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ARTIGOS A TEORIA E A QUEDA DO CÉU ARTIGOS

A teoria e a queda do céu


Para Alexandre Nodari, que os conhecimentos e habilidades
adquiridos sirvam para o uso do mundo,
por me lembrar que mas no mundo o objeto mais importante
ao qual o homem pode aplicá-los é o ser
“a verdade ainda está lá fora”
humano, porque ele é o seu próprio fim
último. — Conhecer, pois, o ser humano
Marco Antonio Valentim [1] O céu fuliginoso da Calmaria, sua
segundo sua espécie, como ser terreno
dotado de razão, merece particularmente
atmosfera pesada não são apenas o ser chamado de conhecimento do mundo,
Resumo: O ensaio procura considerar criticamente o caráter antropocêntrico (segundo suas condições sinal evidente da linha equatorial. ainda que só constitua uma parte das
de sentido) da cosmologia filosófica moderna, exemplificada pela Teoria do céu e pelos Sonhos de um Resumem o clima em que dois mundos criaturas terrenas (KANT, 2006, p. 21).
visionário, de Immanuel Kant — sob a perspectiva do diagnóstico xamânico da catástrofe climática se defrontaram. Esse elemento sombrio
proposto por Davi Kopenawa Yanomami, em A queda do céu. Investiga-se principalmente o estatuto que os separa, essa bonança onde
as forças maléficas parecem apenas Desse modo, ao abandonar a posição de centro
cosmológico da humanidade cosmopolita em relação aos extraterrestres, de um lado, e aos espíritos ou
se recobrar, são a última barreira
espectros terrenos, de outro, tomados como figuras radicalmente distintas da alteridade cosmológica. mística entre o que constituía, ainda
empírico-material de um “mundo fechado” (e,
Ao fim, especula-se sobre se haveria um nexo escatológico necessário entre a teoria do céu, enquanto ontem, dois planetas opostos por não obstante, muitíssimo mais diversamente
discurso do homem cosmopolita, e a sua queda, enquanto símbolo da catástrofe cosmopolítica condições tão diversas que as primeiras povoado), o homem passa a ocupar, com
iminente. testemunhas não puderam acreditar
que fossem igualmente humanos. Nunca
total exclusividade, o centro ontológico-
a humanidade conhecera provação tão transcendental do “universo infinito” (KOYRÉ,
Palavras-chave: Cosmologia. Antropologia. Extraterrestre. Espectro. Cosmopolítica. dilacerante, e nunca mais conhecerá 2006). A ampliação literalmente exorbitante
outra igual, a não ser que um dia,
The theory and the fall of the sky a milhões de quilômetros do nosso,
da cosmologia científica na modernidade
outro globo se revele, habitado por seria acompanhada por uma drástica redução
Abstract: This essay seeks to consider critically the anthropocentric character (according to its conditions seres pensantes. Nós ainda sabemos da “política cósmica”:3 com efeito, na
of meaning) of modern philosophical cosmology, exemplified by Immanuel Kant’s Theory of Heavens and que essas distâncias são teoricamente
transponíveis, ao passo que os primeiros
filosofia crítica de Kant, uma “metafísica
Dreams of a Spirit-Seer — from the point of view of the shamanic diagnosis of the climate catastrophe
navegantes temiam enfrentar o nada. antropocêntrica” fundamenta a ciência
proposed by Davi Kopenawa Yanomami, in The Falling Sky. It mainly investigates the cosmological
status of the cosmopolitan humanity in relation to the extraterrestrials, on one side, and the terrene (Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, experimental da natureza (KEMP SMITH, 1913,
spirits or spectres, on the other, taken as radically distinct figures of the cosmological otherness. “A calmaria”) p. 549).
Finally, it speculates whether there is a necessary eschatological nexus between the theory of heavens,
as the discourse of the cosmopolitan man, and its fall, as a symbol of the imminent cosmopolitical
“Há vida inteligente em outros planetas?” —
catastrophe. longe de exprimir meramente uma curiosidade
POLÍTICA CÓSMICA2 vã, essa indagação traduz, segundo o ponto
Keywords: Cosmology. Anthropology. Extraterrestrial. Spectre. Cosmopolitics. de vista extraterrestre de Kant, nada menos
Gostaria de refletir sobre um traço que uma dimensão inalienável da investigação
particularmente característico da cosmologia no acerca da natureza e da estrutura do universo,
[1] Marco Antonio Valentim é doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná quadro do assim chamado discurso filosófico da relativa à existência política de outros
(UFPR), Pesquisador do SPECIES — Núcleo de Antropologia Especulativa. E-mail: mavalentim@gmail.com modernidade, em vista sobretudo de elucidar, mundos, tão exaltada, como fundamento
sob certo aspecto, a sua situação cosmológica. positivo da cosmologia, no discurso xamânico
Como se sabe, esse traço é manifestamente de Davi Kopenawa Yanomami (2010). Segundo
ambíguo: se, de um lado, com a revolução formula brilhantemente Tim Flannery (2015),
copernicana celebrada por Kant, o universo se a propósito da descoberta cada vez mais
torna infinito, de outro, esse mesmo universo frequente e intensa de “sociedades não-
como que se fecha sobre o homem enquanto human[o]s altamente inteligentes”: “Temos
único “cidadão do mundo”: desde há muito nos perguntado se estamos
sozinhos no universo. Porém, claramente, não
Todos os progressos na civilização, pelos
estamos sozinhos na terra”.
quais o homem se educa, têm como fim

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Mediante um exercício de “antropologia compatibilidade postulando de saída que “as siderais estejam povoados” repousa em uma (KANT, 1946, p. 172-173). Donde a comparação
especulativa” (SAER, 2009, p. 4), pretendo leis gerais da ação da natureza derivam também consideração teleológica: “a finalidade da entre as “qualidades dos diversos habitantes”
explorar certos limites do conceito filosófico do supremo desígnio” (KANT, 1946, p. 25-26). O natureza é a contemplação de seres racionais” do cosmos prometida por Kant (e formulada
moderno de mundo com foco no problema da próprio fato de que “a matéria [tem] leis que (KANT, 1946, p. 166-167). Desse modo, a mediante paráfrase do Ensaio sobre o homem
alteridade cosmológica. Procurarei guiar-me, precisamente tendem à ordem e ao decoro” especulação ensaiada por Kant encontra de Alexander Pope):
ao longo do percurso, por uma sagaz conclusão (KANT, 1946, p. 31) testemunharia que física e firme apoio no mesmo princípio que comanda
de Alexandre Nodari (2013, p. 269): “Se o extra- teologia devem, em princípio, poder concordar toda a Teoria do céu5: a probabilidade de
A natureza humana, que na escala dos
terrestre é o humano projetado cosmicamente, quanto a um fundamento comum. Assim, se, outros planetas serem povoados respeita a seres ocupa, por assim dizer, o degrau
o extra-humano é o terreno projetando o por um lado, é inegável a contribuição da ordem teleológica do universo tanto quanto intermediário, se mantém entre os dois
limites extremos da perfeição no justo
cosmos”. Ao término, é possível que se nos Teoria do céu para a cosmologia moderna, a efetiva disposição sistemática dos planetas
meio, igualmente distante de ambos
mostre, como renovado escândalo filosófico, particularmente no sentido de promover a no sistema solar. Porém, Kant não se contenta os extremos. Se a ideia das classes mais
em lugar do velho ceticismo acerca do mundo ideia de uma história da natureza (ENGELS com a afirmação dessa opinião provável; ele a sublimes de seres racionais que habitam
Júpiter ou Saturno incita os zelos e
exterior, a “extramundanidade” da própria apud SADOSKY, 1946, p. 10), Kant (1946, p. desenvolve, como diz Szendy (2011, p. 73), sob
humilha os homens pelo reconhecimento
filosofia, ou seja, a sua face propriamente 31) não hesita, por outro, em propor o seu a forma de uma “filosoficção”, guiada pelos de sua própria baixeza, pode satisfazê-los
cosmo-política4. “Do universo fechado ao escrito como uma prova cosmológica, ao menos princípios racionais do governo divino: uma novamente e tranquilizá-los o aspecto dos
graus baixos que, nos planetas Vênus e
mundo infinito”, como formula Emilie Hache indireta, da existência divina: “Existe um Deus “especulação etnocosmológica livre”.
Mercúrio, estão reduzidos muito abaixo da
(2013, p. 12) ao inverter o lema consagrado porque, até mesmo no caos, a natureza não perfeição da natureza humana. Que visão
por Koyré: pode proceder de outra forma que regular e Notavelmente, no princípio dessa dedução da mais assombrosa! De um lado, vemos seres
ordenadamente”. existência e do caráter dos habitantes de outros racionais perante os quais um esquimó ou
mundos, Kant confere às faculdades humanas um cafre seria um Newton, e do lado oposto
[…] o ponto de vista extraterrestre — seja outros que considerariam este último como
Após a dedução da “constituição sistemática” da razão e da sensibilidade um estatuto um macaco! (KANT, 1946, p. 173).6
marciano, lunar ou siriano — a partir do
qual os Europeus, e depois todos aqueles das estrelas fixas, dos planetas e seus satélites, eminentemente cosmológico: “A capacidade
incitados a segui-los, aprenderam a ver e com destaque para uma engenhosa especulação de pensar racionalmente, e o movimento do Percebe-se claramente que a “etnocosmologia”
pensar, isto é, aprenderam a ver e pensar em torno da origem dos anéis de Saturno e da corpo que obedece àquela, são restringidas
a terra, mas também a partir do qual se kantiana prenuncia, de maneira exemplar,
habituaram a se ver e sentir, está prestes história do Sol, Kant (1946, p. 163) dedica a pelas condições proporcionadas pela distância essa outra “filosoficção” que consiste no
a desaparecer face à intrusão de Gaia e à terceira e última parte do seu tratado de do Sol à matéria à qual [o espírito humano] cosmopolitismo vindouro da Ideia de uma
convulsão climática que temos provocado. cosmologia a um “ensaio de comparação entre está atado” (KANT, 1946, p. 169). Quanto mais história universal (1784)7, caracterizada,
os habitantes de diversos planetas, baseada a matéria é vivificada pela influência da luz como revela Lévi-Strauss (2013, p. 53) em um
A TEORIA DO CÉU nas analogias da natureza”. Reconhecendo solar, mais ela capacita, e condiciona, a alma profundo diagnóstico, pela tentativa de erigir
diante do leitor que “em tema dessa espécie humana aos “trabalhos da economia animal”, o “reino supremo” da humanidade universal
Primeiro projeto filosófico de Kant, História
não existe um verdadeiro limite para a impondo limites e obstáculos ao cumprimento mediante um duplo corte, a separar, de um
universal da natureza e teoria do céu (1755)
liberdade de ficção” (KANT, 1946, p. 165), o de sua destinação racional (KANT, 1946, p. 171). lado, “a humanidade da animalidade” e, de
tem por objetivo “deduzir a formação dos
autor apresenta esse ensaio como motivado Isso implica, por exemplo, que os habitantes de outro, “homens de outros homens”: trata-se,
corpos siderais e a origem de seus movimentos
por uma opinião convicta, capaz de “contribuir Júpiter e Saturno, de corpos constituídos por com efeito, daquele mesmo “ciclo maldito”,
desde o estado primitivo da natureza por meio
para a ampliação de nosso conhecimento” e “matérias muito mais leves e fugazes”, seriam simultaneamente especista e racista, que
das leis da mecânica” (KANT, 1946, p. 25). Mas
dotada de probabilidade “tão bem fundada” detentores de um caráter anímico mais sublime constitui a máquina antropológica do Ocidente
a dificuldade de princípio com que Kant se
a ponto de exigir reconhecimento por parte e perfeito do que os habitantes dos planetas moderno. Não é à toa, aliás, que o conhecimento
defronta escapa ao domínio da investigação
dos investigadores da natureza cósmica (KANT, inferiores. Essa “suposição mais que provável” do homem sobredetermina, na filosofia de Kant,
estritamente científica: era preciso
1946, p. 165): “A maioria dos planetas estão é proposta quase como uma lei: a “clareza a ciência da natureza: como se lê no início da
compatibilizar a incomparável certeza do
certamente habitados, e os que não estão, e vivacidade dos conceitos” dos habitantes Geografia física, a cosmologia, em acepção
conhecimento natural mediante leis mecânicas
estarão alguma vez” (KANT, 1946, p. 168). planetários é tanto mais intensa quanto maior a estrita, equivale à antropologia (KANT, 2012,
com o princípio teológico-político do governo
Segundo Kant, “a necessidade de que os corpos distância de suas residências em relação ao Sol p. 445-446).
do mundo. O filósofo procura realizar essa

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Ora, vendo-se as coisas a partir da Teoria do de vista antropocêntrico (ptolomaico?), uma Diante disso, não deixa de espantar que Kant (2005a, p. 176), deve ser a morada dos
céu, o que permite a instauratio magna daquela vez que desloca o espectador humano de sua Szendy avalie positivamente (sem dissimular filósofos, “tal como os matemáticos já possuem
política cósmica, a do Estado cosmopolita, se posição central para “fazê-lo girar em torno aos um gesto iluminista) a constituição universal há muito tempo”. Com efeito, enquanto,
não a adoção heurística de uma perspectiva astros”. Contudo, é manifesto que, no quadro da perspectiva humana — “o todos-e-cada- na “epistemologia objetivista favorecida
extraterrestre, enquanto extrapolação narcísica dessa analogia, aquilo que para Kant conta um” — por meio do “desvio cosmoteórico pelo pela modernidade ocidental”, “conhecer é
do egoísmo humanista? De fato, na conclusão do como centro de perspectiva não é o homem todo-outro” (SZENDY, 2011, p. 102), quase no dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito
tratado — em que ademais Kant especula sobre como ente natural e objeto empírico, mas o sentido de um perspectivismo: presente no objeto, de modo a reduzi-la um
a possibilidade futura de os habitantes da Terra homem como ente racional finito, ou seja, mínima ideal”, na epistemologia xamânica
encontrarmos “novas residências em outros sujeito transcendental do conhecimento. E tal ameríndia, “conhecer é personificar, tomar o
Os extraterrestres kantianos não são uma
céus quando se tiver cumprido por completo o sujeito, por cujo poder de representação todos superstição, até porque não são divinizados. ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”
tempo que nos fora indicado aqui para nossa os objetos da natureza devem se regular, não Eles encarnam antes, exemplarmente, (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 358).
uma espécie de para-além necessário da
permanência” —, invoca-se justamente a é senão o entendimento enquanto faculdade
razão humana, a fim de que ela possa ser Ora, é precisamente essa virtualidade da
contemplação do “céu estrelado em uma noite dos conceitos a priori. Indeterminável pelas pensada em sua luz e como luz, sempre
serena”, “espécie de deleite que só sentem as leis que ele mesmo impõe aos fenômenos, esse e ainda a vir. É por isso que eles figuram, perspectiva, segundo a qual “um objeto é
almas nobres”, como perspectiva sobremaneira sujeito faz exceção ao campo da experiência, em sua filosoficção recorrente, uma certa um sujeito incompletamente interpretado”,
ideia esclarecida da justiça (SZENDY, 2011, sendo “o objeto da interpretação a contra-
favorável à constatação da inferioridade e situando-se, por natureza, fora. p. 119).
miséria terrestre dos homens mas, ao mesmo interpretação do objeto” (VIVEIROS DE CASTRO,
tempo, de sua possível elevação moral no Assim, se é verdade, como dizem Deleuze e 2002, p. 360), que termina por ser radicalmente
Guattari (1997, p. 113), que “a ideia da revolução É evidente, nesses termos, que os neutralizada pela revolução copernicana de
sentido da existência sublime dos habitantes de extraterrestres imaginados por Kant devolvem
planetas superiores (KANT, 1946, p. 181-182). copernicana põe diretamente o pensamento em Kant, a exigir a plena objetivação de outrem
relação com a terra”, é certo, por outro lado, ao filósofo apenas a sua própria imagem, agora para o sujeito universal do conhecimento.
(ANTI)PERSPECTIVA EXTRATERRESTRE que o faz para projetá-lo em definitivo além confirmada como universalmente válida e Afinal, a reduplicação transcendental do ponto
dela e, mais ainda, para assim territorializá- normativa: esses outros não seriam “invasores de vista por meio de seu espelhamento projetivo
“Tudo se passa”, escreve Szendy (2011, p. la — a terra, “a Desterritorializada” — em que nos chegam do exterior, mas antes os que no extraterrestre interdita, por princípio,
99), “como se, segundo uma necessidade do função e proveito exclusivos da subjetividade sempre estiveram aí, habitando nosso ponto de qualquer possível colocação do humano em
discurso kantiano que se verifica sem cessar, transcendental, extraterrestre. Decerto, vista com a estranheza que o torna possível” perspectiva, para resguardá-lo, absoluto, em
o cosmopolítico apelasse ao cosmológico”: a enquanto centro de referência para toda (SZENDY, 2011, p. 150). Esses outros não são seu “isolamento metafísico” (HEIDEGGER,
“necessidade de pensar a humanidade desde objetividade possível, o sujeito kantiano teria, senão o mesmo, isto é, todos8 — por exclusão, 1990, p. 172). Ao invés de designar uma efetiva
seu limite extra-terreno” (SZENDY, 2011, p. ao menos pretensamente, mais em comum com é óbvio, daqueles que habitam outros mundos, alteridade cosmológica, o extraterrestre
101) levantar-se-ia como condição sine qua os habitantes etéreos de Júpiter e Saturno do na terra ou no céu. kantiano consiste, enquanto duplo especular
non para a garantia da universalidade do juízo que com os povos terrenos, por demais expostos do sujeito transcendental, no limite negativo
cosmopolita, em face da ameaça suscitada pela Nada mais distante, portanto, daquilo que, em
à luz do Sol e, por isso, aprisionados na matéria vista do pensamento dos povos ameríndios, da própria perspectividade.
emergência virtual de outros mundos, extra- densa… Mas importa sobretudo notar que, longe
humanos, principalmente terrenos. Hipótese Eduardo Viveiros de Castro denomina CRÍTICA SOBRENATURAL
de propor uma relação meramente analógica, “perspectivismo cosmológico” (2002) — “a
exagerada? Vejamos. externa, entre metafísica e cosmologia, a ideia cosmologia contra o Estado” (VIVEIROS DE A hipótese lançada acima, de que o
da revolução copernicana instaura, como se CASTRO, 2011, p. 256) —, em que a originária
Contrariamente, poder-se-ia talvez argumentar, cosmopolitismo de Kant — a sua “teoria do
dizia, uma situação cosmológica inteiramente determinação pelo “ponto de vista de Outrem”
a partir da célebre analogia proposta por Kant, céu” em sentido mais amplo — consiste em uma
nova, que a política correspondente, o frustra de saída a possibilidade de algo como
no Segundo Prefácio da Crítica da razão pura certa política cósmica, resultante da aliança
cosmopolitismo estatal, não fará senão impor, o “ponto de vista de Sirius”, multiplicando
(2001, p. 20), entre a explicação copernicana dos humanos com os extraterrestres, ganha
com violência verdadeiramente sobrenatural, assim vertiginosamente os agentes e patamares
dos movimentos celestes e a revolução uma confirmação decisiva a partir de outro
aos povos da terra e seus respectivos mundos. cósmicos, celestes e terrestres9, ao invés de
epistemológica da metafísica, que a perspectiva ensaio, Sonhos de um visionário explicados
extraterrestre não coincide com um ponto reduzi-los àquele “mundo comum” que, segundo por sonhos da metafísica (1766). Aí se torna

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possível discriminar que espécie de outro É certamente um mesmo sujeito “ocupa um espaço sem poder preenchê- poderemos nomear nenhum caráter seu,
que pertence como um membro porque não temos nenhum conhecimento
extra-humano é necessariamente preterido ou, simultaneamente ao mundo visível e
lo” (KANT, 2005a, p. 151) — possibilidade [empírico] de seres racionais não-terrestres
como propõe Monique David-Ménard (1996, p. invisível, mas não exatamente a mesma que, sem dúvida, subverteria inteiramente a para poder indicar [por comparação]
102), “recalcado” pelo homem cosmopolita, pessoa, porque as representações de armação estético-transcendental do mundo sua particularidade e caracterizar assim
uma não são ideias que acompanhem as aqueles seres terrestres entre os racionais
em benefício de seu duplo extraterrestre. No representações do outro mundo, devido
—, o homem cosmopolita exerce sua liberdade em geral (KANT, 2006, p. 216).
entanto, é curioso observar que Kant escreve à sua constituição distinta, e, por isso, moral em meio à causalidade da natureza. Ora,
esse ensaio, decisivo no advento da Crítica, não lembro enquanto homem aquilo que desse ponto de vista, que diferença haveria
penso como espírito e, vice-versa, meu Mas, note-se bem, a falta desse conhecimento
para denegar como irremediavelmente ilusórias estado como um homem não entra na
entre a sobrenatureza de um e a Cultura de
chancela de forma efetiva a redução
“filosoficções” sobre a ideia de mundo, tais representação de mim mesmo como um outro, senão aquela que Kant presume haver
antropocêntrica da cosmologia: “nada mais nos
como as que ele próprio desenvolve na Teoria espírito (KANT, 2005a, p. 170). entre os “sonhos da sensação”, supostamente
resta a não ser afirmar que ele [o ser humano]
do céu. Segundo David-Ménard (1996, p. 25-27), idiossincráticos, e os “sonhos da razão”,
tem um caráter que ele mesmo cria para si
essa “denegação” se consolida na discussão da Dito de outro modo, “a alma humana deveria, necessariamente universalizáveis (DAVID-
enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os
antinomia da razão pura realizada pela Primeira por isso, ser considerada já na vida presente MÉNARD, 1996, p. 94)? Seria, então, a soberania
fins que ele mesmo assume” (KANT, 2006, p.
Crítica, mediante a exclusão do “estatuto do como ligada a dois mundos simultaneamente” do próprio sujeito racional, contrariamente
216) — capacidade, aliás, que, em seus níveis
provável nas categorias do entendimento”, (KANT, 2005a, p. 162): o “mundo comum”, ao desígnio consciente da Aufklärung, uma
técnico, pragmático e moral, “diferencia
e seria motivada, principalmente, pela objetivamente dado, e a “comunidade dos condição de natureza espectral?10
caracteristicamente o ser humano dos demais
necessidade de desmentir “a perigosa espíritos”, em que “seria tão fácil falar com
Seja como for, importa aqui destacar, habitantes da terra” (KANT, 2006, p. 216),
vizinhança do noumenon com os espíritos dos um habitante de Saturno quanto com uma alma
sobretudo a manifesta divergência de função situando-o hierárquica e incomensuravelmente
mortos”. Resta saber se essa vizinhança é apenas humana defunta” (KANT, 2005a, p. 204). Donde
entre os espíritos e aqueles “outros” (them…), acima de todos os “animais irracionais”, que
ideológica ou propriamente cosmológica. o problema não simplesmente epistemo- mas
os extraterrestres, na economia do discurso são assim aproximados às meras coisas, “de
intensamente cosmo-lógico, com o qual Kant
Tomando como alvo exemplar de suas kantiano: enquanto os primeiros multiplicam que se pode dispor à vontade” (KANT, 2006,
se debate (sem dúvida, muito além de seus
considerações a obra do místico sueco os mundos, constituindo como que o paradigma p. 27). Com total clareza, vemos, pois, que o
Sonhos): como “construir a fronteira entre um
Swedenborg, o filósofo empreende uma extra-humano da alteridade cosmológica, os extraterrestre não é senão a imagem negativa
espírito e outro, ou entre o interior e o exterior
“Anticabala” (KANT, 2005a, p. 176 e ss.). Nessa segundos só vêm a confirmar a unidade do — e, por isso mesmo, constitutiva — do homem
para um mesmo sujeito” (DAVID-MÉNARD,
polêmica, Kant preocupa-se em elucidar a ilusão mundo, refletindo, como que em negativo, cosmopolita, formador de mundo. Se “o
1996, p. 99)? Contra a ilusão da diferença entre
que acomete “pessoas incomuns”, fazendo-as a imagem assombrosa de uma humanidade próprio do Homem é não ter nada de próprio”,
mundos que paradoxalmente se superpõem
tomar “objetos como exteriores a elas, os quais universalmente exclusiva. é justamente “tal im-propriedade humana”
em conflito, como assegurar em definitivo a
seriam tidos como uma presença de naturezas aquilo que “lhe daria, por feliz consequência,
unidade do “mundo comum”? De fato, é quando, em seu pensamento
espirituais em seus sentidos corporais”, de direitos ilimitados sobre todas as propriedades
modo que “imagens aparentadas da fantasia Com extrema perspicácia, David-Ménard (1996, antropológico mais tardio, Kant parece por alheias” (VIVEIROS DE CASTROO, 2015, p. 26-
[assumam] a aparência de sensações” (KANT, p. 92 e ss.) demonstra como Kant oscila, quanto a um momento abdicar do ponto de vista 27).
2005a, p. 173). O perigo de tal espécie de esse propósito, entre uma explicação fisiológica extraterrestre, que essa projeção exorbitante
desempenha um papel ostensivamente Mas isso não é tudo; na melhor das hipóteses,
ilusão reside, em seu limite, no fato de que os da ilusão espectral e um fascínio pelo “estranho
fundamental na autodeterminação do apenas a metade: pois, em Kant, os
sujeitos dela cativos – sejam loucos, impostores parentesco”, “acordo prodigioso”, do idealismo
caráter específico do homem. Como se diz extraterrestres surgem, verossimilmente, para
ou mesmo filósofos – julgariam habitar ou ter metafísico com o ocultismo visionário. De fato,
na Antropologia pragmática, “o problema de conjurar os espectros de outros mundos, os
acesso a “mundos diferentes daqueles em que há que observar a indisfarçável semelhança
indicar o caráter da espécie humana [seria, a espíritos. É notável quanto a isso que Kant, nos
eles têm sensações” (KANT, 2005a, p. 210- de condição entre os “outros cosmopolitas
princípio] absolutamente insolúvel”: Sonhos de um visionário, jamais consiga oferecer
211). No limite, essa hipóstase da alucinação defuntos” (KANT, 2005a, p. 204) que, segundo
uma refutação cabal de sua existência. Após
espiritual teria por consequência uma violação o filósofo, jamais poderíamos ser e os genuínos
ensaiar uma argumentação que aponta para
da própria apercepção identitária subjetiva (a “cidadãos do mundo”, em que todos sempre Se o conceito supremo da espécie for o
o fundamento fisiológico da ilusão espectral
“unidade pessoal” [KANT, 2005a, p. 163]): podemos nos tornar: assim como um espírito de um ser racional terrestre, então não
– “o homem confuso põe fora de si simples

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objetos de sua imaginação e os considera estabelecimento daquela fronteira “entre um Nós também e acima de tudo, seguindo “céu estrelado acima de mim”, como lemos na
uma via em parte aberta por Hannah
como coisas efetivamente presentes diante espírito e outro, ou entre o interior e o exterior Arendt, esboçamos uma passagem da
célebre conclusão da Crítica da razão prática
dele”; “o transtorno do tecido nervoso pode para um mesmo sujeito”: nos termos de nossa estética à política através da cosmologia — imagem que “aniquila minha importância
ser a causa de se tranpor o focus imaginarius discussão, entre os outros-mesmos que são os especulativa: é como se, voltando para enquanto criatura animal” ao mesmo tempo em
trás no tempo de uma cronologia clássica
para o lugar de onde viria a impressão sensível extraterrestres e os outros-outros, os espíritos. de leitura, a articulação, a ligação, a
que, suscitando o sentimento da lei moral em
de um objeto corporal efetivamente dado” Mostra-se que a referida fronteira — somente dobradiça entre a universalidade subjetiva mim, “eleva infinitamente meu valor enquanto
[KANT, 2005a, p. 181-183]) –, o filósofo parece ela capaz de garantir a coincidência aperceptiva da Crítica do juízo e o cosmopolitismo da inteligência” (KANT, 2002a, p. 255) —, e se
Ideia de uma história universal residisse
capitular diante da possibilidade, jamais de dos humanos consigo próprios e, com isso, a na visão cósmica da Teoria do céu. Como
esse céu sublime viesse enfim a desabar sobre
todo alienável, de que essa mesma “ilusão unidade de um mundo comum — é erigida por se o todos-e-cada-um sobre o qual se todos, especialmente sobre aqueles outros
dos sentidos” seja ocasionada pelos próprios Kant, nos Sonhos de um visionário, mediante orienta o juízo de gosto só pudesse incluir que, resolutos em sua “insegurança” terrena,
a humanidade como tal por meio de um
espíritos, constituindo como que uma prova a “noção crítica de limite”, por recurso desvio cosmoteórico pelo todo-outro que
recusam espiritualmente a “vida independente
de sua existência paradoxal: “Elas [as histórias inaugural à objetividade, entendida aqui como habita os globos extraterrestres (SZENDY, da animalidade e mesmo de todo o mundo
comuns sobre espíritos] justificam bastante a dispositivo de neutralização, ou melhor, de 2011, p. 102). sensível” (KANT, 2002a, p. 256) prometida pela
suspeita de que poderiam ter nascido de uma conjuração da alteridade cosmológica: o objeto racionalidade cosmopolita?
tal fonte” (KANT, 2005a, p. 183). da experiência “constrasta com os fantasmas e Mas a mesma evidência é também proporcionada,
limita-lhes com isso o desenvolvimento” (DAVID- de um ponto de vista completamente diverso, A esse respeito, ouçamos novamente Kopenawa,
Extrapolando-se para além dos Sonhos: MÉNARD, 1996, p. 101)11. O objeto, pois, como pela crítica xamânica de Davi Kopenawa, quando enquanto porta-voz dos espíritos da floresta:
seria a espectralidade uma outra forma, antifantasma – se “a metafísica é uma ciência anuncia, em A queda do céu, a causalidade
uma forma outra, do transcendental? Seria a dos limites da razão humana” (KANT, 2005a, p. sobrenatural imanente que liga o “pensamento O que os brancos nomeiam o “mundo
transcendentalidade mesma irremediavelmente 210), essa ciência, que a Crítica da razão pura enfumaçado” dos napë (os brancos) à destruição inteiro” se corrompe por causa de usinas
equívoca, ponto de disputa a priori entre chamará de filosofia transcendental, nasce da “terra-floresta”12:
que fabricam todas as suas mercadorias, as
suas máquinas e os seus motores. A terra e
pensamentos, com seus respectivos mundos, justamente em uma confrontação direta com o céu podem ser vastos, mas suas fumaças
estruturalmente divergentes? Ou ainda, seria o “mundo dos espíritos”: “O conceito positivo se estendem em todas as direções, e todos
a transcendentalidade — paradoxalmente — Os espíritos vivem na floresta e dela se são atingidos: os humanos, os animais e a
do limite como restrição de um uso aberrante nutrem, e é por isso que, como os humanos, floresta. É verdade. Mesmo as árvores estão
uma forma da espectralidade, isto é, um modo do pensamento é descoberto graças à reflexão querem defendê-la. Mas os brancos os doentes. Tornadas espectros, elas perdem
de autodeterminação por outrem? Segundo sobre Swedenborg” (DAVID-MÉNARD, 1996, p. ignoram. Eles derrubam e queimam todas as suas folhas, secam e se quebram sozinhas.
David-Ménard (1996), a refutação kantiana, árvores para alimentar seu gado. Escavam Também os peixes morrem disso, na água
106, grifo no original). o leito dos rios e destroem os montes em contaminada dos rios. Com a fumaça dos
não sendo capaz de demonstrar a inexistência busca de ouro. Explodem grandes rochas minerais, do petróleo, das bombas e das
da alteridade espectral, só pode “virar-lhe a Portanto, considerada assim cosmologicamente, que fazem obstáculo à abertura de suas coisas atômicas, os brancos vão fazer
cara”, consumando o ocultismo para afastá-lo em meio a conflito entre mundos, a revolução estradas. Contudo, montes e montanhas adoecer a terra e o céu. Então, os ventos e
não estão simplesmente postos sobre as tempestades entrarão em um estado de
em definitivo: copernicana de Kant consiste, antes de tudo, o solo. Eles são casas de espíritos! Mas fantasma. No fim, os xapiri e a imagem de
em um levante político: do homem cosmopolita, essas são palavras que os brancos não Omama, até mesmo eles, serão atingidos!
espectro extraterrestre, contra a multidão dos compreendem. Eles pensam que a floresta É por isso que nós, xamãs, estamos tão
Trata-se de, liquidando a questão, pensá- está morta e vazia, que a natureza jaz aí atormentados. Quando a epidemia xawara
la perfeitamente, dela se distanciando. E espíritos terrenos, extra-humanos. sem razão, que é muda. Então, eles dizem nos toma e cozinha a nossa imagem com
aqui se reconhece a própria ambiguidade a si mesmos que podem dela se apossar gás e petróleo em suas marmitas de ferro,
da relação com o outro num modo de A QUEDA DO CÉU para pilhar à vontade as casas, os caminhos ela nos faz virar outros e sonhar sem
pensamento que remonta a um fantasma e o alimento dos xapiri! Eles não querem interrupção. Nós vemos então todos esses
de onipotência: trata-se indiferentemente Como vimos, em Kant, a redução antropocêntrica ouvir nossas palavras nem as dos espíritos. brancos à procura do metal que cobiçam.
de suprimir o outro, aqui a questão Preferem permanecer surdos (KOPENAWA; Vemos as fumaças de inumeráveis tropas
repugnante dos espíritos, ou de dele se da política cósmica é evidenciada ALBERT, 2010, p. 515-516).13 de seres maléficos xawarari que os
distanciar (David-Ménard, 1996, p. 109). exemplarmente pela solidariedade essencial da acompanham, e os combatemos com força.
Teoria do céu com o Estado cosmopolita: […] Os brancos pensam talvez que Teosi
Haveria, portanto, um nexo escatológico da fará desaparecer do céu a fumaça de suas
Tal supressão seria operada mediante teoria do céu com a sua queda? Afinal, e se o usinas? Eles se enganam. Carregada muito
distanciamento, e este por meio do ao alto em seu peito pelo vento, ela já

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ARTIGOS A TEORIA E A QUEDA DO CÉU A TEORIA E A QUEDA DO CÉU ARTIGOS

começa a sujá-lo e queimá-lo. […] Se isso os astrônomos não vão gostar): vamos virar da ordem de esferas que agora não somente REFERÊNCIAS
continuar, a imagem do céu será perfurada o Hubble de ponta-cabeça! Vamos fazer
lentamente por buracos, sob o calor das o Hubble olhar para cá, e não para os
não estão mais diante do homem mas que,
além disso, são chamadas a prescindir da vida” BRADBURY, R. As crônicas marcianas.
fumaças do mineral. Ela derreterá então confins do universo. Vivemos num cosmos
pouco a pouco, como um saco plástico desconhecido; nós somos ignorantes, (ROMANDINI, 2013, p. 193). Tradução de Ana Ban. São Paulo: Globo, 2013.
lançado ao fogo, e os trovões não pararão nós estamos tripudiando deste cosmos
mais de vociferar de cólera. Isso só não maravilhoso que nos dá morada e abrigo.
Em suma, se a “fera do clima (the climate CIVRIEUX, M. de. Watunna: un ciclo de
acontece ainda porque seus espíritos Converse com um astrofísico: a Terra é uma creación en el Orinoco. Caracas: Monte Avila
hutukarari não cessam de verter água improbabilidade estatística. A estabilidade beast)” faz com que “o nosso mundo v[á]
sobre ele para resfriá-lo. Mas essa doença e o conforto que nós apreciamos, com deixando de ser kantiano” (DANOWSKI; Editores, 1992.
do céu é o que nós, xamãs, mais tememos. todas as secas do Rio Negro, com todos
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 19-20, 25),
Os xapiri e todos os outros habitantes da os calores e frios, etc., não existe nada DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há
floresta também estão muito inquietos por igual no universo, nada conhecido. Então, isso acontece tanto por causa do desarranjo
mundo por vir? Ensaio sobre os medos e
isso, pois, se o céu se incendiar, ele cairá viremos o Hubble para cá e vamos olhar catastrófico das coordenadas espaço-temporais
novamente. Então, nós seremos todos a Terra. Vamos começar pela Amazônia! os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e
– “devir-louco generalizado das qualidades
queimados e, como nossos ancestrais Vamos dar um mergulho, vamos chegar à Barbárie, Instituto Socioambiental, 2014.
nos primeiros tempos, jogados no mundo realidade que vivemos cotidianamente, extensivas e intensivas que expressam o sistema
subterrâneo (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. e olhá-la bem de perto, já que a gente biogeofísico da Terra” (DANOWSKI; VIVEIROS DAVID-MÉNARD, M. 1996. A loucura na razão
390-391). precisa disso. Davi Kopenawa não precisa,
DE CASTRO, 2014, p. 25) – quanto, ao mesmo pura: Kant, leitor de Swedenborg. Tradução
ele já tem algo que eu acho que perdi, eu
que fui educado pela televisão. Eu acho tempo, por obra da cada vez mais intensa, de H. B. S. Rocha. São Paulo: Ed. 34, 1996.
O cientista Antonio Nobre — pesquisador do que eu perdi esse algo, que é um registro irremediável “permeabilidade” da consciência
Centro de Ciência do Sistema Terrestre do ancestral, que é uma valorização daquilo DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a
transcendental às “forças [assediantes] de um
que eu não conheço, que eu não vi. Ele não
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CCST/ precisa da prova de São Tomé. Ele acredita exo-mundo” (LUDUEÑA ROMANDINI, 2015, p. filosofia? Tradução de B. Prado Jr. e A. A.
Inpe) e do Instituto Nacional de Pesquisas da com veneração e reverência naquilo que 18, 20) – cosmos extramundano ou multiverso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1997.
Amazônia (Inpa) —, cujas pesquisas revelam os ancestrais e os espíritos lhe ensinaram.
espectral, habitado pelas inumeráveis “sombras
espantosas continuidades entre a atmosfera
Já que a gente não consegue, então vamos FLANNERY, T. The Amazing Inner Lives
olhar para a floresta (NOBRE, 2010, [s.p]). que adejam diante do entendimento [humano]”
celeste e a floresta amazônica, embasando of Animals. The New York Review of
(KANT, 2005b, p. 274).16
uma grave avaliação sobre o futuro climático Books, October 8, 2015 Issue, 2015.
Aquelas “palavras dadas” (KOPENAWA; ALBERT, Disponível em: <http://www.nybooks.com/
desta (NOBRE, 2014), subscreve de todo o Tomás apalpou o próprio corpo e,
2010, p. 37) alertam expressamente para a articles/2015/10/08/amazing-inner-lives-
diagnóstico xamânico de Kopenawa, a quem, sentindo o calor, ficou tranquilo. Eu sou
urgente necessidade de uma virada terrena da de verdade, pensou. O marciano tocou animals/>.
aliás, se refere como “o Einstein da Amazônia”
cosmologia, mais ainda, de um incontornável o próprio nariz e os lábios. — Eu tenho
(MILANEZ, 2011):
“retorno à Terra” por parte da nossa filosofia carne — disse, meio em voz alta. Tomás FONTENELLE, B. Diálogos sobre a pluralidade
ficou olhando para o estranho. — E se eu
(HACHE, 2013, p. 12), a ser motivado pelo dos mundos. Tradução de Denise Bottmann.
sou real, então você deve estar morto.
Alguns meses depois, eu o encontrei num reconhecimento do conflito cósmico entre — Não, você! — Um fantasma! — Um Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
evento e falei: “Davi, como é que você sabia espectro! Apontaram um para o outro,
os povos diferentemente (extra-)humanos,
que tirando a floresta acaba a chuva?”. Ele com as estrelas queimando em seus HACHE, E. Introduction: Retour sur Terre. In:
falou: “O espírito da floresta nos contou”. com seus “mundos múltiplos e divergentes” membros como adagas, pedacinho de
E isso para mim foi um game-changer, foi (STENGERS, 2005, p. 995) disseminados HACHE, E. (ed.). De l’univers clos au monde
gelo e vaga-lumes, e então começaram a
uma mudança total. Por que estou fazendo
profusamente entre a terra e o céu.14 Pois se se apalpar de novo, os dois se sentindo infini. Paris: Éditions Dehors, 2014. p. 11025.
ciência para concluir o que ele já sabe? E intactos, quentes, animados, estupefatos,
aí, bateu-me algo absolutamente crítico. trata, por ocasião das palavras dos xapiri, de um surpresos; e o outro, ah, sim, o outro HEIDEGGER, M. Gesamtausgabe II.
O que os olhos não veem, o coração não diagnóstico rigorosamente “hipercosmológico”, ali, irreal, um prisma fantasmagórico Abteilung: Vorlesungen 1923-1944, Band
sente: out of sight, out of heart. Isso foi emitindo a luz acumulada de mundos
a implicar — como afirma Ludueña Romandini 26: Metaphysische Anfangsgründe der Logik
uma necessidade que o meu antecessor distantes. […] — Nunca estaremos de
colocou, a de que nós precisamos ver as (2013) a propósito da “in-harmonia mundi” de acordo — disse. […] Tomás estendeu im Ausgang von Leibniz. Frankfurt am Main:
coisas... Nós, quero dizer, a sociedade Lovecraft —,15 nada menos que “uma anulação a mão. O marciano fez o mesmo, Vittorio Klostermann, 1990.
ocidental que está se tornando global, imitando-o. As mãos não se tocaram,
do conceito mesmo de cosmos”, em virtude
nós precisamos ver, se a gente não vê, fundiram-se uma na outra.
não registra. A gente vive na ignorância. da “transformação inelutável da situação do KANT, I. Ideia de uma história universal com
(Ray Bradbury, As crônicas marcianas,
Então, faço a seguinte proposta (claro que ecosistema da vida em seu conjunto dentro “Encontro noturno”)17 um propósito cosmopolita. Tradução de A.

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2005b. p. 219-282. 2013. mecánico del universo, tratado de acuerdo
Aceito em: 5/11/2015
a los principios de Newton. Traducción de P.
_____. Antropologia de um ponto de vista _____. Do espectro da metafísica à metafísica
Merton. Buenos Aires: Lautaro, 1946. p. 7-21.
pragmático. Tradução de C. A. Martins. São do espectro. SPECIES, v. 1, p. 7-20, 2015.
Paulo: Iluminuras, 2006. SAER, J. J. O conceito de ficção. Tradução 2
Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada como
MILANEZ, F. Garimpo na terra yanomami: comunicação no I Seminário do Instituto de Exercícios
de Joca Wolff. Sopro, v. 15, p. 1-4, 2009.
_____. Physical Geography. Translated by violência e ganância. Terra Magazine (por Transdisciplinares: “Cosmologias”, realizado no Espaço
Disponível em: <http://www.culturaebarbarie. Guiomar Novaes (Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro)
Olaf Reinhardt. In: WATKINS, E. (ed.). The Bob Fernandes), 27/11/2011. Disponível
org/sopro/n15.pdf>. em 15 de outubro de 2015 e organizado por Maria Borba,
Cambridge Edition of the Works of Immanuel em: <http://terramagazine.terra.com.br/ a quem agradeço o generoso convite, sem o qual o texto
Kant: Natural Science. Cambridge: Cambridge interna/0,,OI5437416-EI16863,00.html>. STENGERS, I. The Cosmopolitical Proposal. In: jamais teria sido escrito.

University Press, 2012. p. 434-679. LATOUR, B.; WEIBEL, P. Making Things Public. 3
Emprego essa expressão tendo em mente o sentido
NOBRE, A. D. Há um rio sobre nós. original que lhe dá Viveiros de Castro (2002, p. 358) em sua
Atmospheres of Democracy. Cambridge: The
KEMP SMITH, N. The Meaning of Kant’s TEDxAmazônia. 2010. Disponível em: exposição acerca do perspectivismo cosmológico ameríndio:
MIT Press, 2005. p. 994-1003. a política cósmica é “multinaturalista”, por implicar uma
Copernican Analogy. Mind, v. 22, n. 88, p. 549- <https://www.ted.com/talks/antonio_
“diferença [ontológica, e não apenas cultural] de mundo”
551, 1913. donato_nobre_the_magic_of_the_amazon_a_ SZENDY, P. Kant chez les extraterrestres: entre os sujeitos que fazem parte do cosmos (VIVEIROS DE
river_that_flows_invisibly_all_around_ philosofictions cosmopolitiques. Paris: Minuit, CASTRO, 2015, p. 55 e ss.). Para o uso estendido da noção
KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo us?language=pt-br>. de multinaturalismo ao plano da divergência política entre a
2011.

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ARTIGOS A TEORIA E A QUEDA DO CÉU A TEORIA E A QUEDA DO CÉU ARTIGOS

modernidade ocidental e outros povos, cf. também LATOUR, 9


Para um exemplo suficientemente eloquente da vertigem “transformação estrutural” da escatologia apapokuva tal 2003, p. 68). Essa semelhança enseja a hipótese de que
2002, p. 21 e ss. perspectivística ameríndia, eis um trecho do mito ye’kuana qual descrita por Curt Nimuendaju. Essa transformação o espectro seja a forma mais originária da alteridade
“Medatia”, constante do ciclo Watunna: “Não sabemos seria caracterizada, entre outros fatores, pela incorporação cosmológica. Para uma discussão sobre espectralidade como
4
Sobre esse ponto, aqui apenas mencionado, cf. VALENTIM, como ver as outras casas: fora das nossas estamos cegos. da agência destrutiva dos brancos à cataclismologia, categoria metafísico-política, cf. especialmente LUDUEÑA
2013. Constrastando o discurso fundamental da ontologia, Tampouco podemos ouvir as vozes dos espíritos. Estamos enquanto motivo primeiro para o desígnio catastrófico de ROMANDINI, 2015.
representado pelo pensamento de Heidegger sobre o surdos nas outras casas. Entramos nelas, e nem sequer nos Nhanderu, a “limpeza da terra”. Lê-se, por exemplo, na
ser em geral, ao perspectivismo cosmológico ameríndio damos conta. Quando observamos o Céu, não vemos nada: principal das narrativas transcritas por Pierri: “Aquele que
(Viveiros de Castro), interpretado como uma “contra- ele nos parece vazio, não podemos ver as suas casas. Não mandava primeiro, não cuida mais dessa terra porque ficou
ontologia” infundamental, procurei aí demonstrar como, vemos os Avós, os espíritos dos animais nem das plantas, bravo que os brancos a estragaram. Eles furaram a terra, e
desde um ponto de vista extramundano (isto é, exterior os que vivem lá em cima. […] Os donos daquela gente, os ele não queria ver isso, acabaram com as matas, acabaram
ao mundo enquanto contexto presidido pela essência do avós dos animais, sabem que nós não sabemos” (CIVRIEUX, com os bichos e ainda culparam os Mbya. Nhanderu está
homem), a compreensão ontológica constitui, antes de 1992, p. 213). bravo agora, e por isso não vai mais deixar os brancos se
tudo, uma situação cósmica definida principalmente por reproduzirem. Antigamente, não foi assim, na primeira
certa configuração hegemônica da interação política entre 10
Ludueña Romandini (2015, p. 13-15) encontra na terra. Ele já destruiu a terra antes, já queimou a terra,
humanidade e não-humanidade, bem como entre povos antropologia hobbesiana a mesma recusa, que averiguarmos e sempre sobraram os brancos. Dizem que ficou para se
diferentemente humanos. nos Sonhos de um visionário, da “substancialidade dos reproduzir de novo. Mas agora é diferente. Nhanderu
espectros” como condição metafísica de possibilidade para Tenonde já está muito bravo, e vai acabar mesmo com os
5
Princípio que é aí empregado quase em sentido constitutivo, a instituição do Estado cosmopolita: “De fato, o próprio
ao passo que, na Crítica da razão pura, seu emprego será brancos”.
Hobbes confirma esta hipótese quando argumenta que ‘se
restringido tão somente à regulação da experiência. este temor supersticioso pelos espíritos fosse eliminado, 14
Para uma interpretação, de inspiração antropofágica (“O
6
Outra fonte principal da especulação kantiana são, sem e com ele as previsões baseadas em sonhos, as falsas cosmos parte do Eu”, Oswald de Andrade), da concepção
dúvida, os Diálogos sobre a pluralidade dos mundos, de profecias e muitas outras coisas que dependem deles, cosmológica de Uexküll acerca do entrelaçamento
Fontenelle (1686), em que a imaginação cosmológica mediante as quais algumas pessoas astutas e ambiciosas “aracnídeo” entre diferentes mundos humanos e não
apresenta, tanto ou mais do que na Teoria do céu, um abusam das pessoas simples, os homens estariam mais aptos humanos, pensada ao modo de uma “texterioridade”, cf.
sentido fortemente político, demonstrando, tal qual em do que estão para a obediência civil’. […] Como se pode ver, NODARI, 2015, p. 6-9.
Kant, traços expressamente racistas: “Mas como serão os o rechaço metafísico da espectralidade revela-se o gesto
político que inaugura o nomos da Modernidade, dado que
15
“O universo que se prefigura nos contos imbuídos do
habitantes de Mercúrio? Estão duas vezes mais perto do Sol materialismo próprio do último período lovecraftiano é
do que nós. Devem ser loucos de tanta vivacidade. Creio que age sobre a imaginação, que ao mesmo tempo, constitui,
segundo Hobbes, a arché última sobre a qual os homens também profundamente in-humano, isto é, ali não regem
não têm memória, não mais do que a maioria dos negros: mais as grandes polaridades que haviam estrutura o
nunca tecem reflexões sobre coisa alguma; agem apenas a operam para constituir regimes políticos e assegurar a paz
da sociedade civil”. mundo do ánthropos: os deuses são substituídos por seres
esmo e por repelões; e, por fim, creio que é em Mercúrio biologicamente diversos que habitam o universo desde
que ficam os manicômios do universo” (FONTENELLE, 2013, 11
“O objeto percebido não se define aqui por si mesmo, eras inconmensuravelmente anteriores ao homem, as leis
p. 119). independentemente do efeito de limitação que exerce humanas abolidas, as noções de bem e mal carecem de
7
“O papel dos homens [na tentativa de organizarem-se sobre os fantasmas; uma representação merece o nome de todo fundamento e, finalmente, o cosmos se revela como o
em uma sociedade civil presidida pelo Estado] é, pois, percepção quando contrasta com as imaginações e, com isso, lugar mais inóspito que se possa conceber para uma espécie
muito delicado. Não sabemos qual a constituição dos assegura estar-se no sonho de vigília e não na alucinação. O insubstancial como a humana” (LUDUEÑA ROMANDINI, 2013,
habitantes dos outros planetas e qual a sua índole; mas se limite entre o interior e o exterior é aqui o resultado de uma p. 192).
cumpríssemos bem esta missão da natureza, poderíamos limitação da manifestação da imaginação, decorrente do
efeito de contraste. O que vem antes é esse efeito. O sonho
16
Veja-se, por exemplo, o relato aterrador sobre os
gloriar-nos de ocupar, entre os nossos vizinhos do edifício “fantasmas do tsunami” feito por Richard L. Parry (2014)
cósmico, um posto não pequeno. Talvez entre eles cada de vigília é de imediato uma relação; é a efetividade de
uma diferenciação entre o sonho e o percebido, garantindo por ocasião da catástrofe sísmico-marítima que atingiu o
indivíduo consiga atingir plenamente o seu destino durante norte do Japão em 2011.
a sua vida. Conosco, as coisas passam-se de modo diverso; com isso a separação entre o interior e o exterior. […] com
apenas a espécie pode a isso aspirar” (KANT, s/d, p. 13, a Crítica da razão pura, essa origem voltará no fato de que, 17
Não por acaso, esse conflito, descrito por Bradbury, entre
nota 1). no seio de uma teoria do conhecimento em princípio tomada o terráqueo invasor e o marciano nativo em torno à condição
em si mesma, o objeto de conhecimento tem, em relação de vivo ou morto deixa-se assimilar, guardadas as devidas
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Como se lê exemplarmente em Sonhos de um visionário: às errâncias da razão, a mesma função restritiva que tinha diferenças de mundo, à divergência de perspectiva que há,
“O juízo daquele que refuta minhas razões é meu juízo, o efeito de contraste assegurado pelo objeto percebido no segundo Kopenawa, entre os “seres humanos” (yanomae
depois de tê-lo pesado contra o prato do amor-próprio e sonho de vigília” (DAVID-MÉNARD, 1996, p. 101, 105). thëpë) e os “espíritos xamânicos” (xapiripë) na cosmologia
em seguida contra minhas supostas razões e encontrado yanomami: “Nossa noite é para eles o dia. Quando
nele uma maior consistência. Antes eu considerava o
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Sobre como essa crítica incide virtualmente sobre o
idealismo transcendental de Kant, cf. VALENTIM, 2014, p. dormimos, eles brincam e dançam. E quando falam de nós,
entendimento humano universal apenas do ponto de vista chamam-nos de espectros [spectres]. Aparecemos a seus
do meu entendimento: agora ponho-me no lugar de uma 11-20.
olhos como fantasmas [fantômes], pois somos semelhantes
razão alheia e externa, e observo meus juízos, junto com 13
Daniel Pierri (2013, p. 167-168) constata o mesmo a estes. Eles nos dizem assim: ‘Vocês são estrangeiros e
seus mais secretos motivos, do ponto de vista dos outros” nexo causal (motivacional) em narrativas guarani-mbya zumbis [revenants], pois morrem’” (KOPENAWA; ALBERT,
(KANT, 2005a, p. 183-184). contemporâneas, interpretando-as no sentido de uma

ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Vol. 4 - Ano 2 / Dezembro de 2015 / ISSN 2359-4705 ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Vol. 4 - Ano 2 / Dezembro de 2015 / ISSN 2359-4705

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