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Uma mulher branca, casada, de 34 anos, se consulta por conta de tonteira. Eis aí uma situação comum e, ao
mesmo tempo, desafiadora, uma vez que as causas podem ir da prosaica rolha de cera até um processo
expansivo impingindo sobre as vias vestibulares. O médico já viu muitos casos de tonteira e sabe que pode
iniciar com duas abordagens básicas:
2. Classificação sintomática de acordo com as categorias de Drachman (não deixe de ler este excelente artigo:
Drachman DA. A 69-year-old man with chronic dizziness. JAMA 1998;280:2111-21118):
• Tipo 1: sensação rotatória verdadeira (vertigem), a exigir uma análise vestibular tanto periférica
quanto central.
• Tipo 2: sensação de quase-síncope, a exigir uma análise do ritmo cardíaco e do metabolismo.
• Tipo 3: sensação de desequilíbrio ao andar, a exigir uma análise detalhada do sistema nervoso central
e periférico.
• Tipo 4: sensação de “cabeça ruim”, a exigir uma análise detalhada do estado mental.
Iniciou então intensa pesquisa para esterilidade conjugal, que só se encerrou quando foi definido o fator
espermático como causa (e isto após a paciente ter sido submetida a muitas e desconfortáveis investigações!).
Houve uma tentativa de fertilização in vitro, que foi frustrada.
O médico pensa
O médico começa a tomar notas mentais: a história sugere o tipo 1 (vertigem). Entre as 7 mais, destacam-se
(pelo sexo e idade): distúrbio vestibular periférico, distúrbio psiquiátrico (vertigem fóbica) e esclerose múltipla.
Qual distúrbio vestibular periférico? O que escolher entre:
• Vertigem paroxística posicional benigna (VPPB): vertigem fugaz, mas intensa, às mudanças de
posição, geralmente presente ao se levantar pela manhã. Cada episódio dura segundos.
• Enxaqueca: geralmente existe a cefaléia. Cada episódio dura horas até talvez 1 dia.
• Síndrome de Menière: acúfenos e hipoacusia acompanham. Cada episódio pode durar dias.
• Neurite vestibular: vertigem mantida por até semanas.
Distúrbio psiquiátrico não pode ser afastado, principalmente levando-se em conta o impacto emocional de uma
tentativa (frustrada) de gravidez. A propósito, o médico simpatiza com a paciente e tudo o que teve que passar
até a definição do fator espermático (o espermograma não deveria ser uma das primeiras investigações de
esterilidade conjugal?).
Esclerose múltipla é possível (é uma mulher jovem), mas ainda é um pensamento precoce. Afinal, o quadro
cedeu completamente, e não há, até agora, evidência de outro comprometimento neurológico afastado no
tempo e na localização anatômica.
O médico fica com a hipótese de trabalho de neurite vestibular para o que ocorreu há 1 ano.
O médico está preocupado. Existe vertigem, e isto aponta para distúrbio das vias vestibulares. Mas vias
periféricas (muito mais comumente afetadas) ou centrais? A lembrança das diferenças está clara:
E é por isso que o médico está preocupado. A mulher tem uma vertigem com o “ouvido entupido” (hipoacusia?)
e com possível hipoestesia na hemiface esquerda (comprometimento do trigêmio?). Será um caso de vertigem
central?
Exame físico
As únicas alterações encontradas no exame físico de abordagem (durante o qual a paciente se mostra muito
tensa) são:
O teste de sensibilidade tátil e dolorosa na face não revela alterações (mas e a sensação de “anestesia
dentária”?).
O médico sabe que precisa tomar uma decisão. Existe uma vertigem com desequilíbrio de marcha (ataxia) e
sensibilidade corneana diminuída de um lado (esta última considerada o sinal mais precoce de
comprometimento do ângulo ponto-cerebelar). Embora o teste objetivo de sensibilidade tátil e dolorosa na face
tenha sido normal, a paciente confirma a sensação de “anestesia dentária”. O médico sabe que
comprometimentos sensitivos são geralmente notados pelos pacientes bem antes de alterações objetivas
aparecerem no exame físico (exatamente o contrário do que ocorre com as alterações motoras, em que o
paciente pode não perceber algo que já está evidente no exame físico). E, a despeito da audiometria normal, a
mulher confirma o “ouvido entupido”.
A proposta (e o erro)
O médico está convicto de que, face aos achados a sugerir comprometimento anatômico mais amplo, um
exame de imagem é necessário. Explica o que achou no exame físico e fala da necessidade de uma ressonância
encefálica. A mulher chora. Diz que sofre de claustrofobia e não vai conseguir fazer o exame. Pergunta se não
há alternativa. O médico respira fundo e se lembra de tudo o que esta pessoa já passou: a incerteza diagnóstica
e a angústia da certeza de Hodgkin; o tratamento radioterápico; a extensa e dolorosa investigação de
esterilidade conjugal; a frustrada tentativa de fertilização in vitro. E simpatiza com sua dificuldade. Decide
então telefonar para um colega radiologista e expor a situação, explicando o caso clínico e perguntando sobre o
papel de uma TC para sua suspeita de um processo do ângulo ponto-cerebelar. O colega fala na boa definição
da TC espiral e resolvem fazê-la (pegando o ângulo ponto-cerebelar e o ouvido interno).
A mulher faz o exame no dia seguinte e o resultado é normal. Médico e paciente ficam aliviados. O médico volta
a se lembrar da hipótese inicial de neurite vestibular e da grande tensão da mulher durante o exame físico.
Conversam ainda sobre o interesse dela em tentar novamente a fertilização in vitro “assim que isto tudo
acabar”. O médico ainda fica sabendo de um irmão da paciente, com déficit mental, por cujo bem estar ela se
sente responsável, e que é foco de desavença familiar. Concordam em começar prednisona (neurite
vestibular?) e clonazepam (vertigem fóbica?), com contatos telefônicos freqüentes. Uma semana após, a
paciente exulta no telefone: “melhorei muito, e já estou saindo sozinha”. Combina-se um desmame dos
fármacos. O médico se sente feliz.
Epílogo
A paciente é operada e não entra mais em contato com o médico que, entretanto, telefona para saber notícias.
A histopatologia é muito preocupante: astrocitoma. O médico se coloca à disposição, mas não é mais
procurado.
Dois meses após, numa noite chuvosa, um telefonema. É o marido da paciente (que a havia acompanhado a
todas as consultas). Ela está em casa, com dificuldade respiratória que começou hoje. O médico poderia ir vê-
la? Ele vai. O quadro é desesperador. A mulher está deformada pelo hábito cushingóide das altas doses de
corticóide que vem tomando. Tem uma disfagia grave (e ainda há pouco, os parentes tentavam alimentá-la pela
boca!). Não anda. Está taquicárdica (120/min), taquipnéica (40/min), hipoxêmica (SpO2=75%) e com
crepitações até o terço médio do hemitórax direito. Está lúcida, porém. O quadro tem poucas alternativas:
pneumonia aspirativa ou tromboembolia pulmonar. O médico providencia remoção para o hospital. Na saída,
deitada na maca, ela diz: “muito obrigada”. Ela falece no dia seguinte.
O médico entende que, desde a cirurgia, não havia um médico de referência, todo contato sendo a renovação
de um antineoplásico oral que vinha recebendo (temozolamida). Acima de tudo, não havia orientação quanto a
cuidados com as vias aéreas ou mesmo quaisquer cuidados especiais. O médico se lembra dos planos para uma
gravidez e de toda a história passada. Sente o peso que a medicina pode exercer em algumas ocasiões. Sente
que ali acabou de aprender algo que vai muito além de um diagnóstico diferencial. Sente-se mais velho de
repente e muito, muito cansado. Mas ainda tem uma última tarefa. Senta-se e começa a redigir uma carta de
condolências. Só então poderá descansar.