de Deus, ou seja, o pró-
prio Deus em sua vontade eficaz e soberana, salvífica,
libertadora e misericordiosa, mas exigente, se aproxima da
história lutando por se abrir caminho, parte da consciência
viva da opressão e da desumanidade existentes, bem como
da necessidade de mudança radical.
O Deus do Reino nos lábios de Jesus é o Deus da con-
versão, ou seja, do arrependimento e da mudança. Ao mes-
mo tempo é o Deus dos pobres, que tem vontade eficaz de
libertá-los, como veremos claramente nas bem-aventuranças,
que constituem explicação um desenvolvimento do anún-
cio do Reino. Vemosisto, outrossim, nas ações de Jesus, ou
sinais do Reino, que consiste em ir ao encontro dos margi-
nalizados, dos pecadores, dos enfermos, dos possessos, dos
famintos... com dinamismo de libertação destas
negatividades.
Jesus, com todas estas suas ações em torno do Reino,
revela ao povo que o importante não reside na imediata li-
bertação dos romanos, porém, sim, na transformação do
coração, que se manifesta e se encarna na reconstituição do

31
povo dividido, do Israel desintegrado, na reconciliação de
todos mediante integração dos diversos grupos de margi-
nalizados. No entanto, definitivamente, este Reino assim
entendido questiona tanto o poder de César, quanto o dos
dirigentes judeus, como absolutos que se erguem contra o
único absoluto, o Deus que liberta de toda e qualquer servi-
dão, restituindo ao homem a dignidade da imagem divina
que o torna livre e co-criador. Porisso, Jesus acabará sendo
perseguido, condenadoe crucificado por causa de sua pre-
gação e de sua práxis do Reino.
Portanto, Jesus entende o Reino em sentido histórico,
de realização e encarnação na história humana, neste mun-
do (e não simplesmente nos outros mundos do culto, do
além). Reino tem para ele sentido profético, social, de unir e
unificar todas as dimensões da realidade, eliminando qual-
quer dualismo, espiritualismo, escapismo... E a afirmação
de Deus como promessa e utopia comunitárias de liberta-
ção e justiça.
A esperança do Reino parte de uma consciência de
opressão e de injustiça (exílio na Babilônia, perseguição
posterior pelos Selêucidas, ocupação romana), da denúncia
de todo poder desumanizante. Culmina suscitando fé na
fidelidade do Deus da justiça e da misericórdia.
Existe último significado na primeira pregação de Je-
sus que se acha implícito no anúncio do Reino, mas que
depois se explicitará em momentos posteriores da vida pú-
blica de Cristo. Este Reino é Reino de um Deus que é Paie,
simultaneamente — e de maneira muito singular —, Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo. O Deus do Reino é o Deus que
Jesus vive cada vez mais explicitamente como seu Pai, que
o envia aos homenspara fazê-los participar desta paterni-
dade. /
O fundamento da proximidadee solidariedade de Deus
com os homens, especialmente com os pobres, mediante o
Reino que chega, é a paternidade de Deus. Jesus, unido ra-

32
dicalmente, como Filho de Deus, a este Deus Pai, vive tam-
bém radicalmente a fraternidade da solidariedade.
Eis a dimensão teológica, transcendente, vertical do
Reino que, desde o princípio, se entrelaça de maneira mui-
to fluida com a dimensão imanente e humana. A basileia
(Reino) não é apenas tarefa de justiça e de paz. É projeto
que passa certamente pela realização plena do homem e do
cosmo, mas que tem como meta última a comunhão pater-
no-filial com Deus, a deificação ou transfiguração de tudo
em divinização universal. Humaniza sem preterir a dimen-
são transcendente do homem, e deifica sem absorver nem
destruir a dimensão de humanidade.Isto é possível porque
o homem é ser aberto à transcendência, já que foi criado à
imagem e à semelhança de Deus.
A pregação de Jesus, segundo Marcos 1,14-15, possui
pano de fundo não só bíblico, ou seja, glosa atualizada,
midráxica, de leitura bíblica (Is 52,7), porém, outrossim,
oracional.
Efetivamente, a oração que há muito tempo encerra
todo ofício sinagogal é o kadis, prece que pede a chegada do
Reino. Em sua parte central diz assim: “Seja santificado o
grande nome no mundo que ele criou e faça chegar logo o
seu Reino em nossos dias e nos dias da casa de Israel”?º.
Sem dúvida alguma, temosaí o núcleo inspirador do
pai-nosso, a oração que Jesus dirige a Deus como Pai e que
deixa para a sua Igreja. É a expressão, sob forma oracional,
de sua vocaçãoa serviço do Reino, como centro de sua exis-
tência e de seu destino, bem como da indissolúvel relação
entre Reino e paternidade divina.
Há outro motivo de relação entre a oração, tanto o kadis
quanto o pai-nosso,e o texto predicacional: as palavras “san-
tificado seja o vosso nome”, conforme o pai-nosso, “santifi-
cado seja o grande nome”, segundoo kadis. Porquesantifi-

16 H. Schiirmann, Gottes Reich-Jesu Geschick, Friburgo, 1983, 23.

33
car o Nomesignifica honrar este nome como único. “ÚUni-
co será seu nome”, diz Zacarias 14,9. E a idéia de Reino se
acha indissoluvelmente unida à unicidade do nome de
Javé. Só existe um Reino porque só existe um Deus verda-
deiro. Por isso, o Reino é universal e por isso são reunificados
todos os homens e mulheres. “Santificarei meu grande
nome, segundo Ezequiel 36,24, equivale a congregar toda a
humanidade. Reino e povo de Deus, como fermento de hu-
manidade reconciliada, unificada, estão inseparavelmente
unidos.
Vemos, pois, como na pregação de Jesus existe resso-
nância oracional. Isto, unido à influência bíblica já analisa-
da, confere caráter homilético, pois a homilia é a pregação
que reúne os aspectos básicos das leituras bíblicas e as pra-
ções da comunidade.

8. O Reino de Deus na teologia atual


A questão do Reino de Deus representou como que uma
descoberta para a teologia mais recente. Realmente, nas
publicações teológicas, algum tempo atrás, o Reino ficava
esquecido!”. Agora foi descoberto pelos teólogos atuais, não
só como questão importante, porém, central e cardeal de
todo sistema teológico: articula o tratado de Deus, de Cris-
to e da Igreja, inclusive o do homem,situando-os em sua
verdadeira dimensão!º.

” Quem começou a levantar a questão foi J. Weiss, com sua obra Die Predigt
Jesu vom Reich Gottes, 1892. Cf H. Schiirmann,o.c., 21.
8 “A partir de J. Weiss, há consenso sobre a afirmação de que o centro e a dinã-
mica da pregação e do ensinamento de Jesus é o reino de Deus que se aproxima, a
basileia. Portanto, Mc 1,14ss tem razão ao apresentar Jesus, desde o princípio, com
esta mensagem da basileia próxima. Assim, pois, segundo o princípio crítico da coe-
rência, todas as outras afirmações, teses, etc. devem integrar-se nesta pregação
central”, H. Schúrmann,o.c, 21.

34
Graças à aproximação do teólogo sistemático das con-
tribuições das ciências bíblicas ocorreu este reajuste, que
possui algo de cunho copernicano e cujas consequências
vamos pouco a pouco pressentindo.
Se o impacto na teologia mais sistemática é importante,
também ou ainda mais, há de sê-lo na querigmática e na homi-
lética, já que estas se apóiam na primeira. Creio, entretanto,
que estas últimas ainda não chegaram às devidas conclusões.
Há idéias que hoje se acham muito difundidas em di-
versas publicações, ensaios, revistas etc., e que parecem pro-
vir da teologia da libertação ou da teologia política. Na rea-
lidade, provêm da teologia bíblica, à que estas são devedo-
ras ou com que, felizmente, coincidem. Dá-se convergência
importante, que decorre, não da casualidade, porém, sim,
de influência cada vez maior das pesquisas bíblicas sobre
todos os ramosda teologia. A insistência, por exemplo, do
pensamento bíblico nos fatos que o Reino deve realizar-se
já sobre a terra e de que o senhorio de Deus sobre a criação
chegou à plenitude deste mundo e da humanidade, são te-
ses centrais desta teologia bíblica que voltam a aparecer nas
teologias sistemáticas atuais”,
Recordemos e resumamos algumas das idéias que tan-
to os exegetas quanto os teólogos atuais nos expõem sobre
o Reino e que completam o quefoi dito anteriormente. Des-
te modo, exporemos o que deve ser o núcleo de toda prega-
ção cristã e de toda homilética, pois o Reino de Deus preci-
sa ser o horizonte que tem de acompanhare ressituar o con-
teúdo de todas as nossas homilias, seu contexto temático e
seu substrato bíblico-teológico.
J. Sobrino, por exemplo,diz citando K. Rahner?. Jesus
não é o centro de sua pregação; Jesus prega o Reino,não se

2 H. Flender, Die Botschaft Jesu von der Herrschaft Gottes, Munique, 1968,30,e
H. Merklein, o.c., 40.
20 J. Sobrino, Cristología desde América Latina, México, 1976, 45; cf. K. Rahner,
Christologie systematisch und exegetisch, Friburgo, 1972,29.

35
prega a si mesmo; nem prega simplesmente Deus, mas o
Reino ou Reinado de Deus (no quarto evangelho ocorre certa
mudança, que deve ser vista em continuidade com os
Sinóticos, pois João fala de Cristo como o glorificado).
Evidentemente, este anúncio do Reino que Jesus faz
significa que a ação de Deus irrompe comograça e não qual
mero prolongamento das possibilidades do homem. Con-
tudo, Deus irrompe para agir dentro da história, não fora
nem à margem dela (como diz o pensamento grego). O
“Deus édeve ser traduzido, no contexto bíblico, por “Deus
age” aqui e agora. O ontológico é o histórico. O Vaticano I
se detém na ontologia (cf. Denz 3001ss); é por isso que o
Vaticano Ilo completa, incluindo esta concepção historizada
de Deus (cf. DV 2). A tese “Deus é”, para ser interpretada
neste sentido realmente histórico — de encarnação na his-
tória —, tem que ser traduzida por: Deus cria comunidade
entre os homens; faz que o homem não só se oriente para
ele verticalmente — pela filiação — como também na di-
mensão horizontal de fraternidade e reconciliação. Deus age
na história criando comunidade de irmãos. É o que quer
expressar a consciência de Jesus a propósito de Deus como
seu Pai e como nosso Pai (Jo 20,17).
À luta do Reino contra o espírito do mal ea luta contra o
pecado como ruptura da filiação com relação a Deuse, por-
tanto, da fraternidade com relação a todos os homens e mu-
lheres. Eis o eixo em torno do qual gravita o sermão da monta-
nha: o amor, o serviço e a verdade. Assim se antecipa o Reino.
Isto se concretiza em praxe, em algumas ações que Je-
sus vai realizando ao longo de sua vida. Foram chamadas
sinais do Reino (sanar, curar, exorcizar, perdoar, integrar,
dar de comer, de beber, ressuscitar, restituir a harmonia à
natureza...). Ele se converte, assim, em caminho, verdade e
vida para quem mudou de vida e se faz discípulo. E, deste
modo, a vida do convertido, do discípulo, se transforma
em seguimento.

36
Tudo prepara para a reconciliação universal. Sobre a
base de uma justiça, que não é retributiva nem vindicativa,
porém, recriativa, cria uma humanidade nova e elimina as
barreiras que faziam do leproso, do pecador, do enfermo,
do possesso, do pobre, desclassificados e marginalizados.
Nasce a verdadeira convivência.
Poder-se-ia acrescentar a este comentário de. Sobrino,
em que diz que outro sinal importante é constituído pelos
Doze, junto com os outro discípulos, que simbolizam as doze
tribos de Israel, a saber, o Israel reconstituído, o novo povo
de Deus,a Igreja, germe unificador de toda a humanidade,
seu sacramento.
J. Moltman nos descreve, de maneira muito equilibra-
da, o sentido dialético, mas unitário e globalizante, que o
Reino de Deus possui para Jesus, quando o anuncia como
sendo o centro de sua mensagem e de sua atividade ou com-
promisso messiânicos*!:
1) É presentee futuro ao mesmo tempo, porque é e deve
ser objeto da experiência atual e das esperanças funda-
mentadas nesta experiência. É realidade presente em
forma de semente, que vai germinando para um futu-
ro ainda pendente.
2) É temporal, terreno e celeste. Quando citamos as
palavras de Jesus a Pilatos: “Meu Reino não é deste
mundo” (Jo 18,36), tendemos a interpretá-las como se
o Reino fosse somente celeste, não obstante esta inter-
pretação é parcial, porque a interpretação de Jesus se
refere à origem e não ao lugar do Reinado. A origem é
Deus, mas em Jesus é por Jesus e que se acha o Reino
neste mundo. Justamente pedimos no pai-nosso que o
Reino venha “assim na terra como no céu”. Por céu

2). Moltmann, Zuerst das Reich Gottes. Herrschaft im Himmel oder auf Erden,
Evangelische Kommentare 22 (1989), 10-15.

37
entendemos a parte da criação que já correspondein-
teiramente a Deus; por terra compreendemos a parte
da criação que ainda está porser transformada. O Rei-
no de Deus é tão terreno quanto Jesus foi e continua
sendo depois de sua ressurreição. Com a ressurreição
do Crucificado começa o novo nascimento de toda a
criação, não a fuga desta da terra para o céu.
3) É coisa de Deus e também coisa dos homens. Por
isso, diz Jesus: “Ide e pregai que o Reino de Deusestá
próximo. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos,
limpai os leprosos, expulsai os demônios” (Mt 10,7-
9). Assim, podemos dizer que o Reino não é do outro
mundo, porém, sim, deste mundo, como algo trans-
formado ou em processo de transformação. À nova
criação não é outra criação, mas a recriação deste
mundo. A vida eterna não é outra vida, porém, a res-
surreição desta vida na vida de Deus, “o corruptível
se revestirá de incorruptibilidade e o mortal, de imor-
talidade” (1Cor 15,53). O Reino de Deus não se deixa
reduzir a dimensão exclusivamente religiosa, espiri-
tual. Como Reino do Deus da criação tem que ser tão
universal e variegado quanto o é a criação. Por isso,
não podemos excluir do Reino a economia ou a polí-
tica mundiais. Onde a vida se acha ameaçada, o Rei-
no de Deus se acha, outrossim, comprometido, Reino
que é vida abundante, pois Deus é vida e fonte de
vida (cf. Jo 10,10).

Todo este sentido denso do Reino de Deus esteve au-


sente até em teologiasbíblicas. É muito significativa a esse
propósito a avaliação que um biblista como G. Lohfink faz,
quando conclui sua tese de livre-docente em Tubinga e, em
discurso solene, se despede de seus colegas. Dedica toda
a sua exposição a comentar as deficiências que ocorreram
até agora no ensino sobre o Reino de Deus que a exegese

38
fez?Utilizandoa via negativa, apresenta-nos excelente sín-
tese dos traços fundamentais que possui a pregação do Rei-
no de Deus no NT. A exegese, comenta G. Lhofink, desva-
lorizou o presente do Reino de Deus. Considerou-o apenas
como coisa do futuro. Não acentuou suficientemente o as-
pecto de atualidade que o Reino possui, apesar de seu cará-
ter antecipativo e inicial, como nos ensina a parábola do
tesouro escondido (Mt 13,44-46). Tampouco levou suficien-
temente em conta o homem como ator do Reino de Deus.
Afirma-se que só Deus faz vir o Reino, mas esquece-se de
que o homem deve e pode construir o Reino, trabalhar por
ele, como ensina a parábola dos talentos (Mt 25,14-30). A
vinda do Reino é história que se vai tecendo entre a liberda-
de de Deuse a liberdade do homem. Silenciou-se principal-
mente a configuração social do Reino de Deus. Não há rei
sem povo que reconheça seu reinado. O Reino vai cristali-
zando no povo de Deus que Jesus reúne em torno de si,
como nova sociedade.
Esta última observação nos dá oportunidade para ex-
por a relação existente entre Reinoe Igreja, outro capítulo
importante do querigma pregado e da teologia.
O Reino de Deus,diz H.). Pottmeyer, tal como irrompe,
segundo o testemunho da pregação e da práxis de Jesus,
bem como em sua comunidade de discípulos,é o funda-
mento de sentido e de realidade para a Igreja. É, pois, nor-
ma e critério da verdadeira Igreja, segundo o qual deve dei-
xar-se julgar hoje”. Reino de Deus como fundamento de
sentido da Igreja não é fim em si mesma, porém, é destina-
da a testemunhar a irrupção do Reino e a servir à sua che-

2 G. Lohfink, Die Not der Exegese mit de Reich-Gottes-Verkiindigung Jesu,


Theologisce Quartalscrift 168 (1988), 1-15. Cfna mesmalinha J. Gnilka, El evangelio
segun Marcos I, Sígueme, Salamanca, 1986, 78-80.
3 H. ). Pottmeyer, “Die Frage nach der wahren Kirche, em W. Kern-H. J.
Pottmeyer-M. Seckler (orgs.), Handbuch der Fundamentaltheologie Ill. Traktakt der
Kirche”, Friburgo, 1986, 212-241.

39
gadae plenitude. À medida que a Igreja é e se converte em
sinal do reino de Deus é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo.
L. Boff faz tríplice distinção, que contribui para escla-
recer a questão. À Igreja, diz ele, não pode entender-se a si
mesma nem por si mesma, porque se acha a serviço de rea-
lidades que a transcendem: o reino e o mundo, que são os
dois pilares sobre os quais se apóia o edifício da Igreja?
a) O Reino constitui a utopia realizada no mundo
(escatologia); e o fim bom da totalidade da criação em
Deus, no final plenamente libertada de toda imperfeição
e impregnada pelo divino que a realiza de modo abso-
luto. O Reino consuma a salvação em seu estado último.
b) O mundo é lugar da realização histórica do Reino.
Na atual situação, grande parte do mundose encontra
em decadência e se acha marcado pelo pecado. Eis por
que o Reino de Deus se constitui contra as forças do
anti-reino. Sempre é preciso vasto processo de liberta-
ção, para que o mundo possa acolher em si o Reino e
chegar a termofeliz.
c) À Igreja é a parte do mundo que, na força do Espíri-
to, acolheu o Reino de maneira explícita na pessoa de
Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado em nossa opres-
são. Conserva sua memória permanente e a consciên-
cia do Reino. Celebra sua presença, implícita, no mun-
do e em si mesma. Possui o modo de interpretar seu
anúncio a serviço do mundo. À Igreja não é o Reino,
porém, sim, seu sinal (concretização explícita) e seu ins-
trumento (mediação) de implementação no mundo?.

Podemos concluir com um texto fundamental da cons-


tituição conciliar Lumen gentium:

4 L. Boff, Iglesia: carisma y poder, Sal Terrae, Santander, 1982, 15. Cf. também LI.
Ellacuría, Conversión de la Iglesia al Reino, Sal Terrae, Santander, 1984.
5 L. Boff, o.c., 15.

40
“Por isso, a Igreja, enriquecida com os dons do seu fun-
dador, observando fielmente seus preceitos de carida-
de, de humildade e de abnegação, recebe a missão de
anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo
no meio de todas as nações, e constitui na terra o ger-
me e o princípio deste Reino. Ela, contudo, enquanto
este vai crescendo pouco a pouco, anseia por vê-lo
consumado, espera com todas as suas forças a sua vin-
da e deseja ardentemente unir-se com seu rei na gló-
ria” (LG 5).

9. Cristologização do querigma:
Cristo morto e ressuscitado

Passemos agora a outro grande modelo de anúncio da


Palavra ou de atividade querigmática, o qual tem por con-
teúdo Jesus como Cristo morto e ressuscitado.
Junto com a pregação centralizada no Reino, temos a
pregação centralizada na morte e ressurreição de Cristo, a
famosa “cristologização” do querigma. O núcleo deste, que
no Jesusterreno é o Reino próximo, se transforma agora,
nos lábios dos apóstolos e discípulos, no fato crístico ou
mistério pascal. Esta mudança começa em Lucas e já se
mostra evidente nos Atos dos Apóstolos. O mensageiro se
transforma na mensagem, o pregador, no que é pregado
ou na pregação. É evidente queisto só acontece depois da
morte e da glorificação de Jesus. Antes isto seria impossí-
vel, se bem que Lucas o antecipe de modo discreto ou im-
plícito. Ele identifica o Reino com a pessoa e o agir de Je-
sus, porém, não com sua morte e ressurreição. Veremos
primeiro os dados e, depois, analisaremos o significado
destes, especialmente no quese refere à querigmática da
Igreja hoje.

41
Os dados são, antes de mais nada, uma série de prega-
ções de Pedro e Paulo que os Atos reúnem. Não são literal-
mente históricos, comonos dizem todos os comentadores,
mas são históricos, sim, já que refletem o conteúdo básico
da pregação apostólica pós-pascal como modelo do que deve
ser a pregação eclesial neste intervalo da vida da Igreja, que
vai desde a ressurreição de Jesus até a sua parusia.
Podemos tomar como exemplo destas pregações
paradigmáticas a que os Atos pôem nos lábios de Pedro
depois de haver este curado um paralítico na porta Formo-
sa do templo (At 3,1-11), quando foi interrogado pelos che-
fes dos sacerdotes, pelos anciãos e pelos mestres da lei
(escribas): /

“Então Pedro, repleto do Espírito Santo, lhes disse:


Chefes do povo e anciãos! Uma vez que hoje somos
interrogados judicialmente a respeito do benefício fei-
to a um enfermo e de que maneira foi curado, seja ma-
nifesto a todos vós e a todo o povo deIsrael: é em nome
de Jesus Cristo, o Nazareu, aquele a quem vós cruci-
ficastes, mas a quem Deus ressuscitou dentre os mor-
tos, é por seu nome e por nenhum outro que este ho-
mem se apresenta curado,diante de vós. É ele a pedra
rejeitada por vós, os construtores, mas que se tornou a
pedra angular. Pois não há, debaixo do céu, outro nome
dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”
(At 4,8-12).

O interessante neste trecho querigmático é que ele coin-


cide basicamente com os modelos analisados até agora,
mantendo com eles estrutura comum. Versa sobre um sinal
e uma citação bíblica: temos de novo um fato e uma palavra

2% J. Roloff, Hechos de los apóstoles, Cristiandad, Madri, 1984, 79-85; R. Pesch,


Die Apostolgeschichte I. Teilband, Zurique, 1986, 42-45.

42
bíblicos como fontes do querigma. O sinal e a cura do para-
lítico, e a palavra bíblica é o salmo 118 (v. 22). Esta palavra
se cumpre ou se realiza mediante o sinal. Ora, o conteúdo
muda. É claramente cristológico, é Jesus de Nazaré, crucifi-
cado e morto, mas ressuscitado por Deus.
O fato da cura é sinal, porque nele se manifesta esta
ressurreição, ou melhor, a presença dinâmica, vitalizante,
transformante do ressuscitado. Manifesta-se comosalvação.
O lugar da basileia o ocupa Cristo morto e ressuscitado. Ele
é a basiléia ou Reino, melhor ainda, o Reino se aproxima
porque Jesus foi ressuscitado, e, mediante sua morte e res-
surreição, salva o homem tanto em seu espírito quanto em
seu corpo. O núcleo do querigma cristológico transmitido
por Pedro é praticamente o mesmo que o do credo ou pro-
fissão de fé apresentado por Paulo em 1Cor 15,3-5 como
tradição básica da Igreja apostólica:
“Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mes-
mo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segun-
do as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze”.

Sustentamos, pois, que o credo recitado ou proclamado


na celebração litúrgica possui o mesmo conteúdo que a pre-
gação eclesial evangelizadora. Basicamente coincidem o sím-
bolo da fé e a homilia em seu núcleo temático. Por outro lado,
Paulo nos diz, neste mesmo capítulo, que este é também o
conteúdo de sua atividade querigmática e evangelizadora:
“Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei,
que recebestes, no qual permaneceis firmes(...). Por con-
seguinte, o que pregamos,tanto eu quantoeles, é o que
vós crestes” (1Cor 15,1.11).

Prossigamos, no entanto, com os outros dados que os


Atos nos oferecem. Além da pregação de Pedro, encontra-
mos neste livro o relato de outras quatro pregações, postas

43
também nos lábios de Pedro (a do dia de Pentecostes: 2,14-
36; a que vem imediatamente depois da cura do paralítico
no templo: 3,12-26; a que ele faz diante do Sinédrio depois
de preso: 5,29-32, e a que acompanha o batismo da família
de Cornélio: 10,34-43), com as mesmas características que
acabamos de ver. Ora, as quatro são cristo-pascais, giram
em torno do mistério pascal de Cristo: sua morte e ressur-
reição. Tambem trazem em sua estrutura a referência a um
ou a vários sinais e a um texto da Escritura. Finalmente, os
Atos põem nos lábios de Paulo outro texto de pregação
muito parecido com os de Pedro, mostrando deste modo
que os apóstolos usam a mesma pregação; e que, portanto,
apóiam com sua autoridade a pregação que era habitual,
nas comunidades conhecidas por Lucas quandoescreve sua
obra. Trata-se do episódio de Antioquia da Pisídia, onde
Paulo fala e ensina na sinagoga judaica (At 13,16-43).
Quanto ao mais, o número de passagens das cartas
paulinas que se referem à pregação e ao evangelho apostó-
licos concentrando-se em Cristo e em sua páscoa (morte,
ressurreição e efusão do Espírito) é muito grande”. Ao in-
vés disto, o Reino como objeto de pregação se acha ausente
tanto nas cartas paulinas quanto no quarto evangelho?.

10. Dois querigmas?


Relação entre as duas fórmulas querigmáticas
Convém refletir sobre esta diversidade que o núcleo
da pregação no NT apresenta: Reino de Deus, de um lado, e
Cristo morto e ressuscitado, de outro. Trata-se, porventura,

” Sem pretendermos ser exaustivos, eis uma amostragem: Rm 1,14. 9; 2,16;


15,19; 1Cor 1,17.23; 2,2; 2Cor 2,12; 4,3-4; 10,14-16; 11,4; Gl 1,6-7; Fl 1,18; Ef 3,6-9, 1 Ts
1,9-10; Hb 1,1.3.
28 Para todo o capítulo, ver a obra clássica, embora antiga, de C. H. Dodd, La
predicación apostólica y su desarrollo, Cristiandad, Madni, 1974.

44
de dualidade? De real diversidade? Ou efetivamente é o
mesmo, apenas expresso com fórmulas diversas que se dis-
tinguem entre si, como o explícito do implícito?
Até pouco tempoatrás, os teólogos sistemáticos, os pas-
toralistas e o exegetas demonstraram a tendência de fazer
sua esta última resposta. Hoje, percebemosque, verdadeira-
mente, esta posição tem sua razão, mas peca por ingenuida-
de, porque passa por alto certos erros a que pode dar lugar.
De fato, por não haverem analisado a questão com
maior rigor, surgiram desvios graves tanto na praxe da pre-
gação, quanto na própria vida cristã.
É mister dizer, em primeiro lugar, que, efetivamente,
as duas formas querigmáticas possuem estreita vinculação;
tão estreita que se podem converter em equivalentes, sem-
pre que sejam bem entendidas: o Reino de Deus se aproxi-
ma mediante a pessoa de Jesus, o Cristo. As ações de Jesus
são os melhores sinais do Reino. O Reino começa a chegar
quando Cristo chega e começa a agir cumprindo as pro-
messas messiânicas. Reino e messianismo, Reino e messias
já constituem unidade desde o AT. O Reino irrompe graças
ao início dos tempos messiânicos, mediante a vinda da pes-
soa do messias em Jesus de Nazaré. As ações próprias do
Reino de Deus e as do messias coincidem plenamente: o Rei-
no remete ao messias e o messias torna o Reino realidade.
Em outras palavras: é preciso considerar a pessoa de
Cristo, sua natureza, sua vida e sua praxe, para ver como aí
se realiza o Reino de Deuse, portanto, o que é este Reino.
Sobretudo, à medida que a pessoa de Jesus se vai revelan-
do, evidencia-se, cada vez mais claramente, sua relação es-
pecial com Deus. Aí se mostra a natureza íntima do Reino
como comunhão dos homens com Deus e dos homens en-
tre si, ou seja, ele se mostra como deificação, reconciliação e
chamado para ser povoe família de Deus, fraternidade uni-
versal, já que filhos de um mesmo Pai pela união com o
Irmão maior, o Filho unigênito, Jesus Cristo.

45
Eis uma primeira explicação deste fato da dupla forma
do querigma: a cristologização do querigma do Reino ou a
expressão frequente de que Jesus é o Reino. Deste modo
vemos, outrossim, com nova clareza a estreita relação que
une em sua diversidade as duas homilias analisadas no prin-
cípio de nosso ensaio (Mc 1,14-15 e Lc 4,16-21). Graças ao
duplo querigma que ambas reúnem, chega-nos o dado fun-
damental da tradição bíblica de que o Reino se aproxima
através dos tempos messiânicos, mediante o cumprimento
das promessas messiânicas, na pessoa do Messias, e de que
o messiânico e a mediação é o ápice do Reino. 7
Tudo o que foi dito anteriormente, porém, é insufi-
ciente. Dever-se-á observar que ainda não dissemos nada
sobre a morte e ressurreição de Jesus, elemento fundamen-
tal da cristologia do querigma. Foi por isso que a chama-
mos fórmula pascal, deixando esta reflexão posterior, por-
que contém dificuldades especiais que explicam o fato de
se terem introduzido deformações, equívocos e erros no es-
quema da pregação cristã.
Antes de tudo é mister dizer que centralizar a prega-
ção em Cristo morto e ressuscitado tem sido uma das gran-
des contribuições do Vaticano II?. O fato de haver ele colo-
cado no cerne do querigma o mistério pascal, restabelecen-
do esta grande tradição neotestamentária, representou im-
portantíssima revitalização da pregação cristã.
Antes se falava nos púlpitos, como na teologia, quase
que exclusivamente da redenção como de Cristo. Mas a re-
denção é uma categoria claramente parcial. Expressa o
terminus a quo do que Cristo nosliberta, o ponto de partida,
o pecado, porém, não explícita o terminus ad quem, o destino
final deste resgate trazido por Cristo: vida nova da totali-
dade da pessoa, que é aquilo que indicam a ressurreição e o
mistério pascal ou páscoa (passagem da morte para a vida

29 Cf. SC 6; 35,2; 47; 61; 102 e 106.

46
plena em Deus). Foi por isso que a vigília pascal tinha pou-
ca importância na vida do povo cristão e que a sexta-feira
santa vinha sendo, durante tanto tempo, o ponto de
gravitação da semana santa. Mais do que o tríduo pascal,
tinhamos uma semana santa limitada basicamente à quin-
ta-feira e à sexta-feira santas.
Com base nesta recuperação do querigma, a pregação
se transforma em ato realmente jubiloso. Restabelece em
toda a sua profundidade a natureza de notícia alegre, de
boa nova, que ela havia perdido. Toda ela transpira alegria,
transforma-se em festa e celebração, sendo iluminada pelo
gozo da manhã da ressurreição. Não só o anúncio do Natal,
do nascimento natalino, é anúncio de grande alegria (Lc 2,10),
o é sobretudo o da ressurreição (Mt 28,8; Lc 24, 41;Jo 20,20).
O temor, a angústia, os sentimentos depressivos e in-
clusive os sádico-masoquistas, que com tanta frequência
anuviam as palavras do servidor da Palavra, seriam afu-
gentados se realmente se tomasse a sério o fato de que o
centro do ministério querigmático é o anúncio pascal.
Podemosrepetir o que dissemos no princípio: o misté-
rio pascal deve ser o horizonte e o contexto de toda prega-
ção, de toda homilia, seja qual for seu conteúdo concreto.
Onde podem estar a dificuldade e até o perigo da guina-
da pascal? Em primeira aproximação, o perigo consiste em
distanciar a fórmula cristológica e pascal da fórmula do Rei-
no, isto é, em separar o Cristo morto e ressuscitado do Reino
que chega. Certamente, parece que nos discursos de Pedro e
Paulo, que analisamos, já ocorre esta separação, pois neles
não se fala do Reino. Entretanto, não acontece o mesmo no
NT, que conservou as duas fórmulas sem eliminar uma em
favor da outra. Eis um critério fundamental para toda teo-
logia bíblica em geral e para nossa questão em particular.
O cânon e sempre o critério básico em teologia e em
exegese. Alguns textos bíblicos são explicados por outros,
algumas passagens interpretam e completam outras. O

47
importante é ter o sentido da totalidade.Isto significa enten-
der o sentido do cânon: levar em conta todos os livros decla-
rados pela Igreja como inspirados, como palavra de Deus.
Concretamente falando, na obra de Lucas observamos
este equilíbrio, ao manter ele as duas fórmulas do querigma.
Apesar de modificar a primeira pregação de Jesus,
cristologizando-a (Lc 4,16-21), segundo a linha seguida, reú-
ne a tradição mais primitiva de que Jesus anuncia o evan-
gelho do Reino: “Devo anunciar também o Reino de Deus
às outras cidades, porque para isto fui enviado” (Lc 4,43).
Pouco adiante, assemelha-se ainda mais a Mc 1,15 ea Mt
4,17, quando põe nos lábios de Jesus o que os setenta discí-
pulos enviados por ele devem pregar: “Dizei-lhes: “O Reino
de Deus está perto de vós” (Lc 10,9).
O mesmo acontece nos Atos, apesar dos textos pre-
dicacionais que o livro transmite — tanto de Pedro quanto
de Paulo —, plenamente cristológicos e pascais, pois que,
no fim de toda a sua obra, faz referência surpreendente ao
conteúdo da atividade evangelizadora e querigmática de
Paulo em Roma, meta suprema teológica e geográfica de
sua missão (a capital, o coração da oikumene de então):
“Paulo ficou dois anos inteiros na moradia que havia
alugado. Recebia todos aqueles que vinham visitá-lo,
proclamando o Reino de Deus e ensinando o que se
refere ao Senhor Jesus Cristo com toda a intrepidez e
sem impedimento” (At 28,30-31).
E, pouco antes, havia dito:
“Desde a manhã até a tarde, ele lhes fez uma exposi-
ção, dando testemunho do Reino de Deus e procuran-
do persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela Lei de
Moisés quanto pelos Profetas” (At 28,23).

O equilíbrio, a síntese e a harmonia das duas linhas


querigmáticas são perfeitos. Ambas são respeitadas, reuni-

48
das, conservadas e transmitidas. Nem a primeira, por ser
mais antiga, prevalece sobre a última, nem esta, por ser mais
recente, elimina a primeira. Esta é a orientação que devemos
seguir.

11. Mistério pascal e Jesus histórico

A teologia da libertação fez observações interessantes,


com fino sentido crítico, em torno da problemática no capí-
tulo anterior. Chegou até a afirmar que o Reino de Deus é
categoria mais central do que a de Cristo, que serve melhor
para organizar o conjunto da teologiaӼ. Seria preciso dizer
o mesmo a propósito da pregação?
Vejamos, em primeiro lugar, as razões para esta afirma-
ção. À razão fundamental reside em que a ressurreição de
Jesus pode ser mais facilmente mal-entendida do queo Rei-
no de Deus. Realmente, sofre-se deste mal-entendido quan-
do ela é concebida como fato situado exclusivamente no
além; quando, por meio dela, Cristo é remetido ao mundo
celeste, como se, subindo ao céu e havendo-se despedido,
se tivesse afastado deste mundo,desta terra, desta história.
Então, a ressurreição perde toda a sua força para mostrar
como se deve viver na história e influir sobre ela.
Efetivamente, a ressurreição, em sua realidade imedia-
ta, apresenta-se como algo supra-histórico, imperceptível
diretamente pelos sentidos. Então, J. Sobrino comenta, ela
possui certamente força, e grande força, para refletir a uto-
pia final, porém, não tanto para mostrar de que modo é pre-
ciso viver desde agora e encaminhar-se para esta utopia.
Umaorientação unilateral para a ressurreição pode fomen-

*%J. Sobrino, “Centralidade del reino de Dios en la teologia de la liberación”,


em 1. Ellacuría-J. Sobrino (orgs.), Mysterium liberationis..., I, Madri, 1990, 461-
510.

49
tar individualismo sem povo, esperança sem praxe, entu-
siasmo sem seguimento; em resumo: transcendência sem
história. Não foi este o erro da comunidade de Corinto?
Não se trata, acrescenta J. Sobrino, de postergar para
segundo plano o querigma da ressurreição, mas de situá-lo
em seu contexto mais apropriado, que é o do Reino. O que
tal contexto traz consigo de mais amplo do que o Reino é
sua capacidade de unificar, sem separação nem confusão,
transcendência e história, superando perigosos dualismos
e oferecendo avaliação para a realização do transcendente
na história.
O Reino de Deus leva a descobrir de maneira direta o
anti-reino, o mundo do pecado, visto também unitariamente
como mal histórico, ao mesmo tempo influindo no trans-
cendente. O Reino de Deus implica e conecta, de modo ex-
plícito, direto, transcendência e história, salvação e liberta-
ção, esperança e prática, o pessoal e o comunitário. Por ser
categoria tão global, corresponde perfeitamente às teolo-
gias atuais que, como a teologia da libertação, pretendem
ser integradoras e unitárias a propósito da realidade.
A realidade em que surgiu a esperança do Reino e do
messias dentro da história de um Israel oprimido, exilado e
humilhado, tem grande afinidade com a situação atual do
mundo. Diante do pavoroso crescimento do Terceiro Mun-
do como mundo de miséria, exploração, servidão do ho-
mem, a categoria do reino parece a mais imediatamente
adequada para teologizar esta realidade atual, para
interpretá-la e esclarecê-la com base na teologia e na Bíblia.
Não obstante, a teologia da libertação reconhece a im-
portância e o significado decisivo do querigma da ressur-
reição. No mesmo artigo, J. Sobrino afirma que a ressurrei-
ção de Jesus, entendida como primícias da ressurreição uni-
versal, possui elementos fundamentais para ser categoria
teológica central: é a plenificação e salvação absolutas en-
quanto libertação da morte. Suscita a mais radical esperan-

50
ça, para além da morte e contra a morte, mas também dian-
te de toda e qualquer opressão. Se Deus é capaz de libertar
da morte, maior poder ainda terá diante de toda e qualquer
escravidão. Representa a ultimidade e a universalidade da
revelação de Deus. Expressa não só o poder de Deus sobre
o nada, porém, igualmente, o triunfo da justiça. Oferece es-
perança, de maneira especial, a todas as vítimas deste mun-
do, aos crucificados da história, comoJesus.
Por isso, a ressurreição é símbolo não só de esperança
individual, mas ainda coletiva. Jesus é o primogênito, as
primícias de todos os que ressuscitam depois dele*!. Enfim,
ela valoriza a realidade material e corporal, plenificante, da
ressurreição, o sentido unitário, não dualista, da pessoa e
da realidade criada que encerra.
Voltando mais uma vez à questão da relação existente
entre Reino e Jesus morto e ressuscitado, podemos acres-
centar novo aspecto a esta equivalência que ocorre, recor-
rendo a uma distinção*?. O Cristo ressuscitado é o Reino e
não o é. Depende do modo como entendemos o primeiro
termo da comparação. Concretamente, devemos entender
Cristo e Cristo ressuscitado não como pessoa individual,
porém, sim, corporativa, isto é, como plenitude que assu-
me todos os homens incorporados a ele. Esta é a vontade
suprema e definitiva de Deus e, portanto, a quintessência
do Reino. Trata-se, em ultima análise, da humanidade re-
novada que, por meio de Cristo, tendo-o como Cabeça, se
converte na mediação final do mistério de Deus.
O Reino, pois, não consiste no meu contato individual
com Cristo, quer nesta vida, quer depois da ressurreição,
mas na plenitude de todos em Cristo, realizando o desígnio
do Pai. Cristo individual, isolado, não é a vontade suprema
do Pai, porém, sim, Cristo inserido dentro de uma

% Cl 1,18; Ap 1,5; 7,9-17.


*2J, Sobrino, Ressurrección de la verdadera Iglesia, Sal Terrae, Santander, 1980.

51
relacionalidade com o Pai e com o Reino do Pai. É a media-
ção adequada do mistério da vontade de Deus.Isto não pode
ser feito por pessoa individual, mas corporativa, como o é
Cristo enquanto Cabeça deste Corpo total que será a huma-
nidade redimida, transfigurada, recriada, deificada. O con-
trário seria o cristianismo que certas teologias criticam hoje
com razão. Boa formulação desta visão sintética se encon-
tra em 1Cor 15:

“A seguir haverá o fim, quando Cristo entregar o reino


a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado,
toda Autoridade, todo Poder. (...) E, quando todas as
coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio
Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para
que Deusseja tudo em todos” (1Cor 15,24.28).

De fato, na prática, não se tem entendido o mistério


pascal nem Cristo ressuscitado dentro deste sentido amplo
e global, que a categoria e o contexto do Reino lhe confe-
rem. Daí a grande quantidade de mal-entendidos que se
infiltraram na pregação e na própria vivência do movimen-
to litúrgico, até mesmo depois do Vaticano II. Tem faltado
uma verdadeira síntese das duas categorias (Reino e Cristo
crucificado), dos dois querigmas.
Exemplo importante, que confirma o diagnóstico, é o
testemunho de um dos exegetas mais importantes da atuali-
dade, G. Lohfink. Este confessa que ele próprio foi vítima de
parcialidades no modo de entender o mistério pascal?: “Eu
mesmo acreditava que a parusia de Cristo ocorria na morte
do homem, momento em que o tempo transfigurado trans-
cende a história”. E acrescenta: “Mas esta interpretação é par-
cial. A Bíblia ensina que o Reino de Deusjá adquire aqui na
terra configuração. Aqui, nesta história, irrompe o tempo pro-

33 G. Lohfink, a.c., 1-15.

52
metido e o crente participa da morte e ressurreição de Cristo,
não apenas no fim da vida, porém, desde o seu batismo, quan-
do passa a viver vida nova diante de Deus”. Insiste em que
não se pode dizer, sem mais nem menos, que o Reino veio na
pessoa de Jesus. O Reino não pode vir em uma pessoa indivi-
dual: ou aparece como configuração social ou não aparece.
Um último perigo que ameaça o querigma de Cristo
ressuscitado é o de desconectá-lo do Jesus histórico e, por-
tanto, de sua prática e de sua atividade sobre a realidade
mundana atual, transformando-a em linha e direção orien-
tadas para o Reino. Acaba sendo separação do Reino*. Já
vemoseste perigo nas comunidades helenistas cristãs. Nos
hinos cristológicos compostos por elas, acentua-se a
entronização de Jesus como Senhor com poder e domínio,
sem se falar do Jesus histórico em seu aspecto concreto. A
comunidade de cristãos parece já viver no céu, e a salvação
é vista no presente como total liberdade.
Isto se reflete especialmente na comunidade de Corinto,
pelo que se percebe nas duas cartas de Paulo a ela dirigidas.
Nesta comunidade, vive-se o entusiasmo religioso comoli-
berdade diante de todo compromisso com os irmãosneces-
sitados. Não se compartilham os bens com eles. Cristo res-
suscitado e entronizado se transforma em algo tão impor-
tante e exclusivo que desaparece o interesse pelo Jesus his-
tórico. A ênfase recai no Espírito de Cristo ressuscitado, pre-
sente na comunidade. A união com Cristo não se realiza
mediante o seguimento, mas apenas pela participação nos
sacramentos. Os cristãos já vivem no céu com Cristo. É o
“presentismo” cultualista, epifânico e sacramentalista. Pa-
ralelamente ao esquecimento do Jesus histórico, ocorre es-
quecimento da terra, de seus problemas. Idealizam-se as
relações sociais, ignorando suas divisões.

*J. Sobrino, Jests en América Latina, Sal Terrae, Santander, 2º edição, 1985; E.
Kãsemann, La Ilamada a la libertad, Sígueme, Salamanca, 1972.

53
A reação de Paulo consiste em restabelecer o Jesus his-
tórico, concentrando-se no que este possui de mais concre-
to e escandaloso: sua cruz (1Cor 1,23). A cruz não é mero
episódio que conduz à ressurreição, porém, sim, a outra face
que ela possui. Não se pode compreender uma sem a outra.
Como diz E. Kasemann, o ressuscitado continua trazendo
em sias feridas dos cravos do crucificado. Do contrário, não
seria idêntico a Jesus, não seria o próprio Jesus. Paulo repi-
sa quea fé cristã não é somente proclamação cúltica do Res-
suscitado, mas também seguimento de Jesus e configura-
ção com ele (Rm 6,3). Para os coríntios, viver como ressus-
citado significava viver fora deste mundo. Paulo, corrigin-
do-os, diz-lhes: viver no presente como ressuscitadose vi-
ver o caminho da cruz, o caminho do serviço e da auto-
entrega.
Pode-se fazer a seguinte observação: ao escreverem os
evangelhos, fato que ocorre vários anos depois da época
em que se esteve proclamando o querigma pascal, seus au-
tores se propõem,entre outras coisas, esta finalidade bási-
ca: evitar o perigo de um Cristo glorioso desligado do Jesus
terreno; evitar uma pregação de Cristo ressuscitado desti-
tuída desta encarnação anterior na história que Jesus terre-
no realiza.
Segundo o exegeta J. Oriol Tufi, Marcos, o primeiro
evangelista em sentido cronológico, não se limita a repetir
o querigma da morte e ressurreição deJesus, que constituía
o núcleo mais importante da pregaçãocristã primitiva”. O
anúncio do acontecimento pascal não abrangia tudo o que
acreditava dever comunicar a seusleitores. As tradições orais
e outros escritos sobre Jesus, conservados até então, parece
que iam ficando esquecidos ou se desconectavam do nú-
cleo central da morte e ressurreição de Cristo. Por isso,
Marcos elabora obra que reúne todos estes elementosunifi-

35 7. Oriol Tufi, Jesús en comunidad, Sal Terrae, Santander, 1988.

54
cadose centralizadosno fato pascal. Chama a atenção a gran-
de extensão que em seu livro ocupa a paixão de Jesus. Mar-
cos inaugurou forma nova de apresentar a mensagem cris-
tã, a forma que ele chama “evangelho”. Este é o título que
ele dá à sua obra (Mc 1,1). Foi preciso transcorrer quase um
século para que a palavra “evangelho” passasse a designar
os livros dos Sinóticos e, não simplesmente, a pregação da
boa nova, como acontecia até então. Não se trata de inova-
ção total. De fato, o que o livro faz é situar o querigma em
seu verdadeiro contexto: o do Jesus terreno. Mantém sua
continuidade com ele. É também, comoele, profissão de fé
e não biografia. De qualquer forma, a verdadeira profissão
de fé só chega no fim, quando o centurião romano confessa
ao pé da cruz: “Verdadeiramente, este homem era filho de
Deus” (Mc 15,39). O anúncio da ressurreição enfatiza que
Jesus de Nazaré aquele que é anunciado como crucificado,
é o ressuscitado (Mc 16,6).
Por conseguinte, a finalidade da composição e publi-
cação do livro evangélico escrito por Marcos é a de comple-
tar as confissões de fé entendidas em desconexão com o Je-
sus terreno. Como? Esclarecendo a identidade do Jesus con-
fessado. Só pode ser confessado como crucificado, isto é,
como alguém que se entregou para a reconciliação dos ho-
mens, como alguém comprometido com sua luta pela sal-
vação libertadora dos irmãos oprimidos. A confissão cristã
de Jesus e, portanto, o núcleo de toda pregação, é a do
centurião. A cruz e sua chave fundamental.
A comunidade de Marcos, em que ele escreve ou para
a qual ele escreve, deve ter sido um grupo de cristãos entu-
siastas que se deixavam ficar parados diante da presença
gloriosa do Jesus ressuscitado. Viviam uma cristologia
triunfalista, parcial. Marcos, à luz da cruz e da morte de
Jesus, elabora a categoria de seguimento (Mc 8,34-35), como
concretização da fé que pode corrigir estas deformações na
vivência e na celebração da ressurreição.

DO
Por isso, o anúncio da ressurreição feito pelo jovem
vestido de branco no fim do evangelho equivale a um con-
vite para voltar à Galiléia, ao lugar do chamado de Jesus,
para poder começar um seguimento novo que, agora sim,
continue e seja o que Jesus quer.
A comunidade é convidada a empreender de verdade
o caminho de Jesus. Só depois da morte de Cristo será pos-
sível iniciar um seguimento que não acabe no abandono
geral por parte dos discípulos no episódio do Getsêmani.
Este é o sentido do restabelecimento da vida terrena de Je-
sus que se encontra em Marcos e que, paralelamente, temos
que levar em conta ao pregar a ressurreição: pôr diante dos
olhos dos crentes Jesus que se encaminha para o Calvário e
a morte: o fio condutor do evangelho consiste em caminhar
da Galileia para Jerusalém, em meio a oposição e persegui-
ção crescentes, que culminam na crucifixão no alto do Gól-
gota. Somente ao pé da cruz poderão fazer a confissão defé.
A mensagem de Marcos se aproxima da que temos em
1Cor 1-4, onde Paulo também centraliza sua pregação em
Jesus crucificado. Nesta mesma linha se situa a primeira
carta de João: ela enfatiza a identidade terrena de Jesus? e
insiste em que o messias é Jesus (e não só o contrário)”.
E. Schillebeeckx, em seu último livro sobre Jesus, diz o
seguinte: “Não se pode separar a morte ou a ressurreição
de Jesus de sua vida. E o caminho de sua vida que o leva a
morrer. Quando se extrapola a morte e ressurreição de Je-
sus como núcleo da mensagem cristã, silencia-se o conteú-
do profético do conjunto da manifestação de Cristo.Isto seria
o querigma paulino, sem os quatro evangelhos. E Paulo é
canônico dentro dos limites de todo o NT”.
% Cf. 1Jo 2,22; 4,15; 5,1-5.
7 Cf. 1Jo 4,2: “Nisto distinguireis se são de Deus: quem confessa que Jesus é o messias
feito Homem é de Deus” e Jo 5,6: “E ele, Jesus Cristo, quem veio com águae sangue”.
*8 E. Schillebeeckx, Menschen. Die Geschichte von Gott, Zurique, 1990, 172;
J.Sobrino possui em abundância textos na mesma linha em seu últimolivro cris-
tológico, Jesucristo libertador, Trotta, Madri, 1991, 86.

56
A conclusão prática que devemos tirar das análises
anteriores é a seguinte: o núcleo da pregação é Cristo morto
e ressuscitado, é o misterio pascal. Assim sendo, precisa-
mos ter cuidado para que o anúncio da ressurreição não se
separe do anúncio da morte e que, por sua vez, o anúncio
da morte se apresente comoo ponto de encontro com a vida
terrena de Jesus. Temos que situar o mistério pascal como
ápice da vida do Jesus histórico ou terreno, apresentando-o
dentro deste contexto e sobre este subsolo em que mergu-
lha suas raízes hermenêuticas.
Na homilia isto não é difícil. De fato, a leitura que a
precede imediatamente sempre é uma passagem do evan-
gelho, que conta algum episódio desta vida terrena. O que
se deve fazer é situar tal episódio como antecipação do
mistério pascal e o mistério pascal como o ápice e o sentido
último de tal episódio. Assim, o querigmacristão será fiel ao
que deve ser seu núcleo permanente: Cristo morto e ressus-
citado. Deve haver, pois, em toda homilia uma circularidade
ou círculo perfeito, isto é, movimento que vai do Jesus terre-
no ao Jesus ressuscitado e do ressuscitado ao terreno.
Diante das reflexões anteriores fica claro que a morte
de Jesus na cruz constitui realidade central do querigma. A
morte de Jesus se transforma em acontecimento cardeal
porque é o sinal máximo e o resultado final de todo o seu
compromisso com os perseguidose as vítimasda injustiça,
da impiedade e do mal; sua solidariedade com os últimos
deste mundo. A morte leva à sua plenitude a fidelidade de
Cristo a Deus que o envia e à missão que lhe confere: ser fiel
à humanidade. Revela a perfeição do amorde Jesus ao Pai e
aos irmãos. É o paradigma detodaa sua vida.
Por isso, é fonte de perdão e de reconciliação. É o que
quer a fórmula cristológica e pascal: “Morreu por nossos
pecados” (1Cor 15,3b).
Não obstante, aqui também, como dissemosda ressur-
reição, é necessário manter a conexão com toda a vida

97
terrena de Jesus, com toda a sua trajetória anterior. A ação
salvífica de Jesus, inclusive o conceder o perdão, se vai reali-
zando ao longo desta vida terrena, e não só a partir da cruz.
Jesus oferece o perdão e perdoa os pecadores durante
sua vida pública. O Reino que chega por meio de Cristo
consiste, entre outras realidades, na doação do perdão, quer
expulsando os maus espíritos (Mc 2,5), quer convidando os
pecadores para a sua mesa (Mc 2,16).
Quando Jesus anuncia que o Reino se aproxima (a paz,
a reconciliação, o perdão...), fá-lo de modo incondicional.
Isto quer dizer: também Deus não estabelece condição al-
guma para esta chegada do Reino; por exemplo, a condição
de que Cristo morra na cruz. Por isso, as palavras que atri-
buem o perdão à morte na cruz, ainda que apareçam nos
lábios de Jesus, são pós-pascais. Do contrário, suporiam
contradição em Cristo (cf. Mc 10.45 ).
O que é, sim, muito possível é que Jesus, no fim de sua
vida, prevendo morte cruenta iminente e percebendoo va-
lor salvífico deste ato, pelas razões que já indicamos, lhe
atribuísse este sentido último, supremo, de perdão e salva-
ção (por exemplo, na última ceia). Pôde ajudá-lo nesta to-
mada de consciência a profecia do Servo de Javé, queatri-
bui à morte do justo a justificação de “muitos”.
Portanto, a necessidade da morte de Jesus para o per-
dão surge como é de caráter histórico. Não reclama “satis-
fação” penal, vindicativa, expiatória, como certas teologias,
hoje superadas, afirmaram. Mas a morte era necessária ou,
se se prefere, inevitável, já que a ação de Jesus em favor da
causa de Deus e do homem implicava o máximo risco, mais
ainda, o máximo confronto, devido à situação histórica de
pecado e afastamento de Deus da humanidade”.

3 Cf. Is 53,11-12; temos algo de semelhante ao quefoi dito sobre a consciência de


Jesus a propósito do Reino e sobre a profecia de Is 52,7.
*% O. González de Cardedal, La soteriología contemporânea, Salmanticensis3 (1989)
267-317, J. González Faus, Sobrelas plegarias eucarísticas. Para continuarla reforma

8
Enfim, a morte de Jesus é central no querigma porque,
através dela, se nos revelam não somente as entranhas mais
profundas da personalidade e da missão de Jesus, porém,
igualmente a realidade única do Deuscristão. Como diz a
atual teologia, em Cristo o Pai participa na dor e na morte
dos seres humanos. À apatheia e a imutabilidade do Deus
grego experimenta inflexão decisiva: Deus Pai não fica alheio
à dor nem à morte de seu Filho. Pelo contrário, morre me-
diante a morte deste, se bem que distinguindo-se dele na
diferença das relações trinitárias. Por isso, ao mesmo tem-
po que o acompanha na morte, pode ressuscitá-lo por meio
do Espírito. A morte é vencida não de fora para dentro nem
por causa do afastamento, porém, de dentro para fora e
partindo da solidariedade mais comunitária*!.
Por último, hoje detectamos outro perigo na interpre-
tação do querigma, não tanto de cunho pascal, mas como
crístico ou cristologizado. Tal perigo se aninha no reto en-
tendimento do que Cristo significa em seu sentido mais
verdadeiro. Aqui também houve desvios deformantes que
voltam a mutilar a mensagem em seu sentido mais verda-
deiro*?.
Se temos que pregar que o Reino chega com Jesus o
Cristo e que o Cristo morto e ressuscitado é o centro de nos-
sa fé, temosqueter claro o que significa o sujeito desta afir-
mação, Cristo. Devemos lembrar-nos de que Cristo não é
apenas nome próprio, que até substitui o nome deJesus,
porém, sim, de que se trata de título (como costumadizer a

litúrgica, Phase 180 (1990), 506-517; H. Merklein, “Der Siihnetod Jesu nach dem
Zeugnis des Neuen Testaments”, em Keinz-K. Kienzler-J. Petuchowski (orgs.),
Versôhnun in júdischer und christlicher Liturgie, Friburgo, 1990, 155-184; Id. Jesu
Boschaft von der Gottesherrschaft, Stuttgart, 1983, 139-142; H. Schúrmann, Gottes
Reich-Jesu Geschick, Friburgo, 1983, 189-240.
* Representantes desta teologia são H. U. von Balthasar, J. Moltmann e E.
Jungel. Bis síntese sobre o estado da questão: E Rodríguez Garrapucho,La cruz de
Jesús y el ser de Dios, Publicaciones de La Universidad Pontificia, Salamanca, 1992.
* Sigo de perto o artigo de J. Sobrino, “Mesías y mesianismo. Reflexiones
desde El Salvador”, em Concilium 245 (1993), 159-170.

59
cristologia) com significado transcendental, o significado
messiânico: Jesus é o Messias que morre e ressuscita.
Ora, é claro que, em temposantigose recentes, tem ha-
vido uma “desmessianização” de Cristo ou, se se julgar me-
lhor, uma “desmessianização” de Jesus. Talvez, por causa do
complexo antijudaico que a Igreja sofreu e das influências
helenizantes seculares, o sentido do messiânico vem perden-
do sua concretude desde as próprias origens da nossa fé.
Depois da ressurreição, compreende-se Jesus como sal-
vador e, por isso, também se chama messias. Mas a salva-
ção de que é portador não parece incluir um elemento cen-
tral do messianismo: a salvação é também salvação históri-
ca de um povo oprimido externa e internamente (não é ape-
nas algo transcendente). Cristo deixa de ser apresentado
como o messias que, sobretudo depois do exílio, surge cor-
relacionado com a esperança dos pobres, como o rei justo
que, por fim, fará justiça, defenderá o fraco (o órfão, a viú-
va, o emigrante) e conseguirá a reconciliação e a frater-
nidade.
À esperança de salvação encarnada na história vai sen-
do substituída pela esperança de salvação transcendente e
se vê reduzida a perdão interiorista dos pecados, além de
muito individual. Não mais se trata das salvações plurais
de corpo e alma, que são mencionadas nos evangelhos, po-
rém, ocorre concentração reducionista na salvação interior.
O destinatário desta salvação não é mais o povo, maso indi-
víduo. Parece desaparecerem as esperanças concretas dos
povos comotais, o que hoje cnamaríamos esperanças soci-
ais, tão essenciais ao messianismo bíblico e, outrossim, ao
neotestamentário: esperanças de que cesse a escravidão e
haja liberdade, de que cesse a guerra e haja paz, de que cesse
a repressão e haja justiça, enfim, de que cesse a morte e de
que haja vida.
Percebe-se, pois, que, igualmente aí, se infiltrou um
espiritualismo desencarnado na maneira de entender a
60
cristologização, isto é, a messianização do carisma. Isto o
faz sofrer forte dualismo e cria tensão violenta de tipo
marcionita entre o Antigo e o Novo lestamento.
Jesus não vem espiritualizar o Antigo Testamento nem
seu messianismo, como amiúde se diz; vem para realizá-lo
mediante sua pessoa no cumprimento das promessas
messiânicas veterotestamentárias?. É evidente que Jesus
traz algo decisivo na manifestação do projeto messiânico:
descarta o tipo de messias que se apresenta como rei políti-
co e guerreiro ou comofigura particularista e nacionalista;
ele o substitui pelo “servo sofredor”. E, sobretudo, mani-
festa e revela a presença do Filho na humanidade do mes-
sias, fá-lo sacramento pessoal do Pai.
Observar-se-á que esta proposta que a cristologia faz
de “remessianizar” a pessoa de Jesus e, por conseguinte, o
querigma que o anuncia, isto é, de devolver-lhe seu verda-
deiro sentido messiânico, coincide com a outra tendência já
exposta, de recuperar o Jesus histórico e reequilibrar o anún-
cio da ressurreição com a pregação da cruz.

12. A mensagem da ressurreição

Pode ter surgido a impressão, nos itens anteriores, de


que tratávamos deste eixo de toda pregação cristã, que é a
ressurreição, de maneira um tanto estreita, como que pon-
do limites. Na realidade, dedicamos bastante esforço de

* A conhecida distinção feita por Gershom Scholem, o prestigiado historiador


da mística judaica e destacado pensador do judaísmo contemporâneo, entre o
messianismo judaico, que ocorre na praça pública, no visível, e o messianismo
cristão, que sucede no âmbito do invisível, isto é, na interioridade espiritual da
alma, é invalidada e sem base real à luz dos resultados não só da teologia bíblica
atual, mas também de teologias católicas recentes como a teologia política e a
teologia da libertação. E interessante constatar que as teses a que conduzem as
pesquisas bíblicas coincidem cada vez mais com as destas teologias contemporã-
neas, cf. G. Scholem, Judaica, [s/e], Frankfurt, 1968, 1-14.

61
preferência em dizer o que ela não é ou como não deve ser
apresentada.
Falta agora, depois de mostrados os diferentes obstá-
culos, expor do modo mais positivo possível o que quer di-
zer a ressurreição como centro da fé e da querigmática, da
homilética, da catequética..., enfim, de toda a teologia. As-
sim, constatar-se-á nitidamente que qualquer censura feita
à ressurreição, sob pretexto de espiritualismo desistorizado,
corresponde a mal-entendido a propósito desta.
É conveniente que desenvolvamos em toda a sua am-
plitude e riqueza este grande horizonte, que amplia até di-
mensões incalculáveis a tarefa, por outro lado humilde, do
serviço à Palavra.
À primeira coisa que a exegese nos diz é que há vários
modelos linguísticos dentro do NTpara expressar O fato
pascal em seu aspecto mais positivo”. Um deles é o de res-
surreição?. Contudo, não é o único. É mister, portanto, reu-
nir estes diversos modelos ou expressões para ter uma vi-
são mais completa deste mistério cardeal da fé. Por outro
lado, ressurreição é termolinguístico que possui suas limi-
tações e ainda conotações que podem inclinar a mal-enten-
didos. O prefixo “re”, que constitui parte de sua raiz
etimológica, sugere a idéia de repetição, retorno, volta ao
estado anterior. Tambem o termo egeiro pode implicar sig-
nificados análogos. Daí a pensar que a ressurreição de Je-
sus equivale a um viver anterior à morte, certamente agora
de modo perdurável e com a dimensão corporal, só falta
um passo. Não se trata exatamente de voltar à vida de an-

* Levei em conta os seguintes trabalhos: K. Kessler, La ressurrección de Jesús.


Aspecto bíblico, teológico y sistemático, Sígueme, Salamanca, 1989; J. Moltmann, Der
Weg Jesu Christi. Christologie in messianischen Dimensionen, Diisseldorf, 1987, X.
Pikaza, El evangelio. Vida y Pascua de Jesiís, Salamanca, 1990; G. O'Collins, Jess
resuscitado. Estudio histórico, fundamental y sistemático, Herder, Barcelona, 1988. Não
se deve esquecer a obra clássica de E X. Durrwell, La ressurrección de Jesús, misterio
de salvación, 4º edição, Herder, Barcelona, 1974.
45 1Cor 15,3.20.22; Rm 4,24.

62
tes (este é o caso das ressurreições realizadas por Jesus se-
gundo os evangelistas), porém é algo que fica muito longe
da verdadeira mensagem pascal. Acho que muitos cristãos
pensam que a ressurreição é uma espécie de prêmio que
Deus concede a Jesus depois de sua paixão redentora (isto
seria o decisivo e principal), recompensando-o com uma
vida que não termina mais.
Ora, para completar e enriquecer a visão do destino
pós-mortal de Jesus, o NT emprega outros modelos
linguísticos que devemos levar em consideração. Um deles
e o de elevação ou glorificação*º (não gosto de empregar o
sinônimo exaltação ou estar exaltado, ser exaltado, que
muitos biblistas usam; no espanhol, e também no portu-
guês, é expressão enormemente equívoca). Elevação, ou glo-
rificação, não significa nem indica ato secundário e com-
plementar que acompanhasse a ressurreição. É novo mode-
lo linguístico para designar a mesma realidade a que se re-
fere a ressurreição, que expressa de maneira melhor aspec-
to importante do mistério pascal. Corrige a idéia de mera
continuidade no viver e destaca, com a ajuda do esquema
especial de cima/para baixo, a radical diferença do modo
de ser novo e permanente do crucificado. Quer dizer: o cru-
cificado, o humilhado,foi introduzido pelo Pai no modo de
vida radicalmente distinto do que tinha antes de sua morte.
Este modelo elevacional insinua igualmente o que outros
modelos expressarão de maneira mais explícita: o senhorio
e a glória em que Cristo pós-mortal entrou, bem comoa
plenitude e a plenificação do que é a vida de Cristo.
Coincidindo com o modelo elevacional temos certos
titulos cristológicos, que Jesus ressuscitado vai recebendo e
que vem confirmar, ao mesmo tempo que aprofundar,o sig-
nificado de tal modelo. Antes de tudo, temos o título de
filho do homem. No mundo de representações do judaísmo

* Fl 2,9ss; At 2,33;5,31.

63
de então existia uma figura cristológica de portador da sal-
vação que, morando no céu, ia aparecer no futuro como juiz
e salvador. Era o filho do homem das expectativas esca-
tológicas*”. Assim, pois, lançou-se mão desta representação,
quiçá também empregada por Jesus, e se projetou sobre
Jesus elevado ao alto (identificando ambasas figuras).
Deste modo se pode declarar, de maneira compreensí-
vel para os ouvintes judeus: o crucificado-ressuscitado é o
portador definitivo da salvação que mora junto de Deus e
com cuja salvação o mundo deve contar para o futuro. O
Jesus ressuscitado, vindo de Deus, se manifestará a todos
os homens, instaurando o senhorio eterno de Deus. Assim,
se expressam claramente a unicidade, a singularidade e a
excepcionalidade cristológicas, bem como seu valor
soteriológico. Somente o ressuscitado, o elevado aos céus,
Jesus, foi instaurado comofilho do homem, como salvador.
Ora, o título de filho do homem não era compreensível
fora do âmbito judeu-palestinense; além disso, parecia re-
ferir-se mais ao futuro do que ao presente de Jesus. Os dis-
cípulos tiveram logo consciência clara de que era preciso
expressar a situação atual do ressuscitado e seu novo poder
de atuação. Conseguiram isto mediante novo modelo
linguístico, o de entronização, bem como por meio dostítu-
los fundamentais de senhor, messias e Filho de Deus. Jesus,
professa a Igreja primitiva, foi elevado, ressuscitou, sendo
entronizado para o senhorio messiânico. Jesus, o verdadei-
ro rei davídico, o sucessor e plenificador da figura régia e
messiânica de Davi, já é agora senhor e, como tal, sua pes-
soa é definitiva, de maneira imediata para a atualidade. Para
chegar até aí, utilizam-se os salmos 2,7 e 110,1, interpreta-
dos messianicamente, como, outrossim, a inscrição sobre a
cruz, que alude à execução de Jesus na qualidade de falso
messias e rei que, da experiência pascal, deve ser entendida

” Dn 7,9ss; Hentet) 46; 62,5: 69,26-29.

64
positivamente no sentido de que Deus manifesta e instaura
Jesus como verdadeiro messias.
Por conseguinte, mediante a metáfora da entronização,
quer-se dizer: por meio da ressurreição, da elevação, Jesus
crucificado e rejeitado foi estabelecido como messias (Cris-
to) por Deus (At 2,36; 5,31), e, neste sentido, foi constituído
Filho de Deus* e Senhor*.
Tudo isto é o que se quer dizer quando, para esclarecer
o que significa a vida nova de Jesus, se afirma que está sen-
tado à direita de Deus; que é, portanto, companheiro de
Deus, que faz companhia a Deus estando sentado sobre o
trono (símbolo da majestade e senhorio divinos).
É assim que se discerne nitidamente o que distingue
Jesus depois de sua morte de outros bem-aventurados, que
também morreram nas mãos de Deus. Porque, segundo a
concepção judaica, o lugar dos mártires glorificados está
próximo do trono de Deus. Igualmente, os exércitos angé-
licos cercam o trono divino. Mas ninguém, exceto Jesus,está
à direita de Deus, e a direita significa a força divina, bem
como a honra máxima. Somente Jesus é participante desta
força e desta honra.
Com tudo o quefoi dito anteriormente, é evidente que
se está proclamando o caráter universal e igualmente cós-
mico atual de que Jesusfoi revestido pela sua ressurreição e
elevação. No âmbito helenístico, esta fé cristaliza na acla-
mação litúrgica: “Jesus Cristo é kyrios (Senhor)” (FI 2,11; cf.
1Cor 12,3) que, portanto, tem sentido pascal.
Devemos acrescentar que este senhorio, a mesma coi-
sa que toda a realidade de Jesus glorificado, continua sen-
do a do Jesusterreno, que este assume sem destruir sua rea-
lidade histórica. Concretamente, sabemos que o Jesus pré-
pascal interpreta o senhorio como serviço (Mc 10,44). Ele

** Rm 1,4; At 13,30.33.
* At 2,36; FI 2,11; Rm 10,9; 14,9.

65
modifica a noção de senhorio e poder. O crucificado não
tem poder, não quer ter poder para coagir ninguém. Tudo
isto quer dizer que a passagem para a nova situação
ressurrecional significa que o senhorio de Jesus comoservi-
ço e doação, como entregalibertadora, foi “elevado” à ple-
nitude absoluta, a uma atualidade e atividade universais.
Eis outro aspecto que não se pode descuidar. O Jesus
ressuscitado e entronizado não permanece inativo. Estar
sentado no trono,à direita de Deus, não equivale a um des-
cansar; implica grau máximo de atividade, exatamente por-
que agora compartilha a realidade daquele “que não dor-
me nem repousa” (Sl 121,4).
As qualidades do Deus trinitário são comunicadas à
humanidade de Jesus de modo definitivo e pleno (commu-
nicatio idiomatu). Por isso, ele age vivificando, criando de
novo (corresponde ao que é próprio de Deus) e isso sem
afastar-se do mundo, muito pelo contrário, voltando-se para
ele e procurando-o à maneira divina, isto é, com absoluta
intensidade e eficácia, sem limites nem fronteiras. Onde
Deus está presente, ou seja, em toda parte, aí está o Senhor
ressuscitado como mediador.
Outro modelo ou modo de expressão de toda esta rea-
lidade é a ascensão ao céu (Lc 24,51; At 1,9). De fato, pode
parecer sinonimia de elevação. Outros o consideram expres-
são do aspecto soteriológico da ressurreição de Jesus. As-
sim, por exemplo, K. Rahner acha que a ascensão constitui
um momento da ressurreição”. Ela significa não só a entra-
da de Jesus em céu já existente, porém, abre o céu em sentido
teológico. Pelo fato de a humanidade corporal de Jesus ser
parte permanente deste mundo, o mundo, em queele é o
cume,o ápice, as primícias”!, mediante a ressurreiçãoe a ele-
vação de Jesus, chegou a Deus. Seu coração já está junto a Deus.

0 K. Rahner, “Ressurrección de Jesús”, em Sacramentum mundi VI, 50-58.


S1 1Cor 15,20; Rm 8,29; Cl 1,18; At 26,23; Ap 1,5.

66
Assim, no Senhor ressuscitado e glorificado, já ocorre
o princípio da transformação do mundo como acontecimen-
to ontológico que envolve tudo; o princípio do “céu”. Do
ponto de vista teológico, o céu é a nova dimensão que sur-
ge quando a criatura sobe definitivamente para Deus. Céu
é a vida ilimitadamente abismal e feliz do Deustrino. O céu
não está onde Deusestá; pelo contrário, onde Deus se en-
contra é que está o céu”?. Estar no céu significa estar defini-
tivamente junto a Deus e, portanto, junto aos outros, bem
como junto a si mesmo. Esta realidade é dada a nós, ho-
mens, como promessa de modo concreto, como que eviden-
te, na história, historicamente, a partir da ressurreição da
humanidade corporal de Jesus. O Senhor nos precede “para
preparar-nos um lugar” (na casa do Pai há muitas mora-
das) e, para que, então, possamos estar junto a ele (Jo 14,1-
3). Aí temos o fundamento inabalável de nossa esperança
na ressurreição da morte e na plenitude com ele.
Tiremos uma última consequência. Já que o céu se en-
contra onde Deusestá, então não está às margens do cos-
mo, mas no centro da realidade. E por este motivo se com-
preende que a ascensão de Jesus ao céu não supõe partida,
separação nem interrupção da comunicação. Por isso, Lucas
conta que, depois da ascensão, “eles o adoraram e voltaram
a Jerusalém cheios de alegria” (Lc 24,52). O Senhor ressus-
citado, que ascendeu ao céu, está corporalmente em proxi-
midade ainda mais intensa e imediata com relação a toda
vida, todo sofrimento, todo agir, todo morrer. O Senhorele-
vado abrange tudo, reúne tudo em si (Ef 1,10) e, ao mesmo
tempo, é o fundo, o profundo, o próximo de tudo. Ele se
transformou no coração do mundo.

2 W. Kasper, “La ascensión de Cristo, História y significación teológica”, em


Communio I (1984), 40-49.

67
13. Ressurreição e Espírito

A perspectiva analisada no fim do item anterior se


amplia e consolida a partir de um aspecto fundamental da
ressurreição, que ainda não comentamos. Dizíamos que a
elevação e a entronização significam compenetração plena
da humanidade de Jesus com a divindade. A humanidade
de Jesus é penetrada, impregnada totalmente pelas quali-
dades divinas.
Ora, neste processo de comunicação deificante, desta-
ca-se principalmente o que podemos chamar pneumatização,
que quer dizer que Jesus ressuscitado não só possui corpo
pneumático (1Cor 15,44), mas que ele próprio já se tornou o
“pneumavivificante”?. Seu corpo,isto é, ele próprio em seu
ser para nós, transformou-se, a partir de então, no lugar per-
manente de Deus para voltar-se para nós, a fim de possibi-
litar-nos e dar-nos nova vida. Podemos entenderisto da se-
guinte maneira: em Jesus, que se entregou totalmente a Deus
e que, livre de todo egoísmo, viveu para os outros, doando
sua vida por eles, Deus se comunicou de modo definitivo
com toda a força e plenitude vivificantes de seu Espírito.
Assim,levou à plenitudeesta vida e esta morte em fa-
vor dos outros. Por isso, a humanidade do ressuscitado, do
glorificado como kyrios, se acha tão impregnada e penetra-
da pelo pneuma, que ela concentra e encarna em si a força
vivificante de Deus de modo tal que age para todos como
transmissora de vida e salvação. Seu fruto em nós é a vida
nova na provisionalidade do “em Cristo”, bem como na
definitiva plenitude do “com Cristo”. E mais: esta vida nova
se acha vinculada à sua presença. A vida é Cristo (Fl 1,21;
Gl 2,20). O Senhor ressuscitado corporalmente é “a ressur-
reição e a vida” (Jo 11,25).

31Cor 15,45; 2Cor 3,17ss.

68
O Senhor ressuscitado está onde está Deus, através da
mediação de sua nova corporalidade transformada em Es-
pírito, junto a nós e no mundo, de modo novo. Não perdeu
sua relação específica com o mundo, porém, pelo contrário,
aprofundou-a, intensificou-a e universalizou-a. O Jesus res-
suscitado junto a Deusestá unido solidariamente com toda
a humanidade e com toda a criação, e nela se acha presente.
Porque, seu corpo, estando pneumatizado, encontra-se li-
bertado de todas as fronteiras físicas e biológicas, espaciais
e temporais, do ser mortal. Eis por que a relação com o
mundo de Jesus ressuscitado não se acha mais limitada, mas
desfronteirizada, ilimitada e plenificada. A ele cabe a aber-
tura ao mundo sem qualquer limite. Seu corpo é o lugar e a
mediação de solidariedade e comunicação ilimitadas, de
irradição e proximidade universais. É a preexistência que
alcançou plenitude irreversível. Alguns teólogos falam de
humanidade pancósmica, onipresente.
Cristo está naqueles que crêem nele e o seguem”. Está
presente mediante seu Espírito, que ele lhes comunica e que
habita neles”. Assim, o céu irrompe na terra. O crucificado
e ressuscitado encontra sua meta e seu sentido na comuni-
dade conosco e em toda a criação ainda não redimida.
A cristologia estimula, partindo de seu centro, para a
pneumatologia. A concentração cristológica tem sentido
visando a uma expansão pneumatológica. Segundo At
2,33.36, o Ressuscitado recebeu do Pai o Espírito e, assim,
foi elevado a messias, podendo, então, comunicar esta for-
ça pneumática de Deus a outros. Agora o Espírito pode pas-
sar a outros. Algo semelhante diz Jo 20,22ss. O Ressuscita-
do é o dispensador do Espírito. Como fruto de sua obra
realizada e culminada com a morte e a ressurreição, trans-
mite o Espírito aos discípulos e à comunidade”.
*92Cor 13,5; Rm 3,17; 8,10.
Cf. 1Cor 3,16; 16,19; Rm 8,9; Mt 18,20; 28,20.
%6 Cf. Jo 14,16-18; 16,13ss.

69
O Senhor ressuscitado-glorificado entrou na vida pneu-
mática de Deus de modo tão pleno, que participa total e
definitivamente da força divina de vida, ação e atualidade,
isto é, do Pneuma. Dispõe deste e o envia.” Por sua vez, O
Espírito torna presentes as palavras, as ações e a pessoa de
Jesus (ICor 6,11; Jo 14,26), universaliza-a. K. Barth, apesar
de toda a sua obsessão dialética, diz:* “Não há, dentro do
mundo reconciliado com Deus em Cristo, profundidade al-
guma abandonada a si mesma ou subtraída à influência de
Cristo, nem mesmo onde as coisas vistas com olhos huma-
nos parecem perigosamente próximas de ateísmo total. Se
se negaristo, não se poderá continuar falando da ressurrei-
ção de Cristo”.
Sintetizando: o corpo ressuscitado de Cristo age como
a concretização de promessa feita para toda a criação. É o
protótipo dinâmico do corpo glorificado. Por isso, parte dele
efeito transfigurador, está cheio do Espírito vivificante. Eis
por que procede dele o Espírito que, desde agora, inicia sua
atividade vivificadora: “Oceano ilimitado de luz se difun-
de, partindo do corpo ressuscitado do Senhor.”
A modo de colofão, explicitemos que a teologia da res-
surreição não é a última palavra da cristologia. Deve evitar-
se o que alguns chamam de entusiasmo do cumprimento e
o perigo do “presentismo”. O Cristo ressuscitado ainda não
é o Cristo da parusia, que virá na glória de Deus e redimirá
plenamente o mundo, convertendo-o em Reino escatológico
definitivo. A fé na ressurreição e no pentecostes não esva-
zia nem elimina a esperança messiânica; faz-nos falta uma
cristologia escatológica (a união entre cristologia e esca-
tologia), que mantenha a fé em Cristo dentro de uma espe-
rança de futuro.

7 Rm 1,4; At 2,32ss; Mt 28,19; Jo 7,39; 15,26; 16,7. Cf. 1. Hermann, Kyrios und
Pneuma, Munique, 1961.
BK. Barth, Kirchliche Dogmatik IV /3. Zurique, 1932ss, 113.
* V. Lossky, Orthodox Theology. An Introduction, Nova lorque, 1978, 118.

70
O Cristo ressuscitado também se acha, de certo modo,a
caminho: a caminho para um senhorio que começou aqui em
nossa história, porém que ainda não é universal. Falta a rea-
lização plena, quando entregará a Deus o senhorio em pleni-
tude e Deus “será tudo em todas as coisas” (1Cor 15,28; cf. FI2,11).
À comunidade de Cristo, ressuscitado com os vivos e
com os mortos(cf. Rm 14,9), não é fim último. É comunida-
de que também se acha a caminho para a ressurreição de
todos os mortos para a vida eterna e para a aniquilação da
morte na nova criação de todas as coisas (1Cor 15,25-28).
Somente então “enxugará as lágrimas de seus olhos”*º,e
alegria perfeita unirá todas as criaturas com Deuse entresi.
A redenção do mundo, a superação de toda e qualquerini-
mizade, a nova criação apenas começou e se encontra agora
em gestação no Espírito, dom da ressurreição de Jesus.
Finalmente, é necessário dizer que a salvação univer-
sal, que culmina na nova criação, também não é fim em si,
único e exclusivo. Está a serviço da glorificação de Deus,Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. FI 1,9-11). A justificação da
humanidade está a serviço da justificação de Deus. Todas as
criaturas encontrarão sua felicidade na participação na gló-
ria de Deus. Deus alcançará seu repouso no sábado da nova
criação. Será então que todas as criaturas dirão: “Tu és justo
(...). Tuas sentenças são objetivas e justas” (Ap 16,5.7). Ameta
ultima da história de Cristo está, pois, na salvação de todas
as criaturas para a glorificação de DeusPai.

14. Relato e narração


Consequência importante que se depreende das análi-
ses realizadas até aqui sobre o querigma é seu caráter nar-
rativo. O querigma anuncia fatos: o Reino que se aproxi-

O Ap 21,4; cf. Is 25,8; 36,10.

/1
mou e começou a chegar, Cristo que já veio, morreu e res-
suscitou..., tudo isto evidenciado e realizado em uma série
de acontecimentose sinais.
Ora, os fatos são expostos e expressos por meio da nar-
ração. É, portanto, imprescindível na pregação o elemento
narrativo. Um de seus núcleos básicos deve ser o relato, re-
lato que mostre a realidade de tais fatos. Como? Com seu
metodo próprio: contando-os.
Por isso, foi dito que a pregação deve ser contar histó-
ria ou, pelo menos, contar uma história, e que o pregador
deve possuir a arte dos bons narradores, dos antigos
rapsodos populares que encantavam seus auditórios (e os
encantam ainda hoje em certas culturas) com a fascinação
dos seus relatos.
A mensagem cristã, em seu centro mais íntimo, diz 6.
Lohfink, não é argumentatio como temos em Ecl 8,17,9,6, nem
apellatio do estilo de Ex 20,13-17, mas narratio segundo o
modelo de Dt 26º!. Isto quer dizer que o elemento que carac-
teriza basicamente não é o fato de ser discurso especulativo,
nem chamado moral ou exortação, mas a narração.
Poder-se-á arguir que Paulo se afasta desta orientação,
que nele predominam a argumentação, o raciocínio, a polê-
mica. Certamente o gênero epistolar paulino constitui gê-
nero especial, que propicia não só a reflexão intelectual e o
discurso especulativo, mas a discussão. Não obstante, ana-
lisando grandes trechos de suas cartas, percebe-se que se
compõem de diversos fragmentos narrativos que, como blo-
cos ocultos, subjazem no conjunto (cf. Rm 3,1-8).
Na verdade, onde é evidente o caráter narrativo é nos
evangelhos, base da pregação homilética, não só em seu nú-
cleo querigmático, mas no desenvolvimento e diversifica-
ção que apresentam asleituras litúrgicas de cada domingo.

$G. Lohfink, “Erzãlung als Theologie. Zur sprachlichen Grundstruktur der Evan-
gelien”, em G. Lohfink, Studien Zum Neuen Testament, Suttgart, 1989, 11-27.

72
Há um dado extremamente significativo nas recentes
investigações dos biblistas. Pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, descobriu-se o Evangelho apócrifo de Tomé. Ora,
constatou-se tratar-se de simples coletânea de logia (ditos)
de Jesus. Então se tomou consciência, com nova força, de
sua diferença se comparado com os evangelhos canônicos
(os quatro do NT), cujo traço difereciador com relação aos
apócrifos consiste em não serem apenas coleção dos ditos,
porém igualmente dos fatos do Senhor. Nisto está exata-
mente a criação de Marcos como autor do primeiro evange-
lho: haver composto uma obra que culmina com a história
da paixão, longo relato precedido, por sua vez, de outros
mais breves, mas de grande importância. Lucas e Mateus
seguem o exemplo, o esquema ou estrutura narrativa de
Marcos, apesar de incorporarem a Logienquelle (coleção ou
fonte de logia), fazem-no entremeando-a com relatos. Em
João temos a mesma coisa, embora ele goste dos grandes
discursos, mas também os vá combinando com relatos di-
versos.
Podemos, pois, concluir que os quatro evangelhos
contêm a mensagem de Jesus no contexto de um “aconte-
cido”, que eles narram ou, se se preferir, que relatam sob
a forma de história. Esta grande visão de conjunto perde-se
quando se ouve a perícope breve, recortada, de uma leitu-
ra evangélica dominical. Não obstante, quem prega deve
tê-la presente como contexto de sua homilia e saber reencon-
trá-la na mesma perícopelitúrgica, que muitas vezes tam-
bém é relato; reencontrá-la sob forma de concretização
particular, de etapa ou fase deste grande relato que é o
conjunto do evangelho. Assim, aplicará a lei primordial de
toda narratividade ou hermenêutica narrativa, que resi-
de em potenciar no texto o caráter narrativo, em dar-lhe
vida, sabendo contar esta história e devolvendo-lhe seu ca-
ráter principal de relato, que desperta interesse porela, ain-
da atraente.
/3
Por que os evangelhos dão prioridade a esta estrutura
narrativa e não puseram em primeiro plano os logia de Je-
sus, seus ditos, suas palavras, sua doutrina? Porque a men-
sagem cristã mais primitiva foi, e tem sido desde o princí-
pio, confissão das ações salvíficas de Deus em Jesus Cristo.
E, nesta confissão, teve como ponto central o grande fato
pascal, este evento exodal da passagem de Jesus da morte
para a vida plena. Por isso, teve caráter narrativo que cul-
mina com o relato da paixão e ressurreição de Cristo.
Mas a mensagem do Jesus terreno, pré-pascal, era tam-
bém fato, acontecimento, algo sucedido: o Reino que se apro-
xima mediante uma série de fatos que são sinais deste Rei-
no. Temos, portanto, o mesmo caráter não argumentativo
nem exortativo ou apelativo, porém narrativo.
Depois de feitas todas as afirmações anteriores, temos
que introduzir uma distinção fundamental: o que determi-
na a mensagem evangélica como estrutura básica é a narra-
ção e não o informe. Em quereside esta distinção? O infor-
me é uma espécie de crônica ou reportagem, mera notícia,
comunicação distanciadora e objetivadora, que busca a exa-
tidão do detalhe para prestar conta de um acontecimento.
Nada disto encontramos no NT. A experiência históri-
ca que as testemunhase discípulos de Jesus quiseram trans-
mitir só cabia na narração, não no informe. Por quê?
A narração bíblica não pode ser elaborada com base
em dados frios e fórmulas doutrinais, a modo de tese; não
pode ser reduzida a uma única finalidade, porque o relato
bíblico não é a ilustração ou exemplificação de uma idéia
teológica, porém, consiste em plasmar uma realidade que
não pode ficar encerrada dentro de um conceito.
À narração de uma realidade histórica não fica na su-
perfície. Vai às profundezas. Ela não reúne apenas os fatos
exteriores, não descreve exclusivamente o desenvolvimen-
to externo e a aparência de algo sucedido, mas interpreta-o
em seu sentido mais profundo. E esta interpretação não se

/4
realiza de forma tal que venha a ser acréscimo secundário
ao relato. O próprio relato é teologia, hermenêutica teológica.
Interpretação assim, que penetra nas profundezas do
sucedido e do acontecido, nunca pode ser feita pelo mero
informe, reportagem ou crônica objetivista, o comunicado
que pretende ser neutro. Um informe, por exemplo, fracas-
sará diante do ocorrido na paixão. Poderá apresentar mui-
tos detalhes (a saber, que foi executado um judeu chamado
Jesus). Nunca, porém, poderá expressar que, no sofrimento
deste Jesus, se estava cumprindo o AT e que, em sua morte,
se condensava toda a história do sofrimento do mundo,
transformando-se em redenção.
Na realidade, todos os relatos bíblicos são elaborados
com esta dinâmica interpretativa que, entre outras coisas,
significa vontade de atualizá-los, isto é, de apresentá-los
como algo que tem muito a ver com o presente e a atualida-
de, traço este que interessa especialmente à homilia.
Efetivamente, desde que a ciência bíblica começou a
aplicar os métodos da ciência literária, da redação e da crí-
tica, tanto das formas quanto da tradição, passamosa co-
nhecer como é complicada e complexa a gênese dosrelatos
bíblicos. Em primeiro lugar, sabemos que estes relatos fo-
ram narrados durante muitos anos, por via oral, isto é, de
viva voz; porém, não é só isto. Sabemos também que cada
narrador introduzia neles suas próprias experiências e as
experiências da comunidade em que vivia. Depois, estes
relatos, já modificados, voltaram a receber novos enrique-
cimentos atualizadores ao longo da transmissão escrita. Fo-
ram reelaborados, ampliados, completados e matizados con-
forme as circunstâncias da comunidade onde se fazia a re-
dação. Ou eram misturados com outras tradições.
Sem dúvida, para um historiador que, de maneira um
tanto superficial ou extrínseca, ou com mentalidade positi-
vista, indague unicamente sobre a facticidade (os chamados
feitos nus ou fatos brutos), isto equivale a um escândalo. No

75
entanto, o leitor curado da parcialidade empirista sabe en-
contrar neste processo realidades muito valiosas. A compli-
cada história da transmissão da maioria dos relatos bíblicos
não é empobrecimento, mas, sim, riqueza e enriquecimento.
Deste modo, evidencia-se que o continuar narrando as
histórias bíblicas, contando-as de vez em quando, foi pro-
cesso vivo. Estes relatos não representavam material infor-
mativo morto, porém, sim, experiência viva a que, por isso
mesmo, se podia incorporar a própria existência ainda pal-
pitante. Este processo complexo de incorporação de expe-
riências novas seria impossível no caso de informe orienta-
do exclusivamente de ponto de vista documental. Um infor-
me é, por sua própria natureza, algo fechado. Pelo contrário,
um relato é, e deve ser algo vivo, pelo menos enquanto se
prossegue narrando e ele pode continuar sendo narrado.
A aplicação à homilia salta aos olhos. Esta não deve
repetir simplesmente o relato. Para isto está a leitura bíbli-
ca. À homilia deve desenvolver este dinamismo atualizador,
que teve em suas origens, o contar a história que agora nos
chega fixada em uma escritura, mas que o conserva em seu
núcleo histórico-salvífico. A narração deve ser enriquecida
com traços, dados, personagens da atualidade, a fim de
mostrar com sua própria linguagem que Cristo ressuscita-
do continua agindo hoje, continua salvando e que prosse-
gue o curso da história da salvação.
Outro elemento atualizador, que devemos incluir na
resenha, refere-se à linguagem. O que mais distingue o re-
lato do informe do ponto de vista linguístico e sua vivaci-
dade expressiva, sua plasticidadee seu grafismo. É sempre
algo muito concreto que parece falar aos sentidos, que nos
dá a impressão de estarmos vendo. Acha-se longe de toda e
qualquer abstração. Naturalmente, não se trata de nada es-
pontâneo. Implica e supõe o esforço de um trabalho. É ne-
cessário saber selecionar traços, aspectos, elementos e perso-
nagens; escolher alguns e deixar outros. Faz-se necessário

76
estilizar e simplificar as exposições complicadas, acrescen-
tar eventualmente elementosfictícios. Necessita-se de certa
criatividade.
O importante é que o relato se encha de vida e de colo-
rido, que provoque certo suspense, algo despido, que sus-
citem interesse, curiosidade, interrogaçõese, assim, aumente
sua capacidade de conseguir a finalidade correspondente.
Às vezes, deter-se-á em um ponto ou episódio, nele paran-
do, prolongando-o. Outras vezes, apressará a conclusão ou
término com desenlace inesperado, deixando ao ouvinte a
reflexão posterior, dando-lhe o que pensar.
Por que esta forma externa e interna do relato? Res-
posta um tanto trivial, mas por outro lado frequente,seria:
porque se destina a pessoas simples, ingênuas, incapazes
de pensar de maneira abstrata. Esta é uma opinião muito
superficial que, além do mais, peca por forte racionalismo.
Não há gente simples, nem as estruturas narrativas corres-
pondem à pretensa simplicidade, por exemplo, de uma cul-
tura popular. O que o relato procura, com sua linguagem e
sua articulação interna é justamente restabelecer, recuperar
e restaurar a atualidade do relatado. Diversamente do in-
forme, que reúne fatos pretéritos, distanciando-se deles, o
verdadeiro relato tenta atualizar este passado para o ouvin-
te. E mais: pretende introduzi-lo neste evento. Para isso,
aproxima o evento do ouvinte em seu presente.
Onde isto aparece de maneira mais densa e paradig-
mática é no relato da última ceia. Enquanto se vai contando
o que Jesus fez então, o passado se transforma em presente
e presença. Deste modo,a liturgia é, afinal de contas, o lugar
apropriado para narrar as coisas que sucederam com Jesus,
porque aí elas alcançam inusitada atualização. Acontece, po-
rém, que desconectamos este relato breve da ceia de todos
os relatos que deveriam precedê-lo. Na liturgia da Palavra
apenas se percebe a presença do elemento narrativo. Nossa
liturgia deveria parecer-se com aquelas velhas conversas que

77
reuniam a família, amigos em torno da mesa ou do fogo,
para contar histórias. Assim como o narrativo na cultura
atual, na liturgia ele emudeceu. Não sabemos mais contar
histórias como Jesus, que passou sua vida contando aque-
las histórias das parábolas, que não haviam acontecido em
sentido imediato, mas que eram paradigmas do que ocorre
com o Reino e em torno do Reino.
Não incorporamos nossas próprias experiências nos
relatos lidos. Não sabemosentrelaçar os acontecimentos de
hoje com os que ocorreram in illo tempore, e assim cortamos
a fluência permanente do devir histórico, esta cadeia
ininterrupta de elos; episódios que balizam a história da
Igreja e da humanidade.
Além de causas culturais, há causas teológicas que ex-
plicam este emudecimento do narrativo. A teologia querig-
mática dos anos cinquenta, especialmente a que se desen-
volveu com este nome nas faculdades de teologia protes-
tantes, quis relacionar a fé somente com um querigma abs-
trato, afirmando que um relato é no fundo forma de mera
ilustração do querigma a que, portanto, as pessoas cultas
podem renunciar.” Diante dos exegetas e teólogos, repre-
sentados principalmente por R. Bultmann, os pesquisado-
res posteriores voltaram a fugir das leis da narração e de
sua importância no cerne do querigma. Assim, por exem-
plo, diz M. Hengel: “Possuímos conhecimento profundo das
origens do cristianismo graças ao fato de Lucas e os outros
evangelistas haverem querido ser, não pregadores de men-
sagem abstrata, conscientes de uma história, até podería-
mos dizer narradores de um relato. Mediante este dar notí-
cia de uma história, anunciaram a mensagem nova do mes-
sias que chegava”.

62 A. del Agua, “Aproximación al relato de los evangelios desde el Midrás/


Derás, em Estudios Bíblicos 45 (1987), 257-284; Id., El método midrástico y la exégesis
del Nuevo Testamento, EDICEP, Valência, 1985.
é M. Hengel, Zur urchristlichen Geschichtschreibung, Suttgart, 1984,41.

/8
A nova exegese amplia as observações feitas um pou-
co acima sobre o sentido atualizador da narratividade bí-
blica. Fundamenta-se na redescoberta do caráter midráxico
da Escritura. Por midrash entende-se a constante atuali-
zação das tradições bíblicas em função do presente à luz
das antigas atuações de Deus na história da salvação. A
atuação salvífica de Deus no passado é tipo de sua atuação
no presente e serve de acicate para suscitar a esperança no
futuro.
Os pontos de partida principais deste dinamismo
midráxico são o credo mais antigo de Israel, de claro cará-
ter histórico, o reunido em Dt 26,5-10, de um lado; de outro,
a hagadá pascal, o texto central da páscoa judaica, que cons-
titui relato admirável do que aconteceu nesta noite santa,
conforme pede Ex 13,8 (“neste dia dirás a teus filhos”). Seu
ponto visado é o hoje. Por isso diz quem a vai recitar:

“Em cada geração, cada um deve considerar-se como


alguém que houvesse saído do Egito (...). O Santo, ben-
dito seja, não só resgatou nossos pais, mas, junto com
estes, nos redimiu também”**.

Aqui temos o germe atualizador que culmina na últi-


ma ceia, celebrada justamente na ocasião da ceia pascal ju-
daica. No NT, o que há de mais explícito a propósito desta
tradição hagádica, isto é, narrativa, do querigma é Lucas no
começo de sua obra. Onde Marcos põe o título de seu livro
euaggelion (“de Jesus, messias, Filho de Deus”), Lucas põe
“narração (diégesis) das coisas realizadas entre nós” (Lc 1,1).
Isto significa que, para Lucas, o evangelho é relato que mos-
tra como tradições e narrações antigas chegaram à sua ple-
nitude, à sua atualidade plena em Jesus Cristo. É o que trans-
mitiram “os ministros da palavra” (Lc 1,2). O ministério da

& P. Link, Hagadá. Manual de Pesaj, Tel Aviv, 1978, 43.

79
palavra, isto é, a pregação, tem seu ponto de gravitação na
diégesis, o relato que faz culminar a hagadá, a narração pascal
na páscoa cristã.

15. Pregação e palavra de Deus


No fim do item anterior, víamos como Lucas(1,2), a
respeito do evangelho como relato de alguns fatos, fala do
serviço da palavra; At 6,4 repetirá a mesma coisa. O evan-
gelho é palavra de Deus e, por conseguinte, o serviço pres-
tado ao evangelho, sua proclamação e pregação, é serviço à
palavra de Deus”. Eis aí um aspecto da atividade querig-
mática e homilética sobre o qual convém refletir.
Efetivamente, a palavra de Deus é questão maior de
uma teologia bíblica. Sobretudo a teologia católica voltou a
redescobrir com o Vaticano II o traço fundamental desta
palavra: sua eficácia. Antes se falava somente da eficácia do
sacramento. Hoje se volta a equilibrar esta dupla polarida-
de da ação litúrgica, a da palavra proclamada e a do sacra-
mento celebrado.
Convém que o servo da homilia medite sobre este dom
que lhe é confiado, e sobre esta força ou dinamismo, de cer-
to modoirresistível, que a Igreja põe em suas mãos. Em face
das tentações de desânimo que mais de uma vez o acome-
terão, por ter a impressão de que é estéril e vazia sua ativi-
dade, ele deve lembrar-se sempre do que a fé lhe ensina
sobre a palavra de Deus. Ela é como um tesouro escondido,
uma semente oculta que age e cresce, sem que alguém o
veja, de modo imperceptível mas incomparável**.
Esta eficácia consiste principalmente em tornar Cristo
presente. Antes só se pregava isto a propósito da eucaristia.

6 Cf. Ef3,7;Cl 1,23.


66 Cf. Mc 4,26; Mt 13,18-23.44.

80
Mas o Vaticano II afirma: “Cristo está presente em sua Pala-
vra, pois, quando se lêem as Sagradas Escrituras na igreja, é
ele quem fala” (SC 7).
E, portanto, inexata a distinção quetantos teólogos fi-
zeram entre a palavra que anuncia o que realiza e o sacra-
mento. Não, a palavra também realiza o que diz por causa
desta sua eficácia, embora o sacramento acabe de atualizar
com especial plenitude o mistério Cristão”. Daí haver hoje
motivo para que falemos do caráter sacramental da pala-
vra, devido a esta sua semelhança com o sacramento. Já o
dizia Pascásio Radberto: “Há também um sacramento das
Divinas Escrituras, quando o Espírito Santo age falando efi-
cazmente por elas no interior da pessoa”*. Santo Agosti-
nho definia a palavra como sacramentum audibile*º.
Eis por que também se formula expressamente para-
Jelismoentre palavra e eucaristia, mediante este denomina-
dor comum que possuem: a sacramentalidade, a eficácia
sacramental que torna Cristo presente no interior da comu-
nidade e das pessoas. A tradição falou das duas: a da pala-
vra de Deus e a do corpo de Cristo. A esta tradição aludem
a Sacrosanctumconcilium (n. 51) e a Dei verbum (n. 21).
Já o termo empregado no AT para referir-se à palavra
divina (dabar) significa muito mais do que o logos grego:
expressa não só uma idéia, uma noção associada a um vo-
cábulo, mas quer dizer ação. Esta teologia do que é a pala-
vra de Deus vai sendo desenvolvida sobretudo pelos profe-
tas do AT, que vão tendo a experiência de que o dabar divi-
no é o poder decisivo na história de Israel; irrompe nos acon-
tecimentos, configurando-os. Age como realidade dinâmi-
ca, criadora (Is 9,7).

% K. Rhaner, “Palavra y eucaristia”, em Escritos de teologia IV, Taurus, Madri,


1962, 323-367.
é PL 120, 1275-1276.
9 Sermo 56,6 e 57,7: PL 38,380-381 e 389-390.

81
A teologia mais profunda sobre este tema se encontra
em Jeremias. O traço mais característico da palavra de Deus,
segundo ele, não é o conteúdo noético, porém,sim, sua for-
ça interna, seu impulso interior: “Não é minha palavra como
o fogo, como um martelo que desfaz a rocha?” (Jr 23,29).
Ela acaba convertendo-se em sedução, em uma espécie de
acossamento a que é impossível esquivar-se (cf. Jr 20,7-9).
Para o Dêutero-Isaías, a palavra divina é, outrossim, força
histórica. Mediante a famosa comparação com a chuva e
com a neve, O profeta expressa a eficácia irreprimível que
ela possui (Is 55,10-11).
No NT são muito abundantes os materiais sobre a pa-
lavra de Deus, que é equiparada à palavra de Jesus, rece-
bendo desta os predicados daquela”. Atribuem-se-lhe os
sinônimos gregos de força, poder: exousia, dynamis, ener-
geia. Jesus é apresentado falando com exousia, ou seja, com
poder (não só jurídico autoritário). Sua palavra é, pois,
força. É isto que o povosente depois de havê-lo ouvido no
sermão da montanha (Mt 7,28 par.; Lc 4,30). É a mesma
exousia com que ele expulsa os mausespíritos e que trans-
mite aos Doze'!. Esta palavra dinâmica,eficaz, é a que cura
e sana.”?
No entanto, é sem dúvida em são Paulo que experi-
mentam desenvolvimento mais amplo a consciência e a
doutrina da eficácia da Palavra. Em uma de suas primeiras
cartas lemos:

“Por esta razão é que sem cessar agradecemos a Deus


por terdes acolhido a sua Palavra, que vos pregamos
não como palavra humana, mas, como na verdade é, a
Palavra de Deus vitalmente ativa em vós,fiéis” (1 Ts 2,13).

70 At 11,1; 1Ts 1,6; 2,13; 2Ts 3,1; 1Cor 14,36; Gl 6,6.


N Cf. Mc 8,16ss; 10,1.
2Mt 8,8; Lc 5,5; 7,7.

82
É encontramos duas passagens muito expressivas, a
este respeito, na primeira carta aos Coríntios:

“Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me


apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria
para vos anunciar o mistério de Deus. Pois não quis
saber de outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e
Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fra-
queza, receio e tremor. E minha palavra e minha prega-
ção (querigma) nada tinham da persuasiva linguagem
da sabedoria, mas eram demonstração do poder do
espírito, a fim de que vossa fé não se baseie na sabedo-
ria humana, mas no poder (dynamis) de Deus” (1Cor 2,1-
5). “A palavra da cruz é loucura para aqueles que se
perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é
poder (dynamis) de Deus” (1Cor 1,18)”.

Reitera-se como traço característico da palavra, consi-


derada em sua formalidade qual querigma e em seu con-
teúdo qual mensagem da cruz, a dynamis que, por sua vez,
se equipara ao Espírito (cf. 2Cor 6,6-7). O Espírito é como
que a outra face da palavra, quem a protege contra toda
manipulação magicista. Sua força não é a de um conjunto,
mas a que vem da liberdade que emana do Pneuma.
Os Atos dos Apóstolos ilustram com exemplo eloquente
esta doutrina, quando registram o efeito da primeira prega-
ção cristã depois de Pentecostes, a realizada por Pedro. No
fim do relato, se nos diz que os ouvintes “tinham o coração
transpassado” (At 2,37).
O quarto evangelho é muito explícito na hora de tes-
temunhara fé da Igreja primitiva na eficácia da Palavra. Fá-
lo relacionando esta eficácia com as grandes categorias de
sua teologia (a vida, o espírito, a verdade,o juízo) *. E,aliás,

8 Cf. Rm 1,16e Hb 4,12-13.


ACf.Jo 5,24; 6,63; 13.51; 12,48; 15,3.

83
é bastante claro sobre outro traço da sacramentalidade da pa-
lavra de Deus, de que não falamos: sua capacidade revelante,
manifestativa, patentizadora, seu remeter a algo oculto para
revelá-lo, ser sinal revelante do latente. Na versão joânea: des-
cobrir a intimidade do Pai e seus desígniossalvíficos”
Ao chegarmos a este ponto de nossa exposição, con-
vém fazermos uma parada no caminho e deter-nos breve-
mente, para vermos a outra face da questão, ou melhor, para
vê-la em seu conjunto.
A palavra de Deus é poderosa pela força que suscita,
pela luz que irradia, pelo movimento esquadrinhador,
interpretativo, revelador que desencadeia. Eis o motivo para
que todos os seus ministros alentem e alimentem confiança
firme nela. Esta força, porém, se exercita na fraqueza. E, por
isso, a Palavra também se nos apresenta como realidade
humilde, que se faz carne como o Verbo e Filho de Deus em
meio a profunda kénosis. O grande exegeta espanhol L. A.
Schókel soube descrever esta realidade:
“Nada mais frágil do que a palavra (...). É vento que
vibra, limitado pela distância (...). É frágil o homem que
a pronuncia (...). É Frágil sobretudo porque se dirige a
corações humanos torpes ou fracos (...). É frágil por-
que quem a deve pronunciar pode esquivar-se (como
Jonas) ou calar-se (como Jeremias). Semelhante fragili-
dade é componente ineludível da palavra humana. A
Palavra de Deus, ao humanar-se, torna-se frágil, quase
desvalida”*.

Podemos concretizar agora algum dos aspectos fun-


damentais da eficiência ou eficácia da palavra de Deus: há
um efeito de caráter pessoal e outro mais comunitário.

2 Jo 8,28.29.55; 12,49-50; 14,24; 17,6.14.17.


6 L. A. Schókel, “La palabra profética”, em L. A. Schôkel-). L. Sicre, Profetas 1.
Comentarios, Paulus, São Paulo.

84
O primeiro consiste em suscitar a fé e, mediante a fé, a
ação salvífica de Deus. É o que Paulo ensina em Rm 1,13-17.
O evangelho anunciado, diz ele, é a força de Deus que sal-
va, quando acolhido na fé, em atitude de fé. E mais: a pala-
vra do querigma, quando escutada (Rm 10,8-9.13-17), é pa-
lavra de fé, ou seja, suscitadora de fé. E, por meio desta fé, é
professada a propósito da salvação”. Esta fé também é cha-
mada obediência à palavra (Rm 10,15). Por conseguinte, a
eficácia da palavra de Deus é dupla ou é una, porém, compos-
ta em duas direções: faz surgir a fé e aproxima a salvação.
Procuremos descrever com mais detalhe o quesignifi-
ca a palavra de Deus e, sobretudo, a obediência a esta pala-
vra?. Paulo, de um lado, fala de sermos escravos de Jesus”;
entretanto, em outros contextos também nos diz que já não
somos escravos mas filhos (Gl 4,1). A obediência, pois, e o
sermos escravos de Cristo devem ser entendidos como per-
tença plena a Cristo, na linha de Jo 8,34.36 e 15,14.
Isto tem aplicação muito prática. Aqui se nos fala de
obediência adulta oposta à que escraviza. Os que escutam a
palavra e os que a anunciam devem ter este sentido da obe-
diência, da responsabilidade e do ser adultos. O pregador,
em particular, deve deixar ampla margem para a responsa-
bilidade do fiel. Não deve pregar uma “lei”, isto é, normas
muito concretas e particulares, fazendo do ouvinte escravo.
Quando o filho já é maior de idade, o pai lhe confere res-
ponsabilidade e liberdade. O medo de que então a prega-
ção leve à arbitrariedade é medo que não leva em conta o
Espírito, que se opõe à “letra”: “Onde esta o Espírito do
Senhor, aí há liberdade” (2Cor3,17).
Finalmente, a palavra de Deus éeficaz porque suscita
comunidade, edifica a Igreja. É o que Paulo diz claramente

7 Cf. 1ICor 1,18.


78 Akoé e hypakog, segundo Rm 10,16-17.
» Cf. Rm 1,1; 6,16-17.

89
em Ef 2,20, quando apresenta os apóstolos e os profetas, ou
seja, os servidores da palavra como fundadores da Igreja.
Ele o expressa, outrossim, em seu discurso de despedida
em Mileto: “E agora vos recomendo a Deus e à sua mensa-
gem de amor, que tem poder para construir o edifício e dar
a herança a todos os consagrados” (At 20,32). Vemosisto
em Jerusalém depois da pregação de Pedro, quando se ma-
nifestou o sinal de Pentecostes, que ele comenta. Surge a
conversão e se unem à comunidade dos apóstolos em discí-
pulos umas três mil pessoas (At 2,41).
O Presbyterorum ordinis diz: “O povo de Deus se reúne,
antes de mais nada, por causa da palavra do Deus vivo,
palavra que, com todo direito, se há de esperar doslábios
dos sacerdotes” (PO 4). Eo decreto Ad gentes acrescenta: “O
fim desta atividade missionária é a evangelização (...), de
modo que, da semente da palavra de Deus, cresçam as Igre-
jas” (AG 6).
Ao concluirmoseste item, ocorre-nos uma reflexão fi-
nal de caráter tutelar, já que a teologia da Palavra que expu-
semos pode prestar-se a um mal-entendido. A doutrina so-
bre sua eficácia tem possibilidade de propiciar oportunida-
de para que alguém conceba a palavra de Deus comocoisa
mágica, isto é, comorealidade que funciona automaticamen-
te e produz seus efeitos sem mais nem menos.Já dissemos
que é necessário escutá-la e acolhê-la com fé. No entanto,
devemos acrescentar agora que também a proclamação da
palavra, sua exposição por parte do ministro, deve estar li-
vre de todo e qualquer autoritarismo. Não basta repeti-la
mecanicamente nem traduzi-la corretamente. Aí está exata-
mente uma das principais tarefas do servidor da palavra,
do pregador e do homiliasta. É isto que o distingue do lei-
tor. Alguns chamam esta tarefa de adaptar a Palavra ou
aplicá-la ao tempo presente. Estas são duas expressões —
aplicar e adaptar — demasiado triviais e até funcionais,
que não correspondem à seriedade da tarefa. Por isso, di-

86
versos autores falam de atualizar a palavra de Deus. Esta
atualização se dá mediante interpretação. Chegamos,assim,
a um dos capítulos fundamentais de toda querigmática e de
toda homilética e até da exegese, o capítulo da hermenêutica.
Na realidade, boa parte do que dissemosaté agora já
correspondia a esta questão básica da interpretação herme-
nêutica da palavra de Deus; principalmente, mediante o que
dissemos nos primeiros itens, onde procuramos sintetizar
as que cremos serem as melhores contribuições da
hermenêutica atual.
Podemos recordar o essencial do que foi dito: a pala-
vra de Deus se atualiza seguindo o mesmo método que Je-
sus seguiu, o qual em boa medida correspondia aos méto-
dos midráxicos e homiléticos utilizados dentro dos ambi-
entes e tradições sinagogais, onde ele cresceu e se formou.
Partindo de um texto tomado da Escritura (dos livros pro-
féticos no caso de Jesus), procuram-se os fatos da atualida-
de que mostram relação com ele. Esta relação consiste em
ser como exemplo e comprovação do que esta palavra pro-
clamada anuncia: ser sua realização hoje. Então se conver-
tem em sinais e em cumprimento da palavra. Por meio de-
les se percebem a eficácia e a atualidade desta.
Por outro, tais sinais ajudam a entender o texto, a de-
sentranhar seu significado, com o qual temos movimento
circular hermenêutico: o que nos leva do texto ao fato /sinal
e do fato/sinal ao texto. Assim creio que pode ser com-
preendida e renovada a famosa expressão ou imagem do
círculo hermenêutico (tão repetida na escola dos
hermeneutas: R. Bultmann, G. Ebeling, E. Fuchs...)º. Esta
doutrina pode ser ampliada seguindo dupla tradição. Tra-
tar-se-ia de refletir ainda mais sobre o duplo pólo da
hermenêutica, já indicado: a palavra é o sinal. Ter-se-ia que,

9 Desta questão hermenêutica ocupo-me amplamente em meu ensaio El


menester de la predicación, Sígueme, Salamanca, 1972.

87
de um lado, aprofundar na compreensão da palavra de Deus
como falar de Deus aos homens em cada circunstância e, de
outro, mergulhar fundo no sentido real dos sinais, do que
são estes fatos que chamamossinais. É isto algo que inten-
taremos fazer no item seguinte.

16. Palavra, revelação e sinal dos tempos

A palavra de Deus como realidade histórica cristali-


zou em um texto determinado pertencente a uma época
concreta. Esta época é diferente da nossa. É mister, portan-
to, superar uma distância para aproximar-se dela: a distân-
cia existente entre nossa época e a do nascimento da Escri-
tura. É o que a hermenêutica procurafazer, esta é a sua tare-
fa (P. Ricoeur): consiste em transformar o texto antigo (a
Escritura) em texto novo (a pregação hodierna), sem des-
truir a continuidade entre ambos.
Para isto é preciso tomar a sério o texto e a realidade atu-
al. Não tomo a sério o texto quando o converto em verdade
eterna,isto é, quando o considero dirigido de modo unifor-
me e linear a qualquer época; porque cada época é diferen-
te e exige uma encarnação própria dela. Implica, pois, a
mudança que rompa a uniformidade do “eternismo” (dos
“sempre igual” sob qualquer aspecto). Tampouco tomo a
sério a situação de nosso tempo ou época, quando a consi-
dero qual mero espaço de aplicação ou de adaptação de
doutrina atemporal. O aplicar ou adaptar parece sugerir que
uma época só se diferencia de outra numérica ou quanti-
tativamente. Ignora-se sua peculiaridade qualitativa. É por
isso que se deve falar, não de aplicação nem de adaptação,
porém, sim, de atualização e interpretação hermenêutica.
A atividade hermenêutica assemelha-se a um encon-
tro entre a palavra de Deus e a situação. Entretanto, neste

88
encontro não deve haver nem vencedor nem vencido. À
hermenêutica é processo interpretativo na linha de uma
conversa em que há recíproco falar e escutar, perguntar e
ser interrogado. Em conversa autêntica, pessoal não se tra-
ta de um interlocutor impor seu ponto de vista ao outro
interlocutor, porém, de se conseguir uma transformação
progressiva para o que existe de comum entre ambos(H. G.
Gadamer).
Temos algo comum dentro da distância. “Fusão de ho-
rizontes” total não é possível nem desejável. Entre o texto e
o intérprete permanece sempre uma tensão. Portanto, o pro-
gresso hermenêutico de compreensão interpretativa não
consiste em fazer sucessivamente a exegese do texto bíblico
e a interpretação da realidade atual, mas em fazer ambasas
coisas simultaneamente; não uma coisa depois da outra,
mas, sim, ao mesmo tempoº!.
Quandose pensa que toda esta operação não é ativida-
de neutra, mero jogo intelectual, porém que pode estar sob
a influência do Espírito, na linha dos carismas de profecia
— que tendem exatamente a atualizar a palavra de Deus —,
então se pode chegar a uma conclusão interessante, a uma
realidade que nos aproxima de outra tese importante da
teologia atual: Deus continua falando hoje. E mais: temos
certa elucidação de comose realiza esta atualização proféti-
ca e o falar hodierno de Deus.
Antes, contudo, de chegarmos aí, convém queanalise-
mos o outro pólo da questão a que aludimos, o que se refere
aos fatos atuais como sinais dos tempos que nos mostram
de que modo se cumpre hoje a palavra de Deus e que hoje
ela também é eficaz.
A doutrina dos sinais dos tempos é fundamental para
estabelecer uma norma básica para a pregação cristã: rela-

81 Z. Ziemer, “Der Text”, em K. H. Bieritz-Ch. Bunner, Handbuch der Predigt,


[s/e], Berlim, 1990, 207-247.

89
cionar a palavra de Deus, notícia jubilosa, com alguns acon-
tecimentos que, por seu significado, evidenciam que esta pa-
lavra se cumpre hoje; por isso os chamamossinais. E, como
representam referência aos tempos em que acontece o anún-
cio predicacional ou evangélico, podem ser denominados
também sinais dos tempos.
Aí reside o elementos de novidade na pregação e na
homilia; a raiz de toda hermenêutica querigmática. Aí,
outrossim, se enraíza a superação de todo moralismo. Aliás,
como é sabido, a expressão “sinais dos tempos” se acha no NT
(Mt 16,2-4). Mas foi a constituição conciliar Gaudiumet spes
(GS 4e 11), a que ajudou de maneira decisiva a redescobrir
sua transcendência e importância para a teologia. Talvez
tenha faltado séria aplicação desta doutrina à querigmática
e à homilética. A teologia dos sinais dos tempos, tal como
foi apresentada pelo Vaticano II, deve ser capítulo central
de toda querigmática e homilética.
Um dos melhores comentadores da Gaudiumet spes,
que contribuiu de maneira decisiva para sua elaboração, o
Pe. Chenu, dá a seguinte interpretação: os sinais dos tem-
pos são acontecimentossignificativos, a saber, certos fatos,
certas experiências que, além do seu conteúdo imediato
próprio, possuem a qualidade de serem expressão de reali-
dade mais profunda: os valores do Reino e, assim, se trans-
formam em símbolos. Certamente que nãose trata de fatos
isolados, episódicos, mas de fenômenos que se prolongam
no tempo, que alcançam alguma duração, que se estendem
ao longo de períodos amplos, de ciclos de vida coletiva.
Estruturam-se como constelação de fatos menores, graças
ao que suasignificação vai surgindo de maneira inequívo-
ca. Seu norte, sua orientação, delineia-se de modo firme*?,

%2 M. D. Chenu, “Signos de los tiempos: reflexión teológica”, em Y. M.J,


Congar-M. Peuchmaurd (orgs.), La Iglesia en el mundo de hoy. Constitución pastoral
Gaudiumet spes, Taurus, Madri, 1970, 253-281. Cf. L. González Carvajal, Los sig-
nos de los tiempos, Sal Terrae, Santander, 1987.

90
É verdade que uma leitura dos acontecimentos, inter-
pretando-os como manifestações de Cristo e de sua presen-
ça ativa na história, equivale a algo arriscado, pois, em mui-
tos deles, co-habitam de certo modo o divino e o demonia-
co. Não obstante, o cristão deve ter a ousadia desta herme-
nêutica, descobrindo Deus no mundo não de modo cego,
mas, sim, mediante as indicações das vozes proféticas, dos
profetas que surgem em seu seio.
J. Sobrino soube expressar bem as ramificações e conse-
quências desta teologia, que chegam a alcançar a nossa
temática”, Se não tomarmosa sérioos sinais dos tempos,diz
ele, poderemos incorrer em deísmo teológico: poderemosdar
a entender que Deus só esteve presente e atuante no Cristo
histórico (somente ele teria realizado sinais, semeia), e depois
Deus ter-se-ia ausentado da história. Em outras palavras: Deus
só teria falado então e, em seguida, teria emudecido.
Os teólogos, os hermeneutas, os servidores da palavra
de Deus devem propor-se a questão sobre o que Deus pode
estar dizendo hoje. J. Sobrino conhece bem a tese teológica
de que a revelação ficou encerrada com Cristo. Por isso, acres-
centa: se alguém argumenta comigo que Deus nada pode
dizer de radicalmente novo, digo-lhe que ele teria que estar
aberto pelo menos ao fato de que Deus volte a dizê-lo e de
que talvez o dissesse hoje de outra maneira. Não parece cor-
reto o pressuposto de que a revelação de Deus, como fato
real, se deu no passado,e de que aquilo que compete à teolo-
gia ou hermenêutica ao longo da história é apenas desenvol-
ver conceitualmente, ainda que como desenvolvimento seja
novidade, as virtualidades não explicitadas no passado. A
teologia deve, sem dúvida, fazer isto. Mas deve também es-
tar aberta ao fato de ser o próprio Deus quem historicamente
vai desenvolvendoestas virtualidades de modoreal por meio

º J. Sobrino, “Los “signos de los tiempos” en la teologia de la liberación”, em


Estudios Eclesiásticos 64 (1989), 249-269.

91
de palavras atuais na história. É isto que se acha em jogo ao
se afirmar que a teologia aceita a realidade dos sinais dos
tempos, que Deus pode estar reconhecidamente presente na
história, que esta palavra de Deus ao longo da história é o
modo mais radical, a começar do próprio Deus, de desenvol-
ver as virtualidades de sua revelação bíblica.
Outros teólogos, de filiação bem diferente, como B.
Forte, tem abundantes idéias similares. Para este teólogo
italiano, discípulo de W. Kasper, a exigência de pôr-se à es-
cuta dos acontecimentos supõe no teólogo ou hermeneuta
a convicção de que a história está habitada de certa manei-
ra pela Palavra? . Escutar nosso tempo podeser interpreta-
do como descoberta do próprio evangelho na história do
mundo. Tenta-se captar na história a presença, certamente
misteriosa e oculta, da mensagem evangélica. A propósito
da história do mundo, a Igreja não é somente a que ensina,
mas também a que escuta e aprende.
Voltando à proposta sobre a relação entre palavra de
Deus e acontecimento, podemos dar novo passo. O dado
de a pregação cristã consistir basicamente em estabelecer
relação entre a palavra e alguns fatos só pode ser com-
preendido de todo, quando se conhece bem a natureza ou a
estrutura desta palavra, a palavra de Deus.
Porque a palavra de Deus, já de per si, mostra esta rela-
ção; ela possui com fatos históricos relação intrínseca. Está,
pois, orientada e aberta para eles de per si, em seu interior.
E isto pela própria natureza da revelação cristã de que a pa-
lavra é expressão. A palavra de Deus serve à revelação como
sua cristalização, formação e mediação expressiva . Possui,
portanto,traços ou qualidades quecaracterizam a revelação”.

& B. Forte, Teologia como companhia, memória e profecia, Paulus, São Paulo.
9 D. H. Pesch, “Das Wort Gottes als objektives Prinzip der theologischen
Erkentnis”, em W. Kern-H.J. Pottmeyer-M.Seckler, Handbuch der Fundamentaltheologie
4. Traktat theologischer Erkenntnislehre, 1988, 22-50. Como obraclássica, pode-se consul-
tar R. Latourelle, Teologia da revelação, 6º ed., Paulus, São Paulo.

92
Pode-se projetar sobre aquela o que dissermos sobre esta.
Por isso, um item sobre a revelação é necessário em toda
querigmática.
Nos estudos que a teologia atual faz sobre a revelação
cristã, esta conexão com osfatos históricos aparece com novo
relevo e força especial. Particularmente importante é o que
diz sobre a natureza e o caráter desta conexão. Além disso,
há uma coincidência interessante entre os diversos autores
mais recentes quanto a este ponto.
Em primeiro lugar, as análises de J. M. Rovira Belloso
são esclarecedoras**: recordam-nos como diversas tradições
bíblicas (Ex 3,6.14, por exemplo) consideram determinados
fatos da história de Israel como revelação de Deus, porque
seus protagonistas os viveram como situações em que se
tornava patente a presença ativa da divindade. Estas tradi-
ções bíblicas narrativas culminam nos evangelhos, que apre-
sentam também uma série de fatos históricos envolvidos
em interpretação crente semelhante.
Para o profeta e depois para os homens e mulheres do
povo,estes fatos permitem contemplar a presença amorosa
e ativa de Deus como algo mais profundo do que o conjun-
to de fatores históricos sucedidos naquela situação e per-
ceptíveis como um todo, em que se pode discernir a “pas-
sagem de Deus”.
Acabamos de mencionar o profeta. É ele quem recebe
esta revelação, que em seguida converte em palavra para
transmiti-la ao povo da parte de Deus. Mas este evento que
resumimos em uma única frase é, na realidade, processo
complexo que se compõe de várias frases.
Em primeiro lugar, temos mais do que um fato, uma
situação: situação de profunda miséria coletiva, a de um
grupo marginalizado, escravizado, oprimido, exilado.

86 7. M. Rovira Belloso, Revelación de Dios, salvación del hombre, Secretariado


Trinitario, Salamanca, 1979, 100-120.

93
Diante dela, o profeta (Moisés,Isaías, Jeremias...) diz haver
recebido uma promessa de libertação. E esta experiência é
vivida como palavra de Deus dirigida ao povo, palavra que
é promessa. Ela ocorre após o cumprimento real do que foi
prometido. Isto significa que acontece a passagem da misé-
ria e do terror supremo da morte para a vida, para a liber-
dade, para o resgate e a reunificação do povo; outrossim,
do pecado para o perdão e a reconciliação. O fato é vivido
como que movido pela ação de Deus e manifestação de sua
salvação.
A palavra de Deus expressa agora esta revelação. Re-
conhece a intervenção de Deus nesta passagem ou transi-
ção pascal. Expressa a experiência da presença divina na
história vivida. A palavra, pois, possui dupla vertente: é
promessa de fato futuro gozoso e também anúncio da rea-
lização deste fato, anúncio de seu cumprimento ao mesmo tem-
po que interpretação dele (de sua dimensão teológica). Este
núcleo, modificado de múltiplas maneiras ao longo da Escri-
tura, mostra sempre a mesma estrutura: opressão, clímax
da situação de miséria, desenlace libertador da perseguição
da morte ou do sofrimento, por vezes unido ao pecado. Tudo
é lido ou falado, isto é, revelado pela palavra de Deus como
iniciativa, presença e intervenção do Deus amante fiel.
O clamor dos pobres é início da intervenção de Deus.
Ele quer este clamor, suscita-o porque quer a justiça e a rea-
lização em plenitude do homem. Não pode deixar de escu-
tar seu próprio eco, sua própria voz.” Deus, que nosfaz à
sua imagem, quer a humanidade livre como ele. O clamor
pela justiça e pela liberdade é, portanto, o ponto de partida
da revelação histórica de Deus (e simultaneamente o fio
condutor que nos diz como Deusé).
No fim da Bíblia já não é somente o povo de Israel no
momento prévio do êxodo, nem no exílio babilônico, nem

% 51 12,6; Eclo 35,17-18.

94
Jó... nem a viúva pobre do evangelho (diante do tribunal)
que clamam justiça. É todo o povo dos vivos e dos mortos
que “gritarão com voz possante: “Até quando tu, o mes-
tre, o santo, o veraz, vais esperar para fazer justiça e vin-
gar nosso sangue, o sangue dos habitantes da terra?” (Ap
6,10). A consciência deste clamor, a consciência da espe-
rança, que este clamor desperta, equivale à consciência de
que Deus vai revelar-se como se revelou na história. Já é
fato importante. Este clamor de todos não ficará frustra-
do, porém, encontrará resposta na plenitude gratuita do
“Deus tudo em todos” (1Cor 15,28), que não constitui o
fim, O término (extinção ou destruição) da história, mas
sua culminância.
Não se pode prescindir do acontecimento, de certos
acontecimentos, se se quer respeitar o que é a estrutura da
revelação e da palavra de Deus que supõem sempre uma
situação de fato, em que transparecem desígnio benevolen-
te e presença ativa que explicam o ser e o sentido daquela
situação.
A situação judeu-cristã corresponde a uma religião que
percebe na história a passagem de Deus, que acha na histó-
ria o fator transcendente e divino, que vincula transcen-
dência e imanência, ser e ação, natureza e liberdade. Não é
gnose que se detém na subjetividade.É a religião do símbo-
lo, entendido comosinal que oculta e revela em determina-
dos fatos históricos uma realidade divina mais profunda.
A história de Israel é revelação de Deus assim comoa
história de Jesus é a mediação adequada da revelação do
Pai em sentido plenior, que leva a atingir seu ápice a orien-
tação libertadora e salvífica, integral e unitária das ações
veterotestamentárias. Sobretudo, acaba de manifestar as
profundezas supremas de Deus e de seu desígnio, suas en-
tranhas de Pai, a saber, seu Filho enviado aos homens para
fazer-se homem e para fazer os homensfilhos partícipes da
divindade. Revela definitivamente o Nome,revela e realiza
95
a nova aliança e a nova humanidade a que estamos desti-
nadosê,
A última grande obra de E. Schillebeeckx, considerada
como o resumo de sua vida, constitui interessante confir-
mação destas análises?. O tema da revelação já havia ocu-
pado a atenção deste grande teólogo dominicano, herdeiro
da grandetradição tomista?. Agora, no fim de sua vida, fez
sugestiva retractatio do trabalho realizado ao longo de mui-
tos anos. Apresenta coincidência básica com teses da teolo-
gia da libertação. Eis, em breve síntese, algumas de suas
proposições principais.
Os fatos se convertem em história, situados dentro de
área demarcada de sentido, em tradição que os vai inter-
pretando. Ora, o primeiro nível de interpretação conferidora
de sentido é o que nosdiz: a libertação humana se realiza e
é experimentada. Depois, em um segundo momento ou ní-
vel, a tradição religiosa com fé em Deus interpreta esta con-
juntura (kairós) libertadora — de libertação humana —, re-
lacionando-a com Deus. Homens crentes professam que
Deus trouxe salvação a homens e por meio de homens. As-
sim sendo, o acontecimento profano se torna material para
ser usado pela palavra de Deus; e a revelação adquire es-
trutura sacramental, porque se realiza através desta media-
ção de alguns fatos bem tangíveis, mundanos,sinais do trans-
cendente. Por conseguinte, a revelação pressupõe processo
com sentido humano, acontecimento que já é destacável do
ponto de vista humano: ser libertador do homem. Sem este
pressuposto pode ficar vazio de conteúdo e converter-se em
superestrutura artificial. Somente em uma história profana,
em que homens sãolibertados para alcançar verdadeira hu-
manidade, é que Deus pode revelar seu próprio ser.

%& Cf. o importante estudo de A. Torres Queiruga, La revelación de Dios en la


realización del hombre, Cristiandad, Madri, 1987.
89 E. Schillebeeckx, Menschen. Die Geschichte von Gott, Zurique, 1990, 29-50.
% E. Schillebeeckx, Revelación y teologia, Sígueme, Salamanca, 1968.

96
No fato exodal do Egito, a história profana recebe nova
leitura por parte de pessoas que crêem em Javé, o Senhor, e
é interpretada como história salvífica: pessoas que crêem
em Deus chegam à experiência e à intuição de que o Senhor
resgatou o povo das mãos dos egípcios. Aí aparece clara a es-
trutura da história salvífica e da história da revelação. Surge
com clareza quefalar da ação de Deus, do agir de Deus, na
linguagem da fé, tem fundamento na história e no mundo.
Também com relação a Jesus devemoslevar em conta
que se trata de acontecimento humano, encarnado na his-
tória: a história de uma pessoa que libertava homens, que
os reconciliava com eles mesmos e os abria aos irmãos, re-
conciliando-os com Deus. Era esta a mediação pela qual os
crentes reconheciam nele a face de Deus. Sem esta atuação
e vida humanas de Jesus, toda cristologia se converte em
superestrutura ideológica. Sem este sentido humano da vida
de Jesus, todo sentido religioso carece de credibilidade.
Por outro lado, se levarmos em conta a relação positi-
va de Jesus com Deus, principalmente a experiência do Abba
este processo humano de libertação, que é Jesus, não nos
conduzirá a uma teologia verdadeira, porque não chegará
à conclusão última do que significa a transcendência da tra-
dição evangelica.
Em todo caso, é mister pensar que Deus é Deuse não
um dos componente ou peças deste mundo. Ele não é, por-
tanto, um elemento a mais que empregamos para a cons-
trução do mundo. Não se pode fechá-lo em nenhum dos
movimentos humanos de libertação, nem abrangê-lo em/
com nenhum deles. É verdade queele é a fonte e a alma de
todo movimento humanolibertador, porém não se identifi-
ca com nenhum deles, bem como não e identificável com
nenhum evento histórico. Supera-os todos e nenhum pode
ser absolutizado, porque só ele é o Absoluto com seu Filho
Unigênito. Essa é a reserva escatológica que a hermenêutica
da revelação, que estamos descrevendo, não deve esquecer.

97
O símbolo da fé (credo) é, segundo E. Schillebeeckx, a
referência fundamentadora e esclarecedora desta herme-
nêutica. Nele os cristãos expressaram experiência vital
amadurecida ao longo de séculos. Formalizaram, mediante
sua fé em Deus criador do céu e da terra, em Jesus Cristo,
seu Filho único, nosso Senhor, no Espírito Santo e na Igreja.
Ora, neste credo expressa-se fé na absoluta presença salvífica
de Deus nos homensdentro de sua história. Isto quer dizer:
sejam quais forem as circunstâncias em que nossa vida de-
semboque, não existe situação alguma em que Deus não
esteja perto e em que não possamos encontrá-lo como pes-
soa, fonte de vida, de amor e de reconciliação.
A partir daí, E. Schillebeeckx desenvolve umasérie de
teses muito semelhantes às de K. Rahner sobre o cristianis-
mo anônimo. À ativa presença salvífica de Deus em nosso
mundo, diz ele, não pode ser reduzida à consciência explí-
cita ou à experiência direta que tenhamos de tal presença
doadora de sentido. Por isso, não podemos reduzir a salva-
ção proveniente de Deus a estes dois âmbitos ou lugares
especiais de salvação (explícita e explicitadora) que chama-
mos de religiões.
A história salvífica não pode ser limitada à história das
religiões, tampouco à do judaísmo ou do cristianismo. Por-
que a totalidade da história profana se acha sob a direção
do Deus salvador. Por isso, o primeiro lugar em que se rea-
liza a salvação é o que chamamosdehistória profana, natu-
ralmente sob a forma de oferta e dom: Extra mundumnulla
salus. A religião, a Igreja, a revelação, a palavra de Deus,a
fé, o sacramento, são realidades de ordem ulterior, que têm
que ver com a consciência e sinal desta salvação, com a to-
mada de consciência de seu significado e de sua realização
suprema, que é Cristo. A conscientização e o significado são
fundamentais para o processo salvífico e libertador. Daí a
necessidade da revelação e da pregação na Igreja. Podemos
dizer que ambas são o desenvolvimento interpretativo e

98
causal da salvação que Deus realiza germinalmente no
mundo. Ambas a transformam em tema ou a verbalizam
(K. Rahner diria que a tornam categorial ou explícita). São
anamnese e celebração.
Com esta última observação, já mencionamosa dimen-
são litúrgica da pregação:já estamosfalando da homilia.

99
Capítulo 2

AÇÃO LITÚRGICO-CELEBRATIVA

1. No íntimo da liturgia
A homilia, tal como a entendemoshoje, possui sentido
muito concreto: é a pregação que ocorre dentro da liturgia,
e, de modo especialíssimo, na missa.
É certo que, desde longa antiguidade, se denominou ho-
milia a pregaçãocristã em geral. Como verbo (homilein) já apa-
rece em At 20,11 e o encontramos como substantivo em
Inácio de Antioquial,! Eusébio de Cesaréia? e Gregório Magno”.
O sentido que tem na atualidade já surge na obra de 5.
Gobel, Methodologia homiletica, publicada em 1672, e o
Compendiumtheologiae homileticae de J. W. Baier, de 1677. Mas,
onde encontramos de maneira explícita a noção de homi-
lética, é na Sacrosanctum concilium (SC):

“Recomenda-se encarecidamente, como parte da pró-


pria liturgia, a homilia, em que, durante o ciclo do ano
litúrgico, se expõem, com base nostextos sagrados, os
mistérios da fé e as normas da vida cristã. E mais: nas
missas que se celebram aos domingose festas de pre-
ceito, com a assistência do povo, nunca se omita a
homilia, a não ser por causa grave” (SC 52).

! Pol. 5,1
2H. E. VI, 19.
3 Ep 10,52.

101
A melhor exemplificação desta doutrina conciliar pode
ser encontrada em um dos textos mais antigos da Igreja
apostólica, ao descrever a liturgia primitiva, a Apologia I de
são Justino, em torno do ano de 153, onde lemos o seguinte
relato descritivo:
“E no dia chamadodo sol, tem-se uma reunião (syneleu-
sis) em um mesmolocal para todos os que moram nas
cidades ou nos campos. É lêm-se as memórias dos após-
tolos ou as escrituras dos profetas, conforme o tempo
o permita. Em seguida, quando o leitor já terminou,
quem preside faz um convite e uma exortação no sen-
tido de se imitarem estas coisas excelsas. Depois, todos
nós nos levantamos de umasó vez e recitamos orações.
E (...), ao acabarmosde orar, apresentamos pão, vinho
e água, e quem preside eleva (...) ações de graças(...) E
o povo aclama dizendo: “Amém”*. H14

O termo usado por Justino para aludir à homilia (exor-


tação ou proklésis) é variante do termo empregado para des-
crever a pregação de Paulo em Antioquia da Pisídia (At
13,15ss) e de Pedro depois do Pentecostes (At 2,41: paráklesis).
Nesta última passagem ele vem unido, como sinônimo, ao
verbo “dar testemunho”, que conhecemos como termo ha-
bitual para a pregação ou para o ministério querigmático.

2. Preção gozoso na pregação e na anáfora

Fica bem claro, diante dos textos anteriores, que a


homilia faz parte da liturgia. Como? Conforme SC 52, me-
diante a relação que esta pregação tem e deve ter com o ano

* D. Ruiz Bueno, Padres apologistas griegos, BAC, Madn;,1954, 258.

102
litúrgico e com a missa; mais concretamente com seus tex-
tos sagrados.
Ora, a questão em que queremos deter-nos agora é esta:
como se pode entender e realizar este ensinamento conci-
liar? Que significa propriamente que a homilia seja parte
da liturgia, ou, como dizíamos,estar dentro da liturgia? Por-
que, evidentemente, o estar dentro ou formar parte não deve
ser entendido de maneira extrínseca, exterior, qual meracir-
cunstância externa, porém, comoalgo interno e intrínseco.
A homilia não pode ser corpo estranho dentro do conjunto
litúrgico, mas, sim, elemento sintonizado intimamente com
o conjunto litúrgico. Este não deve ser mero contexto, po-
rém, co-causa determinante de sua realidade interior.
Analisemosos passos que o pregador homilético deve
dar a fim de realizar esta tarefa. Em primeiro lugar, mostra-
rá as relações concretas que existem entre a palavra de Deus
proclamada e o comentário do pregador sobre esta palavra,
de um lado, e a liturgia, do outro. Estas relações são três: o
anúncio gozoso ou pregão /proclamação, o memorial e o
hoje. Vejamo-los.
Não só a pregação cristã é evangelização, ou seja, O
anúncio e a proclamação da boa nova. A liturgia também é,
concretamente a liturgia eucarística. Com efeito, são Paulo,
ao terminar de descrever a eucaristia, de acordo com a tra-
dição que ele recebeu, faz uma espécie de síntese final do
que é e do que faz a celebração eucarística. Ele diz então:
“Pois sempre que comeis este pão e bebeis este cálice
anunciais a morte do Senhor até que ele volte” (1Cor 11,26).
O verbo que encontramos na oração principal é o verbo
kataggellein, sinônimo de “evangelizar”. Os dois têm a mes-
ma raiz: “Proclamar a boa nova”. Portanto, Paulo afirma
quea eucaristia é proclamação gozosa, da mesma forma que
o é a pregação cristã. Coincidem e têm em comum este ca-
ráter querigmático e evangelizador (não se deve esquecer
que querigmasignifica também proclamação, pregão). Con-

103
tudo, não pára aqui o paralelismo. Não só o ato é semelhan-
te, mas, principalmente, o objeto do ato (ou complemento
direto): o que a eucaristia anuncia é a morte do Senhor.
Explicitando o que diz são Paulo, poderíamos traduzir: “Anun-
ciais a morte e o senhorio de Jesus”,isto é, seu ser feito Senhor,
sua glorificação e sua ressurreição. Portanto, o que se anuncia
na eucaristia é o mistério pascal ou a morte e a ressurreição
de Cristo. Já vimos como este é o conteúdo do querigma em
sua versão cristologizada. Por conseguinte, a coincidência
entre liturgia (eucarística) e pregação é clara.
Comoa eucaristia realiza esta proclamação? Por meio
de seus gestos, símbolos e textos oracionais. Seus gestos são
os do banquete sacramental: a reunião da assembléia
litúrgica em torno de uma só mesa, a comunhão do pão
partido e do vinho repartido transformados em corpoe san-
gue de Cristo que se entrega e se torna presente, com sua
pessoa e sua ação salvífica tanto na assembléia reunida quan-
to em cada um de seus membrose, assim, faz a todosparti-
cipantes de sua morte, de seu perdão, de sua redenção e de
sua nova vida, símbolos sacramentais do mistério pascal
em sua realidade cristológica e eclesiológica.
Significa-se, deste modo, a nova criação, que surge
como a nova humanidade finalmente reunida e reconcilia-
da no banquete eucarístico, paradigma supremo do desíg-
nio salvífico de Deus”. A vida nova do ressuscitadoé trans-
mitida aos homens, reunindo-os na refeição da nova famí-
lia humana. Assim se manifesta e se realiza a fraternidade,
a filiação levada à plenitude.
Depois vêm as anáforas, os prefácios, que são a procla-
mação do mistério de Cristo, quer em sua unidade, quer
em cada um de seus diversos aspectos. Aqui, o destinatário
se diversifica: não é apenas o povo, como na pregação, mas
o próprio Deus, qual meta do louvor e da ação de graças.

3 Cf. Is 25,6-8; 55,1-3; Jr 31,10-14; Am 9,13-14.

104
Anunciam-se os mistérios cristológicos para louvar, por
meio deles, o Pai, a quem se dirigem estes textos oracionais.
Por conseguinte, a homilia deveria mostrar esta impor-
tante convergência, esta semelhança profunda entre a pala-
vra de Deus e a liturgia eucarística. O querigma deverá ser
apresentado não só com os textos da palavra, porém, ou-
trossim, com as imagens, os sinais e as expressões tanto do
rito eucarístico quanto das orações eucarísticas.
Fazendo esta síntese entre palavra e liturgia, sob o as-
pecto da proclamação evangélica, a homilia chegará a ser,
de maneira reduplicativa, pregão e anúncio gozoso. É o que
diza SC:
“Por ser o sermão parte da ação litúrgica, indicar-se-á
também nas rubricas o lugar mais apto (...). As fontes
principais serão a Sagrada Escritura e a liturgia, já que
esta pregação é proclamação das maravilhas operadas
por Deus na história da salvação ou mistério de Cristo,
que está sempre presente e atuante em nós, particular-
mente na celebração da liturgia” (SC 35,2).

3. O memorial

Um segundo ponto de convergência entre a palavra de


Deus e a liturgia que a homilia mostrará é o caráter de
memorial. Não só a pregação é memorial, como relato nar-
rativo, a liturgia como anamnese também é.
Para comprovar isto basta que voltemos ao texto
paulino de 1Cor 11,25; aí já não é Paulo, porém, sim, o pró-
prio Jesus quem, concluindo o rito eucarístico, isto é, a últi-
ma ceia, diz: “Cada vez que bebeis (deste cálice), fazei-o em
memória de mim”. Antes, a propósito de comer o pão, seu
corpo, dissera o mesmo: “Fazei isto em memória de mim”
(1Cor 11,24).

105
Por conseguinte, a eucaristia, em seu núcleo ritual de
comida e de bebida sacramentais, é memorial, anamnese
de Cristo que se entrega, portanto, de sua pessoa e de sua
ação salvíficas. Entretanto, não só em seu núcleo ritual, mas
também na oração central, a anáfora, constatamos o mes-
mo. À anáfora é uma grande oração doxológica, que apóia
seu louvor a Deus e sua ação de graças ao Pai em um moti-
vo fundamental: as grandes ações por ele realizadas ao lon-
go da história salvífica. Para isto faz memória sempre desta
história salvífica, quer em seu conjunto, quer em suas eta-
pas fundamentais, quer em alguma outra de suas etapas.
Assim se transforma em relato, narração. A anáfora é a
hagadá cristã.
Sabe-se que a liturgia judaica, em sua celebração da
páscoa, possui um relato central do ocorrido nesta noite e
em todas as noites salvíficas da história de Israel. Tal relato
se denomina hagadá. Ora, nós cristãos, temos nossa hagadá
em que, mediante uma narração, fazemos memória do ocor-
rido em nossa história como povo de Deus e, sobretudo, na
noite da última ceia, núcleo da história santa centralizada
em Cristo e em seu mistério pascal.
Exemplo muito claro disto temos na IV anáfora ou ora-
ção eucarística de nosso Missal romano. Nela se vão percor-
rendo as etapas do AT, da encarnação, da vida terrena de
Jesus, dos últimos e supremos mistérios de sua vida; tudo
culmina no relato da última ceia. Há outro exemplo muito
interessante que às vezes passa despercebido. São os prefá-
cios (uma das partes da anáfora) designados para cada um
dos cinco domingos da quaresma. Neles se reúne o relato
dos evangelhos que foram proclamados naliturgia da pala-
vra, concretamente: as tentações de Jesus” no primeiro do-
mingo; a transfiguração de Cristo” no segundo; o episódio

é Mt 4,1-11 (ciclo A), Mc 1,12-15 (ciclo B), Lc 4,1-13 (ciclo O).


7 Mt 17,1-9 (ciclo A), Mc 1,1-9 (ciclo B), Lc 9,28b-36 (ciclo O).

106
da samaritana” no terceiro; a cura do cego” no quarto, e a
ressurreição de Lázaro!º? no quinto.
Também o prefácio próprio do domingo de Ramosalu-
de muito diretamente ao relato da paixão!!. Um último
exemplo a ser levado em conta é o do pregão da vigília pascal
que, sob a forma de prefácio, hino e proclamação, contém
admirável síntese da história sagrada.
Vemos, pois, que o relato feito na liturgia da palavra
reaparece na liturgia sacramental eucarística. Ora, a homilia
deve relacionar esta semelhança, mostrar este caráter co-
mum de relato, memória ou anamnese e expô-los mediante
os elementos que lhe oferecem tanto as leituras quanto os
prefácios.

4. O hoje litúrgico
O terceiro elemento que nos mostra com evidência a
relação entre a palavra de Deus e a liturgia é o hoje.
Já vimos como a pregação de Jesus culmina com as
palavras: “Hoje se cumpre diante de vós esta Escritura” (Lc
4,21). Ora, a liturgia gravita também em torno do hoje, do
presente, da atualidade. Quando chegam os tempos
litúrgicos, seus textos não se cansam de repetir esta
hodiernidade. Vemo-lo sobretudo nos dois eixos do ano
litúrgico: Natal e vigília pascal, e bem no começo da cele-
bração. Na missa vespertina da vigília do Natal, canta o
intróito ou antífona do canto de entrada:

“Hoje sabereis que o Senhor virá e nos salvará, e ama-


nhã contemplareis a glória de Deus (Ex 16,6-7)”. Na

8 Jo 4,5-42 nos ciclos A, Be €.


* Jo 9,1-41, nos três ciclos.
10 Jo 11,41, também nostrês ciclos.
“ Mt 26,14-27 (ciclo A), Mc 14,1-15,47 (ciclo B) e Lc 22,14-23, 56 (ciclo €).

107
missa da meia-noite, o intróito volta a cantar: “O Se-
nhor me disse “Iu és meu Filho, hoje te gerei' (Sl 2,7)”.
E, na missa da aurora,o texto do intróito insiste: “Hoje
brilhará uma luz sobre nós, porque o Senhor nos nas-
ceu, e seu nomeé admirável Deus, Príncipe da paz, Pai
perpétuo e seu Reino não terá fim (Is 9, 2-6; Lc 1,33)”.

Na oitava do Natal, a 1º de janeiro, solenidade de santa


Maria, mãe de Deus, repete-se este intróito. Podem ver-se,
outrossim, o prefácio II do natal e da epifania:
“Por ele realizou-se neste dia (= hoje) o maravilhoso
encontro que nos faz renascer, pois, enquanto o vosso
Filho assume a nossa fraqueza, a natureza humana re-
cebe uma incomparável dignidade, torna-se de tal
modo um de nós, que nos tornamos eternos” (prefácio
NI do Natal). “Porque hoje, para iluminar todos os po-
vos, revelastes o mistério de nossa salvação, fazendo
vosso Filho aparecer em nossa carne mortal, para re-
novar-nos na glória de sua imortalidade” (prefácio da
epifania).

Em segundo lugar, temos a vigilia pascal. O pregão


pascal aí se encarrega de expressar o hoje, ou melhor, o “esta
noite” como o centro da celebração e seu memorial. Assim
diz:

“Esta é a noite, Senhor, em que do Egito retiraste os fi-


lhos de Israel (...). Ó noite, em que a coluna luminosa
as trevas do pecado dissipou, e os que crêem em Cristo
em toda a terra em novo povo eleito congregou! Ó noi-
te, em que Jesus rompeu o inferno,ao ressurgir da morte
vencedor (...). Só tu, noite feliz, soubeste a hora em que
Cristo da morte ressurgia; e é por isso que de ti foi es-
crito: A noite será luz para o meu dia! Pois esta noite

108
lava todo crime, liberta o pecador dos seus grilhões(...).
O noite de alegria verdadeira! (...) (proclamação pascal).

Depois destes exemplos, procuremos aprofundamento


ulterior: em que sentido a liturgia tem seu centro de
gravitação no hoje? Para responder a esta pergunta basta
que nos lembremos de algumas idéias e categorias expos-
tas no item anterior. Aí falamos da liturgia como memorial
e anamnese. Ora, o memorial litúrgico possui sentido espe-
cialmente denso: não é mera recordação, porém atualiza-
ção. Torna presente o recordado. Tem força e eficácia
presencializadoras, dado que o distingue do recordar me-
ramente subjetivo, que só se desenvolve na mente do sujei-
to. Aqui, ocorre algo que tem a ver com o hoje da vida do
crente e da Igreja.
O fato salvífico se aproxima do presente, não com suas
circunstâncias históricas, mas em seu núcleo supra-históri-
co, graças à ação do Espírito. Já ao falar da ressurreição,
vimos como o Espírito desfronteiriza Cristo ressuscitado
tanto espacial quanto temporalmente, permitindo-lhe tor-
nar-se presente em seu dinamismo pascal e salvífico. As-
sim, Cristo se aproxima do tempo presente e, nele, se apro-
ximam seus mistérios e ações salvíficas.
O Espírito é invocado na epiclese, elemento fundamen-
tal da oração eucarística, para que com sua presença dinã-
mica torne real e atual a ação de Cristo mediante o sacra-
mento!2. Esta ação começa já com a palavra de Deus, pro-
clamada, que é eficaz (SC 7), mas culmina na liturgia sacra-
mental por meio de seus sinais, de sua assembléia e da for-
ça de concretização que tem a ação sacramental. Daí poder-
se predicar o hoje da palavra e do sacramento. E, assim, a
homilia pode e deve mostrar esta estreita relação de con-

2 M.]). Krahe, Der Herr ist der Geist I, St. Ottiliem, 1986.

109
vergência e semelhança. A SC expõe esta doutrina median-
te categoria que repete amiúde ao falar da ação litúrgica: o
verbo exercere!* significa que a liturgia atualiza o que cele-
bra!*.
Como concretização e confirmação de tudo o que foi
dito, há um dado importante da eucaristia que às vezes passa
desapercebido, mas que pode ajudar bastante quem prepa-
ra a homilia: é a communio ou antífona da comunhão, que
possui traço especial em quase todas as missas dos tempos
do advento, natal, quaresma, páscoa e pentecostes.
Nesta antífona do rito da comunhão se toma um frag-
mento da leitura do evangelho ou de alguma das outras
leituras proclamadas e é cantado acompanhando o ato da
comunhão. O sentido é claro: no rito da comunhão, isto é,
na plena participação eucarística, se está realizando a pala-
vra proclamada. Assim, esta se presencializa, se converte
em atual, hodierna,isto é, pertencente ao hoje litúrgico. Por
meio da celebração, e na celebração, cumpre-se o que anun-
ciamos. Porque nela temos a ação sagrada, o símbolo efi-
caz, o rito que representa o que é objeto de todas as promes-
sas: o perdão, a reconciliação,a fraternidade significada pela
comensalidade e pela convivialidade, ou seja, pelo estarem
todos reunidos, os de longe e os de perto, os irmãos meno-
res e o Irmão maior, o Filho primogênito de Deus, em torno
da mesma mesa, expressão do amor universal. Subjaz em
tudo a entrega de Cristo, seu dom sacrifical, sinal do amor
do Pai e de sua aliança com a humanidade.

BSC2,6e7.
HFEinsenbach, Der Gegenwart Jesu Christi im Gottesdienst. Systematische Studien
zur Liturgiekonstitution der II Vatikanichen Konzils, Mogúncia, 1982.

10
5. À antífona da comunhão

Apresento, a seguir, o quadro das antífonas da comu-


nhão que correspondem literalmente a algumas dasleitu-
ras feitas na liturgia da palavra.
Segundo domingo do advento: “Põe-te em pé, Jerusa-
lém, sobe ao alto, contempla o gozo que Deuste en-
via” (Br 5,5; 4,36). Primeira leitura (ciclo C): Br 5,1-9.

Segundo domingo do advento:


“Dizei aos covardes de coração: 'Sedefortes, não temais.
Olhai nosso Deus que vem e nos salva”? (Is 35,4). Pri-
meira leitura (ciclo A): Is 35,1-6a.10.

Quarto domingo do advento:


“Olhai: a Virgem está grávida e dará à luz um filho, e
lhe porá o nome “Deus conosco”” (Is 7,14). Primeira lei-
tura (ciclo A): Is 7,10-14.

Natal, missa da aurora:


“Alegra-te, filha de Sião; canta, filha de Jerusalém. Olha
teu rei que vem, o Santo, o salvador do mundo” (Zc
9,9).
Primeira leitura: Is 62,11-12: “Olha teu salvador que
chega”.
Segundo domingo depois do Natal:
“A todos que o receberam dá-lhes poder para serem
filhos de Deus” (Jo 1, 12). Evangelho: Jo 1,1-18.

Epifania:
“Vimos surgir a estrela do Senhor e vimos com presen-
tes adorá-lo” (Mt 2,2).
Evangelho: Mt 2,1-12.

11
Primeiro domingo da quaresma:
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra
que sai da boca de Deus “ (Mt 4,46).
Evangelho (ciclo A): Mt 4,1-11.

Segundo domingo da quaresma:


“Este é meu Filho, o amado, meu predileto. Escutai-o”
(Mt 17,5). Evangelho(ciclo A): Mt 17,1-9.

Terceiro domingo da quaresma:


“Quem beber da água quelhe darei — diz o Senhor —,
a água que eu lhe darei se converterá nele em fonte de
água que jorra até a vida eterna” (Jo 4,13-14).
Evangelho (ciclo A): Jo 4,5-42.

Quarto domingo da quaresma:


“O Senhor me ungiu os olhos, fui, lavei-me e comecei
a ver e a crer em Deus “ (Jo 9,11).
Evangelho (ciclo A): Jo 9,1-41.
“Deverias alegrar-te, filho, porque este teu irmão esta-
va morto e reviveu, estava perdido e o encontramos”
(Lc 15,32).
Evangelho (ciclo C): Lc 15,1-3.11-32.
Quinto domingo da quaresma:
“Quem está vivo e crê em mim não morrerá para sem-
pre, diz o Senhor” (Jo 11,26).
Evangelho (ciclo A): Jo 11,1-45.
“Eu vos asseguro que, se o grão de trigo não cai na
terra e não morrer ficará infecundo, porém, se morrer,
dará muito fruto” (Jo 12,24-45).
Evangelho (ciclo B): Jo 12,20-33.
“Mulher, ninguém te condenou? 'Ninguém, Senhor”.
Eu tambem não te condeno.Vai e não peques mais” (Jo
8,10-11).
Evangelho (ciclo C): Jo 8,1-11.

112
Domingo de Ramos:
“Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que eu o
beba, faça-se a tua vontade” (Mt 26,42).
Evangelho: Mt 26,14-27,66 (relato da paixão).
Quinta-feira santa, missa vespertina:
“Este é o corpo que será entregue por vós, este e o cáli-
ce da nova aliança no meu sangue”. “Todas as vezes
que os receberdes, fazei-o em memória de mim” (1ICor
11,24-25).
Segunda leitura: 1Cor 11,23-26.
Vigília pascal e domingo da ressurreição:
“Cristo, nossa vítima pascal, foi imolado. Assim, pois,
celebremos a páscoa com os pães ázimos da sincerida-
de e da verdade” (1Cor 5, 7-8).
Segunda leitura do domingo da páscoa: 1Cor 5,6b-8.
Segundo domingo da páscoa:
“Estende tua mão e toca o sinal dos cravos, e não sejas
incredulo mas fiel” (Jo 20,27).
Evangelho (ciclo A): Jo 20,19-31).
Terceiro domingo da páscoa:
“Os discípulos reconheceram o Senhor Jesus ao partir
o pão” (Lc 24, 35). Evangelho (ciclo A): Lc 24,13-35.
“Assim estava escrito: “O messias, padecerá, ressusci-
tará dos mortos ao terceiro dia e, em seu nome, serão
pregados a conversão e o perdão dos pecados a todos
os povos(Lc 24,46-47).
Evangelho (ciclo B): Lc 24,35-48.
“Jesus disse a seus discípulos: “Vamos, comei”. E tomou
o pão e lhos deu” (Jo 21,12-13). Evangelho (ciclo C): Jo
21,1-19.
Quarto domingo da páscoa:
“Ressuscitou o bom Pastor, que deu a vida por suas

113
ovelhas e se dignou morrer por seu rebanho (sem cita-
ção). Evangelho (ciclo B): Jo 10,11-18 (o bom pastor).
Quinto domingo da páscoa:
“Eu sou a verdadeira videira; vós, os ramos — diz O
Senhor. Quem permanece em mim e eu nele, este dá
fruto abundante” (Jo 15,1-15). Evangelho (ciclo B): Jo
15,1-8.

Sexto domingo da páscoa:


“Se me amais, guardareis meus mandamentos, diz o
Senhor. Eu pedirei ao Pai que vos dê outro defensor
que esteja sempre convosco” (Jo 14,15-16).
Evangelho (ciclo A): Jo 14,15-21.
Ascensão:
“Sabei que eu estou convosco todos os dias, até o fim
do mundo” (Mt 28,20).
Evangelho (ciclo A): Mt 28,16-20.

Sétimo domingo da páscoa:


“Pai, eu te rogo que eles sejam um, como nós somos
um” (Jo 17,22). Evangelho (ciclo A): Jo 17,1.11b-19.
Vigília de pentecostes:
“No último dia dasfestas, Jesus, de pé, clamava: “Quem
tem sede venha a mim e beba” (Jo 7,37).
Evangelho: Jo 7,37-39.
Missa do dia de pentecostes:
“Todos ficaram cheios do Espírito Santo e falavam das
maravilhas de Deus” (At 2,4.11).
Primeira leitura: At 2,1-11.

Em seguida vou mostrar um segundo quadro, diferen-


te do anterior, mas que pode servir de bom complemento.
Nele sintetizo as grandes dimensões da eucaristia, seus as-

114
pectos centrais, tais como se deduzem de boa teologia
eucarística.
Diante do quadro, percebemos, logo depois, de que
modo a unidade do mistério eucarístico pode ser refratada
em grande riqueza de facetas. Que relação tem isto com
nosso assunto? Relação muito interessante: as leituras da
liturgia da palavra são muito diferentes, porém, por muito
que o sejam, será raro constatar que não tenham correspon-
dência com alguma destas dimensões tão variadas da euca-
ristia. Assim facilita-se a homilia ao estabelecer a relação
necessária entre a primeira e a segunda parte da missa.
Deste modo, perceber-se-á também melhor a conexão
entre as antífonas da comunhão, expostas anteriormente
(fragmentos das leituras proclamadas), e a missa comosa-
cramento:

1) banquete /agape
2) reunião, assembléia, reconciliação, aliança
3) sacrifício, oferta, morte, violência
4) festa, celebração
5) ação de graças, louvor, eucaristia, proclamação das
maravilhas de Deus
6) páscoa, trânsito, passagem da morte para a vida
7) renascimento, homem novo
8) transfiguração, transubstanciação
9) memória, atualização, relato, hoje
10) chegada do Reino: Cristo é o Reino, autobasiléia
11) epiclese, pentecostes: vinda do Espírito e de seus
dons
12) unidade na diversidade.

No hoje da liturgia cumprem-se as promessase a pala-


vra de Deus. Como o vemos? Considerando não só certos
aspectos da vida extra-eclesial (sinais dos tempos) ou al-
guns fatos da vida eclesial (extralitúrgica): o testemunho

15
dos cristãos e de suas comunidades noseio da história, po-
rém, outrossim, contemplando os sinais sacramentais, os
sinais ou ações litúrgicas em sentido próprio.
A homilia deve ter sempre esta dupla face.É bifrontal:
visa à vida extralitúrgica e à vida litúrgica, para descobrir
em ambas o hoje do cumprimento da palavra de Deus. Se
faltar uma das duas perspectivas, a homilia ficará coxa ou
vesga.

6. A liturgia como celebração


Depois do estudo mais analítico dos itens anteriores,
podemos propor-nos de novo a consideração do sentido da
homilia dentro de perspectiva mais global e unitária, em-
bora sem esquecer algumas das idéias até aqui expostas.
Podemos questionar-nos de modo radical sobre o significa-
do da liturgia ou para saber se a homilia é de fato pregação
litúrgica.
A liturgia, segundo a SC, pertence à ordem da expres-
são e manifestação. A ação salvífica de Cristo, que age na
vida, no mundo e nas pessoas, expressa-se e manifesta-se
de modo explícito na celebraçãolitúrgica. Assim se procla-
ma o nome, se faz memória de sua obra redentora e
transformadora e, desta maneira, ela se atualiza, se realiza
e se aprofunda, já que “a homilia, por cujo meio se atualiza
a ação de nosso Redentor... contribui para que os fiéis ex-
pressem e manifestem o mistério de Cristo” (SC 2),e “a história
da salvação ou mistério de Cristo está sempre presente e age
em nós, particularmente nas celebraçõeslitúrgicas” (ib. 35,2).
Ora, podemos entender este expressar, manifestar e
atualizar como formas concretas do celebrar. E é por isso
que a categoria do celebrar, na verdade, parece hoje muito
adequada para explicar o que é a liturgia. Efetivamente, a

116
SC utiliza a palavra celebração como sinônimo de liturgia
em repetidas ocasiões (é termo que aparece em 32 oca-
siões). No entanto, o que é mais importante, dá-nos algu-
mas pistas concretas para explicar o que é celebrar, pistas
que nos podem ser muito úteis para nosso estudo da
homilia.

Em primeiro lugar, celebrar é reunir-se:


“A Igreja jamais deixou de reunir-se para celebrar o
mistério pascal” (5C 6).
Em segundo lugar, celebrar é dar graças e louvor, pros-
segue:
“Celebrando a eucaristia, em que se tornam de novo
presentes a vitória e o triunfo de sua morte, dando gra-
ças (...) a Deus pelo dom inefável (2Cor 9,15) em Cris-
to Jesus, “para louvor de sua glória” (Ef 1,22) pela for-
ça do Espírito” (1Db.).
Em terceiro lugar, celebrar é realizar ações sagradas:
“Toda celebração litúrgica é ação sagrada” (SC 7).
Em quarto lugar, celebrar é fazer memória:
“A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, com
sagrado memorial, a obra salvífica de seu divino espo-
so. À cada semana, no dia que chamou do Senhor, faz
memória de sua ressurreição, que uma vez por ano tam-
bém celebra junto com a santa paixão na solenidade
máxima da páscoa” (SC 102).
Em quinto e último lugar, celebrar é atualizar:
“Fazendo, assim, memória dos mistérios da redenção,
abre as riquezas do poder santificador e dos méritos
de seu Senhor, de maneira tal que, de certo modo,se
tornam presentes (se atualizam)” (ib.).

Podemos, portanto, concluir, de tudo o que foi dito


anteriormente, quefazer liturgia, celebrar, inclui estes cin-
co aspectos:

117
1) reunir-se
2) expressar e manifestar
3) dar graças e louvar
4) realizar ações sagradas (rituais, simbólicas)
5) atualizar.

Há estreita relação entre todos estes aspectos. O que se


expressa e manifesta é, por um lado, a ação de Cristo, mas
também a resposta dos crentes a estas ações. Esta resposta
é, antes de mais nada, o louvor e a ação de graças. Além
disso, para que possa haver expressão e comunicação, é
necessária a reunião. Somente assim podem comunicar-se
uns com os outros e expressar os sentimentos e as atitudes
profundas. Por outro lado, a expressão se faz, não apenas
mediante a oração, a profissão de fé, o hino..., porém, com
sinais e ritos: são as ações sagradas, que simbolizam sig-
nificam a ação de Cristo e do povo. Finalmente, a outra for-
ma de expressar é o relato, o memorial, a anamnese que,
como sabemos, possui força atualizadora e é atualização.

7. Festa gozosa, de louvor, oracional

Dos elementos próprios da celebração, expostos no item


anterior, a homilia pode aproveitar, antes de tudo,o tercei-
ro. Se quiserserlitúrgica e celebrativa, deverá ser doxológica
e eucarística. Isto significa que deverá ajudar toda a assem-
bléia a ir assumindo cada vez mais uma atitude de ação de
graças e de louvor, que deverá ser impulso e convite para
estas atitudes. Por vezes, ela própria se transformará nesta
oração.
Não se pode esquecer que a única oração que havia na
missa durante muito tempo era a prex eucharistica. Esta, em
sua origem, era o desdobramento da bênção judaica. E a

118
bênção judaica tem seu sentido de oração ascendente, ou
seja, de falar bem de Deus, de louvá-lo, de glorificá-lo: é
ação de graças, porém, ao mesmo tempoelogio encomiástico
de Deus, de suas ações e de seus mirabilia. Só é possível que
isto surja quando há atitude festiva de entusiasmo, admira-
ção e contemplação. Aqui, a homilia pode desempenhar
papel importante, criando tal clima e, simultaneamente,
aproveitando-o, expressando-o. Em princípio, podemos
considerar os dois termos como sinônimos e, portanto,
predicar a propósito de um o que afirmamos do outro)”.
Ora, há autores que consideram a alegria como um dostra-
ços fundamentais do festejar.'º A alegria, sua expressão ex-
plosiva e sua comunicação, seu contágio de uns para os
outros, é certamente uma das características que mais so-
bressaem em uma verdadeira celebração.
Festivitas parece que significou originariamente “gozo”.
Costuma citar-se a passagem de uma homilia de são João
Crisóstomo que diz: “A festa é alegria e nada mais” 1”. J.
Pipper cita outro pensamento do mesmo autor, que com-
pleta o anterior: “Onde o amorse alegra há festa”.!
A alegria litúrgica é aquela que, alimentada pela pre-
sença e pela vivência do mistério de Cristo (sua entrega amo-
rosa à humanidade e sua vitória pascal), é capaz de enfren-
tar a própria morte. Por outro lado, fundamenta-se na ação
de graças do ato litúrgico, que sempre suscita sentido de
maior liberdade, enchendo o homem de gozo.
A relação entre alegria e oração de bênção está clara
neste trecho de Lucas:

SJ. Ra tzinger, Zur Frage nach der Struktur der liturgischen Feier, Intern, Kathol.
Zeitschrift 7 (1978), 488-497.
16 G.M. Martin, Fest und Alltag. Bausteine zu einer Theorie des Festes, Stuttgart,
1973.
” De sancto Pentecoste. Hom. 1, PG 50,455.
8. Pipper, Zustimmung zur Welt. Eine Theoria des Festes, Munique, 1963.

119
“Naquele momento, ele exultou de alegria sob a ação
do Espírito Santo e disse: 'Eu te louvo,ó Pai, Senhor do
céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios
e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai,
porque assim foi do teu agrado” (Lc 10,21).

O evangelista nos indica aí como esta atitude e esta


oração de bênção se acham impregnadas pelo gozo, devido
não só a um estado psicológico, mas, outrossim, a uma ação
do Espírito Santo: é oração pneumática e carismática, como
o confirma também a presença da epiclese na oração
eucarística.
Esta relação entre alegria e mistério pascal vemo-la
igualmente refletida no relato da aparição do Ressuscitado
aos discípulos: “Por causa da alegria, eles não podiam ain-
da acreditar e permaneciam surpresos” (Lc 24,41).
O mistério pascal, refletido e iniciado nos outros mis-
térios da vida de Cristo, se associa à alegria. Na epifania de
Jesus, os magos ou sábios do Oriente, ao verem a estre-
la que lhes revela o menino com Maria, sua mãe, “experi-
mentaram imensa alegria” (Mt 2,10). A assembléia cristã
primitiva e suas celebrações já foram impregnadas deste
gozo, que também significa espera cheia de esperança do
cumprimento final das promessas: “Partiam o pão nasca-
sas, comiam juntos com alegria e simplicidade de coração”
(At 2,46).
Além do mais, já nossos pais na fé, os israelitas, cele-
braram suas liturgias com esta atitude: no AT a alegria no
culto e por causa do culto é fundamental?.

» G. Braulik, “Die Freude des Festes. Das Kultverstândnis des Deute-


ronomium. Die àlteste biblische Festtheorie”; em Id., Studien zur Theologie der
Deuteronomiums, Stuttgart, 1988, 161-218.

120
8. Pano de fundo sabático e de domingo
A tradição judaica é essencial para aprofundar-nos nes-
ta exploração que estamos fazendo sobre o que é celebrar,
com vistas a delinear adequadamente o contexto da homilia.
Esta tradição, baseada no AT, é a herdeira do sábado bíbli-
co, uma das grandes cristalizações da verdadeira festa. É
necessário voltarmos, vez por outra, a este dia santo,a fim
de descobrirmos realmente o que e celebrar.
É sabido que o sábado é celebração, antes de mais nada,
como memória do Deus criador e do Deus redentor: ao fa-
zer o memorial do Deus que cria (Ex 20,11) e do Deus que
liberta da escravidão do Egito (Dt 5,15), o sábado se conver-
te na festa semanal de Israel.
Este memorial, porém, se realiza imitando Deus,isto
e, não só com palavras, mas com toda a pessoa, toda a vida
da pessoa. Assim como Deus descansa no sétimo dia, de-
pois de sua obra criadora, e assim como Deusé livre e fonte
de liberdade, da mesma forma o povo de Deus deve des-
cansar e viver a liberdade plena em cada um dos sete dias
da semana.
Ora, o descanso sabático não é conceito negativo —
deixar de trabalhar —, porém, categoria eminentemente
positiva: consiste, em primeiro lugar, em imitar o Deus que
descansa depois de sua obra criadora. Como? “Deus viu
tudo o que havia feito e eis que tudo estava muito bem”
(Gn 1,31). Trata-se de cultivar uma atitude contemplativa e
doxológica. Descobrir toda a bondade e toda a beleza da
criação e igualmente da história, a fim de admirar-se dela e
depois louvar o Senhor, que é fonte de todo bem.
A pregação homilética deve ajudar a desenvolver esta
atitude contemplativa, este sentido de admiração e assom-
bro: é a função mística da homilia. Festa e mística são
inseparáveis, porque a festa é o tempo da contemplação.
Detendo-se na visão destas ações admiráveis de Deus que a

121
homilia anuncia, a comunidade contempla e louva o Senhor.
Isto equivale a perceber e sentir a bondade das coisas, os
valores de certos acontecimentos e pessoas,e a sentir-se iden-
tificado com eles. É um sim à vida, à criação, à história hu-
mana enquanto mediação da história sagrada; é ato deafir-
mação e confiança?.
No entanto, a menuhá de Deus, seu descanso, tem ou-
tro aspecto importante: revela que Deus não só age, mas é.
Sugere-nos, assim, o sentido da liberdade. Não se depende
das obras, nem do que se tem, mas do que se é: o importan-
te não é possuir nem é o esforço, porém, sim, o existir e o
viver a existência; é também a história, no que tem de dom
recebido. O principal não é a utilidade, mas a bondade e a
beleza, diante das quais a ação não tem prioridade, porém,
são a contemplação o gozo que a possuem. Eis aí o sentido
profundo da liberdade (não tanto em seu terminus a quo
quanto em seu terminus ad quem)?!
O domingo cristão leva à plenitude singular estes va-
lores do sábado: não é que o elimine ou se contraponha a
ele, tal enfoque é tardio no cristianismo e surge da polêmi-
ca antijudaica. Os primeiros cristãos procedentes do judaís-
mo continuaram celebrando o sábado, embora dedicassem
celebração especial ao primeiro dia da semana,o dia da res-
surreição?”.
Não obstante, é inevitável descobrirmos relação entre
as duas festas; relação que podemos denominar de pleni-
ficação”. Convém que comentemos brevemente este senti-
do do domingo,já que ele é a marca festiva de cada eucaris-
tia dominical e, portanto, de sua homilia. Por isso, ele de-
termina muito diretamente o sentidolitúrgico da homilia,a
que esta deve fazer referência.

%0 J. Ratzinger, Das Fest des Glaubens, Einsiedeln, 1981.


21 J. Moltmann, Gott in der Schôpfung, Munique, 1985, 20-21.
2 Cf. Jo 20,19; At 20,7-12.
23 E. Haa g, Vom Sabbat zum Sonntag, Tréveros, 1991, 180-191.

122
Sendo o dia que recorda a ressurreição, coincide ple-
namente com o núcleo da pregação homilética que é, como
sabemos, o mistério pascal. Converge, também, para seu
caráter anamnético e narrativo. Mas é que, além do mais,
este sentido pascal do primeiro dia da semana foi interpre-
tado pela tradição cristã segundo linha que estabelece co-
nexão com o que dizíamos do sábado, pois esta tradição lhe
deu um segundo nome: “O dia do Senhor” (daí dies dominica,
que acarretará como resultado “domingo”)?.
A Igreja primitiva quer indicar com esta denominação
que no primeiro dia da semana Cristo foi feito Senhor por
causa de sua ressurreição e glorificação, mas também que
seus discípulos participam deste senhorio. Por isso, come-
çaram a romper todas as escravidões, inclusive as da mor-
te, iniciando, assim, vida de real liberdade. Neste sentido, a
liberdadee a libertação, que o sábado celebra, alcançam aqui
realização de plenitude. Por isso o domingo é festa, porque
toda festa implica, traz consigo e celebra, pelo menos em
sinal, a emancipação de todas as servidões, a da indigência,
a da pobreza, a da opressão, a da culpa, a da enfermidade e
a da morte.
Temos, igualmente, nesta celebração outra liberdade a
que antes aludia a festa sabática: ficar livres da preocupa-
ção pelas próprias obras, o próprio esforço, a auto-afirma-
ção e a autojustificação do eu e do útil. Supera-se a razão
instrumental, dentro da qual tudo se realiza para outra coi-
sa, como meio para algo diferente, e nada se faz para si
mesmo, simplesmente por causa do gosto e da alegria que
suscita. Agora temos algo que repousa em si mesmoe nos
permite repousar também nele, engolfando-nos e abisman-
do-nos (como dizem os místicos) na contemplação e na
fruição do bem, do bem feito.

2 Cf. Ap 1,10; Didaqué 14,1; Inácio de Antioquia, Ad Magn., 9,1.

123
Revela-se aqui um último dinamismo do homem: o de
que o mais íntimo e profundo de sua vida é dom recebido,
graça e presente. E, diante desta realidade, ele só pode rea-
gir com o acolhimento, o reconhecimento, a ação de graças
e o louvor.
Com estes traços, o que estamos fazendo é descrever
um aspecto fundamental de toda festa e, principalmente,
da festa cristã: sua gratuidade ou caráter lúdico. Recorde-
mos um R. Guardini, em sua obra já clássica O espírito da
liturgia (1918), centralizada no desenvolvimento desta tese,
e alguns teólogos espanhóis que nos falam da “inútil
liturgia” ou dos sacramentos como os jogos doscristãos”.
Com efeito, em toda festa se fazem coisas inúteis, que
não servem para nada (isto é, para outra coisa): gasta-se,
esbanja-se, é-se pródigo em dar, generoso. No entanto, goza-
se fazendo-o. À própria dança, fundamental para toda cele-
bração, constitui atividade intensa, até esgotante, da pessoa
e do grupo,e que tem fim nela mesma: expressar as pessoas
que dançam e ser contemplada e admirada pelos outros.
Parece que nos afastamos do domingo e de sua homilia,
porém, não. O sentido lúdico e gratuito da festa encontra
sua melhor realização no domingo. Porque o domingo, como
dia do Senhor, nos aproxima do último, do eschaton, da vida
plena, da fraternidade e da filiação perfeitas (por isso, al-
guns santos Padres chamam-no “o oitavo dia”, ou seja, O
dia que transcende os sete dias da semana e o tempo, fazen-
do, assim, irromper o eterno)?. E, uma vez dentro dos últi-
mos tempos, já não temos motivo para buscar outra coisa.
Já não estamos no mundo dos meios, mas no dos fins. A
chegada, em sinal, do fim liberta-nos dos meios e, assim,
rompe-se o círculo do útil e do instrumental.

3 Cf. Llopis, La inutil liturgia, Marova, Madri, 1972;J. M. Rovira Belloso, “Para
una teologia de los sacramentos”, em VV.AA,., Teologia y mundo contemporâneo.
Homenagem a K. Rahner, Cristiandad, Madri, 1975, 64-67.
% Tertuliano, De oratione 23 e De corona 3,4.

124
No entanto, a aproximação inicial dos fins e rumo aos
fins não comporta passividade alguma. Porque aí encon-
tramos a vida plena, o amor absoluto, e o encontramos como
algo que nos vem ao encontro, como dom gratuito. O ho-
mem reage com o acolhimento e a ação de graças, com a
alegria e o júbilo que tal felicidade lhe oferece. Por isso, o
domingo deve multiplicar as expressões desta agalíasis
escatológica de que fala o NT: o gozo por causa dos últimos
tempos. De fato, os documentos antigos dão testemunho
disto. Por exemplo, a monja Egéria (século IV)” conta-nos
como em Jerusalém se inicia o domingo com uma vigília ao
longo da qual entoam inúmeros hinos, cantos, antífonas...,
e se acende uma infinidade de luzes. Depois se proclama o
evangelho da ressurreição?.
Eis algo que quem prepara a homilia dominical deveria
ter em conta: no pano de fundo de toda homilia deveria ecoar
esta proclamação da ressurreição, com seus ecos de gozo,já
que ela é o núcleo do querigma e do domingo. Embora o
evangelho do dia trate de algo aparentemente diverso, não
obstante terá que saber descobrir a relação das diversas ações
de Cristo e sua páscoa final, em quesintetiza, reúne, unifica e
faz culminar toda a sua vida anterior. O mistério de Cristo é
uno, ainda que se refrate em múltiplas facetas, aspectos, epi-
sódios e etapas. Este sentido de unidade e de diversidade de-
verá ser bem captado por quem prega a homilia.
Algo parecido pode acontecer com o prefácio. Embora
este não faça alusão explicita à ressurreição ao proclamar
os motivos do louvor e se limite a algum aspecto particular
da história salvífica, depois, na anamnese que acompanha
o relato da ceia e que, dentro da anáfora, é prolongamento
do prefácio, sempre se faz memória da ressurreição:

2 Itinerario de la virgen Egeria 24-25, BAC, Madri, 1980.


28 As Igrejas orientais conservaram este costume na celebração das vésperas
que iniciam a celebração de cada domingo: no fim destas sempre se proclama um dos
evangelhos da ressurreição.

125
“Por isso, ó Pai, nós, vossos servos e todo o vosso povo
santo, ao celebrarmos este memorial da morte gloriosa
de Jesus Cristo, vosso Filho nosso Senhor, de sua santa
ressurreição do lugar dos mortos e de sua admirável
ascensão aos céus” (anáfora 1).
“Assim, pois, Pai, ao celebrar agora o memorial da
morte e ressurreição de vosso Filho” (anáfora II). “As-
sim, pois, Pai, ao celebrar agora o memorial da paixão
salvadora de vosso Filho, de sua admirável ressurrei-
ção e ascensão ao céu” (anáfora III).
“Por isso, Pai, ao celebrarmos agora o memorial da
nossa redenção, recordamos a morte de Cristo e sua
descida ao lugar dos mortos, proclamamossua ressur-
reição e ascensão à vossa direita” (anáfora IV). “Por
isso, Pai de bondade, celebramos agora o memorial da
nossa reconciliação e proclamamos a obra de vosso
amor: Cristo, vosso Filho, mediante o sofrimento e a
morte na cruz, ressuscitou para a vida nova e foi glori-
ficado à vossa direita” (anáfora V).
“Assim, pois, ao fazermos o memorial de Jesus Cristo,
nossa Páscoa e nossa paz definitiva, e ao celebrarmos
sua morte e sua ressurreição, na esperança do dia feliz
de sua volta” (anáfora da reconciliação 1). “Senhor,
nosso Deus, vosso Filho nos deixou este dom do seu
amor. Ao celebrarmos, pois, o memorial de sua morte
e ressurreição” (anáfora da reconciliação IN).

A homilia, portanto, terá de deixar que ressoem em seu


interior a referência à ressurreição e os ecos da alegria pascal.
Cada domingo é uma pequena páscoa, a páscoa semanal, e
nele deve brilhar algo da grande festa da vigília pascal de
cada ano. Fazer saborear as delícias desta festa, conseguir
para toda a comunidade o que alguém, falando de todas as
festas, denomina “antegozo sideral da eternidade” (J. Ortega
y Gasset), eis a meta da homilia de cada domingo.
126
9. Assembléia e celebração: a reunião festiva
Pouco dissemos sobre a relação existente entre comu-
nidade cristã e festa. Não obstante, trata-se de algo que a
tradição realça fortemente: não há festa sem comunicação,
comunicação dos sentimentos exultantes pela boa nova da
fé e da esperança compartilhadas, do amor fraterno; não há
domingo sem assembléia; como não há pregação viva sem
apoio comunitário, que é também comunicação, apoio mú-
tuo e revisão.
Eis por que desejo apresentar aqui testemunho muito
expressivo do século III, em que se manifesta, de maneira
meridiana, esta realidade:

“Persuade o povo de que seja fiel em participar da as-


sembléia do domingo. De que a ela não falte, mas que
seja constante em reunir-se, para que ninguém dimi-
nua a Igreja deixando de vir a ela e, assim, diminua o
corpo de Cristo em seus membros (...). Não queirais
vós, que sois membros de Cristo, dispersar a Igreja
deixando de reunir-vos” (Didascalia II, 59,1-3)?.

Entre os Padres posteriores convém mencionar, antes


de tudo e de novo, são João Crisóstomo, por causa de sua
insistência e de sua visão profunda sobre o tema. Com sen-
sibilidade extraordinária, muito bíblica e moderna, ao mes-
mo tempo que tradicional, bem como coerente com outros
princípios seus antes mencionados, diz-nos queo fato de se
reunirem os que estão dispersos já é início de gozo, deale-
gria, e, portanto, de festa; é começo do festejo: “Embora a
cinquentena (pentecostes) tenha passado, a festa não pas-
sou. Toda assembléia é festa. Provam-no as palavras de Cris-
to que dizem: “Onde dois ou três estiverem reunidos em

PE X. Funk, Didascalia et Constitutiones Apostolicae, Paderborn, 1962, 170.

127
meu nome, eu estou entre eles”. A maior prova de que é
festa nós a temos nesta presença de Cristo em meio aosfiéis
reunidos”.
É fato humanoe cristão que toda celebração verdadei-
ra começa e consiste em reunião. Os que se sentem unidos
por diversos vínculos de conhecimento, afeto, parentesco,
amizade e relação profunda, mas que na vida ordinária se
acham dispersos e separados, se reúnem: voltam a unir-se e
expressar sua vinculação unitiva de modo sensível me-
diante uma presença física de reciprocidade. Quando é pre-
ciso, Viaja-se de longe para chegar ao povoado, ao bairro,à
casa paterna, e participar da grande assembléia festiva dos
irmãos, familiares, vizinhos, camponeses e compatriotas. O
grupo, a comunidade, se reencontra na totalidade de seus
membros e, deste modose iniciam a alegria, a festa do tor-
nar a ver-se, cumprimentar-se, ficar juntos, a partilha
interpessoal, princípio do compartilhar comunitário poste-
rior.
A celebração cristã é fiel a esta lei de toda festa huma-
na. Sua arrancada e ponto de partida são também a reu-
nião. Os autores mais antigos, que nos descrevem a liturgia
mais primitiva, assinalam como seu primeiro traço e seu
começo o fato de se reunirem, de se deslocarem, dese trans-
portarem para um mesmolugar e se encontrarem todos jun-
tos. Os cristãos saem e vêm da “diáspora” em que normal-
mente vivem, de sua dispersão missionária, de sua presen-
ça no meio do mundo?!, para formar sua assembléia comu-
nitária.
Com o fim de expressar esta realidade, criaram-se uma
linguagem e uma terminologia já clássicas, ricas em sinôni-
mos; assim fala-se de syneleusis (reunião), synagogé (assem-

% Sermão quinto sobre Ana, PG 54,669. Cf. também PG 48,725; 54,1602; 56, 181-
182; 61,223 e 526-529; 62,491.
1 Jo 7,35; 11,52; Tg 1,1; 1Pd 1,1.

128
bléia), synaxis (junta), congregatio (congregação), coetus (as-
sociação)... Mas o termo queficará como o principal será o
de ekkesia, palavra que passou do grego para o latim e que
significa não só a comunidade dos cristãos, porém ainda
sua reunião periódica em determinadolugar. É indica, prin-
cipalmente, que esta reunião se dá a partir de convocação,
de convite, de chamado exterior a ela mesma, o da palavra
de Deus, e com vistas a comunhão(reunião).
Os Atos? insistem nesta grande realidade da reunião
periódica para compartilhar a fé, a oração, o pão e os bens
materiais. E a propósito dos cristãos, como membros desta
assembléia celebrativa, predica-se reiteradamente o homo-
zymadon: a unanimidade?. Ora, dentro deste clima, deve
brotar a homilia, como expressão — ate certo ponto — des-
te sujeito coletivo, que se reúne para celebrar e que celebra
reunido: a assembléia litúrgica. Ela deve fazer-se eco de seus
sentimentos, de sua fé e de sua alegria; nela, se deve ver
refletida a assembléia.

10. À oração de bênção

Antes de terminar este capítulo desejaria voltar a uma


das questões tratadas,a referente às raízes judaicas da festa
cristã. Podemos incorporar novos dados, que nos ajudam a
acabar de perceber como é a festa na tradição bíblica,e, por-
tanto, como é e deve ser a marca de uma pregação litúrgica
fiel ás raízes veterotestamentárias*.
Os estudiosos do temainsistem em que o centro de toda
liturgia e festa judaicas é a bênção (a bênção ascendente),

2 At 1,15; 2,44.47.
3 At 1,14; 2,46; 4,24; 5,12.
* Cf. J. J. Petuchowski, “Zur Geschichte der júdischen Liturgie”, em H. H.
Henriz (org.), Die traditionellejiidische Liturgie. Geschichte-Struktur-Wesen, Viena, 1979,
13-33.

129
dirigida a “dizer bem” de Deus, em hebraico beraká, que
envolve e cerca todas as outras orações, a confissão ou pro-
fissão de fé ou shemá, as leituras... precedendo-as ou se-
guindo-as. No judaísmo, necessita-se sempre de uma beraká,
de uma fórmula de bênção. Deste modo, a bênção dá a tôni-
ca dominante em todaa liturgia sinagogal. O louvor a Deus
(a bênção) é, pois, o traço fundamental da celebração e da
piedade judaicas.
Até a petição dirigida a Deus, isto é, a oração de súpli-
ca, está cercada por agradecido confiar em Deus, aquele que
é digno de todos os elogios. Por isso, as petições são tam-
bém louvor. O melhor exemplo é o shemoné esré ou as “de-
zoito bênçãos”.
Já em algumas liturgias expostas e descritas com am-
plitude no AT, podemos constatar de que modoisto se rea-
liza. Pode-se ver, por exemplo, Neemias 9-10: a oração do
povo começa com um convite feito pelos levitas para elo-
giar Deus, prossegue depois o relato das ações admiráveis
de Deus.
Bênção é a oração que coroa todo o seder pascal, a noite
de páscoa, ao beber-sea terceira taça. É mais breve do que a
contida em Neemias, mas a estrutura é similar. Apóia o lou-
vor e bênção de Deus na memoria do acontecido nesta noi-
te. Vem a ser, pois, como que uma condensação da hagadá.
Seguindo esta linha, a oração eucarística, provável
cristianização desta bênção da terceira taça, também serve
de apoio para a oração doxológica no memorial da última
ceia, culminância da história escatológica”,
Aplicando de novo estes dados à pregação homilética,
podemos dizer que esta deve preparar o caminho para que
o decurso da celebração desemboque neste momento cul-
minante da eucaristia, coração da festa dominical. De fato,

Th. J. Talley, Structures des anaphores anciennes et modernes, Maison-Dieu


191 (1992), 15-48.

130
todos os elementos que até aqui analisamos como cons-
titutivos de seu conteúdo são material perfeitamente ade-
quado a ajudar a subir a este ápice da celebração mediante
a participação na bênção eucarística.
A homilia não termina, pois, quando acaba o comen-
tário do evangelho. Como parte da celebração, como ação
litúrgica, prossegue de certo modo no decorrer ritual, por
meio da oração da comunidade, que o presidente da as-
sembléia dirige. Este prolongamento da homilia, porém,
deve ser preparado em seu interior a fim de que não acabe
sendo meramente comoalgo justaposto, ou simplesmente
não ocorra. Então a homilia ficará mutilada, privada de
um aspecto fundamental de seu ser pregação festiva,
litúrgica.

11. A oração que acolhe o Reino próximo


Podemosapresentar outros materiais que ajudarão, sem
dúvida, quem prega a infundir em sua homilia este sentido
doxológico que a aproxima da oraçãoe da liturgia de bên-
ção. Provêm da liturgia judaica, mas também, de certo modo,
passaram para a liturgia cristã.
Digamos primeiro que o ofício sinagogal é composto
de três bênçãos de louvor, uma bênção de santificação do
dia e três bênçãos de ação de graças. Este esquema se repete
três vezes aos sábados (nas vésperas, de manhã e à tarde).
No entanto, depois, ao concluir o ofício, recita-se uma ora-
ção que não é propriamente bênção na forma, embora no
fundo tenha este espírito: e o famoso kadish.
Parece que, no tempo de Jesus, quando não se dizia no
ofício sinagogal, empregava-se depois do estudo da Torah;
por isso, é provável que Jesus não o conhecesse e se inspi-
rasse em sua segunda parte para formular o pai-nosso, pe-
dindo a vinda do Reino. Esta segunda parte diz:

131
“Seja exaltado e santificado seu grande Nome no mun-
do que ele criou segundo sua vontade e surja logo seu
reino em nossa vida e em nossosdias, e na vida de toda
a casa de Israel. Dizei: 'Amem”, e seu grande Nome
seja louvado pela eternidade sem fim”*.

Agora, interessa-nos mais destacar sua primeira parte,


onde se lê:
“Seja louvado, elogiado, admirado, honrado,exaltado
o Nomedo Santo. Seja louvado para sempre e eterna-
mente Ele, que está muito acima de todo louvor, de
todo elogio, de todo canto de homenagem que se pos-
sa fazer nesta terra. Dizei: 'Amem”””

Constatamos aqui interessante e rica sinonimia para


expressar esta atitude ou atividade doxológicas próprias de
toda celebração. Chega-se a usar cinco sinônimos seguidos
para descrevê-la: “Louvar, elogiar, admirar, honrar e exal-
tar”, depois se acrescenta outro: Render homenagem”.
Pode-nos parecer excessivo, barroco, próprio de outra
época. Todavia, não dissemos, porventura, que a festa é pró-
diga e que ultrapassa todos os limites e todas as sobrieda-
des? Em nossa missa, temos exemplo similar. No “Glória a
Deus nas alturas”, denominado pelos orientais “grande
doxologia”, para diferenciá-lo do “Glória ao Pai”, ou pe-
quena doxologia. Este hino do século IV, introduzido na
missa no século VI (antes foi usado como canto da oração
da manhã), inclui também esta sinonimia doxológica do
louvor quando diz:

67. J. Petuchoiwski, o.c., 103-110.


*” C. Thomas, “Biblisches Erbe im Gottesdienst der Synagoge”, em H. H. Henrix
(org.), Júdische Liturgie..., 47-66.

132
“Senhor Deus, rei dos céus, Deus Pai todo-poderoso:
nós vos louvamos, nós vos bendizemos, nós vos glorifica-
mos, nós vos damos graças, por vossa imensa glória”.

Será que a nossa homilia não deveria apresentar mais


amiúde estes textos hínicos da missa ou fazer-se eco deles,
para ela também ser expressão e pedagogia da oraçãofesti-
va, como compete à sua natureza de pregação litúrgica?
Por último, lembramos ainda a outra oração judaica
que vai passar para a missa, enriquecendo seu sentido de
pregação celebrativa. É a kedushá, centralizada no “santo”
ou triságio, que Isaías põe nos lábios dos serafins (Is 6,3),
com a invocação e proclamação solene de Deus três vezes
santo. E rezado na liturgia da manhã. Já na epoca de Neemias
era rito muito sólido na liturgia do templo. Os sacerdotes,
ao realizá-lo, se sentiam unidos às invocações de Deus no
céu comotrês vezes santo. Assim sendo, há correspondên-
cia, comunhãoentre liturgia terrestre e liturgia celeste. Isto
equivaleria ao que dissemos sobre a festa dominical como
oitavo dia, ou seja, como irrupção do tempo na eternidade
ou da eternidade no tempo. Neste novo nível, realiza-se a
adoração.
Vale a pena recordar o texto oracional da kedushá que,
a modo de grande contexto, rodeia o “santo” e é, no fundo,
ampla glosa ou aprofundamento dos textos de bênção ou
doxológicos que já conhecemos:
“Seja louvada nossa rocha, nosso rei e redentor, o cria-
dor dos santos (anjos). Louvado seja seu nome para
sempre, nosso rei, criador de servidores. Todos o ser-
vem. Estão no alto do mundo e unidos anunciam, com
respeito, as palavras do Deus vivo, rei do mundo. To-
dos são amados, todos são fortes, escolhidos, todos
cumprem com temor a vontade do Criador. Todos
abrem sua boca santa e pura para o canto e o louvor.

133
Bendizem, louvam, glorificam e manifestam o Nome
de Deus em sua força, sua santidade e seu senhorio; o
Nomedo rei grande, forte, temido, que é santo. Todos
recebem sobresi o jugo do reino dos céus. Alguns trans-
mitem a outros a força. Assim, santificam seu Criador
na paz do espírito, com língua pura, com santidade
agradecida. Unânimes, respondem e dizem com vene-
ração: “Santo, santo, santo, Senhor Sabaoth. A terra está
cheia da sua glória”. E os ofanime os seres de santida-
de saem ao encontro dos serafins com grande clamor.
Diante dele louvam dizendo: 'Louvada seja a glória que
existe em seu lugar” *.

Já no século IV, as Constituições apostólicas introduzem


a kedushá ou “santo” na eucaristia e, mais concretamente,
na anáfora ou oração eucarística. Cercam-no de contexto
solene, quase místico, que diz:
“Adoram-vos os inúmeros exércitos dos anjos, dos ar-
canjos, dos tronos, das potestades, dos principados, das
forças, senhorios, exércitos eternos, querubinse sera-
fins. Não cessam de clamar e todo o povo diz junto
com eles: “Santo, santo, santo Senhor Sabaoth; os céus
e a terra estão cheios de sua glória. Louvadoseja para
sempre'”*,

Observemoso final do “santo”, que já temos em Isaías:


é referência a esta onipresença ativa de Deus e de seu Verbo
na criação, na história e na vida.
Por fim, o “benedictus” ou “bendito o que vem em
nome do Senhor”, com que termina o “santo”, extraído de
Mt 21,9 e Lc 19,38, bem como de Sl 118,25-26, pode ser rela-

8 Tb., 58-59.
39 E X. Funk, Constitutiones..., 506-507.

134
cionado com a vinda ou proximidade do Reino cristologi-
camente entendido. Por isso, Marcos faz uma glosa interes-
sante e diz: “os que iam à frente e atrás gritavam: * Bendito
o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino que vem,
do nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos ceus!” “ (Mc
11,9-10).
A eucaristia é o sinal sacramental e atualizador desta
proximidade do Reino em Cristo que suscita as aclamações
do povo, da assembléia, e, por meio dela, de toda a criação,
a terrestre e a celeste. Além do mais, Jesus aludea esta pro-
ximidade do Reino durante a ultima ceia, no momento de
pronunciar as palavras sobre o vinho: “Digo-vos que não
mais beberei do fruto da videira enquanto não chegar o
Reino de Deus” (Lc 22,18). Alude à parusia, porém, a parusia
se apresenta como a plenitude do tempo presente, do hoje
da história salvífica enquanto proximidade do Reino. Este
hoje é, pois, a semente que aproxima o reinado definitivo
de Deus.
Dizem-no mais explicitamente as palavras pronuncia-
das no começo da ceia, sua última e mais verdadeira páscoa:
“Desejei vivamente comer esta páscoa convosco antes da
minha paixão. Digo-vos que dela não mais comerei até que
se cumpra no Reino de Deus” (Lc 22 ,15-16).
Estas considerações e dados aqui reunidos podem ser-
vir para reforçar a estreita conexão existente entre o núcleo
do querigma ou da pregação cristã e o núcleo ou cerne da
liturgia eucarística. Expressar esta realidade una, porém
dupla, é assunto da homilia. Certamente, dentro deste cli-
ma, desta atmosfera de louvor, que ecoa por toda a criação
e que atesta a grande tradição oracional judaico-cristã.

139
12. À festa como contraste e crítica

Nos anos setenta alguns teólogos protestantes publi-


caram diversos ensaios sobre a dimensão crítico-profética
de toda celebração. De modo concreto, H. Cox eJ. Moltmann
focalizaram sua reflexão teológica sobre o festivo, muito
influenciados pelas análises sociológicas"º.
Ambos coincidem ao considerar a festa na categoria
de justaposição, que é resultado de duas notas típicas da
festa: o excesso e a crítica (a brincadeira, a risada...). O aca-
valamento destes dois traços e de todas as suas conotações
acarretam como resultado contraste evidente, justaposição
entre a vida quotidiana e a festiva.
Constata-se na festa esta vida exuberante, pródiga,
porém, não simplesmente sob o signo da afirmação e do
assentimento, mas também da contradição e do confronto.
Poderíamos recorrer a outras características do festivo: a
reunião, a confraternização, a solidariedade.
A festa, por mais autônoma que seja, não podeficar
isolada da vida quotidiana, que a precede e a segue. E
assim que se descobre o contraste entre ambas, aparecen-
do então a vida quotidiana com maior clareza do que nun-
ca, em suas limitações, estreitezas, servidões e divisões.
E assim brota da festa, muito diretamente, um desejo li-
bertador em face destes condicionamentos. A experiên-
cia festiva se transforma em fonte de dinamismo eman-
cipatório, que impele a resgatar a pessoa de todas as coa-
ções compulsivas com que o sistema social a angustia e a
sobrecarrega.
Ao desejar levar ao coração do quotidiano o espirito
festivo, o que se quer no fundo é mudança e transformação
do que vai contra este sentido de liberdade e de plenitude

*% H. Cox, La fiesta de locos, Taurus, Madni, 1973; J. Moltmann, Sobre la libertad,


la alegria y el juego, Sígueme, Salamanca, 1974.

136
próprio do festivo. Que tu fiesta no tenga fin*!, título de um
ensaio surgido nestes anos, quer dizer: cada dia deve ter
algo do antegozo de eternidade, de gratuidade, de emanci-
pação, de nova criação e de comunitariedade, que o sabat, o
domingo, a eucaristia ou celebração dominical trazem, é
necessário que transfiramos para cada dia da semana o es-
pírito do sétimo dia ou do primeiro e oitavo; precisamos
levar para a vida o que há de melhor do espírito da liturgia
como celebração. E, desta forma, transformemos tudo o que
na vida quotidiana contradiz o espírito de liberalidade e de
reconciliação próprio do Deus verdadeiro, do Deuscristão.
Tudo isto pode ser entendido de maneira teológica sob
a categoria de antecipação, buscada e realizada em meio às
limitações ou penalidades dos trabalhos que a existência
diária implica.
Em síntese: poderoso impulso profético de crítica e de
mudança pode e deve brotar da celebração comotal. A pre-
gação homilética deve ter consciência de que se acha imersa
nesta grande corrente, e de que pode e tem o dever de tor-
nar-se seu eco, ajudando-a a ecoar por meio da sua Palavra.
É forma particular de sua tarefa de pedir a conversão, a
mudança, a transformação. Assim, corrigir-se-ão os des-
vios e fugas, o afastamento da realidade e da luta quotidia-
na, que pode ameaçara liturgia.

“R. Schultz, Que tu fiesta no tenga fin, Herder, Barcelona, 1973.

137
Capítulo 3

AÇÃO COMUNICATIVA
E COMUNITÁRIA

1. Pregação e pneuma: comunidade profética

A homilia e ação comunicativa que, por isso, é radi-


calmente comunitária. E ato decisivo de comunicaçãoe, por-
tanto, de comunhão. De um lado, faz que quem preside e
fala se comunique com os membros da assembléia; de ou-
tro, também influi para queos fiéis se comuniquem entresi.
De um lado, suscita e cria comunidade; mas, de outro,
a comunidade influi, pode e deve influir na homilia e no
fazer a homilia: há, pois, circularidade no evento da prega-
ção homilética.
Além disso, este processo de comunicação possui du-
pla vertente; e acontecimento pneumático, influenciado pelo
Espírito; e, concomitantemente, é ação psicológica, condicio-
nada pelas leis psicológicas próprias da pessoa e do grupo.
Uma coisa não exclui a outra, são diversas mediações de
um único ato.
À influência da homilia, ou melhor, da Palavra, no sen-
tido de criar comunidade, desenvolvi-a em outro lugar!.
Aqui, me concentrarei mais no outro movimento, o que vai
da comunidade para a homilia. Tratarei primeiro do aspec-
to pneumático, e, em seguida, do psicológico.

!L. Maldonado, La comunidad cristiana, Paulinas, Madri, 1992, 13-19.

139
Toda ação predicacional é envolvida pela ação do Es-
pírito: ele é a principal força que a suscita e a inspira. Em
primeiro lugar, Jesus, conforme nos conta Marcos(1,9), é
justamente depois de receber, por meio do ministério de
João, o batismo do Espírito, que começa a pregar. O mesmo
Espírito o leva ao deserto. Mas, imediatamente a seguir, di-
rige-se para a Galiléia, a fim de que comece a anunciar a
proximidade do Reino (Mc 1,12-14). Lucas diz isto explici-
tamente: não só a ida para o deserto, após o batismo, mas
ainda a viagem posterior para a Galiléia e seu ir começando
a ensinar pelas sinagogas, são resultado da ação do Espírito
(Lc 4,14-15). Por sua vez, João afirma muito paladinamente
esta dimensão pneumática da pregação de Jesus quando
escreve: “Aquele que Deus enviou (o Filho) diz as palavras
de Deus, pois Deuslhe conferiu seu Espírito sem medida”
(Jo 3,34)2.
Os discípulos de Jesus recebem dele este dom do Espí-
rito para prosseguir a pregação agora explicitamente cristã
(cristológica) e pascal. Na cena introdutória dos Atos, o Res-
suscitado anuncia aos discípulos o que vai ser como que o
programa dos tempos vindouros:
“Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá so-
bre vós, para que sejais minhas testemunhas em Jeru-
salém, em toda a Judéia, na Samaria e até os confins da
terra” (At 1,8).

Já vimos que o dar testemunho é uma das designações


da pregação evangelizadora. Por isso, podemos descobrir
neste texto a promessa de quea tarefa predicacional na Igreja
vai ser resultado de ação do Espírito. Efetivamente, os pró-
prios Atos o confirmam: antes de pentecostes, os discípulos, os

2 Cf. R. Bohren, Predigtlehre, Munique, 1980, 82; A. Schwarz, Praxis und


Predigtlehre, Viena, 1986, 50.

140
apóstolos, estão mudos; mas, a partir da efusão do Espírito,
começam a pregar (At 2,4).
Novamente João confirma esta união entre Espírito e
testemunho quando escreve: “O Espírito da verdade, que
procede do Pai, dará testemunho de mim” (Jo 15,26).
Ora, o dom do Espírito é concedido não só para o ser-
viço da Palavra, que o apóstolo ou o evangelista (ou seus
sucessores, os ministros ordenados) realizam com sua pre-
gação. Segundo o NT, há também um falar na Igreja que é
consequência de outros carismas proféticos. Se se levar em
conta esta realidade, perceber-se-á imediatamente que a ta-
refa de falar, o serviço prestado à Palavra, não é algo tão
monologal como possa parecer quando se olha a praxe cul-
tual da Igreja. Hoje só fala o sacerdote (ou o diácono). Nas
assembléias da Igreja apostólica, havia um colóquio plural
que imprimia caráter comunitário às assembléias eclesiais,
também às eucarísticas.
É bem verdade que hoje se está aos poucos rompendo
o verticalismo querigmático, herdado dos séculos passados:
é o caso da preparação e revisão em grupo da homilia, as
homilias dialogadas, os testemunhos pessoais apresentados
em certas ocasiões... Tudo isto possui profundo sentido bí-
blico, que convém desenvolver, a fim de que se chegue a
expressare realizar a dimensão eclesial comunitária que tem
a palavra de Deusº. Somente o grande empobrecimento que
sofreu a pneumatologia na teologia dos últimos séculos ex-
plica a ignorância e o esquecimento destas realidades.
Comecemos com Lucas: nos Atos ele insiste em que o
Espírito é derramado sobre todos os cristãos, e, assim, to-
dos profetizam, são profetas que falam movidos pelo
Pneuma. Nodiscurso de Pedro, depois do evento de pente-
costes, faz o apóstolo aproveitar a profecia de Joel:

* Cf. J. Rothermundt, Der Heilicge Geist und die Rhetorik, Giiterslh, 1985, 45.
4 L. Maldonado, La comunidad cristiana, 15-40.

141
“Sucederá nos últimos dias, diz o Senhor, que derra-
marei do meu Espírito sobre toda carne. Vossos filhos
e filhas profetizarão, vossos jovens terão visões e vos-
sos velhos sonharão. Sim, sobre meus servos e minhas
servas derramarei o meu Espírito naqueles dias” (At
2,17-18).

Depois, mostrando como se cumpre isto a partir do


acontecimento pascal, comenta Pedro:

“(Jesus), exaltado pela direita de Deus, recebeu do Pai


o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto o que
vedes e ouvis” (At 2,33).

Não obstante, o lugar onde este dado parece mais ex-


plícito é no episódio de Éfeso. Aí se relata a chegada de Paulo
a esta cidade: encontra-se com discípulos de João Batista e
faz que sejam batizados com o batismo de Jesus; e conta
Lucas:

“E quando Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo


veio sobre eles: puseram-se, então, a falar em línguas e
a profetizar. Eram, ao todo, cerca de doze homens” (At
19,6-7).

Isto significa que o dom do Espírito, que estimula a


profecia, é algo indissoluvelmente unido ao batismo cris-
tão. É algo, pois, que todos os cristãos possuem: todos são
profetas que falam, servindo à Palavra, segundoa tradição
profética de que falamos no AT.
O mais claro sobre esta questão que hoje nos parece
tão primordial é Paulo. É verdade que Paulo fala dos diver-
sos e múltiplos carismas que existem na Igreja, porém, den-
tre eles destaca principalmente todos os destinados ao mi-
nistério da palavra, e, de modo muito especial, o da profe-

142
cia. Concretamente, ele fala dos carismas — ou serviços e
ministérios — chamados: 1) diaconais”; 2) “cibernéticos” (de
kybernetés piloto de barco): os serviços de presidir referem-
se aos pastores que governam”; e 3) extáticos, como falar
em línguas (1Cor 13,1)”.
Não obstante, Paulo refere-se sobretudo aos carismas
que alguns chamam querigmáticos, isto é, destinados ao
serviço da Palavra. Entre estes, alguns distinguem até sete:
a profecia”, o ensino”, a palavra de sabedoria!?, a palavra de
conhecimento ou ciência!!, a palavra do mistério!” a reve-
lação!º e a admoestação!*.
Aí aparecem nitidamente a importância e a variedade
que tinha, nas comunidades paulinas,a tarefa querigmática:
havia grande diversificação e pluralidade, que surpreendem
a nós hoje. Não sabemos bem a que correspondem algumas
destas denominações; talvez possamos entendê-las como o
desenvolvimento de explicação mais simples que Paulo faz
(1Cor 12,28): os apóstolos, os profetas e os mestres. Aos
mestres possivelmente compete a tarefa catequética e teo-
lógica; os apóstolos são os que fundam as comunidades com
sua pregação, primeiro evangelizadora, e as dirigem, de
certo modo, mantendo o vínculo de união; seus sucessores
serão os pastores: bispos, presbíteros... os ministros orde-
nados.
Fixemo-nos agora nos profetas. São os que ocupam a
atenção principal de Paulo. Por quê? Porque a profecia é

* Serviço aos enfermos,às viúvas e aos pobres: Rm 12,7-8.


é Cf. 1Cor 12,28; Rm 12,8.
? Cf.J. Moltmann, Der Geist des Lebens, Munique, 1991,197; H.).
Klauck, Gemeinde zwischen Haus und Stadt, [s/e], Viena, 1992, 89-90.
8 1Ts 5,20; 1Cor 12,10.28; 14,1.5ss; Rm 12,6.
21Cor 12,28ss; 14,26; Rm 12,7.
101Cor 12,8; Rm 12,8.
1 1Cor 12,8; 13,2; Rm 12,8.
21Cor 13,2; 15,51; Rm 11,25.
3 1Cor 14,6.26.
“Rm 12,8. Cf. J. Rothermundt, o c., 50.

143
carisma que todos os membros da comunidade recebem,e
o único que atinge todos. Por isso, pelo menos quantita-
tivamente, é o primeiro. É verdade que o primeiro, por sua
qualidade, parece ser o do apostolado, que nós atualizamos
dizendo que é o do bispo ou presbítero quando prega em
comunidade: sua função ou tarefa é insubstituível, tem res-
ponsabilidade própria na homilia, que não pode abando-
nar nas mãos de outros membros da comunidade não orde-
nados; por isso o Código de Direito Canônico diz que a homilia
compete a eles”. Isto, porém, não quer dizer que seja ele o
único que fale: não implica uma homilia monologal, já que
podem intervir outros, sempre que o presbítero ou o bispo
exerça seu ministério peculiar.
Convém lembrar agora os trechos em que Paulo co-
menta este sentido e relevo do carisma da profecia, como
dom para falar na assembléia eclesial, e que há muito tem-
po emudeceu em nossas paróquias e comunidades. Já em
sua primeira carta escreve: “Não extingais o Espírito. Não
desprezeis as profecias” (1Ts 5,19-20). Na carta aos Roma-
nos acrescenta:

“Tendo, porém, carismas diferentes, segundo a graça


que nos foi dada, aquele que tem o carisma da profe-
cia, que o exerça segundo a proporção de nossa fé; aque-
le que tem o do serviço, o exerça servindo; quem o do
ensino, ensinando; quem o da exortação, exortando.
Aquele quedistribui seus bens, que o faça com simpli-
cidade; aquele que preside, com diligência; aquele que
exerce misericórdia, com alegria” (Rm 12,6-8).

Onde Paulo desenvolve mais amplamente sua doutri-


na e melhor explica o que é o dom da profecia é na primeira
carta aos Coríntios: situa o carisma profético depois do

15 Cânon 767: acrescente-se o diácono.

144
carisma apostólico!º, corresponde a todos; em 1Cor 14,1.3.5
exorta toda a comunidade a cultivar a profecia. Usa o “to-
dos” com relação à profecia!”, que pode ser comunicada a
todos. Junto aos “santos profetas” (Ef 3,5), figuras proemi-
nentes da profecia. na primeira geração, há uma comunida-
de profetética inteira.
Pode ser que, em certas ocasiões, o serviço profético de
alguns irmãos seja mais qualificado e destacado (1Cor 14,31),
mas a tradução do evangelho para a vida quotidiana, a lei-
tura dos sinais dos tempos, os convites aos irmãos, a deci-
fração das exigências do Senhor para cada um e para todos,
aqui e agora, constituem tarefa da comunidade profética
inteira.
Nisto consiste o dom da profecia: partindo do evange-
lho, todos buscam tateando a colaboração recíproca, e até
na divergência, porém, tendendo à unidade e à paz, o cami-
nho que o Kyrios quer para a comunidade em cada momen-
to de sua história (ICor 14,33)!8, Este é o exercício do
profetismo comunitário. Supostamente, para Paulo não há
dúvida de que as mulheres falam da mesma forma que os
homens (1Cor 15,5), o texto contrário (1Cor 14,34) constitui
interpolação, conforme a opinião dos melhores comenta-
dores"º,
Juntamente com o anterior existe um “ser profeta”
como função vinculada a um grupo particular: há determi-
nado grupo de profetas. Eles se acham de tal maneira mar-
cados pelo dom profético, que podem ser chamados profe-
tas em sentido reduplicativo. São estabelecidos por Deus,
diz Paulo, como tais (1Cor 12,28); e nem todos os cristãos
são profetas neste sentido peculiar.

6 1Cor 12,10.28s; 13,2.8; 14,1-4.


Cf. 1Cor 14,5.24-29.
8 M. Legido, Fraternidad en el mundo Sígueme, Salamanca, 1982, 250-257.
2 H. Conzelmann, Der erste Brief an die Korinther, Gottingen, 1969,290.

145
Alguns autores comentam o fato da seguinte maneira:
“O profeta interpreta os mistérios de Deus que lhe são en-
treabertos pelo Espírito (Ef 3,5). Descobre o que está oculto
para o homem. A profecia é discurso inspirado, mediante o
qual se conhece o plano salvífico de Deus a respeito do
mundo e da comunidade, bem como a vontade de Deus na
vida de cada um. Posto que todos os cristãos possuem o
Espírito, todos têm certa intuição deste plano salvífico e dos
sinais de salvação (1Cor, 2,10-12). No entanto, esta visão
interna do plano de Deus é concedida de modo especial ao
grupo mais particular de profetas. Estes se expressam exor-
tando, consolando e orientando (1Cor 14,3) a comunidade,
ou então dirigem-se a Deus em oração, louvando-o por suas
“ações admiráveis"?,
O carisma profético suscita, em um e em outro, senso
especial para descobrir o que a vontade de Deus exige em
uma situação concreta. O que há de específico no discurso
profético é seu caráter concreto e atual. Possui também ca-
ráter de juízo, como o tem a vontade salvífica de Deus.
Ao lado do dom da profecia, as comunidades têm o
dom complementar do discernimento de espírito, para de-
fender-se dos falsos profetas?!. Toda a comunidade podee
deve julgar?. Os profetas devem submeter-se a este julga-
mento (1Cor 14,37). Eis, portanto, uma nova e importante
reciprocidade.
Para terminar: tudo o que descrevemos poderia acon-
tecer em uma única assembléia litúrgica, quiçá precedendo
ou seguindo a fração do pão eucarístico; ou em reunião mais
independente, ou por ocasião de se discutirem questões re-
ferentes ao andamento da comunidade: sua organização,
suas atividades, seus compromissos,etc.

OR. Giersriegl, Die Sprengkraft des Geistes. Charisma und apostolischer Dinest in
1 Korintherbrief, Thaus, 1989, 142.
2 Cf. 1Cor 11,13; 12,10; 14,29.
2 Comose acha explicitamente indicado em 1Cor 14,29 e Ts 5,21.

146
Em nosso caso atual, tratar-se-ia ou daliturgia da pala-
vra, ou de sessões bíblicas, ou de reuniões de oração,
catequese, revisões de vida ou ainda assembléias de pro-
gramação e planejamento, e de grupos de preparação e re-
visão da própria homilia dialogada.
Podem variar as circunstâncias externas, as estruturas
funcionais da reunião, porém, no fundo, temos sempre os
mesmos componentes essenciais: a palavra de Deus, a co-
munidade reunida em torno dela e os carismas que, a modo
de dons, ministérios e forças dinâmicas, a mobilizam para a
comunicação e a comunhão (1Cor 12,4-5).

2. À participação de todos
no serviço da Palavra

A possibilidade de todos porem-se a falar graças a uma


carismática inspiração profética ou sapiencial é o que Paulo
quer possibilitar como oportunidade em qualquer circuns-
tância, porque sabe, com a tradição da Igreja desde pente-
costes, que na nova aliança, no povo escatológico de Deus,
todos se transformaram em carismáticos, profetas... pois
que todos receberam o mesmo Espírito Santo.
Há algo mais, contudo. Paulo, que manda ler suas car-
tas diante da assembléia da comunidade, supõe que os res-
ponsáveis ponham tudo em discussão em tais assembléias,
ou melhor, que todos discutam, apresentando toda espécie
de questões, a fim de que sejam comentadas?. Para Paulo,
a assembléia cristã não é apenas o lugar da instrução teoló-
gica e da oração, mas também o lugar da interpretação da
história salvífica mediante o que ensina sua pré-história (as
etapas anteriores desta história salvífica) e sua atualidade”,

2 R. Pesch, Paulus ringt die Lebens der Kriche, Friburgo, 1986.


24 Cf. Rm 15,4; 1Cor 10,11.

147
Se de verdade tomássemos em conta todo este sentido
da pastoral da Palavra, nossas comunidades se tornariam
realmente adultas, porque seus membros “tomariam a pa-
lavra” e falariam com autoridade, o que é próprio do adul-
to. Haveria extraordinário enriquecimento no intercâmbio
de uns com os outros, tal como dá a entender a pletora de
pentecostes, que nos mostra esta plenitude e exuberância
dos últimos tempos.
Desapareceriam, de uma vez por todas, o mutismo
penoso de tantas assembléias e a tentação clerical de mono-
polizar a palavra com o pretexto de seu ministério hierár-
quico, ministério que tem que estar a serviço da palavra do
povo, e não a serviço de si mesmo. Este ministério hierár-
quico é também dom do Espírito, que deve ser articulado e
harmonizado com o dom profético do povo, para buscar a
unidade e a comunhão de todos entre si e com o Senhor,
cabeça do corpo único.

3. Os condicionamentos psicológicos

Trataremos agora dos aspectos psicológicos do nosso


tema, concretamente a homilia dialogada ou o diálogo em
relação com a homilia. Neste trabalho, servir-nos-emos de
algumas orientações da dinâmica de grupos e das técnicas
de não-diretividade, que nos ajudarão decisivamente a con-
tribuir para que este colloquium fratrum, a reunião cristã
quando fiel à inspiração pluricarismática do Espírito em face
da Palavra, se desenrole adequadamente como navegação
bem pilotada, que se afasta dos escolhos da desordem do
exagero entusiástico e do aborrecimento de uma passivida-
de generalizada.
Entre Cila e Caribde deve discorrer a assembléia cris-
tã, quando lhe fica aberta a oportunidade de cada um de

148
seus membros poder tomar a palavra, como sinal de haver
recebido e usado sua liberdade de filho de Deus, deixando
para trás a escravidão do medo de falar, superado graças ao
Espírito que o impele a dizer: “Abba! Pai!” (Rm 8,15).
O fato da comunicação é fato carismático promovido
pelos diversos carismas. É, porém, também fato humano
submetido a leis e condicionamentos psicológicos. O pri-
meiro pode ocultar o segundo, e então pode provocar en-
ganos: o que parece dom do Espírito é, às vezes, resultado
de determinadas estruturas psicológicas mais ou menosfe-
lizes, segundo os casos. Aqui também o discernimento de
espírito tem seu lugar e sua tarefa em forma de crítica, que
detecta os acobertamentos e ciladas produzidos pela psi-
que em níveis mais ou menos subconscientes.
Antes de tudo, um primeiro engano, mais ou menos
defensivo e de autodefesa, é o teorizar, fugir para disquisi-
ções e especulações de tipo teórico, abstrato. É caminho equi-
vocado, porque o centro de toda comunicação pessoal, tam-
bém e sobretudo se é cristã, ocupam-no as vivências,os fatos
reais e os testemunhos de vida; tudo o que tem que ver com
a ação real.
Esta linha de profunda personalização da comunicação
e do testemunho pessoal no grupo coincide com e converge
para a comunicação e o testemunho que suscitam a fé, o
Espírito dentro da Igreja em torno das realidades crísticas,
histórico-salvíficas (a realidade da pessoa de Cristo res-
suscitado presente em nosso mundo e em nossas vidas, os
fatos de salvação tanto passados quanto presentes)”.

2 Neste sentido podem ajudar-nos: Jo 14,26; 15,26-27; Rm 8,16-17.26-27; 1Cor


2,10-15.

149
4. Os fatos da vida

Com base nos textos bíblicos citados, podemos dedu-


zir quais os álveos pelos quais deve fluir a comunicação da
comunidade em torno da Palavra. São os álveos do teste-
munho, das experiências de fé, o impulso do Espírito, a
memória ou anamnese dos fatos salvíficos atualizados nos
fatos da vida, nos sinais dos tempos, no seguimento de Cris-
to, nas profundezas do coração crente, na conversão e no
seu inverso, o pecado.
Isto significa que deve girar em torno de realidades
concretas, palpitantes, tiradas da vida real e da vida defé;
não em torno de idéias teóricas, de discursos especulativos
e abstratos, ou de disquisições.
Assim sendo, na reunião cristã, no colóquio, cria-se um
clima singular e único, por certo bem diferente do que pode
haver em uma aula ou em um seminário de teologia, em
uma discussão escolar etc. Ninguém pretende explicar uma
tarefa difícil do evangelho ao outro; do contrário, se fica
nisto como se fosse o principal.
Principalmente, é preciso .evitar tudo o que pode
aproximar-se de uma discussão ou parecer-se com ela.
Certamente, se segue o caminho que estamos sugerindo,
a discussão é cortada pelo bom senso, sem necessidade
da intervenção de moderador algum. Por quê? Porque,
embora a idéia possa ser discutida, o mesmo não acontece
com um fato: os fatos não podem ser discutidos; como di-
ziam os antigos escolásticos: “Contra facta non valent argu-
menta”.
Por isso, se a comunicação gira em torno de fatos: fa-
tos de experiência, fatos que sejam sinais de valores evan-
gélicos, ou de situações reais, não haverá perigo de dis-
cussão.

150
5. Projeções e dependências anticomunicativas

Outro risco para a comunicação de grupo consiste em


cair consciente ou inconscientemente (este último caso é o
mais frequente) em ciladas projetivas, transferenciais: pro-
jetar ou transferir para o irmão ou irmã imagem que não
corresponde à sua realidade, mas que provém do meu in-
consciente.
Por exemplo, a imagem paterna como símbolo de oni-
potência, que se admira ou se odeia e que se quer destruir,
pode levar a exaltar a priori certos membros do grupo que
são idealizados como figuras todo-poderosas ou a margi-
nalizar outros que são cercados de hostilidade, de rivalida-
de, de rejeição ou de inveja. É a dialética tão dificilmente
superável de amor/ódio, que induz a realizar deslocamen-
tos estranhos sem base real alguma. No entanto, todos nós
somos ameaçados por estes desequilíbrios emocionais
subjacentes em nossa personalidade, que nos levam a viver
determinado tipo de fantasias e de desejos igualmente sub-
conscientes.
Outro destes pressupostos básicos subconscientes é o
da dependência, que impulsa a pessoa a apoiar-se sempre
em outra do grupo idealizada como líder. Esta atitude de
dependência reproduz também e conserva perigosamente
fases infantis não superadas no tempo devido. Pode con-
duzir à passividade, a não falar no grupo, a não contribuir
nem colaborar, mas apenas a repetir o que as pessoas idea-
lizadas dizem, ou a aproveitar-se interesseiramente do que
elas trazem ao grupo. Em todo caso, fica-se demasiado de-
pendente de suas manifestações. Assim, pode haver, por
exemplo, um tipo de escuta aparentemente cortês e frater-
nal, porém que, no fundo, é resultado de atitude por de-
mais oral, consequência de oralidade infantil patológica e
persistente.

151
6. A verdadeira escuta

Em face detais distorções, faz-se necessário desenvol-


ver e fortalecer o sentido da escuta verdadeira para poder
ouvir e perceber o outro tal comoé, não só no que ele coin-
cide comigo ou se identifica com a imagem que projeto so-
bre ele.
Sem esta atitude profunda de escuta, o grupo se torna
monolítico, uniforme e se coloca no plano inclinado que o
faz tender a exigir o desaparecimento da diversidade, do
pluralismo. Pode chegar a ser um Moloc devorador da di-
ferença, do outro. Surge, assim, um mito do grupo perigo-
samente narcisista e paradisíaco, ou pende a ameaça de
transformar-se em seio materno protetor.
A verdadeira escuta consiste naquela atitude que al-
guns denominam de compreensão empática e reflexo. É a
capacidade de perceber a idéia e a atitude expressa pelo
outro e do ponto de vista do outro, sentindo com ele como
estas agem sobre sua sensibilidade, assimilando seu qua-
dro de referências e significados.
Quando quem fala encontra este tipo de escuta, então
sente libertar-se em seu interior poderosa força capaz de
transformá-lo. Efetivamente, quando alguém se sente escu-
tado de verdade por outras pessoas, que não pretendem nem
julgá-lo, nem utilizá-lo, então sente também seu interior
esponjar-se. Começa, igualmente, a saber escutar-se a si mes-
mo, prestando ouvido a sentimentos seus que até agora ig-
norava ou reprimia. Estabelece-se uma fluência libertadora,
degelo que permite desenvolvimento normal de sua
interioridade.
A atitude de escuta que acabamos de descrever equi-
vale a atitude de identificação: identificação dos inter-
locutores entre si na escuta mútua, que equivale a respeito
pela alteridade do outro ao mesmo tempo que sintonia

152
empática com ele, pois as zonas mais obscuras ou luminosas
do outro se acham, de fato, não no enclausuramento nar-
cisista, porém, sim, na dialética que o faz passar pela aber-
tura ao outro. Esta identificação, aparentemente apenas psi-
cológica, não é, porventura, passagem decisiva e indiscutí-
vel no caminho rumo ao agape e à koinonia cristãs? Não se
trata de um de seus pressupostos humanos essenciais?

7. A tarefa de presidir ou moderar


a reunião dialogada
Neste item veremos comoestas questões psicológicas
dizem respeito a quem preside a reunião dialogada ou o
diálogo dos reunidos. Prescindimos agora se se trata de
ministro ordenado ou não ordenado. Tanto em um caso
quanto no outro, o ministério de presidir, ou se se preferir, a
tarefa de moderar (quando não se trata de ato sacramen-
tal), depende muito especialmente destas diversas leis ou
mecanismos psicológicos e se acha indubitavelmente sob
sua influência.
Por isso, quem preside deve estar consciente desta rea-
lidade: em primeiro lugar, para fugir às distorções mencio-
nadas, que tendem a recair principalmente sobre sua pes-
soa e a deformar a sua imagem; em segundo lugar, para
encaminhar e promover as forças positivas.
A ele (ou a ela) compete, dentro do contexto da reu-
nião cristã, nova forma de exercício de presidir: dirigir, em
profundidade, o diálogo em torno da Palavra, dos fatos da
vida e dos problemas do momento, assegurando delicada-
mente que se cumpram todas as suas exigências. Este novo
modo de presidir obriga mais a calar e a sentir-se identifica-
do com os outros do que a dominar ou julgar de fora para
dentro, ou do alto.

153
Às vezes, haverá de notar as resistências de todos ou
de alguns em face da comunicação, com o que deverá ter
feito, outrossim, uma adaptação de seu ministério profético
para este momento. Principalmente porá abaixo todas as
projeções que o grupo tende a fazer sobre ele, de modo es-
pecial as fantasias de onipotência. Se aceitar, consciente ou
inconscientemente, ser aquele que sabe tudo, porque res-
ponde a tudo, intervém amiúde balizando, apontando etc.,
já terá incorrido na contratransferência. Deverá seguir, de
preferência, a linha do líder não diretivo: ter a humildade
de reconhecer realmente que a verdade e a virtude se acham
em todo o grupo, em cada um dos seus membros, certa-
mente a seu modo e à sua maneira.
Ele (ou ela) está, antes de mais nada, à disposição do
grupo, e não servindo-se dele. E está identificando-se com
ele, descobrindo em si mesmo o positivo e o negativo dos
outros. Somente assim evitará criar dependência em rela-
ção à sua pessoa, dependência que esgotaria, a partir da
raiz, O caráter comunitário da reunião e acabaria matando-
o, pois todo grupo dependente acaba abandonando ou des-
truindo o próprio líder que havia idealizado.
Como norma prática global, a pessoa que preside re-
sumirá no fim tudo o que de positivo contém enfatizando-
o. Se desejar acrescentar algo, fá-lo-á apoiando-se nas con-
tribuições do grupo. Assim, realizará um serviço de comu-
nhão e de ajuda à comunhão do grupo, porque mostrará
a este, como que em um espelho, o que soube elaborar. Re-
fletirá os resultados, descobertas etc., a que pode chegar o
grupo, quando realiza boa colocação em comum de seus
diversos carismas. E este reflexo o animará a prosseguir o
caminho da construção da comunidade e a caminhar jun-
tos pela trilha de uma fraternidade adulta, movida pela
Palavra.
Para fazer a síntese final, o moderador pode, durante a
reunião, tomar algumas notas por escrito, para evitar es-

154
quecimentos perigosos. Efetivamente, é sabido que tais es-
quecimentos não costumam ser casuais nem inocentes. São
antes efeito de certas censuras do nosso inconsciente. O que
de algum modo nos perturba, eliminamo-lo de nossa me-
mória, para evitar, assim, determinados conflitos. Então,a
pessoa que modera se está projetando sobre o grupo, e não
exatamente nos aspectos mais positivos de sua personali-
dade. As notas tomadas sobre o andamento podem ajudá-
lo a ser mais objetivo em sua síntese final da reunião cele-
brada e do diálogo nela ocorrido.

8. Homilia monologal
Hoje em dia, na pastoral, são frequentes os casos em
que ocorre o colóquio ou diálogo fraterno em torno da Pa-
lavra e, portanto, se podem aplicar alguns dos critérios an-
tes analisados. Volta-se, deste modo, aos tempos paulinose
à prática das comunidades paulinas, onde parece que esta
era a tônica dominante.
Não obstante, o caso mais habitual, ou, se se preferir, o
mais tradicional durante séculos, tem sido o serviço à Pala-
vra por meio de pregação monologal, como é o caso da
homilia dominical celebrada por comunidade numerosa,
onde só fala o presbítero, o ministro ordenado que preside
a eucaristia. Que dizer neste caso? Porventura também aí
um problema e alguns condicionamentos psicológicos que
influem na comunicação e, por conseguinte, na tarefa de
fazer comunidade?
Evidentemente, há problemas, algumas estruturas e
condicionamentos, que precisam ser levados em conside-
ração. Do contrário, esta pregação não será verdadeiro en-
contro da assembléia em torno da Palavra e se terá perdido
esta oportunidade tão importante de aprofundar na vida
comunitária de todos os participantes.

159
Precisamente nestes últimos anos, os homiletas, prin-
cipalmente de língua alemã, têm feito análises interessan-
tes e aplicações de certos estudos da psicologia ao campo
da pregação, sobretudo da homilética?*.
Uma primeira observação a ter em conta é a seguinte:
a homilia não só dá testemunho do evangelho, mas tam-
bém do pregador. O testemunho do evangelho é testemu-
nho de fé; e esta passa pela pessoa da testemunha exata-
mente porque todo testemunho é algo pessoal. Toda pre-
gação é encontro pessoal entre o pregador e os fiéis que o
escutam. Então o pregador deve questionar-se sobre sua
capacidade para este tipo de encontro, isto é, sobre sua
capacidade de se relacionar com as pessoas, de acordo com
a diversidade de circunstâncias em que se acha situado, o
que supõe capacidade de escuta paciente, receptividade e
participação em verdadeiro intercâmbio de experiências.
Explicitamente, isto se faz fora, antes da homilia, porém,
implicitamente, deve ser feito e continuado durante a
homilia.
A homilia pressupõe estabelecer relação pessoal, dia-
logar em sentido profano,criar situações em que o outro seja
tomado a sério como um tu, como o parceiro do diálogo.
O perigo que ameaça esta comunicação é o de que o
ministro esconda sua personalidade sob a máscara de seu
papel de pregador, de teólogo ou de especialista. Então o
testemunho deixa de ser pessoal ou desaparecem o tom e o
pano de fundo testemunhais, tão importantes. Quem pre-
ga, durante a homilia, não deve silenciar sua experiência
pessoal de fé, porque necessita partir de experiências vitais,
tanto próprias quanto alheias, até chegar a configurar algu-
mas imagens, expressões e linguagem também vitais. Do
contrário, deter-se-á em fazer paráfrase da Escritura ou em
moralismo. E isso não para o pregador cair em subjetivismos,

6 K. H. Biertiz-Ch. Bunners, Handbuch der Predigt, Berlim, 1990, 100-135.

156
nem psicologismos; porém, para encarnar a Palavra na
realidade pessoal tanto de quem ouve quanto de quem fala.
Se se pedem à comunidade a experiência concreta e o
compromisso em torno da Palavra, o mesmo deve pedir o
pregador a si mesmo. Deste modo, a homilia tem muito de
colocação em comum, por mais monologal queseja. A fé do
ministro da palavra é inseparável da fé da comunidade.
Com muitos pastoralistas, não compartilhamos a opi-
nião segundo a qual o pregador deve silenciar suas expe-
riências relativas à fé cristã. Pensamos que assim se torna
mais difícil o diálogo entre comunidade e pregador, porque
falha esta empatia que surge de algumas experiências e vi-
das comuns, compartilhadas.
É legítimo, pois, que apareça o eu do ministro da pala-
vra; não só como quem confessa a fé na objetividade do
credo, mas também na densidade da vida quotidiana. O
melhor antídoto contra o perigo de buscar a si mesmo na
pregação consiste em ter atitude eclesial e comunitária. Con-
cretamente isto quer dizer: sentir-se em união com a comu-
nidade de fiéis e, como consequência, esforçar-se para uma
busca e escuta no âmbito da comunidade, que é a “comu-
nhão no Espírito” (Cor 13,13).

9. Aexperiência pessoal de quem preside

Certamente, a pregação do evangelho é incompatível


com o pregar-se a si mesmo. Não se pode reduzir o conteú-
do da pregação à comunicação de experiências subjetivas.
No entanto, esta crítica não diz respeito a quem convi-
da a participar da praxe vital da fé cristã e, por causa disto,
em certos contextos, não silencia sua própria experiência
pessoal. Alguns fogem e se defendem deste risco e compro-
misso que supõem a comunicação, o tom e o testemunho

197
pessoais, refugiando-se em uma objetividade que pode ser
válida para uma aula ou atividade acadêmica, porém não
para o serviço da Palavra diante da comunidade. Suposta-
mente, toda personalidade possui suas limitações, princi-
palmente neste campo tão difícil, mas aceitar esta realidade
com humildade já é um modo de superá-la. E acima de tudo:
a humildade é o melhor testemunho evangélico.
O pregador angustiado que reprime sua angústia e não
a reconhece com franqueza proíbe e impede a si mesmo de
tratar da angústia de seus irmãos ouvintes. Ou o pregador
que não confessa a si mesmo seus sentimentos de resigna-
ção ou defalta de esperança impede igualmente a si mes-
mo, e impede seus ouvintes de dialogarem com Deus par-
tindo deste problema.
Assim, poderíamos apresentar outras espécies de pro-
blemas e de personalidades avessas a este tipo de sinceri-
dade e de humildade prévias ao ministério da palavra. Por
exemplo, a personalidade dócil, submissa e passiva, para a
qual toda rebeldia é impossível, projetará esta tendência, se
dela não tiver consciência, sobre seus ouvintes, dificultan-
do-lhes todo sentido crítico de oposição.
O pregador que não tem consciência de seus conflitos
ou fraquezas emocionais, irá projetá-las e introduzi-las em
sua pregação, criando dificuldades graves para sua comu-
nicação e seu testemunho.
Não basta reprimir estes problemas, porque, assim,
aparecerão disfarçados ou desfigurados; é mister tomar
consciência deles, assumi-los, tentar superá-los e, de qual-
quer maneira, aceitá-los com humildade, porém na lucidez
e na verdade.
Os psicólogos fazem diversas classificações que podem
ajudar-nos a rever alguns dos erros principais da comuni-
cação e que podem ser aplicadas ao fato que nos ocupa, a
pregação monologal, principalmente a homilética. Trata-se
de fazer um diagnóstico que se encaixe em personalidade

158
concreta dentro de um quadro de modo geral opressor, po-
rém, sim, de captar certos traços dominantes que permitam
detectar por onde podem surgir perigos que representem
obstáculos a verdadeiro contato pessoal. Neste contexto é
oportuno lembrar que não há personalidades totalmente
equânimes que gozem de equilíbrio perfeito. Todas têm suas
características próprias, suas inclinações e suas tendências
não integradas de todo, diante das quais é preciso manter-
se sempre vigilante.

10. Tipologia dos pregadores homiléticos

Um primeiro tipo que existe é o daquelas pessoas (leia-


se pregadores) com excessiva inclinação à ordem, ao que
perdura, à tradição, ao que permanece em meio da mudan-
ça e da autoridade. Elas correm o perigo da rigidez e do
conservadorismo. Acentuam o caráter de permanência e de
exigência em face do que diz a palavra de Deus. Repetem o
“ter que” e o “hás de”. Suas pregações são bem pensadas,
são claras sob o aspecto temático; foram elaboradas de ma-
neira conscienciosa e tendem ao aprofundamento no pen-
sar e no crer. Exaltam a glória de Deus e o senhorio de Cris-
to. À supervalorização do ponto de vista normativo pode
levar a atitudes de intolerância ou legalismo. Estes traços,
exagerados, se assemelham aos do tipo compulsivo obses-
SIVO.
Em segundo lugar, está a personalidade aberta à mu-
dança, flexível, liberal, dinâmica, sensível ao emergente, à
evolução, ao que irrompe de novo. Afirma a vida, o júbilo
de viver. É alegre, extrovertido, pouco ou nada sujeito às
preocupações e pode chegar à despreocupação e à volubili-
dade. Fala muito das oportunidades e das possibilidades
da fé, de suas tarefas e soluções, da liberdade do cristianis-

159
mo, da esperança e das promessas. Discute contra a coação
e o forçoso, tem dificuldade para reconhecer os limites da
utopia, da aceitação e da manutenção do quotidiano. Al-
guns destes traços, forçados, possuem afinidade com o tipo
histérico ou histeróide.
Um terceiro tipo é o que valoriza na pregação a trans-
cendência das idéias e dos conhecimentos do racional. Quer
captar a realidade de modo teórico, abstrato e conceitual. E
crítico, de preferência distante e frio, sobretudo com rela-
ção a si mesmo. Seusvalores e objetivos são a independên-
cia, a autonomia, O ser ele mesmo. É sensível às contradi-
ções, inclinado a questionar, a levantar prolemas e a
problematizar as situações e verdades admitidas. Fala do
conhecimento de Cristo e da certeza que tal conhecimento
transmite. Esta supervalorização do teórico e do cognos-
citivo costuma ser reação diante do temor de confiar nos
outros. Por isso, ele tem dificuldade em se relacionar com a
realidade pessoal. Mal expressa sentimentos em suas
homilias, mas também não desperta sentimentos nos ou-
tros. Para este tipo de pregar, o que leva a Deus é o conheci-
mento da verdade. Graças à sua independência e frieza in-
telectual, pode chegar a grande liberdade em face de mui-
tos condicionamentos. Não tem medo nem ilusões. Agúen-
ta bem ficar sozinho, bem como os ataques dos outros. O
tipo psicológico mais próximo, extrapolando-o, é o do esqui-
zóide.
O quarto tipo é o do pregador cheio de sensibilidade,
sensível a tudo o que se diz em relação ao amor, que com-
partilha e sabe dirigir-se ao tu, que busca e oferece aproxi-
mação e proteção. Sente medo e angústia diante de tudo o
que represente separação. Sente atração pelo servir e pelo
dar. Sabe sofrer. Tende a dobrar-se pacientemente. Fala com
frequência da cruz de Cristo, das experiências de obscuri-
dade, da decepção e do desamparo. Costuma ter grande
capacidade pastoral: é o pastor nato, que sabe sintonizar,

160
ter compaixão,estar disposto a ajudar, consolar e levantar.
Identifica-se facilmente com os outros.
Sabe comprometer-se com sacrifício de si mesmo. Pro-
cura a relação pessoal com quem pede conselho, embora
corra o risco de o outro vincular-se excessivamente à sua
pessoa, criando dependências, com o desejo de sentir-se
necessário e útil. Pode subvalorizar a liberdade e a autono-
mia dos outros. O amor ao próximo,a entrega de si mesmo
tem significado imenso para ele. Estamos, neste caso, quan-
do há parcialidades, próximos do tipo depressivo.
Acho quea classificação e a descrição anteriores cons-
tituem bom guia de navegantes para rever as possibilida-
des e também os perigos da comunicação dentro do serviço
à Palavra mediante a pregação monologal.
Podem ser de utilidade para o sacerdote que, todos os
domingos, dirige sua homilia à comunidade; mas também
aqueles que o ajudam a prepará-la, a revê-la..., e, em geral,
a todos os membros da assembléia litúrgica. Todos, e não
só os componentes da equipelitúrgica ou da equipe de pre-
paração homilética, podem e devem colaborar para que a
palavra de Deus chegue a cada um dos participantes na ce-
lebração. Somente assim, os unirá realmente em torno de
uma mesma fé e de um mesmo evangelho, despertando a
comunidade cristã, profética e evangélica.
O que fica claro, depois de refletirmos sobre estas aná-
lises psicológicas, é que a dificuldade, por exemplo, de uma
homilia, não reside apenas em seu conteúdo, na exegese e
na teologia que a sustentam; é isto, certamente, de capital
importância. Mas também conta muito o sujeito que assu-
me estes conteúdos, convertendo-os em pregação pessoal e
personalizada. É tarefa que deve realizar decidida e corajo-
samente, porém com a vigilância e a ajuda crítica tanto dos
irmãos quanto de si mesmo.

161
11. Leis da comunicação

Vejamos por último outros problemas que concernem


à comunicação na homilia monologal. São em parte de ca-
ráter psicológico e em parte tangem o campo da retórica ou
a arte de falar e convencer.
Em primeiro lugar, é claro que os ouvintes desejam sen-
tir-se expressados em todo discurso quea eles se dirige, por-
tanto, também na homilia. É, pois, fundamental levar em
conta o que lhes interessa, o que os faz pensar e repensar
com sutilezas o que os ocupa ou os preocupa. Para isto aju-
da conhecerem bem o que lêem ou o que vêem na televi-
são... suas atividades no tempo livre.
Depois convém recordar outro traço do ouvinte: seu
desejo de ver confirmadas as convicções fundamentais que
possui. Por isso, ao escutar a primeira coisa que aceita é o
que reforça tais convicções. Um pregador, que ignore esta
realidade ou que não a tome em consideração, não conse-
guirá que a mensagem de sua palavra seja escutada, o ou-
vinte se fará de surdo para o que não quer ouvir. Se for im-
possível, porque o contraste entre suas atitudes e a prega-
ção se apresentam demasiado flagrantes, pensara de si para
si: “Não é isto o que quer dizer”?”.
Se nem isto for possível, porque a posição oposta hou-
ver sido mostrada pelo pregador com toda a acuidade, o
ouvinte tenderá a rejeitá-la como absurda ou insensata. É o
que diz a teoria da dissonância ou a lei da evitação da
dissonância: o ouvinte tende a eliminar o que lhe soa mal.
A tarefa, pois, de quem prega é a que se propunha na
antiga retórica qual captação prévia da benevolência e da
boa vontade do ouvinte. Para isso, não se deve esquecer
que em todo este assunto desempenha papel importante a

” |]. Rothermundt, o.c., 17-18.

162
imagem que o ouvinte tem do pregador, os preconceitos
positivos e negativos presentes em seu ânimo.
Muito ligado ao anterior está o problema da seleção de
informação que todo ouvinte faz de um discurso falado,
também doreligioso. Em tal seleção influi decisivamente o
interesse que se tem por certos problemas e as experiências
fundamentais que se têm vivido. O ouvinte deixa de ouvir
o que parece não dizer-lhe respeito. Ao contrário, converte-
se em receptor quando ouve que se fala de algo que lhe
falta e que quer encobrir ou eliminar.
Os peritos nos apresentam um quadro que deveria fa-
zer-nos pensar. O homem e a mulher guardam: 10% do que
lêem, 20% do que ouvem, 30% do que vêem, 40% do que
ouvem e vêem, 60% do que ouvem, vêem e discutem, 80%
do que descobrem por busca própria e 90% do que descobri-
ram e pelo qual têm de lutar ou sofrer. Por conseguinte, o
que melhor captam e guardam é o que entra em seu âmbito
existencial e emocional; outrossim o que os faz pensar, tra-
balhar interiormente, nele colocar algo de sua parte e não
ficarem passivos. O meramente intelectual se retém de modo
pior e sobretudo influi pouco na mudança de atitude.
Outro traço a ter em conta do ponto de vista psicológico
e retórico é a novidade. Este critério nos ajuda a concretizar
as idéias fundamentais do primeiro capítulo: toda pregação
deve trazer para o ouvinte algo novo,interessante, algo que
valha a pena conhecer e experimentar. Evidentemente, isto
depende em alto grau do nível cultural ou teológico, da quan-
tidade e da qualidade dos conhecimentos que o ouvinte pos-
sui. Por outro lado, se a homilia trouxer informação em ex-
cesso, os ouvintes acabarão desligando-se na escuta.
À uma pessoa, quejá participou cinquenta vezes em sua
vida da missa natalina da meia-noite, pode-se, porventura,

8 Ch. Bunners, “Der Horer” em K. H. Bieritz-Ch. Bunners, Handbuch der


Predigt, Berlim, 1990, 138-182.

163
dizer algo novo? Sim, tendo em conta a situação do ouvinte e
da comunidade, sempre cambiante. É mister contar, certa-
mente, com que muitos esquecem o que ouvem. Por isso, é
preciso repetir algumasinformações, porém, procurando que
este fato traga sempre algum elemento surpresa através des-
ses fatos novos que surgem continuamente na vida de uma
comunidade ou de um povo.
Fazendo um simples balanço das observações que já
expusemos, podemos dizer o seguinte: os homens e as mu-
lheres se questionam sobre o sentido do que estão vivendo,
e é isto que desejam ver refletido na pregação. Por trás des-
te questionamento se oculta o problema do sentido do con-
junto da existência; algo que, aliás, não nos é dado perceber
a não ser fragmentadamente. Deus é, com absoluta certeza,
o nome do horizonte em que se pode iniciar uma resposta
para esta pergunta.

12. Homilias em situações especiais


A pergunta sobre o sentido das desgraças, dos sofri-
mentos, das catástrofes (pense-se, outrossim, em homilias
de funerais, exéquias, missas de defuntos...), só se pode res-
ponder falando-se do mistério da morte e ressurreição de
Jesus. O sofrimento pode e deve ser também possibilidade
de encontro com ele, uma forma da presença e companhia
daquele que compartilha a totalidade da nossa aventura
humana. Da vida, morte e ressurreição de Jesus surgea li-
bertação pascal da liberdade e da vida de todo homem.
O pregador deve perguntar-se se sua palavra é boa nova
que transforma a situação das pessoas, e as transforma tão
profundamente que estas possam começar a respirar, con-
fiar e esperar. Ele deve ter plena fé na força transformante
da Palavra a que serve e que atualiza dentro destas conjun-
turas dramáticas.
164
Apesar disto, a pregação não pode em momento al-
gum causar a impressão de que se vulgariza ou considera
levianamente a indigência humana. Isto sucede quando se
abandona demasiadamente depressa a situação de sofri-
mento, lançando mão com rapidez de alguma palavra liber-
tadora. A primeira coisa que Deusfaz é mostrar-nos a pro-
fundidade do mal e do pecado, a contradição aguda em
que vivemos; penetra a fundo na situação de dor, comparti-
lhando-a. Deus não é escapista.
O giro e a mudança nesta situação de dor começa pri-
meiro sob a forma de promessa. Mas a situação só se trans-
forma para quem tem a coragem e a audácia de confiar nes-
ta promessa. O vigor da Palavra e o dom do Espírito nos
dão a força necessária para viver esta confiança e para
comunicá-la. Então, no íntimo desta confiança audaciosa e
ousada que acolhe a promessa de Jesus, surge nova expe-
riência: em face da realidade imediata, aceita-se, com espe-
rança que a vida, o amor, a paz e a liberdade serão doados
de novo, de maneira definitiva e duradoura.
A pregação deve convidar o homem e a mulher a se
abrirem e a se entregarem a esta vida nova desde agora, a
que em meio a este mundo de infelicidade acreditem nesta
salvação final, vivendo e agindo com base na certeza de sua
validade.
Assim, pois, a mensagem cristã anunciada pela prega-
ção se mostra como a possibilidade de ver a situação de
outra maneira, de mantê-la aberta para uma mudança que
não está nela mesma. Partindo da promessa que faz e queé
esta mensagem, podem ressurgir as esperanças derrubadas
por terra e pode superar-se a experiência do absurdo e da
falta de sentido de tudo, que tão de perto ronda nossoscon-
temporâneos.
É preciso acrescentar, além disso, que uma pregação
sobre o problema do sentido da vida do homem e da mu-
lher jamais é resposta encerrada, acabada e terminada. É,

165
vez por outra, o chamado e o convite para dispor-se ao ca-
minho do seguimento de Jesus, a fim de que chegue a ser
realidade a história da libertação iniciada por Deus em cada
pessoa, em cada comunidade e em cada época.
O verdadeiro encontro com Deus possibilita o ser ver-
dadeiramente homem, verdadeiramente mulher, sem ilu-
sões vás, na fidelidade à realidade concreta, porém total. De-
senvolve todas as energias humanas e livres para a pessoa
comprometer-se em favor do mundo e dos irmãose, assim,
perseverar neste compromisso, sem medo nem angústia em
face dos fracassos, das provações e dos sofrimentos”.

9 A. Schwartz, 0 c., 71.

166
Capítulo 4

UMA LINGUAGEM

1. Gênero literário e forma expressiva


A homilia pertence a determinado gênero literário.
Melhor ainda: constitui um gênero literário dentro do mun-
do da fé, da vida eclesial e da atividade cristã. Ora, o gênero
literário é constituído por uma linguagem,ou, se se prefe-
rir, é plasmado em linguagem particular.
E o que queremos analisar neste capítulo. Vamos en-
tender a noção de linguagem com amplitude: ela inclui to-
das as mediações expressivas de um conteúdo. É um con-
junto de formas que têm a finalidade de manifestar e evi-
denciar algumas idéias e realidades latentes. A questão re-
side em saber se alcançam este objetivo e em que medida o
alcançam.
Por conseguinte, o problema da linguagem consiste em
achar as formas mais adequadas e eficazes para expressar o
que se quer expressar dentro de um gênero ou contextoli-
terário.
As preceptivasliterárias e a retórica costumam distin-
guir entre forma interna e externa. Nós vamos levar em conta
esta distinção.
Por forma interna entendemos a organização do mate-
rial da homilia, seus diversos elementos, seus aspectos ob-
jetivo e subjetivo, o modo como distribuí-los, agrupá-lose
relacioná-los. Podemos denominar forma externa o que

167
comumente se chama linguagem: o conjunto e classe de ter-
mos, vocábulos, figuras literárias, a construção sintática...
Não obstante, para nossa análise da homilia, não va-
mos procurar separar estes dois tipos de forma, porém
estudá-los-emos simultaneamente, per modus unius.
Tampouco se pode, nem se deve, separar a forma do con-
teúdo: uma e outro possuem influência recíproca. Portanto,
embora a ênfase do presente capítulo recaia sobre a forma e
a linguagem, apesar disto, retomaremos algumas das ques-
tões já vistas sobre o conteúdo, se bem que, agora, dentro
desta perspectiva de sua expressão linguística. Começare-
mos pelo problema do gênero literário da homilia, tentan-
do descrever sua peculiaridade.

2. Nem explicação nem exegese


Em primeiro lugar, a homilia não é explicação de doutri-
na cristã, teologia, moral ou problemas atuais. A explicação
compete à aula e à docência acadêmica. Ora, nem a prega-
ção homilética nem o ato em quese situa — a celebração
litúrgica — são aula.
A homilia pertence a um mundo de categorias muito
diferentes da aula, pertence a este mundo que hoje chama-
mos de comunicação pessoal, da relação interpessoal. Eis uma
primeira e importante distinção.
Este é o primeiro grande equívoco que existe em mui-
tos pregadores. Porque muitos sobem ao púlpito ou ao
ambão com a disposição de explicar isto ou aquilo, com o
desejo de tirar dúvidas de seus ouvintes, esclarecendo-os
sobre várias questões. E como se fossem fazer breve confe-
rência, a fim de esclarecer tal ou tal problema, talvez muito
discutido nos dias atuais. Estão fora de onda.
A homilia não se dirige primordialmente à zona in-
telectual do crente, às suas faculdades pensantes, porém ao

168
núcleo central de sua pessoa, ao tu pessoal: é diálogo pro-
fundo entre o eu de Deus e o tu do crente e da comunidade.
Isto quer dizer que o que importa é, antes de mais nada,
enviar, por meio da homilia, mensagem pessoal aos que
estão escutando-a; mensagem que atinja o que há de mais
profundo em sua intimidade e que permita suporser este o
“toque sutil da alma” de que falam nossos místicos, que
deixa temeroso e comovido o mais recôndito de nosso ser.
Forma particular de comunicação é a interpelação. Eis
aí boa expressão para designar um dos objetivos primor-
diais da homilia. Interpelar quer dizer apelar em diálogo,
em relação inter /pessoal, desafiar, colocar o outro contra a
parede, a fim de que tenha que tomar uma decisão impor-
tante, decidir-se. Quão longe estamos aqui da esmerada,
asséptica e neutra explicação!
A conversão que a pregação busca, também a homi-
lética, consiste em uma sacudida pessoal, estremecimento
dos fundamentos basilares do meu eu, reviravolta de todo
o meu ser, de minha maneira de ver a vida, de minhas me-
tas, de minhas atitudes profundas, de meu coração e de
minhas ações; portanto, não só de minhas idéias.
A homilia também nãoé exercício de exegese. É verdade
que ela segue, de modo imediato, algumasleituras da Es-
critura e deve manter estreita relação com elas, mas a homilia
não é a exposição de exegese dos textos proclamados. Aqui,
outrossim, todos nós tropeçamos muitas vezes, porque em
inúmeras ocasiões temos a impressão de que o texto é difí-
cil, obscuro... E como não explicar o seu significado? Incor-
remos, então, neste erro e transformamos a homilia em ex-
plicação.
Exegese pode e deve ser feita na homilia quando seja
necessário, isto é, quando não há possibilidade de considerá-
la suposta e se constata que os fiéis a desconhecem. Posto
que a exegese evolui com rapidez, e que a ciência bíblica
progride grandemente, este será caso frequente. O proble-

169
ma reside em como fazemos a exegese, porque podemos
fazê-la de maneira diferente de uma explicação.
Pode-se fazê-la da maneira que eu chamaria conco-
mitante ou indireta: a homilia manterá sua dinâmica cen-
tral e seu objetivo interpelante e comunicativo. No entanto,
ao mesmo tempo, poderá ter outra linha paralela, pelo me-
nos intermitente, referindo-se ao texto literal, para elucidá-
lo mediante certos dadosfilológicos, históricos e redacionais.
Todavia, não esqueçamos que a melhor exegese é a inter-
pretação hermenêutica de caráter midráxico, ou seja, atua-
lizador.

3. Nem doutrinação nem tematização

A homilia não é desenvolvimento de tema doutrinal. Seu


assunto e conteúdo não constituem doutrina nem tese, são
o anúncio e o pregão de um sucesso salvífico e atual, a con-
vocação interpelante com vistas a levar a decisão profunda
e radical no íntimo do homem: sua conversão.
Até pouco tempo atrás, pensava-se que a maneira de
tirar a homilia do seu estado de crise residia em injetar-lhe
forte dose de teologia. Também se pensa amiúde que a
homilia deve formar osfiéis; e por formar se entende enri-
quecer sua cultura religiosa ou aumentar suas idéias e seu
acervo ideológico. É isto que compete a uma aula, a uma
conferência ou a um seminário, já que tudo converge para a
mesma coisa: esclarecer conceitos. É o equivalente à fides
quarens intellectum.
A homilia, pelo contrário, se situa no plano existencial
do exercício da liberdade e do diálogo profundo em quese
tende a uma resposta comprometida de entrega pessoal,
aceitação mútua de dois “tu”, reconciliação e abertura; isto
quer dizer quese situa no nível da fé, já que a fé não é pri-

170
mordialmente a adesão a uma verdade abstrata, mas a uma
pessoa viva: Jesus de Nazaré. A homilia é o intellectus
quaerena fidem.
Certamente, há elemento doutrinal na homilia, existe
nela dimensãoteológica, e a fé também é conhecimento de
uma verdade, já que o encontro pessoal pressupõe compo-
nente cognoscitivo. A questão é que a exposição doutrinal
esteja sempre subordinada à busca deste encontro e deci-
são pessoais, que ambas as dimensões sejam como que o
osso e a medula, como o sangue e a veia. Conseguir esta
simbiose íntima, que não é a soma de algumas partes, nem
da justaposição de alguns elementos, porém, sim, da feliz
conjunção de uma alteridade; aí está a arte de quem prepa-
ra uma homilia, que não é dom de temperamentos artisti-
camente dotados, mas pneuma docrente, que vive em pro-
fundidade a dinâmica de sua própria fé.
Resta-nos dizer que, se a homilia não é exposição de
temas, muito menos o é de um único tema. Nos últimos
anos, tem-se difundido bastante o costume de fazer a mis-
sa inteira (leituras, cantos, orações...), inclusive a homilia,
girar em torno de um só tema. Tal costume parte de uma
intuição certa: é preciso que toda a celebração tenha uma
unidade e que as leituras bíblicas da eucaristia possuam
relação entre si. Mas a unidade não tem por que vir do
tema único. Penso que isto equivale a racionalizara liturgia
e a pregação litúrgica, e ceder à tentação de uma lógica
demasiado cartesiana. Pode haver unidade na homilia,
embora aluda a diversos temas. Naturalmente, algum de-
les deve predominar, e a ele estarão subordinados os ou-
tros. Certo fio deve ir alinhavando todos os elementos da
pregação e da missa. Se a isto se quer chamar tema único,
que chamem. Acho, porém, que na homilia tal coerência
deve ser de natureza muito diferente da de uma aula ou
conferência, que pode e deve ser capaz de articular-se fa-
cilmente dentro de um esquema ou sinopse. Não é este o
171
ritmo da homilia: o que a unifica é seu curso dinâmico. Os
itens a seguir nô-lo esclarecerão.

4. Linguagem simbólica e emotiva


Os elementos formais que, de modo predominante, se
manifestam na homilia não são idéias abstratas, mas símbo-
los e sentimentos. Se se trata não de explicar nem de expor
uma doutrina, porém, sim, de procurar encontro pessoal
entre o Senhor, a comunidade e cada um dos crentes, será
mister levar em conta a estrutura formal de todo encontro
pessoal. Já mostramos que esta não se realiza primordial-
mente no terreno de algumas coincidências de idéias, mas
no de uma sintonia do centro pessoal de cada interlocutor.
Para tal centro conduzem, principalmente, os sentimentos
e os símbolos.
Em todo diálogo profundo, em quese aspira não a in-
tercâmbio de idéias, mas a uma comunidade pessoal entra-
nhada, o que importa é a identificação dos sentimentos.
Quando um grupo e cada um de seus componentes são ca-
pazes de manifestar seus sentimentos profundos, estabele-
ce-se entre todos união comunitária. Se só se intercambiam
noções abstratas ou apenas se discute então facilmente, em
vez de se unirem, se distanciam; de qualquer maneira, fi-
cam todos a distância parecida à que havia entre eles quan-
do começaram a falar.
Apliquemos isto à homilia. Quem prega deve tentar
suscitar os sentimentos dos que o escutam. Já de per si a pa-
lavra de Deus possui carga emotiva importante, embora
considerada, se se preferir, do ponto de vista puramente
humanoe literário. Antes de mais nada, não devemos esca-
motear esta carga, defendendo-nos dela. Pelo contrário,
devemosdeixar-nos levar por sua fluência afetiva. Não de-

172
vemoster escrúpulos de nos sentirmos realmente emocio-
nados pelo que nos revela a palavra de Deus.
Digamos que estes sentimentos se aninham na palavra
do evangelho, são os sentimentos de Deus, do coração de
Deus, de suas entranhas paternas, que se tornam perceptí-
veis para nós mediante a humanidade de Cristo. De tais
sentimentos devemos ser testemunhas ou transmissores
para aqueles a quem pregamos. Então suscitarão os senti-
mentos de quem escuta, e, assim, se verificará esta identi-
ficação pessoal entre o Senhor quefala e o crente que res-
ponde, constitutiva de todo diálogo e de toda comunidade
na fé.
Hoje estamos longe do perigo do sentimentalismo teo-
lógico ou modernista, e é fácil evitá-lo. A identificação de
sentimentos inclui a decisão pessoal profunda da fé, do co-
nhecimento etc. Entretanto, assim como o sentimento 1n-
clui a vontade e a razão no encontro pessoal pleno, igual-
mente a razão e a vontade incluem o sentimento, pois o
homem é uma unidade.
Na linguagem homilética, juntamente com os sentimen-
tos estão os símbolos, com estreita relação entre ambos. Efe-
tivamente, hoje sabemos, graças à psicologia do profundo,
que os símbolos não são simples produtos de nossa imagi-
nação, nem recursos fáceis para colorir ou amenizar o
cunho abstrato de um discurso; são a condensação, em ima-
gem, das pulsões mais profundas de nosso ser, de nossos
desejos. Estão, pois, na mesma onda dos sentimentos. Não
concernem somente à nossa faculdade cognoscitiva sensí-
vel, porém o que há de mais profundo de nossa vontade,
ou melhor, este centro último de nossa pessoa, em que to-
das as nossas dimensões se reúnem e onde surgem os im-
pulsos para a ação, a decisão e a realização pessoal.
Concretamente, isto quer dizer que, quando entramos
em contato, digamos melhor, em comunhão com um sím-
bolo, se desencadeia abalo profundo em nossa psique: há

173
uma comoção profunda, quiçá no subconsciente. Assim se
põem em movimento as profundezas mais profundas de
nossa personalidade. Se soubermos encaminhar tal movi-
mento em sentido cristão, graças à Palavra, teremos mobili-
zado, para este encontro pessoal com Cristo que consiste na
fé e na conversão, as zonas mais recônditas de nosso eu,até
mesmo as que costumam subtrair-se ao nosso domínio di-
reto e que, somente pela via indireta do símbolo e do mito,
nos obedecem.
É de capital importância, por conseguinte, cuidar da
linguagem que se usa na homilia e dos elementos com que
se constrói. Se nossa linguagem for abstrata e funcional, te-
remos eliminado todas estas possibilidades a que nos
estamosreferindo. Se, porém,se tratar de linguagem mais
gratuita, que sabe deter-se em certas imagens simbólicas,
quer tomadas do elenco que a Bíblia ou a liturgia contêm,
quer de outras fontes literárias, teremos conseguido criar
uma atmosfera singular entre nós e nossos ouvintes, entre a
comunidade e o Senhor, atmosfera única e propícia para o
diálogo profundo.
De qualquer maneira, e descendo ao concreto, diga-
mos que não convém acumular os símbolos nem as metáfo-
ras. O efeito pode ser contraproducente. Se tomarmos dois
símbolos muito seguidos, o segundo pode destruir o efeito
do primeiro. Por isso, não se deve ter muita pressa de pas-
sar de um para outro. Convém deter-se com calma no que
parece melhor, até extrair toda a sua força expressiva e
evocadora. Assim a comunidade se impregna e se embebe
da profundidade da sua mensagem.
É preciso ter cuidado com o emprego de imagenstira-
das do mundo técnico. Convém usá-las com a maior pre-
caução possível, entre outras razões, por provirem do cam-
po das relações instrumentais, em alto grau deformante e
deformado (o mundo da produção, da alienação trabalhis-
ta, das relações desumanizadas sujeito-objeto etc.). Em

174
contrapartida, a realidade que elas pretendem esclarecer não
pertence a tal ambiente, mas, sim, ao das relações de comu-
nicação de sujeito para sujeito, de pessoa para pessoa. Ao
invés disto, devemos confiar na força das imagens e símbo-
los arquétipos, os provenientes da natureza.
São os símbolos cósmicos que povoam todas as pará-
bolas de Jesus (a luz, a semente, a terra fecunda com seus
frutos, a erva, a espiga, o trigo,a farinha, o fermento, o pão,
a árvore, a figueira, a vinha, a pesca, o peixe, a ovelha, o
rebanho...), e os outros simbolos cósmicos que aparecem no
AT! ou que constituem as grandes hierofanias, tão admira-
velmente descritas por M. Eliade”, como rio, a fonte, o
mar, a montanha, a hera, o bosque, o fogo, o céu, a nuvem,
a aurora, o crepúsculo, o caminho, o deserto...
O fato de todos estes símbolos provirem do mundo
pré-industrial nada diz contra eles. Pelo contrário, hoje,
graças ao movimento ecologista, adquirem nova atuali-
dade. O importante é que quem prega os tenha descoberto
realmente para si. Então, poderá mostrá-los aos outros como
tesouro antigo porém precioso, capaz de perfurar e reme-
xer a nossa consciência, tão empobrecida ou esclerosada hoje
por este mundo seriado e abstrato da técnica, da indústria,
da informática. Nossa consciência conseguirá, assim, pres-
sentir “o que nem os olhos viram nem o ouvido ouviu, mas
que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9).
Assim, graças à linguagem simbólica, a homilia pro-
vocará este impacto emocional a que nos referimos no prin-
cípio. A antiga retórica já chamava a atenção para o fato de
que quem fala suscitando sentimentos, chegando ao cora-
ção do ouvinte, produz efeito de mudança segura.

!Cf. SI 19; 28; 104; 136 e 148.


2M. Eliade, Tratado de Historia de las religiones, Cristiandad, Madri, 1981; Historia
de las creencias y de las ideas religiosas II, Hl e IV, Cristiandad, Madri, 1978-1984.
3 Cf. R. Zerfass, Grundkurs Predigt 1, Diisseldorf, 1987, 157-169.

175
Em síntese: no capítulo 3 falamos da importância de
ser a homilia testemunho de experiências; neste capítulo
falamos de que ela deve expressar sentimentos. Na verda-
de, são duas realidades muito unidasentre si. O experiencial,
o vivencial e o afetivo formam uma unidade. A homilia deve
manifestar, com sua linguagem, esta dimensãodefé. Ora, o
sacerdote hoje tem especial dificuldade neste campo. Estu-
dou uma teologia que, por estar muito separada da
espiritualidade, se fechou em um mundode conceitos. Hoje,
passa-se a pedir de novo que a teologia, como em outras
épocas, se una à espiritualidade e se impregne dela*. Sem
esta fusão, a teologia continuará incorrendo no defeito que
com toda razão E. Drewermann reprova, quando escreve:

“A teologia, em vez de transmitir experiências, ensina


conceitos (...). Substitui os sentimentos originários da
vivência religiosa mediante teorias intelectuais sobre
as supostas consequências de tais vivências. E, assim,
reduzindo tudo a argumentos de tipo racional, não abre
caminho à origem fontal da religião, porém, pelo con-
trário, até a bloqueia”.

Chega, por isso, à seguinte conclusão: para o teólogo


fica muito difícil reconhecer que talvez haja passado mui-
tos anos de sua vida falando de coisas que nunca sentiu,
nem experimentou, nem viveu, porém que explicou e de-
monstrou a outros”.
Se este foi o destino de boa parte da teologia contem-
porânea, o da homilética teve que sofrer as consequências
de tal fato, já que depende em ampla medida da teologia,
estando o pregador muito condicionado por seus estudos
teológicos. O caminho para superar estas deficiências é o

* G. Gutierrez, Beber eni su propio pozo, Sígueme, Salamanca, 1986.


* E. Drewermann,Tiefenpsychologie und ExegesII, Olten, 1985, 16.
é Tb. 17-18.

176
da teologia bíblica, que volta a superar a linguagem bíblica
enquanto linguagem concreta, experiencial e simbólica.
Podemos concluir este item com uma sentença final que
resume, de modo conciso, tudo o que foi dito nele: o tom, o
estilo e a linguagem da homilia não devem ser tão didático
ou explicativo quanto evocador e sugestivo.

5. Aarte de narrar

Subgêneroliterário dentro do gênero homilético é o do


relato. Por isso convém que dediquemos atenção e item es-
peciais a este tema.
Fala-se hoje cada vez mais da narratividade, e, quanto
mais se fala, tanto mais escasseia, como sucede com tantos
outros problemas. Agora desejamos mostrar pistas concre-
tas de como pode ela ser ingrediente real dentro do contex-
to homilético.
Partimos de algo que já sabemos: a homilia possui ca-
ráter não tanto argumentativo quanto narrativo, porque
deve ser memória atualizadora da história de Deus. E o re-
lato não tem como meta a aceitação convicta de alguns ar-
gumentos, porém, antes, a identificação com os sujeitos que
agem, bem como a participação em seus destinos, vidas,
sofrimentos, esperanças e angústias. Não quer convencer
argumentativamente, mas fazer sentir com, alegrar-se com,
esperar com.
Também situa o ouvinte diante de determinadas op-
ções ou decisões, pois pertence à essência do relato colocar
o ouvinte de frente para situações abertas, em face das quais
ele deve tomar partido e decidir-se. Ele não pode ficar de
fora, posto que é atingido quando este processo de identifi-
cação e de participação se põe em marcha. Deste modo, a
narração procura uma decisão que aja de modo mais ime-

177
diato, de maneira a estimular uma ação mais rápida do que
a da convicção obtida pela argumentação.
É isto que caracteriza o relato e, portanto, a homilia,
quando segue o gênero narrativo e se converte em narrati-
va; e estes são os valores concretos que a homilia pode con-
seguir quando adota este gêneroliterário”.
Quando os homens chegam a um limite, a uma fron-
teira, e tropeçam com uma enfermidade, um acidente, um
caso de morte... começam a narrar. Tentam, por meio do
relato, desentranhar algum sentido. Procuram,ao narrarem
sucessos, transformá-los em experiências com sentido e,
deste modo, abrir algum futuro. Tanto para o narrador quan-
to para o receptor do narrado, abrem-se novas possibilida-
des de vida com esperança.
Também a Bíblia, em situações sem saída, conta a his-
tória de Javé, que conduziu o povo pelo deserto, o livrou da
morte e lhe deu uma pátria. Histórias de salvação e cura
são textos importantes da pregação bíblica. Quando a Es-
critura fala de Deus, conta que agiu no Egito, no mar Ver-
melho, no deserto, que Jesus curou leprosos... Fazem-se,
deste modo, os relatos que o ouvinte possa identificar-se
com as pessoas que neles intervêm. Pode repeti-los, atualizá-
los, colocando-se na situação do narrado e agindo da mes-
ma maneira. À narração interpela, questiona, estimula o
ouvinte, porém não o coage: convida-o para experiências
melhores, movimenta sua imaginação.
No entanto, perguntemo-nos concretamente como se
deve fazer um relato. Uma primeira resposta podemos achar
em M. Buber, quando escreve sobre a maneira como se de-
vem contar as histórias: “Uma vez se pediu a um rabi, cujo
avô havia sido discípulo de Baalschem, que contasse uma
história. Então ele disse: Uma história deve ser contada de

7 K. H. Bieritz, “Predigt und rhetorische Communikation”, em K. H. Bieritz-


Ch. Bunners, Handbuch der Predigt, Berlim, 1990, 65-98.

178
tal modo que se transforme em ajuda”. E contou o seguinte:
Meu avô estava paralítico. Certa vez, pediram-lhe que con-
tasse uma história de seu mestre. Então ele contou como o
santo Baaischem, quando orava, costumava saltar e dançar.
Meu avô se comoveu tanto ao relatar isto, que teve que
mostrá-lo saltando e dançando como fazia seu mestre. Des-
de este momento ficou curado”. Assim se devem contar his-
tórias”*.
De maneira mais concreta, podem-se dar as seguintes
sugestões:
D O bom narrador vive dentro de sua história: encon-
tra-se nela como em sua casa, fê-la própria.
2) Isto não significa que possa violentá-la: o narrador
deve saber prestar contas de seu relato, ser fiel a ele.
3) Há de contá-la de maneira plástica, gráfica, de modo
que entre pelos sentidos e, assim, os ouvintes façam
para si imagem dela.
4) Quem assimilou uma história, contá-la-á sem lê-la.
5) O narradorse situará dentro da perspectiva de uma
das pessoas que aparecem na história; assim, conse-
guirá simultaneamente concentração e orientação para
a meta da mensagem.
6) Objetos, nomes, lugares que necessitam de explica-
ção devem sempre ser introduzidos por uma dos per-
sonagensdo relato.
7) Um bom relato já traz em si uma interpelação;
sobram, portanto, os acréscimos moralizantes.
8) Não se pode pressupor, pura e simplesmente, que
uma comunidade não seja narrativa por causa da
descontinuidade nas experiências, por isso, geralmen-
te o relato está ligado ao comentário.

8 Cf. A. Schwarz, o.c., 80. Cf. M. Buber, Cuentos jasidicos 1 y IH, Paidós, Madni,
1983.

179
9) Se se introduzem relatos na pregação, não devem
tornar-se autônomos e absorver a mensagem a que têm
obrigação de servir; seu conteúdo deve estar situado
na mesma direção que a meta da pregação.
10) Há histórias que parecem herméticas: devem ser
contadas de modo que as pessoas simples as entendam.
11) Quem faz o relato deve usar o tempo necessário
para narrar.
12) A gramática da narração, em vez do pronome re-
lativo, usará “e”, “então”, empregará mais verbos do
que substantivos, poucos adjetivos, e utilizará o estilo
direto.

Pode-se saber quando a narração se saiu bem: quando


o narrador sente a alegria de haver podido contar esta his-
tória aos seus ouvintes”.

9 A. Schwarz, 0.c, 81.

180
Capítulo 5

PREPARAÇÃO

1. As etapas da preparação
É conselho baseado na experiência aquele que recomen-
da fazer coincidir o começo da preparação da homilia com
o começo da semana. A partir da segunda-feira devem ini-
ciar-se os preparativos remotos da homilia do domingo. Há
razões objetivas para isto, como iremos ver neste item; en-
tre outras, esta elementar: é mister contar com uma prepa-
ração mais remota e outra mais próxima, conforme a antiga
distinção escolástica!.
Não se pode ficar sob pressão do tempo, com pressa e
com estresse de produtor. Quanto antes se comece, tanto
menos tempo se necessitará, no sentido de que estarão asse-
guradas as boas ocorrências no seu devido momento. Na rea-
lidade, trata-se de processo criativo que possui seu ritmo pró-
prio, ritmo que não se pode forçar: é processo de associação
de idéias e de imagens que partem sobretudo do que o texto
evangélico sugere; não é tanto um processo lógico quanto
um processo do inconsciente e da imaginação. É preciso “ti-
rar do próprio poço”e fazer silêncio em si mesmo,deixar as
tensões e as urgências. Requer-se atitude de paz e de
interiorização, pois, somente assim, surgem as boas intuições.

iM. Josuttis, Rhetorik und Theologie, Mogúncia, 1985, 70-86; R. Zerfass, Grundkurs
Predigt 1, Disseldorf, 1987, 62-67; J. Rothermundt, Der Heilige Geist und Rhetorik,
Giitersloh, 1974, 133-145.

181
Para tudo isto cada um tem suas horas, umas melhores
do que outras, quer durante o dia, quer no decorrer da noi-
te: é preciso conhecê-las e aproveitá-las; então, também se
poderão incorporar e assimilar de modo pessoal as contri-
buições que o grupo de preparação — se existe — tenha
dado; um grupo que se expressa livremente, sem censuras,
ainda que a custo de algumas agressividades, por vezes ine-
vitáveis.
Como nos ensina a psicologia, o processo de criativi-
dade tem ritmo próprio que se compõe de diversas fases;
podemosdistinguir cinco.

1.1. Fase de preparação


É a fase de busca de material em torno dostextos bíbli-
cos, sua exegese, o problema ou os problemas suscitados a
partir daí, o fato ou os fatos da vida... Trata-se de atualizar a
palavra de Deus mediante as realidades viventes, situações
e testemunhos que mostrem seu hoje. É preciso combinar
boa exegese com outras leituras, documentose recordações
pessoais.
Nesta primeira fase é necessário estar muito aberto e
não censurar nada. O que no princípio talvez possa parecer
sem interesse, depois pode demonstrar ter importância.
Pouco a pouco o processo avança. Alguns problemas,
situações e fatos adquirem realce ou força; outros são des-
cartados por não estarem em conformidade com o texto.
No princípio faz-se necessário explorar diversos ca-
minhos: alguns se vê logo que não levam a lugar nenhum;
revelam-se de início como becos sem saída: é mister aban-
doná-los.
Assim se chega à segunda fase.

182
1.2. Fase de incubação
Realiza-se principalmente no inconsciente. Consiste em
uma reelaboração dos problemas e busca de soluções, po-
rém no nível inconsciente.
O pregador, que no começo da semana reuniu infor-
mações e dados, e sopesou idéias, problemas, fatos, traz
consigo tudo isto ao longo dos dias seguintes... mas de
modo inconsciente, isto é, sem dedicar-lhe tempo, nem aten-
ção explícita. Vai desempenhando as suas outras ocupações,
mas continua trabalhando em nível profundo na tarefa de
esboçar a homilia, ainda que não o faça de modo refletido.
Este período é para a pessoa um tempodifícil e até frus-
trante, amiúde acompanhado de sentimentos de inferiori-
dade. Está cheio de bloqueios: por isso, é chamadofase de
frustração. Os que não têm consciência desta fase ficam des-
concertados. Acham que estão perdidos e desanimam
ou se deixam tomar pelos complexos.
Os estudos atuais sobre a criatividade podem ajudar
muito a descobrir que esta fase não só é necessária, mas
fecunda. Nela o processo preparatório não está perturbado
nem interrompido, mas está passando por processo impres-
cindível; só quando se aguenta a dificuldade surge algo re-
almente novo, criativo. Sem bloqueio não há ruptura nem
saída do túnel para descobrir a luz de algo que nãoseja a
repetição do já dito outras vezes.
Durante este período é que parece que se busca pretex-
to para deixar a preparação, por exemplo, lendo outro livro
ou dizendo a si mesmo que precisa fazer uma visita
inadiável ou consertar algo quebrado. Faz-se tudo isto com
a consciência pesada, pensando que a obrigação era conti-
nuar sentado à mesa para acabar a homilia. Não obstante, o
inverso é o correto, não se deve sentir a consciência pesada
por causa destas interrupções necessárias, fecundas e im-
prescindíveis no processocriativo, na incubação. É a pausa

183
criadora, a consulta sobre almofadas, o deixar a coisa des-
cansar durante uma ou mais noites.
Naturalmente, tudo isto se pode fazer com a consciên-
cia tranquila, somente quem tenha começado a preparar a
homilia em tempo. Se não a precedeu a fase anterior, não há
incubação possível, pois faltam os elementos imprescindí-
veis que entram em jogo na gestação criadora.

1.3. Fase da intuição ou da iluminação


E esta uma fase rápida, ou melhor, de culminação e
L

saída da fase anterior. É o momento do “eureka”. Sua che-


gada não depende da nossa vontade.
Agora, o material da fase de incubação aparece de re-
pente transformado em conhecimento claro, com sentido.
Surge, como golpe de inspiração, a intuição, a ocorrência. Fun-
damenta-se neste material previamente reunido, que pro-
vém de dois campos: a tradição bíblica e a situação atual.
Agora ambas as esferas se pôjem em comunicação: evi-
denciam-se a importância e a relação do texto a respeito da
atualidade, assim como da atualidade a respeito do texto.

1.4. Fase de verificação


É aquela em que se submete a prova a intuição e em
que ela é delineada de modoa sintonizar com o conjunto.
Nesta fase, é preciso ver se esta novidade que descobri-
mos é idônea de verdade com relação aos materiais previa-
mente reunidos. Existe aí linha de solução e resposta ou se tra-
ta apenas de ocorrência mais ou menos vistosa ou superfi-
cial? Corresponde ao evangelhoe à situação da comunidade
de modo a permitir aos ouvintes que progridam em sua fé?
Com estas perguntas estamos fazendo amplo controle
tanto no exegético quanto no teológico e sociológico. Tal
controle supõe senso de autocrítica.

184
Se o resultado for negativo, será preciso voltar à fase an-
terior. Se for positivo o que faltar já fará parte da tarefa da
forma: converter em linguagem tudo o que se preparou, tra-
duzir a intuição subjetiva em formas simbólicas objetivas.

1.5. Fase de redação


Deve-se escrever a homilia? Acho que sim. Depois de
toda a reflexão que fizemos, parece claro que a homilia sur-
ge comorealidade complexa; para ela conflui uma série de
questões, aspectos e problemas. É uma dasatividades cen-
trais da pastoral e, se não for escrita, é evidente que tudo o
que se preparou antes ficará esquecido e se passarão por
alto muitos dos elementos da preparação.
Os problemas teológicos, hermenêuticos e sociais que
a homilia implica, assim como todo o assunto da lingua-
gem, não podem ser deixados à inspiração, ou melhor, à
improvisação do momento. Tampouco se trata de memori-
zar. É questão de ter a arte de saber ler comose não se lesse,
isto é, olhando para a assembléia, modulando a voz... É pre-
ciso ler devagar, superando o tom uniforme, monocorde,
os meios-sons, Os gaguejos..., e, para tanto, deve ter sido
ensaiada algumas vezes.
Talvez uma solução intermediária consista em escre-
ver alguns trechos e deixar outra para uma exposição fala-
da mais livre. Em todo caso, parece necessário um esquema
detalhado das partes ou trechos principais.

2. Meditação e oração

Aspecto e, se se quiser, fase particular da preparação


da homilia é a meditação do texto bíblico sobre o quese vai
pregar.

185
Certamente, se trata de meditação especial. Em primei-
ro lugar, ela consiste em submergir-se silencioso no que este
texto mediz, esperando que sua mensagem se torne trans-
parente para mim; que sua palavra me penetre e me im-
pregne. Este silêncio é, na realidade, oração, pois brota de
atitude de acolhimento, de espera confiante e de despo-
jamento do eu. É tentar reviver o que diz o livro da Sabe-
doria:

“Quando um silêncio profundo envolvia todas as coi-


sas e a noite mediava o seu rápido percurso, tua Pala-
vra onipotente lançou-se, guerreiro inexorável, do tro-
no real dos céus para o meio de uma terra de extermí-
nio” (Sb 18,14-15).

O silêncio é a pátria da Palavra, seu solo nutrício, sua


fonte fecunda,o seio que a faz vir à luz. Assim, percebemos
como e para onde brota.
Há um perigo: orar e meditar utilitariamente; então se
perde a gratuidade e se busca de maneira interesseira O
modo como resolver os problemas concretos suscitados pela
homilia. É preciso superar este perigo e deixar que a medi-
tação siga seu próprio curso, com vistas a descobrir o que o
texto diz a mim, de modo muito existencial: como me inter-
pela e questiona, como me diz respeito e me comove; como
me fortalece,liberta ou ilumina; como descobre feridas que
me doem. Devemos demorar-nos desinteressadamente em
buscar o tesouro escondido, a pérola oculta.
Necessita-se de atitude de humildade, de respeito e de
amor em face da Palavra, de disponibilidade para a conver-
são: “Fala, Senhor, que teu servo te escuta” (1Sm 3,9).
Também é necessária uma atitude eclesial e comunitá-
ria: sentir-se em união com a comunidade de irmãose ir-
mãs onde ecoará a Palavra; esforçar-se por obter escuta e
busca no âmbito desta fraternidade.

186
Viver-se-ão os frutos e a comunidade do Espírito*. No
fim se poderá dizer como os discípulos de Emaús: “Não
ardia o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho
e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24-32).
O primeiro que deve abrir-se e expor-se à força da Pa-
lavra é quem vai pregar. Deve deixar que nele a Palavra aja.
Nunca sabemos por antecipação o que a Palavra de Deus
fará conosco, também quando conhecemos bem o texto há
muito tempo.
A Palavra é alimento que deve ser saboreado (Jr 15,16),
semente no coração que vai crescendo (Mc 4,8), fogo que
consome o que Deus não quer que subsista (Jr 23,29).
Alguns aconselham a empregar aqui o método inaciano
de oração: aplicar os sentidos ao episódio evangélico (ver,
ouvir, tocar, cheirar), representar diante de si a cena, identi-
ficar-se com as personagens... Isto ajuda, de modo decisivo,
para que o texto se abra a mim e eu me abra para o texto.
Depois tentaremos descobrir o centro do relato, para repou-
sar nele e perceber sua beleza, sua força..., às vezes sua difi-
culdade. Então, deveremos saber aguentar sem fugir dele.
Assim se nos manifestará a mensagem do texto como algo
vivo, pessoal, questionante e sempre como boa nova que
nos conduz ao louvor”.

3. O começo da homilia

O começo é sempre momento delicado, porque dele


depende em grande parte tudo o que virá depois.
Conviria que, antes de iniciar a homilia, houvesse pas-
sado certo tempo. Assim, a comunidade já poderá ter reali-
zado esta ruptura de nível que a celebração requer; isto é,

2 Cf. Gl 5,22; 2Cor 13,13.


3 W. Trillhaas, Einfiirung in die Predigtlhere, [s/e], Darmstadt, 1989,88.

187
terá conseguido superar as distrações, o continuar pensan-
do nas preocupações imediatas que se trazem da rua. Para
isto é importante que se façam devagar as três leituras e,
principalmente, que os cantos tenham sido longos, espaça-
dos e prolongados. Refiro-me ao canto de entrada, aos kyries,
ao glória e, sobretudo, ao salmo responsorial, como tam-
bém ao aleluia.
As primeiras frases da homilia devem ser breves, de
maneira a captar a atenção e estimular a continuar escutan-
do. Devem despertar certa curiosidade e interesse. Evitem-
se, pois, as fórmulas que falam de repetição, tais como “uma
vez mais”, “hoje, de novo”, “voltemos a”, “o evangelho in-
siste outra vez”... Com estas fórmulas se destrói o encanto
que tem que ter todo começo, este ar matinal e virgem dos
inícios reais.
Certamente não é fácil atinar com esta novidade. Por
isso, o pregador deve preparar-se com cuidado; do contrá-
rio, cairemos no tópico, e o tópico é repetição e a repetição
neste momento é fatal. Consegue que,já desde o princípio,
o ouvinte se desligue, deixando de prestar atenção à homilia.
Convém começarreferindo-se ao texto proclamado? É
uma possibilidade. Pode-se aludir a seu aspecto teológico,
literário, estético, sociológico, à sua situação histórica... É mis-
ter, porém, aí ter cuidado, porque é fácil começarcriando dis-
tância entre o texto e a comunidade, levando os fiéis a um
passado distante, pretérito, da história antiga, quando o que
na realidade lhes interessa é o presente, a atualidade.
Pode-se começar com uma referência ao texto procla-
mado, mas unindo-a ao presente da comunidade. Por exem-
plo, depois de ler Jo 20,11, pode-se dizer: “O evangelho que
escutaram começa descrevendo uma situação de amargu-
ra, que todos nós conhecemos por experiência própria:
Maria Madalena chora junto ao sepulcro de Jesus”.
Outro critério quase de sentido comum que convém
lembrar, porém contra o qual amiúde se peca, é o de que

188
nunca se deve começar em tom de desmancha-prazeres,
criticando, censurando. Há perigo disto em certas festas,
como, por exemplo, o Natal. O perigo está em começar com-
batendo o consumismo e o desperdício. Outras vezes, ini-
cia-se criticando o número pequeno de pessoas que partici-
pam da celebração ou a falta de sensibilidade em face de
algumas festas. É justamente o começo menos apropriado
para o anúncio da boa nova que se fará em seguida, porque
cria um clima oposto a ela.
É também errado começar apresentando um tema, já
que deste modo se tematiza e escolariza a homilia.
Não menos errado é dar os primeiros passos expon-
do generalidades (problemas e situações comuns). O ge-
ral e vago é enfadonho. Pelo menos não gera interesse al-
gum, nem curiosidade pelo novo, que é o que deve acon-
tecer no princípio da homilia. Além do mais, pode levar a
cair em tópicos ou lugares comuns, outra terrível praga
em que muitos incorrem (falar da vida, da dor, da huma-
nidade...)
Sim, o que se pode fazer é aludir ao texto e à sua rela-
ção com a comunidade; isto, porém, para sugerir “estranhe-
za”: por exemplo, no dia de pentecostes, depois de ler At
2,1-11 e as outras perícopes, pode-se dizer no princípio da
homilia: “Por muito conhecido que seja para nós este texto,
esta história de pentecostes, a maioria de nós, na realidade,
dela entendemos bem pouco, se somossinceros, e fica para
nós difícil ter acesso a ela”.
Apresentamos a seguir uma lista de modos de come-
çar a homilia, seguindo oscritérios da antiga retórica, mas
atualizando-os*:
1) Partir de uma palavra ou frase do texto lido ou de
imagem contida na perícope (é o começo in actu). Não

4R. Zerfass, 0.c, 130-142.

189
se trata de modo destituído de imaginação. Se o leitor
proclamou bem o texto (coisa que acontece, na maioria
das vezes, em ocasiões contadas a dedo) e se o texto
contém imagem ou símbolo significativos, então o ou-
vinte já está captando algo pela leitura e seu conteúdo;
portanto, pode-se começar por algum de seus elemen-
tos principais, qualquer deles.
2) Partir de problema relativamente concreto (começo
e problemate). Aqui é mister proceder com cuidado. Pode
acontecer que os fiéis já venham fartos de problemase
não queiram que lhes sejam apresentados, logo de iní-
cio, outros novos. À arte está em iniciar a homilia com
problema que realmente diz respeito aos membros da
comunidade, que seja seu (não só do celebrante). Ou-
tra questão delicada é esta: alguns propõem com mais
vigor e arte o problema do que a solução; será necessá-
rio, portanto, equilíbrio.
3) Partir de determinadas circunstâncias atuais, circuns-
tâncias particulares que ocorreram realmente (começo
a circunstantiis). Já que a homilia deve interpretar a exis-
tência, a ela compete, de maneira muito intrínseca, o
tornar consciente a situação presente, a atualidade. Um
começo nesta linha se faz obrigatório quando a situa-
ção das pessoas ficou marcada por algum fato especial
(uma desgraça, uma catástrofe, uma comemoração...
um lugar diferente do habitual).
4) Partir de um paradoxo (começo a contrario). Inicia-se
a pregação propondo um ponto de vista contrário ao
evangelho. Trabalha-se aqui com o que na teoria da
comunicação se denomina “dissonância cognoscitiva”:
cria-se uma tensão no ouvinte para procurarir resol-
vendo-a passo a passo.
5) Partir de uma realidade ou idéia particulares, mas
que têm o caráter de exemplares e arquetípicas; daí se
chega a algo mais universal (começo a specie).

190
6) Partir de uma experiência ou relato (começo ab
illustratione): pode haver o perigo de que este início
suscite maior interesse do que tudo o que virá depois;
por isso, será melhor colocar certos relatos em outro
momento.

Em resumo,a arte de saber começar bem consiste em


criar tensão e suspense desde o princípio. Assim, surgem a
expectativa, a curiosidade, o desejo de receber a Palavra co-
mentada. Produz-se uma fagulha inicial que facilita a pene-
tração do íntimo da homilia com ilusão e abertura.

4. Como terminar?

Existe a metáfora, ligada às touradas espanholas, de


“arrematar o trabalho”. É também arte acabar bem a homilia.
Como toda arte, possui algo de inspiração. Não se pode,
pois, analisar este momento com critérios meramente ra-
cionais, mas podem ser dadas algumas pistas orientadoras.
Certamente, supõe-se que o fim não seja uma aterris-
sagem forçada. Acontece isto quando quem fala se vê obri-
gado a terminar, porque percebe sinais claros de que a co-
munidade está cansada, aborrecida ou nervosa. À lingua-
gem e o feedback da assembléia podem chegar a ser muito
expressivos e claros nestes casos: ruídos,tosse, pigarros, mo-
vimentos e mudanças de posição corporal.
Outro final forçado é o que provém do fato de o prega-
dor se achar perdido, sem saber como continuar. Meteu-se
em problema difícil e se vê enrascado. A solução mais ime-
diata, no caso, é cortar o assunto e concluir.
Há pessoas que não sabem terminar, talvez se vejam
atingidas por certa angústia psicológica, e, então, começam
a divagar, repetir idéias e prolongar este momento tão deli-

191
cado do final. É umadas piores soluções, porque pode des-
truir tudo o que foi conseguido anteriormente. Costuma
acontecer isto quando não se preparou bem (nem o final,
nem todo o resto): o pregador começa a planar e a planar
(isto é, a repetir e repetir) sem nunca aterrissar.
O final, como todo remate de um trabalho, deve ser
breve, rápido e arejado. Não é improvisável, porém deve
ter sido previsto e preparado.
Outra atitude prévia requerida para um final feliz é a
de não querer dizer tudo, de conseguir vencer as fantasias
de onipotência, de saber deixar matérias para outra ocasião,
para outra homilia, sem pretender esgotar o tema. O ano
litúrgico é longo e, além do mais, se repete todos os anos.
Ultrapassar os oito ou dez minutos de duração é cruzar uma
fronteira de fogo, que pode deixar eletrocutado o processo
de comunicação e, sobretudo, desequilibrar o conjunto da
celebração, com seu equilíbrio harmonioso de elementose
partes. Monologar não deve ocupar espaço extenso, por-
que assim a festa se transforma em aula, catequese ou ato
acadêmico e escolar, com o que a festa ou celebração ficam
feridas de morte.
O contexto festivo e a natureza litúrgica e celebrativa
da homilia devem influir no seu final e levar em conta, de
algum modo, a oração que vem imediatamente depois, a
profissão de fé, o rito eucarístico... A homilia possui algo
de transição.
O final não é elemento extrínseco, uma última parte,
como que epílogo juntado de acordo com tudo o quefoi di-
to anteriormente: é e deve ser algo interno, amadurecimen-
to, o fruto maduro de todo este processo que é o discurso ho-
milético. Final quer dizer que a comunidade se encontrou a si
mesma e se situou diante da Presença, “contemplando a glória
de Deus na face de Cristo” (2Cor 4,6).
A antiga retórica recomendava intensificação emocio-
nal para o fim, uma síntese breve. Isto se pode conseguir

192
com citações de poemas, cantos, textos líricos, apelos aos
sentimentos da comunidade, das personagens aparecidas
nas perícopes...
Outros preferem referência diretamente cristológica: Cris-
to é o centro da fé; pode ser, portanto,o fecho final da homilia.
Alguns se inclinam a concluir com uma exortação mo-
ral, uma parenese. Nisto pode haver certo perigo, certa força
compulsiva e obsessiva que impedirá de saber acabar sem
exigir algo. Certamente, este é aspecto fundamental da Pala-
vra, como chamado à conversão, porém, justamente pelo
realce dado a esta dimensão, não se deve deixá-la para o fim,
mas situá-la em momento muito mais central do conjunto.
Por outro lado, não se pode esquecer a maioridade da
comunidade, composta de adultos. Dentro da exigência há
que deixar margem para a liberdade e a responsabilidade
de cada um. Isto quer dizer que o fim não deve ser entendi-
do como o momento de atribuir tarefas concretas, com-
promissos particulares a uns e a outros; isto seria infantilizar
todos: o pregador faz então o papel de superego autoritário.
Além do mais, quando a homilia já preparou bem o
terreno mediante trabalho prévio de conhecimento, o com-
promisso brota como que espontaneamente, como o fruto
maduro da convicção adquirida diante da vivência do
querigma.
Jesus, depois de todo o relato da parábola do bom sama-
ritano, estimulante de atitude de conversão, diz sóbria e sim-
plesmente: “Vai e faze o mesmo” (Lc 10,37). Os evangelhos
terminam não com o sermão sobre o juízo final, mas com o
anúncio da ressurreição. O que deve ficar ecoando no fim
de tudo não são nem a exigência nem a ira divina, porém o
sim de Deus manifestado em Jesus Cristo (1Cor 1,19), não a
maldição, mas a bênção”.

*R. Zerfass, 0.c., 140; M. Josuttis, o.c., 201-209.

193
5. Pensando na revisão posterior
Muitas das orientações que vimos expondo podem
parecer razoáveis e oportunas. Quem prega pode pensar
que está de acordoe que as cumpre, porém, na prática, pode
não ser assim. Há defeitos de que alguém não tem cons-
ciência, por mais que na teoria os veja claramente comotais.
Por isso, é necessário que alguém de fora avise e ajude o
pregador a tomar consciência deles.
Por exemplo, a tendência a repetir certas idéias ou a
insistir sobre certos aspectos dos problemas. Isto, que não é
necessariamente defeituoso, tem seus limites, que, supera-
dos, hipotecam ou prejudicam seriamente o pregador habi-
tual de homilias em uma comunidade,e o interessado pode
não se dar conta disto. Uma equipe de revisão é o melhor
ambito para solucionar tais problemas. A mesma equipe que
prepara pode ser também a equipe encarregada de uma re-
visão periódica.
No entanto, antes de vermosa tarefa da equipe, pode-
mos apresentar algumas perguntas que o próprio ministro
da homilia pode fazer a si mesmo de vez em quando, no
fim de certo período de tempo, para auto-avaliar sua ativi-
dade querigmática e litúrgicaº.
Um questionamento de caráter global pode ser este:
Que significa crescer na arte de pregar? Comoé que eu cresço
nela? De modo genérico, podemos sugerir uma resposta na
seguinte direção: significa ir tornando-se consciente das
próprias possibilidades e, ao mesmo tempo, ir sendo cada
vez mais capaz de empregá-las mais a fundo.
Então, o que me posso perguntar é se estas minhas
possibilidades, como servidor da palavra pregada (por
exemplo, meu repertório de linguagem, minha capacidade

6Cf. R. Zerfass, 0.c., 170-183.

194
expressiva, minha arte para contar histórias, meus conheci-
mentos teológicos e bíblicos, minha habilidade para reunir
material e documentos, minha espiritualidade...) se estão
fortalecendo cada vez mais.
A potencialização cu ampliação vão ocorrendo me-
diante a própria práxis homilética, se a vivermos com sen-
tido crítico, analítico, de revisão. A experiência de cada do-
mingo é a melhor escola. Algumas vezes a homilia ficará
surpreendentemente fácil, outras vezes extraordinariamente
difícil; haverá ocasiões em que terminará com saldo positi-
vo, parecendo mera casualidade, e outras em que teremos a
impressão de que foi um fracasso (talvez por bloqueio no
processo preparatório). Ora, umas e outras experiências têm
sua explicação e suas causas. Todas bem analisadas nos aju-
darão o amadurecimento desejado e possível.
A reflexão e a reunião repousadas ajudar-me-ão a des-
cobrir meus condicionamentos, meu modo pessoal de tra-
balho, meus lados fortes e meus lados fracos. Quanto me-
lhor aprender a tomar em consideração meus condiciona-
mentos (estados de ânimo, o tempo em que melhor preparo
as homilias...), tanto melhor integrarei a preparação da
homilia na própria vida pessoal. A pregação se transforma-
rá em parte importante da minha existência, da qual já não
me será possível prescindir. Também aprenderei a aceitar
minhas limitações neste ministério como parte de minhas
limitações humanas.
Para tudo isso, será mister não considerar esta tarefa
de maneira funcional, comoatividade que se liquida rapi-
damente, para dedicar-se a outras tarefas ou projetos
prioritários. O serviço à Palavra é realidade central na vida
da Igreja e na vida da fé. Participo desta centralidade da
liturgia que a Sacrosanctumconcilium chama “culmen et fons”
da pastoral eclesial (SC 10).
Vejamos agora como pode ser a revisão em grupo,tal-
vez com a ajuda do mesmo grupo de preparação. A título

195
de exemplo, reunimos algumas das perguntas mais simples
que alguns fazem para dar início a este tipo de reunião”:
1) Que quis dizer o pregador em sua homilia?
2) Que é que me causou impacto, chegou a atingir-me,
conseguiu dizer algo?
3) Quefoi que me alegrou ou desagradou?

Tentando captar e julgar a homilia em seu conjunto,


podem-se fazer estas outras perguntas:
|) Que foi que captei?
2) Que experimentei?
3) Que me ocorreu?

O objetivo deste tipo de perguntas é descobrir que par-


tes da homilia, que palavras,frases ou conteúdos foram cap-
tados por algum ou vários ouvintes. Também se pode pedir
aos participantes que formulem uma frase que caracterize
a homilia, ou que digam em uma frase o que transmitiriam
a alguém que não houvesse escutado a homilia.
É evidente que a reunião não deve ser improvisada,e
que deve ser anunciada e preparada com antecedência, e,
desde o princípio, encarada como ajuda não só, ou não tan-
to, ao sacerdote, porém a toda a comunidade, já que toda a
comunidade é, de certo modo, não só objeto, mas sujeito
dela (pela preparação comum, pela possível participação
dialogada...).
Supomos que o sacerdote esteja em atitude aberta e re-
ceptiva para aceitar as críticas que se refiram mais diretamen-
te a ele. Quando há maturidade de um lado e de outro, su-
peram-se facilmente as possíveis suscetibilidades. O impor-
tante é que na comunidade haja costume de reunir-se emtor-
no da fé comorealidade viva, testemunhal e existencial.

7 A. Schwarz, 0.c., 150-151.

196
BIBLIOGRAFIA

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VILLALMONTE,A., Teologia Kerigmática, Herder, Barcelona, 1963.

198
ÍNDICE

Introdução
q

1. A homilética e a querigmática
JN OO

2. Que é homilia?
3. Que se entende por pregar?

AÇÃO QUERIGMÁTICO-EVANGELIZADORA
1. A pregação no contexto da vida de Jesus
MH 2. À pregação de Jesus em Lucas: o hoje
14 3. À pregação de Jesus em Marcos: a boa nova
19 4. À pregação de João Batista: o juízo, não o evangelho
22 5. À pregação de Jesus em João: sinais e palavras
24 6. O Deus desconhecido
28 7. O Reino de Deus
34 8. O Reino de Deus na teologia atual
41 9. Cristologização do querigma: Cristo morto e ressuscitado
10. Dois querigmas? Relação entre as duas fórmulas querig-
máticas
49 11. Mistério pascal e Jesus histórico
61 12. A mensagem da ressurreição
68 13. Ressurreição e Espírito
71 14. Relato e narração
80 15. Pregação e palavra de Deus
88 16. Palavra, revelação e sinal dos tempos

AÇÃO LITÚRGICO-CELEBRATIVA
101 1. No íntimo da liturgia
102 2. Pregão gozoso na pregação e na anáfora
105 3. O memorial
107 4. O hojelitúrgico
qa 5. A antífona da comunhão
116 6. A liturgia como celebração
118 7. Festa gozosa, de louvor, oracional
121 8. Pano de fundo sabático e de domingo
127 9. Assembléia e celebração: a reunião festiva
129 10. A oração de benção
131 11. À oração que acolhe o Reino próximo
136 12. A festa como contraste e crítica

AÇÃO COMUNICATIVA E COMUNITÁRIA


139 1. Pregação e pneuma: comunidade profética
147 2. A participação de todos no serviço da Palavra
148 3. Os condicionamentos psicológicos
150 4. Os fatos da vida
151 5. Projeções e dependências anticomunicativas
152 6. A verdadeira escuta
153 7. À tarefa de presidir ou moderar a reunião dialogada
155 8. Homilia monologal
157 9. A experiência pessoal de quem preside
159 10. Tipologia dos pregadores homiléticos
162 11. Leis da comunicação
164 12. Homilias em situações especiais

UMA LINGUAGEM
167 1. Gênero literário e forma expressiva
168 2. Nem explicação nem exegese
170 3. Nem doutrinação nem tematização
172 4. Linguagem simbólica e emotiva
177 5. A arte de narrar

PREPARAÇÃO
181 1. As etapas da preparação
185 2. Meditação e oração
187 3. O começo da homilia
191 4. Como terminar?
194 5. Pensando na revisão posterior
197 Bibliografia

PAULUSGráfica, 1997
Rua Padre Tiago Alberione, 290 (São Ciro)
95057-530 - Caxias do Sul, RS
Dentro da teologia vêm ocorrendo mudanças importantes
que tiveram e têm profunda repercussão na maneira de pre-
gar, especialmente na pregação homilética. Também na vida
da Igreja e na pastoral encontramos situações novas, que
nos obrigam a reorientar a homilia mediante enfoques dife-
rentes. Não só o sacerdote, mas toda a comunidade cristã
está hoje de algum modo implicada nesta tarefa.
Por outro lado, há grande escassez de publicações sobre esta
atividade, tão central na vida pastoral e litúrgica. Tentativa
discreta de ajuda a responder a este desafio é o que deseja
fazer a presente publicação, onde se analisa a homilia como
ação evangelizadora,litárgica e comunitária, estudando a espe-
cificidade de sua linguageme as fases de sua preparação.
O entroncamento bíblico, a seriedade teológica e a referên-
cia pastoral se unem nesta obra, pioneira em seu gênero, na
qual sua maneira original de entender a homilia nos ajuda
a descobrir o tesouro que ela traz escondido em seu interior.

LUIS MALDONADOnasceu em Madri em 1930. É doutor em


teologia pela Universidade de Insbruck. Pertence ao clero da dio-
cese de Madri. Foi diretor do Instituto Superior de Pastoral
dessa cidade entre 1974 e 1986. E professor de Teologia Pasto-
ral na Universidade de Salamanca desde 1977. E autor de
várias publicações.

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