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DIREITO E DEMOCRACIA

Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA


Vol. 13 – Nº 1 – Jan./Jun. 2012
ISSN 1518-1685

COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” Julian Mora Aliseda


Presidente Luigi Ferrajoli (Università Roma Tre/Itália)
Adilson Ratund Raúl Cervini (Universidad de la Republica de Uruguay)
Wanda Capeller (Toulouse/França)
Vice-presidente
Jair de Souza Junior
Membros nacionais externos
Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)
Anderson Vichinkeski Teixeira (UNISINOS)
Cláudio Brandão (UFPE)
Reitor Cláudio Muradás Homercher (UniRitter)
Marcos Fernando Ziemer Eduardo Reale Ferrari (USP)
Vice-Reitor e Pró-Reitor de Extensão Elaine Harzheim Macedo (PUCRS)
e Assuntos Comunitários Gerson Luiz Carlos Branco (PUCRS)
Valter Kuchenbecker Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)
Jayme Weingartner Neto (UNILASALLE)
Pró-Reitor de Administração José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS)
Levi Schneider Luís Afonso Heck (UFRGS)
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Miguel Reale Jr. (USP)
Nereu José Giacomolli (PUCRS)
Erwin Francisco Tochtrop Júnior
Orides Mezzaroba (UFSC)
Pró-Reitor de Graduação
Vladimir Passos de Freitas (UFPR)
Ricardo Willy Rieth
Pró-Reitor Adjunto de Graduação
Membros nacionais internos
Pedro Antonio Gonzalez Hernandez
Daniela de Oliveira Pires (ULBRA)
Jorge Trindade (ULBRA)
Capelão Geral Luiz Gonzaga Silva Adolfo (ULBRA)
Lucas André Albrecht Marco Felix Jobim (ULBRA)
Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA)
DIREITO E DEMOCRACIA
Indexador: Latindex EDITORA DA ULBRA
Diretor: Astomiro Romais
Editor Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes
Maria Aparecida Cardoso da Silveira Capa: Everaldo Manica Ficanha
Editoração: Roseli Menzen
Conselho Editorial E-mail: editora@ulbra.br

Membros internacionais Solicita-se permuta. We request exchange.


André-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre) On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.
Etienne Picard (Université de Paris I/França)
Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza/Itália) Endereço para permuta
Fernando dos Reis Condesso Universidade Luterana do Brasil
Giuseppe Tinelli (Università Roma Tre/Itália) Biblioteca Martinho Lutero - Setor de aquisição
Ielbo Marcus Lôbo de Souza (University of Manitoba/Canadá) Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 05
Jorge Bacelar Gouveia 92425-900 - Canoas/RS

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dos autores. Direitos autorais reservados.
Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas /


Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- .-
Canoas : Ed. ULBRA, 2000- .
v. ; 23 cm.

Semestral.
A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para
Revista de Ciências Jurídicas.
ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade


Luterana do Brasil.
CDU 34(05)

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero


Sumário
3 Editorial

Doutrina nacional
4 Administração pública (tributária) e baixa constitucionalidade: ou de como um
ato administrativo vale mais do que a Constituição para a administração pública
(tributária)
Marciano Buffon; Mateus Bassani de Matos

21 Positivismo Jurídico 2: crítica às características centrais


Orlando Luiz Zanon Junior

47 Levando o direito a sério: há realmente uma nova escola na teoria do direito?


Charles Andrade Froehlich

68 Aportes hermenêuticos sobre direito dos tratados


Rafael Köche

85 O plano diretor e o desenvolvimento do turismo socioambientalmente


sustentável
Adir Ubaldo Reck; Karine Grassi

97 Igualdade, liberdade e responsabilidade convergentes à concepção humanista da


vida e da política em Ronald Dworkin
Eliseu Raphael Venturi

109 Democracia, garantismo e direitos fundamentais: uma observação do papel da


jurisdição no garantismo de Ferrajoli
Isadora Ferreira Neves

124 O devido processo constitucional como forma de alcançar a justiça das decisões
Juliana de Brito Giovanetti Pontes

138 A exigência da representatividade ao amicus curiae: abertura à participação


democrática e a possibilidade de atuação dos movimentos sociais como amicus
curiae no controle concentrado de constitucionalidade
Geisla Aparecida Van Haandel Mendes

158 O ativismo judicial por meio de súmulas vinculantes: uma análise acerca dos
paradoxos da separação de poderes na atualidade
Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar
Editorial

Apraz-nos profundamente levar ao público do meio jurídico o primeiro número do


décimo terceiro volume da Revista Direito e Democracia, gerida pelo Curso de Direito
da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS). Aproveitamos o ensejo para saudar a
entrada no Conselho Editorial Interno do Professor Marco Félix Jobim.
Abrimos este número com a contribuição de Marciano Buffon e Mateus Bassani de
Mato acerca do conflito entre a Constituição e os atos administrativos na Administração
Pública tributária. O positivismo jurídico é amplamente analisado em suas insuficiências
no artigo de Orlando Luiz Zanon Junior. Os fundamentos da teoria do direito é objeto de
estudo para Charles Andrade Froehlich. Já Rafael Köche faz uma análise hermenêutica
do direito dos tratados. O desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentável
é o tema de Adir Urbano Rech e Karine Grassi. Igualdade, liberdade e responsabilidade
na obra de Dworkin são estudados no artigo de Eliseu Raphael Venturi. O garantismo de
Ferrajoli e o papel da jurisdição na tutela dos direitos fundamentais é o tema central do
artigo de Isadora Ferreira Neves. Em seu artigo, Juliana de Brito Giovanetti Pontes analisa
o devido processo constitucional como forma de alcançar a justiça das decisões. Geisla
Aparecida Van Haandel Mendes analisa a participação democrática e a possibilidade
de atuação dos movimentos sociais como amicus curiae no controle concentrado de
constitucionalidade. Por fim, concluímos o presente número com um estudo sobre o
ativismo judicial por meio de súmulas vinculantes frente ao princípio da separação de
poderes, de Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar.
Agradecemos aos nossos autores pelas suas valorosas contribuições, sem as quais
esta revista não seria uma realidade.
Reiteramos nossa satisfação em receber trabalhos de quem tiver interesse em vê-los
publicados na revista.
Os artigos poderão ser remetidos para: revistadireitoedemocracia@gmail.com

Maria Aparecida Cardoso da Silveira


Editora

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 3


Administração pública (tributária)
e baixa constitucionalidade:
ou de como um ato administrativo vale mais
do que a Constituição para a administração
pública (tributária)
Marciano Buffon
Mateus Bassani de Matos

RESUMO
O objetivo do trabalho é evidenciar a “baixa constitucionalidade” em que está inserida a
administração, mormente a tributária, a partir da análise de um ato administrativo específico. O
Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição Federal de 1988, possui um caráter
transformador da sociedade, erigindo parte específica para tratar dos princípios que devem conformar
o exercício da função tributária. A Nova Crítica do Direito incorpora a filosofia hermenêutica
de Heidegger e a hermenêutica filosófica de Gadamer, mostrando que a linguagem deixa de ser
mero instrumento, transformando-se em morada do ser. Não mais se interpreta para compreender,
mas sim se compreende para interpretar a partir de pré-juízos autênticos. Há o rompimento
com os pressupostos metafísicos. Em relação à atividade tributária, em especial, os intérpretes/
juristas continuam refratários à viragem ontológico-linguística e reféns da metafísica, mormente
a objetivista, e em plena dissonância com os postulados constitucionais. O ADI/RFB nº 42/2011
implica clara ofensa ao princípio da legalidade e ao sentido do modelo de Estado instituído pela
Constituição.
Palavras-chave: Administração Pública. Estado Democrático de Direito. Nova Crítica do
Direito. Baixa Constitucionalidade. Tributação.

Public administration (tributary) and low constitutionality:


Or as an administrative act is worth more than the Constitution
for the public administration (tributary)

ABSTRACT
The objective is to demonstrate the “low constitutionality” that is inserted the administration,
especially the tax, based on the analysis of a specific administrative act. The Democratic State of
Law, established by the 1988 Federal Constitution, has a transforming character of society, erecting
specific part to address the principles that should conform their exercise of the tax. The New Criticism

Marciano Buffon é Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor dos cursos
de graduação e Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Advogado.
Mateus Bassani de Matos é Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduado
em Direito na UNISNOS. Advogado.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.4-20 jan./jun. 2012


4 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012
of law incorporates the hermeneutical philosophy of Heidegger and Gadamer’s philosophical
hermeneutics, showing that language stops being mere instrument, becoming a dwelling being.
No more interpreted to understand, but it is understood to interpret from pre-judgments authentic.
There is a break with the metaphysical assumptions. In relation to activity tax, in particular
interpreters/jurists continue refractory turning ontological-linguistic and hostages of metaphysics,
especially the objectivist, and in full disagreement with the constitutional principles. The ADI/
RFB nº 42/2011 implies clear offense of the principle of legality and to the model established by
the State Constitution.
Keywords: Public Administration. Democratic State of Law. New Criticism of Law. Low
Constitutionality. Taxation.

1 INTRODUÇÃO
Este ensaio tem por objetivo exemplificar como a administração pública tributária
valoriza mais um ato administrativo do que a própria Constituição. Para firmar a premissa,
será utilizado o Ato Declaratório Interpretativo da Receita Federal do Brasil (ADI/RFB)
nº 42/2011, expedido no final do ano de 2011, com o objetivo de estabelecer critérios
de arrecadação acerca da contribuição previdenciária àquelas empresas que passaram a
recolhê-la não mais sobre a folha de salários, mas sim sobre a receita bruta de atividades
beneficiadas – no momento oportuno à questão será devidamente explicitada.
Primeiramente, analisa-se o Estado Democrático de Direito (paradigma formalmente
implementado pela Constituição), relativamente à sua carga de sentido/principiológica,
mormente quanto àqueles princípios que expressam garantias aos contribuintes e balizas
para a administração em sua função tributária. Se o objetivo da pesquisa é verificar o
desrespeito por parte da administração em sua função tributária, imprescindível destacar
as garantias dos contribuintes.
Num segundo momento, buscando amparo doutrinário em Lenio Streck, analisa-se a
contribuição da Nova Crítica do Direito – que procura superar o objetivismo/subjetivismo
com fundamento em Heidegger e Gadamer – e do Constitucionalismo Contemporâneo –
que contrasta com o neoconstitucionalismo, desconsiderando os efeitos que a recepção
acrítica de determinadas teorias gerou no Judiciário Brasileiro.
Por fim, apresenta-se o ato administrativo utilizado como premissa, e, que, conforme
será demonstrado, pretendeu estabelecer critérios de arrecadação ao largo do princípio da
legalidade. Em pleno século XXI, estando em vigor no Brasil o Estado Democrático de
Direito (ainda que formalmente), a administração pública tributária continua refratária
ao paradigma instituído pela Constituição, e, especialmente, à virada linguística operada
pela filosofia hermenêutica e pela hermenêutica filosófica.
Passa-se, então, à verificação do modelo de Estado instituído pela Constituição
brasileira, e aos objetivos e princípios que nela se encontram expressos, e estão atrelados,
ainda que indiretamente, à tributação.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 5


2 OS CONTORNOS PRINCIPIOLÓGICOS DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
Em razão do aprofundamento das experiências do Estado Social e em face das
circunstâncias e contingências históricas que o conformaram, ocorreu uma sofisticação
desse modelo estatal, o qual se transformou no denominado Estado Democrático de
Direito, atrelado à ideia de legitimação do poder pelo povo.
O referido modelo estatal assumiu uma inegável função transformadora da realidade
social, haja vista que essa nova concepção impõe ao Estado o papel de direcionar as suas
ações no sentido de construir uma sociedade menos desigual. Expresso de outra forma,
cabe ao Estado Democrático de Direito a utopia (?) da concretização da igualdade material,
razão pela qual Bolzan de Morais (2002, p.37/38) explica:

O Estado Democrático de Direito emerge como um aprofundamento da fórmula, de


um lado, do Estado de Direito e, de outro, do Welfare state. Resumidamente pode-se
dizer que, ao mesmo tempo em que se tem a permanência em voga da já tradicional
questão social, há como quê sua qualificação pela questão da igualdade. Assim o
conteúdo deste se aprimora e se complexifica, posto que impõe à ordem jurídica e
à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação do status quo.

Nessa nova organização social, o Estado tem um papel decisivo no sentido de não
apenas assegurar a igualdade formal, mas, sobretudo, alcançar a igualdade material,
isto é, o Estado passa a ter, como condição de existência, a busca de meios que possam
minimizar as desigualdades decorrentes do modelo econômico vigente.
Entretanto, o Estado Democrático de Direito, apesar de ter nascido sob o influxo
do neoconstitucionalismo – carregando consigo a marca de um projeto de transformação
social – encontra-se mergulhado em dilemas para efetivação das promessas constitucionais.
Nesse sentido, Bolzan de Morais (2002, p.151/153) alerta que o grande dilema que parece
ser vivido hoje é aquele que contrapõe o descompasso entre as promessas constitucionais
e as possibilidades de sua realização.
Mas é fato que no Brasil, o novo texto constitucional representa uma ruptura
do modelo de direito e de Estado, a partir de uma perspectiva claramente dirigente e
compromissária (STRECK; MORAIS, 2006, p.139), ou seja, a constituição do chamado
Estado Democrático de Direito, considerada um novo paradigma, propõe a superação do
direito enquanto sistema de regras, a partir dos princípios:

O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não


se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das
condições sociais de existência. Assim, seu conteúdo ultrapassa o aspecto material
de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como
fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de

6 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para
veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade,
onde a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do
problema das condições materiais de existência. (STRECK, 2006, p.97)

Frente aos objetivos do Estado Democrático de Direito e aos problemas ora


enfrentados por esse modelo de Estado, as questões que se colocam são: “Como se
interpreta adequadamente o texto que constitui esse Estado Democrático de Direito?
Como se aplica e se é possível alcançar condições interpretativas capazes de garantir
efetividade aos objetivos propostos?” (STRECK; MORAIS, 2006, p.138).
Não há como se sustentar ser adequado que um país tenha um texto constitucional
que funda objetivos a serem cumpridos, e, por outro lado, esses não passam de mera
promessa, sem efetivação prática. Assim, a criação do Estado Democrático de Direito
aponta para o resgate de promessas não cumpridas da modernidade, circunstância que
assume especial relevância em países periféricos e de modernidade tardia, como o Brasil
(STRECK, 2006, p.104). Como ressalta Marciano Buffon (2009, p.31):

Esse modelo estatal assume uma inegável função transformadora da realidade


social, haja vista que essa nova concepção impõe ao Estado o papel de direcionar
suas ações no sentido de construir uma sociedade menos desigual. Ou seja, cabe
ao Estado Democrático de Direito a utopia (?) da concretização da igualdade
material, [...].

A Constituição Brasileira de 1988 instituiu (ainda que, formalmente) o Estado


Democrático de Direito. Como já analisado anteriormente, trata-se de um aprofundamento
do Estado Social que agregou, em seu seio, o plus democrático, dando, em tese, o poder
ao povo de participar das decisões, de modo indireto, via representantes escolhidos por
votação. Nesse tipo de Estado, há uma evolução na busca da igualdade, na medida em que
não se pretende apenas uma isonomia formal, relativamente aos direitos civis e políticos
do clássico Estado Liberal Burguês, mas a concretização da igualdade substancial, aquela
que almeja, no limite de suas possibilidades, o mesmo direito à saúde, à educação e às
rendas. De acordo com Bolzan de Morais (2011, p.151):

Quando se constitucionaliza o chamado Estado Democrático de Direito, deve-


se atentar para o que isso significa e, por consequência, para as condições,
possibilidades e limites de realização das promessas construídas no/pelo “contrato
constitucional” e contidas no bojo da Carta Política que o caracteriza, bem como
há que se ter em mente tratar-se de um Estado Democrático de Direito, cuja
normatividade não apenas organiza o poder – e mesmo por isso – mas, também,
define seus procedimentos e espaços de atuação

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 7


A Carta Magna traz, entre seus fundamentos, a busca pela efetivação da cidadania,
da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, em paralelo com a livre
iniciativa (art. 1º). Também adota, como objetivos fundamentais, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento social, a erradicação da
pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do
bem de todos (art. 3º).
Com relação aos Direitos Econômicos e Sociais, restou positivado também, na
Lei Maior, o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança,
além da assistência aos desamparados, entre outros (art. 6º). Deve-se referir, ainda, que a
saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196), assim como a educação (art. 205),
a cultura (art. 215) e o desporto (art. 217). Sob a perspectiva da ordem econômica, está
esculpido que a república tem por fim assegurar a todos a existência digna, de acordo
com os ditames da justiça social e, entre vários princípios, a redução das desigualdades
regionais e sociais, como balizamentos da livre iniciativa (art. 170).
Dentro desse contexto, o Sistema Tributário Constitucional prevê, no art. 150 da
Constituição Federal, as limitações ao poder de tributar, positivando importantes princípios
tributários, como o da legalidade, da igualdade, da anterioridade, da vedação ao confisco, à
limitação ao tráfego de pessoas ou bens. Além disso, o referido artigo descreve as hipóteses
de imunidade, que preveem a não incidência de impostos sobre a renda, o patrimônio ou
os serviços de determinadas entidades que buscam os fins perseguidos pela Constituição.
Ademais, consta, no § 1º, do art. 145 da Constituição Brasileira, o princípio da capacidade
contributiva, o qual corresponde a um desdobramento da ideia de igualdade e constitui
um instrumento que deve ser utilizado na busca de uma tributação adequada por meio
de seus aliados: a progressividade e a seletividade.
Em vista das constatações referentes à carga principiológica do Estado Democrático
de Direito, Marco Aurélio Grecco (2009, p.173/174) aduz que a Constituição não foi apenas
rearranjo de dispositivos, ela trouxe alterações no próprio fundamento constitucional da
tributação, passando a ser a ideia de solidariedade, pois o Estado surge como criatura da
sociedade civil para atuar na direção do atendimento às prioridades e objetivos por ela
definidos no próprio texto nos art. 1º e 3º. Criar os tributos já não é mais mero poder do
Estado, mas um dever social ou cívico, amparado na solidariedade, que se atende pelo
ato de contribuir para as despesas de acordo com a capacidade contributiva. Em razão
disso, o autor assinala que o Estado está investido na função de tributar ao invés do poder
de fazê-lo, como antigamente.
O Estado necessita essencialmente de receitas derivadas para cumprir os seus
objetivos, as quais são obtidas via tributação. Frente aos fins do Estado Democrático de
Direito, em conjunto com as diretrizes do sistema tributário constitucional, a tributação é
um forte instrumento na busca pela concretização dos direitos dos cidadãos, na medida em
que pode exigir de cada cidadão aquilo que ele tem condições de entregar para colaborar
com os demais, exercendo assim seu dever/direito de cidadania e fortalecendo a questão
ideológica que permeia esse tipo de Estado: a solidariedade.

8 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


É preciso levar em conta “que os princípios são dotados de um conteúdo
deontológico” (STRECK, 2012, p.70), e devem, por isso, estarem por detrás de todas
as normas, ou seja, os princípios são à base de sustentação do sistema normativo.
Portanto, não se pode concordar com normas no âmbito do direito tributário que estejam
em desacordo com princípios como o da igualdade, da capacidade contributiva etc.,
justamente pelo fato de que, ao estar de acordo com tais postuladas, invariavelmente
a tributação contribuirá, a seu modo, para a máxima proteção e eficácia das garantias
constitucionais, corroborando a concretização dos objetivos fundamentais do Estado
Democrático de Direito.
Conforme Lenio Streck (2012, p.68/69) ensina, os princípios constitucionais
instituem o mundo prático no direito e essa institucionalização representa um ganho
qualitativo para o direito, na medida em que o juiz tem um dever de decidir de forma
correta. Desse modo, tem-se o seguinte: não há regra sem um princípio instituidor. Sem
um princípio instituinte, a regra não pode ser aplicada, posto que não será portadora
do caráter de legitimidade democrática. Logo, não é correto falar em uma axiologia
principiológica, mas sim em uma deontologia dos princípios, visto que são os princípios
que instituem as bases para a normatividade do direito, pois as regras não acontecem sem
os princípios. Os princípios sempre atuam como determinantes para a concretização do
direito, enquanto as regras constituem modalidades objetivas de solução de conflitos.
Nessa linha, Lenio Streck (2012, p.69/70) sustenta que a normatividade assumida
pelos princípios possibilita um “fechamento interpretativo” próprio da blindagem
hermenêutica contra discricionarismos judiciais, porque retira seu conteúdo normativo
de uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade
política da comunidade. Acresça-se, ainda, que a regra só se aplica em face do caráter
antecipatório do princípio. O princípio está antes da regra. Somente se compreende
a regra através do princípio. Os princípios não são princípios porque a Constituição
assim diz, mas a Constituição é principiológica porque há um conjunto de princípios
que conformam o paradigma constitucional, de onde exsurge o Estado Democrático
de Direito.
Estabelecidos os contornos do Estado Democrático de Direito e o norte a ser
seguido relativamente à função tributária, ruma-se, pois, à analise dos pontos pertinentes
em relação à Nova Crítica do Direito, inserida no contexto do Constitucionalismo
Contemporâneo.

3 A NOVA CRÍTICA DO DIREITO NO CONTEXTO


DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO
A Nova Crítica do Direito – expressão cunhada por Lenio Streck – representa a
incorporação da viragem ontológico-linguística produzida por Heidegger e Gadamer no
direito em termos de hermenêutica jurídica. Diferentemente do senso comum teórico
dos juristas (WARAT, 1994, p.14/15), Lenio Streck (2010, p.90) rompe com a metafísica

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 9


clássica e moderna no direito, isto é, faz uma cisão entre a hermenêutica jurídica e o
objetivo/subjetivismo. Nesse sentido, destaca:

[...] a Nova Crítica do Direito ou a Crítica Hermenêutica do Direito é uma


nova teoria que exsurge da fusão dos horizontes da filosofia hermenêutica, da
hermenêutica filosófica e da teoria integrativa dworkiniana. Dela exsurge a tese de
que há um direito fundamental a uma resposta correta, entendida como “adequada
à Constituição”.

As questões que se colocam, portanto, são: “como aplicar de forma adequada


a Constituição? E de que forma entender a Constituição como um documento
fundamentalmente direcionado à defesa dos direitos fundamentais do cidadão?”
(STRECK, 2007, p.XXXIII). Quando o intérprete está diante de um texto, estará no
entre-meio do círculo hermenêutico. É por isto que o conceito de círculo hermenêutico
é antitético à noção de dedução. Há um movimento antecipatório da compreensão, cuja
condição ontológica é o círculo hermenêutico (STRECK, 2004, p.210). Oportunas às
palavras de Lenio Streck (2004, p.222):

O sentido da Constituição não pode continuar velado (isto porque, passados


quinze anos desde sua promulgação, grande parte de seu texto continua inefetivo,
portanto, não descoberto). Por isto, para interpretar a Constituição (entendida como
o novo, o estranho), é necessário, primeiro, tornar transparente a própria situação
hermenêutica para que o estranho ou diferente (sinistro) do texto possa fazer-se
valer antes de tudo, isto é, sem que nossos pré-juízos não esclarecidos exerçam aí
sua despercebida dominação e assim escondam o específico do texto.

Uma hermenêutica jurídica que se pretenda crítica necessita dos dois teoremas
fundamentais de Heidegger, que são o círculo hermenêutico e a diferença ontológica.
Com o círculo hermenêutico é possível concluir que o método sempre chega tarde,
porque o Dasein se pronunciou de há muito; pela diferença ontológica, verifica-se que o
ser é sempre o ser de um ente, com o que se rompe com a possibilidade de subsunções/
deduções, uma vez que o sentido é existencial, e não algo fixado sobre o ente, que esteja
atrás dele ou que não sabe onde esteja (STRECK, 2010, p.77/78).
A partir do rompimento com o paradigma metafísico, a linguagem abandona sua
condição de mero instrumento, que traduz a essência das coisas ou os conceitos, e passa
a se constituir, nas palavras de Heidegger, “na morada do ser”. A linguagem se torna a
condição de possibilidade do próprio ser, e não mais uma terceira coisa na relação entre
sujeito e objeto. A interpretação deixa de ser uma mera reprodução do sentido preexistente
e passa a ser uma constante construção de sentido (BUFFON, 2011, p.233).

10 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


A orientação do olhar hermenêutico quer que a linguagem seja recebida por sua
vontade de expressão, contra o sentido objetivante que se fixa no conteúdo lógico do que
foi expresso. Ser e Tempo deu conta de que a compreensão e interpretação do homem
é linguística, ao acentuar o caráter originário do discurso. Assim, a linguagem se faz
valer como a “morada do ser”, assumindo a precedente e insuperável revelação do ser
(GRONDIN, 1999, p.172/173).
Examinar a diferença entre ser e ente, portanto, é fundamental para compreender
Heidegger. Para ele, o ser dos entes não é em si mesmo um outro ente. Chama-se de ente,
muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos,
com que nos comportamos dessa ou daquela maneira; ente também é como nós mesmos
somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado no teor
e recurso, no valor e validade, na presença, no há.
O ente é diferente do ser, pois o ser só se manifesta como tal a partir do ente. O ser
será sempre um ser de um ente, e por isso com ele não se confunde. Conforme Lenio
Streck (2004, p.206/207), o conceito de ser é o mais universal e mais vazio, e por isso
não necessita de definição. Como o próprio Heidegger (1995, p.32) explica:

O ser dos entes não é em si mesmo um outro ente. [...] Chamamos de “ente” muitas
coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos,
com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e
como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser
simplesmente dado no teor e recurso, no valor e validade, na pre-sença, no há.

A diferença é extrema entre todo ente – e o ser. Todos os entes levam à diferença.
Na hermenêutica filosófica, a diferença entre o ente e ser é denominada diferença
ontológica. O ser não é nada de ente, só o ente é; não se pode dizer que o ser é. O giz, a
mesa, o anfiteatro do curso, a montanha, o rio, o pássaro, o anjo, Deus etc., todos estes
entes contribuirão para levar a pensar que, se eles são, seu ser não é do modo como eles
são. O Ser do giz não é como o próprio giz (DUBOIS, 2004, p.86).
A ideia de ser de Heidegger caminha para pensar o ente em razão de estar vinculada
à questão do ser. O ser heideggeriano é o elemento através do qual se dá o acesso aos
entes, ele é a condição de possibilidade. Aí reside a diferença ontológica. A condição de
possibilidade (fundamentação), por sua vez, somente se dá pelo círculo hermenêutico,
na medida em que opera apenas mediante a compreensão do Dasein, que o ser humano
que se compreende (STEIN, 2008, p.116).
O ser se manifesta a partir do ente. O ser é sempre um ser de um ente. O ser
se constitui na condição de possibilidade do conhecimento em geral. A revelação, a
compreensão do ser, que distingue o ser do ente, sustenta o nosso conhecimento, isto é,
todo vir ao encontro dos entes.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 11


O novo paradigma se trata de uma “virada hermenêutica”, que no Direito Lenio
Streck (2010, p.17) vem denominando de Nova Crítica do Direito, significando uma
nova forma de abordagem na filosofia na qual a primeira tarefa é “o reconhecimento de
que a universalidade da compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou
da positivação)”.
Nesse novel contexto crítico, a linguagem passa a ser condição de possibilidade, e
não mais uma terceira coisa que se coloca entre o sujeito e o objeto, ou entre um sujeito
e um objetivo (para se referir tanto ao objetivismo quanto ao subjetivismo); ela é o que
está dado, e por isso não é o sujeito que constrói o próprio objeto de conhecimento, o
típico sujeito solipsista (STRECK, 2010, p.17).
A hermenêutica de Gadamer também se situa na linguagem. Para ele “ser, que pode
ser entendido, é linguagem” sendo que “a linguagem não se realiza em enunciados, porém
como conversação”. A compreensão da linguagem resulta da pertença a uma tradição em
continuada formação, ou seja, da pertença a uma conversação, pela qual o que foi expresso
adquire para o homem consistência e significado (GRONDIN, 1999, p.196/197). Nesse
sentido, Jean Grondin (1999, p.1999) expressa:

Para discutir corretamente a própria linguagem, e não para evitá-la ou enganá-la,


é preciso realizar conjuntamente o não dito, a conversação interior. Mas, retê-la
significa que a hermenêutica da linguagem escolhe, como seu ponto de partida, o
horizonte da linguagem, ou melhor, do enunciado.

Portanto, a compreensão, que é configurada e acontece por meio da linguagem,


deve ser capaz de realizar conjuntamente todo o conteúdo da linguagem, a fim de que
possa chegar até o ser, o qual ela ajuda a expressar. Assim, a fundamental linguisticidade
da compreensão se manifesta menos nos enunciados do homem, do que na busca de
linguagem daquilo que ele tem na alma e quer externar. E é essa realização conjunta
da palavra interior que irá fundamentar a universalidade da hermenêutica (GRONDIN,
2009, p.200).
Na linguagem, a dimensão da conversação interior (o dizer do homem significa
sempre mais do que ele realmente expressa) é hermeneuticamente significativa. Um pensar
ou um visar sempre irá além daquilo que realmente alcança o outro, no que é concebido
como linguagem, em palavras. A vida e a essência da linguagem se completa por uma
não silenciada aspiração pela palavra adequada (GRONDIN, 2009, p.204).
Essa “nova crítica” realizada a partir da hermenêutica insere-se no movimento do
Constitucionalismo Contemporâneo – expressão cunhada para rescindir com as aporias
do neoconstitucionalismo –, para o qual a teoria da interpretação/argumentação deve ser
abordada a partir da hermenêutica da faticidade, recolocando a discussão do enfrentamento
do positivismo e da indeterminabilidade do direito no contexto da filosófica diferença entre
texto/ente e norma/ser, que é ontológica, abrindo espaço para a construção de respostas

12 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


hermeneuticamente adequadas à Constituição. A hermenêutica leva vantagem sobre
as demais teorias, tendo na interpretação, como foco principal, a faticidade, ou seja, o
modo prático de ser-no-mundo (de um alguém engajado no mundo) comanda a atividade
compreensiva; no direito, costuma-se chamar de caso concreto (STRECK, 2011, p.70).
O Constitucionalismo Contemporâneo representa um redirecionamento na práxis
político-jurídica, que se dá em dois níveis: em relação à teoria do Estado e da Constituição,
com o surgimento do Estado Democrático de Direito; quanto à teoria do direito, a partir
da reformulação das teorias das fontes, devendo a lei ceder espaço à Constituição, da
teoria da norma, ganhando os princípios o caráter normativo, e na teoria da interpretação,
a partir da Nova Crítica do Direito, a fim de alcançar uma blindagem às discricionariedade
e aos ativismos (STRECK, 2011, p.37).
Dessa forma, o Constitucionalismo (Contemporâneo – compromissário,
principiológico e dirigente) deve significar uma ruptura com o positivismo jurídico em
suas diversas formas, não sendo possível sustentar nenhuma forma de discricionariedade
judicial neste momento histórico, por estar ligada ao subjetivismo (sujeito-objeto), avesso
ao paradigma intersubjetivo (entre sujeitos, pelo compartilhamento da pré-compreensão/
pano de fundo), pelo que é incompatível com o Estado Democrático de Direito (STRECK,
2011, p.65/66). É preciso desvelar o novo – entendido como o Estado Democrático de
Direito:

Por isso, o des-velar do novo (Estado Democrático de Direito, sua principiologia


e a consequente força normativa e substancial do texto constitucional) pressupõe
a desconstrução/destruição da tradição jurídica inautêntica, mergulhada na crise de
paradigmas. Ao des-construir, a hermenêutica constrói, possibilitando o manifestar-
se de algo (o ente “Constituição” em seu estado de des-coberto). O acontecimento
da Constituição será a revelação dessa existência do jurídico (constitucional), que
está aí, ainda por des-cobrir. O acontecer será, assim, a des-ocultação do que estava
aí velado. (STRECK, 2004, p.224)

É preciso ter presente que a noção de constitucionalismo trouxe para o âmbito


da Constituição temas que antes eram reservados à esfera privada, fazendo com que
a Constituição acabe publicizando espaços que antes eram reservados aos interesses
privados, a partir da elevação de uma materialidade que ocorre pelos princípios. Uma
Constituição nova exige novos modos de análise: uma nova teoria das fontes e uma nova
teoria da norma, além de uma nova teoria hermenêutica. Ou seja, uma nova constituição,
dentro de um novo paradigma, deve ser vista com os olhos do novo, por isso “também o
modelo de conhecimento subsuntivo, próprio do esquema sujeito-objeto, cedendo lugar
a um novo paradigma interpretativo” (STRECK, 2011, p.66/67).
O direito não é mais ordenador como na fase liberal; tampouco promovedor como
no Estado Social, mas sim transformador da realidade na era do Estado Democrático
de Direito. E é por isso que se dá o aumento de tensão em direção à jurisdição

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 13


constitucional, que no modelo de Estado atual vai se transformar em garantidora dos
direitos fundamentais-sociais e da democracia (STRECK, 2011, p.67). Como ressalta
Lenio Streck (2010, p.89):

O que deve ser dito é que o problema do sentido do direito se situa antes do
problema do conhecimento. O jurista não “fabrica” o seu objeto do conhecimento.
A compreensão, pela sua “presença antecipada”, é algo que não dominamos. O
sentido não está à nossa disposição! Por isso é que – e de há muito venho insistindo
nisso (e me permito repetir a esta altura destas reflexões) – não interpretamos para
compreender, e, sim, compreendemos para interpretar. A interpretação, como bem
diz Gadamer, é a explicitação do compreendido. Com isso, são colocados em xeque
os modos procedimentais de acesso ao conhecimento.

A partir dessas questões é que se pode falar na possibilidade de respostas


hermeneuticamente adequadas à Constituição no direito. Não se pode descurar o fato de
que o direito é constituído por textos (dispositivos) compostos por palavras ambíguas e
polissêmicas e que possuem caráter abrangente, sendo que não se consegue esgotar todos
os casos em que serão aplicados antes de analisar a situação concreta. Entretanto, será o
próprio direito, por meio de princípios informados pela Constituição, que resolverá esse
problema. Nesse sentido, percucientemente Lenio Streck (2010, p.93) adverte:

[...]. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir horizontes. E o direito


é composto por regras e princípios, “comandados” por uma Constituição. Assim,
afirmar que os textos jurídicos contém vaguezas e ambiguidades e que os princípios
podem ser – e na maior parte das vezes são – mais “abertos” em termos de
possibilidade de significado, não constitui novidade, uma vez que até mesmo os
setores mais atrasados da dogmática jurídica já se aperceberam desse fenômeno.
O que deve ser entendido é que a realização/concretização desses textos (isto é,
a sua transformação em normas) não depende – e não pode depender – de uma
subjetividade assujeitadora (esquema S-O), como se os sentidos a serem atribuídos
fossem fruto da vontade do intérprete. Ora, fosse isso verdadeiro, teríamos que
dar razão e Kelsen, para quem a interpretação a ser feita pelos juízes é um ato de
vontade. Isso para dizer o mínimo.

A dialética entre texto e atribuição de sentido ao texto não pode ser “afogada” por
pressupostos metafísicos como ora se constata, estando o intérprete refém do esquema
sujeito-objeto, notadamente sob a tradição erigida pelo paradigma do Estado Democrático
de Direito. Daí que a tese de Lenio Streck (2012, p.87/88), referente à construção de
uma teoria do direito adequada aos postulados do Constitucionalismo Contemporâneo,
apresenta-se de maneira completamente ruptural com relação à tradição constituída sob a
égide do positivismo exegético/normativista. A hermenêutica possibilita o enfrentamento e

14 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


a superação do decisivo problema, não enfrentado pelo positivismo, que é da interpretação
do direito, e que é, ao mesmo tempo, o problema da aplicação.
Portanto, não mais se sustenta, nos tempos que ora sucedem, que a administração
pública brasileira continue a desprezar os influxos constitucionalistas e filosóficos que
permeiam a atividade interpretativa, mormente os juízes. A constituição simplesmente
não pode ser aquilo que o intérprete pensa ou quer que ela seja.
Urge que se permite ao texto constitucional dizer algo; é preciso que a linguagem,
dentro do necessário contexto intersubjetivo seja condição de possibilidade e não mero
instrumento entre o sujeito e o objeto, isto é a linguagem não poder ser utilizada como
ferramenta para o assujeitamento do objeto por parte do intérprete, assim como este
também não pode/deve ser assujeitado pelo objeto a partir de uma linguagem conceitual
objetivista.
Vistas as principais bases da Nova Crítica do Direito, no sentido de construir um
ferramental adequado para, a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito
inserido no Constitucionalismo Contemporâneo, direcionar as críticas àquilo que contraria
esse modelo de Estado, ruma-se à parte final do trabalho, em que se ampara a premissa
instituída, de que a administração não respeita os postulados constitucionais tributários
(em pleno século XXI, ainda).

4 O OBJETO DA PROBLEMÁTICA: ADI/RFB Nº 42/2011 E


DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Apesar de todo o catálogo de princípios estabelecidos na Constituição com relação
à tributação – mormente o princípio da legalidade reiterado no art. 150, inc. I – , esta
não vem sendo exercido como deveria ser, ou seja, não vem sendo utilizada de forma
adequada ao texto constitucional. A administração pública faz de conta que não se encontra
vinculada aos princípios constitucionais. Ao invés de dar-se conta que ao exigir tributos
exerce uma importante função constitucional,1 pensa-se estar em um pseudossistema
medieval, em que a exigência de tributos confundia-se com poder.
Relativamente à administração, verifica-se claramente a presença do que Lenio
Streck chama de “Baixa Constitucionalidade”, fenômeno pelo qual se respeita menos
a Constituição do que qualquer outro veículo normativo. Aliás, em matéria de direito
tributário, isso não é novidade: há a Constituição para estabelecer as balizas; as leis para
criar os tributos, os decretos para regular as leis, as instruções normativas para “normatizar”
os decretos, as portarias de cada órgão, as portarias conjuntas, os atos declaratórios etc.,
enfim, diversos meios para o servidor decidir qual o melhor lhe aprouver sem se preocupar

1
Afirma-se ser a atividade de exigir tributos uma importante função constitucional, porque nos dias atuais,
praticamente toda a receita obtida pelo Estado para o custeio das despesas e da implementação de políticas
públicas provem de receitas derivadas, ou seja, dos tributos. Com a onda globalizante de privatizações, ocorridas no
Brasil principalmente nos governos COLLOR e FHC, o Estado brasileiro encontra-se destituído das possibilidades
de angariar recursos via receitas originárias.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 15


com o que a Constituição determina, mas preocupando-se apenas com não colocar o seu
“couro” em risco. Entretanto, como critica Lenio Streck (2007, p.XXI):

Independentemente disso, a Constituição não pode ser aquilo que queremos que
ela seja. Nem tampouco a história (tradição) consegue eliminar a possibilidade
de formulação de novos argumentos teóricos fora do texto da Constituição. Ou
seja, a concepção hermenêutica do sentido da Constituição implica uma dialética
constante entre texto (que não deve estar assujeitado ao interprete) e a atribuição
de sentido a esse texto. Consequentemente, não é mais possível falar em deduções
ou induções (ou, acrescento, subsunções): pensar assim seria admitir um retorno
ao esquema sujeito-objeto, considerado superado na elaboração de qualquer
perspectiva hermenêutica de uma Constituição cujo texto é atravessado pelo rio
da história.

Recentemente, ocorreu uma situação na qual se constata claramente a crítica


apontada. Com a entrada em vigor da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, fruto da
conversão da Medida Provisória nº 540/2011, empresas de determinados setores passaram
a recolher a contribuição previdenciária à alíquota de 1,5% sobre o valor da receita bruta,
em substituição à contribuição de 20% sobre as remunerações pagas aos empregados. A
nova forma de recolhimento passou a viger em 1º de dezembro de 2011.
A Secretaria da Receita Federal, usurpando a competência do Poder Legislativo,
expediu o Ato Declaratório Interpretativo – ADI RFB nº 42, de 15 de dezembro de 2011,
estabelecendo que a contribuição previdenciária a cargo da empresa (20% sobre os
rendimentos dos empregados) não incidiria apenas sobre o valor correspondente a 1/12
(um doze avos) do décimo terceiro salário dos empregados, referente à competência
de dezembro de 2011. Sobre o saldo do valor do décimo terceiro salário relativo às
competência anteriores a dezembro de 2011, estabeleceu que incidiriam as contribuições
na forma do art. 22 da Lei nº 8.212/91. Dessa forma, ainda que – a partir de 1º de dezembro
de 2011 – a Contribuição Previdenciária Patronal sobre a folha tenha sido substituída
pela nova contribuição sobre o faturamento, a Receita Federal entendeu que as empresas
deveriam contribuir à alíquota de 20% sobre o valor resultante das competências anteriores
a dezembro de 2011 do décimo terceiro devido aos segurados empregados.
O Ato Declaratório (supostamente) Interpretativo trata-se de uma verdadeira
aberração. Ora, se é necessário lei para estabelecer base de cálculo e fato gerador de
tributo, como a Receita Federal pretendeu modificar tais elementos do tributo por ato
administrativo? Será que a Constituição não importa para a Receita Federal? Ou melhor:
para que serve a Constituição se não há respeito sequer ao princípio da legalidade?
O malfadado ADI/FRB causa espanto também por outras questões: o Plano Brasil
Maior foi instituído via Medida Provisória, pelo chefe do Poder Executivo Federal, então,
como pode a Receita Federal querer contrariá-lo? Ainda: a própria Instrução Normativa
RFB nº 971/2009, disciplina no art. 52, inc. III, alínea “h”, que se considera ocorrido

16 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


o fato gerador em relação ao décimo terceiro no mês de pagamento da última parcela,
quando a referida gratificação é devida.
Não obstante, tendo a discussão sido levada ao judiciário via Mandado de Segurança,
teve juiz denegando a ordem, de forma a acolher o fundamento da Receita Federal de
que o fato gerador do 13º salário, na verdade, ocorre a cada mês trabalhado ou fração de
15 dias. O argumento do juiz, no caso, foi de que a interpretação deve ser feita de forma
sistemática, analisando todos os dispositivos legais em apreço.2
Assim, a partir de uma simbiose entre leis do direito do trabalho e leis de direito
tributário, o intérprete acabou por definir via jurisdição fato gerador e base de cálculo
novos para o tributo, esquecendo-se de iniciar a sua análise por um corolário básico do
Estado de Direito: o princípio da legalidade. Oportuna à crítica de Lenio Streck (2010,
p.94/95):

É espantoso vermos colocados lado a lado os princípios constitucionais e os velhos


princípios gerais do direito. É como se não tivéssemos aprendido nada nesses duzentos
anos da teoria do direito. Ora, há um sério equívoco neste tipo de incorporação
legislativa, visto que, como demonstrei em meu Verdade e Consenso – não há como
afirmar, simultaneamente, a existência de princípios constitucionais (cujo conteúdo
deôntico é fortíssimo) com os princípios gerais do direito, que nada mais são do que
instrumentos matematizantes de composição das falhas do sistema. Vale dizer, os
princípios gerais do direito não possuem força deôntica, mas são acionados apenas
em casos de “lacunas” ou de obscuridade da previsão legislativa (esses dois fatores –
lacuna e obscuridade – decorrem muita mais da situação hermenêutica do intérprete
do que exatamente da legislação propriamente dita).

Não obstante o juiz de primeiro grau ter denegado a segurança no case referido,
o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo-lhe sido devolvida a questão, deu
provimento ao apelo do contribuinte, reconhecendo-se a ilegalidade do referido ato
administrativo que se dizia interpretativo.
Entretanto, nos dias atuais, em que a Constituição “constitui a ação”, não se pode
mais admitir a utilização de velhas técnicas de interpretação em detrimento dos princípios
constitucionais que alicerçam o Estado Democrático de Direito, notadamente o princípio
da legalidade no caso em apreço.
Os operadores do direito administrativo não estão livres das influências do passado,
estando determinados por uma tradição na qual são jogados. É imprescindível, assim, ser

2
Trata-se de sentença proferida nos autos do Mandado de Segurança nº 5005173-64.2012.404.7108, distribuído
junto à 2ª Vara Federal de Novo Hamburgo, em que são partes: H. Kuntzler & Cia Ltda. e Delegado da Receita
Federal do Brasil em Novo Hamburgo, disponibilizado em 24 jul. 2012. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/
trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtV alor=50051736420124047108&selOri
gem=RS&chkMostrarBaixados=&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=&txtPalavraGerada=&
txtChave= >. Acesso em 07 ago. 2013.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 17


capazes de apreciar sua verdadeira posição na história e fugir dos paradigmas objetivistas/
subjetivistas. A tradição na qual o intérprete é jogado acaba por selecionar seus juízos, e,
este “já acontecido”, influencia na compreensão de forma a não permitir um juízo neutro
(OHLWEILER, 2003, p.286). Faz-se necessário aderir à viragem ontológico-linguística,
de forma a exercer a atividade administrativa de forma adequada à Constituição.
O intérprete deve ter consciência e revolver seus preconceitos, de forma a entender
que dentro do novo paradigma formado por esse modelo de Estado, a lei cede espaço à
Constituição, os princípios ganham força normativa e é preciso ocorrer um deslocamento
dos positivismos para a Nova Crítica do Direito, que incorpora a filosofia hermenêutica
e a hermenêutica filosófica, de forma a compreender para interpretar autenticamente o
direito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As transformações ocorridas no Direito, em que a Constituição implementa o
Estado Democrático de Direito, exigem que se rompa com os paradigmas positivistas
predominantes, que até então são utilizados para a aplicação do Direito. O novo, deve ser
visto com novos olhos. E o Constitucionalismo Contemporâneo demanda essa ruptura,
essa superação do positivismo em suas mais variadas formas, implicando mudanças
significativas no âmbito da interpretação, uma vez que deixa de apostar no método para
aplicação do Direito, para demonstrar que a hermenêutica deve ser compreendida como
um processo construtivo, e não meramente reprodutivo.
Com o novo modelo de Estado instituído, surge um paradigma a partir do qual a lei
cede espaço à Constituição, os princípios adquirem normatividade e em termos de teoria
da interpretação, supera-se a metafísica clássica e a filosofia da consciência, dando espaço
para um redirecionamento à viragem ontológico-linguística de Heidegger e Gadamer, que
supera os positivismos. O sujeito passa a não ser mais o fundamento do conhecimento,
estabelecendo-se uma necessária intersubjetividade, uma conversação através da
linguagem para que ocorra a fusão de horizontes necessária para uma compreensão apta
a uma nova construção de sentido.
É claro que a construção de sentido não pode significar invenção, ou seja, não
podem ser desrespeitados os limites semânticos dos textos da Constituição e dos códigos;
ela não pode implicar em livre arbítrio, assim como o direito não pode ser aplicado
mecanicamente, por meio de técnicas – deve consistir em atribuição de sentido, a qual
se realiza pela interpretação, no caso concreto, uma vez que o sentido é construído
temporalmente e a partir do que faz parte da tradição (Gadamer), relacionando-se com a
distinção entre ser e ente (Heidegger).
Para um retomar hermenêutico com o intuito de compreender os princípios
constitucionais aptos a colaborar com uma tributação diferente da que ora se constata, é
preciso levar em consideração que o jurista, ao interpretar o texto constitucional, o faz
a partir de preconceitos construídos durante sua formação, por serem intrínsecos ao seu

18 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


modo de ser no mundo, embora não perceba claramente isso. Portanto, deve compreender
o novo paradigma, situando-se no seu contexto histórico (atual), a fim de incorporar pré-
juízos que o faça alcançar interpretações adequadas à Constituição, pelos fundamentos
da Nova Crítica do Direito.
Faz-se necessário que o intérprete da Constituição suspenda seus prejuízos
inautênticos para poder compreender, interpretar e aplicar o texto da Constituição Federal,
permitindo que o texto possa lhe dizer algo, na medida em que, apenas dessa forma,
poderá perceber/descobrir o novo sobreposto no referido texto, para poder trabalhar no
processo de desvelamento e fundamentação da decisão judicial.
É preciso levar em conta que, anteriormente, a função da Constituição era a de
apenas legitimar a ação do Estado e estabelecer o processo de participação democrática,
sem estabelecer os valores regentes da sociedade – como se verifica na Constituição de
1988 –, ou seja, as constituições deixam de ser meramente programáticas, pois passam
a agregar conteúdo substancial, pelo que vinculam os atos do Poder Público e buscam
transformar a sociedade.
Quanto à tributação, em especial, a administração continua refratária à viragem
ontológico-linguística ocorrida na filosofia, que deveria ser incorporada pela hermenêutica
jurídica. Apesar de haver uma parte da Constituição cuidando somente de princípios
específicos para o exercício da função tributária, os intérpretes continuam presos aos
paradigmas metafísicos, notadamente o objetivismo e as técnicas de interpretação
continuamente sustentadas pelo senso comum teórico dos juristas. Não é possível
continuar a agir dessa forma em relação a um âmbito do direito que pode contribuir
significativamente para a redução das desigualdades sociais, pela redistribuição de riquezas
como o do direito tributário.
O ato administrativo objeto da problemática, por certo, não poderia existir. O
medo na diminuição da arrecadação não pode ser fundamento para a expedição de
ato administrativo que contrarie o texto constitucional. Outrossim, como pode querer
a administração que os contribuintes respeitem a legislação tributária, se a própria
desrespeita a Constituição? Entra-se em círculo vicioso, no qual cada sujeito da relação
tributária opta por desrespeitar a legislação que rege seus deveres, ao alvedrio das regras
constitucionais atinentes, regras estas que fundam toda uma sociedade constituidora do
Estado.

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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 19


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20 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Positivismo Jurídico 2: crítica às
características centrais
Orlando Luiz Zanon Junior

RESUMO
O referente do presente texto consiste em analisar as cinco características centrais que
compõem o conceito operacional de Positivismo Jurídico, com vistas a verificar-se em que medida
merecem ser mantidas, complementadas ou superadas. A hipótese central diz respeito à necessidade
de se estruturar um novo paradigma para Ciência Jurídica, com relação às suas quatro plataformas
centrais, consistentes nas teorias da Norma, das Fontes, do Ordenamento e da Decisão Judicial.
Palavras-chave: Positivismo Jurídico. Moral. Subsunção.

Legal Positivism 2: Criticism about the key features

ABSTRACT
The main theme of this text consists in analyse the five key characteristics of the operational
concept of Legal Positivism, in order to verify in what measure they must be maintained,
complemented or overcome. The central hipothesys is about the necessity of building a new
paradigm for legal science, around it’s four basic plataforms, consistent in the thesys of Norm,
Sources, System and Juditial Decision.
Keywords: Legal Positivism. Morality. Subsumption.

1 INTRODUÇÃO
Pode-se afirmar que o Positivismo Jurídico, como paradigma central da Ciência
Jurídica, vem sofrendo severas críticas, a ponto de desvelar a instalação de uma
crise de tal modelo disciplinar. Tal assunto foi abordado em uma tríade de artigos
anteriormente publicados, consistente nos textos A Revolução na Teoria do Direito, A
Centralidade Material da Constituição e A Complexidade da Norma Jurídica, nos quais
se analisaram os modelos juspositivistas de Hans Kelsen e de Herbert Lionel Adolphus
Hart e se apresentou as principais críticas aos seus postulados mais elementares, de
modo a ilustrar a crise paradigmática, tanto no cenário do Direito legislado (civil
law ou code based legal system) como também no padrão consuetudinário (common
law ou judge made law). Prosseguindo em tal linha de pesquisa, resta necessário
desenvolver uma apreciação unificada do paradigma do Juspositivismo, com destaque
de suas características principais e, depois, sintetizando as principais críticas quanto
aos seus aspectos descritivos (ou empíricos) e prescritivos (ou normativos). Com tal

Orlando Luiz Zanon Junior é Juiz de Direito. Doutor em Ciência Jurídica pela UNIVALI. Dupla titulação em
Doutorado pela UNIPG (Itália). Mestre em Direito Pela UNESA. Pós-graduado em Preparação à Magistratura
Federal pela UNIVALI. Pós-graduado em Direito e Gestão Judiciária pela UFSC.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.21-46 jan./jun. 2012


Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 21
desiderato, projetou-se a redação de dois artigos reciprocamente complementares
sobre o Positivismo Jurídico, sendo que o primeiro foi dedicado à apresentação de
um conceito operacional, de acordo com suas características centrais, enquanto este
segundo é voltado ao desenvolvimento das críticas que recomendam a instauração
do processo de superação paradigmática, incentivado pelo advento de diversas
proposições teóricas pós-positivistas.
Outrossim, no primeiro dos dois artigos, concluiu-se que o Positivismo
Jurídico é o Paradigma da Ciência Jurídica caracterizado, principalmente, pela
separação entre Direito e Moral, formação do Ordenamento Jurídico exclusivamente
(ou prevalecentemente) por regras positivadas, construção de um sistema jurídico
escalonado só pelo critério de validade formal, aplicação do Direito posto mediante
subsunção e discricionariedade judicial (judicial discretion ou interstitial legislation)
para resolução dos chamados casos difíceis (hard cases).
Então, o referente do presente texto consiste em analisar as cinco características
centrais que compõem o conceito operacional antes desenvolvido, com vistas a verificar-
se em que medida merecem ser mantidas, complementadas ou superadas.
A hipótese central diz respeito à necessidade de se estruturar um novo paradigma
para Ciência Jurídica, com relação às suas quatro plataformas centrais, consistentes nas
teorias da Norma, das Fontes, do Ordenamento e da Decisão Judicial.
Assim, na primeira seção, serão tecidas algumas ressalvas importantes acerca
da importância do paradigma do Positivismo Jurídico, de modo a dissipar algumas
ponderações equivocadas (ou falácias) que, não raramente, são repetidas entre
acadêmicos e profissionais brasileiros.
Na segunda parte, sem perder de perspectiva as considerações preliminares, serão
analisadas cada uma das características centrais do modelo do Juspositivismo, de modo
a apresentar sugestões quanto à sua manutenção ou superação.
Em sede de conclusão, serão sintetizadas as críticas antes efetuadas e lançadas
algumas considerações para balizar uma eventual superação de viés pós-positivista.
Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de investigação, foi
utilizado o método indutivo; na fase de tratamento de dados, o cartesiano, e o texto final
foi composto na base lógica dedutiva. Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as
técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica.1
Ademais, é muito importante destacar que as menções ao modelo juspositivista partem
da análise previamente elaborada acerca das proposições teoréticas de Kelsen e de Hart,
exposta na tríade de textos que antecedeu este texto.

1
PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12.ed. rev. São Paulo: Conceito,
2011.

22 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O paradigma do Positivismo Jurídico foi desenvolvido durante um extenso
período de tempo, mediante o esforço de expoentes como Jeremy Bentham, John
Austin, Hans Kelsen, Herbert Lionel Adolphus Hart e Norberto Bobbio, vindo a
prevalecer sobre o anterior modelo do Jusnaturalismo, principalmente por melhor
atender ao valor da segurança jurídica, pois garante maior previsibilidade quanto às
consequências dos comportamentos humanos. Ainda atualmente, é possível afirmar
que o ensino jurídico brasileiro está calcado nas suas teses centrais, expostas no
artigo científico anterior. Entretanto, o modelo juspositivista está sendo alvo de
severas críticas, que visam demonstrar a incorreção dos seus principais postulados
teóricos, com vistas a ensejar a revolução científica que, gradualmente, implicará a
sua superação paradigmática por uma outra teoria do Direito, nos moldes explicitados
por Thomas Kuhn.2
Porém, antes de ingressar na análise quanto à necessidade de tal superação
paradigmática, cabe tecer algumas considerações preliminares, de modo a dissipar
eventuais equívocos, não raramente propagados nos cenários acadêmico e forense
brasileiros.
Primeiro, ressalta-se que tal movimento de oposição científica deve considerar
que o Positivismo Jurídico não é necessariamente “um mal” a ser combatido, sob o
argumento de que teria permitido a formação de regimes totalitários, a exemplo do
Fascismo na Itália e do Nacional-Socialismo (Nazismo) na Alemanha.3 Com efeito,
rejeita-se a alegação de que a substituição do Juspositivismo por alguma teoria que
adote valores morais (materiais) pode, por si só, evitar a adoção de governos de cunho
ditatorial.
Tal argumento, conhecido por reductio ad Hitlerum, é uma falácia, haja vista que
tanto uma teoria que atente para a tese da separação entre Direito e Moral, como outra
que defenda o contrário, são passíveis de conformar a construção de um Ordenamento
Jurídico com as características daqueles dois antes mencionados.
Importa considerar que os partidários do regime nazista defendiam a preservação
de uma “Moral” superior aos preceitos positivos, instituindo um suposto modelo estatal
de justiça (Gerechtigkeitsstaat) em detrimento do Estado de Direito (Rechtsstaat),
porém, com bases nas suas considerações particulares acerca da “Moral”, marcadas

2
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
3
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 257-258: “O juspositivismo é apresentado como
teoria que traiu a causa do direito, como garantia (ou pelo menos tentativa) de pacificação, justiça, solidariedade
social etc., enganou os operadores jurídicos e ofereceu cobertura teórica a um regime criminoso. […] O raciocínio
nesses casos é conhecido como reductio ad Hitlerum. Quando se pretende rejeitar uma teoria ou visão política,
afirma-se que ela foi adotada pelo regime nazista ou, pelo menos, que correspondia à ideologia nazista. Isso
permite rejeitar imediatamente essa teoria ou visão política, já que ninguém aceitaria, em nossos dias, defender
o pensamento nazista”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 23


pelo nacionalismo, pelo racismo e pela violência.4 Para tanto, o Terceiro Reich fomentou
uma interpretação sem limites da legislação pelo aplicador (unbegrentzte Auslegung),
justamente para permitir que os textos legais existentes na Alemanha fossem derrogados
pelos máximos “valores” e pelas alegadas “necessidades” do “povo alemão de então”,
em flagrante oposição com os postulados teóricos juspositivistas.5
Aliás, é curioso destacar que Hans Kelsen, um dos expoentes do Positivismo Jurídico,
era judeu e foi perseguido pelo regime nazista, enquanto seu opositor científico, Carl
Schmitt, cujas teses sustentam a necessidade da construção de um sistema flexibilizado
por critérios morais, esteve historicamente próximo do nazismo.
Daí ser possível concluir que não é a opção teórica que permite classificar um regime
estatal específico como bom ou mau, haja vista que tal abordagem depende do debate acerca
da ideologia que o atravessa e dos princípios morais que são conservados pelos grupos sociais
que têm condições fáticas de poder para efetivamente implementar, modificar ou extinguir o
Direito6. Neste sentido, acusar o Juspositivismo de causar o Fascismo ou Nazismo “é como
criticar a teoria atômica por ter levado à destruição de Hiroshima e Nagasaki”.7
Portanto, a análise acerca da opção entre um modelo juspositivista ou pós-positivista
deve atentar para as qualidades específicas de cada proposta teórica, no sentido de
promover uma superação de caráter científico, ao invés de se confundir com falácias do
tipo ora examinado.
Segundo, tampouco o Juspositivismo pode ser considerado equivocado simplesmente
porque implica a prisão do juiz à letra seca da lei (boca da lei ou, em expressão francesa,
Bouche de la Loi) e, assim, impede sejam promovidos os valores sociais, como se
tem ouvido falar nos meios forenses e acadêmicos brasileiros, principalmente após a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB).8 É
preciso reiterar que o Paradigma do Positivismo Jurídico foi desenvolvido justamente
em razão da crise paradigmática9 do anterior modelo do Jusnaturalismo, orientando-se

4
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 261: “O nazismo queria instituir um ‘Estado de justiça’
(Gerechtigkeitsstaat), abandonando o modelo de Estado de direito (Rechtsstaat) que era criticado como formalista e
individualista. Os juristas próximos ao nazismo criticavam os ideais de segurança jurídica e as formalidades jurídicas;
exaltavam os valores do povo alemão, exigindo a ‘eticização’ da aplicação do direito que os juízes deveriam impor,
distanciando-se do ‘pensamento com base na lei’ (Gesetzesdenken). O positivismo era visto como negação do
ideal de justiça e o próprio Hitler declaro que, no Terceiro Reich, o direito coincide com a moralidade”.
5
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político.
São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 261: “Com a exceção da legislação que visava o combate
dos adversários políticos e de minorias tidas como inimigas do Estado, o regime nazista não introduziu importantes
modificações no ordenamento jurídico alemão. Os meios empregados foram a ilegalidade governamental e
a reinterpretação do direito em vigor, invocando ‘valores’ e ‘necessidades’ do povo alemão. Nesse âmbito, as
autoridades estatais realizaram a denominada unbegrentzte Auslegung (interpretação sem limites), adotando
uma postura que contraria frontalmente os ensinamentos do positivismo jurídico”.
6
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264.
7
POSNER, Richard Allen. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.225.
8
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.46-47.
9
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

24 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


em uma vinculação dedutiva da autoridade à lei superior (subsunção) num esforço para
afastar as incertezas e inseguranças decorrentes do uso ilimitado de uma suposta razão
superior, lastrada em alegados valores morais absolutos e inquestionáveis, ficticiamente
válidos e eficazes em todo tempo e lugar.10
Outrossim, sem pretensões de fugir do referente para tratar da histórica vantagem da
substituição do modelo do Direito natural pelo Juspositivismo (trabalho que certamente
demandaria muitas páginas dedicadas especialmente a tal questão), importa reprisar
a afirmação de que a proposta deste texto não é retornar ao padrão anterior, mas sim
verificar quais os vícios da matriz teórica atual e, diante deles, lançar bases para uma
possível superação, de viés pós-positivista. Reitera-se que o objetivo não é retroceder aos
parâmetros do modelo superado (Jusnaturalismo) e tampouco desprezar as vantagens do
Paradigma predominante (Juspositivismo), mas sim partir das conquistas já alcançadas
para, num esforço teórico, propor elementos para contribuir no desenvolvimento de uma
nova matriz disciplinar, mais adequada à pós-modernidade.
Justamente por isso, foi adotada a denominação Pós-positivismo para designar as
correntes que visam superar as deficiências do modelo atual, mediante a proposição de
novas alternativas aos eventuais problemas diagnosticados. Não se olvida, porém, que
algumas versões deste movimento de substituição paradigmática possam ser apelidadas
de não positivistas, por simplesmente não adotarem algumas de suas teses centrais (a
exemplo da proposta de Robert Alexy), ou mesmo antipositivistas, no sentido de se
dedicarem declaradamente ao combate teórico contra seus principais postulados (como,
exemplificativamente, a construção doutrinária de Ronald Myles Dworkin).

3 CRÍTICA AOS POSTULADOS JUSPOSITIVISTAS


Feitas estas considerações propedêuticas, é pertinente analisar criticamente as cinco
características principais da matriz disciplinar juspositivista, com o intuito de verificar se
merecem ser mantidas, modificadas ou suprimidas.
Sobre a separação entre Direito e Moral, esta não pode prevalecer nos moldes
como proposta pelos juspositivistas, haja vista que, primeiro, são inegáveis os reflexos entre
tais ordens sociais, que se conformam mutuamente, a despeito da vontade de purificação
científica e de preservação da objetividade das disposições normativas; e, segundo, os temas
morais estão intrinsecamente interligados com as questões jurídicas, porquanto voltados ao
sentido material (axiológico) finalístico do Direito, que é disciplinar a tomada de decisões
corretas, boas e justas (e não qualquer deliberação, a despeito de seu conteúdo).
Antes de adentrar na análise deste tema, cabe apenas ressalvar que as críticas quanto
à separação entre Direito e Moral não afastam a vinculação da generalidade das propostas
pós-positivistas quanto à tese da origem social das Normas (social thesis ou social sources
of the law), ou seja, de que ambas as referidas ordens são produtos culturais. Notadamente,

10
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 4.ed. São Paulo: RT, 2011. p.90-98.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 25


raros são os jusfilósofos que ainda defendem a existência de alguma normatividade
metafísica, ou seja, extraída do “coração do homem”, da “boa razão” ou de alguma
“força divina”, consoante a doutrina do Jusnaturalismo. Outrossim, há prevalência de
uma aceitação ampla (dos juspositivistas e de seus opositores teóricos sérios) quanto à
origem social de ambos os mencionados sistemas de conduta, porquanto decorrem de
produção humana e, portanto, são aferíveis faticamente, ainda que de forma fluida.11
Feita essa breve ressalva, quanto ao primeiro aspecto (inafastabilidade da influência
moral na produção normativa), assevera-se a inviabilidade das autoridades públicas
escaparem totalmente das questões de moralidade política ao estabelecerem Textos
Normativos (fase de positivação) ou tomarem decisões (etapa de interpretação e aplicação),
haja vista que a deliberação quanto às opções disponíveis perpassa invariavelmente por
análises axiológicas, no tocante à alternativa melhor (que pode ser a economicamente
mais adequada, a mais justa etc.), ainda que, logicamente, os parâmetros dependam da
carga de conhecimento e das convicções pessoais de cada um, bem como das forças
que acomodam tal conjunto de influências. Sem embargo, na fase de positivação, os
legisladores inegavelmente discutem os argumentos de cunho moral que ressonam no
parlamento, de modo que a sua produção normativa reflete tais influxos axiológicos.12
Por sua vez, os intérpretes a aplicadores (notadamente os juízes), ainda que se esforcem
na adoção de uma postura imparcial, não são autômatos isolados capazes de suspender
integralmente seus preconceitos (no sentido de pré-juízos) ao efetuarem a leitura dos
textos legislativos e jurisprudenciais e, assim, as suas deliberações acabam por conferir um
significado com contornos morais, em maior ou menor grau de acomodação.13 Portanto, é

11
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.82: “Na atualidade, a construção jusnaturalista parece ter sucumbido ao peso
teórico de seus críticos. São raríssimos os autores que continuam afirmando que o verdadeiro direito está escrito ‘no
coração do homem’ ou na ‘natureza humana’ e que o direito natural constitui o alicerce do direito positivo. Em virtude
disso, as teses do PJ [Positivismo Jurídico] lato sensu são aceitas pela quase totalidade dos estudiosos do direito.
Mesmo um autor que destaca as fortes ligações entre o direito positivo, a moral e a justiça e se diz jusnaturalista,
como é o caso de Philip Soper, admite que a criação do direito decorre de ‘ação ou vontade humana’. Dito de outra
forma, mesmo quem não se considera positivista aceita plenamente a positividade do direito moderno”.
12
ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Direitos humanos e moral: os valores morais nas fases de positivação e de
aplicação dos direitos humanos. Sequência, Florianópolis. n.60, p.109-132, 2010, p.123: “Inicialmente, quanto à fase
de positivação, cabe assinalar que os valores emergentes dos embates políticos prévios configuram o substrato inicial
para criação das normas, consubstanciando a razão de existência do ordenamento jurídico. Com efeito, a atividade
criadora do direito é voltada para o fim de disciplinar a multiplicidade de ações e omissões possíveis no cenário social
e econômico, com enfoque na proteção de determinados interesses e na promoção de certos valores. O elemento
anímico do legislador é, então, condicionado pela moral compartilhada em determinado contexto histórico. Daí que
a relação de complementaridade entre direito e moral é verificável desde o nascedouro do preceito normativo”.
13
ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Direitos humanos e moral: os valores morais nas fases de positivação e de
aplicação dos direitos humanos. Sequência, Florianópolis. n.60, p.109-132, 2010, p.125: “No que concerne a este
segundo momento, em que se verifica a manifestação dos valores subjacentes ao direito, cabe assinalar que
o aplicador, seja qual for (um particular contratando, um gestor público ou um juiz, por exemplo), condicionará
moralmente a finalidade da norma, ainda que mediante a suspensão de seus preconceitos pessoais em favor
dos princípios e regras que extrai do sistema normativo, de modo a harmonizar o direito à moral compartilhada no
contexto histórico da interpretação. Nessa linha de raciocínio, o intérprete percebe/concebe a norma do texto através
de atividade intelectual que não pode ser compreendida afastada da moral que compartilha intersubjetivamente
no contexto histórico. Isto porque, primeiro, o dispositivo normativo não é perceptível fora do cenário onde seu
conteúdo deve se concretizar; e, segundo, o valor não é algo embutido em algum lugar secreto do preceito ou do
diploma onde se insere, esperando para ser encontrado. Pelo contrário, o valor é compartilhado intersubjetivamente
e condiciona a extração da norma como resposta à resolução do caso apresentado. Daí o papel da moral na fase
de aplicação, como critério de harmonização da norma no momento de sua implementação fática”.

26 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


insustentável a crença de uma total neutralidade axiológica, de modo a revelar a inegável
inter-relação entre Direito e Moral, tanto na fase de positivação, como também na
etapa de interpretação e aplicação. A proposição juspositivista que sustenta a total
desvinculação ou a indiferença entre tais ordens normativas é altamente criticável,
justamente porque é inviável a proposição de uma blindagem eficaz da interpretação
e da aplicação dos preceitos jurídicos em face da moralidade política, de sorte que
os Juristas não devem se esquivar em discutir tal tema ou simplesmente externá-lo
artificialmente da Ciência Jurídica.
Os adeptos do Juspositivismo defenderam a ruptura entre moralidade e
juridicidade como um meio de evitar a contaminação do Direito por aspectos materiais
amplamente subjetivos (juízos de certo ou errado, bom ou mau e justo ou injusto), que
poderiam prejudicar a objetividade na interpretação e aplicação das Normas Jurídicas
e, assim, gerar imprevisibilidade quanto às consequências do comportamento humano.
Porém, ainda que louvável tal intenção (a palavra é empregada propositadamente,
pois a limpeza de cunho anti-ideológica é também, por si, uma opção ideológica),14 a
exclusão do âmbito do Direito da questão moral representa, em verdade, uma fuga de
tal problema complexo (e mutável), que irrefutavelmente reflete na produção normativa,
ao influenciar a atividade dos legisladores e juízes.
Também sob a ótica científica não se justifica que os juristas descuidem do estudo
da Moral, apenas porque se trata de um tema complexo e variável, para construir uma
Ciência do Direito pura e outra talvez impura (como a Ética, que para Kelsen é o ramo
de estudo da moralidade15). Considerando que os influxos morais são inafastáveis
(não é faticamente possível uma efetiva blindagem do ser humano racional com
relação à Moral), consoante acima explicitado, cabe à Ciência Jurídica internalizar
tal tema e, assim, traçar proposições sobre ele, com vistas a promover a disseminação
de conhecimentos e aprimorar sua área de estudos. Com efeito, a externalização
dos problemas morais é uma simples ficção que somente serve ao fim político de
tentar justificar o mito simbólico de uma Ciência Jurídica objetiva e neutra. Logo, os
Juristas não podem se furtar ao diagnóstico do problema e, por se debruçarem sobre
o campo de estudos das ordens sociais, têm a atribuição científica (função social) de
propor soluções que permitam uma mais fiel e ampla compreensão da realidade e,
consequentemente, promovam um progresso civilizatório mais inclusivo e dignificante
da condição humana.

14
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.181:
“Em síntese, pode-se chegar à conclusão de que o rígido formalismo de Kelsen reflete certa posição dominante
das ciências humanas, em determinado momento do desenvolvimento político econômico das sociedades
burguesas liberais contemporâneas. Porquanto, ainda que se busquem teorizações aparentemente conformistas
e não engajadas ao ditame dessas sociedades, na verdade, sob tais fórmulas técnicas, ocultam-se ideologias e
intentos do próprio jogo da ‘neutralidade’, objetivando fins ‘impuros’. De fato, a suposta ‘cientificidade’ e a propalada
‘neutralidade’ kelsenianas não deixaram de ser também ideologias, pois sua ‘Grundnorm’ transformou-se em
instrumento de legitimação de inúmeras ordens política-jurídicas: tanto de Estados do capitalismo liberal-burguês
quanto de Estados que viveram certo tipo de socialismo burocrático”.
15
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.67: “Essas outras normas
sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a disciplina dirigida ao seu conhecimento e descrição
pode ser designada ética”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 27


Acerca do segundo aspecto (relação entre os objetivos do Direito e a Moral),
cabe asseverar que uma das finalidades centrais do sistema jurídico reside justamente
em estabelecer critérios e limites para tomada de decisões que sejam corretas, boas e
justas, não apenas quaisquer deliberações previsíveis, a despeito de seu conteúdo. Como
uma construção cultural (produzida pela Sociedade),16 o Direito tem uma finalidade
a desempenhar, a qual não pode ser simplesmente ignorada ou excluída, sob pena de
acarretar uma contradição lógica insuperável, consistente na criação de um produto para
desempenhar uma função (disciplinar corretamente a vida social) e, simultaneamente,
liberação de que atinja tal objetivo (admitir que qualquer tipo de regramento de conduta
é válido a despeito de seu conteúdo, desde que previsível objetivamente). Logo, também
por ser a própria razão de criação histórica do Direito, este deve se dedicar a disciplinar
de forma correta (certa, boa e justa) a conduta humana, sob pena de se privilegiar um
sistema social sem funcionalidade específica (ou que não atende satisfatoriamente tal
necessidade).
Sem embargo, nessa quadra da história, em que se tem em perspectiva um Estado
Constitucional Democrático, na expressão empregada por Gustavo Zagrebelsky17 e por
José Joaquim Gomes Canotilho,18 não se pode admitir a existência de um Ordenamento
Jurídico a despeito de qualquer conteúdo, justamente porque as leis fundamentais, por
via de regra, contemplam parâmetros de perfil axiológico. É preciso reconhecer que as
Normas Jurídicas devem ter legitimidade moral, ainda que tal apreciação seja axiológica
e, portanto, relativa e subjetiva.19 Caberá ao processo comunicativo, de viés jurídico e
democrático, o esforço para formação de consensos (ou maiorias) sobre quais os padrões
que devem prevalecer no Ordenamento normativo em determinado período histórico.
Sob esta ótica, a apresentação das Normas Jurídicas com qualquer conteúdo, ou seja,
a despeito da sua legitimidade moral, é outro problema que torna insustentável a teoria
do Direito juspositivista, haja vista que, primeiro, são inegáveis e inafastáveis os influxos
morais na atividade jurígena e, segundo, a própria finalidade histórica da normatização
reside em estabelecer quais são as condutas corretas, boas e justas. Bem assim, ao lado
do pilar de validade formal da estrutura normativa, é preciso tratar também das pilastras
morais e axiológicas que, de forma simultânea, conferem sustentação ao sistema.20

16
GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.20: “Nível de um todo
complexo – a estrutura social global –, o direito nela se compõe e resulta da sua própria interação com os demais
níveis desse todo complexo. […] Produto cultural, o direito é, sempre, fruto de uma determinada cultura. Por isso
não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal”.
17
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. 9.ed. Madrid: Trotta, 2009. p.33-41.
18
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina,
2003. p.87.
19
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p.288: “Mas, por causa da sua função
social, o poder do Estado não deve contentar-se com a legalidade técnico-jurídica; por necessidade da sua própria
subsistência, deve também preocupar-se da justificação moral das suas normas jurídicas ou convencionais
positivas, procurar a legitimidade”.
20
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.38: “O direito não é uma ordem lógica nem uma simples estrutura. Possui
caráter político que se exprime em tomadas de posição, em práticas e teorias situadas no tempo e no espaço e
apoiadas em opções substanciais (‘de conteúdo’) que o estudioso não pode ignorar, mesmo quando se preocupa
com a análise de elementos estruturais, comuns em vários ordenamentos”.

28 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Portanto, de acordo com os dois aspectos antes destacados, não se pode cogitar,
então, da simples opção por uma modalidade inclusiva do Positivismo Jurídico (a exemplo
da proposição de Hart), ao invés de uma versão exclusiva (como a de Kelsen), no sentido
de apenas admitir que, eventualmente, as contingências políticas e sociais são confluentes
com os temas jurídicos e, assim, estabelecem contornos na atividade jurígena. Tal solução
não parece ser a mais adequada, considerando que há uma necessária relação fática entre
Direito e Moral (primeiro ponto) e que a própria finalidade histórica do conhecimento
jurídico é justamente permitir a tomada de decisões corretas, boas e justas (segundo ponto).
Outrossim, é necessário se socorrer de uma proposição pós-positivista neste particular,
que articule uma adequada confluência entre moralidade e juridicidade.
No concernente à prevalência das Regras Jurídicas, é incorreta a proposição
juspositivista de que o Direito se resume a um conjunto de imperativos legislativos,
porquanto há outros elementos que inegavelmente conformam a atividade jurígena, a
exemplo da Moral (como já antes assinalado), dos Princípios Jurídicos e das políticas,
dentre eventuais outros. Todavia, merece ser respeitada a tese juspositivista que atribui
apenas a prevalência, mas não a exclusividade, das disposições legais escritas sobre os
demais padrões decisórios, com a ressalva da viabilidade do controle principiológico
de constitucionalidade, já incorporada inexoravelmente na tradição jurídica de diversos
países, inclusive da República Federativa do Brasil.
Aprofundando ambas as afirmações, cabe acentuar a falha descritiva do argumento
juspositivista no sentido de que a ordem jurídica seria composta tão somente de Regras
postas pelo Estado, ainda que sua inserção tenha sido influenciada por critérios morais,
políticos, ideológicos ou interesses de quaisquer outras ordens, a exemplo da proposição
teórica de Kelsen21. Porém, é respeitável a versão atenuada de tal concepção do Direito,
no sentido de que a legislação escrita não é o único parâmetro de julgamento, porém,
são sempre prevalecentes sobre os demais, em razão do monopólio estatal da produção
normativa,22 consoante expôs Hart.23
Com efeito, quanto à primeira assertiva (só as Regras Jurídicas são Direito),
cabe assinalar que, quando o parlamentar se baseia em um elemento extraído da Moral
para produção de um Texto Legislativo, deve se supor que tal texto foi “moralmente
contaminado”. Também quando o juiz, ou outro órgão aplicador do Direito, produz uma
Norma Jurídica para fundamentar uma Decisão concreta com base em um Princípio
Jurídico, se estará diante do ingresso de um elemento diferente da Regra positiva na
ordem jurídica. Tais exemplos demonstram que, “nos discursos jurídicos, surgem não

21
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p.145-156, em especial
p.148.
22
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.115: “O termo ‘formal’ indica tão somente que, na visão juspositivista, a
validade da norma nunca pode ser julgada de acordo com critérios externos, isto é, decorrentes de outros sistemas
normativos (adequação moral, política, econômica, técnica, científica, artística etc)”.
23
HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.59-60 e, especialmente,
p.347: “Assim, sejam as leis moralmente boas ou más, justas ou injustas, os direitos e deveres exigem atenção
como pontos focais no funcionamento do sistema jurídico, que tem importância suprema para os seres humanos
e independe dos méritos morais das leis”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 29


somente argumentos imanentes ao direito, mas também argumentos éticos, empíricos
e pragmáticos”.24 Não se pode negar, ainda, que tais influxos diversos da legislação
positiva são empregados comumente e, portanto, não podem ser desconsiderados pelo
cientista do Direito.25
Tanto é assim que Ronald Myles Dworkin, em seu ataque geral declarado ao
Positivismo Jurídico, demonstrou que existem diversos padrões que influenciam o
magistrado na construção da Norma que fundamenta uma Decisão concreta, dos quais
reputou legítimos os Princípios (principles) e as Regras (rules) e, de outro lado, rejeitou
as políticas (policies), sem olvidar da existência de outros tipos de argumentos não
especificados.26 Embora o entendimento do referido Jurista seja objeto de análise mais
adiante, cabe adiantar tal colocação para registrar que, diferentemente dos juspositivistas,
reconheceu a existência de diversos aspectos normativos e passou a enfrentar o problema,
ao invés de simplesmente taxá-los de estranhos à Ciência Jurídica e esquecê-los.
Aliás, o próprio Hart, após as provocações acadêmicas de Dworkin, reconheceu
expressamente que sua visão foi incompleta, ao desconsiderar a importância de outros
padrões de julgamento para a Ciência Jurídica. Com efeito, inicialmente seu entendimento
era de que o sistema seria formado centralmente (principalmente) por Normas Jurídicas
primárias (Regras coercitivas de conduta) e secundárias (Metarregras de reconhecimento,
de modificação e de julgamento), com eventuais outros elementos distintos na periferia.27
Porém, após o mencionado diálogo acadêmico, acabou por reconhecer o equívoco do
Juspositivismo neste particular e, consequentemente, admitiu que deixou de examinar
outros padrões de julgamento de alta relevância para a compreensão do Direito, a exemplo
dos Princípios Jurídicos.28
Acrescenta-se que, para fins do escorreito desenvolvimento de uma nova teoria do
Direito, é possível apontar, desde o início, um conjunto de elementos que historicamente
tem servido para conformar a Norma Jurídica, consistentes em, a um, os Textos
Legislativos, que são vinculantes e devem ser levados a sério,29 a dois, o conhecimento
técnico científico, na medida em que for relevante para o estabelecimento de uma pauta

24
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003. p.352.
25
ALEXY, Robert. On the concept and the nature of law. Ratio Juris, Oxford, v.21, n.3, p.281-299, 2008. p.283:
“The everyday life of law is full of hard cases that cannot be decided simply on the basis of what has been
authoritatively issued”.
26
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.35-46, especialmente
p.36: “Minha estratégia será organizada em torno do fato de que, quando os juristas raciocinam ou debatem a
respeito de direitos e obrigações jurídicos, particularmente naqueles casos difíceis nos quais nossos problemas
parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente,
como princípios, políticas e outros tipos de padrões. Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um
sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os
papeis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras” (grifou-se).
27
HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.128.
28
HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.339.
29
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p.20 e 102.

30 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


de julgamento (a exemplo da Doutrina Jurídica),30 a três, os Princípios Jurídicos, já
inseridos na tradição do Direito, a quatro, a Jurisprudência gradualmente construída e, a
cinco, os padrões morais compartilhados intersubjetivamente no cenário onde ocorre a
produção normativa. Todos estes cinco elementos são candidatos a auxiliarem na atividade
jurígena e, portanto, ingressarem no conteúdo da ordem jurídica, mediante uma conjunção
centrípeta das diversas considerações técnicas (viewpoints) sobre a legitimidade, a validade
e a pertinência de cada um deles.
Veja-se bem que não se está afirmando que todo e qualquer elemento pode integrar
a ordem jurídica, haja vista que é muito importante a delimitação de quais são as Fontes
legítimas do Direito (tema que será objeto de estudo, na sequência). A crítica aqui
estabelecida é apenas no sentido de que a teoria do Direito não pode simplesmente ignorar
que existem outros diversos padrões de julgamento que conformam a produção normativa
e que, portanto, merecem ser considerados como frações, legítimas ou ilegítimas, do
sistema. Uma situação é admitir que existem tais elementos suscetíveis de influenciar a
produção normativa, tanto na formatação dos Textos Legislativos, como na fixação das
Decisões executivas ou jurisdicionais. Outra completamente distinta é qualificá-los de
elementos estranhos à ordem jurídica e, assim, isolá-los artificialmente, como propõem
uma parcela do movimento juspositivista, a exemplo de Kelsen. Tais elementos existem
de fato e, por isto, reclamam a atenção do cientista jurídico.
Logo, forçosa a ilação de que a formação unidimensional do Ordenamento Jurídico
é incompleta, justamente porque não abarca os diversos outros padrões que inegavelmente
conformam as Decisões Jurídicas.31
Porém, no tocante à segunda afirmação (o Texto Legislativo sempre prevalece sobre
os demais padrões de julgamento), esta merece ser respeitada e mantida por uma proposta
de superação pós-positivista, haja vista que, acaso não for conferida tal preferência à
legislação escrita, geralmente confeccionada segundo padrões democráticos modernos
(como se verifica formalmente no cenário brasileiro atual), estará se permitindo que o
órgão decisor possa fazer preponderar sua apreciação pessoal sobre as opções fixadas
legitimamente, em flagrante retrocesso no processo civilizatório.
Com efeito, desconsiderar a importância das limitações impostas pelos textos
positivos significa, nesta linha de pensamento, um retorno indevido aos postulados do
Jusnaturalismo, o qual relativizava a importância da legislação em face de supostos direitos

30
STRECK, Lenio Luiz. Crise de paradigmas: Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Disponível
em: <www.leniostreck.com.br. Acesso em: 12 abril 2011.
31
NEVES, António Castanheira. Digesta: Escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia
e outros. V 2. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p.52: “Trata-se agora também do reconhecimento, não só de
que o sistema jurídico haverá hoje de pensar-se aberto e constituendo, mas sobretudo de que deixou ele de ser
normativisticamente unidimensional (i. é, constituído apenas por normas, no sentido dogmático estrito desse
conceito, e qualquer que seja a origem dessas normas ou mesmo que não sejam elas exclusivamente normas
legais), pois se revela como normativisticamente pluridimensional – desde logo, e é essencial, com uma dimensão
normativa que transcende, intencional e juridicamente, as normas formais e que é dada pelos valores e princípios
normativo-jurídicos, os regulativos e constitutivos fundamentos normativos de todo o sistema juridicamente
vigente”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 31


naturais, altamente abstratos e flexíveis, capazes de comportar qualquer tipo de solução,
mormente em sociedades complexas e altamente heterogêneas, como a brasileira. Aliás,
seria um esforço infrutífero insistir em positivar diversas orientações para tomada de
decisão e, ao mesmo tempo, admitir que elas possam ser simplesmente desconsideradas
com base em argumentos fictícios, calcadas em supostos postulados naturais que, a bem
da verdade, não passam de uma retórica para amparar o ponto de vista de determinada
autoridade, em detrimento de preceitos democraticamente criados.
Entretanto, importa registrar que os Textos Normativos infraconstitucionais podem
ser mitigados, em determinadas hipóteses e de acordo com processos específicos, quando
contrariem os Princípios Jurídicos estabelecidos em alçada constitucional, em sistemas
jurídicos que assimilaram o controle de constitucionalidade, a exemplo da tradição
jurídica brasileira.
Encontra-se assentado, neste cenário, que os preceitos infraconstitucionais
podem ser invalidados pela aplicação de Princípios constitucionais, cuja interpretação/
concretização está sujeita a influxos da moralidade32. Embora se repugne o subjetivismo na
apreciação moral da legislação positiva, não se pode afastar a necessidade do controle de
constitucionalidade das leis positivas, ainda que com base em Princípios lidos eticamente,
em sede de um Estado Constitucional Democrático33. Assim, o exercício do controle de
constitucionalidade, representa, sob esta ótica, uma forma válida e amplamente aceita
de invalidação dos preceitos infraconstitucionais por critérios de julgamento diversos,
notadamente os Princípios Jurídicos e a Moral.
Portanto, diante de tal contexto, apresenta-se correta a tese da impossibilidade da
superação dos dispositivos legais, embora se admita que os sistemas jurídicos modernos
têm, de uma forma ou de outra e dentro de certos parâmetros preestabelecidos, fixado
a possibilidade de se negar efeitos aos Textos Normativos infraconstitucionais que
contrariem Princípios Jurídicos (e, consequentemente, temas morais), desde que estes
tenham alçada fundamental (constitucional).
Perante as duas colocações acima alinhavadas, é possível justificar que os diversos
elementos de determinação das Normas Jurídicas precisam ser conhecidos e estudados
pela Ciência do Direito (mais especificamente pela dogmática jurídica), inclusive para
fins de auxiliar na prescrição daqueles que são juridicamente aceitáveis e devem ser
tomados em conta pelo legislador e pelo órgão aplicador, bem como dos que merecem ser

32
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: A leitura moral da constituição norte-americana. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p.2: “A maioria das constituições contemporâneas expõe os direitos do indivíduo perante o governo
numa linguagem extremamente ampla e abstrata, como a Primeira Emenda à Constituição norte-americana, que
estabelece que o Congresso não pode fazer nenhuma lei que diminua a ‘liberdade de expressão’. A leitura moral
propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos estes dispositivos abstratos
considerando que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça”.
33
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Do Advogado, 2010.
p.102-103: “Mas, atenção: essa crítica ao subjetivismo – que é, fundamentalmente, uma crítica ao pragmati(ci)
smo – não implica a submissão do Judiciário a qualquer legislação que fira a Constituição, entendida no seu
todo principiológico. Legislativos irresponsáveis – que aprovem leis de conveniência – merecerão a censura da
jurisdição constitucional”.

32 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


desprezados. Logicamente, as afirmações antes reduzidas tornam nítida a falseabilidade da
pretensão juspositivista de que o Direito é formado apenas por Regras Jurídicas, embora
mereça ser preservada a tese de que a legislação positiva deve sempre prevalecer sobre
os demais parâmetros que podem influenciar a atividade jurígena, com a ressalva do
controle principiológico de constitucionalidade.
Acerca do Ordenamento Jurídico, acentua-se que a doutrina juspositivista
também merece aperfeiçoamentos, haja vista que a estrutura de uma pirâmide de Regras
Jurídicas escalonadas segundo critérios formais precisa de adaptações para, primeiro,
assimilar os demais parâmetros de julgamento admitidos (a exemplo dos Princípios
Jurídicos e da Moral); segundo, mais fielmente explicar a relação complexa e reflexiva
dos diversos padrões jurídicos entre si, nos quadros de um mesmo sistema; e, terceiro,
melhor ilustrar a posição estrutural da Norma fundamental, considerando seus aspectos
político e axiológico, os quais aderem ao seu caráter formal.
Quanto à primeira assertiva, cabe reiterar o que já foi explicitado acima, no tocante à
existência de outros elementos, além da Regra Jurídica, no interior do sistema normativo,
os quais precisam ser devidamente tratados pela teoria do Direito.
No tocante à segunda colocação, importa assinalar que a dinâmica unidirecional da
pirâmide jurídica, no sentido de cima para baixo, proposta inicialmente por Kelsen, não
reflete a complexidade das interações entre as diversas Fontes Jurídicas que se articulam
no interior do Ordenamento Jurídico. Isto porque, mediante a observação da atividade
da jurisdição, é possível constatar que o órgão aplicador não segue uma linha reta de
raciocínio partindo da Constituição, passando pela legislação intermediária, até chegar
à Norma de Decisão, ou seja, ele não simplesmente desliza linearmente do ápice até
a base da pirâmide. Diferentemente, a atividade do intérprete e aplicador se apresenta
dispersa entre os diversos elementos que extraí do complexo normativo para elaborar
a sua Decisão, os quais são apreciados de acordo com movimentos multidirecionais,
diversos da simples descida do topo até a base, inclusive em razão da inter-relação e da
reflexividade entre os critérios que serão adotados.
Como exemplo, imagine-se a situação hipotética de um juiz que tem ao seu
encargo a resolução de um caso criminal de trânsito, como lesões físicas causadas por um
atropelamento culposo. Inicialmente, por certo que não pode desconsiderar o conteúdo
da Constituição, que é o elemento central de um determinado Ordenamento Jurídico.
Porém, a leitura dos preceitos constitucionais, na hipótese vertente, será irradiada por
extratos dos subsistemas criminal e processual penal, os quais justamente apoiam a
fixação dos critérios de desaprovação e de punição da conduta concreta em análise.
Ademais, sua análise não pode olvidar dos imperativos legais extraídos da legislação
de trânsito. Então, a operação mental do juiz não se reduz a uma descida dos preceitos
constitucionais, passando pelos criminais, processuais e de trânsito, até chegar à Decisão,
como podem pretender os juspositivistas (mormente Kelsen). Na verdade, sua leitura da
Constituição e dos estatutos processual, repressivo e de trânsito é reflexiva e irradiante,
entre os subsistemas envolvidos. Outrossim, ao invés de uma linearidade, de cima para

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 33


baixo, há uma irradiação multirreflexiva e complexa entre os preceitos da Constituição,
da legislação penal, do processo criminal e da disciplina de trânsito, de modo a conformar
a sua Decisão jurisdicional.
Consequentemente, também sob esta ótica, a estrutura da ordem jurídica merece
ser revista, haja vista que a forma piramidal, cuja dinâmica é meramente linear de cima
para baixo, não representa adequadamente os movimentos que se operam no interior do
sistema.
E, sobre a terceira colocação, é necessário repensar o posicionamento da Norma
fundamental dentro do sistema jurídico, haja vista que sua colocação no topo de uma
pirâmide escalonada visa apenas satisfazer um critério de validação formal das disposições
que se colocam abaixo dela, contudo, não representa adequadamente a força material que
irradia sobre os demais elementos do Ordenamento Jurídico.34
Em estudo anterior, no qual se expuseram alguns argumentos inaugurais da presente
pesquisa, foi defendida a hipótese de que a Constituição não é o vértice de um sistema
formado puramente por Regras Jurídicas escalonadas pelo critério meramente formal, mas
sim um texto jurídico com inegável caráter político e axiológico, que assume a posição de
centralidade formal e material (ou seja, conteudística) em uma ordem jurídica de feições
orbitais. Nesta linha de pensamento, o núcleo do Ordenamento Jurídico é formado por
uma pauta de princípios estruturantes, impressos na Constituição, que consubstancia o
pilar de sustentações formal e material de todo o sistema.35
Portanto, diante da tripla argumentação apresentada, justifica-se a necessidade de
repensar a estrutura piramidal da versão juspositivista de Ordenamento Jurídico, de modo
a melhor sistematizar a confluência multidirecional e irradiante dos diversos padrões de
julgamento sobre os pilares formais e materiais de uma Norma fundamental.
No tocante à aplicação do Direito por subsunção, a proposição juspositivista
merece ser superada, para melhor representar a realidade (aspecto descritivo da Ciência
Jurídica), haja vista que as Normas Jurídicas faticamente não correspondem a soluções
oferecidas de antemão pelo órgão legiferante (premissas maiores), antes de surgidos os
casos concretos (premissas menores), de modo a inviabilizar um raciocínio meramente
lógico dedutivo. Ademais, como decorrência da afirmação anterior, o fenômeno da
subsunção não efetivamente demonstra a atividade interpretativa e aplicativa da jurisdição,
a qual é complexa e se desenvolve diferentemente do mero encaixe dos fatos em preceitos
legais, através de um procedimento silogístico.

34
DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: As faces da teoria
do direito em tempos de interpretação moral da constituição. 2.ed. São Paulo: Landy, 2010. p.81: “Esse modelo
jurídico [constitucionalismo] representa uma visão universalista do direito constitucional, a qual representa uma
dimensão axiológica do jurídico, em que os valores não são simplesmente expressões de um ponto de vista, mas
a expressão de um ideal moral universal. Nesse modelo, a Constituição não é somente ‘norma de autorização’ e
limite do direito infraconstitucional; esta apresenta um conteúdo que sustenta todo o sistema jurídico”.
35
ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. A centralidade material da constituição. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n.95, 2011.
Disponível em: www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 01.12.2011.

34 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Quanto às objeções acima expostas, importa ressaltar a incorreção da presunção
juspositivista de que as Normas Jurídicas são previsões de resposta para problemas futuros
que, quando falhas ou imprecisas, demandam a atividade criadora discricionária do órgão
aplicador do Direito. Tal entendimento encontra-se expresso, ainda que com algumas
diferenças analíticas, nas obras de Hart (somatório de Regras primárias e secundárias com
textura aberta)36 e, com aperfeiçoamentos, de Kelsen (Normas escalonadas e a moldura
de interpretação)37.
Para Hart, as Normas Jurídicas são padrões de conduta fixados pela autoridade
competente (Direito posto), com força coercitiva, criadas para reger a vida em Sociedade.
Porém, em se tratando de casos difíceis, quando o órgão aplicador encontra imprecisões na
tarefa de deduzir a resposta correta prefixada no Ordenamento Jurídico, ele deve exercer o
poder legislativo intersticial e discricionário para fixar o imperativo aplicável na situação
concreta, de modo a superar a textura aberta decorrente das limitações linguísticas38.
Tal versão positivista não se sustenta, pois o Texto Legal (dos quais se extraí o
imperativo) não apresenta nenhuma resposta de antemão, tratando-se de uma orientação
escrita, com finalidade limitativa da amplitude decisória. Ou seja, antes da efetiva
ocorrência de um caso (concreto ou imaginado), não há nenhuma resposta preestabelecida,
mas apenas uma construção gramatical (um texto).39 Somente com a efetiva ocorrência
de um problema na faticidade (concreta ou hipoteticamente), é que surge a pergunta que
irá movimentar a operação interpretativa e aplicativa do órgão judicante, que passará a
produzir a Norma Jurídica, segundo as balizas traçadas pelo enunciado normativo e de
acordo com os detalhes da situação fática40. Portanto, não há Norma Jurídica em abstrato,
ou seja, antes dos fatos, da mesma forma que inexistem respostas antes das perguntas, de
sorte a demonstrar a necessidade de aperfeiçoamento deste ponto da doutrina juspositivista,
com vistas a ampliar sua fidelidade descritiva (âmbito descritivo da Ciência Jurídica).
A leitura desatenta dessa consideração (inexistência de Normas Jurídicas em
abstrato) poderia levar a uma objeção, baseada no fato de que, através do estudo científico

36
HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.161-199.
37
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.387-397.
38
HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.351: “Para que possa proferir uma decisão
em tais casos, o juiz não deverá declarar-se incompetente nem remeter os pontos não regulamentados ao poder
legislativo para que este decida, como outrora defendia Bentham, mas terá de exercer a sua discricionariedade
e criar o direito referente àquele caso, em vez de simplesmente aplicar o direito estabelecido já existente. Assim,
nesses casos não regulamentados juridicamente, o juiz ao mesmo tempo cria direito novo e aplica o direito
estabelecido, o qual simultaneamente lhe outorga o poder de legislar e restringe esse poder”.
39
GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
p.29: “Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma
de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo
é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados [Müller]”.
40
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p.549-550: “Desde já – embora essa discussão já esteja esclarecida no decorrer da obra –, é
necessário (re)lembrar que, para os efeitos aqui pretendidos, a palavra ‘norma’ representa o produto da interpretação
de um texto, isto é, o produto da interpretação da regra jurídica realizada a partir da materialidade principiológica. Se
sempre há um princípio atrás de uma regra, a norma será o produto dessa interpretação, que se dá na applicatio.
[…] Desse modo, não pode haver um conceito de norma que seja prévio e anterior ao caso a ser decidido. Portanto,
a norma e, máxime, a normatividade do direito emerge da conflituosidade própria do caso”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 35


do Direito (em instituições de ensino superior, por exemplo), mesmo realizado em
sede meramente hipotética, seria possível a extração de Normas Jurídicas, o que faria
sucumbir a presente exposição, na medida em que haveria uma Regra de conduta antes da
ocorrência de um caso concreto. Todavia, tal crítica é incorreta, haja vista que as atividades
de abstração somente são possíveis através de efetivos casos, ainda que os respectivos
detalhes tenham resultado da criatividade (ou imaginação) de um estudioso, de acordo
com os quais se torna possível a interpretação dos Textos Legais e, assim, a produção de
Normas.41 Jamais um determinado dispositivo legal representa uma Norma Jurídica por
si só, haja vista que esta só surge quando há a atividade de interpretação e de aplicação,
diante de uma caso (ainda que hipoteticamente imaginado), mediante a interferência de
um intérprete que pretende resolvê-lo.
Portanto, merece aprimoramento tal versão da teoria do Positivismo Jurídico,
capitaneada por Hart, de que a Norma Jurídica é uma resposta preestabelecida, fixada
pelo órgão legiferante, que oferece soluções para os futuros casos concretos, mediante
o processo dedutivo e lógico de subsunção (encaixe dos fatos nas respostas prefixadas).
Isto porque, como já dito, antes da ocorrência de um caso (ainda que hipoteticamente
imaginado), não há como se efetuar a interpretação de textos necessária para produção
da Norma.
A proposição teórica de Kelsen, por ser mais refinada no ponto, aparentemente
superaria a dificuldade acima descrita, porquanto estabelece que a aplicação do Direito
é uma atividade efetivamente produtiva, no sentido de que cada caso específico demanda
a construção de uma resposta única (Norma individual), salvo exceções raras. Como
já visto, para o Jurista austríaco, há uma construção gradual e escalonada da ordem
jurídica, no sentido de que as Normas superiores (legisladas ou extraídas de precedentes
judiciais) conformam a atividade do órgão aplicador, que irá produzir (criativamente)
uma Regra inferior individual para reger a situação concreta. Assim, para ele, a atividade
de produção normativa é uma cadeia dinâmica inserida na pirâmide do Ordenamento
Jurídico, em que novas Normas são criadas com bases nas preexistentes, ou seja, a
resposta específica e individual deve ser produzida dentro das margens de possibilidade
das soluções mais amplas e genéricas. Daí que, no interior da moldura representada pela
disposição normativa superior, o órgão aplicador estaria livre para estabelecer as balizas
do comando individual inferior.
Todavia, cabe notar que tal versão incorre no mesmo equívoco da proposição de
Hart, ao admitir a existência de Normas Jurídicas em abstrato, nas quais o jurista pode se
basear para produzir o imperativo individual. Como já dito, antes de iniciada a atividade
interpretativa, há apenas textos legais, inexistindo uma efetiva Norma que possa guiar a
atividade do órgão aplicador. Assim, como já se se discorreu anteriormente ao se tratar da
necessidade de modificação da estrutura do Ordenamento Jurídico, a atividade produtiva
do órgão aplicador se resolve através de análises complexas e reflexivas entre diversos

41
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy,
2004. p.60: “[...] quem falar de uma norma, assim como de uma regra, no sentido relevante para a regra, associa
a ela a ideia de alguns casos que são iguais entre si e nos quais, por isso, a norma pode ser aplicada”.

36 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


padrões de julgamento (dentre eles Textos Legais, de graus de hierarquia diversos),
aos quais aderem os fatos. Ou seja, apenas após a pergunta surgida na faticidade (caso
concreto) é que o órgão aplicador inicia a complexa atividade cognitiva, balizada pelo
seu conhecimento dos enunciados normativos escritos, que irá resultar em uma resposta
específica (Norma Jurídica). Assim, sequer existe a chamada moldura kelseniana antes
de iniciada a operação mental de interpretação, de modo a demonstrar a necessidade de
refinamento da teoria juspositivista neste particular, para que melhor explique como as
construções léxicas limitam a atividade jurisdicional. Em outros termos, não existem
respostas antes de sequer formuladas as perguntas, ou seja, não há como se estabelecer
que a ordem jurídica é composta por respostas genéricas e amplas (molduras), dentro
das margens semânticas das quais o órgão aplicador irá encontrar uma solução (Norma).
As soluções jurídicas são construídas somente a partir da provocação do caso concreto,
ocorrido na faticidade ou hipoteticamente imaginado, que irá motivar o órgão aplicador
a dar uma resposta, ainda que limitado por padrões de julgamento, a exemplo dos Textos
Legais.
Mas não apenas aí a proposição kelseniana demanda aprimoramentos, pois também
a descrição da subsunção escalonada não reflete fielmente a realidade. Sem embargo,
para o autor em tela, a produção do Direito ocorre na própria dinâmica do Ordenamento,
seguindo uma linha sempre descendente, dividida em tantas etapas quantos forem os
degraus da hierarquia. Exemplificativamente, o constituinte derivado poderia modificar
a Constituição mediante uma emenda, enquanto o legislador, por sua vez, observaria
a alteração constitucional para editar a lei ordinária e, ao final, o juiz se basearia na
mencionada disposição infraconstitucional para decretar uma Norma individual na
resolução de um caso concreto. Porém, não é isto que efetivamente ocorre, de modo a
revelar que a construção teórica de Kelsen é um plano ideal sem paralelo na realidade
fática. Isto porque, consoante demonstra a experiência, o órgão aplicador do Direito,
diante de um caso, difícil ou fácil (ambos se resolvem da mesma forma, embora o segundo
possa parecer evidente, de resolução automática), enxerga a ordem jurídica como um
todo íntegro e, dela, procura extrair os mais diversos elementos para produção da resposta
(Norma Jurídica) que irá resolver o problema (caso). Tal convergência de aspectos, a serem
ponderados segundo operação mental do intérprete, é que resulta na Norma Jurídica que
responderá à pergunta inaugurada pelo caso concreto (ou hipotético).42
Retome-se o exemplo anterior, do juiz que está diante de certo caso criminal
hipotético, envolvendo um suposto delito de trânsito. Ele pode, primeiro, identificar
alguns Textos Normativos que lhe parecem pertinentes ao tema, extraídos da
Constituição, dos códigos penal, processual criminal e de trânsito, bem como do
regulamento do órgão de fiscalização de tráfego. Todavia, tais Textos podem não

42
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.492: “O direito não é esgotado
por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera do
comportamento. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossa vidas. O
império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. […] É uma atitude interpretativa
e autorreflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão
responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais
compromissos exigem em cada nova circunstância”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 37


parecer suficientes para resolução do problema, persistindo ainda dúvidas quanto
ao melhor desfecho. Consultando a integralidade dos documentos legais antes
referidos, o magistrado percebe que dois Princípios, quando articulados com os
Textos Legais que ele destacou, permitem a formação de uma resposta, embora ainda
não esteja completamente certo de que seja a melhor. Então, buscando auxílio na
Doutrina especializada (de Direito e de engenharia automotiva, supondo que esta
última também fosse pertinente à espécie), o juiz é influenciado por argumentos
técnicos em determinado sentido, podendo até mudar a sua opinião inicial, quando
sequer havia ainda consultado a legislação. Adicionalmente, em consulta ao escólio
jurisprudencial de dois tribunais, o juiz acaba por confirmar que os contornos de
uma Decisão que formava em sua mente (e, portanto, tinha como sendo sua opinião
desejada para o equacionamento da demanda), orienta justamente a modificar um
dos pontos acessórios da sua solução final. E, em acréscimo, ainda que se esforce
em desconsiderar seus preconceitos morais sobre o caso, alguns argumentos deste
teor acabam exercendo inegável influência na sua operação interpretativa43. Ao final,
todos estes padrões de julgamento convergem, em uma estrutura argumentativa
(que depois será reduzida linguisticamente em um texto escrito ou em voz gravada
digitalmente), sob o formato de uma Norma Jurídica que fundamentará sua Decisão,
a qual está sujeita à fiscalização democrática (accountability).
O exemplo acima ilustra, embora brevemente o fenômeno de conformação de
uma Norma Jurídica, que muito pouco tem de semelhante com a categoria subsunção,
ainda que nos moldes produtivos (e não meramente reprodutivos) propostos por Kelsen.
Sem embargo, o referido fenômeno tipicamente positivista (subsunção) consubstancia
uma redução exageradamente simplista da realidade, pois a Norma Jurídica é produzida
por uma operação mental complexa, que envolve diversos elementos de determinação
além das Normas superiores. Como já mencionado, diversos padrões de julgamento
convergem de vários ângulos para influenciar a criação da Norma Jurídica, não sendo
aceitável a tese de que ocorre apenas o encaixe de uma Regra inferior nos moldes de
outra que lhe é superior, mediante um simples silogismo.
Muito embora a subsunção represente um esforço louvável de explicar
cientificamente como ocorre a delimitação da atividade cognitiva do juiz, a realidade
fática demonstra que os Textos Legais representam lindes ao órgão aplicador de forma
distinta, de modo a atestar a necessidade da Ciência Jurídica encontrar uma explicação
mais coerente com a complexidade da atividade decisória. Importa perceber que a
limitação da amplitude de deliberação não se opera por intermédio de uma moldura ou
janela (resposta genérica e ampla preestabelecida), mas sim de alguma outra forma, a
ser esclarecida por alguma proposição pós-positivista que mais fielmente represente a
confluência dos vários padrões de julgamento.

43
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.237: “[...] a
interpretação do direito feita pelo juiz não consiste jamais na simples aplicação da lei com base num procedimento
puramente lógico. Mesmo que disso não se dê conta, para chegar à decisão ele deve sempre introduzir avaliações
pessoais, fazer escolhas que estão vinculadas ao esquema legislativo que ele deve aplicar”.

38 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


A aposta juspositivista de que a produção normativa ocorre por subsunção linear,
do ápice (Norma fundamental) até a base (Norma de Decisão) do sistema jurídico, ou
seja, mediante o estabelecimento da Norma inferior por mera dedução da superior,
através de um ato de vontade subsuntivo, simplifica excessivamente o fenômeno
complexo e multidisciplinar da hermenêutica jurídica.44 Nesse particular, cabe lembrar os
ensinamentos de Edgar Morin, no sentido de que se deve ter cuidado ao limitar demais
os fenômenos na tentativa de descrevê-los cientificamente, pois a redução exagerada da
complexidade pode causar cegueira quanto à totalidade dos aspectos que compõem a
realidade45. Tendo isto em conta, não se pode olvidar que a subsunção é uma abreviação
fenomenológica deste tipo, que merece ser superada (ou aprimorada) tecnicamente.
A insuficiência da teoria da moldura pode ser verificada faticamente na atividade
forense cotidiana, pelo reiterado recurso a formas diversas de solucionar os casos pelos
órgãos judicantes, exatamente em razão da inexistência de respostas preestabelecidas
pela ordem jurídica que possam autorizar a técnica da subsunção. Exemplificativamente,
as Cortes Constitucionais alemã (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) e brasileira
(Supremo Tribunal Federal – STF) têm empregado a chamada técnica de ponderação
de interesses ou valores, criada por autores pós-positivistas, justamente para contornar
a ausência de Normas Jurídicas prévias e, assim, resolver determinados casos
considerados difíceis (hard cases), mediante a articulação de preceitos legais com
Princípios Jurídicos. Uma busca através dos sistemas informatizados de consulta de
Jurisprudência dos tribunais brasileiros revelará um considerável número de acórdãos
com a menção à ponderação e à proporcionalidade, ainda que aplicadas de forma
incongruente e assistemática, num esforço jurisdicional para responder aos problemas
concretos, justamente ante a insuficiência da chamada subsunção.
Nessa linha de raciocínio, embora a teoria da Decisão Judicial baseada na subsunção
goze de ampla aceitação acadêmica, nos moldes de Hart ou mesmo na refinada versão
kelseniana, ela se encontra empiricamente incorreta ou, ao menos, excessivamente
simplista, porquanto o órgão aplicador não enxerga a situação fática a ser resolvida através
dos limites de uma janela representada pela Norma superior, mediante um procedimento
silogístico.46

44
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.221: “O
juspositivismo tem uma concepção formalista da ciência jurídica, visto que na interpretação dá absoluta prevalência
às formas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções puramente lógicas que se possam fazer com
base neles, com prejuízo da realidade social que se encontra por trás de tais formas, dos conflitos de interesse
que o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários do positivismo jurídico) guiar o jurista na sua
atividade interpretativa”.
45
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 3.ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. p.13-14: “Por isso o
conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os
elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias
à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e,
efetivamente, eu o indiquei, elas nos deixaram cegos”.
46
POSNER, Richard Allen. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.341: “Com base
apenas no que afirmei até agora, já deve estar claro que a concepção tradicional que associa o raciocínio do
common law à indução e a interpretação das leis à dedução é enganosa. Interpretação não é dedução, ainda
que quando um conceito é extraído de uma lei por meio de interpretação o juiz possa proceder dedutivamente
(por exemplo, a lei de monopólio e concorrência desleal [Sherman Act] – por interpretação – proíbe a formação
de quartéis, X é um cartel, portanto X é proibido)”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 39


Portanto, em síntese, importa ter em mente que as Normas Jurídicas não podem ser
conceituadas corretamente como esquemas de interpretação, sob a forma de molduras
(ou janelas), dentro dos quais há um conjunto de soluções válidas, encontráveis mediante
o procedimento lógico dedutivo de subsunção. A construção de um novo Paradigma da
Ciência Jurídica deve ter em perspectiva que, primeiro, antes da existência efetiva do
caso (concreto ou imaginado), há apenas um conjunto de Textos Legais, os quais somente
vão influir na construção de uma Norma Jurídica (resposta) após inaugurado o processo
cognitivo, através do impulso inaugural (start) representado pela questão quanto à solução
correta de um problema específico, concreto ou imaginado (pergunta). E, segundo, que
a produção normativa não ocorre por subsunção linear, do ápice (Norma fundamental)
até a base (Norma de Decisão) do sistema jurídico, ou seja, mediante o estabelecimento
da Norma inferior por mera dedução da superior. Ou seja, uma proposta de superação,
de viés pós-positivista, deve considerar que a hermenêutica jurídica envolve, mais
acertadamente, uma convergência de diversos padrões de julgamento, que dimanam de
diversos ângulos de forma reciprocamente irradiante, para conformação de uma Norma
(resposta) que resolverá o caso concreto (pergunta).
E, quanto à discricionariedade para resolução dos casos difíceis, a proposta
juspositivista precisa ser aprimorada para reduzir ainda mais a margem de manobra do
órgão aplicador e, assim, aumentar o grau de previsibilidade das Decisões jurisdicionais e,
consequentemente, ampliar a taxa de satisfação da segurança jurídica, mas sem descuidar
da legitimação moral.47
Com efeito, a ideologia de base da teoria juspositivista da subsunção (também
conhecida aplicação silogística) visava atender a uma das principais finalidades do Direito,
consistente justamente no desenvolvimento de uma atividade decisória guiada pelas
formas legais, de modo a preservar a segurança jurídica, na medida em que estabelece
limites à atividade do juiz e, consequentemente, amplia a previsibilidade das consequências
das condutas em sociedade. Ora, quanto menos opções tem o órgão aplicador, mais
provável que o cidadão possa prever qual a escolha que será feita, incentivando a certeza
do Direito.48
A intenção juspositivista era de que o valor da segurança jurídica alcançasse elevados
patamares de satisfação através da subsunção, na medida em que a autoridade judicante
efetivamente resolveria todos os casos simples uniformemente (easy cases ou clear cases)
e conseguiria dar a solução legal exata para os casos peculiares (hard cases), evitando

47
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
8.ed. rev. atual. Porto Alegre: Do Advogado, 2009. p.335: “Esclarecendo melhor e para bem entender as críticas
aqui lançadas, o positivismo pode ser traduzido pelos seguintes aspectos (suas teses centrais): a) que a existência
(vigência e validade) do direito em uma dada sociedade depende das práticas dos membros dessa sociedade;
são, pois, as fontes sociais do direito; b) que a validade de uma norma independe de sua ‘validade’ moral; trata-
se, pois, da separação entre direito e moral (secularização); c) que as normas jurídicas de um ordenamento não
‘cobrem’ todas as hipóteses de aplicação; isto quer dizer que haverá ‘casos difíceis’ que não serão solucionáveis
pelas normas jurídicas existentes; daí o recurso à discricionariedade, poder ‘delegado’ aos juízes (é neste ponto
que o positivismo se liga umbilicalmente ao sujeito solipsista – Selbstsüchtiger – da modernidade)”.
48
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.40: “A
subordinação dos juízes à lei tende a garantir um valor muito importante: a segurança do direito, de modo que o
cidadão saiba com certeza se o próprio comportamento é ou não conforme a lei”.

40 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


soluções incongruentes entre si e que causassem surpresas aos envolvidos (soluções ad
hoc ou criadas ex post facto), através de um método com feições mecanicistas.
Aliás, em geral, há um acordo entre juspositivistas e os pós-positivistas sérios
quanto à importância da preservação do valor da certeza jurídica para o Direito, haja
vista que a função principal do instituto reside justamente em estabelecer limites quanto
às deliberações que são socialmente aceitáveis (e promover as louváveis) e, assim, gerar
previsibilidade quanto às decorrências de uma atuação desviante ou virtuosa.
Sob esta ótica, acaso a técnica da subsunção tivesse atingido seu objetivo, ao longo
do período em que permaneceu em ampla aceitação, poderia se afirmar que o Positivismo
Jurídico teria efetivamente superado os problemas típicos da corrente anterior do
Jusnaturalismo, a qual foi gradualmente sendo abandonada (apesar das resistências ainda
eventualmente existentes) justamente por causa da sua baixa capacidade de controlar as
decisões do órgão aplicador, acarretando constantes e severas quebras de expectativa na
aplicação do Direito. Ou seja, se a teoria da Decisão Judicial juspositivista, calcada na
subsunção, tivesse êxito histórico quanto aos seus aspectos empírico (descrevesse com
alto grau de fidelidade a realidade fática) e deontológico (atingisse as finalidades a que
se propõe, justamente a de efetivamente limitar a atividade decisória a contento), os pós-
positivistas sérios pouco ou nada teriam a reclamar neste ponto específico.
Ora, nenhum pós-positivista que considere as características e funções típicas
do Direito sustentaria uma maior liberdade decisória ao órgão aplicador, pois isto
simplesmente atenta contra a própria razão originária dos institutos normativos, que reside
justamente em limitar as deliberações, de modo a organizar a vida em Sociedade, em
atenção ao valor da segurança jurídica, o qual justamente balizou as teorias contratualistas
clássicas de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau (e, mais recentemente,
com profundas modificações, John Rawls). Sem embargo, a ficção teórica da passagem
do chamado estado de natureza para o societário, através da celebração do contrato
social, representa a renúncia da amplíssima liberdade pessoal com vistas a obter, em
troca, um grau superior de segurança social. E o Direito é justamente o instituto que tem
esta importante função, de delimitar a amplitude de possibilidade das deliberações, com
vistas a assegurar uma convivência harmônica, segundo tal clássica abordagem ideológica,
ainda atualmente persistente (e que, aqui, não será objeto de aprofundamento específico,
em razão da delimitação do referente de pesquisa).49
Acaso a teoria jurídica conferisse maior liberdade ao órgão decisor, haveria um
retrocesso ao modelo anterior jusnaturalista, em que as decisões eram tomadas mais
livremente, ampliando as incertezas quanto aos resultados das condutas em sociedades.
A origem do Juspositivismo está calcada justamente na necessidade de se ampliar os
controles sobre a tomada de Decisão dos órgãos produtores do Direito, de modo a

49
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p.513: “Note-se: se a história do direito é uma história de superação do poder arbitrário, então
podemos afirmar que o que se procurar enfrentar é o locus onde a decisão privilegiada acontece, o lugar onde
a decisão ocorre. Nessa medida, a história do direito também é uma história de superação ou enfrentamento do
problema da discricionariedade (arbitrariedade)”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 41


permitir a sindicabilidade democrática das deliberações tomadas em nome e em prol da
Sociedade.50 Eventual descaso com o valor da segurança jurídica recomenda, ainda que
não diretamente, a retroação do Direito às fases pretéritas de menor aperfeiçoamento
técnico (tipicamente medieval), em que se atribuía aos detentores do poder (nas feições
executivas, legislativas e judiciárias do soberano) a faculdade para livremente tomar,
subjetivamente, as soluções que reputassem mais adequadas para reger as situações
concretas, inclusive franqueando-lhes a possibilidade de solucionar os casos de acordo
com as suas opiniões pessoais sobre o que é certo ou errado, conforme o que entendem
subjetivamente por moralmente justo ou injusto ou, ainda, consoante sua percepção
particular do que é economicamente viável ou inviável.51
O problema é que a operação mental de subsunção é um instituto que não espelha a
realidade fática e, tampouco, atingiu suficientemente sua finalidade de limitar a atividade
decisória do órgão aplicador, consoante já antes explicitado. Notadamente, não representa
adequadamente a manifestação fática (aspecto empírico da Ciência) da atividade decisória
e, como se verá adiante, não logrou atingir o grau de objetividade e certeza na aplicação
do Direito (âmbito deontológico da Ciência).
Com efeito, os próprios juspositivistas foram os primeiros a encarar o problema
da discricionariedade judicial (judicial discretion), confirmando que os métodos de
interpretação cunhados pelo Paradigma do Positivismo Jurídico, apesar de seus esforços,
ainda franqueiam uma larga margem para o exercício da livre atividade discricionária
do órgão aplicador, nos chamados casos difíceis (hard cases), em razão da ambiguidade
da linguagem (open texture) ou das eventuais lacunas e antinomias, consoante já se
esclareceu exaustivamente acima. Diversos aspectos ligados às peculiaridades do
movimento juspositivista impediram que os seus expoentes fossem além da moldura
kelseniana (Normas como esquemas de interpretação) e, assim, conseguissem delimitar
a amplitude de opções deixadas ao intérprete.
O resultado disso é que, hodiernamente, ainda persistem as críticas com relação
às incertezas quanto aos resultados da atividade executiva e judiciária do Estado, no
sentido de que o cidadão nem sempre consegue prever, ainda que obtenha a ajuda
técnica de um bom profissional da área (um advogado ou consultor jurídico), quais
serão as consequências de seus atos, para que possa alinhar sua conduta de acordo com
o Direito (ou, ao menos, saiba os riscos dos comportamentos desviantes). Mais do que
isto, a ampla liberdade interpretativa que a doutrina juspositivista concede aos juízes
tem servido de pretexto para que se admitam respostas diversas por tribunais distintos,

50
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.38: “[...] a
liberdade do juiz de pôr normas extraindo-as do seu próprio senso da equidade ou da vida social pode dar lugar
a arbitrariedades nos confrontos entre os cidadãos, enquanto que o legislador, pondo normas iguais para todos,
representa um impedimento para a arbitrariedade do poder judiciário”.
51
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.60-61: “Se o intérprete pode submete o direito a avaliações de conveniência,
talvez seria melhor abandonarmos os ‘pretextos’ jurídicos e substituir o direito escrito pela elaboração de discursos
teóricos apresentados por oradores especializados ou simplesmente pela escolha de pessoas sábias e honestas,
encarregadas da resolução informal dos conflitos, tal como ocorria nas aldeais indígenas ou em cidades medievais
e como ainda hoje se verifica em comunidades carentes”.

42 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


gerando severa ruptura na segurança jurídica. Neste cenário, a discricionariedade judicial
vem disfarçada pela designação independência funcional, a qual certamente demanda
uma nova configuração mais democrática. Ora, a referida expressão (independência
funcional), normalmente atribuída aos profissionais da área do Direito (juízes, promotores
e advogados), não significa independência quanto ao cumprimento da lei, haja vista que,
em sede democrática, todos têm suas decisões submetidas à ordem jurídica, sob pena de
descambar em discricionariedade ou mesmo arbitrariedade.
Logo, também no tocante à ampla margem de discricionariedade que confere ao
intérprete, a proposição juspositivista precisa ser substituída (ou aprimorada), de modo
a ampliar o atingimento dos valores de segurança jurídica e, concomitantemente, da
democracia.52

4 CONCLUSÕES
Fechadas as cinco críticas, que esclareceram os problemas referentes aos aspectos
centrais do Juspositivismo, é preciso reconhecer que tal modelo representou um importante
passo no desenvolvimento da Ciência Jurídica, cujos méritos precisam ser atribuídos a
autores como Bentham, Austin, Kelsen, Hart e Bobbio, dentre outros. Todavia, uma vez
constatadas anomalias (ou equívocos) na base teórica, justifica-se um esforço científico no
sentido de implementar retificações ou promover aprimoramentos, ainda que, para tanto,
seja necessário superar os elementos basilares do modelo vigente (ainda que parcialmente)
e, consequentemente, propor as bases de uma nova matriz disciplinar.
Sem embargo, a crise do Paradigma do Positivismo Jurídico já foi admita por Bobbio,
apesar de ter se declarado expressamente vinculado às teses centrais de tal movimento. Em
estudo publicado pela primeira vez em 1971,53 o autor italiano chegou a admitir a decadência
do modelo, mormente em face da emergência de outras Fontes Jurídicas além do Texto
Legislativo, que condicionam as decisões tomadas no cenário capitalista contemporâneo,
caracterizado por rápidas, intensas e conflituosas transformações em escala global54. Segundo
ele, a obra de Kelsen pode ser considerada como “o clímax do movimento juspositivista,
depois do que começa sua decadência, isto é (sem metáfora), sua crise”.55
Nessa linha de pensamento, muito embora o Positivismo Jurídico tenha representado
um avanço com relação ao Paradigma anterior do Jusnaturalismo, os seus elementos

52
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Método, 2006. p.248: “A resposta juspositivista quase nunca oferece ao aplicador uma solução
imediata e definitiva do caso, pois costuma enumerar várias alternativas decisórias, cabendo ao aplicador escolher.
Isso não é admitido pelos moralistas que se referem à resposta certa no sentido de escolha da melhor solução
para o caso concreto”.
53
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. p.XV: “Il
diritto [O direito], in Le scienze umane in Italia, oggi, Il Mulino, Bolonha, 1971, p.259-77”.
54
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. p.41: “Um
dos aspectos pelo qual se manifesta a crise do positivismo jurídico é a crescente consciência da emergência de
outras fontes do direito, que minam o monopólio da produção jurídica detido pela lei – em uma sociedade em rápida
transformação e intensamente conflituosa, como é a sociedade capitalista na atual fase de desenvolvimento”.
55
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.198.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 43


basilares se encontram atualmente em desuso ou sob severas críticas, franqueando a
ilação de que se desvela a crise do modelo.
Isto porque a Comunidade Jurídica se encontra diante de problemas que não
encontram solução satisfatória dentro do Paradigma juspositivista, até então predominante.
Sem embargo, as Regras positivadas não apresentam respostas adequadas aos casos que
vêm se apresentando perante a jurisdição, forçando os juízes a se socorrerem de Princípios,
de políticas, de soluções pragmáticas ou de outros padrões de julgamento, isolada ou
cumulativamente, para os resolverem. De outro lado, a Moral vem quebrando as barreiras
que ficticiamente a separavam do Direito positivo e, assim, influenciando abertamente
o conteúdo do Ordenamento Jurídico. Também a simples subsunção dos fatos à Norma
positiva, como forma de aplicação do Direito proposta pelos juspositivistas, não responde
mais à complexidade dos problemas surgidos nos meios acadêmicos e forenses. Todas
estas anomalias demonstram a crise do Juspositivismo e, consequentemente, reclamam
a sua substituição por uma nova matriz disciplinar, que possa responder a estas e outras
perplexidades e, assim, reger a Ciência Jurídica por um relevante espaço de tempo, ao
menos até eventual nova ruptura científica.56
A instalação da crise na teoria do Direito acarreta o processo de revolução científica,
nos moldes propostos por Kuhn, caracterizado pela substituição gradual dos principais
postulados do modelo teórico do Juspositivismo, que já não mais oferece respostas
adequadas aos problemas sociais, mormente em decorrência do acentuamento da
complexidade nas relações intersubjetivas, da ampliação da interdisciplinaridade e da
progressão da reflexividade transnacional.
Os juristas que apregoam a necessidade de ruptura paradigmática, alcunhados de
pós-positivistas, têm apresentado severas objeções aos elementos centrais das teorias
dos referidos autores, em um esforço de revisão da teoria do Direito em suas quatro
plataformas constitutivas, consistentes nas teorias das Fontes, da Norma, do Ordenamento
e da Decisão Judicial.
Embora uma nova matriz disciplinar comum ainda não se tenha estabelecido
firmemente perante a Comunidade Jurídica, verifica-se a proposição de diversas
alternativas para o devir da Ciência do Direito, de perfis procedimentalista, substancialista
ou pragmatista, com aspectos discrepantes das bases positivistas antes predominantes.
Outrossim, o objetivo principal das propostas de superação é justamente articular um novo
complexo de bases teóricas que permitam o salto paradigmático do modelo juspositivista
atual para outro que, simultaneamente, seja descritivamente mais fiel à realidade concreta,
esteja prescritivamente melhor concatenado com a democracia cosmopolita e, sobretudo,
não implique regressão ao antigo e superado modelo jusnaturalista.

56
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p.60: “Das teorias do discurso à fenomenologia hermenêutica, passando pelas teorias realistas (que
deslocam o polo da tensão interpretativa na direção do intérprete), os últimos cinquenta anos viram florescer teses
que tinham objetivos comuns no campo jurídico: superar o modelo de regras, resolver o problema da incompletude
das regras, refundar a relação ‘direito-moral’, solucionar os ‘casos difíceis’ (não ‘abarcados’ pelas regras) e a (in)
efetividade dos textos constitucionais (compromissórios e dirigentes)”.

44 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Com tal desiderato, partindo da análise crítica acima deduzida, é preciso estruturar
uma nova teoria do Direito, de viés pós-positivista, que, dentre outras coisas, primeiro,
considere a inegável influência de diversos outros padrões de julgamento, além das Regras
positivas, na produção normativa; segundo, proponha uma dinâmica multidirecional,
reflexiva e complexa da interpretação jurídica; e, terceiro, contemple o tema da legitimidade
moral das Normas Jurídicas, como questão inerente e intrínseca ao direito.
Em síntese, estas colocações sobre o tema demonstram a crise do Positivismo
Jurídico e, consequentemente, a necessidade da construção de um novo Paradigma, cujas
bases, aliás, já vêm se formando nos contextos acadêmico e forense, sob a designação
coletiva de Pós-positivismo.

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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 45


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46 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Levando o direito a sério: há realmente uma
nova escola na teoria do direito?1
Charles Andrade Froehlich

RESUMO
O presente artigo pretende descrever o debate atual envolvendo a possibilidade ou não de
uma nova escola ou corrente do direito chamada “pós-positivismo”. Para atingir seus objetivos,
resgata a conceituação fundamental das grandes escolas – positivismo jurídico e jusnaturalismo – e
a proposta contemporânea do pós-positivismo. Reaviva, também, o debate entre Ronald Dworkin
e Herbert Hart sobre direito e moral, a aplicação de princípios e o poder discricionário do juiz.
Após, discute a crítica ingênua ao positivismo jurídico e revê esta escola conforme os estudos
atuais, demonstrando sua grande importância na questão do conceito de direito e na teoria do
ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Positivismo jurídico. Jusnaturalismo. Pós-positivismo. Direito e moral.

Taking Law seriously: Is there really a new school in the theory


of contemporary law?

ABSTRACT
This article aims to describe the current debate about what could be a new school or current
of thought in the field of law, called “post positivism”. In order to proceed, the fundamental
concept of two great schools, legal positivism and natural law, as well as the contemporary
proposal of post-positivism, are revisited. The debate between Ronald Dworkin and Herbert
Hart about law and morals, application of principles and the discretionary power of the judge, is
also reopened. Then, naive criticism of legal positivism is discussed; this school is reconsidered
according to actual studies, demonstrating its great importance about the concept of law and
the theory of legal order.
Keywords: Legal Positivism. Natural Law. Post-Positivism. Law and Morals.

1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que o pós-positivismo pretende apresentar-se como escola ou corrente
alternativa às grandes e tradicionais escolas do direito (juspositivismo e jusnaturalismo).
Por outro lado, na bibliografia mais recente, estão surgindo também dúvidas pertinentes:
“pós-positivismo” ou “neoconstitucionalismo” são apenas rótulos? Há uma superação ou

Charles Andrade Froehlich é Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas e Mestre em Filosofia pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Doutorando em Filosofia na UFSM. Professor do Departamento de Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul-RS (UNISC).

1
O título faz menção à obra de Ronald Dworkin Levando os direitos a sério (Taking Rights Seriously, 1977).
Entretanto, enquanto o filósofo estadunidense fala em “direitos” (plural), queremos falar em “direito” (singular)
significando “Direito” no aspecto mais geral e amplo.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.47-67 jan./jun. 2012


Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 47
reconstrução do positivismo jurídico? E estas dúvidas têm rendido estudos e trabalhos
que apontam para um diagnóstico mais sério e aprofundado do próprio positivismo
jurídico.
O presente artigo objetiva principalmente um trabalho de reconstrução histórica e
teórica sobre as principais escolas do pensamento jurídico – jusnaturalismo e positivismo
jurídico – bem como das propostas contemporâneas, seja de uma “nova” visão do
direito (o “pós-positivismo”), seja das reações dos defensores do positivismo jurídico
na atualidade.
Neste sentido e justificando o trabalho, pretendemos aprofundar a grande questão
envolvida nesta “nova” teoria do direito. Este aprofundamento está em fase inicial no
Brasil, com poucas obras de referência, evidenciando que o tema merece ser tratado
cientificamente com mais cuidado e atenção. Temos várias obras de enaltecimento
do “neoconstitucionalismo” ou do “pós-positivismo”, mas temos poucas avaliações
críticas ou sérias sobre este novo movimento.
O tema tem rendido obras jurídicas, artigos em revistas científicas de relevância
nacional, dissertações e teses por todo o país, extrapolando, conforme se observa na
comunidade jurídica, os limites de pesquisa meramente fundada em manuais.
Enfim, as formulações de problemas que inicialmente se apresentam são as
seguintes: pensando-se no “pós-positivismo”, há realmente uma nova escola na teoria
do direito contemporânea? O “pós-positivismo” realmente supera ou apenas opera
uma reconstrução do positivismo jurídico?

2 LEMBRANDO O JUSNATURALISMO, O POSITIVISMO


JURÍDICO E A PROPOSTA ATUAL: PÓS-POSITIVISMO
JURÍDICO
Apesar da pluralidade de matizes das escolas de pensamento jurídico, com o perigo
da simplificação, mencionaremos, de modo geral, o jusnaturalismo, o juspositivismo e a
proposta contemporânea do pós-positivismo jurídico.

A escola do direito natural é a escola mais antiga do pensamento jurídico remontando


à filosofia clássica. De modo bastante geral, este entendimento do direito mostra que o
critério de juridicidade é a justiça (o direito deve ser avaliado por critérios de justiça). Há
uma dualidade: existe o direito legislado (ou simplesmente escrito, posto pelo Estado ou
pelo poder estabelecido, dependendo da época) e o direito que advém de padrões superiores
de ética e justiça2. O direito escrito ou legislado pelo poder estabelecido deve não ser
aplicado se entrar em conflito com aqueles padrões superiores de justiça. Obviamente,

2 Luis Fernando Barzotto afirma, em síntese, que o critério de juridicidade do jusnaturalismo é a justiça e o do
positivismo jurídico é a validade: BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. Uma introdução
a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: UNISINOS, 1999, p.19-20.

48 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


que nesta escola de pensamento jurídico encontram-se referências a princípios, vindos
de máximas éticas ou religiosas, tais como “respeite o próximo”, “não faças o mal” etc.,
sem necessidade de presença nos ordenamentos jurídicos dos Estados.
A fonte dos padrões superiores de ética e justiça pode variar conforme a época:
natureza, cosmos, deus, razão. Entretanto, o chamado jusnaturalismo racionalista dos
séculos XVII-XVIII obteve atuação destacada na filosofia jurídica devido ao contexto
filosófico e revolucionário que desembocou na Revolução Francesa e na Independência
dos EUA e suas respectivas constituições. As obras de Jean-Jacques Rosseau na França
e a de John Locke na Inglaterra lançaram novas luzes sobre o direito natural. É nítida a
influência do direito natural nas Declarações de Direito dessa época, p.ex., na Declaração
dos direitos do homem e do cidadão (França, 1789), no seu Art. 2º: “A finalidade de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão”
e na Declaração da Virgínia (EUA, 1776), em seu Art 1º: “Todos os homens nascem
igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não
podem, pôr nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de
gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar
obter a felicidade e a segurança”.
Mauro Cappelletti já havia dito, em obra clássica que:

A Constituição pretende ser, no direito moderno, uma forma legalista de superar


o legalismo, um retorno ao jusnaturalismo, com os instrumentos do positivismo
jurídico. (...) A norma constitucional, sendo também norma positiva, traz em si,
uma reaproximação do direito à justiça. Na verdade, na concepção moderna, a
norma constitucional outra coisa não é senão a tentativa – talvez impossível, talvez
‘faustiana’, mas profundamente humana – de transformar em direito escrito os
supremos valores...3

Norberto Bobbio destaca que a distinção entre direito natural e direito positivo é
bastante antiga, ainda que este contraponto fosse, em outras palavras, direito natural x
direito escrito/legislado, sendo que os antigos (antes da instituição do Estado moderno)
reconheciam a existência do direito natural. É sempre lembrado o famoso trecho da
tragédia Antígona, no qual há a invocação de leis eternas e imutáveis que concediam o
direito à Antígona de fazer o funeral do irmão em contraposição ao decreto de Creonte
que proibia tal ato sob pena de morte. Neste sentido, conforme este autor, a distinção
ocorria basicamente nestes termos: quanto ao critério da “extensão da validade”, o direito
natural é “universal” enquanto o positivo é “particular”; quanto ao critério do “tempo”,
o direito natural é “imutável” enquanto o positivo é “mutável”; quanto ao critério da
“fonte”, o direito natural vem da “natureza”, enquanto o positivo vem do “poder do povo”

3
CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2 ed. Trad. Aroldo
Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Fabris, 1999, p.129 e 130.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 49


e quanto ao critério do “conhecimento”, o direito natural vem da “razão” enquanto o
positivo vem da “vontade”.4 Obviamente que tal esquema é uma simplificação sujeita a
questionamentos em vários destes critérios, mas o intuito é somente ilustrar o comparativo
histórico proposto por Norberto Bobbio, na obra citada.
Posteriormente, com o advento e construção da escola do “positivismo jurídico” é
que o direito natural passou a ser desconsiderado, já que começou a pregação de que o
único direito era o direito estatal. Bobbio, a certa altura, chega a dizer que, se pudéssemos
sintetizar, em uma frase, a grande escola do positivismo jurídico, seria: “todo o direito
corresponde ao direito estatal”.5
Enfim, em uma breve síntese, a grande escola do direito natural remonta à
Antiguidade, ainda que fosse, muitas vezes, contraposta a um direito escrito (ou “legislado”,
definido pela vontade de representantes do povo) e, posteriormente, contraposta ao direito
“positivo”. A grande escola do direito natural sofre idas e vindas, altos e baixos, ao longo
da história, mas se caracteriza, de modo geral, por entender que há um direito que advém
de padrões ou princípios superiores de justiça e estes padrões ou princípios devem regular
o direito escrito ou posto pelo Estado. Assim, o direito escrito ou positivo pode sempre
ser avaliado por este outro direito superior, ideal, advindo, seja do cosmos ou da razão,
dependendo do momento histórico e da escola jusnaturalista respectiva.
Durante muito tempo, inclusive, o direito natural se confundiu com a filosofia do
direito ou, nas palavras de Bobbio, o direito natural era a filosofia do direito, principalmente
em momentos de apogeu desta escola como na filosofia clássica de Platão e Aristóteles e
na época dos chamados “contratualistas”, como Hobbes, Rousseau e Locke.6 A doutrina
jusfilosófica costuma apontar duas características ínsitas ao pensamento jusnaturalista:
a) o direito natural é reconhecido como direito; b) o direito natural é superior ao direito
escrito, positivo ou civil (em sentido amplo).7
Com o advento do panorama das codificações, da Escola da Exegese, do contexto
do “fetiche da lei”, correspondente ao séc. XIX, principalmente, a teoria do direito
começa a pender para o lado do direito positivo até chegarmos ao extremo da admissão
colocada anteriormente de que “todo o direito corresponde ao direito estatal”. Do início
do séc. XIX até a metade do séc. XX, aproximadamente, tivemos, então, o predomínio
da grande escola do positivismo jurídico, a qual, sabemos, teve suas variações, mas foi
“caricaturizada” da seguinte maneira: a) confusão ou equivalência entre direito e lei,
chegando ao extremo da afirmação Gesetz ist gesetz (“lei é lei”), não admitindo outro
a não ser o direito legislado, posto, “positivo”; b) só é direito o que passa pelos órgãos
legislativos do Estado, i.é., o próprio Estado define o procedimento para a criação do
Direito. Daí vem a ideia kelseniana de “conceito autônomo de direito”, tão cara aos

4
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. Trad. de Márcio Pugliesi, Edson Bini,
Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone,1995, p.22-23.
5
Ibidem, p.26: “o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o
positivo”.
6
Ver. p.ex., BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. de Sérgio Bath. Brasília: Ed.UnB, 1998.
7
“Direito escrito, positivo ou civil” (em sentido amplo) são designações dadas ao direito contraposto ao
“natural”.

50 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


positivistas, ou seja, o direito é definido pelo próprio direito;8 c) a questão interpretativa:
prevaleceu durante muito tempo as ideias de “juiz boca da lei”, “o que está claro não
precisa ser interpretado” ou, ainda, quando surgiram os primeiros cursos ou doutrina
sobre o Código Napoleônico, o próprio Napoleão teria dito: “meu código está perdido”.9
Todas estas frases-síntese correspondem à ideia de que a lei posta deveria ser interpretada
o mínimo possível, ou o juiz deveria dar a menor contribuição possível, na aplicação
da lei, prevalecendo a figura do legislador (“onipotência do legislador”), muitas vezes
“mitificado”, ligando-se à expressão “legislador racional”.10
Gustavo Zagrebelsky afirma com propriedade, referindo-se a essa época e
característica:

Não poderíamos compreender esta concepção em seu significado pleno se


pensássemos ‘na lei’ como ‘nas leis’ que conhecemos hoje, numerosas, cambiantes,
fragmentárias, contraditórias, ocasionais. A lei por excelência era então o código,
cujo modelo histórico durante todo o século XIX estaria representado pelo Código
civil napoleônico. Nos códigos se encontravam reunidas e exaltadas todas as
características da lei. Resumindo-as: a vontade positiva do legislador, capaz de
impor-se indiferenciadamente em todo o território do Estado e que se endereçava
ao projeto jurídico baseado na razão (a razão da burguesia liberal, assumida como
ponto de partida); o caráter dedutivo de desenvolvimento das normas, ex principiis
derivationes; a generalidade e a abstração, a sistematicidade e a plenitude. Na
verdade, o código é a obra que representa toda uma época do direito.11

Permanecendo na análise de Bobbio, observamos que a instituição e o crescimento


do positivismo jurídico foram contemporâneos do longo processo de estabelecimento do
Estado Moderno. Houve a saída de uma sociedade pluralista medieval, na qual existiam
várias fontes do direito (pluralismo jurídico advindo da Igreja, das corporações, das
universidades…) para uma sociedade que pregava a prevalência de uma única fonte do
direito: o Estado (monismo jurídico). É claro, cabe ressaltar e pedir atenção, estamos nos
referindo a um longo período de tempo que passa pelo Estado absolutista, primeiramente, e,
num segundo momento, pelo dito Estado liberal em sua primeira feição. Mas corresponde
a este período, a saída da predominância do jusnaturalismo para a instituição e apogeu
do positivismo jurídico.

8
Sobre o conceito autônomo de direito, consultar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e BARZOTTO, Luiz
Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. São Leopoldo: UNISINOS, 1999.
9
Ver TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p.37.
10
Como veremos nos tópicos adiante, grande parte destas críticas não são admitidas ou sustentadas elos próprios
positivistas, ou pelo menos, pelo positivismo conceitual. Na verdade, é preciso distinguir o positivismo ideológico,
o formalismo e o positivismo conceitual. Remetemos o leitor para a síntese crítica feita por Noel Struchiner em
sua tese de doutorado: STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para
uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofia da PUC-Rio. Rio
de Janeiro: 2005, p.28-34.
11
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p.32. Grifamos.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 51


Este entendimento do direito passou a sofrer sérias críticas a partir da segunda
metade do séc.XX, principalmente após a 2ª Guerra Mundial, em face da barbárie
cometida, tanto pelos regimes totalitários quanto à reação bélica norte-americana.
A instituição do Tribunal de Nuremberg e seu simbólico questionamento do direito
positivo, bem como a formação de um Direito Internacional dos Direitos Humanos
(criação da Organização das Nações Unidas em 1945 e a Declaração Universal
dos Direitos Humanos em 1948) trouxeram a questão ética e a valoração da lei
novamente para o cenário jurídico. Inicialmente, alguns autores apontaram, como o
próprio Bobbio, uma dialética entre juspositivismo e jusnaturalismo, no momento
em que a valoração ética retornou ao ordenamento jurídico e passamos a contar com
Declarações universais de direitos humanos aceitas e incorporadas aos ordenamentos
estatais.12
Na sequência, entretanto, principalmente após a entrada em vigor das novas
constituições dos Estados democráticos de direito (Espanha, Portugal, Brasil), os
constitucionalistas passaram a falar em pós-positivismo jurídico (ou não positivismo
principiológico). O pós-positivismo jurídico tem sido caracterizado como uma nova
escola de pensamento jurídico a qual pretende ser uma síntese de características das
grandes escolas anteriores, mas, de certa forma, pondera os excessos e deficiências
de ambas. Em uma abordagem preliminar, podemos afirmar que este momento e
perspectiva do pós-positivismo jurídico não nega e nem pretende negar o ordenamento
jurídico e, sim, revê a estratégia ou ideologia positivista de “adoração cega” da lei,
ou seja, a aplicação pura e simples da lei, sem maiores questionamentos e valorações.
É uma primeira característica do pós-positivismo jurídico a remarcar: o retorno da
moralidade ao direito no sentido de que a norma pode ser questionada, valorada,
se justa ou injusta e pode não ser aplicada em função do desequilíbrio excessivo
causado pela sua aplicação.
Neste panorama, afirma-se que o positivismo jurídico (em seu formato
ideológico) tem uma postura “avalorativa”, ou seja, a lei está posta e assim deve
ser aplicada. Agora, as constituições possuem um catálogo de princípios e direitos
fundamentais que trazem uma elevada carga valorativa ao ordenamento jurídico.
Assim, estão no ordenamento, são normas, determinados princípios que devem ser
aplicados como, p.ex., a dignidade da pessoa humana, a cidadania, que são princípios
fundamentais da CF brasileira.
Uma segunda característica relevante do pós-positivismo jurídico a ser
destacada: a normatividade dos princípios. Desde Dworkin, a doutrina jurídica defende
a colocação de regras e princípios dentro do gênero norma.13 Assim, os princípios

12
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004,
p.50-51.
13
Ver DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002. Dworkin afirma de maneira categórica: “…os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos
a princípios morais e não a estratégias e fatos jurídicos. Enterraram esses problemas ao insistir na abordagem
jurídica tradicional. Mas, para ser bem-sucedida, a teoria do direito deve trazer à luz esses problemas e enfrentá-
los como problemas de teoria moral” (p.12). É bem conhecida a distinção de Dworkin entre regras e princípios, à
qual remetemos o leitor, nos capítulos 2 e 3 (O modelo das regras I e II) da obra referida nesta nota.

52 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


constitucionais devem ser aplicados como “lei”. Desta forma, o ordenamento jurídico
deve ser entendido, concebido, aplicado, conforme a moldura principiológica proposta
pela respectiva constituição.
Pode-se observar, agora, o porquê desta interlocução com a teoria do direito:
a forma de entender e de interpretar o direito, atualmente, passa, pela hermenêutica
constitucional. Alguns autores, inclusive, como Gustavo Zagrebelsky, propõem
uma “noção constitucional de direito”. Na dicção deste constitucionalista italiano,
tal noção deriva da passagem de um “estado de direito legislativo” para um “estado
constitucional”. Evidentemente, que as teorias “constitucionalísticas” do direito são
tributárias das obras de autores contemporâneos como Ronald Dworkin e Robert.
Alexy.14 Enfim, para este conjunto de autores, a noção e o entendimento do direito
passa, atualmente, pelas noções de “constituição” e “justiça”, pela noção de “direitos”
e pela distinção entre “regras e princípios”, na qual muda a forma de aplicar e entender
os princípios constitucionais.
Para Gustavo Zagrebelsky, o “ponto de mutação” se dá na transição ocorrida
entre um “estado de direito legislativo” para um “estado constitucional”. Na coluna
do “estado de direito legislativo”, encontramos a postura do vetusto “positivismo
jurídico”, no qual preponderam a “vontade do legislador”, o princípio da legalidade
e a ideia de lei próprias desta escola. Nesta compreensão, temos uma redução de tudo
o que pertence ao mundo do direito (os direitos e a justiça) ao que está disposto em
lei.15 Na verdade, uma dupla redução: a redução do direito e “dos direitos” ao que
está disposto em lei e a redução da justiça ao que está disposto em lei, entendendo-
se “lei”, no sentido de “regra” posta pelo “Estado de direito” e, aqui, pensado como
Estado de direito “oitocentista-novecentista” ou “decimonónico”.16
A mudança para o panorama do “Estado constitucional”, como já apontamos,
ocorre a partir da segunda metade do séc.XX, saindo da prevalência da lei ou do
código para a “Constituição” e sua força normativa, na qual existe um catálogo de
princípios e direitos fundamentais e parâmetros de justiça e solidariedade a serem
devidamente aplicados. Mais que uma continuação, afirma Zagrebelsky, “se trata de
uma profunda transformação que, inclusive, afeta necessariamente a concepção de
direito”.17
Mas de que maneira temos uma nova concepção de direito? Em que sentido
podemos dizer que superamos o dilema jusnaturalismo x juspositivismo?
Sobre a concepção de direito, vale fazer um comparativo objetivo e rápido entre
a concepção de direito de Hans Kelsen e a de Robert Alexy. Para Hans Kelsen, numa

14
Giorgio Bongiovanni citado por MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.85.
15
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p.33.
16
ZAGREBELSKY usa esta expressão “decimonónico” (na tradução espanhola da obra) para se referir ao panorama
do Estado e do direito do séc.XIX. Ver também ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia.
7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.96.
17
Ibidem, p.34.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 53


compreensão geral, o direito é um sistema piramidal de normas coativas válidas, cuja
validade deriva de uma norma fundamental.18 Já Robert Alexy afirma que

[...] o direito é um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção,
(2) consiste na totalidade das normas que pertencem a uma Constituição, em geral,
eficaz, e não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas que
são promulgadas de acordo com esta Constituição, e que possuem um mínimo de
eficácia social ou de probabilidade de eficácia e não são extremamente injustas,
e ao qual (3) pertencem os princípios e os outros argumentos normativos em que
se apoia o procedimento de aplicação do direito e/ou tem que apoiar-se a fim de
satisfazer a pretensão de correção.19 [...]

Hans Kelsen é um ícone do positivismo jurídico. Vemos que em sua concepção de


direito prevalece a ideia de “conjunto de normas coativas válidas”. A característica ou o
“critério de juridicidade” para o positivismo é, então, a validade da norma. Não há uma
referência direta à Constituição ou justiça no conceito de Kelsen. Há, isto sim, referência
a um “conjunto de normas coativas válidas”. As ideias de “constituição e justiça” são
típicas do pós-positivismo jurídico e se refletem na noção apresentada por Robert Alexy.
O “estado constitucional” ou a “constitucionalização do direito” impuseram uma revisão
da concepção de direito. Surgem outros “critérios de juridicidade” além da “validade”
do positivismo jurídico. Além da validade, temos “constituição e justiça”.
Mas “justiça” é um critério de juridicidade afirmado e defendido pelo jusnaturalismo.
O pós-positivismo significa, então, um mero retorno ao jusnaturalismo? A questão é
complexa e não é pacífica. Objetivamente, como mencionamos linhas acima, o pós-
positivismo pretende superar, no mínimo, dois caracteres do positivismo jurídico: a
“avaloratividade” do direito e o uso secundário dos princípios. Sabe-se que as constituições
dos estados democráticos trazem princípios que norteiam a interpretação e aplicação
do ordenamento jurídico. Tais princípios valoram ou impõem formas de valoração do
ordenamento jurídico respectivo e ligam o direito à moralidade. Enfim, os princípios
constitucionais estão, pois, positivados. Ou seja, o próprio ordenamento jurídico, em
sua lei máxima, suprema, estabelece e propicia a relação entre direito e moralidade.
Democracia, dignidade, cidadania e justiça são valores máximos a serem observados na
compreensão e na aplicação do direito contemporâneo. O próprio Gustavo Zagrebelsky
analisa as grandes escolas do direito e faz a sua avaliação sobre as relações do direito no
Estado constitucional atual e o direito natural, em uma citação longa, mas necessária:

Assim, pois, cabe dizer, em síntese, que a Constituição não é direito natural,
senão melhor, a manifestação mais alta do direito positivo. Sem embargo, dado

18
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006, pgs. 33-38 e 217-224.
19
ALEXY, Robert. El Concepto y la validez del derecho. Tradução de Jorge Seña. 2.ed. Barcelona: Editorial Gedisa,
1997, p.123. Alexy afirma que as correntes positivistas afirmam a tese da separação entre direito e moral e as
correntes não positivistas defendem a tese da vinculação.

54 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


que o direito constitucional se apresenta, não como vontade de uma parte que se
impõe sobre a outra, senão como expressão de um equilíbrio objetivo, no sentido
acima indicado, a relação entre lei (incluída a lei constitucional) e Constituição se
aproxima da relação entre lei e direito natural. O estilo, o modo de argumentar ‘em
direito constitucional’ se assemelha, em efeito, ao estilo, o modo de argumentar
‘em direito natural’, como sabe qualquer um que está familiarizado com as grandes
decisões dos Tribunais constitucionais. A propósito das jurisdições constitucionais,
tem-se falado agudamente de ‘administração judicial do direito da natureza’ e
tem-se observado que ‘a interpretação da Constituição adquire cada vez mais o
aspecto de uma filosofia do direito’, pois seus procedimentos, não obstante estar
vinculados ao direito vigente, não podem desenvolver-se no universo cerrado das
regras jurídicas. Nos Estados constitucionais modernos, os princípios morais do
direito natural se incorporaram ao direito positivo. As modalidades argumentativas
do direito constitucional se ‘abrem’, assim, aos discursos metajurídicos, tanto mais
se tomamos em consideração os princípios da Constituição.20

Assim, o aspecto valorativo do ordenamento, insculpido nos princípios


constitucionais, é justamente o que possibilita esta “abertura” do direito positivo à
moralidade, sem cairmos no jusnaturalismo tradicional, visto que estes valores morais
estão positivados. Além disso, pode-se afirmar que estes valores não são idealizados ou
advém de “padrões superiores” de justiça como o cosmos, deus, etc. como frequente
no discurso jusnaturalista, mas, isto sim, estes valores advém da própria Constituição,
a qual foi devidamente deliberada e é fruto de um contexto histórico, político, cultural
e jurídico determinado.
Outro autor que se dedicou a caracterizar o pós-positivismo jurídico é o jurista
espanhol Albert Calsamiglia, em artigo publicado na revista Doxa.21 Para este jurista,
o pós-positivismo jurídico corresponde a um entendimento do direito que questiona as
teses centrais do positivismo jurídico, tais como (a) a tese das fontes sociais do direito
(a questão dos limites do direito) e (b) a tese da separação entre direito, moral e política
(a questão da não conexão necessária entre direito e moral).22 Em relação a primeira
tese (a) os positivistas sempre se detiveram sobre fatos sociais determinados, sobre fatos
usuais, “fáceis”, resolvidos pelas normas do ordenamento ou pela simples resolução de
lacunas. Em sentido contrário, o pós-positivismo alarga os limites do direito, ou melhor,
aceita a “indeterminação do direito”. Desloca o centro de atenção, conforme Calsamiglia,
dos casos fáceis ou claros para os casos difíceis. Não interessa tanto resolver casos do
passado, facilmente solucionáveis com as regras do ordenamento, mas sim, resolver os
conflitos que ainda não foram resolvidos. Do mesmo modo, há um deslocamento da

20
ZAGREBELSKY, op. cit., p.116.
21
No Brasil, é importante mencionar o pioneirismo de Paulo Bonavides, no capítulo Dos princípios gerais de direito
aos princípios constitucionais, de sua obra Curso de direito constitucional, na qual disserta sobre o pós-positivismo
e defende uma concepção principial de direito: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p.259.
22
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. In: Doxa: Cuadernos de filosofía del derecho, Nº 21, 1, 1998, p.209-220.
Disponível em www.cervantesvirtual.com.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 55


figura do legislador para a figura do intérprete ou juiz.23 A tese (b) será melhor exposta
nos próximos itens deste texto.
A recente obra Dicionário de filosofia do direito traz o verbete pós-positivismo,
colocando-o como um novo paradigma ou nova concepção de direito que rompe com
a forma hegemônica de compreensão do direito dos séculos XIX-XX: o positivismo
jurídico. Esta nova concepção do direito, como mencionamos acima, ataca as teses
fundamentais do positivismo jurídico (“a” e “b” acima) e corresponde à configuração
contemporânea do pensamento jurídico. O novo quadro teórico do pós-positivismo
apresenta cinco aspectos:
a) deslocamento de agenda: em vez de preocupações como a norma, o
ordenamento jurídico, validade e teste do pedigree (reconhecimento da norma), próprios
do positivismo jurídico, o pós-positivismo dá prevalência aos princípios, à dimensão
argumentativa e à hermenêutica jurídica;
b) a importância dos casos difíceis: como assinalou Calsamiglia na esteira
de Dworkin, este panorama presta especial atenção aos casos difíceis (hard cases),
casos complexos, controversos, insólitos, não rotineiros para os quais as práticas
legais existentes não fornecem uma resposta definitiva ou a mera aplicação da regra é
insuficiente ou gera extrema injustiça;
c) o abrandamento da dicotomia descrição/prescrição: também muito influenciado
pelos escritos de Dworkin e suas análises de casos, pode-se afirmar que a teoria não só
descreve, mas também atua na prática, p.ex., na aplicação de princípios para a resolução
de casos difíceis;
d) a busca de um lugar teórico para além do jusnaturalismo e do positivismo
jurídico: além do que já foi argumentado anteriormente, aqui surge a explicação de
que a aplicação de princípios morais contidos na Constituição não significa retorno
ao jusnaturalismo porque Dworkin se sustenta em Rawls para o qual a justiça de uma
sociedade depende da justiça de suas instituições e a Constituição é uma instituição
social que contém princípios de justiça;
e) o papel dos princípios na resolução dos casos difíceis: admite-se o direito
como um conjunto de normas-regras e normas-princípios. Os casos difíceis devem ser
resolvidos pelos princípios contidos no direito existente, o que é, então, uma aplicação
do direito e não uma situação de não direito como afirmam os positivistas.24
Em outra obra recente, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo
Branco, dizendo se tratar de notas caracterizadoras de um “novo constitucionalismo”

Ibidem, p.211-215.
23

DINIZ, Antonio Carlos e MAIA, Antonio Cavalcanti. Pós-Positivismo. In:


24

BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo e Rio de Janeiro:
Ed.UNISINOS e Renovar, 2006, p.650-653.

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“substancialmente distinto de todas as experiências constitucionais precedentes”,
apresentaram a seguinte síntese do panorama jurídico atual:25

- mais Constituição do que leis;


- mais juízes do que legisladores;
- mais princípios do que regras;
- mais ponderação do que subsunção;
- mais concretização do que interpretação.

Os autores mencionados estão se referindo, no caso, a um “novo constitucionalismo”:


a Constituição deixa de ser uma Carta Política simbólica que simplesmente define
competências legislativas (“a la Kelsen”) para tornar-se norma suprema, compondo
um conjunto de regras e princípios dotados de força normativa, tornando a lei ato
infraconstitucional sujeito a controle de legitimidade, formal e material. Assim, surge
com mais força a figura do juiz-intérprete, criador do direito, em detrimento do legislador
“racional e onipotente” do período positivista. Este juiz deve buscar a aplicação dos
princípios e direitos fundamentais contidos na norma suprema, mais do que isso, deve
pensar, ler e interpretar o direito a partir da lente ou filtro constitucional. Esta forma de
interpretação/aplicação obviamente pretende não se reduzir ao esquema lógico-formal
positivista da subsunção dos fatos à lei já que os princípios não contêm normalmente
hipótese de fato, mas sim trazem “valores” a serem efetivados.26

3 O CONTRAPONTO: O PÓS-POSITIVISMO
SUSTENTA-SE CIENTÍFICA E METODOLOGICAMENTE?
Como lembrado por Noel Struchiner, jusnaturalismo e juspositivismo são os eternos
finalistas da Copa do Mundo da filosofia do direito.27 Há uma imensa e longa tradição
histórica na filosofia do direito em relação a estas duas grandes escolas de pensamento
jurídico. Assim, de um lado, qualquer mudança ou apreciação de novas tendências sofre
uma certa desconfiança; de outro, os mais apressados correm para rotular o novo momento
e assinar o atestado de batismo da nova escola. Nesta correria dos tempos, muitas vezes não
se analisa detidamente todos os elementos teóricos envolvidos. O panorama é digno de nota:

Trata-se de um lugar comum já consagrado, um topos recorrente, a afirmação


de que o epicentro ou a força motriz da filosofia do direito se consubstancia no

25
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional.
São Paulo: Saraiva, 2007, p.120 e seguintes.
26
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional.
São Paulo: Saraiva, 2007, p.120-121.
27
STRUCHINER, Noel. A primazia do positivismo conceitual. In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do
direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p.320.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 57


debate positivismo jurídico/direito natural. Recentemente, vem ecoando no meio
acadêmico o mais novo cliché de que a filosofia do direito contemporânea se
caracteriza pela superação da dicotomia juspositivismo/jusnaturalismo. Prova
disso é a alta produção de rótulos que visam a caracterizar essa nova era da
filosofia do direito: “direito pós-moderno”, “pós-positivismo”, “não positivismo
principiológico”... Embora seja comum a exposição a essas formas de se conceber
a filosofia do direito, o que raramente tem acompanhado tal exposição é uma
análise minuciosa das teses ou proposições que servem como notas definitórias
do jusnaturalismo e do juspositivismo. O caso é grave. Não se trata apenas da falta
de uma análise rigorosa desses conceitos. Muitas vezes esse cenário conceitual
foi construído não apenas de maneira simplória, mas também errada, atingindo
uniformidade, mas pagando o preço da distorção.28

Assim, o que a análise filosófica está propondo é o seguinte:


a) examinar detidamente as escolas do jusnaturalismo e juspositivismo, definindo
suas características e variações;
b) observar as variações do positivismo jurídico e ver qual formato se adequa à
prática judicial contemporânea;
c) em conclusão, verificar se temos um novo positivismo (qual variação do
positivismo?)29 ou uma nova escola do pensamento jurídico. Tendo uma nova escola do
pensamento jurídico: o que há de realmente novo nesta nova escola?
O tema tem chegado a publicações recentes e tem rendido um debate sério
na literatura jurídica. Cabe mencionar, a título de exemplo, a obra Teoria do direito
neoconstitucional, na qual juristas e filósofos nacionais e estrangeiros se colocam esta
questão: superação ou reconstrução do positivismo jurídico?30
Enfim, os pesquisadores têm um tom em comum: se o positivismo era tratado como
uma teoria ultrapassada, ingênua e legitimadora do autoritarismo, tal entendimento é fruto
da carência de investigações e estudos aprofundados sobre o tema.31 Então, ocorreu uma
confusão entre positivismo jurídico e regimes autoritários? O positivismo não evoluiu?
Não temos variações do positivismo?
Ainda, vale destacar, com Humberto Ávila, o seguinte: uma das principais teses
do chamado “pós-positivismo” ou “neoconstitucionalismo” é aquela da distinção entre
regras e princípios, distinção esta que não é tão fácil e automática como propunha

28
STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica
acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2005, p.22.
29
Eduardo Ribeiro Moreira, p.ex., faz um catálogo das novas correntes: positivismo exclusivo; positivismo inclusivo;
neoconstitucionalismo teórico; neoconstitucionalismo total: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O momento do positivismo.
In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do
positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p.243.
30
DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do
positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008.
31
Ibidem, na Apresentação, p.5.

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Dworkin32. Dos cinco pontos da caracterização do verbete “pós-positivismo” do
Dicionário de filosofia do direito mencionados no item anterior, no mínimo, três se
sustentam na supervalorização da distinção dworkiana entre regras e princípios. Neste
sentido, temos um panorama crítico bastante sério em duas frentes: (1) o positivismo
jurídico contemporâneo ainda mantém a separação absoluta entre direito e moral?;
(2) existe a distinção qualitativa entre regras e princípios ao molde do proposto por
Dworkin?
Voltamos a lembrar que é a partir destas duas teses fulcrais que o pós-positivismo
veio se destacar em seu comparativo e luta contra o positivismo jurídico clássico.
Humberto Ávila afirma em texto recente que não se pode afirmar que o tipo
normativo prevalente na Constituição de 1988 é o principiológico e nem que este
é o melhor. Portanto, não houve passagem direta de um ordenamento fundado nas
regras (positivista) para um ordenamento fundado nos princípios (pós-positivista).
Ressalta, de modo bastante forte, que é urgente repensar o suposto movimento do
“neoconstitucionalismo” no Brasil, visto que se trata de um rótulo impreciso, vago e
com sérias deficiências metodológicas.33
A resposta a estas questões passa, por exemplo, também pelo debate clássico
entre Herbert Hart e Ronald Dworkin sobre o conceito do direito e a relação ou não
entre direito e moral.34 A resposta a estas questões passa pela análise científica da
manutenção ou não das teses do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo.35 A
resposta a estas questões passa pela análise do positivismo jurídico contemporâneo e
seus novos adjetivos.

4 SOBRE O CONCEITO DE DIREITO, DIREITO E MORAL


E AS CRÍTICAS AO POSITIVISMO
O positivismo jurídico cresceu e se estabeleceu principalmente por sua busca
incessante de um conceito de direito e a construção de uma teoria do ordenamento
jurídico. Tais elaborações são inegáveis e difíceis de serem abandonadas. Atualmente,
constata-se que o positivismo buscou o chamado “conceito autônomo de direito”, ou seja,
uma definição de direito que não necessariamente se utilize da moral e da política. Esta
pretensão do positivismo foi denominada “tese da separação”. De outro lado, as correntes
que pretendem a relação entre direito e moral são tratadas como “tese da vinculação”.

32
Ver principalmente: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
8.ed. São Paulo: Malheiros, 2008 e DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.39-42;57.
33
ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência . In: Revista
Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, Número 17, jan/fev/mar
2009. Disponível em: http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/679/507. Acesso em 29 de
setembro de 2011.
34
Debate surgido das críticas de Dworkin ao positivismo de Hart, a que este respondeu e consta no pós-escrito
de sua obra O conceito de direito.
35
Voltamos a indicar os textos de Ávila e de Dimoulis e Duarte constantes das referências.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 59


De modo breve, vamos recuperar as linhas gerais do grande e clássico debate entre
Dworkin e Hart, o qual impulsionou a retomada do positivismo e sua reação crítica. Para
Dworkin, o “esqueleto” do positivismo é o seguinte:
a) o direito de uma comunidade é um conjunto de regras especiais (que dependem
do pedigree) que servem para determinar qual comportamento será punido ou coagido
pelo poder público. Este conjunto de regras é o direito;
b) Dizer que alguém tem uma “obrigação jurídica” é dizer que seu caso se enquadra
em uma regra válida. Não havendo regra, não há obrigação.36 Dworkin lança um ataque
geral contra o positivismo e usa a versão de Hart como alvo.
Dworkin é um dos atuais divulgadores da questão dos princípios na Teoria do
Direito. É conhecidíssima sua distinção entre regras e princípios. Basicamente, as regras
são aplicáveis sob a forma “de tudo ou nada”, ou são válidas ou não são; já os princípios
determinam fundamentos e possuem a dimensão do peso e da importância e, ainda, as
regras ditam resultados enquanto os princípios inclinam a decisão em uma direção e
permanecem intactos quando não prevalecem.
Na sua abordagem, o direito no viés positivista ou não consegue resolver uma série
de casos chamados “difíceis” (hard cases) ou apela para o “poder discricionário” do
juiz. Cabe ao juiz, portanto, “escolher” quais os padrões ou princípios morais aplicáveis
quando não há uma regra válida aplicável. O positivista conclui que esses princípios e
políticas não são regras válidas de uma lei acima do direito. São padrões extrajurídicos
que cada juiz seleciona no exercício de seu poder discricionário. Dworkin vai além,
afirmando que não é possível adaptar a versão de Hart do positivismo modificando a
regra de reconhecimento para incluir princípios. Na teoria dworkiana do direito não
cabe o positivismo. Ele não concorda com o teste do pedigree e com o uso do poder
discricionário do juiz para resolver os “casos difíceis”. Por outro lado, deve-se optar pelo
melhor princípio moral vigente, equânime e coerente com a tradição.
Dworkin, inclusive, remonta à história comparada do direito norte-americano e do
inglês, afirmando que os antecedentes do direito norte-americano são mais complexos:
“nossos tribunais desempenharam um papel mais amplo que os tribunais ingleses na
reformatação do direito no século XIX às necessidades da industrialização e a nossa
Constituição transformou em questões legais problemas que na Inglaterra eram apenas
políticos”.37 Em mais de um momento de sua obra, Dworkin afirma que o sistema
constitucional norte-americano baseia-se em uma teoria moral específica: os homens têm
direitos morais contra o Estado.38 Ou em uma versão mais ampliada: o direito tem uma
função “mais ambiciosa” do que a preconizada pelo positivismo: os cidadãos têm direitos e
deveres contra o Estado e outros cidadãos mesmo que estes direitos e deveres não estejam
claramente estabelecidos. As decisões judiciais têm que ser uma questão de princípio.39

36
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p.27-28.
37
Ibidem, p.6.
38
Ibidem, p.231.
39
Ibidem, p.518 e 533.

60 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Enfim, claramente podemos afirmar que Dworkin bate em uma tese central do
positivismo: a admissão e fundamentação de uma norma fundamental (Kelsen) ou
norma de reconhecimento (Hart). A norma fundamental ou de reconhecimento tem um
papel nobre no discurso positivista, qual seja, ou serve para pressupor a validade última
do sistema ou serve para determinar o que é o direito daquela sociedade (identificação
e existência de regras jurídicas). É deste tipo de tese que Dworkin saca ironicamente
a expressão “teste do pedigree”. O direito, no positivismo, refere-se a um conjunto
de regras ou normas válidas, as quais remontam, em último grau na escala, à norma
fundamental.
Além disso, toda a sua teoria busca fundamentar a necessária relação entre direito e
moral. Em suas palavras, a teoria do direito deve se utilizar do argumento moral, enfrentar
os “casos difíceis” (dramáticos; insólitos) como problemas de teoria moral.40 Ou de outra
forma: “a Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de
uma lei dependa da resposta a problemas morais complexos, como o problema de saber
se uma determinada lei respeita a igualdade inerente a todos os homens”.41
Herbert Hart elaborou um conhecido “pós-escrito” da sua monumental obra O
conceito de direito para responder a Dworkin. A princípio, Hart defende que sua teoria do
direito é geral e descritiva, visto que não está ligada a nenhum sistema e cultura jurídica
concretos, é moralmente neutra e não tem propósitos de justificação. Já a teoria do direito
de Dworkin seria uma teoria de avaliação e justificação dirigida a uma cultura jurídica
concreta, bem como se caracteriza como “interpretativa”.42
Hart faz outras afirmações lapidares dignas de nota:
a) considera um erro de Dworkin considerá-lo um “positivista meramente
factual”, visto que se considera um “positivista moderado” (soft positivism), já que
reconhece explicitamente que sua “regra de reconhecimento pode incorporar, como
critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores
substantivos”;43
b) as regras e os princípios têm, muitas vezes, o que chama de “textura aberta”,
tornando o direito parcialmente indeterminado ou incompleto, devendo os tribunais
exercer a criação do direito que designa como “poder discricionário”;44
c) entende possível conciliar sua teoria do conceito de direito com os princípios
jurídicos e com o “teste do pedigree”, salientando, inclusive, a sua distinção entre regras
e princípios. Contudo, Hart concorda que falou pouco sobre princípios jurídicos em sua
obra.45 Neste sentido, ele afirma que alguns princípios básicos como “ninguém pode
aproveitar-se do seu próprio ilícito” (mesmo exemplo trabalhado por Dworkin) “são

40
Ibidem, p.9 e 12.
41
Ibidem, p.285.
42
HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 5.ed. Trad. de A.Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007, p.300-301.
43
Ibidem, p.312.
44
Ibidem, p.314.
45
Ibidem, p.321-325.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 61


identificados como direito pelo teste do pedigree, na medida em que têm sido invocados
de forma coerente pelos tribunais, em séries de casos diferentes”.46
Na visão de Hart, a diferença fundamental entre sua teoria jurídica e a de Dworkin,
ocorre na questão entre direito e moral. Apesar de Hart suscitar em vários momentos de
sua obra (o que é esquecido ou não observado pelos críticos), as mais variadas relações e
intimidades entre direito e moral,47 ele defende que a “existência e o conteúdo do direito
podem ser identificados por referência às fontes sociais do direito (p.ex., legislação,
decisões judiciais, costumes sociais), sem referência à moral, exceto quando o direito
assim identificado, tenha, ele próprio, incorporado critérios morais para a identificação
do direito”.48
Como mencionamos alhures, os diagnósticos do positivismo identificam
claramente esta tese: o conceito de direito (identificação) deve ser investigado e
elaborado sem a necessária referência à moral. Isto não quer dizer que o direito
não tenha relações com a moral. Aliás, todos os pensadores, de filósofos a juristas,
tem seguidamente mencionado isto. Jürgen Habermas e Neil MacCormick são dois
exemplos.49 Ambos afirmam que ninguém nega as relações, semelhanças e intimidades
entre direito e moral, mas isto não quer dizer que o conceito de direito deva ser elaborado
com elementos da moralidade, ainda mais na seara de um positivismo conceitual ou
de uma teoria pura do direito.

5 OS “EQUÍVOCOS DO PÓS-POSITIVISMO”
E A “RÉPLICA” DO POSITIVISMO JURÍDICO
Na esteira do que estamos comentando – sem querer obviamente exaurir o tema,
que é por demais extenso –, na bibliografia nacional, existem, no mínimo, duas obras
sintomáticas que devem ser conferidas com atenção para contextualizar o título acima e
servem como exemplo ilustrativo: Positivismo jurídico de Dimitri Dimoulis e Teoria do
direito neoconstitucional, organizada por Dimitri Dimoulis e Écio Duarte.
Na primeira delas, Dimitri Dimoulis dedica um capítulo para “os equívocos do
pós-positivismo” (cap. II) e um capítulo para a “réplica” do positivismo: o “positivismo
jurídico” legitima o direito positivo?” (cap. VI). Em primeiro lugar, afirma-se que o rótulo
“pós-positivismo” é praticamente desconhecido fora do Brasil e, mesmo na Alemanha,
onde é encontrado, o sentido não é o mesmo utilizado no Brasil.

46
Ibidem, p.327.
47
O capítulo IX do Conceito de Direito chama-se “Direito e Moral”, no qual são trabalhados o “conteúdo mínimo
do direito natural” e a “influência da moral sobre o direito”.
48
Ibidem, p.332.
49
A título de exemplo, conferir: HABERMAS, Jürgen. Direito e moral. Tradução de Sandra Lippert. Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p.39 e MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcellos.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.299 e segs.

62 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Esta pretensa escola, corrente ou este “ideário difuso” ou “designação provisória”
sofre, de início, de alguns males facilmente verificáveis:
a) utiliza a chamada “falácia do espantalho” em relação ao positivismo, ou seja, trata
de desqualificar o adversário ou concorrente a partir de uma suposta ideia ou entendimento
geral de que ele estaria “ultrapassado”, “arcaico” ou seria um “retrocesso”, “decadente”,
mas por outro lado, abandona os principais teóricos do positivismo e suas obras lapidares
sem uma leitura atenta, perspicaz e crítica fundamentada. É como se o positivismo fosse
um esquema ou um “esqueleto” (na dicção de Dworkin) que não precisasse mais ser
estudado ou verificado com atenção. É como se os autodenominados médicos da teoria
do direito abandonassem o estudo da doença e ficassem, de modo distante e afastado do
doente, propagandeando a tão procurada cura. Não parece ser a conduta científica mais
adequada e é metodologicamente duvidosa. É inegável que os séculos de construção
positivista no direito formaram uma teoria do direito robusta e uma tecnologia jurídica
que não pode ser facilmente desprezada ou anulada a partir de um “canetaço de ditador”.
Mais uma vez, devem ser conferidos, a título de exemplo, o conceito de direito, a teoria
da norma e a teoria do ordenamento jurídico, bem como seus teóricos fundamentais como
Hans Kelsen e Herbert Hart. O mais correto aos juristas brasileiros seria fazer como
fizeram Hart e Dworkin: um debate respeitoso, público e severamente fundamentado
sobre suas reais divergências sobre a teoria do direito e não uma crítica sem fundamento
e adequada a um modismo que sempre procura o “novo”, não importando muito o que
seja este “novo”;50
b) sofre de uma visão idealista e metafísica do direito que o reaproxima muito do
jusnaturalismo, neste discurso todo permeado de frases de “retorno da ética e valores”
para o ordenamento jurídico, de modo geral, vago, sem precisar o que significam estes
conceitos como se fossem os coletes salva-vidas da teoria do direito prestes a se afogar.
Há sempre a dúvida que os positivistas já identificavam: qual moralidade? Há consenso
sobre esta moralidade? O direito deve pregar um tipo de moralidade no ordenamento
jurídico?
c) a distinção entre regras e princípios, por si só, não serve para identificar uma
nova escola ou corrente, bem como a ideia de que os chamados hard cases são novidades
no mundo jurídico, já que o próprio positivismo não tem desconsiderado os princípios
e sua aplicação e a lógica e a filosofia demonstram que casos difíceis não são novidade
no âmbito dos conflitos;
d) o panorama mencionado acima – “mais Constituição do que leis; mais juízes do
que legisladores; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; mais
concretização do que interpretação” – possivelmente não passe pelo crivo de uma pesquisa
empírica mais séria e detida, revelando mais uma vez que, acima de tudo, é preciso ter
“fé” na “nova” escola e não se preocupar muito com a realidade do direito vigente.

50
No Brasil, as vaidades e acirradas concorrências acadêmicas para obter titulação, currículos e “seguidores”
levaram muitos teóricos do direito a, recentemente, cultuarem o “novo”, inclusive no título de suas obras.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 63


Por fim, neste tópico, cabe mencionar, ainda, a réplica do positivismo a algumas
das críticas mais famosas que formaram gerações de juristas no Brasil: (I) o positivismo
defendeu o Estado nazista – raciocínio chamado de reductio ad Hitlerum51; (II) o
positivismo é um legalismo ortodoxo que pratica o “fetiche da lei”.
Em relação à primeira crítica (I), os argumentos contrários são no sentido de que o
positivismo é uma teoria sobre a validade do direito e não uma proposta política. Como
esta teoria poderia definir um regime político? Além disso, várias pesquisas demonstram
que, entre outras características, podemos identificar na Alemanha da época o seguinte:
a) uma continuidade legislativa: com exceção da legislação que combatia os
adversários políticos e as minorias tidas como inimigas do Estado, não houve grandes
modificações no ordenamento alemão;
b) um discurso ideológico: o nazismo apelava para um discurso de “Estado de
justiça”, exaltando os “valores” do povo alemão e a “eticização” da aplicação do direito,
distanciando-se da aplicação legal;
c) uma doutrina antipositivista: Carl Schmitt – jurista e um dos defensores do
regime totalitário – fazia pesadas críticas ao positivismo em função de sua defesa dos
princípios da legalidade e irretroatividade e sua falta de direção política. Ao contrário,
Schmitt afirmava que o ordenamento devia basear-se na lealdade, na disciplina, na honra,
ligadas com o “princípio da direção unitária”.52
Parece estranho, mas é comum observarmos nos regimes totalitários o apelo a um
sentimento nacional popular exagerado, o qual envolve um chamado a uma determinada
ética ou moralidade daquele povo específico, visando a um Estado ideal, perfeito, que
seja um exemplo de justiça e segurança para aquele povo “privilegiado”. Portanto, o
mero apelo à ética, moral, valores e justiça não garante um bom governo para todos e,
também, não serve como crítica ao positivismo jurídico.
Em relação à segunda crítica (II), os estudos detidos e aprofundados dos grandes
nomes do positivismo (Kelsen e Hart), demonstram que ambos nunca pregaram o “fetiche
da lei”. Dimitri Dimoulis afirma que se admitíssemos a visão da “aplicação mecânica da
lei” como um dos baluartes do positivismo jurídico, teríamos que retirar Hans Kelsen
e Herbert Hart de suas hostes, visto que ambos os teóricos tratam da criação judicial
do direito (interpretação em Kelsen) e da temática da linguagem e da “textura aberta”
das normas (Hart)53. Não podemos esquecer – seria o cúmulo – que o direito lida com a
linguagem e não há linguagem que garanta uma “aplicação mecânica da lei” ou sustente
o mito antigo do “juiz boca da lei”. Friedrich Waismann – filósofo austríaco que criou o

51
Sobre a expressão e sua crítica específica, consultar: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a
uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p.260 e MATOS,
Andityas Soares de Moura Costa. Positivismo jurídico e autoritarismo político: a falácia da reductio ad hitlerum.
In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do
positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008.
52
Panorama presente em: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p.261-263.
53
Ibidem, p.53-55.

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termo “porosidade” e influenciou a “textura aberta” de Hart – afirmava que “nenhuma
linguagem está preparada para todas as possibilidades”.54

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, é tranquilo observar que os autores e obras que postulam o
rótulo “pós-positivismo” utilizam-se da chamada “falácia do espantalho” para criticar o
positivismo jurídico. Ou seja, o positivismo é “caricaturizado”, visto a partir de resumos,
esquemas ou leituras de segunda mão que previamente proíbem a leitura dos clássicos do
positivismo jurídico. Ou, ainda, na melhor das hipóteses, o positivismo usado como alvo
das críticas é o positivismo ideológico ou o formalismo, tipo de positivismo não mais
aceito para caracterizar esta escola. Há, também, um conjunto de autores positivistas que
tratam de evidenciar os problemas do positivismo ideológico e do formalismo, revelando
as melhores condições ou estrutura teórica do chamado positivismo conceitual.
No contexto do positivismo conceitual, devemos esclarecer, não há negação das
relações entre direito e moral, pelo contrário, tais relações são claramente admitidas
e, até mesmo, padrões morais são aceitos como integrantes do ordenamento jurídico.
Entretanto, para a construção do conceito de direito não há necessidade de utilização de
padrões morais. O conceito de direito é obtido pelo critério da fonte e não pelo mérito.
Além disso, é importante a referência a algum tipo de regra de reconhecimento ou norma
fundamental.
O conjunto de características propostas para a identificação do pós-positivismo,
como mencionado no corpo do texto, também é colocado na balança da crítica e algumas
delas não se sustentam.
Trata-se de um argumento ingênuo ou baseado na fé afirmar que o contexto atual do
direito – seja chamado de “pós-positivismo”, seja “neoconstitucionalismo” – apresenta-
se na estrutura citada anteriormente: mais Constituição do que leis; mais juízes do que
legisladores; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; mais
concretização do que interpretação. Primeiro: existe um conjunto de autores discordando
fundamentadamente desta “estrutura”. Segundo: estas afirmações não sobrevivem a
um teste empírico da realidade do direito aplicado ou não tem relevante significado
científico. Humberto Ávila, por exemplo, em texto recente, afirma que não é correto,
nem científico, propagar que temos mais princípios do que regras; que temos mais
ponderação do que subsunção; mais Poder Judiciário do que Poder Legislativo. E mais,
estas supostas mudanças não encontram suporte no próprio ordenamento constitucional
brasileiro. A Constituição brasileira de 1988 não é composta somente de princípios, mas
de regras e princípios e não é exato afirmar que passamos totalmente de um modelo para
outro e que este “novo” modelo seja melhor. No mesmo sentido, existe um conjunto de
“regras legisladas”, das quais não podem ser subtraídas todas as técnicas interpretativas

54
Waismann citado por STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para
uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofia da PUC-Rio. Rio
de Janeiro: 2005, p.106.

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disponíveis, inclusive a subsunção. E, por fim, em uma sociedade complexa e plural, o
Poder Legislativo é uma casa que engloba esta pluralidade de valores e tem a função
principal de legislar. Não há prevalência de um Poder sobre o outro55.
Por todos os argumentos expendidos, devemos dizer que, ao cair do pano, se o
positivismo jurídico é problemático e alvo de críticas, o pós-positivismo também não
sai ileso deste confronto.

REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1993.
______. El Concepto y la validez del derecho. Tradução de Jorge Seña. 2.ed. Barcelona:
Editorial Gedisa, 1997.
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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 67


Aportes hermenêuticos sobre direito
dos tratados1
Rafael Köche

RESUMO
A interpretação dos tratados internacionais pelos tribunais brasileiros sempre foi censurável.
Inúmeros “conflitos interpretativos” são talhados na busca de definição de uma hierarquia normativa
entre os tratados internacionais e a legislação pátria. O debate sobre o status normativo dos tratados
internacionais de direitos humanos e as polêmicas provenientes da Emenda Constitucional n.
45/2004 são exemplos disso; mais ainda com a promulgação da Convenção de Viena sobre Direito
dos Tratados pelo Brasil em 2009. Cada vez mais se percebe a necessidade de se desenvolver
uma Teoria das Fontes, uma Teoria da Norma e uma Teoria da Decisão. Não se concebe uma
democracia com voluntarismos e arbitrariedades, principalmente no interior do Poder que, no
Brasil, é constitucionalmente responsável por guardar a Constituição. Mecanismos “inovadores” que
poderiam auxiliar na resolução desses “conflitos” não são aplicados, como as Opiniões Consultivas.
Desse modo, uma questão permanece sem resposta: até quando deixaremos de cumprir o Direito
Internacional?
Palavras-chave: Direito dos Tratados. Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.
Direito Internacional Público. Hermenêutica Jurídica.

Hermeneutical contributions on law of treaties

ABSTRACT
The interpretation of international treaties by the Brazilian courts has always been
objectionable. Several “interpretative conflicts” are carved in the search for a definition of
normative hierarchy between international treaties and the domestic legislation. The debate over
the normative status of international treaties on human rights and the controversies arising from
the 45th Constitutional Amendment are examples. Moreover with the enactment of the Vienna
Convention on the Law of Treaties by Brazil in 2009. Increasingly realize the need to develop a
Theory of Sources, a Theory of Norm and a Theory of Decision. Can not conceive a democracy
with voluntarism and arbitrariness, especially within the power that, in Brazil, is constitutionally
responsible for safeguarding the Constitution. “Innovative” mechanisms that could assist in
addressing these “conflicts” are not applied, as the Advisory Opinions. Thus, one question remains
unanswered: when we will apply the International Law?
Keywords: Law of Treaties. Vienna Convention on the Law of Treaties. International Law.
Interpretation. Hermeneutics.

Rafael Köche é Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista
de Mestrado do CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica Jurídica (CNPq). Integrante do Projeto de
Pesquisa “Direitos Humanos e Transnacionalização do Direito” (UNISINOS). Advogado.

1
Artigo premiado no Concurso de Artigos atinentes à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, promovido
pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2º lugar).

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.68-84 jan./jun. 2012


68 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O MOVIMENTO
DE EXPANSÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
O século XX notabilizou-se pelos avanços científicos e tecnológicos, pela expansão
do comércio internacional e pela globalização.2 A intensificação das relações sociais
em escala mundial conecta localidades distantes de tal maneira que acontecimentos
locais são modelados por eventos ocorrendo em muitas milhas de distância e vice-versa
(GIDDENS, 1990, p.61-9). É no início daquele século também que se verifica a chamada
viragem linguística (linguistic turn), a chamada invasão da filosofia pela linguagem, numa
ruptura paradigmática, que trará consequências irreversíveis para a Filosofia e o Direito.3
É principalmente nesse período que verificamos também o movimento de expansão do
Direito Internacional (International Law).4
Entre inúmeros outros fatores, esse fenômeno de expansão é caracterizado pela
“expansão de normas obrigatórias e de soft norms, a descentralização de fontes, a expansão
dos mecanismos de controle do direito e a multiplicação de tribunais” (VARELLA, 2011),
decorrente do quase desaparecimento da noção de fronteira e da ressignificação do conceito
(ou da crise conceitual) de soberania, que passa a não mais simplesmente representar o
poder absoluto que o Estado tinha sobre seus “súditos”, mas um poder/dever de proteger
seus cidadãos (ICISS, 2001; ANNAN, 2011). Além disso, é consequência proeminente
daquilo que representou a Segunda Guerra Mundial.
Nunca se tinha visto tamanho potencial destrutivo por parte do ser humano ainda
mais no auge do desenvolvimento cientifico e tecnológico. Tal afirmação pode ser
entendida em dois sentidos: nunca tínhamos chegado tão perto de pôr fim à humanidade,
por meio do desenvolvimento e emprego de armas nucleares; assim como podemos

2
“Hoje vivemos num mundo em que o fracasso da colheita de látex na Malásia afeta profundamente os trabalhadores
em Birmingham ou em Detroit, enquanto uma negociação na bolsa de valores de Nova York e pode arruinar os
produtores de cacau da África Ocidental, que pouco sabem da existência de Londres, e com certeza não conhecem
nada sobre ações ou sobre valores” (CROSSMAN, 1980, p.18-9). Quando nos referimos a globalização, estamos
nos referindo a um fenômeno mais abrangente que um mero “conjunto de estratégias para realizar a hegemonia de
conglomerados industriais, corporações financeiras, majors do cinema, da televisão, da música e da informática,
para apropriar-se dos recursos naturais e culturais, do trabalho, do ócio e do dinheiro dos países pobres” (CANCLINI,
2003, p.29). Dentre as variadas terminologias existentes para descrever esse processo, talvez “globalização” não
sintetize a pluridimensionalidade fenomênica a que estamos nos referindo, contexto sobre o qual estamos partindo.
Reconhecemos que talvez o termo “mundialização” exprima com mais propriedade o sentido desse processo,
em razão da alta carga semântica que a “globalização” acabou assumindo. Para fins deste texto, ressaltamos, no
entanto, que o leitor deve ler esses termos como sinônimos desse processo, permeado por dinâmicas plurais, de
intensificação e multiplicação das relações, que extrapola as fronteiras nacionais, transformando as referências
modernas centradas nas nacionalidades. Trata-se, assim, de um processo, pluridimensional, contraditório, paradoxal
e ambíguo, na linha que trabalha autores como: Giddens (1990), Touraine (2007), Beck (1999), Held (2001), sem
(2003), para ficarmos apenas nestes.
3
A (des)construção deste texto foi realizada a partir de aportes da hermenêutica filosófica e da filosofia hermenêutica
desenvolvida a partir de tal viragem. Não serão aprofundados tais fundamentos. Para tanto, ver: Wittgenstein (2001
e 2005), Heidegger (2006), Oliveira (1996 e 1993).
4
Quando nos referirmos a tratados, estaremos nos referindo aos pactos regidos pelo Direito Internacional Público
e, por isso, International Law. Essa “limitação conceitual” é necessária, pois alguns internacionalistas da Academia
da Paris, como McNair, O’Connell, Serge Sur Nguyen Quoc Dinh Paul Reuter e Charles Rousseau, ampliam o
conceito de tratado para todo acordo entre sujeitos de direito internacional público. Isso incluiria determinados
acordos que são regulados pelo direito interno de cada Estado envolvido ou mesmo por princípios e regras de
direito internacional privado. Para tanto, ver: Reuter (1995) e Henkin (et al. 1993). Tal distinção é mencionada
também por Celso de Albuquerque Mello (2004).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 69


presenciar até onde a crueldade humana poderia chegar, com a criação dos campos
de concentração.5 Como explica Heiner Bielefeldt, justamente o horror dos crimes do
nacional-socialismo “cometidos em um moderno Estado europeu levaram, ao término
da Segunda Guerra Mundial, à segunda ruptura histórica decisiva dos direitos humanos,
qual seja, sua incorporação ao direito internacional” (BIELFELDT, 2000, p.41). O
Direito precisava dar uma resposta à Auschwitz, tanto que, no preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, esse momento histórico é retratado: considerando que
o desprezo e o desrespeito pelos Direitos do Homem conduziram a atos de barbárie
que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os
seres humanos sejam livres para se expressar e crer, libertos do terror e da miséria, foi
proclamada como a mais alta inspiração da Humanidade.
Ressalte-se, contudo, que os campos de concentração não foram característica
apenas do governo nazista. A União Soviética os possuía muitos anos antes de a
Alemanha implantar o seu primeiro campo de concentração. Morreram muito mais
ucranianos que judeus na Segunda Guerra Mundial (DAVIES, 2009. p.18-9).6
Obviamente, isso não cria qualquer álibi para os líderes nazistas. Simplesmente
afirmamos que a Segunda Guerra Mundial é precariamente estudada, e as poucas obras
a que temos acesso são desenvolvidas por meio de “fragmentação da memória” para
o uso da história do período da guerra com propósitos políticos e para a dominação
dessa história por interesses nacionais e específicos.
Esse período foi, pois, decisivo para o Direito Internacional, que havia mostrado
ser incapaz de garantir e manter a paz. A criação da Organização das Nações Unidas,
em 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a eclosão de
institutos e órgãos de controle (jurisdicional ou não) para limitar o poder político
dos agentes estatais são marcas dessa ruptura histórica.7 A expansão do Direito
Internacional acarretou também a “necessidade” (sic) da sistematização da prática do
direito internacional caracterizada na edição dos primeiros repertórios da prática dos
organismos internacionais e na multiplicação dos digestos de direito internacional
(McNAIR, 1962).

5
Importante análise feita por Hannah Arendt (1963) sobre a chamada banalidade do mal.
6
“O ensino da história é tão compartimentado quanto as publicações históricas” e o retrato apresentado é sempre
o da perspectiva congelada da história dos vencedores. Nessa linha, vale referir Norman Davies, em Europa
na Guerra, obra crítica que não revela “espetacularmente fatos novos”, mas reorganiza e reintegra fatos bem
estabelecidos que, até agora, “vinham sendo rigidamente segregados”. Como o próprio autor refere, a guerra
na Europa foi “dominada por dois monstros diabólicos, e não apenas um”. Descartando a narrativa dualista bem
conhecida dos ocidentais que opõe o Bem e o Mal, notamos que “esses monstros uniram forças para destruir a
ordem internacional existente, antes de embarcar em uma guerra violenta”. Os libertadores de Auschwitz eram
servos de um regime que mantinha campos de concentração ainda maiores do que aqueles que libertaram.
(DAVIES, 2009, passim).
7
“Os acontecimento de 11 de setembro de 2001 (...) iniciam um novo ciclo histórico. Saímos de uma ordem
internacional bem ou mal gerenciada para um sistema fluido, imprevisível, descontrolado, ameaçador e, para
seguir a palavra da moda, globalizado. (...) Uma das maiores ironias acontecendo sob os nossos olhos, sob as
nossas barbas: a guerra declarada pela maior potência bélica de toda a História, os EUA, contra um fantasma.
(...) A economia é responsável pelas armas ideológicas da morte.” (DINIZ, 2005, p.51-52).

70 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, em 1949, iniciou os
estudos sobre a expansão e regulamentação dos tratados internacionais;8 Comissão
desenvolvida justamente para codificar o Direito Internacional. Ilustram o labor
para a codificação do direito internacional em áreas como as relações diplomáticas e
consulares, a responsabilidade internacional dos Estados, o código de crimes contra
a paz e a humanidade, e, claro, o Direito dos Tratados. “Era inquestionável que, há
algum tempo, desfrutavam as Nações Unidas de reconhecida capacidade para participar
diretamente no processo de codificação e desenvolvimento progressivo do direito
internacional” (CANÇADO TRINDADE, 1997, p.xiii).
Como muitos acordos eram extremamente difíceis naquele período (e ainda o são
hoje), a Organização das Nações Unidas passou a desenvolver modos de, num primeiro
momento, estabelecer parâmetros mínimos, nem que apenas sob o caráter formal,
elaborando a Convenção de Viena para Relações Diplomáticas, em 1961, a Convenção
de Viena sobre Relações Consulares, em 1963, e a Convenção de Viena sobre Direito
dos Tratados, aprovada em 23 de maio de 1969, ao final de uma conferência diplomática
internacional, que o Brasil veio a promulgar apenas em 2009.9

As disposições da Convenção, aprovadas por maiorias representativas superiores


a dois terços, deram certeza a normas preexistentes, em certos casos, facilitaram a
cristalização de determinadas regras, em outros, e, no tocante às demais situações,
configurando uma opinio juris coletiva e orientando no sentido de que a prática
posterior se desenvolva de acordo com ela, aceleraram a formação de novos
preceitos. (CACHAPUZ DE MEDEIROS, 2007, p.63)10

Assim sendo, de modo dialético-dialógico, verificaremos os reflexos que os tratados


internacionais conferem no direito brasileiro, analisando as polêmicas mais recentes,
especialmente no que tange a interpretação dos tratados frente à legislação doméstica

8
A primeira regulamentação dos tratados internacional a versar sobre o modo de sua celebração foi a Convenção
Pan-Americana sobre Direito dos Tratados (1928), conhecida como Convenção de Havana, realizada por ocasião
da VI Conferência Internacional Americana, em vigor até hoje. Ela foi incorporada ao ordenamento legislativo
brasileiro mediante o Decreto nº 18.956, de 22 de outubro de 1929. A Convenção de Viena só entrou em vigor
internacionalmente em 27 de janeiro de 1980, quando o trigésimo quinto país depositou o instrumento de ratificação.
Ver: Henkin (1993), em especial, o capítulo 6, The Law of Treaties, seção 1-A, The Viena Convention on the Law
of Treaties (p.416 e segs).
9
Nesse mesmo sentido, foi elaborada a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e
Organizações Internacionais, concluída em 1986. Ela ainda não entrou em vigor por não ter atingido o quorum
mínimo de 35 ratificações de Estados. “A origem histórica da codificação do Direito dos Tratados envolvendo
organizações internacionais se confunde com o próprio aparecimento das organizações no cenário internacional,
quando se percebeu que a capacidade internacional dessas entidades as levava inexoravelmente à condição
de titulares do poder de celebrar tratados (treaty-making power)” (MAZZUOLI, 2010, p.290). Para aprofundar o
assunto, inclusive para a compreensão deste artigo, fundamental a leitura das obras: Cachapuz de Medeiros,
1995, Cançado Trindade, 2003a, e, 2003b, pp.171-200.
10
Diferentemente de outras convenções, que regulam o comportamento dos Estados em setores específicos das
relações internacionais, a Convenção de Viena de 1969 se destina a reger todos os demais tratados (CACHAPUZ
DE MEDEIROS, 2007, p.63).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 71


pelos tribunais, principalmente porque, com a promulgação da Convenção de Viena sobre
Direitos dos Tratados, o Estado poderá ser responsabilizado com maior rigor por violação
do Direito Internacional, sobretudo porque o Brasil, tradicionalmente, resiste em aplicar
as normas a que se submete, sob um pretenso “conflito interpretativo”.

2 CONFLITO DE NORMAS? INTERPRETAÇÃO


DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO BRASIL
2.1 (Re)afirmação da hermenêutica filosófica
Os ironicamente chamados “conflitos interpretativos” expostos neste artigo mostram
claramente a dificuldade de se alterar a cultura historicamente forjada sob os auspícios da
modernidade, que reproduz certa metafísica ainda no campo do Direito. Nada diferente
do que ocorre na Suprema Corte brasileira. É dizer, não conseguimos suspender os “pré-
juízos inautênticos”, na linha de que trata Gadamer (1997). Nossa dogmática jurídica
predominante é metafísica, como retrata Streck (2004), denunciando que a doutrina não
doutrina, uma vez imersa naquilo que Luis Alberto Warat (1979, passim) denominou de
“senso comum teórico dos juristas”.
Parcela razoável desses “conflitos” parece surgir por parte considerável da doutrina e
jurisprudência que ainda sustentam posturas objetivistas, “em que a objetividade do texto
sobrepõe-se ao intérprete”; ou, como o conjunto de posições doutrinário-jurisprudenciais
assentadas no subjetivismo, segundo o qual o intérprete se sobreporia ao texto (STRECK,
2011, pp.191-2).
E, apesar de o Direito assumir um caráter hermenêutico, em plena “era” do
constitucionalismo, da argumentação jurídica e da viragem linguística, a teoria do
direito vem sendo dominada por uma crescente sincretização de cunho aparadigmático.
Consequentemente, expressões como “caso concreto”, “interpretação”, “hermenêutica”,
“discurso”, “argumentação” e “concretização” vem sofrendo de forte anemia significativa
(STRECK, 2011, p.373).
Lembremos que “um discurso sempre é acompanhado e precedido por uma
antecipação de sentido, que advém do mundo prático, de um desde-já-sempre, e que se
funda no encontro hermenêutico” (STRECK, 2011, p.51). As várias tentativas de criar
regras para o processo interpretativo,

[...] a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade, ou, até mesmo, de


conjugar a subjetividade do intérprete e a objetividade do texto, não resistiram às
teses da viragem linguística-ontológica, superadoras do esquema sujeito-objeto,
compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da
objetificação provocada pelo círculo hermenêutico e pela diferença ontológica.
(STRECK, 2011, pp.216-7)

72 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Nesse sentido, passamos a analisar as implicações da promulgação da Convenção
de Viena sobre Direito dos Tratados, tendo em vista o modo como a nossa Suprema Corte
aplica (ou deixa de aplicar) o Direito Internacional em solo brasileiro.

2.2 Implicações da promulgação da Convenção de Viena


O Presidente da República, mediante a mensagem 116 publicada no Diário Oficial
da União em 23 de abril de 1992, enviou ao Congresso Nacional o texto da Convenção
de Viena de 1969 para apreciação. O projeto de Decreto Legislativo 214-C/92 referente
a essa Convenção foi aprovado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos
Deputados, sendo que, desde 28 de outubro de 1995, o projeto está pronto para a Ordem
do Dia. O texto da Convenção tramitou pela Câmara dos Deputados mais de treze anos
sem apreciação, até ser aprovado pelo Decreto Legislativo 496, de 17 de julho de 2009,
tendo o respectivo instrumento de ratificação sido depositado perante o secretário-geral
das Nações Unidas, em 25 de setembro do mesmo ano. Por meio do Decreto 7.030, de
14 de dezembro de 2009, o Presidente da República então promulgou a Convenção de
Viena sobre Direito dos Tratados.11
Esse fato lança uma situação inusitada que contradiz entendimento jurisprudencial
dominante, visto que, segundo o artigo 27, “uma parte não pode invocar as disposições
de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Nessa linha, como
fica o entendimento de que uma lei posterior revoga entendimento contrário disposto em
tratado internacional que o Brasil seja parte? Ou, também, como fazer o controle sobre
compatibilidade vertical de lei contrária a tratado internacional de direitos humanos com
patamar constitucional?12

2.3 A resistência dos tribunais em aplicar o Direito


Internacional no Brasil
O processo legislativo no plano internacional tem uma característica peculiar: é
desenvolvida pelo Poder Executivo dos Estados. Pelo menos, num primeiro momento.

11
Como se percebe, mais de quarenta anos se passou até a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados ser
aprovada pelo Congresso brasileiro, com reservas aos artigos 25 e 66, que dispõem, respectivamente: “Artigo 25:
1. Um tratado ou uma parte do tratado aplica-se provisoriamente enquanto não entra em vigor, se: a) o próprio
tratado assim dispuser; ou b) os Estados negociadores assim acordarem por outra forma. 2. A não ser que o
tratado disponha ou os Estados negociadores acordem de outra forma, a aplicação provisória de um tratado ou
parte de um tratado, em relação a um Estado, termina se esse Estado notificar aos outros Estados, entre os
quais o tratado é aplicado provisoriamente, sua intenção de não se tornar parte no tratado” e “Artigo 66: Se, nos
termos do parágrafo 3 do artigo 65, nenhuma solução foi alcançada, nos 12 meses seguintes à data na qual a
objeção foi formulada, o seguinte processo será adotado: a) qualquer parte na controvérsia sobre a aplicação ou
a interpretação dos artigos 53 ou 64 poderá, mediante pedido escrito, submetê-la à decisão da Corte Internacional
de Justiça, salvo se as partes decidirem, de comum acordo, submeter a controvérsia a arbitragem; b) qualquer
parte na controvérsia sobre a aplicação ou a interpretação de qualquer um dos outros artigos da Parte V da
presente Convenção poderá iniciar o processo previsto no Anexo à Convenção, mediante pedido nesse sentido
ao Secretário-Geral das Nações Unidas”.
12
Talvez, nesse caso, a subsidiariedade da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
poderia responder ao problema.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 73


Embora classicamente a doutrina defenda que a assinatura não vincula o Estado
de modo que se possa aventar a obrigatoriedade de ratificação13, com fulcro no
chamado princípio da discricionariedade da ratificação, ainda assim verificamos a
proeminência do Executivo no cenário internacional.
Na complexidade das relações políticas mundiais, dificilmente conseguir-
se-ia desenvolver acordos que não por meio dos chefes de Estado. Questionar em
que medida a assinatura vincula ou não o Estado é extremamente relevante. E se o
Estado não pode ser “responsabilizado” pela opção de um governo, em que medida
o governo, então, ficaria submetido àquela assinatura?
A questão que se coloca é que, no cenário internacional, o poder de convencionar
acordos entre Estados (treaty-making power) está nas mãos do Executivo; e, no âmbito
do direito constitucional, o poder legiferante é função precípua do Poder Legislativo.
Isso leva a diferentes conflitos na produção e aplicação do direito, um verdadeiro
tensionamento entre os Poderes14, o que inclui a interpretação dos tratados frente à
legislação pátria e vice-versa.
Atualmente, desenvolvem-se na doutrina jurídica ocidental conceitos como
constitucionalismo dirigente e compromissório, evidenciando o papel da Constituição
e a necessidade de cumpri-la e o fortalecimento da jurisdição constitucional. Inúmeras
teorias são talhadas nesse sentido15, que tentam fortemente combater arbitrariedades
e decisionismos, a partir de limites interpretativos/aplicativos e de um escorço
hermenêutico, parametrizados pela hierarquia normativa existente entre as regras
em relação à Constituição.
Entretanto, diferente do que ocorre no direito interno, não se pode afirmar que
exista hierarquia normativa em direito internacional. Talvez possa ser feita distinção
entre tratados ordinários e que versem sobre direitos humanos, que será feita mais
adiante. Mas a multiplicidade de fontes de produção de tratados, os diferentes órgãos
de jurisdição internacional, o papel das organizações internacionais, entre outros
fatores, impedem que se faça a rasa analogia da hierarquia normativa consoante no
direito constitucional para o plano internacional.

13
José Francisco Rezek, por exemplo, afirma ser uma obviedade que a assinatura de um tratado (de “procedimento
longo”) não pretende vincular o Estado, tampouco o governo (1984 p.269). Deixamos claro, todavia, que
reconhecemos a possibilidade de a assinatura vincular o Estado, com fulcro no artigo 12 da Convenção de
Viena de 1969: “Artigo 12: 1. O consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado manifesta-se pela
assinatura do representante desse Estado: a) quando o tratado dispõe que a assinatura terá esse efeito; b) quando
se estabeleça, de outra forma, que os Estados negociadores acordaram em dar à assinatura esse efeito; ou c)
quando a intenção do Estado interessado em dar esse efeito à assinatura decorra dos plenos poderes de seu
representante ou tenha sido manifestada durante a negociação”.
14
Tal tensionamento é resultante também do movimento que convencionalmente passou-se a chamar de
constitucionalismo (contemporâneo), pois, “de um lado, textos constitucionais forjados na tradição do segundo pós-
guerra estipulando e apontando a necessidade de realização dos direitos fundamentais-sociais; [por outro,] a difícil
convivência entre os Poderes do Estado, eleito (Executivo e Legislativo) por maiorias nem sempre concordantes
com os ditames constitucionais.” (STRECK, 2011, p.23).
15
A tese da Constituição Dirigente (dirigierende Verfassung), inicialmente elaborada por Lerche (1999, p.60 e
segs.), foi adaptada à doutrina portuguesa por Canotilho (1994).

74 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Tamanha dificuldade é resolver essa questão que o Poder Judiciário francês,
por exemplo, mantém certa distância, tanto quanto possível, de delimitações
interpretativas voltadas para tratados internacionais. Tende a examiná-los somente
no âmbito de um litígio entre particulares (REZEK, 1984, p.451). Claro, isso
ocorria acentuadamente até a Reforma Constitucional de 2008, que ampliou os
poderes do Conselho Constitucional francês, inaugurando uma espécie de jurisdição
constitucional de controle de leis a posteriori. Podemos considerar isso uma ruptura
em se tratando de um país como a França, em que o Judiciário tradicionalmente tinha
papel secundário frente ao Executivo e Legislativo, que simboliza(va)m a suprema
vontade do povo. Sem contar que, na França, assim como na Grécia16 e no Peru,17 os
tratados são prioritários frente a conflitos com a legislação pátria.18
Nos Estados Unidos, também verificamos uma espécie de supremacia dos
tratados internacionais, mas, diferente do que ocorre na França, aplica-se o sistema
de paridade entre tratados e lei nacional. Em outras palavras, os tratados ombreiam
com as leis federais votadas no Congresso e sancionadas pelo Presidente. Ou seja,
a denominada supremacia significa que o tratado prevalece sobre a legislação dos
estados federados, tal como a lei federal ordinária; não que seja superior a esta
(REZEK, 1984, p.465).
De outra banda, no Brasil, segundo a doutrina majoritária, caudatária da
jurisprudência, os tratados internacionais têm, em virtude dos atos de execução e
transformação, apenas força de lei federal (RE 71.154; RE 80.004) (VELLOSO,
2004, pp.35-45). Essa questão foi posta em causa a propósito da prisão civil do
depositário infiel, situação prevista na Constituição (em seu art. 5º, LXVII), mas
vedada pelo art. 7º, §7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de San Jose da Costa Rica),19 um tratado internacional de direitos humanos (RE n°
466.343; RE n° 349.703).
Por isso, por tratados internacionais, é preciso distinguir aqueles que versem
sobre direitos humanos e os demais, ditos ordinários. Eles possuem tratamento
diferenciado no cenário brasileiro.

16
The Constitution of Greece (1975): “Article 28 – 1. The generally recognized rules of international law, as well as
international conventions as of the time they are sanctioned by statute and become operative according to their
respective conditions, shall be an integral part of domestic Greek law and shall prevail over any contrary provision
of the law. The rules of international law and of international conventions shall be applicable to aliens only under the
condition of reciprocity”. (Constituição da Grécia [1975]: “Art. 28, § 1º: As regras de Direito Internacional geralmente
aceitas, bem como os tratados internacionais após sua ratificação [...], têm valor superior a qualquer disposição
contrária das leis”). (Tradução livre).
17
Constitución para la República del Perú: “Art. 101 – Los tratados internacionales celebrados por el Peru con otros
Estados, forman parte del derecho nacional. En caso de conflicto entre el tratado y la ley, prevalece el primero”.
(Constituição do Peru [1979]: “Art. 101 – Os tratados internacionais, celebrados pelo Peru com outros Estados,
formam parte do direito nacional. Em caso de conflito entre tratado e lei, prevalece o primeiro”). (Tradução livre).
18
Constituição da França (1958): “Art. 55 – Os tratados ou acordos devidamente ratificados e aprovados têm,
desde a data de sua publicação, autoridade superior à das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua
aplicação pela outra parte”.
19
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969: “Art. 7º, §7: “Ninguém
deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente em virtude
de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 75


2.4 Tratados internacionais de direitos humanos: normas
constitucionais ou supralegais?
Na fundamentação do voto do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343), é possível
perceber a “divergência interpretativa” no que tange ao status normativo dos tratados
internacionais, que, segundo o magistrado, poderiam ser entendidos basicamente
como: constitucionais, supralegais ou como leis ordinárias.20
Os tratados internacionais ditos ordinários (ou que não versam sobre direitos
humanos) mantêm patamar de lei federal, segundo o acórdão. O próprio texto
constitucional, ao definir a competência do Superior Tribunal de Justiça, não estabeleceu
distinção fundamental entre tratado e lei federal, atribuindo àquela Corte o poder genérico
de conhecer, mediante recurso especial, das causas decididas pelos Tribunais federais
ou estaduais “quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal”, conforme
disposto no artigo 105, III, a.
Todavia, ao tratar do status normativo dos tratados internacionais de direitos
humanos, a compreensão do fenômeno parece se dar de forma distinta, visto que haveria
a possibilidade destes tratados terem status constitucional, quando a aprovação do tratado
ocorrer pelo mesmo quórum exigido para a aprovação das emendas constitucionais, ou
terem status supralegal, quando aprovado por maioria simples, com base no artigo 47
da Constituição.21
A doutrina majoritária defende o status constitucional dos tratados internacionais
de direitos humanos, por qual se aliam Piovesan (1996, p.83), Cançado Trindade (1998,
pp.88-89), Bolzan de Morais (2005, pp.3-54) e Mazzuoli (2010, pp.779), para ficar apenas
nestes. A redação do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal foi elaborada
justamente para atender à tendência constitucional contemporânea de reconhecer este
status constitucional – como já se verifica em parcela considerável das Constituições dos
países ocidentais –, a partir de uma “cláusula de abertura”, cuja redação é fruto de uma
audiência pública da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, que ocorreu em
29 de abril de 1987, contando com a presença de Cançado Trindade.
Além disso, haveria um conteúdo materialmente constitucional dos tratados
internacionais de direitos humanos, que, por fim, estabelecem novos direitos fundamentais
e, com isso, não poderiam ter simplesmente patamar de lei ordinária. Por isso, cinco dos
onze ministros que votaram na RE 466.343 foram a favor do status constitucional de
todos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é parte; os demais, a favor
da posição do Gilmar Mendes: supralegalidade.22 Assim, assumiríamos o argumento

20
Gilmar Mendes ainda descreve a possibilidade de os tratados internacionais de direitos humanos serem entendidos
como supraconstitucionais, na linha que defende Celso Duvivier de Albuquerque Mello (1999, pp.25-26).
21
Constituição Federal (1988): “Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa
e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros”.
Tratamentos díspares assim fazem com que, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
tenha status supralegal e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, constitucional.
22
A fundamentação do Min. Gilmar Mendes, nesse sentido, ressalta o tratamento idêntico que é dado pelas
Constituições da Alemanha (Art. 25), França (Art. 55) e Grécia (Art. 28).

76 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


que “the Constitution is the point of reference of assessing the validity of international
treaties (and legal order as a whole), and, because of that, the Constitution must be the
supreme norm, and not even international human rights treaties must “threaten” this
supremacy”.23
Desse modo, um consenso que admitisse o status constitucional desses tratados
certamente teria que admitir que a Constituição concebida como um texto rígido tornar-
se-ia flexível, pelo menos para o efeito de adição de novos direitos; até porque o processo
constitucional de aprovação dos tratados no Brasil reforça a ideia de que é de direito
ordinário que se trata: aprovação de decreto legislativo mediante decisão da maioria
(simples) dos membros presentes de cada uma das Casas, presente a maioria absoluta; e
ratificação mediante decreto do Chefe do Poder Executivo, tudo conforme o artigo 49,
I, combinado com artigos 47 e 84, VIII, da Constituição Federal.
É de se indagar, todavia, se a cláusula constante do artigo 5º, parágrafo 2º, da
Constituição, enquanto norma de remissão, permitiria que fossem incorporados ao texto
constitucional princípios de direito suprapositivo. Acentue-se que a dimensão do catálogo
dos direitos fundamentais previsto na Constituição brasileira torna difícil imaginar um
direito fundamental que pudesse ser adicionalmente colocado dentre esses direitos
basilares com fundamento nessa norma de remissão. Sem deixar de mencionar as questões
advindas da Emenda Constitucional nº. 45/2004, que atribuiu status constitucional aos
tratados internacionais de direitos humanos, por meio da inclusão de novos parágrafos
ao art. 5º, que já acendem grandes discussões.

2.5 Emenda Constitucional nº. 45/2004


A Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou ao art. 5º, os parágrafos 3º e 4º,
que rezam, respectivamente, que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”, e “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a
cuja criação tenha manifestado adesão” (sic).

In order to do so, the paragraph 4th of the Constitution article 5th promoted an
extension of Brazilian jurisdiction when it clearly submits it to the International
Criminal Court jurisdiction, to whose creation was celebrated its adhesion. That
is, it equated such a Court with the Brazilian Judiciary organs. Hence, it can be
observed that this device was not aimed on constitutionally declaring adhesion to
the International Criminal Court, but to recognize whatever institution with the
same nature as a national jurisdiction, enlarging then the criminal jurisdiction
concerning crimes within its competence.

23
Defendida por parte da jurisprudência, conforme descreve Marques e Lixinsky (2009, p.149). Sobre o assunto,
ver também: Amaral, 2006, p.11-33.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 77


(…)
Hence, these would not be the possibility for the President of the Republic to use
its discretionary power according to his convenience and chance, and abolish this
petrified clause by denouncing the Rome Treaty? (PEREIRA; BARROS; LIMA,
2009, pp.134-5)

Criado para tentar responder ao dilema sobre o patamar normativo dos tratados
internacionais de direitos humanos que o Brasil seja parte, o parágrafo 3º enfrentou
intensas críticas, sendo inclusive suscitada sua inconstitucionalidade material,
decorrente da proibição de retrocesso social, pois, supostamente, não poderia ter exigido
procedimento mais rígido (quorum qualificado) para que novos direitos, criados por
tratados internacionais que o Brasil seja parte, incorporem ao ordenamento jurídico
nacional em patamar constitucional; enquanto a previsão anterior do parágrafo 2º não o
fazia. Mesmo assim, há quem afirme ser desnecessária a inclusão do parágrafo 3º ao art.
5º, já que o parágrafo 2º já seria o suficiente para uma “leitura constitucionalizante” dos
tratados internacionais de direitos humanos (MOREIRA, 2007, p.100).
O parágrafo 3º veio a complementar o parágrafo anterior – que consagrara a abertura
constitucional aos tratados internacionais sem estabelecer procedimento específico para
que o patamar constitucional fosse definido. Todavia, tal “complementariedade” desperta
especulações também sobre a questão do direito intertemporal, ao tentar definir o status
normativo dos tratados, ele aparentemente não resolveria o problema daqueles que o
Brasil tornou-se parte antes da Emenda n. 45/2004. Eles continuarão sendo concebidas
como normas infraconstitucionais, como se depreende do entendimento do Supremo? Ou
assumirão o status constitucional apesar de não terem sido submetidos ao procedimento
qualificado (conforme o parágrafo 3º)?
Ao atribuir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos mediante
procedimento específico no âmbito do Congresso Nacional, o constituinte derivado
reforçou a posição adotada no Supremo Tribunal Federal; ou seja: os tratados sobre
direitos humanos não contam com a hierarquia constitucional automaticamente (DINO
et al., 2005, p.16). Logo, os tratados internacionais, anteriores à Emenda, mesmo aqueles
que versem sobre direitos humanos, manteriam status equivalente às leis ordinárias.
Passa despercebido, entretanto, que as alterações implantadas pela Emenda
Constitucional n. 45/2004 vieram para fortalecer a proteção dos direitos fundamentais.
E não o contrário. E que as questões levantadas acerca do novo parágrafo do artigo 5º
poderiam ser resolvidas, em alguns casos, a partir do fenômeno da recepção.

Acerca da recepção, sabemos que se trata de princípio geral de Direito


Constitucional (que independe de previsão expressa), segundo o qual as normas
infraconstitucionais validamente editadas (sob o ângulo formal e material)
na vigência de ordenamentos constitucionais anteriores continuam vigentes
e eficazes em face de novos ordenamentos constitucionais (originários ou

78 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


reformadores), bastando a compatibilidade material com as regras constitucionais
supervenientes. (...) É verdade que a recepção convencional é vista envolvendo
regras infraconstitucionais anteriores diante de novas ordens constitucionais (ou
seja, a norma anterior tem forma infraconstitucional, e permanecerá como norma
infraconstitucional, ainda que de competência ou hierarquia diversa), mas nada
impede que o fenômeno da recepção seja aplicado em casos nos quais a ordem
constitucional anterior permanece com força de regra constitucional em face ao
novo ordenamento constitucional (fenômeno denominado recepção material),
ou em casos nos quais regras constitucionais anteriores venham assim status de
normas infraconstitucionais (chamada de desconstitucionalização em sentido
estrito). (FRANCISCO, 2005, pp.103-4.)

Nesse sentido, haveria recepção convencional, visto que os dois últimos


instrumentos de hermenêutica constitucional pressupõem a ab-rogação da Constituição
pretérita (FRANCISCO, 2005, p.104).24 Dessa forma, os tratados internacionais de direitos
humanos anteriores a Emenda passariam a ser considerados constitucionais, como boa
parte da doutrina assim já os tratavam,25 como Flávia Piovesan, ao sustentar que os tratados
são “materialmente constitucionais” (por força do artigo 5º, parágrafo 2º). E, a partir da
inserção do parágrafo 3º, os tratados internacionais de direitos humanos passam a ter uma
nova conceituação, pois, segundo a autora, podem ser agora “material e formalmente
constitucionais”. Seria uma nova fase do constitucionalismo brasileiro?26

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: OU QUANDO


CUMPRIREMOS O DIREITO INTERNACIONAL?
Portanto, a promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados pelo
Brasil em 2009, apesar de sua importância para a sistematização e desenvolvimento
da International Law, infelizmente causou (e ainda causará mais) divergências em sua
aplicação, porque os tribunais brasileiros ainda não compreenderam o papel do Direito
Internacional Público nesta quadra da história.
Entre tantos “conflitos interpretativos” – que, como se viu, não podem ser entendidos
desse modo –, figuram a distinção entre tratados ordinários e aqueles que versem sobre
direitos humanos; o tratamento jurisprudencial dado a este último, que parte defende seu
status normativo constitucional; parte, seu status supralegal; as discussões provenientes
da Emenda Constitucional n. 45/2004, que içou os tratados ao patamar constitucional
(material e formalmente), sendo, todavia, objeto de suscitação de inconstitucionalidade.
E, agora, esses debates tendem a tornar-se cada vez mais acentuados, pela aplicação, por

24
Cf. Moreira, 2007, pp.107-8.
25
Cf. Comparato (2008), Cançado Trindade (1997, 1999 e 2003), Piovesan (2009).
26
Piovesan, 2009, pp.72-3. Moreira sustenta que certas decisões provenientes dos Tribunais de alguns estados
(HC 70011566882-RS; HC 700113551624-RS; Apelação Cível 1.0408.02.000139-7/001-MG), além da expansão da
doutrina que reconhece o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos contribuem para o surgimento
de uma “nova cultura dos direitos humanos” (2007, p.110).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 79


exemplo, do artigo 27 da Convenção de Viena de 1969, que não permite aos operadores
do Direito escusar-se de cumprir o dispositivo de um tratado invocando disposição de
direito interno; senão vejamos.
Se os tratados ordinários possuem status normativo de lei federal,27 o que
aconteceria se lei federal posterior fosse contrária a tratado: valeriam as regras/princípios
constitucionais para a interpretação dessa lei, como a lex posterior derogat lex priori?
Ou uma lei federal não pode ser contrária a um tratado?
Nesse segundo caso, se uma lei federal não puder ser contrária a tratado, significa
dizer que não possuem o mesmo status normativo. Logo, até mesmo os tratados ordinários
teriam, no mínimo, status supralegal.
Isso faria com que tratados ordinários pudessem ter tratamento jurisprudencial
semelhante ao dado por determinados ministros do Supremo Tribunal Federal para
tratados internacionais de direitos humanos, como aferido no voto do Min. Gilmar
MENDES (RE 466.343). Então como resolver: atribuímos a “supralegalidade” aos
tratados internacionais ordinários também, correndo o risco de equipará-los aos tratados
internacionais de direitos humanos (que não foram aprovados pelo novo procedimento)?
Ou simplesmente deixamos de aplicar o artigo 27?

O desrespeito deste princípio [da superioridade absoluta do direito internacional],


indissociável da obrigação que incumbe ao Estado de tomar medida internas,
legislativas ou regulamentares, necessárias a execução do tratado (...), é sancionado
pela responsabilização do autor pela falta (...), estando o juiz internacional proibido
de pronunciar a anulação do acto interno incriminado, que é declarado simplesmente
inoponível aos outros Estados.28

Desse mesmo modo, tampouco poderá valer-se das decisões internas para fazer
fracassar um tratado no qual é parte. Ou seja, cada vez mais se percebe a necessidade de
se desenvolver uma (nova) Teoria das Fontes, uma (nova) Teoria da Norma e uma (nova)
Teoria da Decisão. Não se concebe uma democracia com voluntarismos e arbitrariedades,
principalmente no interior do Poder que, no Brasil, é constitucionalmente responsável por
“guardar a Constituição”, sendo que “os constituintes autorizaram o governo a concluir
tratados que modificariam o equilíbrio dos poderes internos ou limitariam sua “soberania
normativa”.29
Por fim, mecanismos inovadores que poderiam auxiliar na resolução desses
“conflitos” não são utilizados. As Opiniões Consultivas fornecidas por organizações,

27
Until the extraordinary appeal trial number 80.004-SE in 1997, the Supreme Court has settled the International
Law primacy over the Internal Law. In this appeal, it has been decided that, in case of conflict between treaty and
later law, the law should prevail according to the principle lex posterior derogate legi priori (PEREIRA; BARROS;
LIMA, 2009, p.130).
28
Dinh; Dailler; Pellet, 2003, p.284.
29
Dinh; Dailler; Pellet, 2003, p.290.

80 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


tribunais e cortes internacionais são meios respeitáveis para corroborar uma série de
aplicações do Direito Internacional em solo brasileiro.
O Estado já foi condenado por violar tratados internacionais. E essa responsabilização
tende a ser cada vez mais intensa na medida em que se incorporou ao ordenamento jurídico
brasileiro, em 2009, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969.
Por fim, outra questão polêmica diz respeito justamente ao momento a partir do
qual ela passou a ser exigível, porque o depósito do instrumento de ratificação ocorreu
no dia 25 de setembro de 2009, logo, em conformidade com o artigo 84 (2), que diz
que: “2. Para cada Estado que ratificar a Convenção ou a ela aderir após o depósito do
trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão, a Convenção entrará em vigor
no trigésimo dia após o depósito, por esse Estado, de seu instrumento de ratificação ou
adesão”, o tratado passaria a vigorar a partir do dia 25 de outubro. Entretanto, o Decreto
7.030 foi publicado apenas em 14 de dezembro daquele ano.
Como ficará, então, a interpretação/aplicação dos tratados internacionais durante
esse ínterim? Seguiremos adotando a posição do Supremo Tribunal Federal ou passaremos
a cumprir o Direito Internacional?

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84 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


O plano diretor e o desenvolvimento do
turismo socioambientalmente sustentável1
Adir Ubaldo Rech
Karine Grassi

RESUMO
A Constituição Federal estabelece a competência da União, dos Estados e dos Municípios
para a promoção e o incentivo do turismo como fator de desenvolvimento social e econômico.
A legislação federal regulamenta com normas gerais, e as legislações estaduais com normas
regionais, o que são áreas e locais de interesse turístico. Contudo, tais legislações têm um caráter
geral; por conseguinte, não delimitam espaços específicos para o cumprimento das referidas
áreas e locais, o que se dará conforme critérios estabelecidos pelos municípios. O instrumento
jurídico que possibilita o zoneamento dos espaços e das atividades de interesse turístico é o
Plano Diretor Municipal. O turismo realiza-se num determinado espaço (urbano ou rural), em
decorrência de suas características naturais ou criadas; assim, é imprescindível o zoneamento
das áreas de interesse turístico para a minimização dos impactos ambientais sobre esses espaços
e a concretização de políticas públicas de turismo, na forma do art. 180 da CF.
Palavras-chave: Turismo. Zoneamentos específicos. Impactos ambientais. Ocupação.
Desenvolvimento social e econômico sustentável.

The municipal master plan and the socially and environmentally


sustainable tourism development

ABSTRACT
The Constitution of Brazil/1988 establishes the competence of the Union, the States and
municipalities to promote and encourage tourism as a factor of social and economic development.
Federal law regulates general rules, as well as state laws, with regional standards, and defines
which are areas and places of tourist interest. However, State and federal laws have a general
character. Therefore, delimits spaces specifically designed for this purpose, leaving them at the
discretion of municipalities all over Brazilian States. The legal instrument that enables the zoning
of the spaces and the activities of tourist interest is the Municipal master plan. Effectively, tourism
always happens in a certain space (urban or rural), due to the natural or artificial features in these
spaces. It is imperative starting a zoning process, as an effective instrument in order to minimize
environmental impacts and to implement public policies for tourism. That is essential for social
and economic development, as provided for by art. 180 of the Federal Constitution.
Keywords: Tourism. Specific zoning. Environmental impacts. Occupation. Sustainable
social and economic development.

Adir Ubaldo Rech é Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa – Portugal. Doutor e Mestre pela Universidade
Federal do Paraná – UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Direito pela Universidade
de Caxias do Sul – UCS. Advogado. E-mail: aurech@gmail.com
Karine Grassi é Mestranda em Direito pela UCS. Bolsista CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental
na Sociedade de Risco – GPDA-UFSC/CNPq. E-mail: karinegmalinverni@gmail.com

1
O presente texto foi apresentado no XII Encontro Sobre os Aspectos Econômicos e Sociais da Região
Nordeste.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.85-96 jan./jun. 2012


Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 85
1 INTRODUÇÃO
Muito se tem falado sobre planejamento e políticas públicas voltadas ao
desenvolvimento do turismo, mas muito pouco tem feito o Poder Público de concreto
nesse sentido, ficando muito mais a cargo da iniciativa privada, que o faz sem
diretrizes, sem critérios, sem normas e sem segurança jurídica relativamente a seus
investimentos. Efetivamente o turismo é um negócio lucrativo, mas também é um
instrumento de construção da dignidade, de renda, de empregos e de desenvolvimento
socioambientalmente sustentável. O papel do Poder Público é mais no sentido de
coordenar políticas, mediante diretrizes e normas efetivas que motivem e materializem
o planejamento de políticas públicas de desenvolvimento do turismo, no espaço e no
tempo de forma permanente.
Ocorre que a iniciativa privada é motivada pela segurança dos investimentos, pela
certeza do lucro e com base no princípio da livre iniciativa, enquanto o Poder Público,
para incrementar políticas públicas de turismo, está obrigatoriamente vinculado à lei, na
forma como dispõe o art. 37 da CF/88. Mas a responsabilidade pela transposição da lei
para a concretização das políticas públicas de turismo é tarefa que deve ser compartilhada
por ambos.
Fensterseifer reconhece que:

[...] incumbe ao Estado, por sua vez, à luz da perspectiva organizacional


e procedimental do direito fundamental ao ambiente, criar instituições e
procedimentos administrativos e judiciais adequados. No entanto, para que tais
valores constitucionais sejam implementados, deve-se transportá-los do universo
cultural para espaço político e jurídico, depositando tal responsabilidade de
“transposição” a cargo não apenas do Estado, mas também dos atores privados.2

Na realidade, o Poder Público não tem coordenado nem organizado procedimentos


efetivos e tampouco executado políticas públicas de desenvolvimento do turismo
socioambientalmente sustentáveis, como se pode concluir após a leitura desta reflexão
jurídica.

2 DA LEGISLAÇÃO EXISTENTE E DA FALTA


DE ZONEAMENTO DE LOCAIS E ÁREAS
DE INTERESSE TURÍSTICO
Verifica-se que a CF/88 estabelece no seu art. 180 que é competência da União, dos
Estados e dos Municípios promover e incentivar o turismo como fator de desenvolvimento

2
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008. p.123-124.

86 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


social e econômico. Almeida et.al. explicam que a autonomia municipal, inclusive, é uma
das características nucleares da nossa Carta Magna, assim como prevê o atendimento dos
assuntos de interesse locais através de aspectos administrativo, político e legislativo3.
A Lei Federal 11.771/2008 regulamenta a Política Nacional do Turismo, sendo
que a Lei Federal 6.513/1977 fixa normas gerais sobre a criação de áreas especiais e de
locais de interesse turístico. Ambas as leis são normas gerais que vinculam as políticas
públicas de turismo das diferentes esferas federativas, mas não obrigam a nada, pois
cada esfera tem autonomia, e as referidas leis não localizam, especificamente, nenhum
espaço e tampouco estabelecem normas de ocupação para esses, como, por exemplo, as
atividades que neles podem ser desenvolvidas. O desenvolvimento do turismo fica apenas
na intenção da lei, não se materializando em lugar algum.
O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, através da Lei Estadual 8.108, de
19 de dezembro de 1985, fixou diretrizes para a criação de áreas especiais e locais de
interesse turístico, definindo, no seu art. 2º, como locais de interesse turístico, as paisagens
notáveis, as localidades que apresentam condições climáticas favoráveis, os bens de valor
histórico, artístico e arqueológico, e as manifestações religiosas e culturais.
Ocorre que isso soa genérico, indefinido, pois o Estado não tem um zoneamento
territorial turístico e, por isso, não fixa normas específicas de proteção, preservação,
ocupação e incentivo a nenhum espaço. O Estado faz de conta que tutela as áreas e
locais de interesse turístico, mas, apesar das leis, os melhores locais e áreas de interesse
turístico estão sendo degradadas, descaracterizadas e ocupadas sem nenhuma preocupação
socioambiental.
Não há dúvida que as áreas e locais de interesse turístico são espaços que exigem
preocupação com o meio ambiente natural e com o criado e sobre os quais o Estado pode
propiciar, incentivar e assegurar o desenvolvimento do turismo, instrumento valioso de
construção da dignidade e crescimento humano social e econômico, com efetiva qualidade
de vida de forma sustentável.
Nesse sentido, afirma Sarlet:

Estado Socioambiental de Direito, longe de ser um Estado “Mínimo”, é um Estado


regulador da atividade econômica, capaz de dirigi-la e ajustá-la aos valores e
princípios constitucionais, objetivando o desenvolvimento humano e social de
forma ambiental sustentável. O princípio do desenvolvimento sustentável expresso
no art. 170 (inciso VI) da CF88, confrontando com o direito de propriedade privada
e a livre iniciativa (caput e inciso II do art. 170), também se presta a desmitificar a
perspectiva de um capitalismo liberal-individualista em favor de sua leitura à luz
dos valores e princípios constitucionais socioambientais.4

3
ALMEIDA, Josimar Ribeiro et al. Planejamento ambiental:caminho para participação popular e gestão ambiental
para nosso futuro comum: uma necessidade, um desafio. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex Editora e Biblioteca Estácio
de Sá, 1999. p.131.
4
SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p.22.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 87


Na realidade, apesar do ordenamento jurídico existente, que propicia a
preservação, conservação e criação de espaços de interesse turístico, em termos de
turismo, nada acontece de concreto, e tudo o que acontece é improvisado, pois tudo
o que sucede ou vem a suceder deveria estar regulamentado nas normas de ocupação
desses espaços. Não é diferente, pois, essa situação em todos os demais estados da
Federação.
A CF/88, no que se refere às competências federativas, no seu art. 30, preceitua
que compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local, bem como
suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, sendo que o art. 182
atribui aos municípios à execução de políticas de ocupação do território, dispositivo
regulamentado pelo Estatuto da Cidade que ordena a elaboração de Plano Diretor em
todo o território do município, quer na área urbana, quer na rural.
A própria legislação federal e a estadual, que dizem respeito à definição
de espaços especiais e locais de interesse turístico, têm um caráter geral, isto é,
não definem, especificamente, nenhum espaço, deixando, portanto, a critério dos
municípios, fato que se verifica, em regra, em todos os estados do Brasil. Portanto,
os municípios não fazem corretamente o “dever de casa”.
As questões-chave são: Como fazer e o que fazer?

3 O PLANO DIRETOR MUNICIPAL E


O DESENVOLVIMENTO DO TURISMO
SOCIOAMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL:
AS CIDADES GAÚCHAS DE BENTO GONÇALVES
E GRAMADO
Primeiramente, o instrumento jurídico para planejamento urbano e rural, bem
como a definição, ou o zoneamento, dos espaços e locais de interesse turístico,
conforme já mencionado, é o Plano Diretor Municipal. Não há como se incrementar
o desenvolvimento do turismo, simplesmente criando-se leis e políticas públicas de
turismo local, sem que isso seja concretizado, através do planejamento da ocupação
dos espaços, quer aproveitando e preservando as potencialidades ambientais naturais
ou criadas, quer propiciando infraestruturas adequadas e socioambientalmente
sustentáveis.
Ocorre que os Planos Diretores Municipais não estabelecem zoneamentos
especiais para o desenvolvimento do turismo, não regulamentando a forma de
ocupação, as atividades permitidas e proibidas, a preservação e conservação do
meio ambiente natural e do criado, a proteção dos patrimônios histórico, cultural,
artístico, arquitetônico, paisagístico e arqueológico. Também não definem os índices
construtivos compatíveis e a adequada acessibilidade aos espaços e locais turísticos,
assim como não incentivam ou restringem atividades econômicas, evitando impactos

88 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


ambientais que possam degradar as próprias belezas e potencialidades naturais
desses espaços.5
Magalhães explica que, a partir de encontros e conferências mundiais, a Organização
Mundial de Turismo – OMT6 – estabeleceu orientações para o desenvolvimento do turismo
sustentável, quais sejam:

Antes de dar início a qualquer projeto turístico, devem ser efetuadas análises
econômicas, sociais e ambientais, dando uma especial atenção aos diversos tipos
de desenvolvimento do turismo e às formas de vida e questões ambientais; as
organizações, empresas, grupos e indivíduos devem seguir princípios éticos e
outros que respeitam a cultura e o ambiente da área anfitriã, o modo de vida e o
comportamento tradicional da comunidade, os padrões de liderança e política;
o turismo dever ser planejado e gerido de forma sustentável, tendo em conta
a proteção e a utilização econômica adequada do ambiente natural e humano
das áreas anfitriã; durante todas as fases do desenvolvimento e operação do
turismo, deve ser preparado um programa de avaliação, supervisão e mediação
cuidadoso que possa permitir à população local tirar partido das oportunidades
ou adaptar-se às alterações7.

Contudo, os munícipios que de alguma forma estimulam o desenvolvimento do


turismo, ignoram esses princípios no momento da organização do local destinado à
atividade. Nesse sentido, esclarece Magalhães que há um descaso da administração pública
local, principalmente quanto se tratam de problemas criados pelo turismo, acabando
por beneficiar poucos empresários, os quais agem, muitas vezes, consoante critérios e
interesses próprios, sem cautela com o social e o ambiental.8
A definição do zoneamento de áreas e locais de desenvolvimento do turismo deve
ser precedida de um diagnóstico específico das potencialidades naturais e criadas e de um
prognóstico criativo de profissionais do Direito, de urbanismo e de turismo, devidamente
qualificados, pois se trata de uma construção epistêmica. Além disso, cada município tem
suas características, peculiaridades e potencialidades próprias.
Apesar da existência do Programa Nacional da Municipalização do Turismo
(PNMT) – que objetiva, em linhas gerais, o fortalecimento do papel do munícipio no
turismo (sustentável nos níveis social, econômico e ambiental) através das diretrizes
fornecidas nos “Cadernos de Turismo”9 – poucas são as cidades que utilizam dessa política,
ou que fazem uso do instrumento de zoneamento para fins de turismo.

5
Pesquisa realizada pelo coautor, tendo como amostragem 100 municípios brasileiros. Projeto desenvolvido pela
Universidade de Caxias do Sul e publicado no livro: RECH, Adir Ubaldo. Direito Urbanístico: fundamentos para a
construção de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. 286p.
6
Cf. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DEL TURISMO – OMT. Guía para administraciones locales: dessarrollo turístico
sostenible. Madrid: OMT, 1999. 221p.
7
MAGALHÃES, Cláudia Freitas. Diretrizes para o turismo sustrentável em municípios. São Paulo: Roca, 2002. p.88.89.
8
Ib. Idem. p.89.
9
Vide BRASIL. Ministério do Turismo. Coordenação Geral de Regionalização. Programa de Regionalização do
Turismo – Roteiros do Brasil: Ação Municipal para a Regionalização do Turismo. Brasília, 2007. 61p.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 89


Para exemplificar a necessidade de zoneamento de locais e áreas de interesse
turístico trazem-se algumas situações concretas, que mostram que o planejamento dos
espaços resultou em significativo resultado. É o caso do Vale dos Vinhedos, Município de
Bento Gonçalves/RS que, cumprindo o que estabelece a CF/88 de promover e incentivar
o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico, planejou a ocupação das
potencialidades naturais da área do vale, criando um zoneamento específico no Plano
Diretor Municipal, cujo sucesso e reconhecimento são internacionais.
O Plano Diretor Municipal de Bento Gonçalves define o Vale dos Vinhedos como
zoneamento especial de vitivinicultura. Protege, incentiva e prioriza a cultura da uva,
permitindo que as outras culturas tenham apenas caráter complementar e de sustento.
Vale-se da paisagem natural estabelecendo regras de proteção e fixando atividades
permitidas, como hotéis, cantinas, restaurantes, produção de vinhos, etc., aproveitando
tudo para incentivar e incrementar o desenvolvimento do turismo.
É importante salientar que o turismo acontece em espaços com potencialidades
naturais ou criadas, e o ambiente turístico criado decorre do planejamento desses espaços
naturais. O planejamento consiste, na realidade, em definir a forma de ocupação, a
preservação e conservação desses espaços e o incremento de estruturas e atividades a
ele direcionadas.
Assim dispõe o Plano Diretor Municipal de Bento Gonçalves10 em seu art. 164:

Art. 164. Distrito do Vale dos Vinhedos tem como vocação natural consolidada,
a vitivinicultura, cuja cultura, ocupação do solo e paisagem ficam protegidas na
forma desta lei.

Nesse sentido, Rech, ao fazer referência ao Plano Diretor de Bento Gonçalves, afirma:

O Novo Plano Diretor de Bento Gonçalves, por exemplo, criou zoneamentos rurais
diversificados, como é o caso do Vale dos Vinhedos, nacionalmente conhecido,
buscando combinar o manuseio e a ocupação do solo com o desenvolvimento de
determinado setor da economia, no caso, a vitivinicultura. Além disso, incentiva
o desenvolvimento de serviços como comércio de produtos coloniais, hotéis e
áreas de lazer, buscando incrementar o turismo como fator de desenvolvimento da
atividade econômica naturalmente desenvolvida pelos colonizadores italianos, na
área rural. Definiu que no Vale dos Vinhedos, a videira é cultura prioritária, sendo
o cultivo das demais culturas apenas complementares e de sustento. 11

10
Lei Complementar Municipal 103, de 26 de outubro de 2006.
11
RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos nas cidades: um fato cuja solução também passa pelo Direito
como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul: Educs, 2007.

90 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Fica evidente que o desenvolvimento do turismo no Vale dos Vinhedos (Bento
Gonçalves) não decorre do simples fato de existir legislação que define a necessidade de
políticas públicas de turismo, mas concretamente se dá por meio de normas cogentes de
definição de um zoneamento específico, regrando a ocupação, a preservação e a conservação
dos espaços com potencialidades naturais, históricas, culturais e econômicas.
Há, na realidade, uma garantia jurídica para investimentos específicos na
vitivinicultura e no turismo no Vale dos Vinhedos, os quais se perpetuam no tempo e
no espaço.
A existência de legislação federal e estadual estabelecendo diretrizes ou políticas de
turismo, assim como a vontade política não são suficientes para garantir o desenvolvimento
do turismo, pois não se constituem, na prática, em políticas públicas de turismo, pois essas
prescindem de normas que localizem e regulamentem concretamente áreas especiais e
locais de interesse turístico, e, ao mesmo tempo, que vinculem a Administração Pública
e a iniciativa privada no que se refere à forma de ocupação, preservação ou conservação
desses locais ou áreas.
Outro exemplo é a cidade de Gramado/RS, onde todos os espaços têm regras de
ocupação e atividades direcionadas, que asseguram políticas públicas e privadas de
desenvolvimento do turismo. Da mesma forma, o bairro de Santa Felicidade, em Curitiba,
capital do Estado do Paraná, que, mesmo inserido no seio de uma cidade industrial,
aproveitou a localidade ocupada e com atividades desenvolvidas e preservadas pelos
imigrantes italianos, regrou e assegurou a continuidade da forma de ocupação e o tipo de
arquitetura, incentivou as atividades gastronômicas, etc. transformando o referido bairro
em área especial para o desenvolvimento do turismo.
As potencialidades de imensas áreas, como é o caso das existentes na Serra Gaúcha,
são um exemplo de espaço que necessita de zoneamento, pois tem, nos campos, uma
região de paisagens exuberantes e, em cada lugar, uma história diferente, contada por
pessoas diferentes, impregnadas de sentimentos e simbologias, que se confundem com
a paisagem, as comidas típicas, o misticismo, a hospitalidade, as rodas de chimarrão e
as tradições que encantam.
No caso do zoneamento dos campos naturais da Serra Gaúcha, é preciso que o
ordenamento jurídico do Plano Diretor tenha como princípio norteador, na solução de
qualquer conflito de norma, priorizar ou assegurar a preservação ambiental dos campos
naturais, a preservação de sua finalidade econômica e pastoril e a preservação de sua
paisagem notável de grande potencialidade turística. Sem isso, com o tempo, vão sendo
degradados o ambiente natural, o encanto e a beleza de uma das mais belas regiões do
Rio Grande do Sul, bem como a preservação de área ou local de interesse turístico, na
forma como dispõem a legislação federal e a estadual.
Assim, poderiam ser referidas dezenas de outros locais deste imenso Brasil, em que,
apesar da existência de legislação nacional e estadual e de políticas públicas de turismo,
nada acontece, senão a constante ocupação desordenada, a degradação ambiental e a
descaracterização da paisagem e das potencialidades turística.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 91


Isso ocorre exatamente porque nem o Estado e tampouco os Planos Diretores
municipais estabeleceram zoneamentos com regras de localização e ocupação dos
espaços, buscando incrementar atividades econômicas especificas de desenvolvimento
do turismo sustentável.
O zoneamento é o principal instrumento de planejamento de políticas públicas de
turismo, pois consiste em repartir o território de forma a contemplar tipos de atividades
ou políticas desejadas sobre determinado espaço, sem degradá-lo e descaraterizá-lo. O
turismo sempre acontece num determinado espaço e em decorrência das características
desse mesmo espaço.
Afirma Silva:

O zoneamento de uso do solo constitui um dos principais instrumentos do


planejamento urbanístico municipal. O zoneamento pode ser entendido como um
procedimento urbanístico ou de ocupação destinado a fixar os usos adequados para
as diversas áreas do solo municipal.12

O autor se refere ao solo municipal e acrescenta, citando texto da Associação


Internacional de Administradores Municipais “que o zoneamento serve para encontrar
lugar para todos os usos e potencialidades do solo, dos espaços e colocar cada coisa em
seu lugar adequado, inclusive, as atividades incômodas”.13
O zoneamento do turismo e de outras formas de ocupação e parcelamento do
solo com finalidades urbanas, cuja competência concreta e material é dos municípios, é
dispositivo calcado na legislação, na forma que prevê os arts. 30 e 182 da CF/88,14 cujas
normas de ocupação e expansão urbana, que devem englobar as áreas urbana e rural,
conforme dispõe o art. 40 do Estatuto da Cidade,15 tem como instrumento local o Plano
Diretor Municipal.
O Estatuto da Cidade reza que o Plano Diretor definirá a função social da propriedade
no que se refere à sua ocupação para atividades urbanas,16 o que implica zoneamento.
Silva, ao fazer referência ao regime jurídico do zoneamento, afirma que “trata-se de
legítima restrição ao direito de propriedade e ao direito de construir, estabelecendo o
planejamento da ocupação dos espaços, com vistas às mais diversas políticas públicas”.17
Além de o zoneamento das formas de ocupação de todo o território do município ser

12
SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.241.
13
Ibid., p.306.
14
“Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; II – suplementar a legislação
federal e a estadual no que couber.” [...]. “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objeto ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”
15
“Art. 40. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e
expansão urbana. § 2o. O Plano Diretor englobará o território do Município como um todo.”
16
“Art. 2°. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana.” [...].
17
SILVA, Op. cit., p.249.

92 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


de competência local, o desenvolvimento do turismo é uma política pública de caráter
urbano, mesmo que possa se desenvolver na área rural.
Efetivamente, a proteção do patrimônio natural e criado, na forma prevista no
art. 2° do Estatuto da Cidade,18 constitui a base de toda política de desenvolvimento do
turismo. Por isso, exige uma maior atenção por parte da Administração Pública, bem
como desperta grande interesse da iniciativa privada, tendo em conta que é um fenômeno
social, mas, fundamentalmente, uma atividade econômica sustentável que muito tem
crescido nas últimas décadas.
Em sua modalidade urbana ou rural, é concebido como uma apropriação do espaço
típico para atividades turísticas. Essas atividades têm hoje, especialmente, lugar no
campo, originando transformações naturais, espaciais e culturais, bem como permitem a
abordagem geográfica para a compreensão de mecanismos processuais desse segmento
turístico.
Paralelamente à função mercadológica na prática do turismo e, devido às mudanças
trazidas pelo Estatuto da Cidade, no sentido de uma nova forma de concepção dos espaços
urbano e rural, denotando o fortalecimento da relação cidade/campo e o planejamento
da ocupação, por parte dos municípios de ambas as áreas, consolida-se a inter-relação
entre esses dois espaços. Verifica-se, apesar da resistência de velhas formas de produção
e a permanência da cultura rural, a existência de relações de complementaridade, que
se caracterizam por uma articulação entre tais espaços, seja na esfera tecnológica, na
cultural, seja na produtiva.
Silva afirma:

O espaço rural não só deixa de ser um espaço monofuncional, estritamente ligado


às atividades primárias, mas também ligado às novas configurações espaciais do
processo de globalização da economia. O meio rural ganhou, por assim dizer,
novas funções e novos tipos de ocupações: propiciar lazer, descanso e práticas
turísticas; moradia para empreendedores e trabalhadores rurais, função turística,
além de promover preservação e conservação do meio ambiente humano e
natural.19

O continente Europeu, de modo geral, representa um exemplo de ocupação de áreas


para o turismo, tanto dos espaços urbanos quanto dos espaços rurais, e da necessidade de
definir normas cogentes de ocupação, buscando evitar a descaracterização dos espaços
naturais, históricos, culturais, religiosos e econômicos. Swarbrooke exemplifica o turismo
rural na França, que é desenvolvido desde os anos 50, inclusive com práticas harmoniosas
com o meio ambiente. O autor cita como empreendimentos bem sucedidos, com incentivo

18
“Art. 2°. [...] inciso XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio
cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.”
19
SILVA, A. M. Os caminhos do turismo em espaço rural goiano. Revista da UFG, v. 7, n. 1, jun. 2004. Disponível
em: <www.proec.ufg.br>. Acesso em: 21 set. 2011.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 93


do poder público, as pousadas, museus ecológicos, alimentos e bebidas tradicionais,
fazendas-albergues, dentre outros20. Já no âmbito urbano, o autor faz referência ao papel
positivo que constitui, para as pequenas e grandes cidades, o desenvolvimento de eventos
e festivais tradicionais, citando conhecidos exemplos, tais como: o Festival de Edimburgo,
na Escócia; o Festival das Ostras, na Irlanda; o Festival da Baleia, na Islândia21.
Fica evidente que, devido às transformações na política, na economia e no âmbito
social, vislumbram-se uma nova sociedade e novos estilos de vida, de lazer e de atividades
econômicas que exigem, urgentemente, regras de conservação e preservação das nossas
potencialidades geográficas e da identidade, elementos que nos tornam diferentes e que
são buscados pelos turistas.
O novo estilo e a qualidade de vida ganham importância dentro do “status
profissional”, e as inovações nos setores das comunicações e dos transportes tornam
possível a globalização e mudam completamente as noções relativas, criadas pelas
distâncias físicas já conhecidas, facilitando a atividade turística.
A industrialização nos torna iguais na ocupação dos espaços, e o único elemento
que nos resta para sermos diferentes, para que possamos atrair o turista é a preservação da
história, das paisagens, da arquitetura, da cultura, do meio ambiente, em fim dos espaços
com potencial para o desenvolvimento do turismo. A necessidade de lazer e a qualidade
de vida, associadas ao crescente poder aquisitivo, levam o cidadão a buscar (comprar)
o prazer nas paisagens naturais, no contato com a natureza pouco transformada e no
retorno às antigas formas de produção, similarmente a qualquer mercadoria que precisa
ser consumida.
Vale lembrar o importante papel da “Cidade de Cultura Européia”, criada pela
União Européia. Ao estabelecer o programa, explica Swarbrooke, desde os anos 80 uma
cidade é escolhida – sem deixar de lado as cidades menores – e, através de investimentos
financeiros da própria União Européia, dos governos nacionais e entidades privadas,
desenvolve seu potencial para o turismo com eventos, feiras, conceitos e outras atividades,
tanto tradicionais como alternativas.22
Na perspectiva brasileira, a melhor e mais efetiva forma de planejar políticas de
desenvolvimento do turismo é voltar-se à perspectiva espacial, cujas regras gerais podem
ser estabelecidas por lei federal, cabendo aos Estados legislar subsidiariamente sobre os
espaços de interesse regional. Não obstante, consoante dispõem a CF/88 e o Estatuto da
Cidade, a competência material é dos municípios, tanto na área urbana quanto na área
rural.
Ignorar isso, ou seja, a necessidade de planejar, através do Plano Diretor Municipal,
espaços prioritários para o incremento do turismo, mediante zoneamentos específicos,
estabelecendo normas de ocupação do solo, bem como de atividades permitidas ou

20
SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: setor público e cenários geográficos. 2 ed. Tradução de Esther
Eva Horovitz. São Paulo: Aleph, 2000, p.22-25.
21
Ibid., p.43-44.
22
SWARBROOKE. Op.cit. p.48-49.

94 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


proibidas, é deixar o trem do desenvolvimento do turismo socioambientalmente
sustentável passar, para, depois, amargar anos de atraso.

4 CONCLUSÃO
O turismo, como qualquer outra atividade social e econômica se dá em um
determinado espaço. A Constituição e a legislação infraconstitucional federal e estadual
estabelecem diretrizes e normas gerais de políticas públicas sobre o desenvolvimento do
turismo, porém não são materializados, de forma efetiva, o zoneamento das áreas e dos
locais de potencial interesse turístico, tampouco são delimitadas a forma de ocupação ou
as atividades permitidas nesses espaços, com vistas ao desenvolvimento de um turismo
socioambientalmente sustentável.
O que se vê em nosso país, parafraseando Magalhães, são projetos mirabolantes e
inconsequentes nos órgãos de planejamento do turismo, pois não existe cautela em verificar
as peculiaridades de cada cidade e suas potencialidades, tampouco preocupação com os
recursos naturais e as comunidades locais23. As cidades gaúchas de Bento Gonçalves e
Gramado são exemplos raros da utilização adequada do espaço urbano e rural para o
turismo socioambientalmente sustentável.
Desta feita, não ficam asseguradas políticas públicas permanentes que vinculem
a administração pública ao problema em tela, e que deem segurança jurídica aos
investimentos da iniciativa privada. A única forma de tornar obrigatório, duradouro e
seguro o desenvolvimento do turismo, em um determinado local ou área, é mediante
o zoneamento. Estes, nos seus aspectos gerais e regionais, podem ser definidos,
respectivamente, por lei federal ou estadual, mas cuja competência material é efetivamente
dos municípios, tanto na área urbana quanto na área rural, através dos Planos Diretores
de cada município.

REFERÊNCIAS
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popular e gestão ambiental para nosso futuro comum: uma necessidade, um desafio. 2.ed.
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sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/conteudo_

23
MAGALHÃES. Op. cit., p.156.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 95


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96 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Igualdade, liberdade e responsabilidade
convergentes à concepção humanista da vida
e da política em Ronald Dworkin
Eliseu Raphael Venturi

RESUMO
Neste artigo, o problema de fundo é o da investigação de sentidos do humanismo jurídico
atual, de modo que, em específico, neste momento, são abordados os sentidos e alguns movimentos
interpretativos de Ronald Dworkin a partir da noção de “ideal humanista”, por ele compreendida
como ponto de convergência da liberdade, da igualdade e da responsabilidade enquanto valores
políticos e cívicos que, ainda segundo Dworkin, junto a demais valores políticos e morais, devem
ser compreendidos holisticamente, tal como uma cúpula geodésica, formando uma estrutura
humanista, coerente à virtude da integridade do direito. O humanismo ético é entendido pelo
autor enquanto individualismo ético determinante do valor associado à vida humana, e a partir
desta cosmovisão político-jurídica pretende-se estabelecer alguns elementos do pensamento deste
filósofo e que podem auxiliar na compreensão maior das dimensões de um humanismo jurídico
na contemporaneidade, marcado pelas categorias de direitos subjetivos humanos, fundamentais e
da personalidade, assim como demais regras e princípios tuitivos.
Palavras-chave: Humanismo. Virtude política. Integridade. Hermenêutica. Ronald
Dworkin.

Equality, freedom and responsibility converging at the life’s and


policy’s humanist conception on Ronald Dworkin

ABSTRACT
At this article, the fundamental problem is the investigation of current legal sense of
humanism, so that, in particular, at this point, the senses are addressed at some interpretive
movements Ronald’s Dworkin from the notion of “humanist ideal,” that he understood as a point
of convergence of liberty, equality and responsibility as civic and political values which, along with
other political and moral values, must be understood holistically, as a geodesic dome, forming a
structure humanist because of the consistent integrity of law. The “ethical humanism” is understood,
by the author, as a determinant of ethical individualism, associated value to human life. From this
politic-legal worldview, is possible to establish some elements of this philosopher’s thought and that
can help in better understanding of the dimensions of a legal humanism in contemporary, marked
by the categories of subjective and human rights, also by fundamental and personality rights, as
well as other rules and tuitive principles.
Keywords: Humanism. Political virtue. Integrity. Hermeneutics. Ronald Dworkin.

Eliseu Raphael Venturi é Mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná (ESMAFE-PR). Advogado.
Contato: eliseurventuri@gmail.com

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.97-108 jan./jun. 2012


Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 97
1 INTRODUÇÃO
Com a ordem constitucional de 1988, marco absoluto regulador da interpretação
do direito, em termos de direito positivo, sem prejuízo dos debates anteriores do
constitucionalismo, mas desta vez com um forte assento institucional e teórico de
intensa tônica e apreço democráticos, sintonizado com o direito internacional dos
direitos humanos e com os desafios hipercomplexos das sociedades contemporâneas, os
arranjos de liberdade, de igualdade e de responsabilidade apresentam-se como problemas
filosóficos de raiz, incumbindo o pensamento jurídico com as questões políticas, com
as morais e com as preocupações de efetividade de todo um sistema jurídico articulado
em torno de princípios como o da dignidade da pessoa humana.
Aportes da teoria geral do direito e da filosofia do direito, ante tal cenário,
mostraram-se, na construção democrática decorrida das últimas décadas, imprescindíveis
para a construção interpretativa dos problemas jurídicos, sempre tendo por base o
atendimento das razões do direito, insculpidas pelo corpo principiológico e, sobretudo,
de construção interpretativo-argumentativa, prática discursiva de compreensão da
realidade e de sua alteração prática.
O objetivo deste artigo, no contexto acima delimitado, é o de debater algumas
ideias do modo de compreensão dworkiniano para enfrentamento de questões jurídicas
e políticas, intrincadas no processo decisório, especialmente o jurisprudencial. Ao longo
de seus textos, o autor lança afirmativas sobre sua cosmovisão, em especial no sentido
moral, jurídico e político, assim como suas estratégias de pensamento, que podem
auxiliar no entendimento do modo como procede para a construção de suas reflexões
políticas, jurídicas e morais.
Para Dworkin, convergem, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade, a um
mesmo ideal humanista, nas linhas de um humanismo ético – individualismo ético que
define o valor associado à vida humana (DWORKIN, 2010, p. 639).
A partir deste cerne toma-se como referencial o ideal humanista da vida e da
política, o qual estrutura arranjos de liberdade-igualdade-responsabilidade, assim
nominado o âmbito de pré-compreensão pelo autor (especificamente na obra “A
Virtude Soberana”), e que reflete elementos do humanismo cívico, base do pensamento
republicano moderno.
A partir dessa expressão, “ideal humanista”, pretende-se estabelecer, por meio
dos indícios dos textos do autor, o que poderia ser visualizado como um humanismo
dworkiniano, ou, ainda, em quê consistiria o humanismo nos usos deste autor. Este
artigo, portanto, insere-se em uma preocupação maior, sobre os sentidos do humanismo
jurídico atual.
Enfoca-se, por ora, mais o caráter hermenêutico de Dworkin, em especial, a
apreensão de estratégias de raciocínio e demonstração no enfrentamento de problemas
complexos, assim como a fluidez narrativa e filosófica da articulação argumentativa
deste pensador.

98 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Busca-se depreender – e, portanto, já se interpretando a obra o autor, sem
pretensões ou crença em uma leitura definitivamente objetiva – da tônica e verve
expressivas elementos que contribuam o desenvolvimento do pensamento e raciocínio
jurídicos, prático e teorético, puro e pragmático, mas, sobretudo, comprometido,
vinculado e consciente da responsabilidade interpretativa dos profissionais do direito
ante a riqueza principiológica, axiológica, emancipatória e protetora que se pode
construir em torno e a partir dos preceitos vigentes do ordenamento jurídico em suas
dimensões interna e internacional, reunidas sob a preocupação da tutela integral das
pessoas e da condição humana, preocupação própria do filósofo, posto suas discussões
sobre a vida, a vida boa e o bem-estar.
A obra de Ronald Dworkin reúne grandes aportes para se pensar os princípios
democrático e republicano na atualidade, assim como a densificação hermenêutica dos
direitos humanos, fundamentais e de personalidade ante casos práticos. A igualdade
como virtude soberana e a prescrição da igual consideração e respeito pelos cidadãos
representa um importante pressuposto nesse sentido, orientando pressupostos de
interpretação, possibilitando, igualmente, os sentidos de um humanismo jurídico
atual.

2 A CONCEPÇÃO DO DIREITO ENQUANTO


CONCEITO INTERPRETATIVO E COMO CORPO DE
ATITUDES INTERPRETATIVA, AUTORREFLEXIVA,
CONTESTADORA, CONSTRUTIVA E FRATERNA:
UM ESPAÇO HERMENÊUTICO FUNDAMENTAL
O pensamento de Ronald Dworkin, na estruturação de um modo próprio de
abordagem das relações entre os problemas jurídicos e a moralidade política precedente,
permite depreender algumas estratégias básicas de raciocínio e uma visão disciplinar
própria, que auxiliam no enfrentamento de questões jurídicas, em especial, no orbe
hermenêutico e de construção normativa com esteio axiológico.
O pensador norte-americano estrutura complexos estágios (semântico, teórico,
doutrinário, da decisão judicial) para verificar dimensões do fenômeno jurídico
(DWORKIN, 2010a), estabelecendo uma teoria geral do direito que considera o papel
da moral, de sorte a estabelecer elementos distintivos, em diferentes aportes teoréticos
(positivismos, realismos e pragmatismos, em especial), de sorte a se identificar padrões
de compreensão sobre o que é o direito, ou seja, sobre a concepção do que ele seja e seu
papel, o que se mostra determinante na interpretação feita, portanto, no jogo argumentativo
e na decisão final.
Assim, é fundamental considerar uma visão global sobre o que, afinal, para o autor,
pode ser tido como o campo do direito, ou seja, qual a visão geral dos traços diferenciais
do direito e como ele se vincula a um contexto próprio de práticas sociais. Para tanto,

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 99


pode-se valer das conclusões finais do autor em “O Império do Direito”, nas seguintes
linhas:

[...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada
qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos.
Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de
nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território,
o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais
de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente
em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É
uma atitude interpretativa e autorreflexiva, dirigida à política no mais amplo
sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável
por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os
princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O
caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel
criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das
decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que,
ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será
a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade,
no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar
o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao
passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos
unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e
convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para
as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter [grifou-
se] (DWORKIN, 2007, p. 492)

Desta sorte, pode-se perceber que, para o pensador, o direito não é definido senão
pensado no contexto das práticas sociais e jurídicas em que se realiza; o direito, pois,
não se encerra no texto vigente e nos vínculos institucionais, expandindo-se em diversas
atitudes dos intérpretes e, mais do que isso, consistindo em um próprio modo de se
posicionar ante a vida coletiva: pode-se afirmar que o direito é, com base nos textos e
nas instituições, uma atitude, e não se pode negligenciar tal atitude enfocando-se apenas
o texto e a instituição. Ademais, tal atitude não se encontra monopolizada por um agente
social em específico, mas antes espraiada pela coletividade, cada qual ao seu momento
realizando um tipo de prática e controle.
O trecho acima referenciado apresenta-se muito significativo à reflexão filosófica da
natureza do direito posto que, a partir de suas convicções, podem-se depreender práticas
democráticas, eixos axiológicos e projeções temporais do direito, compromissadas com
o pretérito, o presente e o futuro.
As concepções do autor admitem um espaço hermenêutico que supera o posto e
mesmo a restrição dos catálogos, listas ou poderes, assim como “pelo território, poder
ou processo”. Em termos hermenêuticos, trata-se de uma afirmação com força aberta,

100 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


no sentido de que ela permite visualizar diferentes construções possíveis a partir da
concepção de um direito enquanto atitude, ainda mais se pensada tendo por valor político
informativo a integridade.
O corpo de atitudes interpretativa, autorreflexiva, contestadora, construtiva e
fraterna do direito, abre o horizonte do intérprete à comunicação com os preceitos
políticos da comunidade, vinculando novamente o cidadão à participação da vida política,
reconhecendo nela o espaço de realização dos direitos, ao compasso de se ligar aos
compromissos públicos na renovação das práticas cotidianas.
Ademais, Dworkin, posta tal concepção do direito, reconhece o espaço criativo
do direito, realimentando a incidência e significação dos princípios jurídicos, na busca
pelas melhores interpretações, que podem ser dimensionadas não apenas pelo trabalho
dos intérpretes autorizados (juízes), mas também podem ser questionadas pelo cidadão
e pela opinião pública, em um espaço hermenêutico aberto.
Tanto assim que a atitude construtiva implica em um espírito interpretativo,
que se insere em um contexto de passado e futuro, comprometendo-se com ambos,
um enquanto tradição e outro enquanto horizonte da possível concretização, o que se
reafirma por meio da atitude fraterna, que reúne os diferentes projetos e interesses de
vida sob a noção de comunidade, indicando, assim, um espaço de comunicação e de
partilha de vida.
Por oportuno, Dworkin (2007, p. 477 e seguintes, no capítulo “o direito além do
direito”) fixou o direito enquanto um “conceito interpretativo”, ou seja, um daqueles
que “[...] nos estimulam a refletir sobre aquilo que é exigido por alguma prática que
elaboramos, bem como contestar tal constructo” (DWORKIN, 2010a, p. 17). Portanto,
um pensamento essencialmente reflexivo e discursivo, construtivo, orientado mais pelos
problemas do que pelas definições estanques e cabais.
Nesse sentido, mais uma vez, a coordenação do eixo temporal é importante se
considerar que o direito como integridade flui no momento presente, contatando o
passado e o futuro sem se reduzir, tal como no convencionalismo ou no pragmatismo,
a uma ou outra dimensão temporal, respectivamente, abarcando-se, pois, a doutrina e a
jurisdição no cerne de uma prática jurídica em que se buscam as “interpretações refinadas
concretas”.
Legislação e jurisdição configuram-se como pontos de interpretação, sempre
perpassados pelo crivo da equidade, da justiça e do devido processo legal como caracteres
de um julgamento interpretativo, e o trabalho se orienta para tornar “[...] o histórico
legal da comunidade política o melhor possível do ponto de vista da moral política”
(DWORKIN, 2007, p. 489).
A integridade do direito, assim, enquanto uma virtude política no contexto de uma
comunidade política (associação de princípios), faz com que a legitimação política se
insira na comunidade de pessoas livres, independentes e com espaços de divergência
sobre moral política e sabedoria (DWORKIN, 2007, p. 490).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 101


A visão conjuntiva dada pela integridade do direito é sintetizada pelo autor do
seguinte modo:

O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam


relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas
instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em
que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo,
combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro;
interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo
de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar
inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que
só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas
coisas e nenhuma delas. (DWORKIN, 2007, p. 271)

A decorrência desta virtude é o juiz enquanto autor e crítico de um romance em


cadeia no direito, em que o juiz, analogamente, “[...] destrinça as várias dimensões de
valor” (DWORKIN, 2007, p. 275) da obra de arte (poema ou peça, nos exemplos do
autor), mas que, ao mesmo tempo, “[...] introduz acréscimos na tradição que interpreta”
(DWORKIN, 2007, p. 275).
Considerando o plexo de possibilidades proporcionado pela concepção de
direito enquanto corpo de atitudes, assim como qualificado pela virtude política
da integridade, no item a seguir faz-se uma retomada dos sentidos do humanismo
em Dworkin, o que não pode subsistir sem o espaço fi losófi co-interpretativo
inicialmente pontuado.

3 O IDEAL E A ESTRUTURA HUMANISTAS NAS LINHAS


DA CONCEPÇÃO DO DIREITO: A FORTUNA AXIOLÓGICA
TUITIVA DO SER HUMANO EM COMUNIDADE
Partindo da assunção de que o direito possa ser compreendido como corpo de atitudes
(interpretativa, autorreflexiva, contestadora, construtiva e fraterna), transcendendo, sem
prescindir, das regras, princípios e instituições, podem-se verificar nos escritos de Dworkin
algumas linhas gerais do que ele nomina de estrutura ou ideal humanista.
O problema do humanismo jurídico se apresenta complexo na medida em que
sua polissemia ínsita remete aos mais diversos campos e momentos históricos, fixando
tanto escolas do pensamento jurídico na pré-modernidade quanto compreensões atuais
acerca de posicionamentos filosóficos sobre o direito1, abarcando-se concepções de
mundo em torno do tema2.

1
Para não inflacionar este artigo com o debate, realizou-se a síntese de sentidos sem quaisquer referências.
Contudo, como a questão é relevante para se fixar o objeto próprio do debate, podem ser citadas algumas
referências importantes para o sentido atual do humanismo, em especial em orbe constitucional, conforme Carlos
Ayres Britto em ‘O humanismo como categoria constitucional’.
2
O título provisório da dissertação do autor do artigo, ora em andamento, é: Weltanschauung humanista na
constitutividade do homo juridicus contemporâneo.

102 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Para este artigo, será adotado o sentido de humanismo jurídico enquanto apreço
pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pelos direitos humanos, fundamentais e
de personalidade, assim como na crença de um direito orientado à proteção e a promoção
do ser humano.
Portanto, a compreensão do homo juridicus enquanto construção dogmática do
direito, pensado em sua função antropológica e no papel de “técnica de humanização
das técnicas” (SUPIOT, 2007).
Neste sentido, é importante destacar o sentido explícito dado ao ideal humanista
por Dworkin em “A Virtude Soberana”, enquanto fundamento de moralidade crítica e
que coliga o individualismo ético à definição do valor “vida humana”, afirmando o valor
objetivo da importância e da responsabilidade referentes ao êxito (destino e realização
do potencial) das vidas humanas na comunidade política.

Minha própria moralidade crítica fundamenta-se em alguns ideais humanistas


éticos que chamo de individualismo ético e que definem o valor associado à vida
humana. O primeiro princípio afirma que é objetivamente importante que qualquer
vida humana, depois de iniciada, tenha êxito, em vez de fracassar – que o potencial
dessa vida se realize, em vez de desperdiçar-se –, e que isso é igual e objetivamente
importante no caso de cada vida humana. Digo ‘objetivamente’ importante para
salientar que o êxito da vida humana não é importante só para a própria pessoa ou
para os que lhe são próximos. Todos temos motivo para nos preocupar com o destino
de qualquer vida humana, mesmo que seja de um estranho, e de esperar que seja
uma vida bem-sucedida. O segundo princípio reconhece essa importância objetiva,
não obstante, insiste que essa pessoa – a pessoa em foco – tem uma responsabilidade
especial por todas as vidas, e que, devido a essa responsabilidade especial, ela tem
o direito de tomar decisões fundamentais que definam, para ela, o que seria uma
vida bem-sucedida. Se adotarmos esses dois princípios do individualismo ético
como guias fundamentais na construção de uma teoria da moralidade política, esta
será uma teoria igualitária, pois insistirá que o governo deve tratar a vida de cada
pessoa que governa como tendo grande e igual importância, e construir as suas
estruturas econômicas e outras estruturas e políticas com esse princípio igualitário
em mente. E também será uma teoria liberal, pois insistirá que o governo deve
finalmente deixar as pessoas livres para tomar decisões que definam os parâmetros
de êxito de suas próprias vidas. (DWORKIN, 2010c, p. 639)

Como se percebe, a compreensão dworkiniana abre plenos espaços à interpretação


construtiva e prospectiva tanto dos direitos humanos quanto dos fundamentais e de
personalidade, permitindo assim a integração de dimensões interpretativas de modo
coerente e coeso, com ressignificação múltipla dos valores políticos, democráticos,
comunitários e humanistas. A consideração pelo indivíduo não se reduz a individualismo
sem consciência das dimensões partilhadas e comunitárias, integrando a pessoa no
interesse recíproco de êxito das vidas individuais, soma.
Para Dworkin, a integração dos valores da filosofia política requer uma construção
interpretativa em que os conceitos interpretativos, após problematizados, possuam sentidos

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 103


que se conjuguem mutuamente, e é nesta coerência que se estabelecerá a totalidade da
moralidade política compartilhada.
Esta totalidade se articula na metáfora de uma cúpula geodésica, estrutura leve e
protetora, que se assenta em tetraedros encaixados em uma forma global esférica, integrada
e holística. A imagem proposta por Dworkin, assim, remete a conteúdos valorativos,
integrando inclusive a ética na formação da estrutura política da comunidade. Esta
coligação de fatores, para Dworkin, formaria uma estrutura humanista vasta, em que se
articula tanto o direito quanto a moral e a política.

A filosofia política que pretende compreender melhor os valores políticos deve


incorporar seu próprio trabalho nessa grande estrutura [nos termos do autor,
valores integrados compreendidos de modo holístico e interpretativo, segundo um
modelo de cúpula geodésica (p. 227)]. Deve almejar, primeiro, elaborar concepções
ou interpretações de cada um desses valores que fortaleçam os outros – por
exemplo, uma concepção de democracia que seja útil à igualdade e à liberdade, e
concepções de cada um desses outros valores que sejam úteis à democracia assim
concebida. Além disso, seu objetivo deve ser elaborar essas concepções políticas
como parte de uma estrutura de valor ainda mais inclusiva, que ligue a estrutura
política não apenas à moral em termos mais gerais, mas também à ética. Tudo
isso, sem dúvida, parece impossivelmente e, talvez, até mesmo desagradavelmente
holístico. Mas não vejo de que outra maneira os filósofos podem abordar a tarefa
de atribuir o máximo possível de sentido crítico a quaisquer segmentos dessa
vasta estrutura humanista, que dirá dela toda. Se compreendermos que essa tem
sido a responsabilidade coletiva dos filósofos ao longo do tempo, cada um de nós
perceberá melhor nossos próprios papéis individuais, periféricos e incrementais.
(DWORKIN, 2010a, p. 228) [Gifou-se].

Esta integração proposta, que representa uma fusão de horizontes hermenêuticos


dos mais diversos valores democráticos e jurídicos reciprocamente pensados, redunda
igualmente em um único ideal humanista que inspira toda a construção proposta pelo
filósofo.
Este modo de compreender, mais integrativo e cooperativo do que conflitual, na
interrelação dos valores políticos e jurídicos, reúne um único ideal, a partir do que se podem
coordenar valores tradicionalmente vistos como opositores, como é o caso da liberdade
e da igualdade. O ideal humanista informa, pois, uma conciliação destes, reunidos pelo
mesmo ideal, reverberando um norte hermenêutico necessário, por exemplo, para se
compreender a convivência de valores no texto constitucional, por exemplo.

De qualquer forma, meu argumento não pretende subordinar a liberdade à


igualdade, mas, pelo contrário, demonstrar que embora seja comum distinguirmos
essas duas virtudes nas discussões e nas análises políticas, elas expressam
mutuamente aspectos de um único ideal humanista. (DWORKIN, 2010c, p.
178). [Grifou-se]

104 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Tal concepção coloca os valores um em ordem de efetividade do outro, ao exemplo
da liberdade poder ser pensada como meio possível de redução da desigualdade, de
modo que o trabalho filosófico consiste justamente em coser estes elementos conceituais,
construindo a normatividade tendo por vistas a concreção efetiva de seus preceitos.

Imaginemos porém que a estratégia dos interesses não possa, afinal, ter êxito na
proteção de nossas liberdades fundamentais no real mundo real, como afirmei
que não poderia. Então, quem se sente atraído pela liberdade será tentado a uma
opção ainda mais radical. Podem encarar de maneira nova, e mais aguda, o ideal
humanista que aceita o princípio igualitário abstrato como requisito absoluto
do governo justo ou como qualificado apenas nos modos não relevantes para a
liberdade. Talvez devêssemos, afinal, tentar descobrir algum valor na liberdade
que a deixe imediatamente independente da igualdade e também das vantagens
que traz à vida de cada pessoa. Portanto, muito gira em torno de como a igualdade
de recursos responde a nossa nova pergunta. A liberdade pode encontrar um
compromisso adequado, no real mundo real, para reduzir a desigualdade nele
encontrada? (DWORKIN, 2010c, p. 239) [Grifou-se]

Ora, as categorias de direitos subjetivos trabalham justamente com o desafio dos


conceitos interpretativos.
Alguns exemplos da fortuna axiológica podem ser vistos, por exemplo, no orbe
dos direitos humanos, sem prejuízo, como veio se afirmando, dos direitos fundamentais
e de personalidade, que permitem similar leitura.
Deste modo, destaca-se a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que
estabelece os vínculos entre reconhecimento, estima, respeito, compromisso, consciência
e compreensão, ou seja, conceitos morais e hermenêuticos:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da


família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos da pessoa resultaram
em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de
um mundo em que as pessoas gozem de liberdade de palavra, crença e de liberdade
de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do homem comum;
[...]
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais
alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso. [Grifou-se]

A Declaração e Programa de Viena de 1993 insculpiu importantes marcos


hermenêuticos, seja por conferir a natureza jurídica dos direitos subjetivos, seja na medida

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 105


em que se fomenta a interpretação sistemática, com relação a demais conceitos políticos
fundamentais, interligando-se democracia, desenvolvimento, direitos e liberdades, em
concepção similar a de Ronald Dworkin:

5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e


inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de
forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora
particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim
como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados
promover e proteger todo os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam
quais forem os seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
[...]
8. A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente.
A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar
seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena
participação em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoção e
proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e
internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade internacional
deve apoiar o fortalecimento e a promoção de democracia e o desenvolvimento
e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro.
[Grifou-se]

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 também


prescreve importante elemento coesivo, em sua exposição de motivos:

Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem


moral, que apoiam os primeiros conceitualmente e os fundamentam.

Desta forma, o humanismo dworkiniano se apresenta como atitude do direito e modo


de construção da normatividade a partir de horizontes maiores, políticos e morais, da
comunidade política, que devem ser estabelecidos de modo recíproco e inter-relacionado,
fomentando o fortalecimento da mentalidade democrática e dos valores veiculados
com as preocupações das sociedades igualmente democráticas e centradas no valor da
pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da responsabilidade, envoltos em seus
desdobramentos e projeções. Os diplomas de direito internacional dos direitos humanos
corroboram esta visão por meio de suas recomendações hermenêuticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria dworkiniana, ou sua cosmovisão própria, embasada na noção de igualdade
enquanto virtude indispensável para haver a soberania democrática, permite, além de
pensar o humanismo jurídico atual, discutir com complexidade problemas igualmente

106 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


ricos em matizes, recorrendo-se aos mais diversos entrelaces argumentativos conceituais,
diferenciando-se, pois, pela própria estrutura e organização estrutural, da mera subsunção
dissertativa.
Como destaca o próprio filósofo, as virtudes políticas requerem o pensamento
conjunto em que uma concepção fortaleça a outra, em uma estrutura humanista
fortalecida, de implicações mútuas, ao modelo da cúpula geodésica, que congrega a
melhor sustentação com o emprego da estrutura mais leve e simples, e que é vocacionada
à proteção arquitetônica do que estiver dentro de si.
Com isso, pode-se visualizar no autor uma díade densidade teórica – aplicação
pragmática, o que indica o potencial transubstancial das categorias do pensamento
para a sua realização concreta, que passa efetivamente pela habilidade do intérprete-
argumentador em articular tais dimensões.
No pensamento de Dworkin, assim, o manejo dos conceitos interpretativos
(liberdade, igualdade, responsabilidade, democracia, direito, humanismo), que são
problemáticos em essência e que demandam o movimento do intérprete, é cabal para a
própria estrutura axiológica que, em último caso, é uma estrutura humanista, porque não
se desprende do valor intrínseco da vida humana, em todos os seus desdobramentos.
A atitude interpretativa se insere neste labor e esforço, posto que o sentido
de tais conceitos se fixa na prática argumentativa, estabelecendo compromissos e
esclarecendo propósitos, permitindo, ainda, verificar legitimidades de pleitos específicos,
contemporizando o espaço de divergências, sem o qual insubsiste a democracia.
O corpo de atitudes que constitui a concepção do direito, neste contexto,
permite os mais amplos manejos dos sentidos que se possa depreender dos direitos
humanos, fundamentais e de personalidade, fomentando, assim, interpretações jurídicas
comprometidas com a manutenção das vidas afirmadas e transformação das vidas negadas
(LUDWIG, 2006), conforme visto.
Deste sentido, podem-se depreender alguns dos préstimos filosóficos da teoria
dworkiniana, ainda que neste artigo brevemente explorada pelo interesse do sentido do
ideal e estrutura humanistas fornecidos pelo autor. A partir do modo de interpretação
sugerida pelo autor, é possível concatenar as relações recíprocas entre os valores, regras e
princípios jurídicos, assim como os políticos, formando uma compreensão da juridicidade
possível dos cenários problemáticos, orientando-se assim os entendimentos dos conceitos
interpretativos.
Diante do núcleo comum essencial de direitos humanos e liberdades fundamentais,
há diferentes rumos de interpretação dos diplomas, em especial as medidas que visam a
assegurar, promover e proteger a observância de tais preceitos.
Diante de um eixo básico de integração de direitos-deveres se têm como valores
internacionais os princípios da paz, igualdade, da liberdade e da dignidade, assim como
liberdade do temor e da miséria, em conjunto à plena e absoluta vedação de quaisquer
tratamentos cruéis, degradantes e desumanos e autodeterminação dos povos, a partir

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 107


do que se assentam os direitos à vida, à segurança, à liberdade, à não discriminação, à
identidade cultural, à nacionalidade, à propriedade, à honra, à vida privada, à alimentação,
à educação, ao trabalho, à remuneração digna, ao descanso, à moradia habitável, à fruição
e participação culturais, ao asilo político, ao célere atendimento dos serviços públicos,
à petição, ao devido processo, à previdência social, à saúde; e as liberdades de crença,
de pensamento, de associação, de trânsito, de investigação, opinião, expressão, criação.
O domo geodésico humanista, assim, que é expressão da integridade do direito,
fortalece-se pela função própria da cúpula, que é a de tutela do seu interior, no caso jurídico,
o ser humano, em todas as suas projeções individuais e coletivas, religado ao indispensável
contexto do meio ambiente e demais formas de vida, posto que o humanismo atual não
se reduz a antropocentrismo, mas sim a uma abordagem integrada. É a partir de leituras
em que se enfrente tal complexidade se pode identificar o âmbito de preocupações do
humanismo dworkiniano.

REFERÊNCIAS
BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte:
Fórum, 2007.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2.ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Original: A Matter of Principle, 1985).
______. O direito da liberdade. A leitura moral da constituição norte-americana. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Original: Freedom’s
Law, 1996).
______. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. (Original: Law’s Empire, 1986).
______. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. (Original: Life’s
Dominion, 1993).
______. A justiça de toga. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010a. (Original: Justice in Robes, 2006).
______. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3.ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010b. (Original: Taking Rights Seriously, 1977).
______. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões.
2.ed. WMF Martins Fontes, 2010c. (Original: Sovereign Virtue, 2000).
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação. Paradigmas da filosofia,
filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito, 2006.
SUPIOT, Alain. Homo juridicus. Ensaio sobre a função antropológica do Direito. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

108 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Democracia, garantismo e direitos
fundamentais: uma observação do papel
da jurisdição no garantismo de Ferrajoli
Isadora Ferreira Neves

RESUMO
O presente artigo objetiva a abordagem do papel que exerce a jurisdição no paradigma
teórico garantista proposto por Luigi Ferrajoli. O trabalho se inicia com a leitura do que Ferrajoli
entende por democracia, através dos seus conceitos e classificações, passando posteriormente à
abordagem da jurisdição e do garantismo, para problematizar a forma como essas definições estão
intrinsecamente relacionadas na construção do papel da atividade jurisdicional no paradigma
garantista. Primeiramente, faz-se de uma descrição geral da teoria de Ferrajoli, passando à sua
classificação do conceito de democracia irradiado entre democracia formal ou procedimental,
democracia substancial e democracia constitucional. Apresenta-se, ainda, a definição dada pelo
autor aos direitos fundamentais, no âmbito da teoria do direito, do direito positivo e da filosofia
política, compondo a esfera do indecidível, a ser tutelada pela atividade jurisdicional. O trabalho
objetiva, por fim, compreender como se forma o paradigma teórico garantista, abordando os seus
aspectos principais e enquadrando a jurisdição nesse contexto para refletir sobre as peculiaridades
da atividade jurisdicional com o advento do garantismo.
Palavras-chave: Garantismo. Jurisdição. Democracia.

Democracy, guarantism and fundamental rights: An observation


of the role of the jurisdiction under the Ferrajoli’s guarantism

ABSTRACT
This article seeks to understand the approach of the role that the jurisdiction exercises in the
theoretical guarantist paradigm proposed by Luigi Ferrajoli. This paper Begins with a reading of
what Ferrajoli understands as democracy, beyond its concepts and classification, passing after to
the approach of the jurisdiction and guarantism, to problematize the ways of how these definitions
are intrinsically related to the construction of the role of the jurisdictional activity in the guarantist
paradigm. First, it makes a general description of Ferrajoli’s Theory, through its classification of
the democracy concept irradiated between formal or procedural democracy, substantial democracy
and constitutional democracy. This paper presents the author’s definition of fundamental rights,
under the theory of law, positive law and political philosophy. The article seeks to understand how
the theoretical guarantist paradigm gains its forms, addressing the main aspects and placing the
jurisdiction in this context in order to ponder about the peculiarities of the jurisdiction activity with
the advent of the guarantism.
Keywords: Guarantism. Jurisdiction. Democracy.

Isadora Ferreira Neves é Mestranda em Direito Público pela UNISINOS, Especialista em Direito Público
pela FAINOR, Graduada em Direito pela UESC, Servidora do Ministério Público do Estado da Bahia. E-mail:
isadoraneves@gmail.com

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.109-123 jan./jun. 2012


Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 109
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva a abordagem do papel que exerce a jurisdição no
paradigma teórico garantista proposto por Luigi Ferrajoli. Para tanto, o trabalho inicia com
a leitura do que Ferrajoli entende por democracia, através de uma leitura dos seus conceitos
e classificações, passando posteriormente à abordagem da jurisdição e do garantismo,
para problematizar a forma como essas definições estão intrinsecamente relacionadas na
construção do papel da atividade jurisdicional no paradigma garantista.
Primeiramente, faz-se de uma descrição geral da teoria de Ferrajoli a partir
do prólogo de Miguel Carbonell à obra “Democracia y Garantismo”, passando à
sua classificação do conceito de democracia bipartido entre democracia formal ou
procedimental e democracia substancial. A primeira é regida pela vontade da maioria,
enquanto à democracia substancial é adicionada a preocupação com o conteúdo do que
é decidido, tanto na esfera pública quanto na esfera privada.
É a partir da sua classificação de democracia e da noção de democracia substancial
que Ferrajoli constrói o conceito de democracia constitucional, permeada por um
sistema de limites e vínculos às instituições públicas, vínculos esses dados pelos direitos
fundamentais positivados nas Constituições rígidas no constitucionalismo pós-guerra.
Apresenta-se, ainda, a definição dada pelo autor aos direitos fundamentais, no
âmbito da teoria do direito, do direito positivo e da filosofia política, para concluir que
os direitos fundamentais são direitos universais, indisponíveis e inalienáveis, que são
atribuídos diretamente pelas normas jurídicas a todos enquanto pessoas, quer se trate de
direitos negativos (direitos de liberdade) ou direitos positivos (direitos sociais). São os
direitos fundamentais que compõe a esfera do indecidível, a ser protegida pela atividade
jurisdicional.
O trabalho objetiva, por fim, compreender como se forma o paradigma teórico
garantista, abordando os seus aspectos principais e enquadrando a jurisdição nesse
contexto para refletir sobre as peculiaridades da atividade jurisdicional com o advento
do garantismo. Nesse contexto, cabe ao Judiciário uma função de destaque na tutela dos
direitos fundamentais e no controle do exercício legal dos poderes público, o que não se
confunde, todavia, com um Judiciário carente de limitações, uma vez que o sistema de
vínculos do paradigma garantista abrange todas as esferas estatais, alcançando também
a atividade jurisdicional.

2 DEMOCRACIA E GARANTISMO
Miguel Carbonell (2008, p.13-21), no prólogo à obra de Ferrajoli, afirma que
“Democracia y Garantismo” apresenta a trajetória teórica de Ferrajoli nos anos que vão
do lançamento da obra “Direito e Razão” até o lançamento de “Principia Iuris”. Manifesta
ainda a sua característica de ser um jurista prático, imerso na tarefa de observar o papel
dos juízes no Estado Constitucional de Direito e também a sua característica de ser um
cidadão cosmopolita militante (dedicado ao trabalho de articular uma sociedade civil
sem fronteiras).

110 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


A seleção dos textos demonstra que o itinerário intelectual de Ferrajoli se nutre de
uma sólida formação teórica. A arquitetura do edifício conceitual e analítico ferrajoliano
se baseia, contudo, na noção de democracia constitucional. Desta forma, é possível
perceber a sua transição desde o garantismo penal até a construção de um paradigma
completamente novo de teoria do direito e teoria da democracia, ou de teoria da democracia
constitucional, contemplando os direitos fundamentais e a divisão de poderes, ou seja,
trabalhando com a noção de democracia em sua dimensão substancial.
Carbonell (2008, p.14) destaca, ainda, a veia analítica de Ferrajoli, manifesta por
um rigor analítico no uso de uma lógica simbólica, presente principalmente no “Principia
Iuris”, dedicado à demonstração de fórmulas que axiomatizam a sua teoria do direito e
da democracia.
Como um jurista prático, Ferrajoli é ocupado em dar soluções concretas a problemas
igualmente concretos e, em particular, imerso na tarefa de configuração do papel dos
juízes no Estado Constitucional de Direito. Não se trata, entretanto, da defesa de uma
posição invasiva da jurisdição sobre a política. Pelo contrário, se trata de assegurar
âmbitos claramente diferenciados entre uma e outra: a política pode chegar até onde lhe
permite a Constituição, entendida como norma encarregada de delimitar o perímetro da
ferrajoliana esfera do indecidível.
A jurisdição, por sua vez, deve atuar de tal maneira que não sufoque a democracia
por excesso nem por omissão. O terceiro vetor que está presente na obre de Ferrajoli é
o de cidadão cosmopolita militante, profundamente dedicado a diversas articulações de
uma sociedade civil sem fronteiras.
Para Carbonell (2008, p.19), a veia de jurista cosmopolita firme na linha dos
princípios que Ferrajoli encarna de maneira exemplar é mais necessária do que nunca,
por acrescentar que a ciência jurídica é, no paradigma do Estado Constitucional, uma
espécie de metagarantia, uma vez que não tem uma função meramente contemplativa de
seu objeto de estudo, e sim contribui de forma decisiva para criá-lo.

2.1 A dimensão formal e a dimensão substancial da democracia


Para compreender o papel dos direitos fundamentais e da jurisdição na teoria
ferrajoliana é imprescindível que se entenda o que o autor conceitua como democracia,
classificada em sua dimensão formal e substancial.
Primeiramente, Ferrajoli (2008, p.76) recorda a concepção dominante de democracia,
segundo a qual esta seria um método de formação de decisões coletivas, ou um conjunto
das regras que atribuem ao povo (ou seja, à maioria) o poder de – diretamente ou através
de representantes – assumir decisões. A esta acepção Ferrajoli dá o nome de acepção
formal ou procedimental da definição de democracia.
A democracia em sua dimensão formal ou procedimental é concebida tendo como
base as formas e os procedimentos idôneos para garantir a vontade popular: tem como

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 111


fundamento o quem (povo e seus representantes) e o como (a regra da maioria) das suas
decisões, independentemente de seus conteúdos, quaisquer que eles sejam. Nesse sentido,
a hipótese de um sistema no qual se decidisse por maioria a supressão de uma minoria
seria, à luz desse critério, democrática (FERRAJOLI, 2008, p.76).
Ferrajoli (2008, p.77), porém, não descarta a compreensão formal da democracia,
pelo contrário: para ele, a dimensão formal expressa uma característica necessária, se trata
de uma conditio sine qua non, na ausência da qual não se pode falar em democracia. A
dimensão formal, contudo, não é suficiente para identificar todas as condições na presença
das quais um sistema político é qualificado como democrático.
Isso porque, para Ferrajoli (2008, p.77), a dimensão exclusivamente formal sofre
de duas aporias: a primeira é gerada pela incapacidade de tal concepção de dar conta das
atuais democracias constitucionais, enquanto a segunda se refere à própria sobrevivência
da democracia política.
Para o autor (FERRAJOLI, 2008, p.78), na ausência de limites de caráter
substancial, ou seja, de limites de conteúdo das decisões legítimas, uma democracia pode
não sobreviver, pois sempre será possível, em princípio, que os métodos democráticos
suprimam os próprios métodos democráticos.
Para comprovar estas aporias da democracia em sua versão exclusivamente formal
ou procedimental, o autor cita como exemplo as experiências do nazismo e do fascismo no
século passado, que conquistaram o poder em formas democráticas para então entregá-lo
democraticamente a um chefe que suprimiu a democracia. Sendo assim, o caráter formal
e procedimental da decisão por maioria não é suficiente nem no plano empírico (com
referência às atuais democracias constitucionais), nem no plano técnico. Ferrajoli (2008,
p.78) afirma, então, que um regime democrático requer, ao menos, que à maioria seja
negado o poder de suprimir o poder da própria maioria.
Essas contradições lógicas são apontadas para embasar a afirmação de que são
necessários traços substanciais para toda definição teórica de democracia dotada
de adequada capacidade explicativa. A democracia constitucional é, portanto, um
paradigma complexo que adiciona à dimensão formal uma dimensão substancial
da democracia, referente aos conteúdos ou à substância das decisões: aquilo que a
qualquer maioria está, por um lado, proibido e, por outro, lhe é obrigatório decidir
(FERRAJOLI, 2008, p.78).
Nesse sentido, o garantismo de Ferrajoli incorpora os direitos fundamentais
consistentes em expectativas negativas, cuja violação gera antinomias, bem como os
direitos fundamentais consistentes em expectativas positivas (é o caso dos direitos sociais)
que impõem vínculos ou obrigações e suja inobservância gera lacunas (FERRAJOLI,
2008, p.79-80).
Os direitos fundamentais são, para Ferrajoli, normas substanciais sobre a produção
de outras normas, uma vez que disciplinam não a forma, mas o significado das normas
produzidas, condicionando a validade e a coerência com as expectativas formuladas pelos
próprios direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2008, p.80).

112 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


É neste ponto que a classificação feita por Ferrajoli das dimensões da democracia
se entrelaça com a sua noção de esfera do indecidível, tema que ainda será tratado neste
trabalho. Ressalte-se, por ora, que o conjunto de normas substanciais circunscreve
a esfera do indecidível, determinada pelo conjunto dos direitos de liberdade e de
autonomia (enquanto expectativas negativas) e dos direitos sociais (enquanto expectativas
positivas).

2.2 A democracia constitucional


Do procedimento de reforma da Constituição, se confrontam duas concepções
de democracia: a democracia majoritária (ou plebiscitária) e a segunda concepção que
Ferrajoli denomina democracia constitucional.
A democracia em sua concepção plebiscitária consistiria na onipotência da maioria,
ou na ideia de soberania popular (FERRAJOLI, 2008, p.25). Desse paradigma surgem
algumas consequências: a desqualificação das regras e dos limites do Poder Executivo
que é expressão da maioria, bem como a ideia de que o consenso da maioria legitima
qualquer tipo de abuso.
Esta concepção leva ao rechaço do sistema de mediações, de limites, de contrapesos
e de controles que formam a substância daquilo que constitui o que o autor entende como
democracia constitucional. Uma conotação plebiscitária e antiparlamentarista da democracia
encontra sua expressão mais apropriada no presidencialismo, ou seja, na delegação a um
chefe assumido como expressão direta da soberania popular (FERRAJOLI, 2008, p.26).
Esta ideologia da maioria presente na cultura política italiana representa, por outro
lado, uma ideia antiga na história do pensamento político: a ideia de governo dos homens
contraposta à de governo das leis (FERRAJOLI, 2008, p.24). Tal concepção reflete ainda
uma ilusão que sempre volta a ser proposta em momentos de crise da democracia: basta
recordar a polêmica, no início dos anos trinta, entre Hans Kelsen, o maior jurista do nosso
século, e Carl Schimitt.1
Evidentemente, tal concepção da democracia como onipotência da maioria é
abertamente inconstitucional, já que a Constituição é justamente um sistema de limites
e vínculos a todo poder. Essa concepção tem uma inevitável conotação absolutista que,
cada vez mais, vem identificando-se para o senso comum como a ausência de regras e
limites à livre iniciativa (FERRAJOLI, 2008, p.26).
Está claro, portanto, que a democracia plebiscitária é incompatível com própria ideia
de Constituição, designando na verdade dois absolutismos convergentes: o dos poderes
políticos da maioria e o dos poderes econômicos do mercado.

1
Sobre o debate constitucional entre Kelsen e Schimitt na primeira metade do século XX acerca de quem deve ser
o Guardião da Constituição, ocasião em que Kelsen afirma que deve ser o Guardião um Tribunal Constitucional,
enquanto Schimitt, por outro lado, aponta que quem deve ser o Guardião é o Presidente do Reich, discussão
esta oriunda da interpretação dada aos arts. 19 e 48 da Constituição de Weimar, ver: KELSEN, Hans. Jurisdição
Constitucional. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007; SCHMITT, Carl. La defensa de la Constitución. Madrid:
Tecnos, 1983. 251 p.Título original: Der hüter der verfassung. Tübingen.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 113


Para Ferrajoli (2008, p.27), essência do constitucionalismo e do garantismo, ou seja,
daquilo que tem se chamado democracia constitucional, reside precisamente no conjunto
de limites impostos pelas constituições a todo poder, que postula em consequência uma
concepção de democracia como sistema frágil e complexo de separação e equilíbrio entre
poderes, de limites de forma e de substância a seu exercício, da garantia dos direitos
fundamentais e de técnicas de controle e de reparação contra suas violações.
Esta é a substância da democracia constitucional: o pacto de convivência baseado
na igualdade de direitos, no Estado Social – mais que liberal – de Direito, garantido pelas
Constituições, contendo obrigações para os legisladores, de cuja observância depende
a sua legitimação.
Uma data importante de transformação na estrutura do direito e na natureza da
democracia é certamente 1945, ou o quinquênio entre 1945 a 1949, período posterior à
derrota do nazismo e do fascismo. Compreende-se que o consenso das massas sobre o
qual estavam fundadas as ditaduras fascistas, de cunho majoritário, não pode ser a única
fonte de legitimação do poder. Revela-se, então, o significado da Constituição como um
limite ou vínculo aos poderes públicos (FERRAJOLI, 2008, p.28).
Redescobre-se, em nível não só estatal, mas também internacional, o valor da
Constituição como norma dirigida a garantir a divisão de poderes e direitos fundamentais
de todos, exatamente os princípios negados pelo fascismo.
Outro ponto relevante é o caráter rígido do constitucionalismo, ou a garantia
dessa rigidez. Tal aspecto tem como consequência a sujeição de todos os poderes ao
direito, inclusive o poder legislativo, no plano do direito interno e também do direito
internacional. A rigidez das Constituições significa o reconhecimento de que estas são
normas supraordenadas à legislação ordinária, através da previsão, por um lado, de
procedimentos especiais para a sua reforma, e, por outro, da instituição do controle
de constitucionalidade das leis por parte dos tribunais constitucionais (FERRAJOLI,
2008, p.29).
Essa rigidez se opõe à cultura anterior, e que as cartas constitucionais eram
consideradas apenas documentos políticos, tendo mesma força de leis ordinárias. O
legislador, ou na melhor das hipóteses o parlamento, era por sua vez concebido como
onipotente, em consequência da política cujo instrumento era o direito. Como resultado
de uma concepção formal e procedimental da democracia, identificada unicamente
como o poder do povo e com os procedimentos e mecanismos representativos dirigidos
a assegurar o poder da maioria.
Tudo isso muda radicalmente com a afirmação, ou com o reconhecimento, da
Constituição como norma suprema, à qual todas as outras normas estão rigidamente
subordinadas. Graças à garantia da rigidez constitucional, a legalidade muda de natureza:
não é só condicionante e disciplinante, mas ela mesma é condicionada e disciplinada por
vínculos jurídicos não só formais, mas também substanciais.

114 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Essa legalidade já não é mais produto do legislador, mas também um limite e vínculo
para o legislador. Daí que o direito resulta positivado não só em seu ser, ou seja, em sua
existência, mas também em seu dever ser, ou seja, em suas condições de validade. Não
é só positivado o “quem” e “como” das decisões, mas também o “que” não deve ser
decidido (no caso dos direitos de liberdade), ou deve ser decidido (a respeito da satisfação
dos direitos sociais).
Ferrajoli define esta concepção do direito como sistema ou paradigma garantista,
em oposição àquele paleo-positivista do Estado Liberal pré-constitucional (FERRAJOLI,
2008, p.30)
Precisamente neste “direito acima do direito” (FERRAJOLI, 2008, p.30), neste
sistema de normas metalegais destinadas aos poderes públicos e, sobretudo, ao legislador
consiste a constituição uma convenção democrática acerca do que é indecidível para
qualquer maioria, porque certas coisas não podem ser decididas e outras não podem não
ser decididas.
Há uma transformação na natureza da jurisdição e na relação o juiz e a lei, que já
não consiste, como no paradigma juspositivista, na sujeição à letra da lei sem importar
qual seja o seu significado, mas sobretudo na sujeição à constituição, que impõe ao juiz
a crítica das leis inválidas através da sua reinterpretação em sentido constitucional ou a
denúncia da sua inconstitucionalidade.
Transforma-se ainda o papel da ciência jurídica, que resulta investida de uma
função não somente descritiva, como no paradigma paleojuspositivista, lhe cabendo
uma crítica às antinomias e às lacunas da legislação vigente em respeito aos imperativos
constitucionais, projetando técnicas de garantias que são necessárias para superar aquelas
antinomias e lacunas. A própria natureza da democracia sofre mudanças. Com efeito,
a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais impõe obrigações e proibições
aos poderes públicos.
A democracia adquire, assim, uma dimensão substancial, que se agrega à tradicional
dimensão política, meramente formal ou procedimental. A história da Idade Moderna
nos faz recordar que o direito e a democracia são construções humanas: dependem da
política e da cultura, da força dos movimentos sociais e do empenho de cada um de nós
(FERRAJOLI, 2008, p.40).
Muda, finalmente, e como consequência de tudo que foi abordado, a relação
entre a política e o direito, dado que já não é o direito que se subordina à política como
instrumento, e sim a política se converte em instrumento de atuação do direito, submetida
aos limites impostos pelos princípios constitucionais: vínculos negativos, tais como os
gerados pelos direitos de liberdade, que não podem ser violados, e vínculos positivos,
tais como os gerados pelos direitos sociais que devem ser satisfeitos (FERRAJOLI,
2008, p.32).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 115


2.3 Os direitos fundamentais e a esfera do indecidível
A partir da definição de Ferrajoli de democracia formal ou procedimental,
democracia substancial e democracia constitucional, percebe-se o papel central que os
direitos fundamentais exercem em sua teoria. De fato, os direitos fundamentais são, para
este autor, aquilo que dá conteúdo à democracia como um sistema de controles e vínculos,
bem como aquilo cuja tutela é função primordial da atividade jurisdicional.
Para responder ao questionamento sobre o que são direitos fundamentais, Ferrajoli
(2008, p.42) admite que essa resposta possa enveredar por três correntes distintas:
primeiramente a resposta pode ser dada pela teoria do direito, em segundo lugar pelo
direito positivo e em terceiro pela filosofia política.
No plano da teoria do direito, a definição mais difundida dos direitos fundamentais é
a que os identifica com os direitos que são titularizados universalmente a todos enquanto
pessoas, ou enquanto cidadãos com capacidade de agir e que são, portanto, inalienáveis
e indisponíveis (FERRAJOLI, 2008, p.41).
No plano do direito positivo, são direitos fundamentais, no ordenamento
internacional, os direitos universais e indisponíveis estabelecidos na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948, nos tratados internacionais e nas demais convenções
internacionais sobre os direitos humanos.
A terceira resposta que pode ser dada à pergunta sobre o que sejam os direitos
fundamentais advém da filosofia política, que aprofunda a questão, questionando quais
os direitos que devem ser garantidos como fundamentais.
Para tanto, Ferrajoli (2008, p.43) esclarece que o primeiro dos critérios é o nexo
entre direitos humanos e paz, instituído no preâmbulo da Declaração Universal de 1948.
Devem estar garantidos como direitos fundamentais todos os direitos vitais cuja garantia
é condição necessária para a paz: o direito à vida e à integridade pessoal, os direitos
civis e políticos, os direitos de liberdade, mas também os direitos sociais necessários à
sobrevivência.
O segundo critério é o nexo entre os direitos e a igualdade, tanto no âmbito dos
direitos de liberdade quanto no âmbito dos direitos sociais, responsáveis por garantir
a redução das desigualdades econômicas e sociais. O terceiro critério se concentra no
papel dos direitos fundamentais como lei do mais fraco2, segundo o qual todos os direitos
fundamentais são leis do mais fraco, como alternativa à lei do mais forte.
Ferrajoli (2008, p.61) esclarece, então, qual o seu conceito de direitos fundamentais,
definindo-os como opostos aos direitos patrimoniais, sendo eles direitos universais,

2
Na tradução espanhola a expressão utilizada é “leyes del más débil”, neste trabalho traduzida como lei do mais
fraco. No texto original: “El tercer criterio es el papel de los derechos fundamentales como leyes del más débil.
Todos los derechos fundamentales son leyes del más débil como alternativa a la ley del más fuerte que regiría en
su ausencia: en primer lugar el derecho a la vida, contra la ley de quien es más fuerte físicamente; en segundo
lugar los derechos de inmunidad y de libertad, contra el arbitrio de quien es más fuerte políticamente; en tercer
lugar los derechos sociales, que son derechos a la supervivencia contra la ley de quien es más fuerte social y
económicamente” (FERRAJOLI, 2008, p.43-44).

116 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


indisponíveis e inalienáveis, que são atribuídos diretamente pelas normas jurídicas a todos
enquanto pessoas, quer se trate de direitos negativos (direitos de liberdade) ou direitos
positivos (direitos sociais)3.
Política e mercado configuram, portanto, a esfera do decidível, rigidamente
delimitada pelos direitos fundamentais, os quais, justamente por estarem garantidos a
todos e subtraídos da disponibilidade do mercado e da política, determinam a esfera do
que não deve ser decidido, de forma que nenhuma maioria, e nem seque a unanimidade,
pode decidir legitimamente os violar ou satisfazer.
O constitucionalismo não só é uma conquista e legado do passado, mas talvez o
mais importante legado do nosso século. É também, como crê Ferrajoli (2008, p.34),
antes de tudo, um programa para o futuro em um duplo sentido.
Em primeiro lugar, no sentido de que os direitos fundamentais incorporados pelas
Constituições devem ser garantidos e satisfeitos concretamente: o garantismo, nesse
aspecto, é outra face do constitucionalismo, dirigido a estabelecer técnicas e garantias
idôneas e a assegurar o máximo grau de efetividade aos direitos constitucionalmente
reconhecidos.
Há também o sentido de que o paradigma da democracia constitucional é um
paradigma embrionário, que pode e deve ser estendido em uma tríplice direção:
primeiramente há a garantia de todos os direitos, não só os direitos de liberdade mas
também os direitos sociais; em segundo lugar frente a todos os poderes, não só frente
aos poderes públicos mas também frente aos poderes privados; em terceiro lugar, a
todos os níveis, não só no direito estatal mas também no direito internacional.
Desta maneira, para Ferrajoli (2008, p.80), o conjunto destas normas substanciais
consistentes nos direitos fundamentais é que compõe a esfera do indecidível que,
determinada pelo conjunto dos direitos de liberdade e de autonomia, impedem,
enquanto expectativas negativas, decisões que possam lesioná-los ou reduzi-los.
Em relação ao conjunto dos direitos sociais, estes compõem a esfera do indecidível
enquanto expectativas positivas e demandam decisões dirigidas a satisfazer estes
direitos.
O que está fora da esfera do indecidível, no contexto da teoria de Ferrajoli (2008,
p.81), são conteúdos em que se é legítimo o exercício dos direitos de autonomia, quais
sejam: a autonomia política, mediada por representação, na produção das decisões
públicas, bem como a autonomia privada, segundo as regras do mercado, na produção
das decisões privadas.

3
No texto original: “Entiendo por derechos fundamentales, en oposición a los derechos patrimoniales, como la
propiedad y el crédito, que son derechos singulares que adquiere cada individuo con exclusión de los demás-
aquellos derechos universales y, por ello, indispensables e inalienables, que resultan atribuidos directamente por las
normas jurídicas a todos en cuanto personas, ciudadanos o capaces de obrar: ya se trate de derechos negativos,
como los derechos de libertad, a los que corresponden prohibiciones de lesionar; o de derechos positivos, como
los derechos sociales, a los que corresponden obligaciones de prestación por parte de los poderes públicos”
(FERRAJOLI, 2008, p.61).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 117


Os princípios da maioria, a livre iniciativa, a discricionariedade pública e a
disponibilidade privada são, em suma, as regras que presidem a esfera do decidível,
mas que encontram, entretanto, limites e vínculos insuperáveis na esfera do indecidível
(FERRAJOLI, 2008, p.81).

3 JURISDIÇÃO E GARANTISMO
3.1 O garantismo como paradigma teórico
O termo garantia aparece no vocabulário jurídico como a designação de qualquer
técnica normativa de tutela de um direito subjetivo (FERRAJOLI, 2008, p.59). As
garantias têm em comum, portanto, o fato de haver sido previstas intencionalmente, com
a previsão de que sua falta ocasionaria uma violação do direito que constitui o seu objeto.
Elas surgem como reflexo de uma desconfiança na satisfação e respeito espontâneo dos
direito, especialmente no que se refere a direitos fundamentais, bem como no exercício
espontaneamente legítimo do poder (FERRAJOLI, 2008, p.62).
Já o termo garantismo aparece associado à tradição clássica do pensamento penal
liberal, associada à exigência de tutela do direito à vida, à integridade e à liberdade, frente
ao poder punitivo. A teoria de Ferrajoli (2008, p.61), por sua vez, estende a concepção
de garantismo para abranger um paradigma da teoria geral do direito que alcança todo o
campo dos direitos subjetivos e ao conjunto dos poderes, públicos ou privados, estatais
ou internacionais.
O garantismo, nesse sentido, se opõe a qualquer concepção das relações (econômicas
e políticas), tanto de direito privado quanto de direito público, fundada no ideal da
observância espontânea do direito. O garantismo conduz ao conjunto de limites e
vínculos impostos a todos os poderes (públicos ou privados), políticos (de maioria),
econômicos (de mercado), no plano estatal ou internacional. Essa tutela se dá por meio
dos direitos fundamentais estabelecidos, tanto na esfera privada quanto na esfera pública
(FERRAJOLI, 2008, p.62).
Como paradigma teórico, o garantismo impõe vínculos legais e jurisdicionais
capazes de impedir a formação de poderes absolutos, públicos ou privados. Seguindo esse
raciocínio, Ferrajoli (2008, p.65) observa que o garantismo é, na verdade, uma faceta do
constitucionalismo, ou seja: embora as garantias consistam em um sistema de obrigações
e proibições, a sua capacidade de vincular os poderes supremos, a começar pelo poder
legislativo, depende de seu fundamento positivo rígido em normas superiores, como são
as normas constitucionais.

3.2 Jurisdição, democracia e direitos fundamentais


Um fenômeno comum a todas as democracias avançadas é a expansão crescente
do papel da jurisdição. Trata-se de um fenômeno que, por sua vez, está conectado
com a expansão do papel do direito como uma técnica de regulação e de limitação dos

118 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


poderes públicos, produzida com o crescimento da complexidade dos atuais sistemas
políticos e como consequência do paradigma do Estado de Direito (FERRAJOLI,
2008, p.208).
Ferrajoli (2008, p.208) afirma que a toda expansão do princípio da legalidade, a
cada passo dado na tarefa de limitação e sujeição do poder ao direito, tem correspondido,
inevitavelmente, uma ampliação dos espaços da jurisdição. Por outro lado, a atual
expansão do papel do direito e da jurisdição se explica por dois fenômenos convergentes
e estruturais: a mudança na estrutura do sistema jurídico, produzida na segunda metade
deste século com sua evolução nas formas do Estado constitucional de direito; e também
a transformação na estrutura do sistema político, produzida pelo contemporâneo
desenvolvimento do Estado Social e, em consequência, pela sua intervenção na economia
e na sociedade.
A primeira transformação – na estrutura do sistema jurídico – se produz com a
introdução, sobretudo depois da segunda guerra mundial, das constituições rígidas, que
incorporam princípios e direitos fundamentais como limites e vínculos já não só ao poder
executivo e judiciário, mas também ao poder legislativo.
A segunda revolução, produzida no último pós-guerra com as constituições rígidas
significa completar o Estado de direito, ou seja, a sujeição à lei de todos os poderes,
incluindo o legislativo, que resulta também subordinado ao direito, mais precisamente
à constituição, não só no que concerne às formas e procedimentos de formação das leis,
mas também no plano dos seus conteúdos.
Por conseguinte, no Estado constitucional de direito o legislador não é onipotente, no
sentido de que as leis emanadas por ele não são válidas somente pelo fato de sua entrada
em vigor, ou seja, por terem sido produzidas na forma estabelecida nas normas sobre
sua produção, mas também por resultarem coerentes com os princípios constitucionais.
Tampouco a política é onipotente, ao reverter a sua relação com o direito: também a
política e a legislação, que é seu produto, se subordinam ao direito.
Assim, já não é possível conceber o direito como instrumento da política, mas é esta
a que deve ser assumida como instrumento para a atuação do direito, especialmente dos
princípios e dos direitos fundamentais inscritos nesse projeto, ao mesmo tempo jurídico
e político, que é a constituição (FERRAJOLI, 2008, p.210).
O autor (FERRAJOLI, 2008, p.211) afirma que o sistema político sofre
transformações relativas à ampliação das funções próprias do Estado Social4, provocadas
pelo crescimento do seu papel de intervenção na economia e pelas novas prestações que
demandam os direitos sociais constitucionalizados. Esse acúmulo de funções ocorre,

4
A respeito do Estado Social e suas implicações, ver:
AVELÃS NUNES, Antonio José. As voltas que o mundo dá: reflexões a propósito das aventuras e desventuras
do Estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 266p.
BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaçotemporal dos
direitos humanos. 2.ed. Col. Estado e Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
GARCÍA-PELAYO. As transformações do Estado contemporâneo. Tradução Agassiz Almeida Filho. 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2009. 247p.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 119


entretanto, sem a previsão de garantias efetivas para os novos direitos, sendo ausentes
os mecanismos eficazes de controle político e administrativo.
Este fenômeno atribui à jurisdição um novo papel: a defesa da legalidade frente
ao abuso de poder. Esse papel central, uma vez que a defesa da legalidade equivale à
defesa do princípio da sujeição à lei de todos os poderes públicos, próprio do Estado
de Direito, que é, por sua vez, pressuposto essencial da democracia (FERRAJOLI,
2008, p.212).
A atividade jurisdicional atua, nesse sentido, na sujeição à lei por parte de todos
os poderes públicos e também como uma forma de limitação à democracia formal,
procedimental, ou plebiscitária.
Como visto no tópico 2.2, Ferrajoli entende a democracia em sua dimensão
constitucional ou substancial, relativa ao conteúdo do que se é lícito decidir a maioria, ou
não decidir, nem mesmo por unanimidade. Essa mudança de paradigmas é que oferece
um novo fundamento democrático ao papel do juiz no Estado constitucional de direito,
não oposto e sim complementar à dimensão procedimental da democracia política.
O que se percebe da teoria garantista de Ferrajoli é que todos os seus conceitos
são intimamente relacionados: a sua concepção de democracia, o papel exercido
pelos direitos fundamentais no seu conceito de esfera do indecidível, bem como o seu
conceito de garantismo, são noções que influenciam diretamente na coerência teórica
que tem o papel da jurisdição para Ferrajoli. O entendimento conjunto desses conceitos
é, portanto, fundamental.
A partir da sua noção de democracia constitucional ou substancial é que ganha
sentido o papel primordial da jurisdição na tutela dos direitos fundamentais e na sujeição
dos poderes públicos aos ditames constitucionais. Desse duplo papel da jurisdição
democracia (garantidora tanto dos direitos fundamentais como da própria sujeição dos
poderes públicos à lei) é que Ferrajoli (2008, p.213) aponta duas consequências.
A primeira está ligada ao novo papel de garantia dos direitos fundamentais a
todos e da legalidade dos poderes públicos conferido à jurisdição, como um reforço
do fundamento da divisão dos poderes e da independência da atividade jurisdicional. A
segunda consequência, também de suma importância, se refere ao aumento do peso da
jurisdição no sistema dos poderes públicos relacionado ao fortalecimento do garantismo
como fonte de legitimação ou condição de credibilidade do poder judiciário.
No modelo liberal e paleopositivista5 a atividade jurisdicional estava assentada
exclusivamente na legalidade de suas decisões e na coerência jurídica e fática de seus
pressupostos. Esse paradigma por si só não atende ao caráter contramajoritário dos
direitos fundamentais que exige um poder judiciário instituído que possa, por sua vez,

5
Para o entendimento mais completo do uso desse termo por Ferrajoli, ver: FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo
principialista e constitucionalismo garantista. Tradução de André Karam Trindade. In: FERRAJOLI, Luigi et al
(orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2012. p.13-56.

120 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


contrariar os desígnios da maioria. Por outro lado, o papel de controle da legalidade
do poder é obstaculizado por qualquer dependência (direta ou indireta) do magistrado
em relação aos demais poderes (FERRAJOLI, 2008, p.213).
Para Ferrajoli (2008, p.215), portanto, não prospera o entendimento da jurisdição
como um controle genérico de legalidade apto a provocar invasões na esfera do que é
decidível pela política, uma vez que a jurisdição intervém naquilo que à política não é
lícito decidir: sobre a invalidade e ilicitude dos atos frente à legalidade constitucional.
Para o autor, o que ocorre é que a justiça deixa de ser politizada e os juízes deixam de
fazer política no momento em que começam a cumprir com o seus dever de estender o
seu controle sobre as ilegalidades perpetradas pelos poderes públicos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da leitura de Ferrajoli, pode-se perceber que o seu garantismo representa
uma espécie de complemento ao Estado de Direito, demandando uma submissão dos
poderes ao controle de constitucionalidade. A própria legalidade é também é submetida à
coerência com as normas constitucionais, por meio de Constituições rígidas que positivam
os princípios e os direitos fundamentais, atuando estes como limites e vínculos à vontade
da maioria.
Nesse sentido, faz-se necessária uma leitura atenciosa da cadeia de conceitos
da teoria ferrajoliana, uma vez que a percepção adequada do papel da jurisdição no
garantismo está diretamente relacionada com a sua definição de democracia substancial
e constitucional, de direitos fundamentais, da esfera do indecidível, e de como esses
conceitos se entrelaçam na defesa de uma atividade jurisdicional responsável pela
adequada tutela dos direitos fundamentais e pelo controle da legalidade constitucional
dos poderes públicos.
Sendo assim, o paradigma do constitucionalismo rígido limita e vincula o Poder
Judiciário, em conformidade com o princípio da separação de poderes e com a natureza
cognitiva da jurisdição. Associada ao paradigma garantista, representado pela positivação
do dever ser do direito e pela sujeição a limites e a vínculos jurídicos de todos os poderes,
a ciência jurídica ganha um papel crítico do direito e de suas antinomias e lacunas. À
jurisdição, por sua vez, cabe o dever de remover as antinomias e apontar essas lacunas.
Embora o autor reconheça o papel fundamental que tem a jurisdição no Estado
constitucional no que concerne à tutela dos direitos fundamentais e ao controle dos
poderes públicos, o preenchimento das lacunas e a resolução das antinomias nas quais
elas se manifestam não são confiados ao ativismo interpretativo dos juízes. Para Ferrajoli,
os juízes devem interpretar as leis à luz da Constituição, ampliando ou restringindo o seu
alcance normativo de acordo com os princípios constitucionais.
O paradigma teórico garantista envolve, portanto, a elaboração de limites e garantias
também ao exercício do poder judicial. Isso porque, no Estado constitucional de direito,
a atividade dos juízes está limitada pela lei e vinculada à Constituição. Por outro lado,

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 121


a jurisdição constitucional assume também um papel de destaque no cenário garantista,
uma vez que ao Poder Judiciário é atribuída a função de garantia ou tutela dos direitos
fundamentais no regime democrático e ainda de controle do exercício legal dos poderes
públicos.

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E. Navarro. Coyoacán: Fontamara, 2004. 300p.
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Greppi.2. ed. Madrid: Trotta, 2009. 132p.
______. Los derechos fundamentales en la teoría del derecho. In: FERRAJOLI, Luigi et
al. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez
et al. Madrid: Trotta, 2001b. p.139-196.
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fundamentos de los derechos fundamentales. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez et al.
Madrid: Trotta, 2001c. p.19-56.

122 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


______. O constitucionalismo garantista e o estado de direito. Tradução de André Karam
Trindade. In: ______ et al. (orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo:
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Cademartori et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011b. 122p.
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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 123


O devido processo constitucional como forma
de alcançar a justiça das decisões
Juliana de Brito Giovanetti Pontes

RESUMO
O surgimento das Constituições escritas provocou diversas transformações nas ordens
sociais, entre elas a proteção aos direitos e garantias fundamentais que antes não eram previstos
no texto constitucional e dificilmente eram assegurados pelo poder público. Com o advento do
neoconstitucionalismo e do pós-positivismo, são incorporados aos sistemas jurídicos elementos
cujo objetivo era o de tornar as normas constitucionais mais efetivas e assegurar o cumprimento dos
direitos. Consequentemente, foi abandonada a concepção do devido processo legal como elemento
exclusivo dos direitos constitucional e processual, passando a ocorrer a análise sistematizada entre
o processo e a Constituição, que consiste no aperfeiçoamento das técnicas processuais e conduz ao
chamado devido processo constitucional – tutela jurisdicional inserida no âmbito da Constituição. O
presente artigo tem por objetivo analisar como tem sido alcançada a justiça das decisões mediante
o devido processo constitucional.
Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Direitos fundamentais. Efetividade normativa.
Devido processo constitucional.

The constitutional due process as a means of achieving the justice


of decisions

ABSTRACT
The emergence of written constitutions caused several changes in the social order, among
them, the protection of fundamental rights and guarantees that were not provided for in the
Constitution and were hardly guaranteed by the government. With the advent of neoconstitutionalism
and post-positivism, are incorporated into the legal systems of elements whose aim was to make
the constitutional rules more effective and ensure the fulfillment of rights. Consequently, the
design was abandoned due process of law as unique element of the constitutional and procedural
rights, through the systematic analysis to occur between the process and the Constitution, which
is the improvement of procedural techniques and leads to the so called constitutional due process
– judicial inserted in framework of the Constitution. This article aims to analyze how justice has
been achieved through the decisions of constitutional due process.
Keywords: Neoconstitutionalism. Fundamental rights. Effectiveness normative.
Constitutional due process.

Juliana de Brito Giovanetti Pontes é Bolsista da CAPES pelo programa de Mestrado em Direito da Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. Linha de pesquisa: Jurisdição e Direitos Humanos.
E-mail: julianabgp@gmail.com

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.124-137 jan./jun. 2012


124 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012
1 INTRODUÇÃO
As transformações ocorridas nos ordenamentos jurídicos no âmbito do Estado
Democrático de Direito tornaram possível a valorização e a busca pela efetividade
dos mandamentos constitucionais. Assim, torna-se possível a relação entre o direito
constitucional e o âmbito processual na jurisdição brasileira, ultrapassando a ideia da
existência de um campo meramente processual.
Importante aspecto a ser observado foi o referente ao extenso conteúdo axiológico
e a ampla proteção aos direitos fundamentais apresentados pelas Constituições que
surgiram na fase do pós Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), englobando temas que
anteriormente não eram tratados pela Lei Maior, situação esta que ampliou as espécies
de direitos constitucionalmente protegidos: os direitos sociais de natureza prestacional,
além dos direitos individuais e políticos.
Diferentemente do constitucionalismo, que empregou a limitação ao poder arbitrário
estatal e a imposição de Constituições escritas, o neoconstitucionalismo permitiu que o
Estado utilizasse mecanismos para harmonizar o equilíbrio social, sem, no entanto, limitar
o exercício das garantias previstas na Constituição tanto em relação ao poder público
quanto em relação aos indivíduos. Observa-se no neoconstitucionalismo, a busca pela
efetividade das normas constitucionais.

2 O FENÔMENO DA EXPANSÃO DO PODER JUDICIÁRIO


E SEUS REFLEXOS NAS ORDENS CONSTITUCIONAIS
O fenômeno de constitucionalização do sistema jurídico possibilitou a realização de
uma interpretação extensiva e abrangente das normas constitucionais pelo Poder Judiciário,
ampliando a influência das Constituições sobre todo o ordenamento e conduzindo à adoção
de novas normas e institutos nos mais variados ramos do Direito.
Com a multiplicação dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos pós-
positivistas, e assim, marcados pelo neoconstitucionalismo, passou a ser protegida a
ideia de que eles são compreendidos por princípios que podem ir de encontro em casos
específicos, tornando-se uma exigência social a aplicação de cada um dos direitos
fundamentais (PAULA, 2011, p.271).
Com o advento do pós-positivismo, enfrentou-se a necessidade de desenvolvimento
de instrumentos aptos a lidarem com a dialética do direito ao solucionar interesses
conflitantes. Além disso, procurou a harmonia entre o direito e a moralidade social. Assim,
as novas formas de interpretação das normas ocorre de forma mais legítima e compatível
com os fatos sociais através da aplicação dos princípios jurídicos.
Foram reintroduzidas na ordem jurídica as ideias de legitimidade e justiça para a
compreensão normativa. Ao mesmo tempo, o sistema jurídico deixou de ser visto como
um conjunto formal e fechado de leis, havendo a efetiva utilização dos princípios jurídicos
como espécies normativas que incorporam valores. A Ciência Jurídica passou a defender
a integração entre as instituições estatais e estes princípios.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 125


Com a ascensão do neoconstitucionalismo, as normas passam a apresentar
um escalonamento entre si, tendo-se a Constituição como regra superior de um
ordenamento jurídico, devendo as demais normas – ditas infraconstitucionais –
manterem compatibilidade com a Lei Maior; nenhuma outra regra pode apresentar
desconformidades com a Constituição. Havendo contradições, serão adotadas medidas
visando reparar tal situação, entre elas, a paralisação dos efeitos da norma declarada
inválida.
Essa é uma das consequências do princípio da supremacia formal da Constituição,
que se tornou o fundamento de validade das normas infraconstitucionais. É também
pressuposto do controle constitucional a rigidez da norma vértice do Estado, vez que por
meio de processo legislativo mais complexo e diverso ao das leis infraconstitucionais
é possível realizar modificações no texto da Constituição porque a incompatibilidade
existente não tem o potencial de modificar a obra do Poder Constituinte Originário.
A proteção anteriormente conferida aos direitos fundamentais envolvia o
controle feito pelo poder Legislativo. Com a reconstitucionalização ocorrida em
alguns ordenamentos jurídicos, os direitos fundamentais passaram a ser protegidos
pelo Poder Judiciário contra o poder político majoritário que antes limitava a sua
proteção e utilização. Por conseguinte, o poder público passou a cumprir as normas
imperativas constitucionais, além de respeitar o caráter obrigatório e vinculativo de
suas disposições.
O crescimento da jurisdição constitucional, ocorrido após a 2ª Grande Guerra,
possibilitou a criação do Estado Constitucional de Direito. O modelo antes vigente
caracterizava-se por ter a Constituição como um documento essencialmente político,
cujas normas dependiam da aplicação realizada pelo administrador ou legislador para
que pudessem produzir seus efeitos. Nesse período ainda não havia a prática do controle
de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário, resultando no não atendimento
das necessidades sociais por parte do Poder Público. Este era o denominado Estado
Legislativo de Direito; a centralidade das leis e a supremacia do Poder Legislativo eram
características do referido sistema (BARROSO, 2008, p.4).
A Constituição era vista como um documento essencialmente político, uma
sugestão à atuação dos Poderes Públicos. A concretização das propostas constitucionais
era condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade
do administrador. O Judiciário não possuía qualquer papel relevante na realização do
conteúdo da Constituição.
A partir das transformações ocorridas nos sistemas jurídicos, Tribunais e Cortes
Constitucionais passaram a ter sua importância reconhecida quanto ao julgamento e
interpretação da norma ápice do ordenamento jurídico: no Estado constitucional de
direito a Lei Maior passou a vigorar como norma jurídica, regulando não apenas a
produção de leis e atos normativos como também determinando limites para o seu
conteúdo e impondo deveres de atuação ao Estado.

126 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


3 AS RELAÇÕES ENTRE CONSTITUIÇÃO E PROCESSO:
DO DEVIDO PROCESSO LEGAL AO PROCESSO JUSTO
Na nova relação entre Constituição e Processo, a função jurisdicional não ficou
limitada ao cumprimento das regras e princípios constitucionais. A partir desse momento,
os direitos fundamentais passaram a receber também proteção assegurada pelos órgãos
jurisdicionais capazes de cumprirem essa função sob o aspecto processual.
O Processo e suas normas procedimentais tiveram o aspecto tutelar atribuído pela
ordem jurídica constitucional, passando a serem regulados pelos princípios da Lei Maior.
Portanto, a tutela jurisdicional efetiva e justa compreende aquela disponível às partes com
o respeito aos mandamentos constitucionais. Com isso, o direito processual e o acesso
à justiça passaram a manter conexão com o plano constitucional, observado através da
garantia de um processo justo em substituição à ideia do devido processo legal. “É por
isso que hoje, em lugar de uma garantia do devido processo legal, se prefere afirmar que
o Estado Democrático de Direito garante o processo justo” (THEODORO JÚNIOR,
2009, p.30) – grifos no original.

Dupla foi a grande mudança de rumo do processo, na segunda metade do Século


XX: a) reduziu-se a separação exagerada que se notava no tratamento das figuras
processuais em relação ao direito material, reforçando o papel instrumental do
processo na realização e tutela dos direitos subjetivos substanciais, já então
permeados de valores humanos e éticos, dando origem ao chamado processo justo;
e b) formou-se e consolidou-se o fenômeno da constitucionalização do processo,
cujos princípios ganharam assento na sede reguladora dos direitos fundamentais.
(THEODORO JÚNIOR, 2009, p.31)

Como resultado, houve o abandono da concepção do devido processo legal como


elemento exclusivo do direito constitucional ou processual, passando a haver a análise
sistematizada entre o processo e a Constituição, que consiste no aperfeiçoamento das
técnicas processuais e conduz ao chamado devido processo constitucional – tutela
jurisdicional inserida no âmbito da Constituição.
O devido processo constitucional ou processo justo consiste em uma ampla
garantia de natureza fundamental, englobando as garantias processuais previstas na
Constituição como forma de assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais e reger
os procedimentos desenvolvidos perante a Administração e o Legislativo.
O direito ao processo justo consiste no modelo mínimo de atuação do Estado no
âmbito processual; sua observação é imprescindível para que sejam obtidas decisões
justas (MITIDIERO, 2011, p.24).
A relação direta entre a Constituição e o Processo ocorre quando o texto
constitucional especifica direitos e garantias processuais considerados fundamentais,
quando também organiza estruturalmente as instituições essenciais à realização da justiça

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 127


e também quando especifica meios formais de realização do controle constitucional. Por
sua vez, a relação será indireta quando tutelar de modo diverso um certo bem jurídico ou
categoria de sujeitos, permitindo ao legislador infraconstitucional a previsão de regras
para que o juiz concretize a norma jurídica em cada um dos casos concretos (CAMBI,
2007, p.1).
À Constituição foi atribuída efetividade normativa a partir do momento em que
houve a determinação da superioridade de suas normas frente às demais constantes no
ordenamento jurídico.
Atualmente, as Constituições apresentam propriedade finalística ao concretizar
direitos fundamentais e ser um meio para a efetivação do Estado do bem estar social. Estas
Leis Fundamentais podem ser analisadas como ideologia constitucional ao expressar uma
carga axiológica aceita pelos representantes dos constituintes na fase de sua elaboração.
Apresentam também a finalidade de regulamentar as relações políticas existentes no
âmbito social, representando a judicialização dos fenômenos políticos.

É, por isto, um desafio que os estudiosos têm enfrentado para, combatendo o


imobilismo conceitual, buscar práticas mais adequadas a aquilo que a Constituição
coloca, como objetivo fundamental, que é a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária. (CAMBI, 2007, p.20)

Por conseguinte, o crescimento da jurisdição constitucional significou a interpretação


e aplicação das normas constitucionais por órgãos da jurisdição e o controle de
constitucionalidade das leis e atos do Poder Público. Através da expansão do Judiciário,
foi verificada a necessidade de separação entre política e direito. Há por isso consequências
próprias do processo de expansão:

A jurisdição constitucional compreende duas atuações particulares. A primeira, de


aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por exemplo, o
reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou
do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à liberdade de
expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve a aplicação
indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para
aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade)
ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades
(interpretação conforme a Constituição). (BARROSO, 2008, p.5)

4 A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DIANTE


DOS CASOS DIFÍCEIS
A Constituição Federal de 1988 tratou das matérias de modo aprofundado,
evidenciando a presença do neoconstitucionalismo, responsável pela ocorrência de

128 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


modificações paradigmáticas na relação entre Constituição e Processo. A decadência do
positivismo jurídico clássico, marcada pela distinção entre norma e preceito normativo,
permitiu que se desenvolvesse uma nova hermenêutica constitucional. Tal fato foi
possível devido à constitucionalização dos direitos, transferindo-os das legislações
infraconstitucionais para a Lei Fundamental do sistema jurídico (CAMBI, 2007, p.17).
A nova forma de interpretação constitucional permaneceu com seus elementos
clássicos, mas apresentou como elemento fundamental a teoria dos princípios sobre as
regras, encontrando equilíbrio entre os aspectos da flexibilidade e da vinculação e tornando
possíveis melhores soluções para os conflitos entre direitos fundamentais.
Nesse contexto, deve-se observar, contudo, que nem todos os casos são passíveis de
decisão com base nas leis preexistentes ou em teorias hermenêuticas acerca do modo pelo
qual devem ser interpretadas: nas situações em que há ausência de normas específicas e
cuja solução não é possível com recurso ao texto da norma, o uso de conceitos jurídicos
indeterminados, as regras imprecisas ou a presença de normas que possuem modos de
solução distintos, favorecem a discricionariedade judicial, esta, contudo, não com o
sentido de arbitrariedade. São os denominados casos difíceis ou inéditos (hard cases ou
leading). O caso que comportar mais de uma solução é decidido pelo juiz de forma mais
correta, justa, adequando-se aos elementos apresentados pelo caso concreto. Para isso, é
necessária a interpretação judicial das normas.
A imprescindibilidade da interpretação decorre da amplitude normativa
constitucional e da proteção a direitos conflitantes ou de conceitos vagos. Os precedentes
do Supremo Tribunal Federal, as teorias hermenêuticas e o texto constitucional são
elementos que servem de fundamento para as decisões dos casos difíceis e também como
limitadores da arbitrariedade que por ventura possa vir a ser cometida pelo intérprete
(MELLO, 2011, p.360).

Verifica-se no ordenamento jurídico brasileiro uma tendência à progressiva


conferência de efeitos normativos às decisões proferidas pelo STF. Essa tendência
mostra-se presente na criação das súmulas vinculantes (Emenda constitucional nº
45/2004). Ela se verifica, igualmente, na expansão dos mecanismos de controle
concentrado de normas, de que são exemplos a criação da ação declaratória de
constitucionalidade e a regulamentação da arguição de descumprimento de preceito
fundamental. (MELLO, 2011, p.361)

O convencimento dos juízes constitui elemento importante na formação de sua


convicção em determinadas matérias, sendo a fonte que contêm a ideologia e se relaciona
com o modo pelo qual uma decisão é adotada e fundamentada.
Por longo período, a função jurisdicional esteve ligada à ideia de reprodução
do conteúdo das leis, conforme a corrente doutrinária do pensamento sistemático ou
normativo. Com o advento do controle de constitucionalidade, os juízes passaram
efetivamente a submeter as leis a serem aplicadas ao caso concreto e assim, tornou-se

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 129


ineficiente uma atuação do Judiciário meramente reveladora do sentido das normas em
abstrato e sua aplicação ao caso específico.
Desse modo, as correntes doutrinárias que justificam a ausência de discricionariedade
no processo decisório não apresentam como consequência a circunstância de a atividade
do Judiciário sofrer determinações conforme as regras do formalismo jurídico, pelo
qual, os magistrados estão submetidos aos desígnios do poder, sendo o Judiciário
reduzido a um poder subordinado, tendo por função reproduzir as palavras da lei,
passando a jurisdição a ser uma atividade intelectiva, impossibilitando o julgador de
adicionar uma parcela volitiva aos seus julgamentos. Segundo o formalismo, a tarefa
do juiz deveria limitar-se a expressar a “vontade da lei” ou a vontade do legislador;
qualquer atividade interpretativa estaria sobrepondo o Judiciário aos demais poderes do
Estado como também, os magistrados estariam adotando uma postura ativista quando
do julgamento das questões de sua competência. (SILVA, 2004, p.92).
O posicionamento defendido pela corrente formalista também não evidencia o
aspecto de que a legislação é um modo de criação do direito, modo esse diverso da
criação realizada pelo Poder Judiciário, praticada por meio da interpretação das leis.
O reconhecimento de que na interpretação do direito operado pelo Poder Judiciário há
determinado grau de criatividade, não significa que há criação do direito nos moldes
do processo legislativo (CAPPELLETTI, 1999, p.20).
Na realidade, inexiste oposição entre os conceitos de criação do direito e de
interpretação deste. O que varia é o grau de criatividade e os limites da criação do
direito, no caso brasileiro, pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar os casos que lhe são
apresentados. A criatividade e a discricionariedade são ínsitas à atividade interpretativa.
Em alguma forma, toda interpretação é criativa, sempre existindo um grau mínimo de
discricionariedade na atividade jurisdicional (CAPPELLETTI, 1999, p.42).
Contudo, poderá haver também maior espaço para a discricionariedade dos
magistrados nas decisões quanto mais imprecisos forem os elementos do direito e mais
vagas as leis. Essa é uma das causas da acentuação que teve o ativismo judicial.
O que caracteriza a função de um magistrado ou de um tribunal não é a ausência de
criatividade na interpretação das leis, mas sim a ligação da decisão com as controvérsias
e as partes integrantes do caso concreto, a imparcialidade do juiz e independência
formal em relação às influências exercidas pelos poderes políticos (CAPPELLETTI,
1999, p.75).

[...] [A] criatividade jurisdicional – criatividade do direito e de valores – é ao mesmo


tempo inevitável e legítima, e que o problema real e concreto, ao invés, é o da
medida de tal criatividade, portanto de restrições. (...) Os juízes não podem fazer
menos que participar na atividade de produção do direito, ainda que, no limite, tal
não exclua inteiramente a possibilidade de o legislador ab-rogar ou modificar o
direito jurisdicional. (CAPPELLETTI, 1999, p.103)

130 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Como resultado das alterações no modo de julgar as controvérsias cuja solução
não é prevista constitucionalmente, decorre o inevitável choque entre a suposta vontade
do legislador (decorrente da maioria legislativa) e a decisão judicial, revelando que o
posicionamento do magistrado a favor da maioria ou minorias envolve questões políticas.
Poderá o Executivo não cumprir suas obrigações relacionadas aos valores constitucionais
e assim, desrespeitar as garantias conferidas aos cidadãos. Nessa hipótese, o Judiciário
também atua visando a suprir a omissão.
O ato de tornar válidos os direitos contidos no Texto Maior em todas as situações
levadas ao Judiciário, fez com que este assumisse um novo modo de atuação no Estado
Democrático de Direito. Os valores trazidos pela Constituição passaram nortear a
atividade jurisdicional, que aceitou a atuação pública do referido poder na tarefa de
tutela dos direitos.
A inserção dos direitos fundamentais nas Constituições resultou em um novo
modo de raciocínio jurídico por meio do qual tribunais e juízes começaram a exercer
um juízo que aplica a otimização dos princípios no que se refere às possibilidades de
fato e de direito.
A ponderação consiste em desfazer a antiga opinião da filosofia política, inserida
ao paradigma do direito liberal: a rigorosa separação entre os poderes, de modo que as
autoridades políticas tenham a solução final para questões morais e sociais, atribuindo
às instâncias judiciais a função de defesa do que foi decidido politicamente (PAULA,
2011, p.272).

Por isso, deve ser firmemente precisado que os limites substanciais não são
completamente privados de eficácia: criatividade jurisprudencial, mesmo de forma
mais acentuada, não significa necessariamente “direito livre”, no sentido de direito
arbitrariamente criado pelo juiz no caso concreto. (CAPPELLETTI, 1999, p.26)

Por conseguinte, bom senso e prudência devem ser utilizados pelo juiz na atividade
da jurisdição constitucional, respeitando a soberania popular para que sejam cumpridos
os direitos fundamentais. A liberdade do intérprete da norma há de ser responsável e
autocontrolada, visto que é inadmissível a introdução nos textos de lei de conteúdos
incompatíveis com o ordenamento jurídico.
Sendo o instrumento que estabelece a interação entre direito e política, a Constituição
recebe o atributo de tornar o poder constituinte originário em poder constituído,
convertendo a atividade política em instituições do Estado. A Lei Maior atribui as
competências aos poderes: ao Legislativo a criação do direito positivo, ao Executivo a
administração das entidades estatais sua e manutenção e ao Judiciário cabe a aplicação
do direito quando da ocorrência de litígios entre partes (BARROSO, 2007, p.18).
Em vista dos resultados produzidos pelo controle constitucional e da atividade de
produção de leis, típica do Legislativo, observa-se que controle de constitucionalidade e
política são institutos distintos, mas intimamente relacionados.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 131


A política caracteriza-se por apresentar posicionamentos valorativos, influências
das experiências sociais, morais e emocionais de cada um dos membros que compõem
o Legislativo e o Executivo no que se refere à adoção de posturas para decidir questões
de caráter público.
O Poder Judiciário utiliza-se de tais valorações nos casos não previstos na
Constituição Federal e nos quais os outros dois poderes abstiveram-se em adotar seu
posicionamento. Por isso, os casos práticos demonstram que eles não são totalmente
indissociáveis, podendo ser considerada a existência de conexão de um campo sobre
o outro.

Na política, vigoram a soberania popular e o princípio majoritário. O domínio da


vontade. No direito, vigora o primado da lei (the rule of law) e do respeito aos
direitos fundamentais. (BARROSO, 2007, p.17)

Havendo relações entre direito e política, tem-se que o controle constitucional é um


dos fatores que permite o encerramento dos debates sobre questões políticas, vez que,
além de não haver mecanismos de revogação legislativa de decisões judiciais, a atuação
do legislador sofre limites decorrentes das cláusulas pétreas (PAULA, 2011, p.306).
Fica limitada a reabertura das questões constitucionais pelo Legislativo, vinculando-se
o controle constitucional às questões políticas.
Barroso (2008, p.13) afirma que as decisões judiciais possuem teor isento de
questões políticas, mantendo-se totalmente independentes de questões tendenciosas, de
livre escolha ou partidarizadas. Esse posicionamento defende que as decisões judiciais
nunca serão políticas no que se refere à discricionariedade.
Para estes, basta afirmar que o Direito não é política, apesar de na sua origem,
ser produto desta – que são institutos independentes. Esta separação seria atingida por
meio da atribuição de caracteres próprios da atividade do magistrado, que impliquem
na independência entre as atividades do Legislativo e Judiciário, como por exemplo, as
garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos.

Não mais se entende que direito e política são campos totalmente separados e cuja
conexão deve ser reprimida para o bom funcionamento do Estado. Na verdade,
como se verá, no fundo sempre houve latente a possibilidade de conexão maior do
que se pensava entre a arena política e o canal judicial. (PAULA, 2011, p.273)

Mesmo havendo a referida crença de que o processo decisório não sofre influências
das ideologias do magistrado e também do cenário político, a questão a ser julgada ganha
contornos políticos pela possibilidade de uma política pública ser afetada pelos efeitos
dessa decisão judicial. A defesa de que a decisão é imune às influências políticas não se

132 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


mantém, uma vez que a norma representa a vontade da maioria legislativa responsável
por sua aprovação. A concordância ou discordância do juiz com o seu conteúdo demonstra
que o magistrado tende a se posicionar em prol da vontade da maioria ou das minorias,
com isso interferindo na democracia.
O direito não pode permanecer inerte diante das modificações sociais, devendo
buscar a concretização dos mecanismos de interpretação. A pós-modernidade provocou
o questionamento das bases iluministas do direito moderno, compreendido como meio
de revelação das verdades através do raciocínio silogístico e o apego excessivo à razão.
Assim, a dimensão do novo, inserido na complexidade das relações sociais, é marcada
pela insegurança, pela instabilidade e pelo incerto.

A crise da concepção formalista do Direito atinge de forma mais drástica a jurisdição


constitucional que, pela relevância de suas decisões judiciais, muitas vezes oferece
limites às decisões políticas, necessitando, por isso, de maior grau de legitimidade.
(AGRA, 2005, p.73)

5 O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL COMO


FORMA DE ALCANÇAR A JUSTIÇA DAS DECISÕES
Como resultado da pós-modernidade e das dúvidas trazidas por ela, houve a quebra
dos paradigmas ontológicos e a fragmentação social, resultando no aumento do número de
conflitos. A inexistência de parâmetros visando atender e normatizar todas as expectativas
do povo, deu origem à referida crise; do mesmo modo, o enfraquecimento dos órgãos
estatais, provocado pelo liberalismo no plano econômico (AGRA, 2005, p.72).
Em relação aos efeitos da crise da pós-modernidade no Estado Democrático de
Direito, duas motivações podem ser elencadas: a primeira diz respeito às economias
capitalistas, que criaram grande complexidade social, conduzindo às crises de interesses
entre os grupos sociais; a partir desse fato, o Estado passou a implementar políticas
públicas visando satisfazer de forma específica as expectativas do povo.
A segunda motivação refere-se à inflação legislativa. Para adequar o sistema jurídico
à evolução da sociedade, novos instrumentos são produzidos para se adequarem aos fatos
sem que sejam contraditórios com as mais variadas esferas sociais.
A presença do neoliberalismo fez com que na esfera econômica ocorresse situação
inversa ao aumento da produção legislativa, agravando a crise. A ausência de eficácia das
normas, principalmente as programáticas, fez com que os órgãos estatais enfraquecessem,
deixando de realizar as suas funções; depois, a impossibilidade de regulamentação legal
relacionados a fatos específicos.
Todas as esferas sociais foram atingidas pela pós-modernidade e com o direito não
foi diferente: tendo por finalidade regular as relações sociais, o direito formal – baseado
em sua positivação e exagerado formalismo – também foi atingido, entrando em crise e
afetando seriamente a eficácia de suas normas.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 133


Do mesmo modo, os paradigmas existentes dificultam que a legitimidade da
jurisdição constitucional seja estabelecida. Do mesmo modo, passam por crise o
significado de Estado Democrático de Direito, o conceito de Constituição, os limites
da atuação do Judiciário. A crise constitucional deriva dos conflitos sociais, quando a
Constituição deixa de ser considerada parâmetro normativo. Dessa forma, a Lei Maior
perde a eficácia, a sua força normativa (HESSE, 1991, p.19).
A crise constitucional pode ser melhor observada através das normas programáticas,
que não conseguem obter eficácia negativa ou positiva, nem mesmo concretizam
o conteúdo da Constituição, impondo condutas a serem executadas pelos poderes
constituídos. Portanto, a crise constitucional compreende a falta de eficácia dos
mandamentos constitucionais diante dos múltiplos poderes normativos pertencentes às
instituições reguladas a partir de decisões individuais (AGRA, 2005, p.88).
Diante dessas circunstâncias, surge no Brasil a doutrina da efetividade, que procurou
superar algumas disfunções na formação do ordenamento jurídico nacional, evidenciadas
na ausência de determinação política para o exercício das disposições constitucionais e
no uso da Constituição unicamente como instrumento ideológico. O objetivo da doutrina
da efetividade era o de tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e indiretamente
na maior extensão de sua densidade normativa (BARROSO, 2008a, p.15).
A efetividade compreende a aplicabilidade da norma como modo de realização e
desempenho concreto da função social do Direito, a materialização dos mandamentos
normativos e a aproximação do dever-ser normativo com o ser do âmbito social; na
maior parte das vezes, a efetividade das normas jurídicas advém do seu cumprimento
com espontaneidade (BARROSO, 2000, p.5).
Com isso, tem-se por finalidade não somente o acesso de todos ao Poder Judiciário
está assegurado, mas também é cabível a tutela estatal efetiva, permitindo que todos
os indivíduos usufruam tanto dos direitos subjetivos individuais e da proteção às suas
garantias fundamentais estabelecidas constitucionalmente.
As dimensões processual e constitucional passam a ser direcionadas não só aos
produtores do direito, mas também àqueles que são atingidos direta e indiretamente pelas
suas determinações:

Através dessa metodologia, o processo não é mais encarado como um fim em si


mesmo, como sua expressão predominante de ato de império, pelo qual o Estado
faz cumprir as suas, reestruturando a “ordem” na esfera social. (GOMES NETO,
2005, p.57)

O direito ao processo justo advém do âmbito processual, o qual estabelece deveres


para a organização estatal nas suas três funções – legislativa, executiva e judiciária. A
efetivação do processo justo pelo Judiciário ocorre quando ao juiz são atribuídos os
deveres de interpretação e aplicação das legislações de acordo com o direito fundamental
ao processo justo.

134 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Referido direito tem por finalidade a obtenção de uma decisão justa, sendo exercida
a pretensão à justiça e também a pretensão à tutela jurídica. Desse modo, no Estado
Democrático de Direito, o processo é compreendido como o meio através do qual os
direitos são tutelados no plano constitucional (MITIDIERO, 2011, p.25).
São titulares do direito ao processo justo as pessoas físicas e jurídicas, podendo
propor ações com a finalidade de obterem a tutela jurisdicional, como também, aqueles
que possuírem personalidade processual. Importante destacar que:

O direito ao processo justo goza de eficácia vertical, horizontal e vertical com


repercussão lateral. O mesmo se diga de seus elementos estruturantes. Ele obriga o
Estado Constitucional a adotar condutas concretizadoras do ideal de protetividade
que dele dimana (eficácia vertical), o que inclusive pode ocasionar repercussão
lateral sobre a esfera jurídica dos particulares (eficácia vertical com repercussão
lateral). Ainda, obriga os particulares, em seus processos privados tendentes a
restrições e extinções de direitos, a observá-lo (eficácia horizontal). (MITIDIERO,
2011, p.29).-

A constitucionalização do processo resulta, desse modo, em um processo


justo, que compreende a efetividade dos direitos fundamentais característicos do
âmbito processual e constitucional, a garantia do juiz natural, a proibição do juízo de
exceção, a inadmissibilidade das provas obtidas através de meios ilícitos, a motivação
obrigatória das decisões judiciais e a garantia do contraditório e ampla defesa. Ao
mesmo tempo, assegura os direitos e garantias previstos na Constituição, buscando
a justiça e efetividade.
Tanto processualmente quanto constitucionalmente, o processo justo não deve
excluir a segurança jurídica, fundamento do Estado Democrático de Direito, que deve
ser aplicável juntamente com os princípios da justiça e da segurança jurídica; o processo
constitucionalizado determina, assim, a conciliação entre justiça, efetividade e segurança
tanto na interpretação quanto na aplicabilidade das normas jurídicas.
O processo justo, “permite a convivência harmoniosa de todos os princípios e
garantias constitucionais pertinentes ao acesso à justiça e prestação efetiva da adequada
tutela aos direitos subjetivos materiais” (THEODORO JÚNIOR, 2009, p.36).
Com os novos elementos da jurisdição constitucional e a nova perspectiva do
Processo, a sentença compreenderá o resultado da interpretação dos fatos, tendo por
fundamento valores, princípios e regras jurídicas que não sigam a lógica produto do
raciocínio matemático e silogístico. Juntamente com a adequação das normas aos fatos,
está a criação do preceito legal conforme as especificidades trazidas pela Constituição,
permitindo, através da valoração específica do caso concreto, a solução mais justa dentre
as que são possíveis.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 135


6 CONCLUSÕES
O fenômeno da expansão do Poder Judiciário foi marcado pelo advento do
neoconstitucionalismo, a partir do qual o Judiciário tornou-se um poder expressivo e com
grande relevância ao receber a prerrogativa para decidir questões relativas aos direitos
fundamentais.
A proteção anteriormente conferida aos direitos e garantias fundamentais ocorria
mediante o controle do Poder Legislativo, que limitava a defesa a esses conteúdos do
texto constitucional. Com a reconstitucionalização em alguns sistemas jurídicos, os
direitos fundamentais passaram a ser protegidos pelo Judiciário contra o poder político
majoritário.
As decisões jurídicas passaram a ter incidência sobre os âmbitos que não faziam
parte de seu controle e com isso, tiveram início os estudos do fenômeno da judicialização
das questões políticas e o ativismo judicial. O neoconstitucionalismo permitiu que o
Judiciário utilizasse meios para harmonizar o equilíbrio social, sem, no entanto, limitar
o exercício das garantias previstas na Constituição tanto em relação ao poder público
quanto em relação aos indivíduos.
Dessa forma, os mandamentos constitucionais passaram a serem interpretados
juntamente com os demais princípios do direito, podendo ser destacada a importante
relação entre o direito constitucional e o direito processual civil.
Na nova relação entre Constituição e Processo, a função jurisdicional não sofreu
limitações para o cumprimento das regras e princípios constitucionais. A partir desse
momento, os direitos fundamentais também receberam proteção dos órgãos jurisdicionais
capazes de cumprirem essa função sob o aspecto processual.
O Processo e suas normas procedimentais tiveram o aspecto tutelar atribuído pela
ordem jurídica constitucional, passando a serem regulados pelos princípios da Lei Maior.
Diante dessas transformações, configura-se a tutela jurisdicional efetiva e justa como
aquela que está disponível às partes, respeitando aos mandamentos constitucionais. Com
isso, o direito processual e o acesso à justiça passam a manter conexões com o plano
constitucional, observado através da garantia de um processo justo em substituição à
ideia do devido processo legal.
A constitucionalização do processo e as novas formas de interpretação jurídica
resultam, desse modo, no processo justo, que tem por objetivo a efetividade dos direitos
fundamentais característicos do âmbito processual e constitucional, a garantia do juiz
natural, a proibição do juízo de exceção, a inadmissibilidade das provas obtidas através de
meios ilícitos, a motivação obrigatória das decisões judiciais e a garantia do contraditório e
ampla defesa. Ao mesmo tempo, assegura os direitos e garantias previstos na Constituição,
buscando a justiça e efetividade.
Tanto processualmente quanto constitucionalmente, o processo justo não deve
excluir a segurança jurídica, fundamento do Estado Democrático de Direito – deverá ser
aplicado simultaneamente com os princípios da justiça e da segurança jurídica. O processo

136 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


constitucionalizado determina a conciliação entre justiça, efetividade e segurança tanto
na interpretação quanto na aplicabilidade das normas jurídicas, aspectos característicos
da proteção às garantias e direitos fundamentais conferida pelo Estado Democrático de
Direito.

REFERÊNCIAS
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densificação da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O
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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 137


A exigência da representatividade ao amicus
curiae: abertura à participação democrática
e a possibilidade de atuação dos movimentos
sociais como amicus curiae no controle
concentrado de constitucionalidade
Geisla Aparecida Van Haandel Mendes

RESUMO
O presente estudo pretende examinar o requisito da representatividade exigido pelo § 2º,
do art. 7º, da Lei nº 9.868/99 para a intervenção do amicus curiae junto aos processos de controle
concentrado de constitucionalidade, buscando aferir se tal condição atua em sentido oposto ou não
à funcionalidade democrática do instituto. A partir da análise da representatividade se examinará
a possibilidade de movimentos sociais intervirem como amicus curiae, no sentido de promover
o diálogo social e a efetiva abertura à participação democrática na construção das decisões de
controle de constitucionalidade.
Palavras-chave: Amicus curiae. Representatividade. Legitimidade democrática. Movimentos
sociais. Controle de constitucionalidade. Diálogo social.

The exigency of the representativeness of the amicus curiae:


Opening a democratic participation and the possibility
of action of social movements as amicus curiae in the concentrated
constitutional control

ABSTRACT
The present paper intends to examen the requirement of representativeness demanded by
the § 2º, of article 7, of the nº 9.868/99 Law over the intervention of the amicus curiae within the
concentrated constitutionality control lawsuits, trying to assess if such condition acts in opposite
functionality , or not, to the institute. Starting with the analysis of representativeness it will then be
seen if social movements can possibly intervene as amicus curiae, in a way to promote the social
dialogue and the effective opening towards the democratic participation in the construction of the
decisions around constitutional control.
Keywords: Amicus curiae. Representativeness. Democratic Legitimacy. Social Movements.
Constitutional Control. Social Dialogue.

Geisla Aparecida Van Haandel Mendes é Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e
Democracia das Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL). Especialista em Direitos Humanos pela Universidad
Pablo de Olavide Sevilha (ES) e em Direito do Trabalho pela UNIBRASIL. Professora de Hermenêutica Jurídica
da Graduação em Direito da UNIBRASIL. Advogada.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.138-157 jan./jun. 2012


138 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012
1 INTRODUÇÃO
A doutrina e a jurisprudência, em sua maioria, demonstram concordância com a
designação de que a figura do amicus curiae funciona como instrumento de abertura à
participação, de democratização das decisões do Poder Judiciário em sede das ações de
controle de constitucionalidade e, portanto, de afirmação da legitimidade democrática
das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Notadamente a atuação do amicus curiae nas ações de controle de constitucionalidade
está condicionada ao aceite do pedido de ingresso pelo Ministro-Relator da ação, mediante
a demonstração da representatividade do postulante e da consideração da relevância da
matéria, conforme estabelecem o § 2º do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, o § 3º do art. 482
do CPC e o § 1º, art. 6º da lei nº 9.882/1999.
Questiona-se, pois, se a exigência da comprovação da representatividade do amicus
curiae acaba ou não por restringir a participação da sociedade nestas ações constitucionais,
de molde a reprimir e/ou inviabilizar o caráter democrático do instituto, na medida em que
corresponderia a um limitador a admissão de instituições outras a atuar como “amigos da
corte” em sentido oposto a sua funcionalidade democrática. Nesse sentido, buscar-se-á
identificar quem pode efetivamente agir como amicus curiae para levar, legitimamente,
os clamores da sociedade ao Tribunal Constitucional.
Relacionado, ainda, à questão da representatividade, exigida ao pretenso amicus
curiae, indaga-se sobre o possível manejo de tal instituto pelos movimentos sociais,
partindo-se da premissa de que tais movimentos representam parte da sociedade
civil organizada na busca e defesa de interesses de todos, de tal sorte que poderiam,
potencialmente, promover um contato mais próximo do Judiciário com a realidade
social, ainda que não possuam uma estrutura formal de órgão ou entidade. Nesse sentido,
pretende-se examinar se os movimentos sociais brasileiros estariam aptos ou não a realizar
com propriedade a missão inerente ao “amigo da corte” no intuito de promover o diálogo
social e a efetiva abertura à participação democrática nas decisões a serem construídas
nas ações de controle de constitucionalidade. Estes os questionamentos a que se propõe
o presente estudo.

2 O AMICUS CURIAE E A INTERVENÇÃO DE


TERCEIROS NAS AÇÕES DE CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
As ações de controle de constitucionalidade se apresentam como principais
mecanismos a serem instrumentalizados na defesa e na garantia da supremacia da
Constituição, nos termos de um Estado Constitucional garantístico, conforme preceituado
por J. J. Gomes Canotilho.1 A busca da garantia da supremacia da Constituição, mais do

1
Canotilho destaca que o constitucionalismo se apresenta como “técnica específica de limitação do poder com
fins garantísticos”. (CANOTILHO, 2003, p.51).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 139


que preservar seu corpo normativo, pretende resguardar os preceitos fundamentais que
a comunidade política pensa e sente como fundamentos essenciais que a identificam e
caracterizam enquanto comunidade.2
A realização do controle ou da fiscalização da constitucionalidade dos demais atos
infraconstitucionais parte da “consciência constitucional” (CLÈVE, 2000, p.33) presente no
ordenamento, no sentido que a garantia dos preceitos que regem a comunidade é necessária
para a própria integralidade do sistema e da ordem constitucional (CLÈVE, 2000, p.34).
Segundo a redação do caput do art. 102 da CF/88 compete ao Supremo Tribunal
Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. A atuação da jurisdição constitucional
brasileira se dá através de um sistema misto ou híbrido de controle de constitucionalidade,
combinando um controle concentrado3 (em abstrato) e um controle difuso4 (em concreto)
de constitucionalidade.
O controle concentrado de constitucionalidade objetiva o pronunciamento em
abstrato quanto à validade ou não de uma lei ou ato normativo federal ou estadual, segundo
dicção do art. 102, I, “a”, da Constituição Federal de 1988.
Os legitimados ativos à propositura das ações de (in)constitucionalidade, descritos
taxativamente no rol do art. 103 da CF/88,5 provocam a jurisdição constitucional quanto à
validade, permanência ou não, de uma lei no sistema jurídico, não subsistindo pretensões
individuais a serem examinadas, mas tão somente o exame em abstrato do ato normativo
impugnado.
Tais ações constitucionais possuem, pois, como finalidade o pronunciamento sobre
a própria lei ou ato impugnado, subsistindo somente o exame em tese ou em abstrato
do próprio ato tido por inconstitucional. Por esta razão a doutrina e jurisprudência
costumam afirmar que as ações de controle de constitucionalidade, embora possuam
natureza jurisdicional, na verdade compreendem um “exercício atípico de jurisdição”
(BARROSO, 2012, p.180), notadamente porque não existem partes envolvidas, nem
litígio a ser solucionado em tais ações, pois não se dirigem a tutela de direitos subjetivos
aplicáveis a situações concretas.

2
“se compreende a expressão – constituição da República – para exprimir a ideia de que a constituição se
refere não apenas ao Estado, mas à própria comunidade política, ou seja, a res publica”. (CANOTILHO, 2003,
p.88 – grifos do original).
3
O controle concentrado de constitucionalidade abrange: a) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”);
b) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, “a”); c) ação direta de inconstitucionalidade por omissão
(art. 103, § 2º); d) ação direta interventiva (art. 36, III); e) arguição de descumprimento de preceito fundamental
(art. 102, § 1º).
4
Art. 102, III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando
a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou
lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei
local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
5
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a
Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do
Distrito Federal; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade
de classe de âmbito nacional.

140 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Considerando suas características específicas, as ações de controle de
constitucionalidade cuidam, segundo a doutrina, de processo objetivo, na medida em que
não possuem partes e nem lide contenciosa com vistas a garantir ou proteger um direito
ou bem da vida específico, por essa razão, para Clèmerson Merlin Clève, “os princípios
constitucionais do processo (leia-se do processo subjetivo) não podem ser aplicados ao
processo objetivo sem apurada dose de cautela” (CLÈVE, 2000, p.143-145).
Todavia, segundo Álvaro Ricardo de Souza Cruz o processo concentrado de controle
de constitucionalidade não pode ser visto como um “processo objetivo”, na medida em
que, sob sua perspectiva, admitir um processo objetivo e, portanto, “não contraditório”
implica em violação a própria concepção de democracia (CRUZ, 2004, p.371), bem
como na consequente transformação do processo de controle de constitucionalidade em
algo “asséptico, estéril, afastado do cotidiano” (CRUZ, 2004, p.384) da sociedade que
o instituiu.
Explica o autor que a contraposição de argumentos é fundamental na construção
de melhores respostas às pretensões, assegurada por um “fluxo comunicativo de ideais”
sob o influxo de um ideal de democracia participativa, de tal sorte que o “processo é
necessariamente um procedimento subjetivo, sujeito ao devido processo legal, contraditório
e ampla defesa (art. 5º, LV da CF/88), sem o que perde sua legitimidade democrática”
(CRUZ, 2004, p.371). Não possibilitar o acesso ao contraditório e a “subjetivação” dos
processos de controle concentrado de constitucionalidade corresponde, sob sua ótica, a
negação do direito difuso afeto a todas as pessoas de “vivermos num regime político que
permita/garanta o direito de argumentar e de participar” (CRUZ, 2004, p.372).
Notadamente, ainda que o controle de constitucionalidade sob a via do controle
abstrato, seja visto como um processo objetivo, inclusive segundo reiterado posicionamento
do Supremo Tribunal Federal,6 verifica-se uma tendência à abertura do processo de
controle constitucional a exposição de argumentos por parte de outras pessoas, além
dos legitimados à propositura da ação, a demonstrar maior fluidez de comunicação no
processo em verdadeira valorização ao princípio do contraditório, ainda que se fale em
processo objetivo. É o que se verifica com a permissão de manifestação no processo de
controle abstrato pelo amicus curiae, espécie de terceiro interveniente que vem trazer
novos argumentos à ação constitucional, e também pela realização de audiências públicas
com o objetivo de reunir informações técnicas, econômicas e sociais relacionadas com
o fenômeno social objeto do processo em discussão, através da oitiva de pessoas com
experiência e autoridade na matéria.
Registre-se que o caput do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, que consigna o processamento
da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e declaratória de constitucionalidade
(ADC), de maneira geral não admite a intervenção de terceiros.7 Porém passa a aceitar

6
“O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal faz instaurar processo
objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações concretas ou individuais”. (STF, RDA, 193:242,
1993, Rcl 397, rel. Min. Celso de Mello).
7
Nem mesmo a assistência a qualquer das partes é admitida, veja-se a redação do art. 169, § 1º do Regimento
Interno do STF.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 141


manifestações através da figura do amicus curiae e das audiências públicas nos parágrafos
e artigos subsequentes como se pode observar da redação do § 2º, do art. 7º, da Lei nº
9.868/99,8 segundo o qual a critério do relator da ação, se possibilitará a manifestação de
outros órgãos ou entidades, considerada a relevância da matéria e a representatividade
dos requerentes. No mesmo sentido a redação do § 1º, do art. 9º e § 1º, do art. 20,
ambos da Lei nº 9.868/99,9 bem como dos §§ 1º e 2º, do art. 6º da Lei nº 9.882/99,10 ao
prescreverem a possibilidade de lançamento de outros e novos argumentos às ações de
controle de constitucionalidade.
A atuação do amicus curiae como terceiro interveniente no controle abstrato de
constitucionalidade é admitida sob uma perspectiva diversa das tradicionais figuras de
terceiros intervenientes previstos no processo civil (como a assistência, o litisconsórcio,
a nomeação a autoria, a oposição, a denunciação da lide, o chamamento ao processo, o
recurso do terceiro prejudicado, o concurso de credores e os embargos de terceiro), na
medida em que não se justifica unicamente pelo interesse subjetivo próprio do requerente
na demanda, mas, sobretudo, a partir da possibilidade de abertura procedimental ao
debate com vistas a uma maior aproximação do STF com a sociedade. Para Gilmar
Mendes a positivação da figura do amicus curiae constitui “providência que confere
caráter pluralista ao processo objetivo de controle de constitucionalidade” (MENDES
et al., 2008, p.1124), subsidiando a decisão com novos argumentos e alternativas outras
para a melhor solução do processo.
Segundo Damares Medina, a intervenção do amicus curiae, em um processo
no qual ele não é parte, pretende “oferecer à corte sua perspectiva acerca da questão
constitucional controvertida, informações técnicas acerca de questões complexas cujo
domínio ultrapasse o campo legal ou, ainda, defender os interesses dos grupos por ele
representados, no caso de serem direta ou indiretamente, afetados pela decisão a ser
tomada” (MEDINA, 2010, p.17).
Cassio Scarpinella Bueno compreende o amicus curiae como um “especial terceiro
interessado”, cuja intervenção espontânea ou provocada objetiva aprimorar o debate
judicial trazendo a lume os valores e questionamentos presentes na sociedade e no Estado
dando maior pluralidade e legitimidade às decisões judiciais (BUENO, 2010, p.160-167).

8
Art. 7º, § 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por
despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos
ou entidades.
9
Art. 9º, § 1º. Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória
insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar
perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
Art. 20, § 1º. Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória
insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar
perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
10
Art. 6º, § 1º. Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a arguição,
requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou
ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
§ 2º. Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento
dos interessados no processo.

142 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


No mesmo sentido, Gustavo Binenbojm aduz que o amicus curiae, mais do que
um colaborador informal do juízo, integra a relação processual como “terceiro especial”
(BINENBOJM, 2005, p.87).
Na visão de Edgard Silveira Bueno Filho a intervenção do amicus curiae possui
a forma de assistência qualificada, na medida em que além de demonstrar interesse
legítimo também deve ser comprovada a representatividade do interveniente (BUENO
FILHO, 2002, p.88).
Michele Franco Rosa, por sua vez, afirma que o amicus curiae não pode ser
considerado como mero terceiro interveniente, segundo sua ótica, o amici possui natureza
de auxiliar do juízo, na medida em que não precisa comprovar a principal característica
presente nas demais formas de intervenção de terceiros, concernente à existência de
interesse jurídico para ingressar no processo, visto que sua função cinge-se à busca da
pluralização, aprimoramento e democratização das decisões judiciais nos processos de
controle de constitucionalidade (ROSA, 2010, p.253 e 274).
Antonio do Passo Cabral ressalta que o amicus curiae possui características próprias
que o individualiza perante as tradicionais formas de intervenção de terceiros, previstas
no processo civil. Por tratar-se de intervenção atípica, caracteriza-se por ser um “terceiro
sui generis ou terceiro especial, de natureza excepcional” (CABRAL, 2004, p.17).
Para Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, o amicus curiae
somente é chamado de terceiro em razão de não ser parte, mas “por tudo e em tudo se
diferencia dos terceiros tradicionais”, na medida em que “representa um canal para que o
juiz tenha ciência dos fatos, valores, interesses da sociedade ou de determinada categoria,
a que a decisão inexoravelmente afetará” (WAMBIER; MEDINA, 2010, p.494).
O Supremo Tribunal Federal vem aceitando a atuação do amicus curiae como
instrumento de pluralização e de legitimação do debate constitucional11 capaz de trazer
à Corte uma diversidade maior de elementos e informações para a melhor resolução da
controvérsia objeto da ação constitucional. Nesse sentido, salientou o Ministro Celso de
Mello no julgamento da ADI nº 2031, para o qual a admissão do amici confere maior
legitimidade e efetividade às decisões do STF, ressaltando ainda, que tal intervenção,

[...] valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido


essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos
elementos de informação e pelo acervo de experiências que esse mesmo amicus
curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo –
como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas,
sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e
inquestionável significação.12

11
ADI 2.321.MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25.10.2000, Plenário, DJ de 10.6.2005. No mesmo
sentido: ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25.8.2005, Plenário, DJE de 20.8.2010.
12
ADI Nº 2130. Rel. Ministro Celso de Mello. Julg. 03.10.2001. DJ nº 217 de 14.12.2001.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 143


A atuação do amicus curiae, como se pode notar, advém da peculiar característica,
presente nas ações de controle de constitucionalidade, de que seus efeitos geram uma
grande onda reflexiva que atinge toda a sociedade.
Os temas articulados nas ações de controle abstrato não podem ser resolvidos apenas
no âmbito da atuação restrita aos legitimados para proposição das referidas ações, pois
sua universalidade exige um olhar não apenas contemplativo da sociedade, ao contrário
permite proatividade no efetivo exercício democrático-participativo e, nesse sentido, a
figura do amicus curiae possui especial importância, por autorizar esta participação.
Mais do que um terceiro interveniente, em razão de não compor as partes do processo
ou de instrumento de veiculação de posicionamento pessoal, o proceder do amicus curiae
possui como primado a demonstração de circunstâncias teóricas de interesse da sociedade,
das vozes dos grupos sociais, de molde a contribuir para a formulação e justificação da
decisão a ser proferida, visto que tais decisões reflexivamente trazem consequências que
afetam parte ou integralidade da composição de um direito de todos.
Nesse sentido, representa um ósculo para o Tribunal Constitucional ao permitir a
introdução da realidade do ser social à esfera jurídica. Notadamente, se espera da Corte
Constitucional, ao examinar uma ação de controle abstrato de constitucionalidade, um
agir pautado na proteção e efetividade dos direitos fundamentais. Sobressai, ainda, a
preocupação com as ondas reflexivas que referidas decisões podem gerar ao ordenamento
e a toda sociedade brasileira. Circunstancia que torna imperiosa uma maior aproximação
com a sociedade potencialmente realizada pela atuação do amicus curiae.
A causa que impulsiona a intervenção do amicus curiae, na visão de Cassio
Scarpinella Bueno, é a circunstância de ser “legítimo portador de um interesse
institucional” (BUENO, 2010, p.161), compreendido como o interesse que não é apenas
individual ou de um grupo específico, mas que congrega interesses coletivos e até mesmo
difusos, apresentando-se como “adequado portador das vozes da sociedade e do próprio
Estado que, sem sua intervenção, não seriam ouvidas ou se o fossem o seriam de maneira
insuficiente pelo juiz” (BUENO, 2010, p.161).
Segundo a redação do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99 estão habilitados a
intervir como amicus curiae, a critério do relator, outros órgãos ou entidades dotados de
representatividade para tal desiderato. Para Cassio Scarpinella Bueno os atores sociais
que podem efetivamente agir nesta qualidade e levar legitimamente os clamores da
sociedade ao Tribunal Constitucional são os entes que demonstram o referido “interesse
institucional” de molde a comprovar a representatividade exigida pela lei.
O amicus curiae se caracteriza por ser um terceiro interveniente, na medida em que
não é parte do processo, porém com feições próprias e finalidade específica. Possibilita
através de sua atuação que informações outras, novos argumentos, ângulos de visada
diversos sobre o mesmo tema, valores e anseios da sociedade ou de grupos sociais que
a compõe, sejam legitimamente levados, e com êxito, ao conhecimento do Tribunal,
contribuindo para a construção de melhores decisões.

144 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


3 A EXIGÊNCIA DA REPRESENTATIVIDADE PARA
INTERVENÇÃO COMO AMICUS CURIAE
Conforme anteriormente aduzido, segundo a redação do § 2º, do art. 7º, da Lei
nº 9.868/99, somente poderão intervir como amicus curiae os órgãos ou entidades
dotados de representatividade. Nesse sentido, a preocupação que se apresenta é a de que
a exigência da comprovação desta representatividade constitua um fator de restrição e/
ou limitação à efetiva participação da sociedade. Veja-se que, a justificativa referenciada
pelo próprio Supremo Tribunal Federal para aceitar a atuação do amici, é no sentido
de que sua intervenção funciona como “fator de legitimação social das decisões do
Tribunal”13 por permitir uma maior participação da sociedade nos processos de controle
de constitucionalidade.
Na doutrina e jurisprudência não se verifica de forma ampla uma preocupação
nos moldes acima referenciados. Percebe-se que a maior preocupação, para além de
eventual possibilidade de restrição, fixa-se sobre as consequências que a exigência da
representatividade possa causar, no sentido de se identificar quem de fato pode conduzir,
legitimamente, os clamores da sociedade ao Tribunal Constitucional. Qual ente ou pessoa
possui a capacidade de se apresentar como legítimo portador de interesses que pertencem
a toda a sociedade a serem defendidos e tutelados no âmbito judicial (BUENO, 2008,
p.501) em um processo do qual não faz parte, mas cuja decisão gerará reflexos em face
de todos, por vezes com efeitos maiores ou menores para determinados grupos sociais.
Daí a atenção em se estabelecer um referencial que possa se mostrar seguro a
respeito do instituto. (BUENO, 2008, p.145) Nos moldes de tal referencial estará apto a
ingressar como amicus curiae, órgão ou entidade (segundo redação do § 2º, do art. 7º, da
Lei nº 9.868/99) dotado de interesse institucional que o legitime para promover o diálogo
entre o Tribunal Constitucional e a sociedade, com vistas a atingir os fins a que se propõe
comprovando, portanto, sua representatividade.
Cassio Scarpinella Bueno explica que a representatividade exigida pela lei, segundo
seu entendimento, estará presente em “toda aquela pessoa, grupo de pessoas ou entidade,
de direito público ou de direito privado, que conseguir demonstrar que tem um específico
interesse institucional na causa e, justamente em função disso, tem condições de contribuir
para o debate da matéria, fornecendo elementos ou informações úteis e necessárias para
o proferimento de melhor decisão jurisdicional” (BUENO, 2008, p.147).
Segundo o autor, meros interesses corporativos não são suficientes para comprovar a
representatividade e autorizar a intervenção na qualidade de amicus curiae, é preciso que
subsista interesse decorrente das finalidades institucionais do requerente configurando-se
como legítimo representante de um grupo de pessoas ou de um grupo de interesses e não
de interesse próprio como ocorre com as tradicionais figuras de terceiros intervenientes
(BUENO, 2008, p.147).

13
ADI 2130/SC. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.
asp?numDj=24&dataPublicacaoDj=02/02/2001&incidente=3727269&codCapitulo=6&numMateria=2&codMateri
a=2 Acesso em: 05.03.2013.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 145


Para Gustavo Binenbojm o § 2º, do art. 7º, da Lei 9.868/99, permite que
outros órgãos ou entidades, em face da relevância da matéria objeto da ação e
por sua notória representatividade, apresentem sua manifestação no processo de
controle de constitucionalidade. Segundo aduz, “na análise do binômio relevância-
representatividade, deverá o relator levar em conta a magnitude dos efeitos da decisão
a ser proferida nos setores diretamente afetados ou para a sociedade como um todo,
bem como se o órgão ou entidade postulante congrega dentre seus afiliados porção
significativa (quantitativa ou qualitativamente) dos membros do(s) grupo(s) social(is)
afetado(s)” (BINENBJOM, 2005, P. 83).
Antônio do Passo Cabral, em sentido diverso, afirma ser desnecessária a exigência
da representatividade, porquanto nesta situação não ocorre o fenômeno da substituição
processual. Explica o autor, que pelo fato de não existir o risco de uma representação
inadequada pela intervenção do amicus curiae, na medida em que este não age em
nome próprio em defesa de direito alheio, é desnecessário o exame do requisito da
representatividade, embora exista expressa previsão legal neste sentido (CABRAL,
2004, p.21).
Conforme se verifica a representatividade exigida pela lei busca identificar no
pretenso amicus curiae um interesse maior, que transcende interesses individuais
ou corporativos, que capacite este agente a se apresentar como legítimo portador de
interesses que pertencem a toda a sociedade ou a determinados grupos sociais. Em que
pese à abalizada doutrina que defende a demonstração da representatividade, considera-
se que a fixação de um requisito absoluto, mas de definição fluída, cuja significação
depende unicamente de entendimento do relator da demanda para deferir ou não o pedido
da intervenção, acaba por desvirtuar o caráter democrático do instituto do amicus curiae.
Observe-se que tal exigência importará, irremediavelmente, em restrição ao acesso à
participação da sociedade nas ações de controle de constitucionalidade, quando na
verdade deveria abrir passo a todos quantos fossem os interessados a participar, tendo
em vista que a finalidade do instituto corresponde exatamente à abertura a participação
democrática.
Em uma visão mais ampla, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade
Nery, afirmam que o relator poderá admitir como amicus curiae “qualquer pessoa
física, jurídica, professor de direito, cientista, órgão ou entidade”, embora ressalvem
a necessidade de ser demonstrada “respeitabilidade, reconhecimento científico ou
representatividade para opinar sobre a matéria objeto da questão constitucional” (NERY
JUNIOR; NERY, 2006, p.670).
Edgard Silveira Bueno Filho pontua que “haverá sempre outras entidades
de notória representatividade que, por isso, serão facilmente admitidas ao debate,
dependendo apenas do tema discutido”. Segundo aduz, “é o caso das associações
de magistrados, de advogados, de outros profissionais liberais, de empresários, de
defensores de direitos humanos, de consumidores, do meio ambiente etc., quando o ato
normativo questionado tiver relação com a atividade por eles desenvolvida” (BUENO
FILHO, 2002, p.88).

146 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


Como se pode verificar das decisões do STF, tais considerações acerca dos
interesses do postulante a amici são importantes para o deferimento de seu ingresso,
como se observa da decisão do Ministro Joaquim Barbosa na ADI nº 3311 que indeferiu
o ingresso do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal como amicus curiae, ao
argumento de que a simples manifestação de interesse não é suficiente para ingressar no
feito, sendo necessário, pois, a demonstração de que a entidade pode contribuir de forma
relevante com o julgamento da ação.14 No mesmo processo, considerando preenchidos
os requisitos do § 2º, art. 7º, da Lei nº 9868/99, o Ministro-Relator deferiu o ingresso
de vários outros entes como amici, como o Estado de Sergipe, a Associação de defesa
da saúde do fumante – ADESF, o Instituto brasileiro de defesa do consumidor – IDEC,
o Partido Verde – PV, a Confederação nacional dos trabalhadores na saúde – CNTS,15
dentre outros.
Importa ressaltar que os legitimados à propositura da ação direta de constitucionalidade,
a que se refere o art. 103 da CF/88 e o art. 2º da Lei nº 9.868/99, também possuem
legitimidade para intervir como amicus curiae, desde que à vista da representatividade e
da relevância da matéria, sejam merecedores de apresentar seus argumentos ao processo,
conforme entendimento reiterado pelo Supremo Tribunal Federal.
Não se olvida da importância que o instituto do amicus curiae possui, mesmo a
partir da exigência da comprovação da representatividade, pois não se nega a evolução que
este instrumento já causou e tem causado no sentido de permitir a abertura do Supremo

14
O SINDICATO DOS MÉDICOS DO DISTRITO FEDERAL – SINDIMÉDICO requer sua admissão na presente ação
direta de inconstitucionalidade, na qualidade de amicus curiae. A intervenção de terceiros no processo da ação direta
de inconstitucionalidade é regra excepcional prevista no art. 7º, § 2º, da Lei 9.868/1999, que visa a permitir “que
terceiros – desde que investidos de representatividade adequada – possam ser admitidos na relação processual,
para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional. – A admissão
de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como
fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em
obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade,
em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade
de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da
coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma:
a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção
processual do amicus curiae – tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional.” (ADI 2.130-MC,
rel. min. Celso de Mello, DJ 02.02.2001). Vê-se, portanto, que a admissão de terceiros na qualidade de amicus
curiae traz ínsita a necessidade de que o interessado pluralize o debate constitucional, apresentando informações,
documentos ou quaisquer elementos importantes para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. A
mera manifestação de interesse em integrar o feito, sem o acréscimo de nenhum outro subsídio fático ou jurídico
relevante para o julgamento da causa, não justifica a admissão do postulante como amicus curiae. Ademais, o
SINDIMÉDICO não logrou demonstrar que detém experiência e autoridade em matéria de saúde social, uma vez
que dentre as suas “prerrogativas”, elencadas no art. 2º de seu Estatuto, figuram apenas disposições de caráter
eminentemente coorporativas e de interesse próprio da categoria, como por exemplo: “(a) representar, perante
autoridade administrativas e judiciárias os interesses gerais e individuais da categoria dos médicos, podendo
promover ações de representação e substituição processual de toda a categoria, médicos sócios e não sócios,
inclusive da defesa dos direitos difusos e dos direitos do consumidor; (b) celebrar convenções e acordos coletivos
de trabalho e colaborar nas comissões de conciliação e tribunais de trabalho; (c)adotar medidas de utilidade
e beneficência para os seus associados de acordo com os regulamento que forem elaborados”, entre outros.
Despacho Ministro-Relator Joaquim Barbosa, em 15.04.2005. ADI nº 3311/DF, DJ n.77 do dia 25.04.2005.
15
ADI nº 3311/DF. Ministro-Relator Joaquim Barbosa. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/
verDiarioProcesso.asp?numDj=34&dataPublicacaoDj=21/02/2005&incidente=2246660&codCapitulo=6&numMa
teria=13&codMateria=2 Acesso em 19.02.2013

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 147


Tribunal Federal a uma discussão mais ampla nas ações de controle concentrado e de sua
potencialidade em promover uma aproximação do Tribunal com a sociedade.
Contudo, o desenvolvimento efetivo de um diálogo social através da intervenção
do amicus curiae como fator de legitimação social das decisões, conforme afirmado pelo
próprio Supremo Tribunal Federal,16 pressupõe a efetiva e real abertura do processo de
fiscalização abstrata a toda a sociedade, de tal sorte que o estabelecimento de um requisito
a ser cumprido consigna sentido oposto à funcionalidade democrática do instituto.
Pontue-se que, outras disposições legais, que tratam sobre o amicus curiae,
como ocorre com a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, com a intervenção da
União Federal e de intervenção de entidades ou terceiros desinteressados nos processos
administrativos,17 nada mencionam sobre o requisito da representatividade exigida
pela Lei nº 9.868/99. Segundo o caput, do art. 31, da Lei nº 6.385/76, “nos processos
judiciais que tenham por objeto matéria incluída na competência da Comissão de Valores
Mobiliários – CVM, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar
esclarecimentos”, autorizando a intervenção da CVM como amicus curiae sem qualquer
outro requisito que não versar sobre matéria de sua competência.18 O parágrafo único do
art. 5º da Lei nº 9.469/97, por sua vez, também prevê a atuação da União Federal como
amicus curiae independente da demonstração de interesse19 (ou da representatividade aqui
tratada), ao estabelecer que as “pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas
cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir,
independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato
e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria
e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência,
serão consideradas partes”. O art. 31 da Lei nº 9.784/99 ao estabelecer que “quando a
matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá,
mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de
terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada”,
também previu a possibilidade de intervenção de entidades ou terceiros desinteressados
nos processos administrativos.20
A presença de um interesse que transcende ao individual, designado na melhor alusão
como “interesse institucional”, que substancialmente abrange um interesse mais amplo que

16
A exemplo, as decisões monocráticas: ADI 2.130-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 02.02.2001; ADI nº 3311/
DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ n.77 do dia 25.04.2005. ADI 3.998/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ n.60 do
dia 04.04.2008.
17
“As normas que permitem a intervenção da CVM, do Cade e da União Federal e ainda no processo administrativo
federal, fazem-no desconsiderando o interesse jurídico, o que também aponta para o reconhecimento da condição
de amicus curiae nestas modalidades de intervenção”. (CABRAL, 2004, p.24).
18
“a intervenção da CVM como amicus curiae dar-se-á toda vez que, mesmo em processos de caráter individual,
houver discussão judicial de matérias que, no âmbito administrativo, sujeitam-se à fiscalização da entidade”.
(CABRAL, 2004, p.24).
19
“a intervenção da União Federal como amicus curiae poderá ocorrer independentemente da demonstração de
interesse jurídico, quando da decisão puder ter efeitos de natureza econômica, ainda que reflexos, mediatos”.
(CABRAL, 2004, p.24-25).
20
“No campo da intervenção do amicus em processos administrativos, prevista de forma genérica pela Lei
9.784/1999, o art. 31 afirma que será cabível a manifestação quando a matéria debatida no processo ‘envolver
assunto de interesse geral’.” (CABRAL, 2004, p.25).

148 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


o da parte ou de um terceiro interveniente tradicional, demonstra o interesse de participar
do processo de controle de constitucionalidade, porém não impõe a demonstração de um
requisito absoluto, que se não verificado, sob a ótica do relator, impede a participação.
O fator que autoriza a intervenção do amicus curiae ou que o qualifica, na acepção de
Eduardo Cambi e Kleber R. Damasceno, “são os possíveis reflexos que uma dada decisão
judicial, em razão das questões discutidas, poderá gerar no grupo social, servindo como
precedente a orientar o julgamento, pelo Poder Judiciário, de casos presentes e futuros”
(CAMBI; DAMASCENO, 2011, p.28-29).
Considerando-se a finalidade do instituto, segundo a doutrina e a jurisprudência do
próprio STF, no sentido de ampliar e/ou pluralizar o debate constitucional e de conferir
maior legitimidade democrática às suas decisões, com mais razão o instituto do amicus
curiae deve ser estendido ao maior número de pessoas possíveis, com interesse em se
manifestar no processo, como representantes da sociedade e/ou de grupos sociais no
sentido de contribuir para a melhor resolução da lide.

4 MOVIMENTOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO


DEMOCRÁTICA. POSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO
COMO AMICUS CURIAE NAS AÇÕES DE CONTROLE
DE CONSTITUCIONALIDADE
Considerando-se que as ações de controle de constitucionalidade estão relacionadas
a assuntos de interesse e relevância para toda a sociedade, visto que seus efeitos
repercutem em face de todos e, portanto, são importantes para todo o ordenamento
jurídico e para toda a sociedade brasileira, a abertura à participação democrática se
mostra de imperiosa importância. Resta o questionamento se outros entes não abrangidos
pela expressão “órgãos ou entidades dotados de representatividade”, conforme descrito
no § 2º do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, estariam aptos ou não a realizar com propriedade
a missão inerente ao “amigo da corte”, tais como os movimentos sociais brasileiros.
A contraposição de argumentos, de notória e fundamental importância na
construção de melhores respostas às pretensões, sobretudo quando se está diante
de decisões que emanam projeções reflexivas a toda a sociedade, que interferem na
evolução civilizatória e na sua dinâmica construtiva, com vistas a uma compreensão
mais consentânea com a realidade dos fatos sociais e do que se espera como atitude
dos poderes públicos, propugna uma maior participação da sociedade na construção
de tais decisões, o instituto do amicus curiae, nesse aspecto, possui a potencialidade
necessária para cumprir esse papel.
A exposição de outras informações pelo ingresso dos “amigos da corte” na
demanda, objetivando a não restrição do processo de controle de constitucionalidade
à perspectiva particular de uma plêiade isolada de julgadores restritos ao conteúdo
formal dos limites ínsitos da petição inicial, que parte do rol de poucos legitimados para
a motivação meritória, contribui para uma arquitetura mais plural e democrática das

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 149


decisões da Corte Constitucional, mas é preciso mais avançar para que a pluralização
realmente aconteça e o sentido democrático se faça presente.
Nesse sentido, o instituto do amicus curiae, ainda que sob a égide do requisito da
representatividade do postulante, reiteradamente utilizado como referencial para o (in)
deferimento da intervenção, pode ser manejado por outros entes, como os movimentos
sociais, com o fim de trazer a realidade da vida à realidade dos autos.
O agir dos movimentos sociais parte da configuração de valores expressos pela
comunidade que o compõe, cujas ações são conduzidas pelo projeto político e social que o
movimento visa atingir a partir da práxis social, buscando penetrar nas estruturas do Estado
organizado. Notadamente, a sociedade civil e o Estado não são instituições estanques e
separadas. O Estado somente existe em função da sociedade instituída pelos homens21,
que estrutura seu modo de vida e organização social através daquele. Nas palavras de
Ilse Scherer-Warren “os dois se interpenetram em suas dinâmicas próprias” (SCHERER-
WARREN, 1996, p.53), de tal sorte que os clamores e as ações desenvolvidas diretamente
pela sociedade civil22 não podem ser desconsideradas ou simplesmente ignoradas.
Segundo, Ilse Scherer-Warren existem alguns pré-requisitos que compõe a formação
de um movimento social, como: a) “o reconhecimento coletivo de um direito que leva
a formação de uma identidade social e política” – pode-se dizer que corresponde ao
pensamento comum de que possuem um direito, extensível a todos, e que buscam
ser reconhecido e/ou concretizado; b) “o desenvolvimento de uma sociabilidade
política”– representado por um projeto coletivo a ser implementado, pelo qual as
pessoas congregam-se em torno de uma causa, constituindo-se em verdadeiros atores
sociais e políticos que atuam e constroem a realidade, e c) “a construção de um projeto
de transformação”– correspondente ao objetivo comum a ser atingido e a perspectiva
de participar da construção de uma nova realidade, de transformar as relações sociais
(SCHERER-WARREN, 1996, p.69-72).
Os vários movimentos sociais urbanos e rurais (movimento ecológico, movimento
feminista, movimento afrodescendente, movimento dos sem-terra, movimento dos
sem-teto, movimento das mulheres camponesas, movimento de bairros, movimento
estudantil, dentre outros), em suas diversas formas de manifestação, contribuem para
o desenvolvimento democrático do país. Tal contribuição não se apresenta unicamente
pela busca de implementação de políticas públicas adequadas e necessárias segundo a
ótica do movimento, mas também, como se propõe, pela possibilidade de atuarem no
âmbito do Judiciário quando discutidas questões importantes, de índole constitucional,

21
Desde a perspectiva contratualista de formalização de um pacto social entre os homens através do qual se
institucionaliza o Estado como o ente dotado do poder de manter a paz, o respeito e a convivência harmônica, o
Estado assume a organização estrutural e jurídica da sociedade, porém voltada ao homem como fim primeiro e
último de toda estruturação social. [Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. Trad. Rosina D’Angina. São Paulo: Martin
Claret, 2012 (1651); LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Vozes, 2006 (1689);
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Leme/SP: EDIJUR, edição 2010 (1762)].
22
“a sociedade civil é a representação de vários níveis de como os interesses e os valores da cidadania se organizam
em cada sociedade para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais,
manifestações simbólicas e pressões políticas”. (SCHERER-WARREN, 1996, p.110).

150 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


que eventualmente afetem os objetivos do próprio movimento, que tragam reflexos sobre
determinado direito reconhecido coletivamente e que levou a formação da consciência
coletiva para a criação do próprio movimento.
A atuação dos movimentos sociais como amicus curiae parte, pois, da premissa
de que tais movimentos representam parte da sociedade civil23, organizada na busca e
defesa de interesses desta mesma sociedade, com vistas a promover um contato mais
próximo do Judiciário com a realidade e realizar um efetivo diálogo social ao par de um
envolvimento coletivo nas questões importantes para o país, máxime quando se questiona
o implemento, respeito e observação de normas constitucionais.
A contribuição ativa para a construção de melhores decisões pela apresentação ao
Tribunal de outros elementos, fatores diversos, questionamentos e circunstâncias muitas
vezes vistas somente na realidade do dia a dia, certamente traz maiores chances de que a
matéria posta a julgamento seja melhor elucidada e compreendida pelos julgadores.
Conforme ensina Joaquín Herrera Flores, o direito está diretamente relacionado
aos contextos sociais, econômicos e culturais, através dos quais as pessoas buscam tornar
factíveis condições de vida com dignidade e, deste modo, a participação do processo
democrático através dos vários instrumentos possíveis buscam o cumprimento de tais
necessidades humanas (FLORES, 2011, p.14-15).24
Como protagonistas da realidade há que se reconhecer a representatividade dos
movimentos sociais para atuação como amicus curiae, ainda que não possuam estatutos
com a declaração clara de seus fins e objetivos, mas a partir de suas características
formativas, do reconhecimento coletivo de luta por determinado direito, do congraçamento
em torno de uma causa e de busca de transformação da realidade social, há que se perceber
“o que a rua grita” (WARAT, 2010, p.52-53).25

23
“Nas sociedades globalizadas, multiculturais e complexas, as identidades tendem a ser cada vez mais plurais e
as lutas pela cidadania incluem, frequentemente (sic), múltiplas dimensões do self: de gênero, étnica, de classe,
regional, mas também dimensões de afinidades ou de opções políticas e de valores: pela igualdade, pela liberdade,
pela paz, pelo ecologicamente correto, pela sustentabilidade social e ambiental, pelo respeito à diversidade e às
diferenças culturais, etc.”. (SCHERER-WARREN, 1996, p.117).
24
“Lo que hace universales a los derechos no radica, pues, en la adaptación a una ideología determinada que
los coloque como ideales más allá de los contextos sociales, económicos y culturales, sino el ser ese marco que
permita a todos ir creando las condiciones que hagan factibles sus particulares concepciones de la dignidad. Por
esa razón, el derecho, el pensamiento y la práctica jurídicos no deben considerarse como categorías previas ni
a la acción política ni a las prácticas económicas. Las plurales y diferenciadas luchas por la dignidad humana
constituyen la razón y la consecuencia de la lucha por la democracia y por la justicia. No estamos ante privilegios,
meras declaraciones de buenas intenciones o postulados metafísicos de una naturaleza humana aislada de las
situaciones vitales. Por el contrario, el derecho, visto de los presupuestos de la “crítica jurídica” debe constituirse
en la afirmación de la lucha del ser humano por ver cumplimentados sus deseos y necesidades en los contextos
vitales en que está situado”. (FLORES, 2011, p.14-15).
25
Segundo Warat, um racionalismo exacerbado: “Contamina todo o corpo social. O seu maior sintoma se
manifesta como perda da sensibilidade, em mim, no meu vínculo com os outros e no modo de perceber o mundo,
na frieza da ficção de verdade e na fuga alienante que proporciona às abstrações e os anseios modernos de
universalidade que não nos deixam perceber o que a rua grita, como mostra esse velho filme de Enrique Muiño
e Angel Magaña, de 1948: A rua grita. A rua grita e não é escutada pelos juízes, advogados, teóricos do Direito,
professores, médicos, políticos, etc., instituições onde o clamor da rua não chega bloqueada pela razão técnico-
instrumental. [...] Teremos que reaprender a escutar a rua enquanto produtora do novo. A inovação como
diferença que nos permite escapar das zonas cristalizadas de nossa cultura, dos lugares comuns que aprisionam
em seu vazio. O racionalismo que barbariza.” WARAT, 2010, p.52-53. (grifos acrescentados).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 151


Do exame de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o deferimento e
indeferimento ao pedido de ingresso como amicus curiae, verificou-se que o exame
da representatividade, em grande parte, se circunscreve a análise do estatuto social26
apresentado pelo pretenso amici e das finalidades instituídas pela entidade,27 embora
também seja observado pelo relator da ação em julgamento se o interesse do requerente
é coletivo e não só individual,28 se existe compatibilidade de interesses do requerente com
a matéria objeto da demanda,29 se são apresentados novos elementos que não constam do

26
“DECISÃO (Petição Avulsa STF n.46140/2008). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE
ADMISSÃO NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE: DEFERIMENTO. 1. Junte-se, quando do retorno dos autos da
Procuradoria-Geral da República. 2. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil requer seja admitido
na presente ação na qualidade de ‘amicus curiae’ (Petição Avulsa STF n.46140/2008). 3. Argumenta ser entidade
interessada, porque o tema “afeta, mais especificamente, os advogados, que se veem em desvantagem visual
quando, representando alguém, litigam contra o Ministério Público” (Petição Avulsa STF n.46140/2008). Pede “seu
ingresso no feito aderindo integralmente às razões expostas na exordial” (Petição Avulsa STF n.46140/2008). 4.
O peticionário apresenta os documentos necessários à comprovação dos requisitos necessários para o
seu ingresso na ação na qualidade de amicus curiae, como pretendido. 5. Defiro o pedido. À Secretaria para
fazer constar dos autos a entidade na condição aqui postulada. Publique-se. Brasília, 9 de abril de 2008.” Ministra
CÁRMEN LÚCIA. ADI 3962. (Grifos acrescentados). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/
verDiarioProcesso.asp?numDj=71&dataPublicacaoDj=22/04/2008&incidente=2559670&codCapitulo=6&numMa
teria=52&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.
“Despacho: A Associação Alagoana de Magistrados de Alagoas (ALMAGIS) e a Associação do Ministério Público
de Alagoas (AMPAL) requerem sua admissão na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade na qualidade de
amici curiae. A relevância da matéria é patente, porquanto no presente processo são discutidos temas sensíveis, tais
como a possibilidade de lei estadual criar varas especializadas em delitos praticados por organizações criminosas,
a legitimidade de um colegiado de magistrados de primeiro grau de jurisdição, também instituído por diploma legal
estadual, a constitucionalidade de procedimentos sigilosos criminais, a possibilidade de fixação de mandatos para
os juízes titulares de Vara Criminal, dentre outros. A representatividade dos requerentes é comprovada através
dos respectivos estatutos acostados aos autos. Além disso, as associações postulantes buscam a proteção
dos interesses de categorias diretamente interessadas no deslinde do caso, quais sejam, a magistratura
e o Ministério Público. Ademais, na sessão do dia 22 de abril de 2009, no julgamento da ADI-AgR nº 4.071 (Rel.
Min. Menezes Direito, DJ de 15.10.2009), o Plenário deste Supremo Tribunal Federal decidiu que os pedidos de
ingresso dos amici curiae poderão ser formulados até a inclusão do processo em pauta para julgamento, o que
revela a tempestividade deste pedido. Ex positis, admito o ingresso dos requerentes como amici curiae, na forma
do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99. (...)”. Ministro-Relator Luiz Fux. ADI 4414. (Grifos acrescentados) Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=61&dataPublicacaoDj=31/03/2011&i
ncidente=3886018&codCapitulo=6&numMateria=41&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.
27
Neste sentido, a conclusão de Thais Catib de Laurentiis, em estudo monográfico sobre a matéria, para a
qual, “De acordo com as decisões encontradas, o principal método utilizado pelos Ministros para demonstrar a
‘representatividade dos postulantes’ é pela análise do Estatuto Social do peticionário (amicus em potencial). Por via
deste, os Ministros retiram a finalidade da Associação ou Instituição que pede a intervenção no processo. Também
procuram encontrar as qualidades e regulamentação destas para justificar suas conclusões”. LAURENTIIS, Thais
Catib de. A caracterização do amicus curiae à luz do Supremo Tribunal Federal. São Paulo, 2007. 88 f. Monografia
apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público, p.36.
28
“Helder Rodrigues da Silveira requereu, às fls. 344-392, ingresso no feito na condição de amicus curiae. Não
assiste razão ao pleito, uma vez que o requerente, sendo candidato ao concurso, tem interesse concreto
no feito. Ausente, portanto, o requisito de representatividade inerente à intervenção prevista no art. 7º, § 2º da Lei
9.868, de 10.11.199, o qual, aliás, é explícito ao admitir somente a manifestação de outros “órgãos ou entidades”,
como medida excepcional aos processos objetivos de controle de constitucionalidade. Indefiro, portanto, o
ingresso do requerente na presente ação direta de inconstitucionalidade.” (Grifos acrescentados) Ministro-
Relator Gilmar Mendes. ADI 3580. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.a
sp?numDj=80&dataPublicacaoDj=25/04/2012&incidente=2322514&codCapitulo=6&numMateria=56&codMateri
a=2 Acesso em: 05.03.2013.
29
“A Federação Brasileira das Cooperativas dos Anestesiologistas – FEBRACAN requer sua admissão no feito
na qualidade de amicus curiae [fls. 503/ 549]. A pertinência do tema a ser julgado por este Tribunal com as
atribuições institucionais da requerente legitima a sua atuação. (...) Ex positis, admito o ingresso da FEBRACAN
no feito, na qualidade de amicus curiae , na forma do artigo 7º da Lei n.9.868/99. (Grifos acrescentados). Ministro-
Relator Luiz Fux. RE 598085 / Julgamento: 21/02/2013. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28amicus+e+curiae%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocratic
as&url=http://tinyurl.com/adrfafd Acesso em: 05.03.2013.

152 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


processo30 e se não ocorre sobreposição de interesses entre o amicus e a parte envolvida
na ação.31
Importa ressaltar, contudo, que embora na maioria dos casos a representatividade dos
requerentes seja examinada através da verificação da finalidade institucional do pretenso
amici, constante dos respectivos estatutos, além dos outros apontamentos acima referidos,
no caso da ADPF nº 186,32 de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que examinou
a constitucionalidade dos atos da Universidade de Brasília – UNB para utilizar o critério
racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade (sistema de cotas), admitiu
o ingresso de movimentos como: o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro – MPMB, o
Movimento Negro Unificado – MNU, a Educação e cidadania de Afrodescendentes e
Carentes – EDUCAFRO e o Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política
de Ações Afirmativas nas Universidades Federais, por considerar que tais entes atenderam
aos requisitos necessários para participar na qualidade de amigos da Corte.
No pedido de ingresso como amici, o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro –
MPMB, afirmou tratar-se da primeira associação de mestiços (pardos) do país atuando
desde 2001. O Movimento Negro Unificado – MNU, por sua vez, sustentou que é um
dos movimentos sociais com mais sólida atuação no combate ao racismo e que, em seu
espírito de formação e em sua experiência, congrega diversas organizações afro-brasileiras.
A Educação e cidadania de Afrodescendentes e Carentes – EDUCAFRO, afirmou possuir
a missão de promover a inclusão da população, pobre em geral e negra em especial,
nas universidades públicas e particulares por meio da concessão de estudo, através da

30
“(...) A mera manifestação de interesse em integrar o feito, sem o acréscimo de nenhum outro subsídio
fático ou jurídico relevante para o julgamento da causa, não justifica a admissão do postulante como amicus
curiae. Ademais, o SINDIMÉDICO não logrou demonstrar que detém experiência e autoridade em matéria de
saúde social, uma vez que dentre as suas “prerrogativas”, elencadas no art. 2º de seu Estatuto, figuram apenas
disposições de caráter eminentemente coorporativas e de interesse próprio da categoria, como por exemplo”. (Grifos
acrescentados) Ministro-Relator Joaquim Barbosa, em 15.04.2005. ADI nº 3311/DF, DJ n.77 do dia 25.04.2005.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=34&dataPublicacaoDj=21/
02/2005&incidente=2246660&codCapitulo=6&numMateria=13&codMateria=2 Acesso em 19.02.2013.
31
“Petição/STF nº 73.642/2011 (eletrônica) DECISÃO PROCESSO OBJETIVO – INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
– REPRESENTATIVIDADE – SOBREPOSIÇÃO. 1. A Assessoria prestou as seguintes informações: A mencionada
ação direta versa a possível inconstitucionalidade da Resolução n° 135, de 13 de julho de 2011, do Conselho
Nacional de Justiça, a qual “dispõe sobre a uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo
disciplinar aplicável aos magistrados, acerca dos ritos e das penalidades, e dá outras providências”. A Associação
Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES requer seja admitida na qualidade de terceiro, no processo
em referência. Tece considerações quanto ao mérito e apresenta cópias do instrumento de mandato, do estatuto
social e da ata de posse da Diretoria, dela constando o nome do subscritor da procuração. Aduz ter interesse na
matéria por caber-lhe defender os direitos dos magistrados estaduais e o fortalecimento das Justiças dos Estados
da Federação. O processo foi apresentado em mesa para julgamento em 5 de setembro de 2011. 2. Observem
a ordem natural das coisas, a organicidade do Direito. Os magistrados brasileiros estão representados nesta
ação direta de inconstitucionalidade pela Associação maior, ou seja, a Associação dos Magistrados Brasileiros.
Admitir outras associações de magistrados não trará o objetivo da participação, que é o esclarecimento
da matéria. Haveria, em última análise, sobreposição a ocasionar a complexidade da tramitação do
processo. 3. Indefiro a participação da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES.” (Grifos
acrescentados). Ministro- Relator Marco Aurélio. ADI4638. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/
verDiarioProcesso.asp?numDj=178&dataPublicacaoDj=16/09/2011&incidente=4125637&codCapitulo=6&numMa
teria=136&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.
32
Decisão monocrática na ADPF 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/
diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=119&dataPublicacaoDj=30/06/2010&incidente=2691269&codCapitu
lo=6&numMateria=101&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 153


dedicação de seus voluntários em forma de mutirão e dos funcionários que atuam nos
setores de trabalho de sua sede nacional.33
Também solicitou o ingresso como amicus curiae o Movimento contra o
Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações Afirmativas nas Universidades
Federais, sob o argumento de que atua nacionalmente na luta contra as ilegalidades/
inconstitucionalidades contidas nas resoluções editadas nas universidades públicas para
implementação do programa de ações afirmativas no ensino superior, em razão do que
podem acostar informações de extrema importância para o julgamento.34
Tais decisões demonstram o reconhecimento de que o ingresso de movimentos
sociais diretamente envolvidos na questão discutida na ação constitucional é importante
no sentido de trazer aportes a proporcionar a mais adequada resolução do litígio
constitucional, por trazerem aos autos toda a experiência adquirida ao longo da luta
pelos valores e princípios que o movimento defende. A representatividade, embora
neste estudo se considere que não deva ser tratada como requisito absoluto, se mostra
patente pela atuação dos referidos movimentos o que certamente autoriza e demonstra
a capacidade de apresentarem em juízo o posicionamento e os pedidos do grupo social
que representam.
Frise-se, contudo, que junto à mesma ADPF nº 186, restou indeferido o pedido do
Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Brasília – DCE-UnB, representando
o movimento estudantil, especificamente dos estudantes da Universidade de Brasília,
sem maiores explicações.35
Avançamos, mas é preciso mais avançar.
O aprofundamento da participação cidadã está na raiz do conceito de democracia,
cujo florescimento, crescimento e manutenção, dependem diretamente da construção
social coletiva. Como propugna Joaquín Herrera Flores “La democracia no se otorga,
la democracia se conquista” (FLORES, s.n., p.89) , e esta conquista se dá ao longo da
existência, no cotidiano, no evolver social, a democracia,

[…] se conquista luchando día a día construyendo las condiciones materiales


que nos van a permitir disfrutar de las libertades formales ya conseguidas. Es
preciso, pues, “distribuir” entre la ciudadanía las posibilidades que éstas nos
garantizan. En otros términos, hay que conseguir distribuir el poder político lo
máximo posible para que en conjunto todas y todos, no sólo los que parten ya de
condiciones materiales adecuadas, podamos disfrutar de la libertad y del estado
de derecho. (FLORES, s.n., p.89)

33
Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, publicada no DJ nº 119 de 30.06.2010.
34
Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo
Lewandowski publicada no DJ nº 149 de 13.08.2010.
35
Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, publicada no DJ nº 119 de 30.06.2010.

154 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


À vista da finalidade democrático-participativa do instituto do amicus curiae,
compreende-se que o exame do pedido de ingresso nas ações constitucionais deve ser
aferido caso a caso,36 verificando-se as especificidades de cada ação. A segurança não
está na criação de um critério absoluto que se demonstrado possibilitará o ingresso na
demanda, condição, como já aduzido anteriormente, pode acabar por limitar o acesso de
outros entes interessados em participar. Mas sim no exame da potencialidade do requerente
em acrescentar elementos da realidade social que o mundo dos autos, a mais das vezes,
não teria conhecimento. Está em permitir que o cidadão participe da democracia que ele
mesmo instituiu. Mostra-se presente na possibilidade de múltiplas dimensões do ambiente
social, presentes na sociedade complexa e multicultural em que vivemos, se fazerem
ouvir. Apresenta-se pela possibilidade de diversas manifestações de valores e de opções
políticas, seja pela liberdade, pela igualdade, pela diversidade, etc., sejam consideradas
como fazendo parte do todo e por isso são dignas de respeito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância do sistema de controle concentrado de constitucionalidade está em
resguardar os preceitos fundamentais da comunidade que o instituiu. Por tratar-se de
processo objetivo, em que não há partes nem pretensão subjetiva a ser satisfeita, mas o
exame em abstrato da (in)constitucionalidade de determinado dispositivo legal, em um
primeiro momento, o processo de controle concentrado veda a intervenção de terceiros
interessados em participar da demanda, como se verifica da leitura do caput, do art. 7º,
da Lei nº 9.868/99.
Demonstrando uma tendência à abertura do processo constitucional à maior
participação, jurisprudência e legislação passaram a admitir a intervenção do amicus
curiae como um terceiro interveniente especial, que atua não em razão de interesse
próprio, mas em face de um interesse maior, de caráter plural e democrático, no sentido
de dar impulso a uma aproximação do Tribunal Constitucional com a sociedade, de
promover o aprimoramento do debate judicial e assim conferir legitimidade democrática
às decisões do Tribunal.
No entanto, segundo previsão do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99, a intervenção
do amicus curiae esta condicionada a demonstração da representatividade, considerada
pela doutrina e jurisprudência, como a comprovação de que o pretenso amici possui
interesse institucional para atuar na demanda constitucional, no sentido de que sua
pretensão transcende o âmbito individual sendo capaz de congregar interesses coletivos
e até mesmo difusos.

36
Neste sentido, Cassio Scarpinella Bueno, aduz que a representatividade não pode ser aferida em abstrato,
conforme se verifica: “O que nos parece pertinente ser afirmado à guisa de conclusão deste item é a impossibilidade
de, em abstrato, isto é, sem confrontar o específico objeto da ação direta de inconstitucionalidade com a razão
institucional de ser e de agir, concretamente, o amicus curiae, verificar em que condições se mostram presentes
os requisitos autorizadores do art. 7º, § 2º, da Lei n.9.868/99, em específico para as preocupações aqui mais
presentes, o requisito da representatividade daquele que pretende ingressar no processo e, de alguma forma,
contribuir ativamente para o proferimento de melhor julgamento, acrescentando fatos, circunstâncias, elementos,
indagações e preocupações para a matéria que está posta para julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”.
(BUENO, 2008, p.157).

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 155


O (in)deferimento pelo Supremo Tribunal Federal do ingresso do requerente a amicus
tem se pautado, a mais das vezes, na verificação da comprovação de tal requisito, através
do exame das finalidades institucionais constantes dos estatutos sociais apresentados,
como também do interesse coletivo e não individual do requerente, da compatibilidade
de interesses com a matéria objeto da demanda, da apresentação de novos elementos ao
processo e da não ocorrência de sobreposição de interesses.
À vista da finalidade democrático-participativa do instituto do amicus curiae,
compreende-se que a fixação de um requisito absoluto, mas de definição fluída, acaba por
desvirtuar o caráter democrático do instituto, na medida em que tal exigência importa,
irremediavelmente, em restrição ao acesso à participação da sociedade nas ações de
controle de constitucionalidade, quando na verdade deveria abrir passo a todos quantos
fossem os interessados a participar, tendo em vista que a finalidade do instituto corresponde
exatamente à abertura a participação democrática.
Nesse sentido, os movimentos sociais também possuem condições de intervir
como amicus curiae, pois sua atuação parte da premissa de que representam parte da
sociedade civil organizada na busca e defesa de interesses de todos ou do grupo social
a que representam, com vistas a promover um contato mais próximo do Judiciário com
a realidade e realizar um efetivo diálogo social ao par de um envolvimento coletivo nas
questões importantes para o país, máxime quando se questiona o implemento, respeito
e observação de normas constitucionais em ações cujos resultados importarão em uma
onda reflexiva contra todos. Avanços na democratização das decisões em sede de controle
de constitucionalidade já são sentidos, veja-se as inúmeras decisões pelo deferimento do
ingresso de entidades como amicus curiae, mas ainda é preciso mais avançar a fim que
a finalidade democrática do instituto realmente seja alcançada.

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Site consultado: http://www.stf.jus.br

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 157


O ativismo judicial por meio de súmulas
vinculantes: uma análise acerca dos
paradoxos da separação de poderes
na atualidade
Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar

RESUMO
O Supremo Tribunal Federal tem demonstrando certo protagonismo no cenário político
nacional, em virtude da judicialização de vários temas relevantes para a sociedade e do ativismo
de seus ministros. Nesse contexto, a Emenda Constitucional 45/04 instituiu as súmulas vinculantes,
ampliando o poder da Corte. O presente trabalho busca demonstrar que o ativismo judicial pode ser
perpetrado por meio das súmulas vinculantes e que, assim, o STF pode utilizar-se desse instrumento
para exercer o poder legislativo, desrespeitando o princípio da separação de poderes.
Palavras-chave: STF. Separação de poderes. Ativismo judicial. Súmulas vinculantes.

Judicial activism through “súmulas vinculantes”: An analyses about


paradoxes of separation of powers and its present-day

ABSTRACT
Supremo Tribunal Federal (Brazilian Federal Supreme Court) has been prominent in the
national political scenery, because of judicialization of plenty of important issues and its judges’
activism. In this context, Court’s power was increased up by the Constitutional Amendment
45/04, which established Brazil’s legal institute called “súmulas vinculantes”. This work aims to
demonstrate that judicial activism can be perpetrated by the “súmulas vinculantes” and, because
of it, STF can use this instrument to exercise legislative power, what disrespects the principle of
separation of powers.
Keywords: STF. Separation of powers. Judicial activism. “Súmulas vinculantes”.

1 DO ATIVISMO JUDICIAL
1.1 Da separação de poderes ao ativismo judicial
O Estado é o poder soberano, que emana de um povo, sobre determinado território,
com finalidades determinadas, o qual comporta três funções estatais básicas: a executiva,
a legislativa e a jurisdicional.
Nesse contexto, o postulado da separação de funções ou de poderes preconiza
que cada uma dessas funções deve incumbir a um centro de poder diferente. Assim, as

Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar é Bacharel em Direito pela Universidade Paulista e Analista Judiciário
no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Direito e Democracia Canoas v.13 n.1 p.158-170 jan./jun. 2012


158 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012
funções executiva, legislativa e jurisdicional devem ser exercidas, respectivamente, pelo
Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário. Esse princípio associou-se ao conceito de
Estado de Direito, chegando ao status de direito fundamental do homem (BONAVIDES,
2002), estando consagrado no artigo 2º da Constituição de 1988.
Com a transformação desse postulado, tanto no direito brasileiro quanto no
comparado, fala-se em flexibilização da separação de poderes, visualizando-se como
inadequada a separação rígida nos moldes propostos por Montesquieu, como preleciona
o Professor André Tavares (TAVARES, 2009). Na visão contemporânea, a divisão
de poderes tem sido compreendida a partir de dois pontos essenciais; a necessidade
de contenção dos poderes da maioria, limitando-se o poder político para proteção da
minoria, e a crise da função legislativa (VALLE et al., 2009). Nessa conjuntura, surge
o ativismo judicial.
O ativismo judicial é uma postura que o Judiciário pode assumir em relação aos
Poderes Executivo e Legislativo, mormente no que tange à interpretação da Constituição.
Segundo sua proposta, os juízes, além de exigirem o cumprimento formal da lei, devem
decidir com base em interpretações extraídas dos princípios do Direito, notadamente os
constitucionais. Expande-se o conteúdo da Constituição, modificando o alcance de suas
normas com vistas a atingir os objetivos que ela prevê. Com essa postura, a atuação
jurisdicional interfere em decisões políticas do governo, analisando-as sob a ótica dos
preceitos extraídos do direito positivo. É realizada uma releitura dos atos governamentais
sob a égide dos valores advindos da Constituição. Os juízes podem, inclusive, passar a
ditar políticas públicas. Tem-se, assim, uma atitude mais audaciosa dos juízes devido à
ilação de princípios constitucionais abstratos, tais como a dignidade da pessoa humana,
igualdade, liberdade de expressão, etc. (OLIVEIRA, 2008). Sobre o tema, o festejado
constitucionalista estadunidense Ronald Dworkin assim esclarece:

O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação


das chamadas cláusulas constitucionais vagas (…). Devem desenvolver princípios
de legalidade, igualdade e assim por diante, revê-los de tempos em tempos à luz
do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do
Congresso, dos Estados e do presidente de acordo com isso. (DWORKIN apud
OLIVEIRA, 2008)

O ativismo representa a avocação de funções mais amplas pelos tribunais, que


passam a interferir nas decisões políticas fundamentais do Estado. Desse modo, os
programas de governo e as leis infraconstitucionais passam a ser vistas através das lentes
da interpretação que o Judiciário dá aos preceitos previstos na Constituição, ainda que
abstratos ou implícitos. É uma posição diametralmente oposta ao modelo da autorrestrição
ou da moderação judicial, a qual preconiza que o Judiciário se abstenha de avaliar a posição
do Legislativo e do Executivo quando se trata de questões controversas do ponto de vista
moral ou político. Segundo a ideologia da autorrestrição, a avaliação jurisdicional é feita
no âmbito formal, analisando-se, por exemplo, a observância do processo legislativo, mas

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 159


não a decisão política contida em determinada lei. Os magistrados, sob esse ponto de vista,
tendem a proferir decisões sobre atos do governo com base em regras objetivas.
Cumpre ressaltar que o modelo de ativismo judicial está intrinsecamente ligado à
judicialização, que consiste na tomada de decisões de alta relevância, do ponto de vista
político-social, pelo Judiciário. Com a judicialização, a competência para resolver assuntos
que repercutem amplamente na sociedade vai sendo deixada sob a responsabilidade
dos juízes, ao invés de serem decididos pela Administração Pública ou regulados pela
legislação ordinária. Analisando este fenômeno no Brasil, o professor Luis Roberto Barroso
aponta como suas causas o processo de redemocratização do país, a constitucionalização
abrangente e o sistema judicial de controle de constitucionalidade (BARROSO, 2009).
E, ainda valendo-se dos ensinamentos de Barroso, cabe salientar que, apesar da ligação
entre a judicialização e o ativismo, há diferenças entre eles. A judicialização não é uma
decisão nem uma forma de atuação dos juízes, tendo em vista que a sua competência
não é por eles definida, mas pela legislação. O ativismo, por sua vez, é uma postura que
eles podem ou não adotar.
O ativismo, portanto, tem na judicialização seu catalisador. À medida que se aumenta
o leque de assuntos sob a tutela jurisdicional, mais fácil se torna a intervenção do Judiciário
nos rumos políticos do país, exercendo um papel de protagonista no cenário político.
Em breve síntese, a crítica aponta que o ativismo judicial abalaria o equilíbrio entre
os poderes, por representar uma ingerência do Judiciário em tarefas originariamente afetas
ao Legislativo e ao Executivo, tirando dos centros de comando democraticamente eleitos
as decisões que mais afetam o corpo social. Seria então uma postura que torna os juízes
mais poderosos, entregando-lhes grande parcela da gestão do Estado, sem que tenham
recebido essa legitimidade por meio do sufrágio. Seria, segundo Oscar Vilhena Vieira,
uma ruptura do postulado da separação dos poderes que exporia o próprio Judiciário e o
fragilizaria ante a responsabilização pelas suas opções políticas (VIEIRA, 2008).
Traz-se à colação, em oposição a tais críticas, a posição de Tiago Neiva Santos,
que vê no ativismo judicial “um movimento que, advindo de um efetivo pluralismo
democrático de acesso ao judiciário e de uma crescente judicialização das questões postas
na sociedades, veio para reforçar as bases democráticas da formação da vontade social
expressa pelo Estado” (SANTOS, 2007). Sílvio Dobrowolski vai mais longe ao descrevê-
lo como indispensável no estado contemporâneo, em virtude da coletivização dos direitos
e da dispersão de interesses. Faz, no entanto, importante ressalva, de que devem sempre
ser observadas “as normas legisladas e a separação dos poderes” (DOBROWOLSKI,
1995).

1.2 Do ativismo do STF


O Supremo Tribunal Federal tem decidido importantes questões políticas e, assim,
obtido amplo espaço na mídia. A esse respeito, como nota Vieira, cumpre mencionar que
esse protagonismo do Judiciário não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Pelo

160 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


contrário, o avanço dos juízes no cenário político e o aumento de suas atribuições é um
fenômeno que vem ocorrendo em vários países (VIEIRA, 2008).
Conquanto se trate de uma situação presente em diversos ordenamentos jurídicos,
o ativismo judicial da Corte Maior brasileira apresenta peculiaridades. Isso deriva das
próprias atribuições do STF que abrangem a competência recursal, analisando recursos em
matéria constitucional; a competência originária, de julgar determinadas ações quando o
polo passivo for ocupado por determinadas autoridades, no chamado foro privilegiado, e,
por fim, o mister de efetuar o controle concentrado de constitucionalidade. Vieira denomina
esse fenômeno de “Supremocracia”. Primeiro, pela autoridade da Corte Excelsa em relação
aos demais órgãos jurisdicionais, que ganha vulto com a criação de instrumentos para
vinculá-los, tais como a reclamação constitucional. Segundo, em virtude do aumento
dessa autoridade em detrimento dos demais poderes (VIEIRA, 2008).
Nesse contexto de fortalecimento da Suprema Corte brasileira, foi-lhe dada
competência para editar súmulas vinculantes, as quais são de observância obrigatória
pelo próprio Judiciário e pelo Poder Executivo. Torna-se, assim, de clara importância
verificar se o ativismo judicial do STF pode ser perpetrado e até mesmo potencializado
por meio da utilização desse instrumento jurisdicional.

2 DAS SÚMULAS VINCULANTES


2.1 Das súmulas vinculantes, dos precedentes no Common Law
e da criação do Direito
As súmulas da jurisprudência dominante com efeito vinculante foram introduzidas
no ordenamento jurídico, após longo percalço no Congresso Nacional, pela Emenda
Constitucional (E.C.) nº 45 de 2004. Só podem ser editadas pelo Supremo Tribunal
Federal, desde que atendidos os requisitos previstos na C.F. (Constituição Federal) e na
Lei nº 11.417 de 19 de dezembro de 2006. O enunciado pode ser aprovado no caso de
existirem reiteradas decisões da Corte Maior sobre matéria constitucional, sobre a qual
haja, entre os órgãos judiciários ou entre estes e a Administração Pública, controvérsia
atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos
sobre uma mesma questão. Deve ser, ainda, aprovado por maioria de dois terços dos
ministros do STF.
O objeto para formulação de súmula vinculante é a validade, a interpretação e a
eficácia de normas determinadas. Pode-se tratar de questões atinentes à interpretação
de normas constitucionais ou destas em confronto com diplomas normativos
infraconstitucionais. Sua inspiração remonta aos precedentes, utilizados no sistema do
Common Law. O Common Law, um dos grandes modelos jurídicos do Ocidente, tem
origem anglossaxã, sendo o modelo que se estrutura sobre as decisões judiciais, tendo,
pois, caráter judicialista. As decisões de casos particulares formam os precedentes,
denominados stare decisis, termo derivado da expressão stare decisis et quieta non movere
(mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido). Os precedentes têm valor

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 161


normativo, constituindo fonte do direito e vinculando a forma pela qual os demais órgãos
jurisdicionais devem julgar. Assim, a primeira decisão sobre determinado tema, chamada
leading case, serve de paradigma para os próximos casos.
Por sua vez, a família do Civil Law é o modelo codificado continental, centralizado
em sua fonte formal mediata, que é a lei. Trata-se de um sistema positivista, em que se
busca estabelecer normas gerais e abstratas, de cujas premissas, por meio de procedimentos
lógico-científicos, se obtém conclusões para aplicação nos casos específicos. Tal é o
ordenamento jurídico doméstico, dentre outros de tradição romano-germânica.
Após essa sucinta digressão acerca das duas famílias do direito, conclui-se que a
criação das súmulas vinculantes, no direito brasileiro, inseriu um instituto forjado no
sistema do Common Law em um ordenamento nitidamente romanista (CARVALHO, 2009).
Desse modo, enfraquece-se a ideia de que a criação das normas jurídicas é
tarefa original e privativamente atribuída ao Poder Legislativo, em sua típica função
legiferante, e de que ao Judiciário incumbiria apenas a aplicação do direito posto nos
casos concretos, com vistas a obter a pacificação social. Mesmo porque, como preleciona
Kelsen, a produção normativa se completa com a atuação jurisdicional, de modo que ao
Judiciário também compete a função criadora do direito. A decisão judicial seria, assim,
a continuação do processo de criação jurídica, definindo a norma jurídica individual.
Tal função criativa seria mais notável ao se atribuir a competência aos magistrados de
editar normas gerais. Daí mencionar o grande mestre erradicado nos Estados Unidos a
chamada descentralização da função legislativa, ao identificar a atuação do Judiciário em
concorrência com o Legislativo (KELSEN, 2009), o que abarcaria a criação de súmulas
vinculantes.
Deve-se recordar, ainda, que a produção do Direito pelo Judiciário já vem sendo
aceita pela doutrina, destacando-se no sistema de precedentes, pelo qual as decisões
anteriores de determinado tribunal têm força cogente. André Ramos Tavares, por
exemplo, defende que o Judiciário atue influindo na formação do ordenamento jurídico,
inclusive por meio das súmulas vinculantes. Defende o mestre, entretanto, que as súmulas
vinculantes não possuem o mesmo patamar da lei, tendo em vista não poderem destoar
dela (TAVARES, 2009).
As súmulas vinculantes se tornam, por evidente, verdadeiras fontes do direito,
por serem precedentes que orientam, de forma obrigatória, as decisões posteriores.
Não obstante, desde que dentro das diretrizes estabelecidas pela Constituição, é mister
reconhecer referida fonte como legítima, dada a evolução do conceito de tripartição dos
poderes.

2.2 Críticas às súmulas vinculantes


Como instituto polêmico e inovador, as súmulas vinculantes tornaram-se alvo de
debate no meio jurídico, tendo sido elencados aspectos positivos e negativos. Faz-se, aqui,
uma pequena enumeração das críticas mais consistentes e das respostas correlatas.

162 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


A primeira crítica que se faz às súmulas vinculantes é a possibilidade de se causar
o “engessamento” do Judiciário, tornando os órgãos julgadores hierarquicamente
abaixo do STF invariavelmente vinculados ao pensamento deste. De tal maneira,
restaria tolhida a liberdade funcional dos magistrados, a qual representa, em última
análise, uma garantia do cidadão de obter uma prestação jurisdicional imparcial.
Como exemplos de críticos, pode-se citar a ilustre ministra Carmen Lúcia
Antunes Rocha, para quem as súmulas vinculantes representam efetiva reforma
constitucional só passível de mudança por meio de emendas (ROCHA, 1997), e o
ex-ministro do STF. Eros Grau, o qual afirma que: “nenhuma razão ou pretexto se
presta a justificar essa manifestação do totalitarismo, que também nenhuma lógica
pode sustentar e que, afinal, há de agravar ainda mais a crise do direito oficial, em
nada contribuindo à restauração de sua eficácia.” (GRAU apud MORAES, 2010).
Assumindo a defesa do instituto em estudo, Alexandre de Moraes (MORAES,
2010) e Gilmar Ferreira Mendes (MENDES et al., 2009) apontam a possibilidade de
revisão e cancelamento das súmulas como forma de se acompanhar a transformação
do direito. Mendes ainda salienta que, no procedimento de revisão, torna-se mais
fácil analisar o argumento de superação do enunciado do que nos vários recursos
distribuídos diariamente.
Quanto à independência dos magistrados, Pedro Lenza aponta haver um choque
de princípios, do qual deve prevalecer a segurança jurídica e a igualdade substancial
ou formal sobre o preceito da liberdade do juiz (LENZA, 2010). André Tavares
dá ênfase à unidade do direito, explicando que as súmulas podem evitar decisões
diversas para casos análogos, o que manteria o bom funcionamento do Judiciário
(TAVARES, 2009).
É de se lembrar, ainda, que apesar de serem resultado de interpretação de normas,
os enunciados também precisam ser interpretados. Além do mais, é necessário que se
verifique em quais situações devem ser aplicados, operação denominada, no sistema
dos precedentes, de distinguishing. Isso deixaria uma parcela de liberdade ao julgador,
sem lhe tolher totalmente a independência para atuar.
Outra objeção apresentada é a falta de legitimidade do Judiciário para a criação
do direito. A esse respeito, hodiernamente, a doutrina tem apontado para uma relação
de harmonia e colaboração entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, de modo
que o Professor Inocêncio Mártires Coelho fala em flexibilização do princípio da
separação de poderes (MENDES et al., 2009). Na defesa do instituto, André Ramos
Tavares aponta três argumentos a favor da legitimidade, dizendo que a própria
Constituição admite tal forma de atuar do Judiciário, que a capacitação técnica é
forma de legitimação do Judiciário e que a legitimidade democrática não advém
apenas da representatividade eletiva (TAVARES, 2009).
O maior argumento contra o instituto das súmulas vinculantes é ser ele
instrumento de totalitarismo do Judiciário, o qual pode extrapolar sua função típica e
imiscuir-se na competência do Legislativo, ao estipular normas gerais que alcançam

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e vinculam o Executivo. Ter-se-ia, então, ativismo por parte do Pretório Excelso, ao
editar enunciados de caráter geral em matéria constitucional, o que será analisado
a seguir.

3 DO ATIVISMO JUDICIAL E DAS SÚMULAS


VINCULANTES
3.1 Da possibilidade do ativismo judicial por meio das súmulas
vinculantes
As súmulas vinculantes consubstanciam um entendimento do STF que deve ser
observado, obrigatoriamente, pelos demais órgãos jurisdicionais e pela Administração
Pública. De plano, pode-se verificar que a forma pela qual o Judiciário, por meio desse
instrumento, pode imiscuir-se em função que não lhe é originalmente afeta é a edição de
normas gerais, invadindo a esfera funcional do Legislativo. Com a edição de enunciados
que vinculam o Judiciário e a Administração, o STF cria regras gerais sobre matéria
constitucional, o que parece extrapolar de sua função típica. Nesse âmbito, há a lição do
preclaro constitucionalista José Afonso da Silva, que entende existir essa usurpação da
tarefa legiferante pelos juízes:

Os assentos eram, pois, as súmulas vinculantes de outrora, com a mesma força de


lei, como uma forma de interpretação oficial, impositiva, tal como as interpretações
autênticas e, nesse sentido, subversivas dos princípios do direito público, já que
interpretação oficial obrigatória só é legítima quando feita pelo Poder Legislativo.
Apesar disso, foram elas acolhidas no art. 103-A introduzido pela EC-45/2004.
(SILVA, 2007)

Não destoa desse entendimento a ministra Cármen Lúcia, a qual, mesmo antes da
aprovação da Emenda 45/2004, consignou seu pensamento de que as súmulas vinculantes
transformariam a Corte Maior em autora de uma legislação paralela, que só poderia ser
alterada por emenda constitucional (ROCHA, 1997).
Conforme já citado, Tavares manifesta-se de modo oposto, argumentando que,
por estar o Judiciário vinculando à legislação, a súmula tem caráter infralegal, mesmo
que dotada de efeito vinculante. Explica o respeitado mestre que o enunciado apenas
consubstancia uma das interpretações possíveis do direito posto, excluindo as demais
(TAVARES, 2009).
A incumbência de interpretação da Constituição Federal e de análise da conformação
das normas inferiores com o Texto Magno pertence, de fato, ao Supremo Tribunal
Federal. No entanto, consigne-se que, a título de interpretação, pode haver a criação
de normas gerais, decidindo-se extra legem, acrescentando-se ao ordenamento jurídico
verdadeiras novas leis no sentido material. Caso isso ocorra, ter-se-á uma ingerência na

164 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


função legislativa, configurando de modo inequívoco o fenômeno denominado ativismo
judicial. Isso porque a tarefa de promulgar diplomas normativos de caráter geral é função
constitucionalmente atribuída às Casas Legislativas.
O próprio Ministro Gilmar Mendes, favorável à adoção das súmulas vinculantes,
admite essa possibilidade:

Ao se analisar detidamente a jurisprudência do Tribunal, no entanto, é possível


verificar que, em muitos casos, a Corte não atenta para os limites, sempre
imprecisos, entre a interpretação conforme delimitada negativamente pelos sentidos
literais do texto e a decisão interpretativa modificativa desses sentidos originais
postos pelo legislador.
No recente julgamento conjunto das ADIs 1.105 e 1.127, ambas de relatoria
do Ministro Marco Aurélio, o Tribunal, ao conferir interpretação conforme a
Constituição a vários dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94),
acabou adicionando-lhes novo conteúdo normativo, convolando a decisão em
verdadeira interpretação corretiva de lei. (MENDES et al., 2010)

Há ativismo também quando a Suprema Corte interpreta os princípios constitucionais


de modo a abarcar situações não previstas na Constituição. Portanto, partindo da
interpretação, pode a Corte criar regras partindo de uma visão subjetiva de preceitos
genéricos, tais como a isonomia e a moralidade.
Portanto, se o Supremo Tribunal se utilizar das súmulas vinculantes para fins de
inovar o ordenamento jurídico, excedendo a interpretação e acrescentando regramentos
não impostos pelo legislador, haverá uma extrapolação de suas funções. É inegável, assim,
a possibilidade de ativismo judicial por meio da edição de súmulas com efeito vinculante,
que ocorrerá ou não dependendo do conteúdo que lhes servirem de objeto.

3.2 Das súmulas vinculantes permeadas de ativismo judicial


Analisando-se as súmulas vinculantes editadas pelo Pretório Excelso, podem-se
extrair duas amostras de ativismo judicial, a que recebeu o nº 11, referente ao uso de
algemas, e a nº 13, que trata do nepotismo. A Súmula Vinculante nº 11 foi aprovada pela
Corte Maior em 13 de agosto de 2008, com o seguinte enunciado:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga


ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do
ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
(BRASIL, 2008)

Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 165


A linha que tomou a Corte Maior para aprovação do enunciado foi, como ponto
de partida, uma releitura do artigo 1º, inciso III, e do artigo 5º, inciso XLIX, da Magna
Carta, que tratam da dignidade da pessoa humana e do respeito à integridade física e
moral dos presos. Por analogia, a Ministra Cármen Lúcia, relatora do habeas corpus
89.429-1, fez menção, ao artigo 234 e seu parágrafo primeiro, do Código de Processo
Penal Militar, Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969, que tratam do emprego da
força e do uso de algemas.
Verifica-se que, in casu, decisões sobre casos concretos, em que se analisou o uso
da algema, foram levadas em conta para edição de um enunciado com status de norma
geral, regulando a matéria com um texto cuja natureza é de lei em sentido material. Foi
elaborado um rol exaustivo de situações em que se permite sua utilização: de resistência
e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte
do preso ou de terceiros.
Há uma regra contida no texto sumular que deixa explícito seu caráter de lei.
Trata-se da disposição de que, se ocorrer uma das hipóteses excepcionais e for necessário
lançar mão das algemas, a excepcionalidade deve ser justificada por escrito. E mais:
no caso de não haver essa fundamentação, para a qual se exige a forma escrita, haverá
a responsabilização administrativa, civil e penal do agente ou da autoridade, além da
responsabilidade civil do Estado. Há ainda outra consequência, a nulidade da prisão ou
do ato processual correlato.
Deve-se lembrar que não se trata, aqui, de interpretar a Constituição ou de efetuar o
controle de constitucionalidade de normas, mas de efetiva atuação legislativa, notadamente
quanto à exigência de justificativa com forma preestabelecida (escrita). Fica claro que
o Judiciário editou norma, aplicável a todos de forma genérica, sem que houvesse
manifestação do Congresso Nacional, a quem compete tal atividade.
A questão da nulidade da prisão ou do ato processual a que se relaciona a prisão
mostra-se mais próxima da função jurisdicional, ao prever uma situação que pode, sob a
égide da Constituição Cidadã, tornar eivado o ato processual ou tornar o encarceramento
ilegal. Entretanto, ao estipular os casos em que algemar é licito ou é ilícito, bem como o
procedimento de justificar o ato, o Supremo Tribunal Federal agiu de forma a completar
o direito posto, extrapolando a sua função de interpretá-lo.
Oportuno mencionar que, dos debates para aprovação da súmula sub examine,
depreende-se que o eminente Ministro Cezar Peluso, preocupado com a possibilidade
de descumprimento do texto a ser sumulado, que não previa consequências, aventou a
possibilidade de se estabelecer uma sanção para tais casos. Ora, apesar de estar contido
na função jurisdicional o poder de se impor multa em caso de descumprimento, verbi
gratia as astreintes do processo civil, essa imposição é feita para os litigantes, para pessoas
determinadas, não para qualquer um que, futuramente, descumpra a decisão judicial.
Deve-se ressalvar, por relevante, que a crítica não concerne ao mérito da questão, no
tocante à legalidade ou não do uso de algemas e à necessidade de regras claras a respeito.
O cerne da problemática é a legitimidade para proceder a tal controle, a competência

166 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


para elaborar um texto normativo que impeça os abusos, pois, não é demais repisar, essa
tarefa incumbe ao Poder Legislativo.
Ante o brevemente exposto, é forçoso concluir que houve atuação jurisdicional,
na súmula vinculante em tela, além do que incumbe ao Judiciário, tendo-se um típico
exemplo de ativismo judicial perpetrado pelo órgão de cúpula de tal poder.
Quanto à Súmula Vinculante nº 13, foi aprovada no dia 20 de agosto de 2008, com
o texto que se traz à colação:

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral


ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou
de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia
ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança
ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta
em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal. (BRASIL, 2008)

No início dos debates de sua aprovação, o Ministro Ricardo Lewandowski


apresentou a seguinte proposta de redação:

A proibição do nepotismo na Administração Pública, direta e indireta, em qualquer


dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, independe
de lei, decorrendo diretamente dos princípios contidos no artigo 37, caput, da
Constituição Federal.

Com base em decisões anteriores do STF (proferidas na ação direta de


inconstitucionalidade nº 1.521-4, no mandado de segurança 23.780-5, na medida
cautelar em ação declaratória de constitucionalidade 12-6, nessa própria ação e no
recurso extraordinário 579.951-4), apontou-se que o nepotismo contraria a Magna
Carta, notadamente os princípios previstos em seu artigo 37. Desse modo, em sua
proposta original acima transcrita, o enunciado representava uma exegese dos princípios
constitucionais da Administração Pública, sem inovar no sistema jurídico doméstico.
No entanto, na redação aprovada, além de se cogitar da inconstitucionalidade
da prática do nepotismo, foram criados parâmetros, numa atividade legiferante, ao se
prever que se considera ilegítima a nomeação que recaia sobre cônjuge, companheiro ou
parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau. Definindo-se o grau
de parentesco, o Supremo Tribunal traçou as diretrizes, impôs regras gerais específicas
e, com isso, excedeu aos seus poderes atribuídos pela Lei Política da nação. Em que
pese a importância da matéria e a plausibilidade do dispositivo em estudo, a edição da
Súmula Vinculante nº 13 ilustra o que se chama hodiernamente de ativismo judicial.

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Para finalizar o estudo da súmula em tela, traz-se à colação a conveniente conclusão de
Eduardo Appio sobre o assunto:

O STF passa a aceitar a incumbência de regular os mais importantes temas da


agenda política do país, exercendo verdadeira atividade legislativa (positiva),
convertendo-se, doravante, na Corte Constitucional mais ativista do mundo
ocidental e principal Casa Legislativa do país. O resultado da súmula, muito embora
correto do ponto de vista da ética política, é consequência do uso indevido de um
instrumento normativo que deveria estar reservado para os casos de revisão da
atividade política dos demais Poderes da República. Em uma democracia, os fins
– mesmo que nobres – nunca justificam os meios. (APPIO, 2008)

Portanto, tal enunciado também exemplifica o ativismo judicial materializado em


súmulas vinculantes.

4 CONCLUSÃO
O atual protagonismo do Supremo Tribunal Federal tem como base o ativismo
judicial de seus membros e a crescente judicialização no plano político do país.
Incrementando essa primazia do órgão de cúpula do Judiciário, a Emenda Constitucional
45/2004 criou as súmulas vinculantes, mecanismo criado para dar maior efetividade à
jurisprudência pacífica do Pretório Excelso que pode ser também veículo de ativismo
judicial, com a criação de normas gerais com força cogente. Tornam-se, assim, regras
ditadas não pelo Legislativo, mas uma legislação paralela emanada de um tribunal.
Ainda que se argumente que doutrina já apregoa a flexibilização da separação de
poderes, a súmula vinculante que sirva de veículo para o ativismo representa um poder
desmedido, que pode abalar o equilíbrio entre os Poderes. Não há mecanismo que sirva
de contenção a esse instituto, que pode inaugurar um governo de juízes (VALLE et al.,
2009).
Cumpre frisar que a súmula vinculante, por si só, não representa uma usurpação
da função legislativa pelo Judiciário, mas, caso seus preceitos tenham sido elaborados
de forma ativista, podem tolher a atividade dos representantes do povo de manifestar sua
vontade por meio das leis. Cabe, portanto, aos ministros do STF a missão utilizar esse
instituto com vistas a dar efetividade às suas decisões e celeridade à prestação jurisdicional,
sem sucumbir à tentação de substituir ou criar novas disposições com força de lei.
Caso contrário, sacrifica-se a segurança jurídica, tão cara à sociedade brasileira já
descrente do Poder Público. O país fica sujeito, nesta hipótese, ao arbítrio dos juízes, os
quais, legislando e julgando, ferem o princípio da separação de poderes e, desse modo,
violam a Constituição que deveriam guardar. Os cidadãos perdem, assim, a garantia,
conquistada a alto preço, de viverem em um Estado Democrático de Direito.

168 Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012


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