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A ONU E JULGAMENTO CRIMINAL DE CIVIS NA

JUSTIÇA MILITAR

Luiz Octavio Rabelo Neto1


Sumário: 1. Introdução; 2. Competência da Justiça Militar da União
para o julgamento de civis; 3. Sistema global de proteção de direitos
humanos e julgamento de civis pela justiça militar; 4. Conclusão; 5.
Referências.

RESUMO - Este artigo analisa a competência da Justiça Militar da União brasileira para
o julgamento de civis em tempo de paz, bem como expõe o entendimento dos órgãos
da ONU que compõem o sistema internacional de proteção de direitos humanos quanto
ao julgamento de civis por tribunais militares. Conclui que a Justiça Militar da União tem
legítima competência constitucional para julgamento de civis, sendo tal atribuição
perfeitamente compatível com os tratados internacionais de direitos humanos e com o
entendimento esposado pelos órgãos das Nações Unidas. Por fim, propõe-se que os
civis devem ser julgados, monocraticamente, pelo juiz-auditor, em razão dos princípios
da independência e imparcialidade objetiva.

PALAVRAS-CHAVE – Justiça Militar. Jurisdição. Civis. Direitos Humanos.

ABSTRACT - This article analyzes the jurisdiction of the Brazilian Military Justice of the
Union for the trial of civilians in peacetime, as well as exposes the understanding of the
United Nations’s bodies of international human rights system regarding the trial of
civilians by military courts. It concludes that the Military Justice of the Union has a
legitimate constitutional jurisdiction for trial of civilians, such attribution being perfectly
compatible with international human rights treaties and with the understanding espoused
by the United Nations. Finally, it is proposes that civilians should be judged,
monocratically, by the civil judge, on the grounds of the principles of independence and
objective impartiality.

KEYWORDS - Military Justice. Jurisdiction. Civilians. Human rights.

1. Introdução
Um grande desafio jurídico para Justiça Militar da União brasileira (JMU) é
delimitar precisamente sua competência, em conformidade com a Constituição Federal

1 Juiz-Auditor Substituto da Justiça Militar da União, lotado na Auditoria da 8ª CJM, com sede em
Belém/PA. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito
Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade
Federal do Pará.
1
de 1988, bem como com os tratados internacionais de direitos humanos a que aderiu o
Estado brasileiro.
A competência da JMU para o julgamento penal de civis tem sido contestada.
Com esse objeto, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), dentre outras causas,
duas importantes demandas de controle concentrado de constitucionalidade.
Primeiramente, a Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental (ADPF) 289,
proposta pelo Procurador-Geral da República (PGR) em 15/08/2013, cujo relator é o
Ministro Gilmar Mendes, que tem por objetivo conferir interpretação conforme a
Constituição ao art. 9º, incisos, I e III, do Código Penal Militar, para que seja
reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e para
que estes crimes sejam submetidos a julgamento pela justiça comum, federal ou
estadual. Na mesma diretriz, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5032,
ajuizada em 14/08/2013, também pelo PGR, cujo relator é o Ministro Marco Aurélio, tem
por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do § 7º do art. 15 da Lei
Complementar nº 97/1999, que considera atividade militar, para fins de determinação de
competência da JMU, determinadas atribuições subsidiárias das Forças Armadas,
como, por exemplo, as operações para garantia da lei e da ordem e de combate ao
crime realizadas em favelas no Rio de Janeiro.
Essas demandas apresentam, como causa de pedir, além da limitação
constitucional da competência da Justiça Militar, os tratados internacionais de direitos
humanos vigentes no país, assim como o posicionamento de órgãos internacionais de
proteção de direitos humanos.
Abordou-se essa controvérsia, em outro trabalho, no que diz respeito à
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentando-se todos os
julgados proferidos por essa Corte relativos a esse tema 2.
Agora, neste artigo, objetiva-se analisar se a atual configuração da JMU,
especificamente no que tange a sua competência para o julgamento de civis,
compatibiliza-se com o posicionamento dos órgãos vinculados à ONU – Organização

2 RABELO NETO, LUIZ OCTAVIO. Competência da Justiça Militar da União para julgamento de civis:
compatibilidade constitucional e com o sistema interamericano de proteção de direitos humanos . Revista
de Doutrina e Jurisprudência do Superior Tribunal Militar, v. 25, p. 53-137, 2016.

2
das Nações Unidas, os quais compõem o sistema global de proteção dos direitos
humanos, especialmente em face da Lei nº 13.941/2017, que ampliou a competência da
JMU, inclusive para o julgamento de civis.

2. Competência da Justiça Militar da União para o julgamento de civis


Inicialmente, aborda-se a sistemática adotada pelo ordenamento jurídico
brasileiro, no qual a justiça militar tem competência criminal para o julgamento de civis.
A competência da Justiça Militar da União está prevista no art. 124 da
Constituição Federal de 1988 (CF/88): “À Justiça Militar compete processar e julgar os
crimes militares definidos em lei. Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o
funcionamento e a competência da Justiça Militar”.
Portanto, o foro militar, especificamente o da JMU, está previsto
constitucionalmente para julgar crimes militares, cometidos por qualquer pessoa, seja
militar, seja civil, e não “crimes dos militares”, não se tratando de uma justiça funcional
destinada ao julgamento somente dos crimes propriamente militares perpetrados por
militares, como ocorre em muitos países.
Ao invés de partir de um requisito subjetivo, ligado à condição do agente
(militar), para a definição da competência da justiça militar, a Carta Politica (art. 124)
adota a tipificação do delito, como critério objetivo da atribuição da mesma
competência. Embora esse critério não confira, ao legislador ordinário, a
franquia de criar, arbitrariamente, figuras de infração penal militar, estranhas ao que se
possa conceitualmente admitir como tal 3, as balizas para tal definição se encontram no
art. 142 da Carta, quando esta dispõe sobre a constituição das Forças Armadas
brasileiras, principiologia e objetivos4, visto que essa justiça especializada se destina ao
julgamento de crimes estabelecidos com o fim de proteger, de qualquer modo, essas
instituições armadas e, por consequência, o Estado brasileiro.

3 STF, RE 121124/RJ, 1ª Turma, Relator: Min. OCTAVIO GALLOTTI, Julgamento: 17/04/1990, DJ 08-06-
1990.
4 CF de 1988: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica,
são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina,
sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
3
Saliente-se que desde a Constituição Federal de 1934, a Justiça Militar se
desvinculou do Poder Executivo, passando a constituir um dos órgãos do Poder
Judiciário nacional (art. 63)5, inclusive com competência expressa para julgamento de
civis, nos casos de crimes contra segurança externa do país ou cometidos contra as
instituições militares (art. 84) 6. Não se trata, destarte, de órgão militar, mas de órgão
civil “militarizado”, visto que militares em serviço ativo participam da sua composição.
Regulamentando o art. 124 da Constituição federal, nosso legislador adotou o
critério ratione legis, isto é, não definiu o conceito de crime militar, tendo apenas
enumerado taxativamente as diversas situações que definem esse delito 7.
A lei que definiu o que deve ser considerado crime militar é o Código Penal
Militar (CPM), instituído pelo Decreto-lei n. 1.001/69, em grande parte recepcionado
pela CF/88 com status de lei ordinária. Os crimes militares são os que estão descritos
nas hipóteses do art. 9º, para o tempo de paz, e do art. 10, para o tempo de guerra.
Destaca-se que, com o advento da Lei nº 13.941/2017, instituiu-se os
chamados crimes militares por extensão8, isto é, crimes previstos no Código Penal
comum ou na legislação penal especial, que podem ser considerados crimes militares,
desde que enquadrados em uma das situações elencadas nos incisos II e III do art. 9º
do Código Penal Militar. Em outros termos, atualmente, podem existir crimes
caracterizados como militares, cometidos por militares ou civis, e que são
extravagantes ao texto do Código Penal Militar.
O art. 9º, inciso III, do CPM define, excepcionalmente, as circunstâncias em que
a jurisdição castrense abrange determinadas condutas ilícitas praticada por civis, ainda
que em tempo de paz. Assim dispõe o Código:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

5 CF de 1934: “Art. 63 - São órgãos do Poder Judiciário: (...) c) os Juízes e Tribunais militares”. O art. 86
previa: “São órgãos da Justiça Militar o Supremo Tribunal Militar e os Tribunais e Juízes inferiores,
criados por lei”.
6 CF de 1934: "Art. 84. Os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas terão fôro especial nos
delictos militares. Este fôro poderá ser estendido aos civis, nos casos expressos em lei, para a repressão
de crimes contra a segurança externa do paiz, ou contra as instituições militares".
7 LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito penal militar. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 17.
8 ROTH, Ronaldo João. Os delitos militares por extensão e a nova competência da justiça militar
(Lei 13.491/17). Disponível em:
<http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/artigoRothLeinova.pdf>. Acesso em 15/03/2018.
4
I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei
penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição
especial;
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando
praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
(...)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as
instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso
I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa
militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou
assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no
exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância,
observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de
natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da
ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle
fim, ou em obediência a determinação legal superior. (destacou-se)

Percebe-se da leitura do inciso III do art. 9º do CPM que são várias as


hipóteses em que o crime militar pode ser praticado por um civil, sempre contra as
instituições militares, e, por consequência, a competência para julgá-lo é da JMU, o que
é chancelado pela jurisprudência de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal
(STF).
A jurisprudência do STF, contudo, tem adotado interpretação restritiva e
excepcional para definir a competência da Justiça Militar para o julgamento de civis em
tempo de paz. Interpretação que tem identificado a competência castrense apenas
naqueles delitos que atentem contra as instituições militares (e não somente contra a
hierarquia e disciplina), consoante o enunciado n. 298 da Súmula do STF.
Desde a sessão plenária de 13/12/1963, o STF tem entendimento sumulado no
sentido de que “O legislador ordinário só pode sujeitar civis à justiça militar, em tempo
de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares”.
Exemplificativamente, à propósito, confiram-se as ementas a seguir transcritas:

Ementa: Habeas Corpus originário. Competência da Justiça Militar da União.


Interpretação restritiva. Civil acusado de Uso de Documento falso. Competência da
Justiça Federal. Precedentes. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
adota interpretação restritiva na definição da competência da Justiça Militar da
União para o julgamento de civis em tempo de paz. 2. Compete à Justiça Federal
5
processar e julgar civil acusado de uso de documento falso (art. 315 do CPM). 3.
Ordem parcialmente concedida para declarar a insubsistência dos atos decisórios e
determinar o encaminhamento dos autos à Justiça Federal. (STF. HC 121.189/PR, 1ª
Turma, Relator p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Julgamento: 19/08/2014, DJe
25-09-2014). (destacou-se)

E M E N T A: “HABEAS CORPUS” – IMPUTAÇÃO AO PACIENTE, QUE É CIVIL, DA


SUPOSTA PRÁTICA DE CRIMES MILITARES: (a) ROUBO DE VALORES
PERTENCENTES A EMPRESA PRIVADA, DESTINADOS A DEPÓSITO EM POSTO
DE AGÊNCIA BANCÁRIA DO BANCO DO BRASIL LOCALIZADO EM HOSPITAL DO
EXÉRCITO; (b) ROUBO DE FUZIS E PISTOLAS DAS FORÇAS ARMADAS; E (c)
SEQUESTRO DE MILITAR – CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR
SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – REGULAÇÃO DESSE TEMA NO PLANO DO
DIREITO COMPARADO – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL –
RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR
UNICAMENTE QUANTO AO PRIMEIRO DELITO (ROUBO DE VALORES) –
COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL – PEDIDO DEFERIDO EM
PARTE. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E
A NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS CASTRENSES,
DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL. - A competência penal da
Justiça Militar da União não se limita, apenas, aos integrantes das Forças
Armadas nem se define, por isso mesmo, “ratione personae”. É aferível,
objetivamente, a partir da subsunção do comportamento do agente – de qualquer
agente, mesmo o civil, ainda que em tempo de paz – ao preceito primário
incriminador consubstanciado nos tipos penais definidos em lei (o Código Penal
Militar). – O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes
dos militares, mas, sim, para os delitos militares, “tout court”. E o crime militar,
comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor
procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código
Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito
castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz. (...). A
REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO
COMPARADO. – Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos
estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo
de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal
(Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina
(Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai
(Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai
(Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. – Uma
relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara
Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando
a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote
medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um
civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (...)” (item nº 269, n. 14,
da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”). – O caso “Ex Parte Milligan” (1866):
importante “landmark ruling” da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. (...).
(STF. HC 110.185/SP, 2ª Turma, Relator: Min. CELSO DE MELLO,
Julgamento: 14/05/2013, Dje 30-10-2014) (destacou-se)

6
Contudo, como já dito, muitos se opõem a essa competência conferida a essa
justiça especializada, argumentando que isso não está de acordo com os padrões
internacionais de proteção de direitos humanos.

3. Sistema global de proteção de direitos humanos e julgamento de civis pela


justiça militar
O conjunto de mecanismos de proteção de direitos humanos geridos tanto por
órgãos da ONU quanto por órgãos previstos em tratados diversos apoiados pela ONU
recebe o nome de sistema global, onusiano ou universal de direitos humanos 9.
O sistema normativo global de proteção dos direitos humanos compreende a
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos de 1966, o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e
Culturais de 1966, além de outros diversos tratados multilaterais de direitos humanos,
todos estabelecidos com o propósito promover os direitos humanos no âmbito
internacional.
No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas
adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos cujo artigo 10
proclama que “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública
audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus
direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”10.
O artigo 14 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) 11
estabelece que todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça
e que toda pessoa tem o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias
por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na
apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na

9 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. Saraiva, 2014, p. 283.


10 Nações Unidas, Assembleia Geral, Declaração Universal de Direitos Humanos, 10 de dezembro de
1948, Resolução 217-A (III). Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em
23/03/2018.
11 O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos foi promulgado no Brasil pelo Decreto
presidencial nº 592, de 06/07/1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-
1994/d0592.htm>. Acesso em 21/03/2018.
7
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. Vários instrumentos
regionais de direitos humanos também incluem disposições semelhantes 12.
Os órgãos das Nações Unidas reconhecem que a grande variedade de
sistemas de justiça militar torna difícil, ou mesmo impossível, formular generalizações a
respeito. Esses sistemas têm evoluído ao longo do tempo como resultado da história,
da tradição jurídica e das possibilidades próprias de cada país 13.
Em um número significativo de Estados, os tribunais militares são vistos como
instituições judiciais confiáveis e sujeitos à supervisão judicial civil. Em outros Estados,
porém, os governos se serviram da justiça militar para perseguir figuras da oposição e
para proteger militares que cometeram graves violações de direitos humanos 14.
É preciso esclarecer que o termo “tribunais ou cortes militares” está aqui
empregado, tal como nos documentos e relatórios da ONU, para se referir a cortes
marciais, isto é, uma forma de órgão judicial, estabelecido pela Constituição ou pela
legislação, para julgar pessoas que estejam sob a lei militar, presididas por um juiz
militar ou por um juiz civil, em que os julgadores de fato são militares 15.
Nos tratados internacionais de direitos humanos, incluindo o PIDCP, não se faz
referência específica aos tribunais militares. Apesar disso, esses tratados e, em
particular, o PIDCP, são muito relevantes para a questão da administração da justiça
por tribunais militares.
O Comitê de Direitos Humanos criado pelo art. 28 do PIDCP, em seu
comentário geral nº 32, documento no qual comenta o art. 14 do PIDCP, tratando do
direito à igualdade perante cortes e tribunais e direito a um julgamento justo, indicou
que o Pacto não proíbe o processamento por tribunais militares. Porém, também

12 Veja a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Artigo 6); a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Artigo 8); a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (artigo 7); e a Carta Árabe dos
Direitos Humanos (artigos 12 e 13)
13 Nações Unidas, Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
apresentado ao Conselho de Direitos Humanos. Resumo dos debates realizados na consulta de
especialistas em administração da justiça por tribunais militares e a função de todo sistema judicial na
luta contra transgressões de direitos humanos. Doc. A/HRC/28/32, de 29/01/2015, parágrafo 2.
Disponível em: <http://undocs.org/sp/A/HRC/28/32>. Acesso em 21/03/2018.
14 Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos supracitado, parágrafo
3.
15 GIBSON, Michael. International Human Rights Law and the Administration of Justice through Military
Tribunals: Preserving Utility While Precluding Impunity. In Journal of International Law & International
Relations, vol. 4, núm. 1 (2008). p. 6. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/tablas/Gibson.doc>.
Acesso em 02/04/2018.
8
expressou que a natureza militar do tribunal não poderia modificar as garantias do
Pacto16.
Vale destacar o parágrafo 22 desse pronunciamento do Comitê de Direitos
Humanos:
22. As disposições do artigo 14 se aplicam a todas as cortes e tribunais de justiça
compreendidos no âmbito desse artigo, quer sejam ordinários ou especializados, quer
sejam civis ou militares. O Comitê nota a existência, em muitos países, de cortes
militares ou especiais que julgam civis. Embora o Pacto não proiba o
processamento de civis por tribunais militares ou especiais, exige que tais
julgamentos se desenvolvam em condições que permitam a plena aplicação das
garantias previstas no artigo 14, sem que ditas garantias possam ser limitadas
ou modificadas por causa do caráter militar ou especial da corte em questão. O
Comitê também observa que o julgamento de civis em tribunais militares ou
especiais pode levantar sérios problemas quanto à administração equitativa,
imparcial e independente da justiça. Portanto, é importante tomar todas as
medidas necessárias para garantir que tais julgamentos sejam realizados sob
condições em que se possam observar genuinamente as garantias estipuladas
no artigo 14. Os julgamentos de civis por militares ou tribunais especiais devem
ser excepcionais, isto é, limitados a casos em que o Estado-parte possa
demonstrar que o recurso a esses juízos é necessário e justificado por razões
objetivas e sérias, e que, pela classe específica de indivíduos e ofensas de que
se trata, os tribunais civis regulares não estejam em condições de levar adiante
esses processos. (grifei)

Portanto, para o Comitê de Direitos Humanos, os civis não devem estar


sujeitos à jurisdição dos tribunais militares, exceto em circunstâncias excepcionais
plenamente justificáveis.
Outro órgão da ONU, o Conselho de Direitos Humanos aprovou resolução
(Doc. A/HRC/RES/25/4, de 10/04/2014) sobre a integridade do sistema judicial, na qual:
“10. Exorta os Estados que tenham criado tribunais militares ou especiais para
julgar deliquentes, que velem para que esses órgãos sejam parte integral do
sistema judicial geral e apliquem os procedimentos reconhecidos em direito
internacional como garantias de um julgamento imparcial, incluindo o direito de
recorrer contra a sentença condenatória e a pena imposta”. 17

16 Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentário geral nº 32, Artigo 14, Direito à igualdade
perante cortes e tribunais e direito a um julgamento justo. Doc. CCPR/C/GC/32, de 23/08/2007.
Disponível em: <http://undocs.org/CCPR/C/GC/32>. Acesso em 02/04/2018.
17 Nações Unidas, Resolução do Conselho de Direitos Humanos sobre a integridade do sistema judicial.
Doc. A/HRC/RES/25/4, de 10/04/2014. Disponível em: <https://documents-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/133/46/PDF/G1413346.pdf?OpenElement>. Acesso em 06/04/2018.
9
Em 09/06/2017, o Relator Especial sobre a independência de magistrados e
advogados, Diego García-Sayán, transmitiu ao Conselho de Direitos Humanos da ONU
seu relatório no qual pede aos Estados que aprovem normas específicas que
estabeleçam expressamente que os civis não poderão ser investigados nem
processados por tribunais militares; velem para que a competência desses tribunais se
limite aos delitos militares cometidos por membros em serviço ativo das forças armadas
e proteja os direitos a um julgamento imparcial e com as devidas garantias
processuais18.
É de se salientar, também, que o Relator Especial da Subcomissão para a
Promoção e Proteção de Direitos Humanos, o francês Emmanuel Decaux, desenvolveu
um projeto contendo 20 (vinte) “Princípios sobre a administração da justiça por tribunais
militares” (E/CN.4/2006/58, de 13/01/2006)19.
Essa Subcomissão era órgão subsidiário da extinta Comissão de Direitos
Humanos da ONU, que estava sob a autoridade do Conselho Econômico e Social 20. A
Comissão não chegou a apreciar o Relatório e, em 16/06/2006, após atuação desde
1946, foi extinta e substituída pelo Conselho de Direitos Humanos, vinculado à
Assembleia Geral da ONU (e não mais ao Conselho Econômico e Social).
O Conselho manteve o procedimento adotado pela extinta Comissão de
Direitos Humanos de escolher relatores especiais, especialistas com competência para
investigar situações de violações de direitos humanos, bem como elaborar relatórios
finais contendo recomendações aos Estados 21. Portanto, tais relatórios, ainda que não
tenham caráter cogente para os Estados, constituem importante forma de 'soft law'
estebelecido contra a barbárie e a impunidade.
Pois bem, o “Projeto de princípios sobre a administração da justiça por
tribunais militares” tem por objetivo estabelecer normas mínimas, de alcance universal,

18 Nações Unidas, Relatório do Relator Especial sobre a independência de magistrados e advogados.


Doc. A/HRC/35/31, de 09/06/2017. Disponível em: <https://undocs.org/es/A/HRC/35/31>. Acesso em
06/04/2018.
19 Nações Unidas, Projeto de Principios sobre a Administração da Justiça por Tribunais Militares, Doc.
E/CN.4/2006/58, 13/01/2006, Relatório apresentado pelo Relator Especial da Subcomissão de Promoção
e Proteção de Direitos Humanos, Emmanuel Decaux, para a Comissão de Direitos Humanos. Disponível
em: <http://undocs.org/sp/E/CN.4/2006/58>. Acesso em 21/03/2018.
20 Sobre os trabalhos da Subcomissão de Promoção e Proteção de Direitos Humanos, confira-se:
<http://www2.ohchr.org/english/bodies/subcom/57/aevdoc.htm>. Acesso em 22/03/2018.
21 RAMOS, André de Carvalho. Op. Cit, p. 285-286.
10
para regular a justiça militar (Introdução, parágrafo 10), o que deixa aberta a
possibilidade de definir normas mais estritas no marco do direito interno.
Esses princípios foram elaborados em consulta com especialistas em direitos
humanos, juristas e militares de todo o mundo, e incluem disposições específicas
relativas ao estabelecimento e funcionamento de tribunais militares. Os princípios se
baseiam na ideia de que a justiça militar deve ser parte integrante do sistema judicial
geral (princípios 1 e17).
Segundo relatado (Introdução, parágrafo 11), a opção escolhida para este
estudo sobre a administração da justiça pelos tribunais militares implica não eleger
nenhuma das duas posições extremas que tendem ambas a fazer a justiça militar uma
justiça à parte, à margem do direito comum, seja "sacralizando-a", colocando-a acima
dos princípios fundamentais do estado de direito, ou seja "demonizando-a", invocando
as experiências históricas de um passado muito recente em muitos continentes.
A alternativa adotada é simples: ou a justiça militar se ajusta aos princípios de
boa administração da justiça e se converte em uma justiça como as demais, ou se
constitui em uma "justiça de exceção", um sistema separado, sem contrapesos ou
controle, que abre a porta a todos os abusos e não tem de justiça mais do que o nome.
Entre a sacralização e a demonização, o estudo toma a via da normalização, da
"civilização" da justiça militar, permitindo que esta adote os princípios elencados para a
administração da justiça.
Esses princípios tratam dos seguintes temas: 1) criação de órgãos judiciais
militares pela Constituição ou pela lei; 2) respeito às normas de direito internacional; 3)
declaração de estado de guerra e efeitos sobre garantias processuais; 4) aplicação do
direito humanitário; 5) incompetência dos órgão judiciais militares para julgar civis; 6)
objeção de consciência ao serviço militar; 7) incompetência dos tribunais militares para
julgar menores de 18 anos; 8) competência funcional dos órgãos judiciais militares; 9)
incompetência para julgar autores de graves violações de direitos humanos; 10)
limitação dos efeitos do segredo militar; 11) regime das prisões militares; 12) garantia
do habeas corpus; 13) direito a um tribunal competente, independente e imparcial; 14)
publicidade processual; 15) garantia do direito de defesa e direito a um julgamento justo
e imparcial; 16) participação das vítimas no processo; 17) interposição de recursos ante
11
tribunais ordinários; 18) obediência e responsabilidade do superior; 19) exclusão
progressiva da pena de morte; 20) revisão dos códigos militares.
Merece destaque o Princípio nº 5, que trata da incompetência de órgãos
judiciais militares para julgar civis: “Los órganos judiciales militares deberían, por
principio, ser incompetentes para juzgar a civiles. En cualquier caso, el Estado velar·
por que los civiles acusados de una infracción penal, sea cual fuere su naturaleza, sean
juzgados por tribunales civiles.”. Ou na língua inglesa: “Military courts should, in
principle, have no jurisdiction to try civilians. In all circumstances, the State shall ensure
that civilians accused of a criminal offence of any nature are tried by civilian courts”.
Explicando-se o conteúdo do princípio nº 5, o relator aduz:
20. En su Observación general Nº 13 (párr. 4), relativa al artículo 14 del Pacto
Internacional de Derechos Civiles y Políticos, el Comité de Derechos Humanos
observaba "la existencia en muchos países de tribunales militares o especiales que
juzgan a personas civiles. Esto podría presentar graves problemas en lo que
respecta a la administración equitativa, imparcial e independiente de la justicia.
Muy a menudo la razón para establecer tales tribunales es permitir la aplicación
de procedimientos excepcionales que no se ajustan a las normas habituales de
justicia. Si bien el Pacto no prohíbe estas categorías de tribunales, las
condiciones que estipula indican claramente que el procesamiento de civiles
por tales tribunales debe ser muy excepcional y ocurrir en circunstancias que
permitan verdaderamente la aplicación de las garantías previstas en el artículo
14".
21. La práctica del Comité de Derechos Humanos desde hace 20 años,
especialmente en sus constataciones sobre comunicaciones individuales o sus
observaciones finales sobre los informes nacionales, ha sido reforzar su vigilancia,
a fin de limitar la competencia de los tribunales militares a los delitos de
naturaleza estrictamente militar cometidos por personal militar. Muchos
relatores por temas o por países han adoptado también una posición muy firme
a favor de una incompetencia de principio con respecto a los civiles. De igual
modo, la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos, de la Comisión Interamericana de Derechos
Humanos y de la Comisión Africana de Derechos Humanos y de los Pueblos es
unánime al respecto. Como señalan los principios básicos relativos a la
independencia de la judicatura, "toda persona tendrá derecho a ser juzgada por los
tribunales de justicia ordinarios con arreglo a procedimientos legalmente establecidos.
No se crearán tribunales que no apliquen normas procesales debidamente
establecidas para sustituir la jurisdicción que corresponda normalmente a los
tribunales ordinarios" (párr. 5). (grifei)

A crítica que se faz ao “Projeto de Princípios” é que eles desconsideram as


particularidades históricas e jurídicas de cada Estado reconhecidas pela própria ONU,

12
as quais podem estar, perfeitamente, de acordo com todas as garantias de direitos
humanos previstas nos tratados internacionais.
Como bem pontuado pelo canadense Michael R. Gibson, em um esforço para
ser universal, os Princípios Preliminares buscam capturar um espectro de um fenômeno
muito amplo e variado, tentando sujeitá-lo à mesma avaliação injustificadamente. Ao
fazê-lo, eles distorcem a realidade de muitos sistemas de justiça militar legítimos que
existem atualmente e correm o risco de demonizar uma espécie de corte de justiça
necessária, valiosa e, às vezes, insubstituível22.
Embora haja casos de tribunais militares que não observam as normas
internacionais de direitos humanos e que promovem a impunidade, estes não devem
ser considerados como representativos dos tribunais militares como um todo. Não se
deve extrapolar, a partir de exemplos infelizes, uma proposição universal de que
tribunais militares não podem julgar civis, ainda que de forma justa, e que devem ser
eliminados, especialmente aqueles sujeitos a restrições constitucionais e à jurisdição
supervisora de tribunais civis23.

4. Conclusão
Ao fim desse estudo, conclui-se que JMU brasileira tem legítima competência
constitucional para julgamento de civis, sendo tal atribuição perfeitamente compatível
com os tratados internacionais de direitos humanos e com o entendimento esposado
pelos órgãos da ONU que compõem o chamado sistema internacional de proteção de
direitos humanos.
É demasiado simplista a postura de adotar cegamente o entendimento de que a
justiça militar brasileira não pode julgar civis, sob o argumento de que esse é o
entendimento consensual de órgãos internacionais de proteção de direitos humanos.
Primeiro, porque esses órgãos, como visto, não excluem, em todos os casos, essa
possibilidade, reservando-a, tão somente, para situações restritas e excepcionais,
exatamente como ocorre no Brasil. Segundo, porque esse entendimento é direcionado
aos tribunais militares, cortes marciais que constituem um órgão administrativo das
forças armadas composto apenas por juízes militares, enquanto que a JMU é órgão civil
22 GIBSON, Michael. Op. cit. p. 3.
23 Ibidem, p. 3.
13
componente do Poder Judiciário, existindo juízes civis na sua estrutura, além de juízes
militares. Terceiro, porque desconsidera as particularidades do direito interno, que
fazem da JMU uma instituição histórica, respeitada e admirada, não vulnerando, de
forma alguma, o escopo do sistema internacional de proteção dos direitos humanos,
que é a proteção da dignidade humana.
A JMU cumpre todos os padrões ou estándares internacionais em matéria de
direitos humanos quanto ao devido processo legal, sendo parte do sistema geral de
justiça civil, constituindo um ramo especializado do Poder Judiciário com expertise em
direito militar. Não se trata de órgão militar, de tribunal especial ou de exceção.
A JMU não é uma justiça funcional, que, só julga militares por crimes
relacionados à função militar, denomidados crimes propriamente militares. O Código
Penal Militar, por remissão constitucional, tipifica crimes propriamente militares, que
podem ser considerados funcionais, pois só podem ser cometidos por militares em
serviço ativo, mas também tipifica crimes impropriamente militares, que podem ser
cometidos tanto por militares quanto por civis, que são crimes comuns em sua
natureza, mas qualificados como militar por algumas das circunstâncias previstas no
art. 9º do CPM.
Nesse sentido, é necessário manter a competência da JMU para o julgamento
criminal de civis. Essa conclusão não muda com a promulgação da novel Lei nº
13.941/2017, que ampliou a competência da JMU, inclusive para o julgamento de civis.
Isso porque tal competência continua sendo restritiva e excepcional, ocorrendo tão
somente nas hipóteses descritas nas alíneas do inciso III do art. 9º do Código Penal
Militar.
Contudo, aproveita-se o ensejo para defender que é preciso evoluir na
regulamentação do tema, entendendo-se que militares da ativa, vinculados ao Poder
Executivo, como são os juízes militares membros dos Conselhos de Justiça, não podem
participar desse julgamento, sob pena de violação dos princípios da independência e
imparcialidade objetiva. O julgamento deve ser atribuído monocraticamente ao juiz civil
e concursado que integra os Conselhos de Justiça, cujo cargo é denominado,
atualmente, juiz-auditor.

14
Os Conselhos de Justiça, órgão de primeira instância da JMU, são constituídos
na forma de escabinato, isto é, um órgão híbrido, formado pela reunião de um juiz
togado civil e quatro militares da ativa. Justifica-se que magistrado civil utiliza de seu
conhecimento jurídico e os militares de suas vivências de caserna, mormente com os
valores éticos que são próprios da sociedade militar, especialmente a hierarquia e
disciplina, bens jurídicos basilares protegidos pelo Direito Penal Militar. Entretanto, o
acusado civil não está sujeito à hierarquia e à disciplina militares. Não podem esses
princípios justificar que, em tempo de paz, possam ser julgados por um conselho
majoritariamente militar.
Militares em serviço ativo não podem ser julgadores de civis acusados da
prática de crimes praticados contra as próprias forças armadas de que são membros,
porque isso prejudicaria a imparcialidade e a independência que deve ter o julgador, a
ser objetivamente demostrada, não deixando margem para qualquer dúvida ou
desconfiança do jurisdicionado ou da sociedade.
O julgamento do acusado civil, perante a JMU, deve ser realizado
monocraticamente pelo Juiz-Auditor, pois não tem qualquer vinculação com as forças
armadas, que é a instituição diretamente interessada na solução da causa, por ter tido
bens jurídicos eventualmente violados pela conduta do acusado.
Conforme bem pontuado por Frederico Magno de Melo Veras:
Ao contrário dos ministros do STM advindos das Forças Armadas, porém vitaliciados e
integrados ao Poder Judiciário, os Oficiais que compõem os Conselhos de Justiça na
primeira instância, pertencem ao Poder Executivo. Situação que cria nítidos
questionamentos jurídicos sobre a possibilidade destes julgarem civis. Dentre estes, o
seguinte: em se tratando de crime impropriamente militar, como poderá o juiz militar
conter a tentação de dar veredito parcial a um civil acusado de atingir justamente bens
jurídicos afetos ao Poder Executivo? Ilusório imaginar que, e.g, um oficial suplente,
acionado uma única vez no trimestre para o julgamento de um caso importante (e não
são todos os casos penais importantes?), possa entender o significado mais profundo
do estatuído no artigo 36, §2º, do CPPM (“No exercício das suas atribuições, o juiz não
deverá obediência senão, nos termos legais, à autoridade judiciária que lhe é
superior”).24

Essa tese foi acolhida em voto proferido no Habeas Corpus (HC) 112848,
afetado ao conhecimento do Plenário do STF e pendente de julgamento, no qual é

24 VERAS, Frederico Magno de Melo. Julgamento monocrático de civis na JMU. Disponível em


<http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/compmono-fred.pdf>. Acesso em 20/07/2016.
15
questionada a competência da JMU para julgar um civil processado pela prática de
crimes militares. O Ministro Gilmar Mendes manifestou seu entendimento sobre o tema
propondo que seja dada interpretação conforme a Constituição Federal (sem redução
de texto) aos artigos 16 a 26 da Lei 8.457/1992 (LOJM), para que o civil seja julgado
pelo juiz-auditor e não mais pelo Conselho de Justiça.
O ministro considerou que, diante da situação excepcional, permite-se a
submissão de civis à Justiça Militar, mas não com a atual sistemática, considerando
pertinente o argumento de que falta independência e imparcialidade aos Conselhos de
Justiça, compostos por um juiz togado (o juiz auditor) e por quatro oficiais que atuam
temporariamente como juízes militares. Segundo afirmou, “O militar-juiz integrante do
Conselho Permanente da Justiça não é protegido pela inamovibilidade e permanece
sujeito ao comando constante de seus superiores hierárquicos. A jurisdição
independente e imparcial pode restar claramente comprometida” 25.
Nessa diretriz, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 7683/2014,
por iniciativa do Superior Tribunal Militar (STM), atribuindo competência para
julgamento do acusado civil ao juiz auditor, monocraticamente, e, mais do que isso,
determinando que a este também caberá o julgamento de militares, quando forem
acusados de cometimento de crime militar juntamente com o civil no mesmo processo 26.
O STM formulou a seguinte justificativa para apresentação do projeto de lei,
nesse ponto:
Nesse contexto, destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do
julgamento dos civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça,
para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a Justiça Militar da União não julga
somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei,
praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão
sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e,
consequentemente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares.

Portanto, independentemente da aprovação da proposta de alteração legislativa


supracitada, deve ser realizada uma interpretação conforme a Constituição e aos

25 Notícias STF de 18/02/2014. Decisão sobre competência para julgar crimes contra militares que
exercem função policial caberá ao Plenário. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=260601>. Acesso em 10/06/2016.
26 Projeto de lei - PL 7683/2014, em curso na Câmara dos Deputados. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=618560>. Acesso em
28/07/2016.
16
tratados internacionais de direitos humanos, para que, em resguardo da independência
e da imparcialidade objetiva, o julgamento de civis na JMU seja realizado pelo Juiz-
Auditor monocraticamente, o qual tem melhores condições de apreciar com justiça,
independência e imparcialidade a conduta do acusado civil, por ser um sujeito
processual desinteressado na solução da causa.

8. Referências.

GIBSON, Michael. International Human Rights Law and the Administration of Justice
through Military Tribunals: Preserving Utility While Precluding Impunity. In Journal of
International Law & International Relations, vol. 4, núm. 1 (2008). Disponível em:
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