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AS TRANSFORMAÇÕES DO
FRANCISCANISMO POSCONCILIAR
Thaddée Matura *
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Traduzida da Selecciones de Franciscanismo, 101, 2005.
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AS TRANSFORMAÇÕES DO FRANCISCANISMO POSCONCILIAR
A GUISA DE INTRODUÇÃO
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da minha itinerância, vivi certas experiências internacionais (Taizé durante
oito anos) e conheci, através de numerosos contactos, a vida franciscana sob
as mais variadas formas e na maior parte dos continentes.
Ao longo da minha vida franciscana, vivi, primeiramente, uns vinte anos
de formação no contexto conventual clássico e muito observante. De seguida
tive a ocasião e a possibilidade de participar activamente na criação de frater-
nidades (Taizé durante oito anos; Grambois, vinte anos), onde se nos deu a
liberdade de pôr em marcha o que nós acreditávamos ser o projecto francis-
cano autêntico, adaptado ao nosso tempo. Este empenho esteve acompa-
nhado de uma reflexão constante, fundada sobre o estudo das fontes francis-
canas, da história da Ordem, do fundamento evangélico do movimento e do
seu lugar no conjunto da vida religiosa. Estas reflexões e investigações foram
partilhadas com outros: frades em formação, público variado; fizeram-se cur-
sos e sessões e publicou-se à volta de uma dezena de livros de temática fran-
ciscana, traduzidos em várias línguas 1 .
Quando a Ordem, seguindo as orientações do Concílio se empenhou no
seu “aggiornamento”, para “voltar às fontes”, fui chamado, com outros
irmãos, a colaborar como perito em três Capítulos gerais, trabalhando para
esta renovação (Assis, 1967; Madrid 1973; Assis 1976) e em trabalhos de
várias comissões que se seguiram. As transformações de que vamos falar,
foram vividas por mim como testemunha e actor, sem deixar de nelas parti-
cipar até aos dias de hoje. Certamente que a minha maneira de as ver e des-
crever, está marcada por convicções e opções que não se impõem e que não
são forçosamente partilhadas por todos. A apresentação que se segue não
pretende uma objectividade perfeita, nem isso seria possível, e poderia ser
feita e interpretada de outra maneira. Só desejo contribuir na busca e reflexão
que é proposta a todos.
O que me moveu a empreender este trabalho de reflexão e de redacção,
foi a necessidade de fazer um balanço pessoal do meu compromisso francis-
cano, dos seus fundamentos, da sua evolução e de contribuir assim com um
ponto de vista, com um testemunho, no debate em curso sobre a identidade
franciscana hoje 2 . Começarei por apresentar o contexto geral: situação do
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1
Le project évangélique de François d’Assise aujourd’hui, Cerf, Paris 1977 ; Dieu le Père très
saint, Ed. Franciscaines, Paris 1990; Prier 15 jours avec François d’Assise, Nouvelle Cité, Paris,
1994 ; François d’Assise, « auteur spirituel », Cerf, Paris 1996 ; François d’Assise, maître de vie
spirituelle, Ed. Franciscaines, Paris 2000 ; Identità fracescana ieri i oggi, Pazzini, Ed., Verucchio
2002 ; Chiara et François d’Assise, Ecrits (Trésors du christianisme), Cerf, Paris 2003.
2
Que eu saiba, ainda não se tentou um estudo global das metamorfoses do projecto franciscano
ao longo da segunda metade do século XX. Para um ponto de vista crítico sobre a situação da vida
franciscana hoje, consulte-se os artigos de Lluis Oviedo, publicados nas Selecciones de
Franciscanismo: El declive del franciscnismo en Occidente, 29 (2000) 88-106; Misión
evangelizadora y carisma, 30 (2001) 249-265;
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mundo e da Igreja nos anos conciliares. Depois uma descrição do estado da
família franciscana nos tempos do concílio; as investigações e as petições de
base; a etapa oficial da renovação. Na conclusão vamos fazer a valoração e
apresentar os desafios que sugerem as transformações realizadas.
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cristãos, da responsabilidade de todos na sua superação, exprimia-se no
ecumenismo, representado pelo Abade Couturier e o Cardeal Bea, e abriu
caminhos de oração, de arrependimento, de contactos e de amizade. O
impacto destas correntes sobre a vida religiosa, colocava a esta múltiplas
questões e convidava-a a verificar os seus fundamentos e as sua práticas.
Esta rápida e incompleta apresentação do que preparou e produziu o
Concílio está esboçado como pano de fundo de renovação que afectará a
família franciscana formada de homens e mulheres que, mesmo involunta-
riamente, não se podiam ignorar as interpelações que eram colocadas a todos
os cristãos católicos. Não sendo uma ilha, mas parte de um corpo, devia
abrir-se ao que era uma graça de “metanoia”, de conversão e mudança.
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canónicos concibiavam e buscavam apaziguar, naquele tempo, os conflitos
entre os espirituais e a comunidade, respeitando a letra da regra e traçando as
linhas condutoras, precisando as observações morais da observância: 25 pre-
ceitos da regra obrigavam os irmãos “sub gravi”. No concreto, as prescrições
mais importantes eram relativas à pobreza comunitária e individual. Procura-
vam exprimir a originalidade da vida franciscana ao afirmar que não era a
Ordem a proprietária dos conventos, mas a Santa Sé; os irmãos não podiam
usar dinheiro e estavam obrigados a observar estritamente as prescrições
referentes ao vestuário.
Há que admirar tal fidelidade a uma tradição longa de sete séculos,
objecto de tantos combates, ponto de partida e referência de todas as refor-
mas que marcaram a história da Ordem. Mas, quando esta base jurídica,
sempre válida em princípio e obrigatória, se ensinava e era proposta na for-
mação, na prática não correspondia à verdade. Com efeito, mais ou menos
depois da revolução francesa, vivia-se de regimes, de expedientes e dispen-
sas, tais eram as mudanças das condições socioeconómicas e culturais. A
Regra, professada quando se entrava na Ordem, já não era observada com
sentido literal, permanecendo um ponto de referência inatingível, um apelo,
uma espécie de má consciência. A primeira formação construía-se sempre,
ou quase exclusivamente, sobre comentários que mal saíam do quadro jurí-
dico e casuístico das Declarações que nunca eram discutidas.
A tomada de consciência do problema não era experimentado por todos
da mesma maneira. A valorosa intervenção de H. Holzapfel no Capítulo
geral de 1915 não teve qualquer eco 4 . A Ordem, em pleno vigor numérico,
sentia-se forte, sem que fossem clarificados os fundamentos do seu carisma e
a relação com o projecto de vida das origens. Sem ser demasiado medíocre
ou decadente, a vida continuava, levada por uma referência geral à figura do
fundador e ao seu carisma, na expectativa, mais ou menos consciente, de
uma graça, de um despertar.
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explicitamente os religiosos a uma renovação bem fundamentada, em pri-
meiro lugar sobre “o retorno constante às fontes de toda a vida cristã e à ins-
piração originária dos institutos e a uma adaptação destes às novas condições
do tempo” (Perfectae caritatis, 6). O “retorno às fontes de toda a vida cristã”
era o objectivo central proposto a todos os membros da Igreja pelas correntes
de renovação antes mencionadas. Grupo religioso e espiritual particular, her-
deiro de uma grande tradição, os franciscanos de todas as categorias eram
convidados a interrogar-se sobre a inspiração original do seu movimento e
sobre a maneira de exprimi-lo no mundo actual.
Ora bem “esta inspiração das origens” era objecto, depois de mais de
meio século, de numerosas e importantes investigações históricas. A figura
de Francisco, as origens e o projecto de fraternidade que se formou à volta
dele, foram estudados segundo os métodos históricos modernos, sobretudo,
sob a pressão dos estudos de Paul Sabatier, sem esquecer o livro do P. Gra-
tien de Paris sobre o franciscanismo do primeiro século 5 . Ao mesmo tempo
para além da imagem, cada vez mais precisa de Francisco e de sua obra que
deu origem a inumeráveis biografias, o interesse foi transferido gradualmente
para os escritos de Francisco, que conheceram, no princípio no século XX,
duas edições críticas (Boehmer e Lemmens).
Reconhecendo a importância capital destes escritos para compreender o
teor do projecto evangélico de Francisco, durante muitos anos, os historiado-
res centraram as suas investigações sobretudo nos relatos biográficos, nas
relações entre eles e no contraste que eles ofereciam da imagem de Fran-
cisco. Esta era a problemática da chamada “a questão franciscana”. Nos anos
40 do século passado os estudos começam a concentrar-se lentamente nos
escritos. Apareciam, então, em França, as primeiras edições bilingues, latino-
-francês, dos “opúsculos de S. Francisco” (1945), publicados pelo D. Vor-
reux. Utilizando as fontes biográficas, a partir de então, os estudos darão
cada vez mais relevo à visão de Francisco que os seus diversos escritos,
fragmentários mas ricos, sugerem. A revista dos irmãos menores franceses,
Cahiers de Vie Franciscaine, depois Evangile aujourd’hui, assim como a
revista de vanguarda, Frères du monde, serão as porta-vozes desta corrente,
representada por figuras como Eloi Leclerc, (autor da Sabedoria dum pobre,
que se tornou um clássico espiritual), T. Desbonnets, D.Vorreux, I.E. Motte,
F. De Beer, Hervé Chaigne. Este mesmo grupo está nas origens dos Docu-
ments, a primeira colecção das Fontes Franciscanas do século XIII (1968) e
modelo para as edições que se seguiram noutras línguas. Em relação à vida
franciscana, fundada na observância escrupulosa da Regra, os seus promoto-
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5
Histoire de la fontation et de l’evolution de l’Ordre des Frères Mineurs au XIII siécle, 1921,
reédition, Roma 1982.
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res superavam o aspecto jurídico e casuístico e proponham uma leitura global
das intenções e propostas de Francisco. A publicação de uma colecção de
livros, Presença de São Francisco, que será aproveitada por outros países,
como Itália e Espanha, abria à família franciscana e a um público mais vasto,
perspectivas novas e estimulantes para a sua actualização.
De facto, a renovação teórica será acompanhada, a partir dos anos 60,
pouco mais ou menos, por um movimento de “pequenas fraternidades”. Ins-
piradas nos padres operários e pelos irmãos de Carlos de Foucauld, grupos de
três ou quatro irmãos buscavam, numa inserção humilde e pobre no mundo
do trabalho assalariado, viver o ideal franciscano das origens. Esta experiên-
cia, sobretudo francófona (França, Bélgica, Québec), terá também as suas
repercussões na Holanda, Itália e Espanha. Segundo as estatísticas da época,
cerca de 750 frades fizeram esta experiência 6 . Mesmo se este movimento se
apagou passado uma vintena de anos sem criar estruturas novas, marcou, nos
países onde floresceu, o conjunto da vida franciscana, tanto masculina como
feminina. Deixou marcas, em primeiro lugar, pelo lugar privilegiado conce-
dido à vida fraterna, pela opção de um trabalho assalariado como primeiro
modo de subsistência, pela forma de presença humilde e fraterna no meio do
mundo e também por uma certa desclericalização.
O que se passava em França, tinha um paralelo na Alemanha à volta da
figura do P. Caetan Esser (1913-1978), um pioneiro franciscano, o primeiro a
apresentar um tese de doutoramento sobre um escrito de S. Francisco, o
Testamento (1998) 7 . Este homem soube conciliar o trabalho universitário
com o interesse e empenho pela renovação franciscana. Disso dão testemu-
nho as numerosas publicações, entre elas uma nova aproximação à leitura e
interpretação da Regra 8 , que é uma espécie de manifesto sobre a natureza e
missão da Ordem 9 . Mais tarde publicou um estudo profundo sobre “As ori-
gens e os objectivos” da primeira fraternidade 10 . Com os colaboradores
Engelbert Grau e Lothar Hardick, será autor de muitos livros, traduzidos nas
principais línguas europeias. Mais tarde vai receber da Ordem o encargo de
publicar uma edição crítica dos escritos de Francisco, realizada em 1976.
Se nesta minha descrição privilegiei os dois centros de renovação teó-
rica e prática, França e Alemanha, é porque eu estive muito próximo deles e
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6
MATURA, Th, Une évaluation théologique de l’ experience des nouvelles fraternités del’Ordre,
em Vie des Communautés religieuses 37 (1979) 343-359.
7
Sobre a vida e obra de Kaetan Esser, cf. SCHNEIDER, H., Kaetan Esser OFM – Leben und Wir-
ken, Mönchengladbach, 1998.
8
La Règle défifintive des Frères Mineurs à la lumière des récentes recherches, Metz, 1965.
9
L’Ordre de Saint François, son esprit, sa mission (Présence de St. François), Ed. Franciscaines,
Paris, 1957.
10
Origines et objectifs primitifs de l’Ordre des Frères Mineurs, Ed. Franciscaines, Paris,1983.
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me marcaram muito mais. Mas é justo mencionar outras personalidades que
se empenharam sobretudo no ensino em Roma (no Centro de espiritualidade
do Antoniano) e noutras faculdades e que contribuíram com seus trabalhos
para um conhecimento do projecto franciscano e proporcionaram uma base
sólida ao seu renovamento. Menciono os nomes de Optatus van Asseldonk,
Octaviano Schmuki, Lázaro Iriarte, a equipa espanhola das Selecciones de
Franciscanismo, S. López, J. Garrido, G. Boccali, G. Lauriola, M. Conti,
assim como outras revistas internacionais 11 .
No tempo do pós-guerra até aos dias do Concílio, houve uma eferves-
cência, primeiro intelectual, que deu origem a uma leitura renovada das fon-
tes franciscanas, seguido pela descoberta do valor central dos escritos de
Francisco, convertidos, pouco a pouco, em critério de interpretação de outros
textos. Aos irmãos que se interessavam por esta problemática colocavam-se
questões concretas sobre a identidade franciscana e sobre a sua expressão no
mundo moderno. O quadro habitual das observâncias, muitas das quais já
não eram praticadas, já não interessavam, quando se procurava o essencial da
vocação. Mas, qual era o essencial? Os responsáveis, Ministros gerais e
Capítulos, estavam conscientes disso e deram passos, nos quais todos foram
convidados a tomar parte.
4. ETAPA FINAL
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nhos e conventuais. Além duma intervenção de R. Etchegaray, então secretá-
rio do episcopado francês, foi, sobretudo, a conferência de C. Koser sobre “a
regra dos frades menores à luz das recentes investigações”, que mais chamou
a atenção de todos e suscitou numerosos debates e trabalhos de grupos. As 17
Províncias presentes no congresso (francesas e alemãs) decidiram convocar
um congresso, que prepararia um “documento espiritual sobre a vida dos fra-
des menores”. Este documento apresentaria os traços fundamentais do pro-
jecto franciscano primitivo, dos quais resultariam textos fundamentais e pro-
poria pistas para a sua actualização no mundo contemporâneo. A comissão
reuniu-se um ano depois (1-15 de Agosto de 1966) em Exaten (Holanda). C.
Koser, então Vigário geral, esteve presente com dois dos seus definidores.
Foram apresentados, estudados e discutidos, três projectos de “documento”,
elaborados antes por Francis de Beer, Thaddée Matura e Sigismundo Verhey.
Os três tinham a mesma perspectiva fundamental e a mesma estrutura.
Tinham como base um conjunto de textos de Francisco e os apelos do século
XX, para apresentar um testemunho e uma resposta franciscana. O grupo
presente escolheu como instrumentum laboris o texto de Matura que, sob a
forma de um manifesto, mais que de um estudo, respondia melhor ao objec-
tivo examinado. Reelaborado pela comissão, este documento foi enviado à
comissão central da Ordem, que preparava o Capítulo geral de 1967 12 .
Este Capítulo que teve uma duração excepcional (de 4 de Maio a 17 de
Julho), teve como tarefa principal a redacção das novas Constituições Gerais,
que deviam responder à exigências do Concílio: “retorno às fontes de toda a
vida cristã e à inspiração original, adaptada aos tempos modernos”. Este
retorno, como vimos, estava na base das investigações e das variadas expe-
riências dos irmãos. O texto de Exaten não foi tomado como texto espiritual
considerado para preceder aos artigos mais jurídicos das Constituições, mas
vamos encontrá-lo no Capítulo de Madrid. A redacção das Constituições foi,
em certo sentido, uma verdadeira revolução legislativa. Abandonando a
longa tradição de se referir às Declarações Pontifícias para interpretar a
Regra (Paulo VI tinha dado o seu acordo a 2 de Fevereiro de 1970), elas
declaram que “nenhum elemento da regra está abrogado… todos devem ser
compreendidos em relação ao conjunto da nossa vida e postos em prática
segundo o espírito de S. Francisco” (art. 1, 3). É iniciada uma certa descleri-
calização no art. 206, que declara, em termos gerais, que “todos os irmãos
solenemente professos são aptos para os ofícios e cargos da Ordem”. Pela
primeira vez, a versão 37 das Constituições na história da Ordem, abandonou
o esquema dos doze capítulos (os da regra), para propor um articulado por
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12
A história e os trabalhos desta comissão foram apresentados em: KOSER, K. E GRAU, em
Franziskanisches leben, Gesammelte Dokumente, D. Coelde, Werl 1968.
14
temas: Fundamentos da Ordem; Vida de Oração; Vida fraterna; Pobreza;
Vida apostólica. A redacção 38 (1985), vai conservar a mesma disposição,
integrando os textos chamados espirituais no interior dos diversos artigos.
Em relação às anteriores Constituições, respira-se outro ar. A parte jurídica
está impregnada de múltiplas citações de textos de Francisco; o vocabulário
também muda: o termo “religioso” cede o lugar, em todas as partes, ao de
“irmão”. No que se refere à pobreza, persiste, no entanto, uma certa ambi-
guidade. Isto é compreensível, quando se relaciona com o passado da Ordem,
no qual a renúncia de toda a propriedade e ao uso do dinheiro era conside-
rado como a característica principal da vida franciscana. Se o art. 89 reco-
nhecia que o uso do dinheiro já estava permitido, o art. 81 expremia o desejo
de que a propriedade dos edifícios e dos bens necessários aos frades “perma-
neçam realmente sob o poder… dos benfeitores, da Igreja ou da Santa Sé”, o
que parecia algo muito teórico. As Constituições de 1967, promulgadas em
1973 (Madrid), serão revistas de novo em 1985, revisão que conserva o
essencial do texto precedente, acentuando o seu carácter franciscano. Pro-
mulgadas em 1987, constituem, actualmente, a carta oficial da Ordem e a
interpretação autorizada de sua identidade.
Mas um texto legislativo, pela razão do seu carácter, da sua preocupação
em disposições práticas, da sua extensão, não respondia ao desejo de ter uma
palavra estruturada, resumida, centrada no essencial. Também no Capítulo de
Medellin (1971) se desejava a elaboração de uma “declaração”, uma espécie
de manifesto, que expressasse, em linguagem clara, a “vocação da Ordem
hoje”, isto é a sua identidade. Uma comissão formada por cinco Ministros
provinciais (dois franceses, um holandês, um italiano e um espanhol) e por
três peritos (Espanha, Bélgica, Canadá) redigiu, em Agosto de 1972, em
Voreppe (França), um “Projecto de declaração do Capítulo de 1973”.
Enviado a todas as conferências da Ordem, o texto foi, com a aprovação do
Definitório geral, inscrito na ordem de dia deste Capítulo. Amplamente inspi-
rado no documento de Exaten, foi discutido e adoptado quase à letra no
Capítulo de Madrid (1973) e promulgado com o título “A vocação da Ordem
hoje”. Pela primeira vez na história, um documento oficial da Ordem não era
redigido em latim, mas numa língua viva, o francês 13 .
Estes dois acontecimentos, o Capítulo de Assis (1967) e o de Madrid
(1973), resumem e exprimem, a nível oficial, as transformações e as adapta-
ções pos-conciliares da identidade franciscana. A reestruturação das Consti-
tuições gerais (em 1967 e 1985) fazem-no a nível legislativo-canónico. A
Declaração de Madrid proclama-a num texto de futuro, em relação com a
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As “Acta Capituli Generalis Ordinarii” de Madrid (Roma 1973) contém o material relativo a
esta Declaração.
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situação da Igreja e do mundo, redigido numa linguagem de hoje. No último
quarto do século, outros textos se seguiram, provenientes dos Capítulos
gerais e dos Conselhos plenários que se realizaram, assim como de várias
Comissões que foram criadas (vida contemplativa, missão, formação). Todos
apontam essencialmente para a aplicação prática de muitas propostas con-
cretas. A evolução da Igreja e do mundo fazem aparecer novas perspectivas:
questões da justiça, paz, salvaguarda da criação, inserção nos meios de ver-
dadeira pobreza e nos espaços de grandes rupturas. Mas o projecto de Fran-
cisco, visto em todas as suas dimensões, tal como está apresentado nas
Constituições e Declaração de Madrid, permanece como referência de base.
Os passos descritos até agora, estão centrados sobre a Ordem dos Frades
Menores, mas está subentendido que todos os ramos da família franciscana
fizeram o mesmo caminho de renovação. A Ordem Franciscana Secular
recebeu uma nova redacção da Regra em 1978; a Terceira Ordem Regular,
cerca de 200.000 religiosos, recebeu a sua em 1982; Os Conventuais aprova-
ram as suas Constituições Gerais em 1984, os Capuchinhos em 1986 e as
Clarissas em 1988. Estas expressões legislativas foram sempre precedidas
por um esforço de assimilação do projecto evangélico de Francisco e Clara.
5. AVALIAÇÃO E DESAFIOS
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Quanto a uma visão nova da identidade, é necessário reconhecer que
está marcada por uma ampliação e por uma renivelação. A sua principal refe-
rência não é só a “Regra Bulada”, mas à proposta evangélica global, expressa
pelo conjunto de escritos de S. Francisco e ilustrada pela sua vida. Esta é
uma visão estruturada, equilibrada. As Constituições e a Declaração de
Madrid apresentam-na centrada à volta de quatro pontos principais: evange-
lho, vida de fé, fraternidade, pobreza e menoridade. A missão dos irmãos,
seu “apostolado” principal, consiste fundamentalmente na realização comu-
nitária destes valores, na Igreja e no mundo. Todos os textos oficiais que se
seguiram, até chegar ao Capítulo de 2003 14 , repetem estes pontos, quase na
mesma ordem. Em resumo, trata-se de um sistema, um conjunto, que não é,
no entanto, um todo autónomo, nem muito menos um acrescento, mas um
meio humilde para aceder melhor à sua plenitude.. Hoje, sobretudo, neste
debate do século XXI, onde o que se põe em causa não são os aspectos
secundários do dado cristão, mas a própria fé em Deus e na sua vinda ao
mundo, o projecto franciscano, concebido desta maneira, apresenta-se como
um convite à experiência de fé, sem a qual não nem significado nem qual-
quer forma de realização.
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excepções, se viveu num quadro traçado pelas Declarações Pontifícias, às
quais as reformas mais radicais acabaram sempre por respeitar. Estas Decla-
rações, dificilmente compreensíveis nos dias de hoje por causa da sua lingua-
gem e de suas perspectivas puramente jurídicas, não ofereciam, contudo, um
caminho moderado que impedia cair na utopia. A modernidade que começa com
o iluminismo, esvaziou-as pouco apouco do seu significado, obrigando a
Ordem a deixá-las, depois de dois séculos de contínuas dispensas.
Na verdade, seríamos culpados de nos quedar exclusivamente nas
peripécias ideológicas e práticas, ligadas, sobretudo, à questão da pobreza, de
suas interpretações e de suas práticas. O dinamismo evangélico que marcou a
vida de Francisco e que é testemunhado nos seus escritos, tinha um conteúdo
muito mais amplo e profundo. Recolhia e expressava o que há de mais cen-
tral na Boa Nova de salvação: exigência inesgotável e universal do amor
mútuo, conhecimento de si como um ser de grandeza e de pobreza radical.
Estes valores centrais foram transmitidos e vividos na e pela família francis-
cana através dos séculos. Disso são testemunha tantas figuras admiráveis de
homens e mulheres, de místicos, de teólogos, de filósofos, de homens de
acção, como também o fascínio que exerce sempre o caminho franciscano
sobre os homens de todos os tempos. Difuso, pouco estruturado, um pouco
apagado e quase medíocre, o movimento franciscano não tem hoje uma pre-
sença espectacular, não figura nos primeiros planos da actualidade religiosa,
mas continua em todo o lado “menor e sujeito a todos…”.
Para concluir este ponto, acrescentemos que a insistência, quase exclu-
siva, sobre as origens e, sobretudo, sobre os escritos de Francisco, relegou
para segundo plano o estudo e o conhecimento da tradição franciscana poste-
rior: as correntes e as figuras do período escolástico assim como a história do
movimento, o que realmente é de lamentar. Esta história que é verdadeira,
rica, complexa e diversificada, não é de fácil acesso. Mas, depois da desco-
berta da fonte do primeiro manancial – as origens –, é necessário embarcar
no caudal que se lhe seguiu, para estudar as riquezas e as pobrezas desta
longa corrente e tirar daí as lições para a nossa conduta e nossos projectos
actuais.
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grarmo-nos pelas primeiras. A nossa força principal, a graça deste tempo, é,
segundo a minha opinião, a visão renovada, completa e harmoniosa que
temos da identidade franciscana. Aproveitando a renovação trazida pelos
estudos históricos e espirituais sobre as origens franciscanas e sobre as varia-
ções e interpretações do carisma ao longo dos séculos, creio que agora per-
cebemos melhor o conjunto do projecto, tal como foi concebido e o expres-
sou Francisco. Há um paralelo que devemos fazer entre os estudos e as pro-
postas do Concílio no âmbito da fé cristã e a visão renovada da nossa voca-
ção, que não é abandono duma tradição, mas construção duma tradição mais
profunda. Agora situamos o projecto de Francisco numa perspectiva muito
mais ampla, mais próximo de toda a riqueza do evangelho e não só de algum
ponto da sua mensagem. Sobretudo reconhecemos que este projecto, por
muito rico e equilibrado que seja, não é um super-evangelho que nos eleva
acima da perfeição cristã. O que faz é introduzir-nos na aventura da fé, sem-
pre dispostos a recomeçar. Jamais, no decurso da nossa história, tivemos uma
luz tão clara sobre a nossa identidade evangélica. Pode ser que neste
momento difícil que todos estamos chamados a viver, este seja uma espécie
de viático, de pão para o caminho, para nos comprometermos, com força e
determinação, nos caminhos desconhecidos que se abrem no horizonte.
Na medida em que a mensagem evangélica, transmitida por este pro-
jecto, nos tenha reunido, convertido e transformado interiormente, e tenha
feito de nós “servidores de Deus”, irmãos de todos, pequenos e pobres, pro-
curaremos, com imaginação e perseverança, como exprimir e encarnar estes
valores de uma forma visível, a nível individual e comunitário, neste mundo
a iniciar o terceiro milénio. É necessário confessar que a descoberta teórica
da nossa identidade ainda não foi correspondida com aquilo a que podería-
mos chamar uma recuperação, uma “reforma”. Não que faltassem as tentati-
vas: as “pequenas comunidades” dos anos 60-80 do século passado; o movi-
mento mais ou menos acertado do retorno aos eremitérios; nestes últimos
anos, a busca pelos irmãos mais jovens de uma inserção nos meios pobres e
da “itinerância”. Também houve algum retorno à observância literal da regra
segundo o estilo antigo, como reacção à evolução geral, mas sem muitos
seguidores. Não será isso sinal de que a renovação concreta não se deve pro-
curar no retorno às observâncias do passado, mas em expressões e atitudes
interiores propostas pelo projecto, em formas mais adequadas ao mundo de
hoje? É um problema complexo, quando se trata, sobretudo, da propriedade,
do dinheiro, das casas, do modo de vestir, dos meios de subsistência, da vida
comunitária e da missão.
Levamos a nossa força – o formoso projecto evangélico – em “vasos de
barro”. A vivência de fé no mundo de hoje, não é brilhante e nós sofremos os
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contragolpes dessa situação. Desde que foi reelaborado o nosso projecto de
vida, apesar de ter sido bem acolhido e vivido, o grupo não mais deixou de
diminuir, pelo menos no mundo ocidental. O envelhecimento, a diminuição
do número de candidatos, as numerosas saídas, o encerramento de casas, o
desaparecimento de províncias, provoca a perda de visibilidade e enfraque-
cimento, se não mesmo o desmoronamento do que ainda restava das obser-
vâncias indispensáveis à vida comunitária e sua visibilidade. A nossa pre-
sença e a inserção inevitável nas estruturas da sociedade, “mundanizaram-
-nos” no sentido mais prejurativo, provocando o individualismo.
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15
Este é o tema do conjunto de estudos publicados pelo Instituto Franciscano de espiritualidade
do Antoniano de Roma, sob o título Minores et subditi omnibus. Tratti caratterizzanti dell’identitá
francescana, Roma, 2003.
20
PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS FRANCISCANOS
PARA O DIÁLOGO
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Conferência proferida na Semana Interprovincial, Madrid, 2004.
21
PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS FRANCISCANOS PARA O DIÁLOGO
22
herança. As Constituições Gerais vigentes recuperam este tema no Título II
do capítulo dedicado à evangelização (cf. art. 89,1). Desde o Concílio Vati-
cano II que se intensificou a atenção dada a este tema e se assumiram formas
concretas e institucionalizadas, que vale a pena recordar: desde 1986 que
celebramos o assim chamado “espírito de Assis” e se abriram caminhos de
diálogo e colaboração com iniciativas locais para responder a situações con-
cretas (Comunidade de Santo Egídio, Focolorini, contactos com monges
induístas – Bangalore – e budistas – Tailândia – … etc). A queda do muro de
Berlim (1989) alentou a convicção de que devemos centrar a atenção no
diálogo ecuménico, particularmente com o mundo ortodoxo, tendo havido
contactos com o monaquismo russo para um conhecimento mútuo, de
maneira especial a través do testemunho de santidade que nos deixaram pes-
soas relevantes tanto ortodoxos como católicos. Além disso surgiram outros
projectos como Rússia-Kasaquistão (1994), Istambul (1995 com uma comu-
nidade desde 2003), Belgrado (1997), Bucareste (1999)… E não se devem
omitir as iniciativas de diálogo que fazem Congregações franciscanas, mas-
culinas e femininas, de diversas confissões cristãs (anglicanas e luteranas…).
Recordamos o Instituto de estudos Ecuménicos S. Bernardino, em Veneza,
que funciona desde 1981 e o “Serviço para o Diálogo” que a Cúria Geral
instituiu em 1996 com a finalidade de suscitar e fomentar uma nova mentali-
dade e sensibilidade entre os irmãos, e que funciona com três comissões para
os sectores ecuménico, interreligioso e das culturas.
O diálogo é uma necessidade para o cristão, em vista à sua abertura ao
mundo sem preconceitos. Impõe-se pela sua própria dignidade e vocação. É a
sua capacidade de reflexão, a razoabilidade e o pluralismo que pede abertura
aos contributos dos outros. O diálogo é um serviço ao mundo e, por isso,
deve ter uma base teológica (fontes de teologia), uma base antropológica
(ciências, como mediação teológica), sem confundir nem pôr de parte as suas
próprias perspectivas: realismo, sensatez, capacidade de abertura, autentici-
dade… O diálogo realiza-se entre a busca humana e a revelação cristã, que
oferece, entre outras, estas dimensões:
- antropológica, pois que a teologia passa necessariamente pela
humanidade. Em virtude da Encarnação, abre-se às culturas e reli-
giões, reconhecendo-as como irmãs, para criar um espaço em que
todas caibam, em vista à plenitude do reino, cujo o testemunho e
porta-voz é Jesus Cristo. Tudo são dons da bondade de Deus, que os
distribui a todos por igual segundo a sua vontade e reflexo e participa-
ção da sua Pessoa, pois Jesus Cristo é origem, caminho e meta. Por
isso trata-se mais de teologia que de antropologia, relação de amor que
Deus estabeleceu com todos pelo Espírito Santo;
23
- evangélica: o centro da experiência cristã é Jesus Cristo morto e
ressuscitado; o mais urgente na actualidade é recuperar o centro de fé,
que é a cruz e a ressurreição de Jesus Cristo e iniciar um caminho
novo de diálogo sem perder o sentido da pertença cristã e a sua identi-
dade; a base da paixão cristã tem como absoluto a fé em Deus e como
relativo todas as mediações culturais e religiosas.
- comunitária: o cristianismo é comunidade de vida em redor da Palavra
e da Eucaristia;
- dinâmica: pois o amor é compromisso e esperança;
- profética: o cristão é testemunho da transcendência;
- espiritual: pretende a conversão do coração;
- ética: testemunhando a verdade que tem sua própria força, nos campos
como a causa da justiça, a defesa da vida, os direitos humanos e valo-
res que nos trazem as várias culturas, pondo o testemunho de Jesus
Cristo no interior da consciência moral;
- escatológica: vivendo o presente como caminho de libertação orien-
tada para a plenitude.
24
Esta é uma das primeiras expressões do cristocentrismo, o que significa
que o Verbo está na base, centro e vértice de todo o projecto salvador de
Deus. Todo o homem está submetido a um plano salvador de Deus, que está
orientado para Cristo, por quem tudo foi feito e é vida e luz para todos os
homens (cf. Jo 1, 3-4), começo, fundamento e meta de toda a criação. Esta
centralidade de Cristo é o fundamento de que todas as coisas, em especial o
homem, estão relacionadas com Ele. Tudo – também as religiões – estão
orientadas para Cristo, isto é, buscam a salvação, o pleno sentido da existên-
cia, a vida eterna e a comunhão com o Tu absoluto. Para todos Jesus Cristo é
plenitude, resposta e interrogante ao mesmo tempo. O cristianismo não vive
da destruição de outras formas de fé, mas da sua mudança interior, em pro-
fundidade e plenitude, da sua superação na fidelidade a Jesus Cristo.
Por isso, o anúncio de Jesus Cristo constitui o primeiro acto de caridade
para com o homem, para além de qualquer gesto generoso de solidariedade e
o primeiro serviço que a Igreja pode prestar a cada homem no mundo actual,
recordando-lhe as realidades últimas do ser humano. Cristo revela plena-
mente o mistério do homem a si mesmo.
Mesmo reconhecendo tudo o que há de verdadeiro e santo noutras reli-
giões – reflexo daquela verdade que ilumina todos os homens – continua em
pé o dever da Igreja de proclamar sem hisitação a Jesus Cristo, que é o cami-
nho, verdade e vida. À Igreja exige-se acolhimento, diálogo, fraternidade. É
o que significa quando se diz “compartilhar o dom da revelação de Deus
Amor” (cf. 1 Jo 1, 1-4), que tanto amou os homens, que lhes deu o seu Filho
único (Jo 3,16). Aqui tem lugar privilegiado o diálogo de integração, para
que se cumpra o desígnio de Deus: fazer de todos as nações um só povo, der-
rubando muros e barreiras (cf. Ef 2, 11 ss.).
Francisco teve a intuição ou a graça de entender a Deus como Amor que
se revela e se dá no Filho encarnado, que por amor desce até nós, se humilha
e se faz pobre 4 . Jesus cristo é a razão do seu viver, a fonte donde brota a sua
conduta, as actividades que o caracterizam e as suas relações para com todos.
Jesus Cristo é o mediador entre Deus e os homens, criador, redentor, guia e
caminho 5 . Quando descobre Jesus Cristo como revelador do Pai, da sua
divindade e do caminho que leva a Ele, centro da existência cristã, nasce o
homem novo, partícipe da ressurreição e enxertado na vida trinitária. Por
isso, depois de O conhecer, segue-O radicalmente com determinação 6 e do
seguimento de Jesus Cristo, Deus e homem, nasce a sua cristologia. Esta
experiência de fé exprime-a Francisco quando diz: Para viver segundo Jesus
—————
4
Cf. CO 26-37; Ex 1, 22; 1R 23, 7.
5
Cf. 1R 23, 1-4; CO 50-52.
6
Cf. 1R 1, 1-6; 2R 1, 2; 12, 5.
25
Cristo e conhecê-lo como é, pessoa divina, deve-se contemplar no Espírito,
com olhos espirituais, pois ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não
ser no Espírito Santo (1Cor 12, 3), e, seguindo as suas pegadas poderemos
chegar à comunhão com o Pai, que vive e reina em Trindade perfeita e em
simples unidade 7 .Quando aceitamos na fé a Palavra de Deus “construímos
em nós uma habitação e uma morada para Ele, pois que é o Senhor omnipo-
tente”, e o Espírito do Senhor, morando em nós, estabelece relações filiais,
esponsais, fraternais e maternais com as três pessoas divinas 8 . O seguimento
das pegadas de Jesus leva-nos ao Pai, de forma que, imersos no mistério da
Trindade, os discípulos poderão ser “perfeitos na caridade” 9 . A Palavra dá
fruto em boa terra segundo a qualidade e a capacidade de acolhimento que se
lhe dá, e, sendo “espírito e vida”, cria em nós um coração puro e novo, que é
o começo do diálogo ecuménico.
Os seguidores de Francisco, reflectindo sobre esta experiência de vida e
sobre a pessoa de Jesus Cristo, caracterizam-se pela mesma visão cristocên-
trica do mundo. Na sua reflexão sobre a encarnação do Verbo (amor,
pobreza, humildade, debilidade) viram os teólogos franciscanos a comunica-
ção “ad extra” do Sumo Bem, que chama os seres à vida para que sejam
capazes de se unir amorosamente a Ele. Cristo é o primogénito de Deus e
n’Ele são amados todos como filhos adoptivos 10 .
A teologia, para a escola franciscana, não é simples especulação ou
mero pragmatismo, mas verdade que se faz vida, arrasta à contemplação e
leva a Deus. Foi a experiência de Cristo que transformou Francisco, desde a
mensagem que escutou na pequena igreja de S. Damião, até receber as cha-
gas no Monte Alverne. Esta transfiguração em Cristo e por Cristo é o que
torna particularmente atraente a figura de Francisco:
—————
7
Cf. Ex 1, 1-7; CO 52.
8
Cf. 1R 22, 27-40; 2CF 48-56.
9
Cf. Jo 17, 23; 1R 22, 53.
10
Santo António de Lisboa escreve: “O lugar próprio de Jesus é o centro: no céu, no ventre de
Maria, no presépio de Belém, no patíbulo da cruz.” Está no centro de cada coração. Está no meio para
que d’Ele, como centro, saiam todos os raios de graça para nós, que estamos em círculo e nos
movemos à sua volta” (Sermões).
S. Boaventura, meditando sobre o mistério de Cristo, que por condescendência do seu amor
desceu até nós e se fez pobre, humilde, paciente, mistério perante o qual a razão humana se perde, diz
que Cristo é a “pessoa do meio”, na dinâmica da vida trinitária. Une o Pai com o Espírito e o Espírito
com o Pai. Na sua actividade “ad extra”, o Pai cria no e pelo Verbo e reconduz o homem e o mundo
ao seu princípio divino. Além disso, Jesus Homem, é caminho de exemplaridade, isto é, modelo de
vida nova para o homem.
Para Escoto, “Jesus Cristo é o primeiro, centro e fim do desígnio de amor de Deus Trindade a
ninguém subordinado”…”Deus quer de modo ordenado”. Depois de Cristo entram os predestinados
nos desígnios de Deus. Cristo é a obra suprema de Deus (Summum opus Dei).
26
- A oração de Francisco (cf. 2R 23) é a expressão de uma fé sentida e
gozosa: Deus Pai criador, todo-poderoso, o Filho encarnado e reden-
tor, o Espírito que habita e leva à acção de graças. Francisco vê-se a si
mesmo como a parte de um todo, que tanto é a Igreja como a humani-
dade, não um ser isolado;
- A sua relação com a palavra converte-o em ouvinte atento do Evange-
lho. A palavra transforma-o de tal maneira que será o seu guia para
momentos difíceis ou importantes, tais como a opção de vida que fez
por “viver o santo evangelho”, também a vocação e vida dos seus
discípulos se fará à luz do evangelho 11 que Francisco lê de forma
sapiencial, evitando a observância literal, procurando antes a mensa-
gem do Espírito, que lhe sugere gestos proféticos de abertura e diá-
logo…;
- O discernimento de Deus como Pai na Escritura, sugere a Francisco o
modelo de vida para os irmãos; estes formarão uma fraternidade, onde
todos se sintam verdadeiramente irmãos 12 , rejeitando as formas de
vida até então aprovadas pela Igreja 13 . A comunidade franciscana é
uma fraternidade, uma comunhão de irmãos, reunidos à volta de Jesus
que os convida, como aos discípulos, a seguir o exemplo do lava-
-pés 14 , estabelecendo que “nenhum irmão tenha poder ou domínio
sobre os outros…; que por caridade de espírito sirvam e obedeçam
voluntariamente uns aos outros…”; que nenhum se chame prior, mas
que todos se tratem simplesmente por irmãos” 15 . Isso significa que
não há uma hierarquia dentro da comunidade, mas que tudo está ao
serviço da comunhão. O testemunho deste estilo de vida impressiona
membros de outras igrejas quando são acolhidos como hóspedes em
nossas fraternidades. È este estilo de vida que pode oferecer ao mundo
um modelo de igreja mais humano, mais próximo do homem, mais
fraterno, como pedem os novos movimentos religiosos que se afastam
da nossa Igreja. Este modelo pode contribuir para uma comunhão
mais plena entre as igrejas, ao mesmo tempo que nos põe alerta contra
certas formas de relações marcadas pelo estilo de relacionamento
herdado das estruturas hierárquicas das dioceses ou de outras ordens e
que obscurecem as estruturas de tipo fraterno e horizontal e que
impedem a subsidiariedade. A autoridade cristã, que é serviço (Mt 20,
24), tomou as características de domínio, próprias da sociedade civil
—————
11
2C 15; 1C 24; TC 27-29; LM 3,3.
12
Cf. 1R 4.5.6.
13
LP 114.
14
Cf. 1R 6, 4; Jo 13, 14.
15
Cf. 1R 4.5.6.
27
ocidental; hierarquizou-se, dando origem a relações que não são de
ajuda e serviço, (Mc 10, 35), nem de autoridade e obediência filiais
segundo o evangelho (Fl 2, 8). Transformaram-se em relações entre
superior e súbdito.
Tudo isto viveu Francisco:
- na sua relação com a Igreja, à qual prometeu “obediência e reverên-
cia na pessoa do papa e seus sucessores”; solicitou o seu apoio
mediante o Cardeal protector; quis que os seus fossem súbditos e
sujeitos à santa Igreja, firmes na fé católica, guardando a pobreza, a
humildade e o santo Evangelho de Jesus Cristo 16 , venerando os sacer-
dote “não tanto por eles mesmo, mas pelo ofício e porque administram
o corpo e sangue de Cristo” 17 .
- nas atitudes que tomou para com os homens e os hereges. Sentindo-se
irmão de todos, pede aos irmãos que “vivam e falem catolicamente”,
que perseverem na verdadeira fé e na penitência, pois ninguém pode
ser salvo de outra maneira 18 . Exorta a todos para que vivam a plena
comunhão de fé e obras com a Igreja católica e apostólica, mostra-se
particularmente severo para com os que se desviam da verdadeira fé e
pede que evitem disputas com os hereges e que respondam com santi-
dade de vida 19 . Nisto inspira-se nas bem-aventuranças: “Quando vão
pelo mundo, não litiguem, nem questionem, nem censurem os demais;
mas sejam mansos, pacíficos e modestos, sossegados e humildes, e a
todos falem honestamente, como convém” 20 . E sobre os
comportamentos que devem ter entre si quando andam pelo mundo:
“Primeiro é não abrirem debates nem discussões, mas mostrarem-se
submissos a toda a humana criatura por amor de Deus e confessarem
que são cristãos. O outro modo é que, quando julgarem ser de agrado
do Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam no Deus
omnipotente…” 21 .
28
mundo. Foi a resposta ao convite para reparar a casa de Deus. A sua conver-
são é reconciliação com Deus, Pai e Criador e com todas as criaturas, irmãs,
em cujo seio os irmãos são “menores”, com o clero e os infiéis… Por isso,
promove a paz entre o falcão e o lobo 23 ; os irmãos são enviados a anunciar a
paz e a penitência, até como saudação 24 , essa paz que é Cristo (Ef 2, 14). A
saudação da paz, recebida do Senhor, era comunicação do que recebeu (paz,
reconciliação, conversão). Anúncio de paz e salvação, não só com a palavra,
mas tornando visível o rosto de Deus com o seu comportamento 25 . As duas
maneiras de ir pelo mundo 26 ; que as sua spalavras sejam prudentes e
simples, para edificar o povo 27 . Foi assim até ao fim da vida, quando nos
disse: “Comecemos, irmãos” 28 .
Estas atitudes realizam-se no acolhimento do outro. Para acolher
devemo-nos converter ao amor e ter um coração aberto à misericórdia 29 , e
praticar a regra de ouro evangélica: “Não faças o que não queres que te
façam” 30 , que aplicou aos ministros 31 e a todos os irmãos, falando-lhes de
amor materno, em sentido de oblatividade e de obediência recíproca ou ser-
viço da caridade, acolhendo com bondade, sem esperar recompensa, sem
rejeitar, antes tomando a iniciativa, ajudando com paciência.
Esta atitude e espírito marcaram as relações e o modelo de evangeliza-
ção. Francisco propõe um modelo de aproximação aos homens, que revela
atitudes que tocam o âmago do espírito ecuménico: nem disputa nem polé-
mica, mas silêncio que escuta, submissão, ao mesmo tempo que afirmam a
sua identidade de cristãos; disposição interior que se consegue com a bene-
volência 32 . Francisco dirige-se ao Sultão com a cruz e o diálogo, sem armas,
confiante na força do Evangelho e no nome do Deus Altíssimo, para lhe
mostrar o caminho de salvação 33 . O Sultão olhava-o como um homem dife-
rente dos outros 34 .
Da centralidade de Cristo em nossa vida e de uma relação viva com Ele
segue-se:
—————
23
LM 8, 10; F 21.
24
T 23.
25
NMI 16.
26
1R 14; 16, 6-7; 2R 3, 10-11.
27
2R 9,3.
28
!C 103.
29
T 1-3.
30
Lc 6, 31.
31
2R 6, 1-2: CM 17; 1R 6,7,8; 7, 14.
32
1R 16. 17; 11, 1-3.8.9; 2R 3, 10. 11.
33
LM 9, 8.
34
1C 57.
29
- Um novo olhar, adorar a Deus com coração limpo e o espírito puro e
ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação 35 .
- Viver reconciliados connosco mesmos e com os outros, como alterna-
tiva à paz fundada na racionalidade e ao domínio da violência herdada
da modernidade e da cultura dominante, pondo como centro a Palavra
e a Eucaristia. O diálogo mantido com Deus tem continuação na
relação com os outros, assim como o amor a Deus leva ao amor pelo
homem, até encontrar o ponto onde tudo se transforma em doçura de
alma e corpo 36 ;
- Acolhendo com respeito o outro, como sacramento de Cristo, com ati-
tudes que superam o egoísmo e o individualismo, e evitando formas
de domínio, de servilismo e de aproveitamento,
- Estando atentos e disponíveis para todos, pois “o Senhor muitas vezes
é ao mais pequeno que revela o que é melhor” 37 .
- Praticando a misericórdia 38 , como o Senhor é misericordioso,
- Guardando a esperança e a certeza, sem temor teológico nem espiri-
tual, pois o primado de Cristo fundamenta a mediação única e univer-
sal 39 : Não temeis. Eu venci o mundo…
-
A centralidade de Cristo foi a base do movimento ecuménico, o que per-
mitiu às igrejas sair de si, das suas defesas, para centrar a atenção na fonte de
unidade. Não se confrontam umas com outras, mas cada uma com Cristo. Da
contemplação de Jesus Cristo nasceu a convicção da Igreja sobre a necessi-
dade da sua renovação. Não se trata de alinhar com a moda, mas de se
actualizar e de se tornar presente no mundo de hoje. A isso a obriga a refe-
rência às suas origens, a consciência do seu ser, a disponibilidade de se dei-
xar renovar por Cristo para percorrer o seu caminho, pois trata-se de acre-
ditar em Cristo e imitá-lo. “Quanto mais claro é o testemunho de Cristo, mais
se aproximam as partes separadas da cristandade”. Foi da sua referência a
Jesus Cristo que saiu o sentimento de dor pela divisão, a convicção sobre a
necessidade da conversão e o desejo de unidade através da reconciliação. A
divisão “é um escândalo para o mundo e fere a santíssima causa da pregação
do evangelho a todos os homens” (UR 1). Por isso, o ecumenismo não é fun-
damentalmente uma doutrina, nem uma prática e muito menos uma táctica,
mas uma profunda experiência de fé. Paulo VI desejou que os historiadores
—————
35
1R 22, 26.
36
T 3.
37
RCL 4-18.
38
Cf. Cm 9-11.
39
Cf. Dominus Jesus, 13-14.
30
reconhecessem no futuro o facto, de que “no Vaticano II se tornou patente
que a Igreja ama os homens”.
2. O diálogo, prerrogativa do carisma franciscano. Francisco é visto
por todos como um homem ecuménico. A sua experiência religiosa é reco-
nhecida por todos como experiência radicalmente evangélica, baseada na
escuta e amor à Palavra e à Igreja. Varão reconciliador, fez de Cristo o centro
da sua vida. A missão dialogante parece ser uma prerrogativa do carisma
franciscano. Com efeito, S. Francisco é-nos apresentado como homem recon-
ciliador e reconciliado consigo mesmo, com os homens e com todas as cria-
turas. É como que o protótipo de toda a pessoa que se sente em harmonia
com toda a realidade. Francisco sente-se vinculado a todos os seres, e a todos
trata por irmão; exprime o sentimento de piedade que é inclinação afectiva e
compassiva por alguém ou algo, de ternura e simpatia nas relações com todos
os seres; a sua disponibilidade para a escuta é permanente; convida ao diá-
logo universal, e sente-se livre de qualquer constrangimento, sinal da pobreza
evangélica 40 . Por tudo isso ele aparece sempre como homem novo, equili-
brado e harmónico. Assim o descreve S. Boaventura, apresentando a razão
teológica para o facto, que não é outra que a de ver a criação inteira como
criatura de Deus, de modo que todos os seres que a integram (estrelas, sol,
lua, animais, aves, plantas) devem viver em harmonia, pois quanto existe tem
uma relação de irmão entre si e de filho em relação a Deus e deve exprimir-
-se em amor fraterno. Via a presença de Deus em todos os seres que, como
espelhos contêm o vestígio de Deus origem de todos os seres 41 .
Viveu a experiência cristã dentro da Igreja com espírito universal, moti-
vado pela comunhão e não com espírito de domínio ou de oposição 42 . Assim
se tornou em modelo para todos os cristãos. “As referências do Papa e dou-
tros líderes religiosos a S. Francisco, promotor de reconciliação, de paz e de
diálogo, fazem do diálogo uma das prerrogativas do carisma franciscano” 43 .
S. Francisco é uma das figuras ecuménicas mais relevantes, querido por
todas as igrejas e religiões e por todos os homens. Aproximou-se e escutou a
todos: sujeito a toda a criatura, escutava a todos 44 .
Os franciscanos, seguidores dos seus passos e do seu espírito, têm algo a
dizer no campo ecuménico. E têm algo a oferecer: exemplo e testemunho.
Francisco foi modelo graças à experiência evangélica radical, ao amor e ade-
são à palavra de Deus, que o colocou no caminho da conversão permanente,
—————
40
Cf. MERINO, J.A.; De la crisis ecológica a la paz con la naturaleza, CPVA 2, Publicaciones
Claretianas, Madrid 1994.
41
Cf. LM 8. 1, 1-3; 8.6, 1-2.
42
Cf. 1R 23, 16.
43
Estatutos do serviço para o diálogo, Cúria geral OFM, art.5.
44
Cf. LM 12. 2, 1-3
31
à adesão à Igreja, à capacidade de reconciliar e pacificar, e pela maneira
como se relacionou com toda a criação.
Os documentos da Igreja oferecem-nos pistas para continuarmos o
exemplo de Francisco. Falam-nos de como devemos cuidar da atitude men-
tal: de como evitar sentimento de desprezo, hostilidade e ideologia obstinada;
de como reeducar as nossas mentes; da conversão do coração e de como
olhar todo o mundo, mantendo a esperança 45 . Entre as culpas cometidos ao
longo da história, a Igreja sublinha as que foram contra o serviço da verdade,
contra a caridade fraterna, reconhecendo que só uma Igreja purificada e
voltada para o Evangelho pode ser ecuménica e que o diálogo, como escuta
amorosa, é caminho obrigatório para conhecer em profundidade a doutrina
do outros, permanecendo fiéis à própria doutrina 46 .
3. A Consciência alcançada pela Ordem nos últimos tempos acerca da
evangelização como elemento essencial da vocação franciscana. Francisco
resolveu a dúvida de se devia dedicar-se à oração ou ao apostolado depois de
escutar os seus e de rezar, buscando a vontade divina até se convencer da sua
missão evangelizadora 47 . Paulo VI diz: “A Igreja existe para evangelizar. É
sua identidade, sua vocação e destino profundo” 48 . Assim o entendeu tam-
bém a Ordem, sobretudo nos capítulos gerais de 1991 e 1997, nos quais
chega a dizer: a evangelização é a nossa razão de ser. Seguindo o espírito
missionário de Francisco, que emana do seu amor aos redimidos pelo sangue
do Senhor, e da Ordem, a visão de Jesus Cristo da teologia franciscana ofe-
rece-nos perspectivas para o diálogo com as religiões e com as culturas do
nosso tempo. Trata-se de actualizar o acontecimento salvífico de Jesus
Cristo, tanto quando se trata do primeiro anúncio como na segunda evangeli-
zação. “Evangelização é aquela actividade pastoral que se dirige directa e
expressamente a suscitar a fé entre os que não acreditam ou a reavivar e for-
talecer os que têm uma fé débil, exortando-os e ajudando-os a converter-se
de coração ao chamamento de Deus para a vida eterna” 49 . Trata-se de levar o
evangelho vivido aos homens, sem omitir que Cristo é a verdade e que n’Ele
está a plenitude, mas reconhecendo as sementes de verdade que podem exis-
tir fora da Igreja, pelo que a atitude não pode ser de oposição e beligerância,
mas de complementaridade. Dizia Guardini que “o contraste – não a oposi-
ção – é a estrutura de todo o ser vivo”. Por isso, o diálogo não é sempre “uni-
forme, mas adaptado à índole do interlocutor e às circunstâncias reais” (ES
—————
45
Cf. GS 82-83.
46
Ut unum sint, 43
47
LM 4. 2, 1-4.
48
14.
49
Cf. Fernando Sebastián, em o Congresso sobre Jesuscristo. La Buena Nototia, EDICE, 2000, p.
57.
32
72). “É um meio ao serviço do anúncio do Evangelho. Devemos anunciar o
kerigma: “Ide e ensinai”. Os meios subordinam-se aos fins. A Igreja não é
evangelizada pelo mundo, mas por Cristo e seu Evangelho. É necessário que
a identidade seja transparente; transparente e inteligível, pois não partimos
do zero. Por isso se exige respeito à pessoa, fidelidade ao homem e à nossa
vocação, convencidos de que o Evangelho é que leva o homem à sua pleni-
tude e à verdade salvífica. Devemos ter claro que a Igreja é sacramento de
unidade e sacramento universal de salvação (cf. GS 45; LG 48), é interpela-
ção sobre a forma como encarnamos o amor de Deus pelo mundo. Não bas-
tam gestos de acolhimento, quando o amor é afirmação e desenvolvimento
do outro em sua dignidade e liberdade. O amor busca reciprocidade e comu-
nhão, unidade e fraternidade.
A evangelização passa pela promoção do homem. Obriga-nos a evitar
certas posições de cepticismo frente aos valores. É confessar que Deus veio
ao encontro do homem, que é seu companheiro e seu caminho (pobre,
humilde, paciente), e que nos livra das angústias, do temor e do terror. É
afirmar que a resignação, a tristeza ou a vaidade podem ser superadas pela
esperança na vida. Em definitivo, confissão e proposta, pois “o diálogo
eterno – o falar em monólogos – substitui o esforço por conhecer”.
Para evangelizar fazem falta os meios: preparação, estudos, formação…,
pois trata-se de estabelecer contacto com os homens, as culturas, as religiões.
Exige-se respeito ao Evangelho, à sua verdade e o reconhecimento das
sementes de verdade e de valores que elas encarnam. O diálogo é o caminho
real que devemos percorrer e a Igreja convida a seguir por este caminho para
passar da desconfiança ao respeito, da rejeição ao acolhimento. Não é fácil,
mas a busca paciente e confiante constitui para os cristãos um esforço que há
que realizar sempre. Com a graça do Senhor, que ilumina as mentes e os
corações, os cristãos devem permanecer abertos para acolher os que profes-
sam outras religiões. Além disso, devemos ter presente que, para dialogar, é
indispensável um testemunho claro da própria fé. Este esforço supõe também
a aceitação recíproca das diferenças, e, às vezes, das contradições, assim
como o respeito pelas decisões livres que as pessoas tomam, seguindo a sua
consciência 50 .
Estes esforços permitem-nos apresentar uma imagem da Igreja que seja
sinal de fraternidade que permite e consolida o diálogo, que promove a
estima, o respeito e a concórdia., segundo o famoso ditado: unidade no
necessário, liberdade no duvidoso, caridade em tudo, que se ajusta ao Evan-
gelho e coopera no serviço à família humana em nome de Deus Pai, princípio
e fim de todas as coisas e que nos chama a ser irmãos.
—————
50
João Paulo II, Jornada Mundial da Paz 2001.
33
A teologia cristã descobre o fundamento da solidariedade na Encarnação
do Verbo, em Deus que fazendo-se homem, entrou na nossa história. Isto sig-
nifica que o cristianismo deve apresentar-se como “uma cultura solidária e
receptiva aos valores de outras religiões”, tal como a patrística se desenvol-
veu na abertura e diálogo com a cultura pagã, no meio de dificuldades e opo-
sições, servindo-se dela para propagar a mensagem cristã. O diálogo é uma
necessidade prática para o serviço à Igreja e à sociedade.
4. Exigência da vida fraterna. Escrevemos tudo isto para que a nossa
alegria seja completa (1Jo 1, 4). Esta alegria não está senão no partilhar com
os outros o Deus que é Amor. A vida fraterna deve ser lugar de comunhão e
diálogo. A fraternidade realiza-se essencialmente nas formas de encontro e
diálogo. Funda-se sobre uma base comum: somos irmãos porque Deus é o
nosso Pai comum, porque temos uma origem comum, são semelhantes no
nosso ser e na nossa vida. Também é comum a missão que somos chamados
a realizar no mundo e temos um fim comum, que nos faz regressar à origem,
Deus. Para que a convivência entre pessoas seja fecunda deve alicerçar-se na
comunhão mútua dos que foram chamados e se uniram para fundar uma
comunidade. O mandamento novo associa o amor a Deus, ao próximo e o
amor a si mesmo. Desta forma a caridade de Deus envolve a totalidade do ser
(pessoa e mundo). Isto deve ter expressão no diálogo que cada um realiza no
seu interior, aquela habitação secreta do Evangelho (Deus e o mundo). A isto
se opõe a separação e a inimizade.
O pensamento franciscano conduz ao respeito. S. Boaventura, reco-
lhendo os elementos válidos da tradição, oferece-nos uma definição muito
actual de pessoa. A frase do Génesis 1, 26 “Façamos o homem à nossa ima-
gem e semelhança” foi interpretado já por S. Gregório de Nisa como imagem
da Trindade e foi recolhido por S. Boaventura para pôr em relevo a dimensão
relacional. A definição de pessoa dada por Boécio como uma substância
individual de natureza racional 51 , passou à filosofia medieval como um
axioma definitivo. Pois bem, o Doutor Seráfico acrescenta à definição de
Boécio a dimensão da relação como constitutivo da essência da pessoa: A
pessoa define-se pela substância e pela relação; se se define pela relação,
pessoa e relação são conceitos idênticos. A relação não é, pois, algo aciden-
tal, mas ôntico e estrutural, significando receptividade, referência de uma
pessoa a outra pessoa ou a uma coisa. O homem, enquanto ser relacional,
implica abertura e orientação a outras realidades (Deus, mundo e os outros),
que o situam e condicionam numa incessante simbiose. Assim “ partindo a
sua singularidade, incomunicabilidade, e suprema dignidade”, vive com as
—————
51
Boecio. De Consolatione, liber de persona et duabus naturis, cIII: personae est natura rationalis
individua sustantia.
34
coisas, com os outros e na abertura radical ao Criador. Isto faz do homem um
processo inacabado.
Podemos, pois, compreender o interesse pela comunicação e pelo diá-
logo que existe actualmente. A pessoa procura a relação e o encontro, a
escuta e partilha, sente necessidade de complementaridade. Só o egoísta se
fecha em si mesmo O diálogo, antes de ser meio de comunicação de algo, é
veículo do encontro, e o encontro dá fruto, como o filho é fruto do encontro
com os pais; a palavra é o meio pelo qual se criam ambientes de convivência
e encontro. Por isso, o diálogo, não é meio para um fim, mas meta em si
mesmo, não é conversa superficial, mas gerador de encontro. O homem,
chamado à vida por amor, tem capacidade de responder livremente à cha-
mada, fundando assim uma relação de encontro. Nessa relação eu-tu com
Deus para o qual tende por essência é onde se alicerça a vida de comunhão
que o salva. “Só mediante a capacidade de relação pode o homem viver em
espírito”. Só o homem é porta-voz das realidades criadas. Tudo isto se torna
hoje mais sensível, pela necessidade que a pessoa sente de unidade frente a
um mundo fragmentado. Por isso, a vida do irmão deve ser unitária, isto é,
deve fazer a síntese entre a contemplação/evangelização, formação/missão,
testemunho/anúncio, deve ser um sinal de integração frente à diversidade
cultural e relacional, frente a blocos estanques.
Opõem-se ao encontro os monólogos alternativos, que pretendem
arrastar o outro para a minha posição, porque impedem a comunhão, sem a
qual não é possível a verdadeira comunicação, ou conversações institucionais
nas quais não se comunicam os espíritos. Diálogo supõe intercâmbio, atitude
de escuta, generosidade, partilha e aceitação, apelo e resposta, vocação e
missão. Um diálogo comunicativo fora da comunicação dos espíritos, é
banal 52 . Por isso é necessário a interioridade e que as relações fraternas
sejam de verdade de autêntico diálogo. Isso implica aprender a comunicar e a
comunicar-se: saber falar e saber escutar, cuidando dos momentos de silên-
cio, os gestos, o comportamento.
Mas a comunhão fraterna da Vida Consagrada, é muito mais que comu-
nhão verbal, uma vez que está chamada a testemunhar o diálogo que Jesus
manteve com o Pai e com os homens. Por isso, a comunicação de fé é um dos
eixos da coesão comunitária que é comunicação de bens espirituais e mate-
riais e o apoio mútuo. Aqui deve-se distinguir a profundidade da comunhão
(confidência) e a amplitude da mesma (consenso, desacordo, conversão,
resistência, evangelização, maneiras de expressão que usamos para que o
diálogo reforce as relações entre os membros convocados à vida fraterna em
—————
52
Cf. LÓPEZ QUINTAS, Alfonso: Diccionario Teológico de la Vida Consagrada, voz Diálogo,
Publicaciones Claretianas
35
comunidade) 53 . Enquanto se fala, em geral, de como potenciar a vida fra-
terna, os franciscanos têm o ponto de referência na própria Regra, que nos
fala do modo de se comportar entre si e com os outros 54 .
—————
53
Cf. La vida fraterna en comunidad. Congregavit nos in unum Christi amor CIVCSVA, Roma
1994. nn. 29-34.
54
1R 5-17; 2C 155.
36
A REALIZAÇÃO DA PESSOA NA VIDA
CONSAGRADA
NO 4º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DA
IRMÃ MARIA DO LADO / MARIA DE BRITO
—————
*
Conferência proferida no Mosteiro do Loutiçal em 23 de Julho de 2005.
37
BREVE BIOGRAFIA DA DE MARIA DE BRITO
/ IR. MARIA DO LADO
Todos quantos nos reunimos neste lugar e nesta hora estamos em festa,
pois amanhã perfaz 400 anos que nasceu, exactamente neste lugar, uma
criança a quem deram o nome de Maria de Brito e que desde a infância mos-
trou ser uma alma privilegiada do céu.
Como as grandes solenidades litúrgicas começam na vigília e como na
antiguidade, em alguns povos, incluindo Israel, começavam no dia seguinte
ao pôr do sol, eis mais duas razões para na véspera de 24 de Junho, à noite,
estarmos a iniciar a festa de aniversário daquela que ao fazer-se recolhida na
Ordem Terceira Franciscana tomou o nome de Irmã Maria do Lado.
Maria de Brito foi a filha primogénita de António do Rego, pertencente
à nobreza do Louriçal, que do Rei D. Manuel I obteve o foral de vila a 22 de
Agosto de 1514, e de Maria de Brito, da nobreza de Torres Vedras. Conhece-
ram-se em Lisboa e lá casaram na igreja de Santa Apolónia da Paróquia de
Santa Engrácia de Lisboa. À nobreza de sangue juntavam os pais de Maria de
Brito a nobreza das virtudes cristãs, que pela palavra e exemplo inculcaram à
primeira filha.
A reverência para com o Sacramento da Eucaristia revelou-se a Maria
de Brito sobretudo a partir dos nove anos, quando recebeu a primeira comu-
nhão. Não obstante a sua pouca idade, percebeu então que Jesus era tudo
para a humanidade e tinha de O amar, louvar, adorar e reparar.
Dá-se uma grande viragem na vida desta Serva de Deus quando lhe
morre a mãe. Contava apenas 16 anos e vê-se na contingência de fazer de
mãe dos seus irmãos mais novos, um deles o Francisco da Cruz, o mais
novo, que se tornará sacerdote jesuíta e sobreviveu à irmã mais velha. Tendo
posto em execução muito do que ela intuiu e não teve tempo de realizar na
vida presente.
A Ordem Terceira da Penitência, criada por São Francisco de Assis para
as pessoas do mundo viverem mais fielmente o Evangelho de Jesus Cristo,
chegara à vila do Louriçal por intermédio dos Frades do Convento de Santo
38
António da Figueira da Foz. Maria de Brito entusiasmou-se com o projecto
de vida evangélica, proposto pelos franciscanos. Como filha da nobreza, no
primeiro quarto do século XVII, não lhe foi fácil obter do pai a autorização
para se filiar na Ordem Terceira. O hábito que então usavam os terceiros
franciscanos não se coadunava com os trajes duma jovem nobre.
Maria de Brito não se fez logo franciscana de corpo inteiro pela profis-
são. No entanto, abraçou o ideal da pobreza evangélica que se lhe oferecia.
Percebeu rapidamente que a pobreza anda ligada à liberdade, à alegria, à feli-
cidade; disponibiliza as pessoas para melhor servir o próximo, a começar
pelos mais carentes: os enfermos e os moribundos.
Como São Francisco de Assis e Santo António de Lisboa, nascidos em
famílias ricas e distintas, escolheram a pobreza para enriquecer o mundo,
também a Maria de Brito escolheu a pobreza evangélica para enriquecer a
sua jovialidade, simpatia, afabilidade e disponibilidade. Foi feliz e deu felici-
dade aos outros, realizando-se como pessoa e realizando quem se lhe juntou
na profissão do mesmo ideal.
Maria do Lado dedicava horas longas à oração, comungava muitas
vezes espiritualmente (e corporalmente quando lhe era possível). Fora do
tempo dedicado aos deveres religiosos e familiares, trabalhava de costura.
Em tudo mostrava ser uma pessoa predestinada, a quem faltava só a oportu-
nidade para pôr em acto a missão para que Deus a preparava desde a tenra
infância.
Na hora escolhida por Deus, exactamente na noite de 15 para 16 de
Janeiro de 1630, quando ocorreu na igreja de Santa Engrácia de Lisboa um
horrível desacato, é que a sua MISSÃO na terra se lhe revelou. Gente per-
versa – talvez judeus inimigos de Cristo – arromba o sacrário, parte o cibó-
rio, rasga as toalhas do altar e leva as hóstias consagradas para as pregar em
madeiros e lançar em lugares imundos.
No Louriçal, Maria de Brito teve, de alguma forma, a VISÃO do que
acontecera em Lisboa, confirmada mais tarde pelo seu Director, P. Fr. Ber-
nardino das Chagas. Nessa noite, em êxtase presenciara a Paixão e Morte de
Cristo, simbolizada pela maneira blasfema como esses energúmenos sem fé e
sem sentimentos humanos trataram o Santíssimo Corpo do Senhor presente
na Eucaristia. Concluiu então que a sua missão era assumir em si a dor da
lança que abriu o Sagrado Lado de Jesus.
Maria de Brito refugiara-se na Chaga do Lado até à morte. Por esse
motivo, o seu Director Espiritual muda-lhe o nome de baptismo para Maria
do Lado, o novo nome com que se imortalizará. A devoção do Desagravo
toma a sua origem no propósito de Maria do Lado passar o resto dos seus
dias a adorar o Senhor na Eucaristia.
39
Outras visões complementares se lhe seguiram. Numa dela vira a sua
casa transformada em mosteiro de 33 freiras de véu azul e de custódia no
escapulário. Tirando nove para o serviço da casa, restavam 24, que alterna-
damente, duas a duas, fariam as 24 horas do dia de adoração ao Santíssimo.
Cada uma das 24 tinha apenas uma hora de adoração por dia, de joelhos.
Maria do Lado nunca tinha visto freiras e, por não saber ler nem escre-
ver, teve de ser industriada pelo seu Director Espiritual acerca do significado
da visão.
Em face da explicação dada pelo P. Fr. Bernardino das Chagas, Maria
do Lado decide formar Comunidade com mais cinco amigas e parentes.
Como eram apenas meia dúzia, a Adoração ao Santíssima far-se-ia durante as
12 horas do dia (prescindindo das 12 horas da noite), tocando a cada uma
duas horas. Tornavam-se, desta forma, Servas ou Escravas do Santíssimo.
Em meados de Dezembro de 1630, dentro da oitava da solenidade da
Imaculada Conceição, ou seja, uns 11 meses depois do desacato ao Santís-
simo na igreja de Santa Engrácia de Lisboa, Maria do Lado, ao fixar a aten-
ção na Chaga do Lado do grande Crucifixo existente na igreja da Misericór-
dia do Louriçal, colhe a sensação de que partilha todas as dores de Jesus
Cristo na Cruz. Desde esta data até meados de Março do ano seguinte, pade-
ceu autêntico calvário, em sucessivos êxtases, visões, raptos. Sempre de
cama, em constante agonia, viu-se impossibilitada de se deslocar à igreja
para comungar, o que lhe aumentava o martírio.
Finalmente, julgando todos que Maria do Lado estava no fim, trouxe-
ram-lhe o Senhor sob forma de Viático, ministraram-lhe a Santa Unção dos
enfermos e o P. Fr. Bernardino das Chagas deu-lhe um hábito franciscano
para a amortalhar.
Neste rapto ou “excesso”, como se exprime o cronista Fr. Fernando da
Soledade, citando o relato do seu confrade Fr. Bernardino, Maria do Lado
experimentava as lancinantes dores do Lado de Cristo. Quando saiu desse
“excesso”, predisse sucessos futuros.
O rapto de 15 de Março de 1631, um sábado, demorou cinco a seis
horas. Desta vez, na versão de Fr. Bernardino, testemunha ocular, o rosto de
Maria do Lado era beleza e resplendor. O êxtase assemelhava-se a agonia.
No dia 16 de Março, por ordem do Director espiritual, Maria do Lado
comeu caldo. As reacções imediatas foram violentas e preocupantes. Mas
bem depressa se mostrou curada, ao ponto de querer deslocar-se à igreja para
agradecer o milagre. Fr. Bernardino não deixou, e só lhe deu licença no dia
seguinte, 17 de Março, acompanhando-a pessoalmente. Como tivesse entrado
na normalidade, Maria do Lado foi continuar o trabalho na almofada, inter-
40
rompido desde Dezembro último, quando adoecera. Agora retomara a bela
presença e tinha excelentes cores.
Na 4ª feira, dia 19 de Março de 1631, dia de São José, foi à igreja com
as cinco amigas e familiares, e as seis comungaram em missa de acção de
graças. O pai e os parentes trocaram então os lutos em galas.
A serva de Deus, na igreja, veste o hábito franciscano de burel, em tem-
pos “acutilado pelos hebreus”, bem como as cinco companheiras. Puseram na
cabeça véu azul e no peito a insígnia do Santíssimo Sacramento. Todas ves-
tidas com o hábito de Terceiras Franciscanas, fizeram a profissão da Regra
nas mãos do P. Fr. Bernardino das Chagas, dando assim começo ao Reco-
lhimento, que funcionou na casa de Maria do Lado. Esta casa sofreria obras
de ampliação, inauguradas a 28 de Abril de 1640, exactamente oito anos
depois da sua gloriosa morte.
A 1ª Madre da Comunidade de Recolhidas Franciscanas Escravas do
Santíssimo Sacramento foi a Ir. Maria do Lado, sendo depois substituída pela
tia Ana Cordeira. As outras quatro chamavam-se Maria Soares, Filipa das
Chagas, Apolónia da Natividade e Maria Baptista.
Obtidas licenças do Bispo de Coimbra, do pároco do Louriçal e do con-
fessor, as citadas seis “Recolhidas” iniciaram o LAUSPERENE no dia de
Ramos de 1631, 13 de Abril. Desde então para cá, dia e noite, as Irmãs lou-
vam, veneram e exaltam Jesus Eucaristia.
Repartiram entre si as 24 horas do dia: enquanto havia claridade adora-
vam o Senhor na igreja; durante a noite, faziam-no, de alguma forma, em
casa.
Com a instituição do Lausperene, a Madre Maria do Lado pôde pôr em
prático o sonho da sua vida, concretizado na três palavras: Louvar, Venerar,
Exaltar.
A Madre Maria do Lado morreu com suavidade e paz a 28 de Abril de
1632 e sepultaram o seu corpo na capela de Nossa Senhora da Graça da
igreja paroquial, donde o trasladaram, vinte anos depois, para debaixo do
altar-mor da igreja do Recolhimento. Finalmente veio a repousar na capela-
-mor da igreja do convento.
41
mas prevenindo os devotos da serva de Deus acerca das determinações ponti-
fícias relativamente ao culto só devido aos santos reconhecidos oficialmente
pela Igreja.
Falecida aos 27 anos de idade incompletos, passados agora quatro
séculos após o seu nascimento nesta terra do Louriçal, estamos ainda aqui a
recordar o perfume da sua existência.
Mulher da oração, Maria do Lado entrou na verdadeira escola dos San-
tos. Da santidade depende a eficácia da missão, a operosidade apostólica.
Lembremos Santa Teresa do Menino Jesus, uma carmelita de clausura e
padroeira das Missões. A santidade dá credibilidade e eficácia à palavra. Nós
somos mais sensíveis aos factos do que às palavras. Verba movent: exempla
trahunt. As palavras movem, mas os exemplos arrastam. Como diria o Papa
Paulo VI, nós precisamos mais de testemunhas do que de Mestres, e estes
apenas serão escutados quando também são testemunhas (Evangelii nun-
tiandi, n. 41).
Maria do Lado foi essa testemunha de Jesus Cristo, luz e farol para a
humanidade. Ela foi porta-voz de Deus. Por ela Deus nos fala, nos interroga,
nos interpela. Desta forma, Maria do Lado realiza-se pessoalmente como
mulher, como cristã e como religiosa.
Quem segue a radicalidade evangélica, à maneira de São Francisco de
Assis e de Santa Clara, por exemplo, e como o tentou fazer Maria do Lado,
essa pessoa é feliz e livre já neste mundo, preparando a felicidade e liberdade
sem mistura no Além. O escritor inglês Chesterton, por 1936, escreveu que
se o sol, nas suas múltiplas revoluções, poisou os seus raios num homem
encantado com tudo e com todos, esse homem chama-se Francisco de Assis.
Na verdade, ele passou a vida a cantar e morreu a cantar. Era um optimista,
porque tentou, de todos os modos, identificar-se com Jesus Cristo, o para-
digma da humanidade.
A santidade, porém, não é privilégio de poucos, mas um dever que a
todos empenha. Santo Agostinho, nas Confissões, começa por “confessar”:
“Fizeste-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não encontra a paz,
enquanto não repousa em Vós”. A aspiração ao bem absoluto satisfaz-se
mediante a fé em Jesus Cristo, o único que é capaz de manifestar o homem
ao próprio homem, como lemos na Constituição Gaudium et spes do Concí-
lio Vaticano II (n. 22).
Neste ano de 2005, dedicado especialmente à Eucaristia, ainda por ini-
ciativa do grande Servo de Deus o Papa João Paulo II, vem a propósito frisar
o facto de a Ir. Maria do Lado e o seu primeiro grupo de Recolhidas ter dado
início à Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento em 1631.
42
A EUCARISTIA – afirma-o a Consituição Lumen gentium, do Concílio
Vaticano II – É O CENTRO E A FONTE DE TODA A VIDA CRISTÂ. Na
despedida deste mundo, Jesus Cristo garante aos Apóstolos: “Eu estarei
sempre convosco”, não da mesma forma como os catequizou ao longo de três
anos, mas oculto sob as formas sacramentais do pão e do vinho, transubstan-
ciados no santo sacrifício da missa, chamada “fracção do pão” na Igreja pri-
mitiva (Actos 2, 42). Esse é o grande mistério da nossa Fé. Jesus Cristo faz-
-Se alimento, mediante o ministério do sacerdote, colocando “a sua boca e a
sua voz à disposição d’Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que se
repetissem de geração em geração (Enc. Ecclesia de Eucharistia, n. 5, de 17
de Abril de 2003).
Todas as grandes almas cristãs tiram a sua força de JESUS
EUCARÍSTICO. A Serva de Deus Maria do Lado mostrou ser um modelo,
na sequência das exposições doutrinais dos decretos sobre a Missa, promul-
gados pelo Concílio de Trento (meados do séc. XVI). As discípulas de Maria
do Lado, do século XVII ao século XXI, fiéis a Jesus Cristo e à Sua Igreja,
continuaram a alimentar a fé eucarística nos grandes documentos da Sé
Apostólica, com especial relevância para as encíclicas Mirae caritatis de
Leão XIII (28 de Maio de 1902), Mediator Dei de Pio XII (10 de Novembro
de 1947), Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965 e Ecclesia de
Eucharistia de João Paulo II (17 de Abril de Abril de 2003). Todas as almas
santas são testemunhas de vida eucarística. Não pode haver santidade que
não esteja encarnada na vida eucarística.
Na história da ORDEM FRANCISCANA abundam os santos que cen-
traram a sua vida na EUCARISTIA. O Pai São Francisco, um dia, justificou
a escolha da França para destino de viagem, “porque a gente é ali católica e
sobretudo porque tem uma grande devoção ao Santíssimo Corpo de Cristo”
(Espelho de Perfeição, n. 65, e 2 Celano, 201). Procurava ouvir missa todos
os dias e comungava com frequência.
Por sua vez, Santa Clara notabilizou-se por afastar, em 1240, os assal-
tantes do mosteiro de São Damião, colocando-se em frente deles, “precedida
do cibório de prata contendo o Corpo do Santo dos Santos”, ou seja, a
Sagrada Eucaristia (Legenda de Santa Clara, nn. 21-22).
A São Pascoal Bailão (1540-1592), humilde irmão leigo espanhol, o
Papa Leão XIII declara Padroeiro dos Congressos Eucarísticos, tal era a sua
devoção à Eucaristia.
Em suma, a serva de Deus Maria do Ladoestava bem acompanhada,
como fervorosa do culto eucarístico, que implantou no Recolhimento mon-
tado em sua casa paterna e se veio a transformar, com o tempo, em convento
ou mosteiro.
43
Nos anos de 1726 e 1727 procedeu-se ao RECONHECIMENTO DAS
VIRTUDES DA MADRE MARIA DO LADO, em ordem à beatificação. O
ponto de partida foi a cura do Príncipe herdeiro D. João (o futuro rei D.
João V) por intercessão da Ir. Maria do Lado. O milagre levou o Príncipe a
fazer voto, a 18 de Janeiro de 1702, de terminar as obras do convento. Nesse
sentido tinha sido solicitado pelo P. Francisco da Cruz, irmão da serva de
Deus e confessor do Príncipe e dos Infantes. No Arquivo das Congregações
do Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo restam quilos de
documentos sobre este processo da Irmã Maria do Lado e, ao que me infor-
maram, também na Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo da Univerfsidade
de Coimbra e até neste Mosteiro do Louriçal subsistem alguns documentos
sobre o mesmo processo.
44
de 29 de Abril de 1692 e o Breve de Inocêncio IX de 24 de Maio de 1692.
Por este se dão poderes ao Núncio Apostólico em Lisboa para nomear as
Fundadoras.
A casa dos pais da Madre Maria do Lado, incluindo o quarto onde nas-
cera a bem-aventurada, ficara integrada no convento.
O P. Francisco da Cruz morrera a 29 de Janeiro de 1706, antes de ter-
minado o Convento.
Assim, o RECOLHIMENMTO, em 1709, após 78 anos de existência
(de 1631 a 1709), sobe à categoria de CONVENTO ou Mosteiro, e as suas
Recolhidas Terceiras Franciscanas transformam-se em Religiosas clarissas
da 1ª Regra das Damas ou Senhoras Pobres de São Damião (ou II Ordem
Franciscana). Para responder a uma das visões da Ir. Maria do Lado, o Con-
vento do Louriçal foi construído para receber 33 Religiosas de coro e mais
algumas conversas.
Terminadas as obras, o Núncio Apostólico Miguel Ângelo Conti (1692-
-1709) nomeou como FUNDADORAS quatro Capuchas do Real Convento
de Santa Helena do Calvário de Évora, indicando o Rei como primeira Aba-
dessa a Madre Arcângela dos Serafins Evangelista. Partiram de Évora a 20
de Janeiro de 1709; na passagem por Lisboa hospedaram-se no mosteiro da
Esperança (perto da actual Assembleia da República); a 8 de Maio chegaram
ao Louriçal. Recebidas com muita honra pelas autoridades civis e religiosas e
pelo bom povo da terra, iniciaram a Comunidade de Franciscanas Capuchas,
às quais se juntaram no dia seguinte seis Recolhidas, que a Madre Arcângela,
na presença do Bispo de Coimbra, admitiu ao Noviciado. Regiam-se pela 1ª
Regra de Santa Clara e por Estatutos redigidos pelo Bispo de Coimbra.
Todas ali eram praticamente iguais nos trabalhos do serviço interno. Para o
serviço externo do mosteiro é que existiam senhoras ou criadas.
Para o dito serviço externo havia a hospedaria, a casa dos padres confes-
sores, um colégio, a casa do capelão, a casa do hortelão, um palheiro e as
cavalariças.
A 8 de Dezembro de 1720 o Mosteiro do Louriçal contava 36 Religio-
sas.
Construído e inaugurado o convento, as Religiosos continuaram a ser-
vir-se da igreja do Recolhimento, até que D. João V tratou de lhes erguer
IGREJA própria. A 19 de Outubro de 1734 celebrou-se um protocolo com a
Câmara do Louriçal e a igreja pôde ser inaugurada a 27 de Outubro de 1739.
Em 1810/1911, com a 3ª INVASÃO FRANCESA, a Comunidade teve
de abandonar o convento. João Carlos Mendes de Barbosa, em manuscrito de
39 pp., conservado pelas pupilas do antigo mosteiro do Santíssimo Sacra-
mento de Lisboa, legou-nos uma Breve e fiel narração dos sucessos e tra-
45
balhos que padeceram as Religiosas do Louriçal na ocasião da saída do seu
convento, causada pela bárbara irrupção, fereza e tirania dos franceses,
inimigos comuns da religião e humanidade, ordenada por quem acompa-
nhou sempre as mesmas Religiosas, e oferecido à R. Madre Abadessa e à sua
muito respeitável Comunidade. Felizmente, puderam regressar ilesas de
todos os perigos.
Com os bens doados e o trabalho da Comunidade puderam viver com
certo desafogo durante mais de um século, até que em 1834 os LIBERAIS o
privam de doações e legados. Sem se puderem renovar, por as impedirem de
emitir os votos da religião, continuaram a admitir candidatas, que viviam
como autênticas Religiosas, mas sem votos perpétuos. Chamavam-lhes
“PUPILAS”.
A ÚLTIMA RELIGIOSA PROFESSA morreu a 11 de Março de 1878.
Na época, residiam no Convento do Louriçal 21 pupilas. O Bispo, a 23 de
Março imediato, solicitou ao rei licença para não encerrar o convento, como
era legal, o que foi concedido.
Puderam, assim, sobreviver estas meias Religiosas, com o nome de
“pupilas” até Outubro de 1910, quando a REVOLUÇÃO REPUBLICANA
as expulsou e ocupou o convento. Na hora da chegada dos encarregados da
expulsão, estavam a tomar uma refeição, que não puderam terminar. Obriga-
ram-nas a deixar o convento sem hábito. Porque não possuíam roupas secula-
res, valeu-lhes D. Luísa Rosa da Silva, que lhes emprestou roupas para se
apresentarem decentemente na rua. Uma Religiosa, porém, recusou-se a sair
e no convento permaneceu até à morte.
A 27 de Julho de 1915, o convento foi incorporado nos Bens Próprios
da Fazenda e transformado em POSTO DA GUARDA NACIONAL REPU-
BLICANA, que nele esteve até 1925. Com a “Revolução Nacional” de Maio
de 1926, a Igreja pôde começar a respirar. Em 1927, o convento do Louriçal
foi a leilão e comprado com dinheiro da Madre Nazaré e mais quatro Irmãs e
a ele REGRESSARAM A 14 DE JANEIRO DE 1928 as sobreviventes do
cataclismo de Outubro de 1910. Na primeira oportunidade restauraram a
clausura, a pobreza, o Lausperene e a vida litúrgica.
Em 1932, ao celebrarem o terceiro centenário da morte da Fundadora,
Madre Maria do Lado, tomou hábito a Ir. Maria de Santa Teresinha do
Menino Jesus, conhecida por Madre Teresa, que em 1940 é eleita Madre
Abadessa, depois de emitir votos nas mãos do Bispo de Coimbra. Obras de
profunda restauração iniciaram-se em 1940, graças à coragem da Madre
Teresa.
46
Veio depois o RECONHECIMENTO CANÓNICO da Comunidade pela
Santa Sé, o que aconteceu em 1956 pelo Núncio Apostólico através do Padre
Manuel Taveira da Silva.
A 21 DE MARÇO DE 1958, 19 Irmãs emitiram votos solenes em ceri-
mónia presidida pelo Bispo de Coimbra, ficando assim restabelecida a
Ordem das Clarissas no Louriçal.
No dia seguinte, D. Ernesto Sena de Oliveira fez a Exposição do Santís-
simo Sacramento e até hoje, dia e noite, continua exposto e adorado pelas
Religiosas do Desagravo.
Entretanto, jovens candidatas à vida religiosa aparecem, e, em 1968, a
Madre Ana Maria do Bom Pastor transformou a enfermaria em casa de traba-
lho, onde foram montados grandes teares e mandou construir dois aviários
para 10 mil aves. Desta forma saldou dívidas e reparou edifícios.
O eco da vida santa desta Comunidade atraiu sempre muitas
DONZELAS PARA O CLAUSTRO. No século XVIII eram por demais.
Tinham de fazer rigorosa selecção em votação do Capítulo conventual, aos
cinco e aos dez meses de Noviciado.
A Comunidade do Louriçal, no passado, em 1780, deu origem ao Mos-
teiro do Sacramento de Montemor-o-Novo; em 1782, ao convento do Desa-
gravo ou “Conventinho”, no Campo de Santa Clara, junto à igreja de Santa
Engrácia, onde se dera o desacato atrás referido; em 1870, ao mosteiro de
Vila Pouca da Beira. Depois da restauração, em 1965, o Mosteiro do Louri-
çal intervém na fundação do Mosteiro de Monte Real; em 1967, no das Cla-
rissas de Fátima; em 1980, no de Montalvo (diocese de Portalegre e Castelo
Branco).
Nesta hora, 23 de Junho de 2005, a Comunidade das Clarissas do Desa-
gravo do Louriçal contam 17 Irmãs. Têm o Santíssimo Sacramento exposto
dia e noite, observam a 1ª Regra de Santa Clara, as Constituições da Ordem
das Clarissas e o Estatuto da Federação de Clarissas Portuguesas (de 21 de
Novembro de 2003). Celebram a Liturgia integral da Igreja e dedicam várias
horas à oração pessoal.
Para fazer face às despesas comunitárias, trabalham em bordados e
doces, que vendem para fora.
CONCLUSÃO
47
débeis forças humanas, vivendo com a máxima intensidade o Mistério do
Corpo e do Sangue do Senhor, no meio de nós até a consumação dos séculos.
BIBLIOGRAFIA
Ir. Fernanda Ferreira, O. S. C., Convento do Louriçal – Da Profecia à Actualidade, Edi-
ção de Autor, 2001.
P. Manuel Monteiro, da Congregação do Oratório, História da Fundação do Real Con-
vento do Louriçal de Religiosas Capuchas, Escravas do Santíssimo Sacramento e
vida da Venerável Maria do Lado, sua primeira instituidora e de algumas Religio-
sas…, Lisboa MDCCL.
Fr. Bernardino das Chagas, Maria do Lado / Relação e Testemunho do padre espiritual
da serva de Deus Maria de Brito… Ms de 94 ff, incompleto, na BNL. nº 90 FG e
publicado em nova redacção com o título: Compêndio da Admirável Vida da Vene-
rável Madre Maria do Lado… pela Abadessa e Religiosas do convento do Santís-
simo Sacramento do Louriçal, Lisboa, M.DCC.LXII.
Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano, tomo II, Lisboa, 1657, p. 757g.
A Ordem de Santa Clara em Portugal, ed. do Mosteiro de São José, de Clarissas Adora-
doras, Vila das Aves, Braga, 1976.
João Carlos Mendes de Barbosa, Breve, fiel narração dos sucessos e trabalhos que
padeceram as Religiosas do Louriçal na ocasião da saída do seu convento, cau-
sada pela bárbara irrupção, fereza e tirania dos franceses, inimigos comuns da
religião e humanidade, ordenada por quem acompanhou sempre as mesmas Reli-
giosas e oferecido à R. Madre Abadessa e à sua muito respeitável Comunidade,
manuscrito de 39 pp. conservado pelas pupilas do antigo mosteiro do Santíssimo
Sacramento de Lisboa.
Fr. Fernando da Soledade, História Seráfica…, V parte, Lisboa, M.DCC.XXI, pp. 568-
-589 ou nn. 832-863, com a “Prodigiosa vida e morte da grande serva de Deus
Maria do Lado, primeira fundadora do mosteiro do Louriçal”, citando o Agiológio
Lusitano e sobretudo o P. Fr. Bernardino das Chagas, “cuja relação escrita e assi-
nada por ele temos em nosso poder” (p. 589 e n. 863).
Cardeal José Maria Saraiva, O mistério da santidade na experiência cristã, conferência
pronunciada no Porto a 1 de Março de 2004 (na Internet: www.vatican.va).
48
II — Documentos
INSTRUMENTOS DE PAZ
1. “O Senhor te dê a paz”. Com esta saudação, deixada por São Francisco, dirigimo-
-nos a todas as irmãs e irmãos da grande Família franciscana e a todos os homens e mul-
heres que Deus ama (cf. Lc 2,14).
O nosso pai são Francisco, no seu Testamento, nos confirmou que foi o próprio Altís-
simo a revelar-lhe esta saudação particular: “O Senhor revelou-me que disséssemos esta
saudação: “O Senhor te dê a paz” (T 23). Unidos e obedientes a ele, também nós hoje a
apresentamos a todos vós enquanto vivemos num mundo lacerado por tantas guerras,
pelo terrorismo, pela injustiça social, pela fome e por catástrofes naturais de dimensões
quase apocalípticas.
Apresentamos esta saudação sobretudo aos homens e às mulheres que vivem freq-
üentemente também situações de laceração na própria pessoa, na família, nas fraterni-
dade ou comunidades e no ambiente de trabalho. Reconhecemos, de fato, no mundo e
nos homens e mulheres de hoje a urgente exigência da paz no sentido mais amplo do
termo, no seu significado mais antigo de “Shalom” (cf Is 9,5s; 48,18.19; 54,13; Mi 5,1-4;
Lev 26,6; Pr 12,20): paz entre os povos e Países, paz entre as diversas culturas e religi-
ões; uma paz que garanta uma habitação digna e segura, o necessário para comer e se
vestir, o respeito à dignidade da pessoa, a harmonia com toda a criação, a felicidade no
coração e com Deus mesmo, doador de toda vida.
—————
*
Tradução da Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores.
49
Nossa missão: anunciar a paz
2. Fiéis à revelação divina, em qualquer parte onde andassem e a cada vez que fala-
vam às pessoas com algum sermão (cf EP 26; LP 67; 1C 23; TC 26), Francisco e a pri-
mitiva família franciscana anunciavam esta nova, e até então desconhecida saudação de
paz num mundo dividido por grandes e pequenas guerras, juntando a esta a mesma sau-
dação de Jesus ressuscitado: “Paz a Vos” (cf Lc 24,36; Gv 20,19.21.26). Este augúrio de
paz seguidamente se transformava em uma verdadeira e própria iniciativa em favor de
uma paz concreta, como nos testemunham os extraordinários eventos da reconciliação
entre a Potestade e o Bispo de Assis (cf LP 84), da pacificação da cidade Arezzo e outras
cidades (cf 2C 108; Fior 11), da visita de Francisco ao Sultão (cf 1C 57) e do episódio
do lobo de Gubio (cf Fl 21). A saudação de paz e as iniciativas em favor da paz eram
parte integrante da auto-compreensão, do estilo de vida e da missão dos primeiros Frades
e isto os levava a ser reconhecidos como um verdadeiro movimento de paz, tanto que o
próprio Tomás de Celano nos apresenta a fraternidade primitiva como uma “Pacis lega-
tionem”, uma verdadeira embaixada de paz (cf 1C 24).
3. Esta missão em favor da paz anunciada pela sua particular saudação, encontra o
próprio fundamento em alguns elementos constitutivos da vida e da espiritualidade de
Francisco, dos seus irmãos e das suas irmãs. A missão de paz nasce de um coração paci-
ficado, fruto de uma experiência de perdão, de misericórdia e de gratuidade. Sobre ela
Francisco fundamenta também o caráter fraterno do seu movimento (cf LM) e a esta res-
ponde com a escolha de uma vida de penitência que, no seguimento de Jesus Cristo, é
completamente voltada aos valores escatológicos do Reino de Deus: a justiça e a paz.
Estes valores são acolhidos cada vez como um dom de Deus que faz re-encontrar a paz
do coração (cf 1C 26). Um dom, aquele da paz, que em Jesus Cristo se realizou em uma
história da salvação e se encarnou na realidade de um mundo necessitado de redenção
(cf 1R 23,1-4). É por isto que, contemplando as maravilhas que Deus realiza na criação e
opera através de seu Filho, Francisco descobre o nexo entre paz, salvação e redenção do
homem, sentindo-se intimamente unido à criação e à suma bondade de Deus. Sobre esta
descoberta se baseia a nossa saudação franciscana de hoje: Pax et Bonum.
Escrevendo a sua Regra, Francisco dava origem a um estilo de vida que, através de
atitudes concretas e quotidianas, era capaz de promover a paz. A pobreza e a simplici-
dade que nascem da ilimitada confiança em Deus, levam aqueles que acolhem este estilo
de vida a não quererem se apropriar de nada, nem de lugares, nem de casas e nem
mesmo da própria vontade (cf 1R 7,13; Ex 2). Com as mãos livres para abraçar e servir
os leprosos (cf T 1-3), para Francisco e seus frades não era necessário procurar algum
instrumento de defesa ou arma para defender dos outros quanto possuíam (cf.TC35).
Livre de qualquer pretensão e de qualquer reivindicação, a primeira geração franciscana
não via mais no outro um concorrente, um inimigo, mas reconhecia em cada pessoa um
irmão e uma irmã em Jesus Cristo.
Com o trabalho (cf 1R 7,1-9), com a vontade de inserir-se entre os pobres e os excluí-
dos (cf 1R 9,2), com a recusa do dinheiro (1R 8,1-12), nova e brutal forma de capita-
lismo de então, Francisco e os seus davam um testemunho profético da possibilidade de
um modo diverso para viver juntos e de uma sociedade civil e eclesial iluminada pelo
Evangelho de Jesus.
Esta nova vida evangélica levava consigo também uma nova maneira de exprimir-se.
O vocabulário de Francisco toma distância das expressões belicosas das heróicas empre-
50
sas de conquista de seu tempo, para introduzir e re-propor, à partir da Bíblia, conceitos
como aquele da não apropriação (cf 1R7,13), do não julgar (cf, 1R 11,1.10), do modo de
comportar-se espiritualmente (R 16,5 ss.) e outros, que promoviam a paz também através
da linguagem. Desta maneira, este próprio estilo de vida torna-se uma verdadeira e própria
via de reconciliação com Deus, com o próximo, consigo mesmo e com toda a criação.
4. Uma leitura atenta de nossas fontes não só nos apresenta o primitivo movimento dos
“minori” como uma verdadeira e própria embaixada de paz e de reconciliação, mas nos
permite de individuar alguns comportamentos essenciais também hoje para atuar um pro-
cesso de paz e de reconciliação numa situação esclerosada na discórdia e nas lutas (cf l21):
51
Purificar a memória
6. Após o “século escuro” das guerras ferozes, das ditaduras brutais, da grave e in-
justa disparidade social entre o norte e o sul do mundo e da guerra fria, o início do novo
milênio apareceu cheio de esperanças e também de entusiasmo por um mundo mais pací-
fico e mais justo. Mas já os primeiros anos deste novo século nos mostraram a fragili-
dade da convivência da humanidade e abriram-se novas brechas, que ameaçam a paz
mundial e a reconstrução do justo equilíbrio entre as nações. Uma catástrofe quase apo-
calíptica nos demonstrou, com toda a sua violência, que o homem perdeu também a
harmonia com a criação. Encontramo-nos hoje diante de uma série de problemas que, em
nosso mundo global estão, em certo sentido, todos conexos: aqueles ecológicos, como a
extinção de algumas espécies, as mudanças climáticas e a poluição do ambiente, facil-
mente ligados a graves problemas sociais, como o endividamento de tantos Países, por
sua vez causa de ulteriores problemas como a pobreza, a fome, a desocupação e a imi-
gração. Existem ainda estruturas de pecado que aumentam a espiral da violência. Entre
estas, aquela institucional e militar, que freqüentemente oprime cidadãos indefesos,
quando não leva a se precipitar sobre outros povos, criando vítimas inocentes e susci-
52
tando muitas vezes, como reação, incontroláveis formas de terrorismo. Recordamos,
pois, os vários fundamentalismos, os nacionalismos e um novo imperialismo que hoje
estão à origem do confronto entre culturas e religiões.
Além disto, a criminalidade internacional, nutrindo-se do comércio da droga e de ar-
mas, leva a morte em tantas partes do nosso mundo. Enfim, as impiedosas regras de um
mercado que, em nome da liberdade, subordina os valores da vida ao da economia, pri-
vilegiando poucos e marginalizando muitos, seguidamente condena a um futuro sem
esperanças sobretudo os mais frágeis: as mulheres, as crianças, os anciãos e os doentes.
Às vezes parece mesmo que as sementes da paz sejam sufocadas pelos interesses do po-
der político e econômico destas estruturas de injustiça e pecado pessoal.
O que significa então a paz neste mundo selvagem e militarizado? O que significa a
paz em um mundo onde reina um sistema consumo e de apropriação? O que quer dizer
paz para os homens e as mulheres que vivem em zona de guerra? O que quer dizer paz
para quem tudo perdeu? No espírito franciscano, diante de todas estas situações, não
podemos permanecer passivos ou somente como expectadores comovidos, mas devemos
sentir-nos chamados a seguir as pegadas de Jesus Cristo que veio “para anunciar aos
pobres uma alegre mensagem, para proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a
vista, para libertar os oprimidos e pregar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18).
Francisco abraçou o plano de Deus pelas suas criaturas, considerando-as como uma
família de irmãs e irmãos (cf Cant). Ele nunca se chamou simplesmente “Francisco”,
mas sempre “irmão Francisco”. Ser “irmão” revelava o seu sentir-se em relação com
cada criatura e a sua missão de restabelecer as relações com dócil humildade (cf Cant
10-11; TC 14,58). A ação da paz é ligada a este anúncio da boa nova do Evangelho (cf Ef
6,15) e endereçada a todos os homens independentemente do seu estado social e do sexo,
da raça e da religião. Permanecendo fiel ao próprio Senhor, para a Igreja a promoção da
paz no mundo é parte integrante da missão com a qual esta continua a obra redentora de
Cristo sobre a terra (cf. Compêndio da doutrina social da Igreja, n. 516). Como missio-
nários e missionárias do Evangelho, e fiéis à Igreja, queremos renovar a nossa tradição
de sermos hoje mensageiros da paz evangélica.
Promover o bem
7. Uma vez que a paz começa a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada
pessoa para, em seguida, estender-se às famílias, às nossas fraternidades e comunidades até
co-envolver todos os ambientes em que vivemos, para criar uma verdadeira e própria cul-
tura da paz (cf Compêndio da doutrina social da Igreja, n. 495) será necessária a nossa
pessoal reconciliação com Deus, conosco mesmos, com os irmãos, as irmãs e toda a cria-
ção. Embora se trate de um momento muito pessoal e íntimo, tal reconciliação deve abran-
ger também as estruturas, o nosso estilo de vida, o nosso trabalho e a nossa missão, a fim
que tudo sirva verdadeiramente para a construção da paz, da justiça e do amor. Somente
através de uma sincera conversão do nosso coração, das nossas estruturas pessoais, do
nosso estilo de vida, da nossa maneira de programar, pensar e trabalhar, nos tornaremos
frutuosos operadores de paz. O nosso empenho pela paz requer, pois, um modo particular
de proceder com aquele espírito fraterno que caracteriza de modo especial a nossa forma
de vida e de não deixar que alguns irmãos e irmãs com particular vocação profética se
empenhem sozinhos em favor da paz, da justiça e da preservação da criação.
53
8. A partir desta pessoal conversão propomos uma visão da paz como superação do
pecado pessoal e estrutural, superação do sofrimento, da dor, da ira, das profundas feri-
das da reconciliação. Como testemunhos da boa nova queremos empenhar-nos na nossa
missão no mundo em favor deste caminho de reconciliação, que exige distinguir uma
ação contra o mal, a violência, a injustiça, de um agir em favor da paz e da justiça, ex-
cluindo toda forma de violência para tornar possível uma verdadeira reconciliação. A
nossa missão de paz não pode basear-se sobre uma atitude caracterizada pelo ser “co-
ntra”, mas deve nutrir-se da procura incessante do bem e da vida. Este agir em favor do
bem comporta o desmascaramento das causas do mal e a condenação corajosa de toda
forma de violência injustificada, porque falar de paz e de justiça sem desmascarar as
instituições, os sistemas e os pecados responsáveis da injustiça, da violência e do mal é
mais que hipócrita. Somente quando as causas da discórdia, das guerras, da injustiça, e
dos pequenos e grandes pecados humanos serão profeticamente individuados, será pos-
sível uma profunda cura de todas as feridas. Sem uma tal cura o caminho em direção à
reconciliação será difícil. Nós, franciscanos e franciscanas, queremos atingir esta cura
das feridas através do diálogo fraterno e caridoso. Um diálogo respeitoso que saiba valo-
rizar cada pessoa, cada cultura, e cada religião promovendo o bem, o belo, e o verda-
deiro no outro. Queremos iniciar este diálogo nas nossas fraternidades e comunidades,
nas nossas famílias, entre os nossos institutos franciscanos, na Igreja, entre as diversas
culturas e religiões, nos diversos países onde estamos presentes, expondo-nos nós mes-
mos, assumindo todas as eventuais conseqüências e participando da missão e da paixão
de Cristo (cf 1R 16,10-11). De modo particular queremos iniciar este diálogo nos lugares
de conflito, de tensão, de desesperança e de discórdia, de intolerância e de marginali-
zação. Com o nosso dialogar queremos dar testemunho aquele diálogo salvífico que o
próprio Deus leva adiante com a humanidade no seu Filho Jesus Cristo e no poder do
Espírito Santo.
A serviço do amor
9. Sobre a base da nossa rica tradição queremos, com nossa disponibilidade ao diá-
logo, voltar às fontes da espiritualidade do perdão, da misericórdia e da gratidão, para
superar, com a verdadeira paz, que somente Jesus Cristo nos pode dar (cf Gv 14,27), as
pequenas guerras da vida quotidiana e as grandes guerras do mundo, e voltar às fontes da
espiritualidade da fraternidade e da igualdade para superar, com a lei do amor, (cf Gv
15,9-17 ), a intolerância e tantas formas de criminalização e de marginalização, refazer-
-nos na espiritualidade da simplicidade para superar, com a estima e a benevolência para
com cada forma de vida, o consumismo e tantas formas de abuso contra a vida da cria-
ção. Encontrando as nossas raízes profundas na nossa vocação franciscana não somente
podemos encontrar a paz em nossos corações, nas nossas fraternidades, comunidades e
famílias, mas podemos ainda tornar-nos frutuosos operadores da paz e da reconciliação
neste mundo.
Recordando a nossa particular vocação de franciscanos e franciscanas de sermos
mensageiros da paz neste mundo, encorajamos e estimulamos o dom de ser profetas de
um novo estilo de convivência baseado sobre o amor e sobre a familiaridade e portanto
sobre a não violência, sobre a justiça e sobre o cuidado integral da nossa mãe terra (cf
Cant); defendemos o direito à vida em todos os níveis e a possibilidade de acesso aos
54
recursos essenciais para todos; de modo particular compadecemos e queremos ser pró-
ximos às inumeráveis vítimas deste mundo. A partir desta dimensão profética da nossa
vocação elevamos a nossa voz em favor do desarmamento em todos os níveis (cf Com-
pêndio da doutrina social da Igreja, n. 508s); denunciando a utilização de crianças e
adolescentes como soldados em conflitos armados (cf o.c. 512) e toda a forma de dis-
criminação e especulação das mulheres, condenamos toda forma de terrorismo: protes-
tamos contra toda forma de colonialismo ou imperialismo militar e econômico; rejeita-
mos os fundamentalismos e as tendências ao integralismo; lutamos com meios pacíficos
contra as estruturas e os autores de qualquer forma de escravidão e de opressão.
Enfim suplicamos o nosso pai são Francisco e a nossa mãe santa Clara, grandes pro-
motores da paz e do bem, e Maria, Rainha da Paz, a fim que nos concedam de viver
neste mundo como fiéis servos do Espírito de Jesus, nossa paz (Ef 2,14).
ABREVIAÇÕES
Sagrada escritura
Lev Levítico
Pr Provérbios
Is Isaias
Mi Miquéias
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
Ef Efésios
Fontes franciscana
1R Regra não bulada
T Testamento de são Francisco
Ex Exortações
CM Carta a um Ministro
Cant Cântico do irmão Sol
1C Vida primeira de Tomas de Celano
2C Vida segunda de Tomas de Celano
TC Legenda dos 3 Companheiros
LP Legenda perugina
EP Espelho de perfeição
Fl Florinhas
55
O SABOR DA PALAVRA
- A vocação intelectual dos Frades menores hoje
—————
*
Tradução da Cúria Geral da Ordem aos Frades Menores.
57
PREMISSA
58
escuta e no diálogo, em comunhão com a Igreja. O percurso de São Francisco torna-se
exemplar (Primeira parte).
Esse esforço acompanhou a história de nossa Família, expressando-se, sobretudo, na
urgência missionária, caracterizada pelo encontro com as culturas, isto é, pela escuta e
pela preparação severa exigida aos anunciadores da Palavra que salva, em vista do diá-
logo! (Segunda parte).
Sobre esses temas estamos bastante preparados. Creio que ainda nos falte um bom
caminho a fazer para o encontro da Palavra com as múltiplas palavras do homem. Em
poucas palavras, trata-se do diálogo com a cultura, ou melhor, com as culturas, tornando-
-nos artesãos humildes e corajosos da escuta e do diálogo, mais discípulos do que mes-
tres (Terceira parte).
Não se trata de estudar somente em vista dos desafios da evangelização. Está em jogo
algo mais, mais exigente. Trata-se de adquirir o hábito de refletir, a arte do pensar como
arte sapiencial de vida, de fé e de caridade. Assim, será possível falar de uma vocação
intelectual dos Frades menores? Sim, sempre em união com nossa forma vitae, para a
qual “o estudo, como todas as outras coisas de nossa vida em fraternidade, deve ser
enxertado no vigor espiritual de São Francisco” 5 , de tal maneira que se torne uma base
necessária para a formação franciscana.
Eis a caminhada que, nestas páginas, desejo fazer com todos, caros Irmãos. Dirijo
particular atenção aos Irmãos que consagram a vida à pesquisa, ao ensino e à publicação.
Aprecio seu serviço, que considero importante para a Fraternidade, para o desenvolvi-
mento e a adequada compreensão de nosso carisma e para o desempenho da evangeli-
zação, múnus específico de nossa vocação.
Com tais sentimentos, inicio minha reflexão, confortado pela presença e pelos rostos
de muitos Irmãos, assíduos e apaixonados pesquisadores da Vida, da Verdade e do Bem,
que resplendem no rosto de Cristo e que não nos cansamos de procurar nos rostos de
muitos homens e mulheres de nosso extraordinário e dramático tempo e nos sinais dos
tempos.
Eis porque é correto falar de “graça das origens”: graça é a chegada dos irmãos, na
qual se renova o dom dos discípulos ao Senhor Jesus: “Eram teus e tu os deste a mim”
(Jo 17,6; RnB XXII, 42-43); graça é a revelação do Evangelho como “forma” de vida
—————
5
Schalück, Fr. H., La promozione degli studi nel nostro Ordine, in Acta Congressus
Repraesentantium Sedum Studiorum OFM, Roma 1994, 60
59
para a Fraternidade-em-missão, ocorrida na tríplice abertura dos Evangelhos, onde às
duas passagens sobre o chamado: “Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens e dá
aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem e segue-me” (1R I, 2; cf. Mt 19,21;
Lc 18,22); “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me
siga” (1R 1, 3; cf. Mt 16,24), acrescenta-se o envio em missão dos setenta e dois discí-
pulos: “Quando os irmãos vão pelo mundo, nada levem pelo caminho, nem bolsa nem
sacola… E, em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa
(1R 14, 1-2; cf. AP 11 e TC 29).
Graça é a confirmação que o “senhor Papa” dá à norma escrita de vida evangélica, na
qual Francisco e os primeiros companheiros sentem continuar o mandato conferido a
Pedro de “confirmar” seus irmãos: “Eu orei por ti, para que tua fé não falhe; e tu, uma
vez convertido, confirma os irmãos” (Lc 22,32).
Todas as perguntas sobre o carisma das origens, feitas para terem indicações de res-
posta aos problemas e às perguntas do nosso tempo, deverão mover-se dentro deste triân-
gulo de graça:
• o chamado de Francisco e dos primeiros companheiros a viver o seguimento e o
anúncio em fraternidade;
• o Evangelho e a palavra de Deus, que se traduzem em normas de vida;
• a indestrutível comunhão de fé e de obras com a Igreja.
60
porque a Escritura tem tanto espaço em seus Escritos, literalmente tecidos de citações,
reminiscências, aplicações vitais da Palavra de Deus. Conseqüentemente, não surpreende
que, para Francisco, a “rainha” das virtudes não seja a pobreza, como por muito tempo
se afirmou, mas a sabedoria, reflexo da luz perene do Verbo encarnado: “Ave, rainha
sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade” (SV 1). No lou-
vor franciscano, as virtudes estão dispostas numa sucessão que responde ao dinamismo
da vida cristã segundo o Espírito: a rainha sabedoria deve ser traduzida em palavras e
obras pela santa e pura simplicidade; e viver a sabedoria significa seguir a humildade e a
pobreza de nosso Senhor Jesus Cristo, que, para nós, é o modelo de caridade e obediên-
cia ao Pai e aos irmãos.
3. Os livros e a pregação
Na Fraternidade das origens, a primeira forma escrita de vida, aprovada por Inocên-
cio III (1209), desenvolve-se progressivamente até constituir a Regra não bulada (1221),
um texto em que cada norma sobre a vida comunitária e sobre as formas da missão nasce
constantemente por interferência da palavra do Evangelho, das expectativas dos tempos
e das indicações da Igreja. As Constituições do IV Concílio do Latrão (1215) haviam
disposto que os bispos assumissem “homens idôneos, poderosos em obras e palavras,
para exercer salutarmente o serviço da santa pregação” (art. 1), e que todas as igrejas
metropolitanas tivessem “um teólogo, que instruísse os sacerdotes e os outros na sagrada
Escritura” (art. 11).
As disposições se refletem, sobretudo, no texto da Regra de 1221, que não só procura
fixar as normas e o “espírito” da pregação (cap. 17), mas dispõe também que os clérigos
“possam ter somente os livros necessários para desempenhar seu ofício” (possint habere
tantum libros necessarios ad implendum eorum officium) (1R 3, 7). Uma recente pes-
quisa, estendendo as fontes franciscanas para a literatura cristã medieval 6 , mostrou, sem
sombra de dúvida, que a expressão ad implendum eorum officium não se refere somente
ao ofício litúrgico, mas a todo o “ofício” dos clérigos, aos quais, portanto, são conce-
didos os livros indispensáveis para a Liturgia das horas, para a Eucaristia e para a pre-
gação.
A mesma pesquisa mostrou também que a tão discutida proibição “et non curent nes-
cientes litteras litteras discere” (2R 10, 8) não significa “e os que não conhecem as letras,
não se preocupem em aprendê-las”, mas precisamente “e os que não sabem ler, não se
preocupem em aprender”, em atenção à norma paulina de que “cada um permaneça no
estado em que estava quando foi chamado” (1Cor 7,20; cf. 1R 7, 6), resolvendo-se de
fato numa disposição ligada à situação cultural do tempo e dificilmente aplicável a uma
sociedade como a do terceiro milênio, em que, em muitíssimos países, a alfabetização
atingiu a quase totalidade dos cidadãos.
Espelhando ao mesmo tempo a centralidade da Palavra e as disposições da Igreja, as
severas normas para os pregadores inseridas na Regra bulada (1223), ordenando que
“absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido examinado e
aprovado pelo Ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido concedido pelo
—————
6
Cf. PAOLAZZI, CARLO, OFM, I frati Minori e i libri: per l’esegesi di “ad implendum eorum offi-
cium” (1R 3, 7); e “nescientes litteras” (1R 3, 9); 1R 19, 7); in Archivum Franciscanum Historicum
1-2/2004, pp. 3-59.
61
mesmo o ofício da pregação” (2R 10, 3), e já que todo exame exige uma adequada pre-
paração, esta não podia ser feita senão através da escuta orante, da leitura e, natural-
mente, do estudo da Palavra de Deus, porque “a pouquíssimos o espírito de sabedoria é
dado miraculosamente, sem o estudo das letras” (São João Capistrano). Baseada num
versículo do Salmo – “Eloquia Domini, eloquia casta; argentum igne examinatum” (Sl
12,7) –, a exortação que a seguir se faz aos pregadores, no sentido de que “na pregação
que fazem, suas palavras sejam examinadas e castas” (2R 9,4), é um angustiado convite
a anunciar somente a palavra de Deus, livre de impurezas humanas e purificada pelo
fogo do Espírito. Segundo a intuição de meu predecessor Fr. John Vaughn, “é exata-
mente a consciência do “mandato” recebido da Igreja de pregar a penitência entre os
fiéis e entre os infiéis e a obediência à Igreja que convenceu São Francisco da necessi-
dade dos estudos e o levou a fundar uma “Escola Teológica” 7 .
Com efeito, esse conjunto de disposições, concessões e exortações constitui o antece-
dente legislativo da importante Carta a Frei Antônio, na qual o apelativo “bispo” alude
provavelmente ao mandato episcopal da pregação, ao qual o fundador da Ordem acres-
centa o mandado do ensino: Eu, Frei Francisco, [desejo] saúde a Frei Antônio, meu
bispo. Apraz-me que ensines a sagrada teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo,
não extingas o espírito de oração e devoção, como está contido na Regra”. Seguindo as
Constituições lateranenses, o ensino de Frei Antônio, certamente, era dirigido aos frades
“que são, aos que serão e aos que desejam ser sacerdotes do Altíssimo” (CO14), e o
verbo desejam só pode referir-se a clérigos à espera de serem promovidos ao sacerdócio
e, portanto, à pregação, enquanto a toda a Fraternidade é dirigida uma recomendação
paralela no Testamento, que parece uma espécie de selo de autenticidade da própria carta
a Frei Antônio: “E devemos honrar e venerar a todos os teólogos e aos que ministram as
santíssimas palavras divinas como a quem nos ministra espírito e vida” (T13). T
Nas entrelinhas, Francisco parece dizer que a “santa e pura simplicidade” não é a vir-
tude de quem ignora a Palavra de Deus, mas de quem a ouve e a estuda com fé, medita-a
assiduamente com espírito orante e, pela força do Espírito, vive-a e a anuncia com o
exemplo e com as palavras.
Portanto, o Doutor Seráfico São Boaventura, nem sempre corretamente julgado pelos
estudiosos do nosso tempo, seguia o pensamento do fundador e a legislação primitiva
quando, em polêmica com os mestres seculares, reafirmava resolutamente o dever dos
Frades menores de se dedicarem ao estudo da Palavra e seu direito de disporem dos
livros indispensáveis: “A Regra ergue a voz e impõe expressamente aos frades a autori-
dade e o ofício da pregação (cf.2R 9), coisa que não creio se encontre em outras Regras.
Portanto, se não devem pregar fábulas, mas as palavras divinas, não podem conhecê-las
se não as lerem; nem lê-las se não tiverem os textos escritos; é, pois, evidentíssimo que é
conforme a perfeição da Regra ter livros como também pregar. E não sendo contrário à
pobreza da Ordem ter missais para cantar a Missa e breviários para recitar as Horas,
assim não é contrário ter livros e Bíblias para pregar as palavras divinas” 8 .
Se é verdade que no decorrer dos séculos os movimentos de reforma da Ordem parti-
ram normalmente com tendências à vida solitária e contemplativa, é também verdade
—————
7
VAUGHN, FR. JOHN, Studi e Missione dell’Ordine dei Frati Minori oggi, Carta do Ministro geral,
1981, in AO 100 (1981), 261-262.
8
Boaventura, Epistola de tribus quaestionibus, in Opera Omnia, ed. Quaracchi, vol. VIII, p.332-
-333.
62
que depois de algum tempo sempre redescobriram a dimensão “pastoral” do carisma 9 ,
em consideração à palavra de Francisco: “Proclamai-o, pois ele é bom, e exaltai-o em
vossas obras; pois, com este intuito ele vos enviou por todo o mundo, para que, por pala-
vras e obras, deis testemunho de sua voz” (CO 8-9).
Já se discorreu sobre a insistência com que Francisco exorta a venerar “as divinas
palavras escritas…, honrando o Senhor nas palavras que ele falou” (CO 35-36). Será
importante acrescentar que o santo de Assis, verdadeiro puro de coração, capaz de ver
em cada ser o Deus de suma Beleza, Luz eterna, Bondade original, tinha grande respeito
por cada texto escrito, sagrado ou profano, como aparece num emblemático episódio
narrado por Tomás de Celano: “Certo dia, um irmão perguntou-lhe para que recolhia
também tão cuidadosamente os escritos dos pagãos e onde não havia o nome do Senhor.
Ele respondeu dizendo: Filho, porque aí há letras com as quais se compõe o gloriosís-
simo nome do Senhor Deus. Também o que aí há de bom não pertence nem aos pagãos
nem a homem algum, mas somente a Deus, de quem provém todo o bem” (1C 82).
O “dito” de Francisco não retorna nos biógrafos posteriores, talvez por medo de sua
extraordinária abertura religiosa e cultural; mas certamente aplica-se bem à atividade dos
Frades menores que, no decurso dos séculos, pregaram, traduziram e comentaram os
textos sacros em outras línguas, convencidos de que todas as línguas e culturas têm em si
a possibilidade de acolher e de repropor o “bem” das Escrituras 10 .
63
prestigiosa Bíblia Poliglota. Beberam de sua reforma dos estudos, centrada sobre a volta
às fontes e às línguas originais, também os missionários que deixaram a pátria para
evangelizar as Américas: André de Olmos, Turíbio Motolinia, Jerônimo Mendieta, Juan
de Torquemada, Jan Bautista Viseo e outros. Um deles, Bernardino de Sahagún (1500-
-1590), fascinado pela língua e pela cultura local, empregou bem trinta anos de sua vida
na busca de dados sobre as sociedades pré-colombianas (Codex Florentinus). Assim,
utilizando o idioma dos indígenas, chegou a compor hinos e, recorrendo à sabedoria de
seus provérbios, tentou traduzir o cristianismo segundo os cânones da cultura asteca. A
fim de superar as distâncias culturais, ele sonhava uma república indiana e espanhola
baseada no princípio da unidade da fé.
Defensor do estudo da cultura local para a evangelização foi também Luis Bolaños,
redator do primeiro catecismo em guarani – e fundador das primeiras reduções do Para-
guai –, tendo sido um dos protagonistas do sínodo de Assunção, convocado pelo co-
-irmão Martin Ignácio de Loyola, Bispo de Rio da Prata (1601). A fama deste último é
devida, particularmente, a seu Itinerário: um diário de viagem à China que, graças a uma
extensa e fulminante difusão, contribuiu muito para acender o interesse do Ocidente pelo
Império celeste. Martin Ignácio de Loyola, que deu a volta ao mundo por bem três vezes,
reduziu as distâncias geográficas e alargou os espaços da comunicação. Seu concorrente
na concepção da globalização cultural pode ser considerado também o Frade menor con-
ventual veneziano Vincenzo Coronelli (165-1718), o primeiro a realizar globos de gran-
des dimensões, pedidos exatamente pelo rei Luís XIV para o palácio de Versailles.
Assim, o mundo diferente do outro, ouvido, amado, estudado, compreendido nas suas
expressões culturais e lingüísticas mais variadas, para nossos Frades, tornou-se o lugar
próprio do diálogo e do anúncio: lugar que acolhe a Palavra, enriquece-a com as resso-
nâncias típicas de cada povo e de cada cultura, torna-a acessível a todos.
Compreende-se, então, porque o catecismo de Pedro de la Piñuela, em língua chi-
nesa, Ch’u hui wên-ta, publicado pela primeira vez em 1680, foi utilizado por mais de
dois séculos, com numerosíssimas edições, a última das quais em 1929. Pedro é um
mestiço, expressão corpórea da interculturalidade e produto cultural do México, país que
se tornou ponte entre Oriente e Ocidente e novo centro do mundo missionário francis-
cano. Todavia, Pedro não é apenas um divulgador, mas também um lingüista. Prova-o o
fato de ter re-elaborado, por necessidades ligadas à evangelização, a gramática do co-
-irmão Basílio Brollo, célebre por ter redigido o primeiro dicionário completo chinês-
-latim (1694).
Figuras excepcionais são também os franciscanos, como, por exemplo, João Wild,
que no confronto com os reformadores protestantes preferiam deixar de lado o método
da controvérsia, para insistir na “parte verdadeira, afirmativa, católica” 11 . Uma forma
particular de pregação foi também a adotada pela diplomacia capuchinha francesa,
encarnada de forma excepcional por José le Clerc de Tremblay, conhecido como “la
petite eminence grise” de Richelieu, ou, por assim dizer, pela política espanhola da Ima-
culada, à qual, de algum modo, está ligado o renascimento escotista, promovido por
Lucas Wadding e por outros franciscanos italianos da família conventual.
—————
11
BAGLIONI, LUCA, Arte del predicare, Veneza 1592 (cp. 6).
64
A figura de Leonardo de Porto Maurício (1676-1751), escolhida pela Igreja como
padroeiro das missões populares, merece algum destaque. Escotista convicto, ele é
defensor da doutrina da Imaculada – a ponto de sugerir ao Papa uma maneira de procla-
mar o dogma sem reunir um Concílio –, sutil diplomata na mediação de facções políticas
contrárias, representa bem o espírito franciscano no século culturalmente mais adverso à
figura do Santo de Assis. Confidente de Bento XIV – um dos poucos, se não o único
Papa a ser louvado por Voltaire –, Leonardo foi enviado a pregar o Jubileu de 1750,
durante o qual foi inaugurada a praxe da Via Sacra no Coliseu. A originalidade de sua
pregação consiste, como ele próprio explica, em pôr-se a meio caminho entre a teatrali-
dade dos jesuítas e o intelectualismo dos filhos de São Vicente. A devoção, centrada na
representação do mistério da Paixão, reproduz o apego dos franciscanos aos lugares
santos da Palestina, reproposto durante os séculos através de diferentes formas, das quais
a de Monte Sacro de Varallo não é a última.
Em tempos a nós mais próximos, um autêntico tradutor da Palavra, no sentido literal
do termo, pode ser visto em Gabriel M. Allegra (1907-1976). Sua tradução dos textos
originais da Bíblia para o chinês reproduz a visão franciscana da missão como obra de
propagação da Palavra. Intérprete do pensamento escotista, ele parece transferir para o
campo bíblico a doutrina do primado de Cristo, defendida pelo Doutor Sutil, ao realçar o
primado da Palavra.
A obra destes geniais homens não teria podido tornar-se patrimônio comum nem
assumir continuidade no seio de uma tradição se não fosse dotada de estruturas organi-
zadas.
Um dos mais notáveis organizadores do saber franciscano é, sem dúvida, Lucas
Wadding (1588-1657). Ele concebeu a atividade cultural em termos colegiais, a ponto de
fundar, em Roma, um colégio de estudiosos para a publicação dos escritos de São Fran-
cisco. Fomentou a promoção do renascimento escotista e da historiografia religiosa e
literária da Ordem. Seus Annales (1625), inspirados nos anais de Barônio, querem pro-
por a caminhada feita pela Ordem na sua história e constituem uma impressionante ope-
ração de autoconsciência religiosa e comunitária.
Depois dele, outro estudioso, Jerônimo De Gubernatis, teria tentado oferecer uma
visão mais universal da Ordem. No Capítulo geral de 1688, num opúsculo intitulado Idea
Orbis Seraphici, ele havia exposto um projeto de história da Ordem, dividida em 4 par-
tes, num total de 35 volumes. Tratou-se de uma empresa colossal, realizada em parte
apenas, mas nem por isso menos admirável se considerarmos o esforço ideológico
/organizativo.
Para o aprendizado das línguas árabe e chinesa e para a preparação dos missionários
destinados ao Oriente Médio e à China, foram fundados dois colégios missionários em
Roma: São Bartolomeu, na Ilha Tiberina, e São Pedro, em Montório. Para a América
Latina, porém, foram ativados os assim chamados Colégios de Propaganda Fide em Que-
rétaro, Guatemala, Zacatecas, México, Pachuca e outros lugares. Ali, através do estudo e
de uma intensa vida espiritual, preparavam-se os missionários enviados a evangelizar os
povos que ainda não haviam conhecido o anúncio cristão.
Em época contemporânea, com o fim dos jurisdicionalismos e após séculos de divi-
são, a Ordem encontrava uma certa unidade, da qual Roma tornou-se quase um símbolo.
65
O Ministro geral Frei Bernardino de Portogruaro, que havia empregado grande parte de
seus vinte anos de serviço visitando incansavelmente as Províncias da Europa, julgou
oportuno criar um centro de estudos que pudesse ser uma base cultural para toda a
Ordem; assim surgiu o Antonianum. Antes ainda havia fundado o periódico Acta Ordi-
nis, órgão de união entre as várias Entidades da Ordem dos Frades Menores, demons-
trando assim sua fé na força da comunicação. Ele quis reafirmar seu propósito insti-
tuindo um Centro de estudos tal que, em termos didáticos, pudesse achegar-se às fontes
já pesquisadas pelos estudiosos do colégio de Quaracchi, fundado por ele mesmo alguns
anos antes, e que hoje continua sua ação no Colégio São Boaventura de Grottaferrata
(Roma).
Na Europa, com o propósito de recrutar novas vocações, a Ordem havia criado os
conhecidos Colégios Seráficos e ia assumindo um caminho didático, graças também à
benéfica influência e colaboração das modernas Congregações femininas franciscanas.
Essa orientação tornou-se mais evidente na missão norte-americana, onde estava bas-
tante difuso o serviço pastoral desenvolvido através das escolas. De fato, Panfilo de
Magliano, fundador das duas Províncias do Leste, instituiu o centro de estudos superio-
res que, mais tarde, tornou-se a célebre Universidade São Boaventura.
No século XX, em várias Províncias da Ordem, vemos presentes e atuantes diversas
Universidades mantidas por elas, além de Colégios e Centros de Estudo de natureza
variada. Após um período de relativa contratura, atualmente assistimos a um novo flores-
cimento destas realidades, que nos obrigam a refletir e a fazer opções mais decididas em
vista da qualificação intelectual da Ordem, superando a baixa cultural que, claramente,
apareceu nos últimos decênios.
A história, brevemente resumida, dá-nos um precioso testemunho e nos estimula a
procurar respostas criativas para o nosso tempo.
—————
12
Cf. SCHALÜCK, H. La promozione degli studi nel ostro Ordine, 75.
66
para, depois, passá-la aos outros, mas como caminho nunca terminado de busca e de
desejo (cf. RS, art. 9. 13. 15).
a. Caminhada de expropriação
A busca da Vida, da Verdade e do Bem, ilimitado oceano de luz, exige uma inteli-
gência apaixonada e, também, atenta e respeitosa, porque, dado que a manifestação da
verdade jamais é imediata, a busca só pode ser incansável hermenêutica. Se não somos
nós que vamos à verdade, mas é a verdade que, de formas variadas, vem a nós, a atitude
preliminar e especial para acolhê-la é a abertura à escuta, à qual seguirá um interrogar
inquieto.
Estou convencido de que temos urgente necessidade desse dinamismo, para não
pararmos na repetição cansativa e estéril de palavras e de fórmulas já esgotadas (FP 1.3;
Sdp 6) e, portanto, para ouvir e encontrar-nos com o homem de hoje numa atitude forte
de simpatia e de interesse (CCGG art. 162). Creio que para nós, franciscanos, o pro-
blema não deve ser tanto estudar para encontrar pontos de contacto entre a Palavra e a
cultura, mas desejar ouvir e conhecer (estudo) o mundo e o homem para “re-conhecer”
nele as “pegadas de Cristo” – tanto na forma de presença, quanto, especialmente hoje, da
ausência – e, portanto, poder louvar a Deus (cf. RFF 32. 90). Será que o Cântico das
criaturas não pode ser lido como uma expressão da forma sapiencial franciscana de ir
para e pelo mundo?
Nesse sentido, o mundo não é um desafio a ser vencido, mas uma ocasião a ser apro-
veitada, um kairós (FP 2). Diante da aceleração da história e do confronto, muitas vezes
tenso e violento, entre culturas e religiões, perguntamo-nos inquietos em que caminhos
ainda são possível descobrir os traços de Cristo no mundo. Confrontamo-nos com muitos
“sinais dos tempos” que não são imediatamente inteligíveis e interpretáveis (Sdp 7-9).
Com freqüência somos obrigados a parar num silêncio inconformado, mas respeitoso e
denso de busca. Então, o estudo é um itinerário colocado para não apagar essa busca. É
um exercício de humanidade e de fé, de diálogo e de confronto com quem é diferente de
nós, de inteligência e de contemplação do maior mistério que habita o mundo e a pessoa
humana.
Assim, o estudo é, sobretudo, “dom” e “busca de Deus”, “ação de graças”, ato de
“reconduzir” tudo a Ele; numa palavra, caminho para a santidade. Com São Boaventura
falamos de esforço “para nos tornarmos bons (ut boni fiamus)” 13 .
Nesse sentido, percebo uma profunda afinidade entre a pobreza franciscana e a
humildade de uma busca desinteressada da verdade, em continuidade com a real deter-
minação de não se apropriar de nada e sermos humildes. O estudo e a pesquisa são
expropriação permanente do saber. Em certo sentido, significa libertar-se, purificar-se
das próprias pré-compreensões para acolher a realidade em sua diversidade e lê-la criti-
camente (RS 26). É uma versão daquilo que Francisco chama “ficar submisso a todas as
criaturas” 14 . É a necessária consciência da própria “docta ignorantia” 15 , do socrático
“não-saber”. Os limites do conhecimento impõem-se a qualquer prometéica pretensão de
—————
13
Cf. BOAVENTURA, Sententiarum I, q. 3, in Opera omnia, ed. Quaracchi, Thomus, pg. 12.
14
Cf. A Caminho, rumo ao Capítulo geral extraordinário, A vocação da Ordem hoje, 2005, 18-
-19.
15
BOAVENTURA, Breviloquium, pars V, cap. 6, in Opera omnia, ed. Quaracchi, Tomus V, 260.
67
possuir a realidade, também nas ciências. Uma verdadeira caminhada de estudo e de
pesquisa transforma essa presunção em desejo e despojamento: é uma forte experiência
existencial de pobreza que nos faz mendicantes.
c. A alegria da verdade
Mas há outro aspecto que gostaria de destacar e que julgo muito importante em nossa
tradição. O gosto e a gratuidade da caminhada para a verdade agem de forma tal que
quem estuda, gradualmente, torna-se um humilde, paciente e devoto servidor da vida.
Isso não tira do estudo a seriedade e o cansaço científico, mas é capaz também de dar
satisfação e alegria, pois, por meio do estudo, encontra-se a verdadeira fonte da vida.
É o gaudium de veritate típico da tradição agostiniana, à qual devemos tanto17. É belo
aprofundar-se no estudo como um lugar no qual experimentar uma alegria particular: a
que vem da busca e da descoberta da Vida, da Verdade e do Bem, capaz de dar mais
profunda unidade interior entre vida e pensamento.
Essa alegria é também fruto do desejo, como escreve nossa Ratio Studiorum no art.
3: “O estudo, como expressão do desejo insaciável de conhecer mais profundamente a
Deus, abismo de luz e fonte de toda a verdade humana (VC 98), é fundamental na vida e
na formação, permanente e inicial, de todo o Frade menor”. Na perspectiva bonaventu-
riana do “desejo”, o estudo não pode ser entendido como posse, riqueza, “status”, como
um desejar “conhecer as palavras e interpretá-las aos outros” (Ex 8, 3); mais do que
posse, o estudo é “deixar-se possuir pela Verdade e pelo Bem, para amar e louvar o
Senhor, ao qual pertence todo o bem, e para servir os irmãos na caridade de Cristo” (RS
4). Dessa forma, o estudo pode tornar-se exercício profundo de busca como desejo e
desapropriação, que tem como fruto a alegria.
—————
16
SCOTUS, J. Duns, Ordinatio IV, d. 1. q. 3, n. 8 (ed. Parisien, vol XVI p. 136a: “In processu
generationis humanae eimper crevit notiti veritatis”. Aqui, Scotus acena inderectamente para a
afirmação de S. Gregório Magno: “Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium patrum
(Testamenti Veteris et Novi”: in Ezechielem II, hom 4, n. 12 (PL 76, 980).
68
d. Antecipação do futuro
Creio que temos urgente necessidade dessa inquieta interrogação, entendida como
caminho de liberdade e de alegria, para não limitar-nos a voltar para a “graça das ori-
gens” quase satisfeitos ou saudosos de nosso passado. Queremos realmente viver a graça
das origens “não somente como memória do passado, mas como profecia de futuro” (cf.
NMI 3; VC 110). O pensamento deve alimentar-se na fonte da Verdade, da Vida e do
Bem e, ao mesmo tempo, projetar-se para horizontes abertos. Uma filosofia e uma teolo-
gia críticas impedirão que o olhar retrospectivo caia num puro tradicionalismo ou numa
nostalgia sentimental em relação às nossas origens. Ao mesmo tempo, a exatidão do
pensamento ajudará a superar todas as ideologias futuristas e utópicas. O pensamento
franciscano foi capaz de discernir os sinais dos tempos e de encontrar sempre de novo a
corajosa força de uma palavra profética sobre o mundo e a sociedade e, se necessário,
também no seio da própria Igreja, para fazer recordar a ordo divina, que é a única que
pode prometer a salvação e a felicidade do homem.
É o Espírito que nos projeta para o futuro (cf. VC 110). Por isso, a busca não pode
parar. Significaria que nossa proposta carismática deixou de ser vital. A busca, da qual o
estudo é uma dimensão, não pode parar, se quisermos “descobrir criativamente novos
caminhos para promover e difundir os valores evangélicos” (RFF 34).
e. Como irmãos
69
res. Quem se dedica ao trabalho intelectual “com fidelidade e devoção”, não sufocando
em si a ação do Espírito, exatamente no trabalho e por seu trabalho, sem justaposições
artificiais, pode tornar-se ao mesmo tempo “laborator, praedicator et orator”.
Esta unidade de nossa forma vitae é um apelo urgente a todos nós. Abre a análise
também sobre o papel que o trabalho tem em nossa vida. O trabalho é uma necessidade
ligada à nossa profissão de pobreza e de minoridade. Torna-nos mais solidários a muitos
homens e mulheres para os quais o trabalho já não é fonte de dignidade. Obriga-nos a
optar novamente por uma hierarquia de valores que nos sustenta 17 .
Tudo isso me faz pensar também nos Frades e nos candidatos que, talvez, são menos
atraídos pelo estudo, no sentido estrito da palavra. Também hoje devemos reconhecer
que as capacidades intelectuais não podem ser discriminantes para a vocação francis-
cana. Todavia, todos nós temos o dever de garantir a todos os Frades, sem distinções, um
nível de preparação tal que permita que cada um se integre na vida da Fraternidade.
Sejamos vigilantes, para que, por causa de um conceito de cultura demasiadamente aca-
dêmico e, portanto, reduzido, não aconteça que excluamos alguns Frades, ferindo assim
a igualdade entre nós. Interroguemo-nos sobre os níveis de acessibilidade aos estudos
nos diversos contextos em que vivemos e sobre as conseqüências para o discernimento
vocacional e para os serviços na Fraternidade.
a. Ouvir e ver
—————
17
Cf. A Caminho, rumo ao capítulo geral extraordinário, “A vocação da Ordem hoje”, Roma,
26-30.
70
A experiência integral da fé nos salva daquela escuta que se perde no “diz-se” das
conversas diárias e daquele “ver” que é consumo de informações e de imagens. Dessa
forma, rompe-se a inautenticidade na qual estamos mergulhados para acordarmos na
verdade. Portanto, a escuta e o ver são um ato de verdadeira e própria interpretação da
realidade, que não deve ser agredida, possuída e dominada, mas, ao contrário, deve ser
acolhida, reconhecida e promovida.
Esse percurso implica num deixar-se expropriar, num êxodo de si. Por isso, é uma
verdadeira experiência, no sentido etimológico de experior, uma passagem através de um
perigo mortal, onde se realiza uma real mudança de si. A escuta de uma palavra verda-
deira gera um novo modo de ver e opera sempre uma profunda transformação. Santo
Agostinho fala em “dar à luz uma nova vida (parturitio novae vitae)” 18 , onde a escuta é
“memória de si, memória de Deus (memória mei, memoria Dei)”. O espanto é o fruto
dessa nova capacidade de escuta.
O estudo é uma das estradas para esta nova escuta do homem e do mundo. Com
efeito, ele nos liberta do medo do nobre cansaço do pensar, enquanto, muitas vezes, nós
nos contentamos em repetir fórmulas e idéias dos outros. Liberta-nos, também do medo
do silêncio, para tomar uma certa distância da realidade. Daqui nascem palavras novas
para gerar uma nova vida, além de palavras tomadas pelo hábito e pela obviedade. Se-
melhante percurso traz consigo o sofrimento de todo o novo nascimento, inclusive a ale-
gria da descoberta.
Vivemos um tempo como o de Samuel, do qual se diz que “naquele tempo a palavra
do Senhor era rara” (1Sm 3,1). Parece que Deus se cala ou esteja quase eclipsado de
nosso horizonte. O sacerdote Eli – instituição – não reconhece logo a voz do Senhor. É
um exercício que exige uma vigília constante, uma interpretação incansável. Deus chama
o pequeno Samuel no silêncio da noite e das palavras humanas. Chama-o por seu próprio
nome: é o despertar da consciência e a assunção de um novo destino, dos quais nasce o
profeta.
Esse itinerário bíblico pode tornar-se modelo para quem busca novos caminhos para
viver este difícil tempo. O estudo é um desses caminhos se se tornar um exercício de
escuta obediente, de recepção do outro enquanto diferente de nós, de olhar novo sobre
ele. A isso somos provocados pelas culturas que hoje se apresentam no cenário do
mundo, pelas muitas crenças e religiões com as quais somos chamados a dialogar, pelos
desafios éticos, os do mundo da comunicação, pela tecnologia, pela engenharia genética
e por muitos outros quadros de confronto. Nos diversos continentes e países nos quais
estamos presentes, estes desafios nos provocam de muitas formas. Indicar uma única
estrada é difícil, ou até impossível. Trata-se de tornar-nos sempre mais conscientes da
necessidade de educar-nos para a escuta e para o diálogo, a fim de aprender a arte do
encontro com as culturas.
Sem dúvida, é urgente encarnar nosso carisma nas diversas culturas em que estamos
presentes e descobrir nelas os germens da intuição evangélica de São Francisco, que tem
condições de revelar também suas novas profundezas (cf. RS 16. 26. 72. 74). “Pensar a
fé” é, então, exercício profético dos crentes a serviço da libertação do homem e do dis-
—————
18
Agostinho, Confissões VIII, c.6 Petrópolis; Ed. Vozes 2001, pg. 177.
71
cernimento das formas culturais em que vivemos. Por isso, temos necessidade de conso-
lidar tanto a opção vocacional quanto nossa preparação. Com efeito, como disse meu
predecessor Fr. Hermann Schalück, “A presunção, a superficialidade, a indiferença pe-
las ciências humanas e sacras devem ser consideradas uma ofensa ao dom da vida, ao
homem e à Verdade… Considero um abuso e uma falta de respeito o fato de apresentar-
-se para servir a uma causa nobre como o Evangelho e o homem sem a devida prepa-
ração, ou sem a capacidade de diálogo e de leitura dos sinais dos tempos. Por isso,
deve-se considerar um dever fundamental de cada frade, cada um segundo seus dons, a
dedicação ao estudo. Pois o estudo, se bem fundamentado nos valores franciscanos,
pode realmente ajudar-nos a amadurecer humana, intelectual e espiritualmente e tor-
nar-nos capazes de perceber, com inteligência evangélica, os valores cristãos e francis-
canos da cultura contemporânea” 19 .
Nesse contexto, olho convosco para os diferentes meios e culturas nas quais vivemos.
Penso, particularmente, na exigência de escuta e de diálogo na Ásia, continente no
qual o diálogo inter-religioso assume um lugar especial. Nossa presença na Ásia é pe-
quena; no entanto, desafia-nos a preparar-nos adequadamente para aquele que é, certa-
mente, o continente do futuro, graças à juventude de sua população e às enormes poten-
cialidades nela contidas, em todos os níveis.
Penso na Oceania, onde a história da evangelização nos faz sentir como primária a
urgência da aculturação da fé cristã, em vista da qual é necessária uma sólida e adequada
preparação. A esse respeito, o Papa Paulo VI, ao visitar a Oceania, insistiu no fato que o
catolicismo “não só não sufoca o que existe de bom e de original em cada forma de cul-
tura humana, mas acolhe, respeita e valoriza o gênio de cada povo e reveste de variedade
e de beleza a única e inconsútil veste da Igreja de Cristo” 20 . Nesse imenso continente,
somos fortemente convidados a agir em harmonia com os cristãos indígenas para garan-
tir que a fé e a vida da Igreja sejam expressas em formas apropriadas a cada cultura 21 .
Penso na África, infindo continente que grita por paz e justiça, esquecido que é pela
comunidade internacional. A esse propósito, é muito atual a afirmação de Paulo VI na
Encíclica Populorum Progressio: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” 22 . João
Paulo II, na Exortação Apostólica “Novo Millennio Ineunte”, atualizou o grito, recor-
dando que apostar na caridade é questão de fidelidade ao Evangelho 23 . A África é rica
em culturas e tradições; nelas o cristianismo e o franciscanismo esperam, sem dúvida,
tornar-se mais africanos; ora, isso exige um qualificado investimento de reflexão e de
estudo, para respondermos à nossa vocação de “guardiães da esperança” 24 .
Penso na África do Norte e no Oriente Médio, onde a presença franciscana, num con-
texto muçulmano, continua a pedir-nos o esforço de conhecer e de encontrar-nos com
aquele mundo particular, e hoje em convulsão, no espírito do encontro de Francisco com
o Sultão: isso não será possível sem o estudo rigoroso do mundo islâmico e da língua
—————
19
SCHLALÜCK, H. A promozione degli studi nel nostro Ordine, in Acta Congressus
Repraesenrantium Sedem Studiorum OFM, Roma 1994, 70.
20
PAULO VI, Discurso aos Bispos da Oceânia, Sidney, 1970, in AAS 63 (1971), 56.
21
Cf. JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Ecclesia in Oceânia, 2001, 17.
22
PAULO VI, Populorum Progressio, 76-80.
23
Cf. JOÃO PAULO II, Novo Milenium Ineunte, nn. 49-50.
24
Cf. RS 27; JOÃO PAULO II, Discurso no Pontifício Ateneu Antoniano, 1982, n. 4: “Como S.
Francisco, sede também vós no mundo de hoje os guardiães da esperança.
72
árabe, na partilha, como menores, da vida de muita gente, aceitando e aprendendo a
viver como minoria.
Penso na América Central e do Sul, áreas de forte maioria cristã, com sua criativi-
dade pastoral e teológica. Nelas, o crescimento do confronto com outras comunidades
cristãs e com as seitas nos desafia a renovar nossa presença e nosso anúncio. Nesse sub-
continente, a situação de pobreza e de injustiça constitui ainda um enorme estímulo para
pensar os fundamentos da paz, da justiça e da integridade da criação. Isso nos desafia a
conhecer melhor os mecanismos causadores de tão escandalosa miséria e a pensar no
tempo da globalização a partir da cátedra dos excluídos e dos mais pobres (cf. EN 31;
RS 27).
Penso no mundo ocidental, da velha Europa à América do Norte, onde é preciso
repensar a própria possibilidade de falar de Deus num mundo secularizado, onde o
sagrado re-emerge, mas a fé parece se eclipsar. Após o desaparecimento das grandes e
loucas ideologias do século XX, o destino do Ocidente parece particularmente incerto e
necessitado de um suplemento de alma para olhar para o futuro; especialmente através
de uma radical reflexão ética acerca dos limites da vida e da morte e de uma antropolo-
gia que respeite a integralidade da pessoa humana, sujeito de direitos inalienáveis e ja-
mais redutíveis ao domínio da economia e da esfera privada do indivíduo.
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vindicação de direito algum sobre os outros, pois somos chamados a servi-los também
com nossa pesquisa intelectual. O que se aprendeu deve ser partilhado como uma riqueza
comum que vem do Altíssimo. Caminhada exigente numa sociedade e em instituições
culturais que tendem a fazer dos especialistas os depositários privilegiados de um saber
que os distingue dos outros.
Parece-me, pois, que, como Frades menores, por força de nosso próprio nome, somos
chamados a desempenhar uma disposição de vida que devolva ao estudo sua qualidade
de humilde serviço. Estamos diante de uma verdadeira e própria convergência entre a
espiritualidade franciscana e o trabalho intelectual.
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25
BINI, G. Saluto desl Gran Cancelliere per l’inaugurazione dell’Anno Academico 2000-2001,
no Pontifício Ateneu Antonianum, in Liber Trienalis 1999-2002, Roma 2003, 47; cf. RS 15
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também a terem a audácia de partir novamente para viver e anunciar o Evangelho
quando e como virem que isso agrada ao Senhor (cf. 1R 16, 7-8).
75
tura, Artes, Filosofia e História; e as que se referem à criação: Ciências exatas, naturais e
ambientais (cf. RS 48-69), pois “nada daquilo que existe é estranho ao interesse e ao
amor do Frade menor” (RS 48). Se vividos como “itinerário e caminho para sermos ilu-
minados por Deus na mente e no coração” (RS 13), o estudo, a pesquisa e o ensino hão
de conduzir-nos a Ele.
Por essa razão, o estudo, a pesquisa e o ensino, finalidade de cada Universidade e
Centro de Estudo, são essencialmente experiência de vida. Para um Frade menor – estu-
dante, professor ou pesquisador – nenhuma dessas atividades é um distintivo para
embelezar o próprio eu. É antes cansaço e paixão para o verdadeiro, o bom e o belo, que
dão forma à nossa interioridade, sentido à existência humana e religiosa, razão às nossas
opções vocacionais (cf. RS 11). O objetivo último do estudo, da pesquisa e do ensino em
nossas Universidades e Centros de Estudo, e dos Frades menores que se dedicam a isso,
não é, pois, o de adquirir e oferecer informações, menos ainda o de ter um título. Mas de
estimular a busca da Vida, da Verdade e do Bem, em nós e nos outros. Certamente, não
basta estar bem informado. Só a transformação da mente e do coração levará a um
estudo, a uma pesquisa, a um ensino verdadeiramente fecundos.
Nossas Universidades e Centros de Estudo e de Pesquisa são chamados a dar sua
colaboração para se elaborar uma cultura a serviço integral do homem, capaz de ir além
dos critérios de praticidade, de rendimento e de concorrência, não estranhos às próprias
Universidades. Seguindo a secular tradição dos grandes representantes da Escola fran-
ciscana, nossas Universidades devem apostar na “diaconia” do saber a serviço do
homem, superando assim o poder da ciência que explora o homem.
Por outro lado, todos os Centros de Estudo e de Pesquisa franciscanos são chamados
a transmitir de forma atualizada o patrimônio cultural, filosófico e teológico da Escola
franciscana, na convicção de que “do grande depósito da teologia e da sabedoria fran-
ciscana podem ser tiradas respostas adequadas também para as dramáticas interroga-
ções da humanidade” 26 . Isso exige, sem dúvida, um estudo crítico e aprofundado da
tradição cultural franciscana. Estudá-la por curiosidade é estéril, estudá-la de forma
apologética é triunfalismo prejudicial. É necessário aprofundá-la criticamente, para ilu-
minar com um verdadeiro e próprio ato de esperança as grandes questões que nosso
tempo nos apresenta.
Abertas ao diálogo fecundo com as culturas, nossas Universidades e Centros de
Estudo e de Pesquisa têm a importante tarefa de criar pontes entre elas e o Evangelho.
João Paulo II nos disse: “É tarefa das vossas Universidades e Centros de Pesquisa reali-
zar um encontro fecundo entre o Evangelho e as diversas expressões culturais de nosso
tempo para ir ao encontro do homem de hoje… Segundo o exemplo de São Francisco e a
grande tradição cultural da Ordem franciscana, tende o cuidado de colocar o Evange-
lho no coração da cultura e da história contemporânea” 27 .
A abertura para a complexidade do saber humano induz à escuta e ao diálogo, como
procurei lembrar nesta Carta. O verdadeiro intelectual é sempre capaz de perguntas; é
humilde e corajoso ao prestar atenção sincera aos argumentos de quem tem posições
diferentes. Essa disposição nos impede de cair em várias formas de ideologia que pre-
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26
JOÃO PAULO II, Mensagem aos participantes do Congresso Internacional das Universidades,
Centros de Estudos e de Pesquisa OFM, 2001, in Atti del Congresso Internazionale delle Universitá,
Roma 2002, 25.
27
Id., ibid, 25.
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tendem tornar exclusiva uma idéia ou parte dela e são fruto da falsa segurança de uma fé
que tem medo de pensar e pensa poder ignorar as perguntas e as ambigüidades presentes
na realidade. Eis uma importante missão que fica aberta às nossas Universidades e Cen-
tros de Estudo e de Pesquisa 28 .
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28
Sobrea s áreas do Estudo, cf. OPPES, STEFANO OFM, Formazione e studi nella Ratio Studiorum
sell’Ordine dei Fratri Minori LXXVII 1 (2002), 13-23.
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dar e a entrar nesse mundo, não como intrusos, mas como quem sabe que está em casa
onde existe algo que é plenamente humano.
Não posso deixar de destacar aqui a necessidade de garantir pesquisadores e estudio-
sos da história, da literatura, da filosofia, da teologia e da tradição franciscana. Não só no
que se refere diretamente às origens, mas por todo o espaço de oitocentos anos durante
os quais nossa tradição se mantém viva. Particularmente, instituições como a Comissão
Escotista, o Colégio São Boaventura dos Frades Editores de Quaracchi e a Pontifícia
Academia Mariana Internacional, para terem continuidade, pedem Frades seriamente
preparados e abertos a colaborações externas.
CONCLUSÃO
Chegando ao fim desta Carta, desejo comunicar-vos com simplicidade que, neste
momento, considero fundamental uma aproximação maior entre os Frades que se dedi-
cam à evangelização e os que se entregam ao estudo, à pesquisa e ao ensino. Sua recí-
proca presença no decorrer da história franciscana não pode ser considerada uma des-
graça, mas uma riqueza. É antes o divórcio e a oposição entre as duas que constituem
uma desgraça, segundo vemos muitas vezes em nossa história. Dessa forma foram pena-
lizados o estudo, a pesquisa e a pregação.
Muitos Frades dedicados à evangelização consideraram-se dispensados do estudo e
muitos estudiosos julgaram-se isentos da evangelização. Chegou a hora da reconciliação.
Se parece que os Frades se deixam absorver completamente pelos ministérios e serviços,
é necessário recordar-lhes a necessidade do estudo: uma adequada preparação intelectual
é fundamental em qualquer atividade apostólica. Ao mesmo tempo, aos que se dedicam
ao estudo, à pesquisa e ao ensino de forma prioritária, sinto a necessidade de lembrar que
estas atividades não podem ser separadas do dom e do esforço de viver com alegria as
exigências de nossa forma vitae.
Gostaria que com esta Carta tivesse início um diálogo sobre os temas que apresentei.
Estimo, sobretudo, que tal diálogo continue em vários níveis e nos diferentes contextos
culturais, nas Entidades, nas Fraternidades locais, nas Casas de formação, em nossas
Universidades e nos Centros de Estudo. Um diálogo que nos leve a progredir, para po-
dermos olhar com confiança e lucidez o futuro que nos espera e que já se inicia entre
nós. Certamente, não tenho a pretensão de ter dito tudo e bem. O diálogo entre nós po-
derá completar o texto.
Sobre os que estão à busca da Verdade, da Vida e do Bem e sobre os que estão em
atitude de encontro, de escuta e de diálogo invoco a bênção do Senhor e do Seráfico Pai.
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ABREVIATURAS
Sagrada Escritura
Sl Salmos
1Sm Primeiro livro de Samuel
Mt Evangelho de São Mateus
Lc Evangelho de São Lucas
Jo Evangelho de São João
1Cor Primeira Carta aos Coríntios
1Jo Primeira Carta de João
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