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DeuSeS, MitoS e RitoS do Egito Antigo

Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo


Esta obra, destinada tanto aos interessados em história, religião e
mitologia, como aos professores e pesquisadores da Antiguidade, nos
presenteia com traduções inéditas do egípcio, diretamente para a língua
portuguesa, com a análise simbólica de relevos e esculturas da arte
egípcia, com a visão de autores modernos que conformaram o pensamento
acadêmico ocidental e com estudos de recepção da mitologia em obras
contemporâneas, como no cinema. O presente livro decifra estas
complexas relações entre passado e presente, entre Oriente e Ocidente,
através de uma linguagem precisa e, por vezes, poética, de seus autores.
A visão destes especialistas imprime um primor acadêmico e, ao mesmo
tempo, um olhar apaixonado pelo passado, pois só se ama aquilo que se
conhece! Katia Maria Paim Pozzer, professora da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.

Margaret Marchiori Bakos - Professora do Programa de Pós-graduação da


Universidade Estadual de Londrina (UEL), Bolsista de Produtividade do
CNPq. Maria Aparecida de Oliveira Silva - Pesquisadora e Professora
Orientadora do Grupo Heródoto da Unifesp, Tradutora de Heródoto e
Plutarco.

Margaret Marchiori BakoS (Ed.) · Maria Aparecida de


Oliveira Silva (Ed.)

Deuses, Mitos e Ritos do


Egito Antigo
NovaS Perspectivas
BakoS, Silva (EdS.)

978-3-330-99783-7
Margaret Marchiori Bakos, Maria Aparecida de Oliveira Silva (Eds.)

Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo


Margaret Marchiori Bakos, Maria Aparecida de Oliveira Silva
(Eds.)

Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo


Novas Perspectivas

Novas Edições Acadêmicas


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ISBN: 978-3-330-99783-7

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Copyright / Copirraite © 2017 ICS Morebooks! Marketing SRL
Alle Rechte vorbehalten. / Todos os direitos reservados. Saarbrücken 2017
Índice

Prefácio.............................................................................................................08
Katia Maria Paim Pozzer

Apresentação...................................................................................................10
Evelyne Azevedo

Introdução ao Livro.......................................................................................12
As Organizadoras

Parte I – Deuses e Mitos

1. O Deus Aton e a Solarização da Religião Egípcia durante o Reino


Novo (c. 1550-1070 a.C.)................................................................................17
Liliane Cristina Coelho

2. Mitologia do Cosmos e o Egito de Wereshnefer................................26


Mauricio Schneider

3. Deuses Egípcios no Olimpo, segundo Heródoto................................38


Maria Aparecida de Oliveira Silva

Parte II – Ritos do Egito Antigo

1. O Livro das Respirações.....................................................................51


Marcia Severina Vasques

6
2. A Religião Funerária Egípcia Antiga: dos textos aos destinos post
mortem solar e osiríaco..........................................,,,.......................................64
Cintia Alfieri Gama-Rolland

Parte III – Religião e Poder

1. Akhenaton, a Cidade de Akhetaton e a Extinção Passageira do


Além................................................................................................................80
Moacir Elias Santos

2. O Ritual do Poder: simbologia e representação social da


Monarquia Faraônica.....................................................................................95
Nely Feitoza Arrais

3. O Festival-Sed: reflexões e abordagens..........................................108


Julio Gralha

Parte IV - O Egito e o Divino na Visão dos Modernos

1. Deuses do Antigo Egito: uma visita a Jaroslav Černý (1898-1970)


Margaret Marchiori Bakos..........................................................................120

2. A Religiosidade Egípcia Antiga e sua Leitura no Filme “O Príncipe


do Egito”......................................................................................................136
Raquel dos Santos Funari

3. O Filme O Egípcio (1954) e o Culto ao Aton: da luz solar à tela


do cinema....................................................................................................145
Leandro Hecko

Sobre os Autores
7
8
Prefácio

É impossível compreendermos as civilizações antigo-orientais sem levarmos em


consideração o papel fundamental desempenhado pela religião e pelas narrativas
mitológicas, nestas sociedades. Portanto, um livro que se dedique a esse tema torna-se
uma contribuição imprescindível para o entendimento da história.
Ernst Fahmüller 1, importante egiptólogo alemão, em referência ao mito da criação
do Homem, segundo a mitologia egípcia, resume dizendo que "quando o olho do deus
criador ficou momentaneamente cego, o homem nasceu de suas lágrimas" (1993, p. 227).
Esta concepção da origem do homem explica o motivo pelo qual a humanidade inteira
está intimamente ligada aos deuses.
Assim, a religião adquiriu um caráter político fundante no imaginário do antigo
Egito. O faraó era concebido como uma divindade terrena, o elo de ligação entre deuses
e homens, era o líder supremo no mundo político e a autoridade máxima da hierarquia
sacerdotal.
No Egito o ideal de vida era usufruir de boa saúde, satisfazer as necessidades
humanas básicas (alimentar-se, vestir-se e habitar corretamente), ter alegrias, a proteção
bondosa dos deuses e gozar de uma vida longa! Mas, para que isso fosse possível, era
necessário conhecer os mitos e realizar corretamente os ritos, isto é, era preciso ser capaz
de apropriar-se do complexo sistema religioso egípcio.
O Egito antigo produziu inúmeros rituais que expressavam, em práticas e gestos,
suas variadas concepções teológicas. A crença na existência de um "outro mundo",
acessível após a morte, através de uma delicada passagem da vida terrena à "outra vida",
nos foi revelada por preciosos textos e posturas retratadas em relevos e esculturas. O ritual
da mumificação, o julgamento das almas, a construção de pirâmides e templos
monumentais são representações concretas desse imaginário. E a riqueza desta
documentação é analisada neste livro com competência, rigor científico e sensibilidade.
Além das marcadas influências exercidas nas demais civilizações antigas, como
os hebreus, os babilônicos, os assírios, os fenícios, os hititas, os gregos, os persas e os
romanos, os egípcios deixaram raízes profundas e uma herança cultural que perdura até

1
Cf. Ernst Fahmüller. “Les dieux et leurs temples”. In: Eggebrecht, A. L'Egypte Ancienne. Paris: France
Loisirs, 1993, p. 227-285.

9
os dias de hoje. Apenas para citarmos alguns elementos, no âmbito religioso, a crença em
uma tríade divina influenciou as principais religiões monoteístas; o conhecimento da
anatomia humana, obtido graças às práticas ligadas ao ritual da mumificação ou, ainda, o
desenvolvimento da astronomia e do calendário solar, com um ano de 365 dias, são
conquistas científicas que se mantiveram até o mundo contemporâneo.
O livro Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo é uma obra coletiva, fruto da
maturidade dos estudos de história, cultura e religião da Antiguidade dos pesquisadores
brasileiros. A obra evidencia, também, a reflexão sobre temas universais, sobre questões
que interpelam as sociedades humanas desde o princípio até os dias de hoje, como os
mitos da origem do mundo, do próprio Homem, do poder e seus usos, da vida e da morte.
Assim como um mosaico, onde cada tessela, com sua forma e cor particular, compõe um
todo inteligível, cada contribuição do livro apresenta um viés próprio e constrói uma
narrativa abrangente sobre mitologia e religiosidade no Egito antigo. Múltiplos como os
deuses egípcios, os capítulos dessa obra se integram entre si, se contrapõem e se
complementam, compondo um cenário complexo e compreensível ao
mesmo tempo.
Esta obra, destinada tanto aos interessados em história, religião e mitologia, como
aos professores e pesquisadores da Antiguidade, nos presenteia com traduções inéditas
do egípcio, diretamente para a língua portuguesa, com a análise simbólica de relevos e
esculturas da arte egípcia, com a visão de autores modernos que conformaram o
pensamento acadêmico ocidental e com estudos de recepção da mitologia em obras
contemporâneas, como no cinema.
O presente livro decifra estas complexas relações entre passado e presente, entre
Oriente e Ocidente, através de uma linguagem precisa e, por vezes, poética, de seus
autores. A visão destes especialistas imprime um primor acadêmico e, ao mesmo tempo,
um olhar apaixonado pelo passado, pois só se ama aquilo que se conhece!

Katia Maria Paim Pozzer


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

10
Apresentação

Quando falamos de uma civilização com mais de 3000 anos de História e uma
lista enorme de títulos que se dedicaram a ela, parece difícil que ainda exista um assunto
pouco ou não explorado. O que se verá aqui é, no entanto, a contribuição de diversos
autores sobre um tema fundamental nos estudos sobre a antiga população nilótica: a
religião, seus deuses e seus mitos.
O Antigo Egito é uma das civilizações que mais fascínio exerceu sobre as pessoas.
E não apenas desde o século XIX, mas desde a própria Antiguidade, começando pelos
gregos, na figura de ninguém menos que Heródoto, como poderá ser visto em um dos
textos aqui publicados. Deuses, Mitos e Ritos do Egito Antigo traz diversas perspectivas
dos aspectos religiosos de uma das culturas que mais imprimiu suas marcas na História,
escritas por importantes nomes ligados à Egiptologia no Brasil.
Aqui estão pessoas cujas trajetórias profissionais foram dedicadas ao estudo do
Antigo Egito e, por isso mesmo, cada texto é o reflexo individual de sua visão sobre esta
cultura. Dividido entre quatro eixos, cada um deles se debruça sobre um aspecto da
religião egípcia: desde os deuses e sua cosmogonia até a sua recepção cinematográfica,
passando ainda pelos seus ritos funerários e finalmente, a vinculação entre a religião e o
poder faraônico.
Os deuses egípcios constituem o primeiro viés abordado pelo livro, o qual se
divide em três artigos que abordam a relação dos egípcios com suas divindades. O
primeiro trata da criação de uma nova teologia solar com a adoção do deus Aton sob o
reinado de Akhenaton; o segundo texto fala da representação do Egito como centro do
mundo a partir da análise da cosmografia do sarcófago de Wereshnefer e o terceiro
disserta sobre o sincretismo religioso feito por Heródoto ao associar os deuses egípcios
aos gregos.
O segundo viés trata dos principais textos funerários egípcios que os auxiliavam
em sua jornada post mortem, como o famoso Livro dos Mortos, que, mesmo tendo seu
aparecimento no Novo Império, é o mais conhecido dos corpi de fórmulas para
acompanhar o morto em sua passagem ao mundo dos mortos. Na terceira parte, retoma -
se o reinado de Akhenaton e sua tentativa de extinguir o culto osiríaco em prol do culto
ao faraó. Em seguida, fala-se sobre a função divina do faraó como mantenedor da ordem
e do Egito e de como os rituais em torno deste tinham a função de simbolizar essas

11
atribuições diante da sociedade. Um deste rituais, inclusive, o Festival-Sed, é o tema do
terceiro artigo desta seção. Apesar de sua grande importância, o autor aponta o pouco
estudo dedicado a ele.
A quarta e última parte do livro é dedicada à leitura feita por Jaroslav Šerný da
religião egípcia e traz ainda a apropriação contemporânea feita pelo cinema nas obras O
Egípcio, de 1954 e O Príncipe do Egito, animação da DreamWorks de 1998.
Ciência que se consagrou na Europa com a tradução dos hieróglifos por
Champollion, a Egiptologia sempre esteve ligada a países como Itália, França, Alemanha
e, mais recentemente, os Estados Unidos. No Brasil, seu estudo sempre dependeu, deste
modo, da importação de literatura especializada. A produção de material específico em
português constitui um trabalho de extrema importância para a consolidação deste campo
na academia brasileira. Trata-se, portanto, de um material que procurou abordar a antiga
religião egípcia sob seus mais diversos aspectos, mas que é, sobretudo, o esforço coletivo
de estudiosos que buscam difundir os estudos egiptológicos no Brasil.

Evelyne Azevedo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

12
Introdução ao Livro

Os egípcios despertam o interesse dos povos que com eles interagem, ou que
apenas visitam seu território, desde os tempos dos faraós. Os que por lá passam se
maravilham com suas belezas manifestas em sua religiosidade e todas as suas formas de
expressão, em seus mitos e histórias milenares grafadas em pedras e em papiros, em suas
artes e ciências. Dentro deste riquíssimo quadro cultural e da impossibilidade de abarcar
todas as questões levantadas pelos estudiosos, a nossa proposta com a organização deste
livro é refletir sobre o Egito antigo sob a perspectiva da criação dos seus mitos, da relação
deste povo com seus deuses e suas práticas religiosas. Compreender a criação e a força
desses elementos não apenas em seus contextos religiosos, mas também político e social.
E ainda indagar como os egípcios foram pensados pelos outros povos a partir de suas
percepções míticas e religiosas do mundo.
Este livro está organizado em quatro partes que subdividem e agrupam as
principais temáticas abordadas pelos autores. A primeira parte, intitulada Deuses e Mitos,
inicia-se com o capítulo “O Deus Aton e a Solarização da Religião Egípcia durante o
Reino Novo (c. 1550-1070 a.C.), de Liliane Cristina Coelho. A autora discorre sobre o
processo de adoção do Aton como divindade dinástica durante o reinado de Akhenaton
como sendo resultante de um projeto político-religioso, que se relaciona com uma
proposta de criação de uma Nova Teologia Solar. Para tanto, Coelho apresenta ao leitor
diferentes representações do deus Aton durante a XVIII Dinastia, percurso que nos mostra
o sincretismo religioso e as ressignificações por que passam os deuses e suas
representações neste período. Outro aspecto abordado pela autora é o uso dos símbolos
religiosos para a manutenção e a expansão do poder desta Dinastia.
“Mitologia do Cosmos e o Egito de Wereshnefer”, de Mauricio Schneider, o
segundo capítulo desta parte, o leitor entra em contato com a Representação do Cosmos
Egípcio representada no Sarcófago de Wereshnefer, 30ª dinastia, localizado no
Metropolitan Museum of Art. O autor aponta que, em meio às várias especificações
mitológicas contidas na representação, a mensagem mais eloquente da cosmografia de
Wereshnefer é que o Egito é o axis mundi, o centro do mundo, enquanto as terras
estrangeiras formam sua periferia. Assim, Schneider demonstra que no imaginário

13
faraônico, esse contraste espacial evoca o próprio ideal de maat, a ordem cósmica,
garantido na terra por seu perpétuo vigilante, o faraó.
“Deuses Egípcios no Olimpo, segundo Heródoto”, de Maria Aparecida de Oliveira
Silva, o terceiro capítulo, onde a autora demonstra como os registros de Heródoto trazem
informações que causam estranhamento aos seus ouvintes/leitores quanto à associação
dos deuses egípcios aos dos helenos. Ao estabelecer uma relação direta entre os deuses,
Osíris e Dioniso, ou Apolo e Hórus, por exemplo, Heródoto não apenas lhe confere o
mesmo nome, associa atributos e significados culturais, desconsidera suas
especificidades. Conforme Silva, a associação direta que leva a simplificações que
retiram a historicidade de cada divindade para tratar a religiosidade como algo sem
contexto próprio, portanto sem qualquer relação com a cultura de um povo.
A segunda parte Ritos do Egito Antigo inicia-se com o capítulo “O Livro das
Respirações”, de Marcia Severina Vasques. A autora analisa o Livro das Respirações, um
dos textos funerários egípcios mais comumente utilizado no período ptolomaico e
romano, ao lado do Livro dos Mortos, que foi escrito em hierático, demótico e, mais
raramente, em hieróglifo, cujo objetivo era auxiliar o morto em sua viagem para a outra
vida. Vasques conclui que, embora o Egito tenha sido dominado, o seu povo pouco alterou
seu modo de vida tradicional e suas crenças religiosas, a religião popular egípcia pode ser
usado como base para a observação da não como uma “sobrevivência pagã”, mas como
um fenômeno de reorganização da cultura religiosa.
O segundo capítulo desta parte é “A Religião Funerária Egípcia Antiga: dos textos
aos destinos post mortem solar e osiríaco”, de Cintia Alfieri Gama-Rolland, no qual a
autora logo esclarece seu recorte temático em três documentos básicos para a
interpretação dos ritos funerários egípcios, a saber, os Textos das Pirâmides, os Textos
dos Caixões e o Livro dos Mortos ou Livro para sair à luz do dia. Gama-Rolland explica
que se tem um grande número de fontes escritas referentes ao contexto funerário egípcio
que dizem respeito tanto a cosmogonias quanto a confecção de amuletos, encantamentos
e guias para a vida após a morte. Assim, a autora afirma que a seleção da documentação
estudada atende a finalidade de análise do destino post mortem dos egípcios.
A terceira parte intitula-se Religião e Poder e traz ao leitor análises sobre a relação
existente entre religião e poder no Egito antigo. O capítulo que abre este tema é
“Akhenaton, a Cidade de Akhetaton e a Extinção Passageira do Além”, de Moacir Elias
Santos, o leitor entenderá como os governantes egípcios interferem nos ritos religiosos.
Santos conclui que a nova concepção religiosa imposta por Akhenaton, acabou por banir

14
os deuses e o mundo do além. Tal fato resultou no fato de o oeste ter deixado de ser a
terra dos mortos e a viagem para o além, feita pelo deus-sol para se unir a Osíris, por ter
sido extinta. De acordo com o autor, o que foi oferecido em troca aos egípcios um rei
divino, que partilhava de um renascimento continuo com o sol, que era igual ao seu deus
e que centralizava tudo, dado que se revela na dependência dos egípcios para com seu rei.
O capítulo seguinte é “O Ritual do Poder: simbologia e representação social da
monarquia faraônica, de Nely Feitoza Arrais. Nele a autora demonstra como o faraó
exercia as funções de provedor, guerreiro e protetor do Egito e, ao mesmo tempo, como
partilhava da dupla natureza, humana e divina, era sacerdote por excelência. Arrais
conclui que essa função protetora do guerreiro faraó legitimidade socialmente o uso da
violência, pois não apenas defende, também mantém a ordem social, com um conjunto
de normas e critérios que configuram esta ordem social, além de ser um aviso para seus
opositores externos. Portanto, o ritual em torno da realeza procurava, assim, representar
simbolicamente as funções atribuídas ao monarca perante sua sociedade.
O terceiro capítulo intitulado “O Festival-Sed: reflexões e abordagens”, de Julio
Gralha, apresenta ao leitor duas situações relativas ao festival-sed que têm sido pouco
exploradas. Segundo o autor, a primeira se remete aos 30 anos de reinado que estaria
relacionada a uma geração ou ciclo de vida do egípcio antigo; ao ápice do tempo de vida
e consequente declínio; a um tipo de simbolismo mágico-religioso do número 30 para os
egípcios; e finalmente uma relação astronômica com o Ciclo Sothíaco (Ciclo da estrela
Sírius). Gralha aponta que a segunda situação diz respeito à morte ritual do rei que por
falta de artefatos e indícios parece ter sido pouco explorada. Talvez também haja certo
protecionismo no sentido de negar que a sociedade egípcia primitiva seria capaz desta
prática.
A quarta parte intitulada O Egito e o Divino na Visão dos Modernos principia com
o capítulo “Deuses do Antigo Egito: uma visita a Jaroslav Šerný (1898-1970)”, de
Margaret M. Bakos. A autora formula questões e respostas, como em uma entrevista com
Jaroslav Šerný para, com suas palavras, dialogar informalmente com o leitor. Antes,
Bakos redige uma breve biografia do autor e os motivos que a levaram a tal escolha,
destacando as duas obras mais importantes publicadas post-mortem: A late Egyptian
Grammar e A community of workmen at Thebes in the Ramesside Period , obras que
despertaram o reconhecimento de todos os bons orientalistas do mundo contemporâneo,
como um egiptólogo inigualável, arqueólogo e filólogo, o “pai da ostracologia”.

15
“A Religiosidade Egípcia Antiga e sua Leitura no Filme O Príncipe do Egito,
escrito por Raquel dos Santos Funari, é o segundo capítulo desta parte. A autora esclarece
que começa sua exposição com uma apresentação da perspectiva adotada, a partir da
perspectiva dos usos do passado. Para tanto, Santos dá prosseguimento a sua
argumentação com a apresentação do filme, a religiosidade egípcia antiga e como ela é
representada na produção da sétima arte, numa contraposição entre monoteísmo e
politeísmo. Procedimentos que levam a autora a afirmar que a religiosidade egípcia, face
ao desencantamento do mundo contemporâneo, atrai por essa profundidade espiritual,
representada no cinema.
O capítulo “O Filme O Egípcio (1954) e o Culto ao Aton: da luz solar à tela do
cinema”, de Leandro Hecko, encerra nossa coletânea pensando sobre o problema geral
das temporalidades quando se trabalha com um filme, que basicamente nos coloca numa
relação entre passado e presente que pode culminar em formas de usos do passado, que
provocam alterações e ressignificações, produto de um olhar permeado pelas lentes do
presente, embora ele venha a conter um pouco de cada temporalidade. Hecko continua
seu raciocínio argumentando que se deve levar em conta que o filme histórico é produzido
em um tempo diferente do período que busca retratar e que, por sua vez, pode ser
lido/assistido já em outro tempo, noutro contexto cultural.
Para concluir, destacamos que esta obra tem como objetivo levar ao leitor
interessado pela religiosidade egípcia em seus diferentes contextos, com debates
atualizados sobre cada uma das temáticas propostas. O propósito deste encadeamento de
estudos relacionados à religiosidade no Egito antigo é o de proporcionar ao leitor uma
compreensão mais ampla do contexto religioso deste povo que nos maravilha até hoje.
Esperamos ter alcançado nosso objetivo e que o leitor possa refletir sobre as questões
propostas como incentivo para novos questionamentos.

As Organizadoras

16
Parte I

Devses e Mitos

17
1

O Deus Aton e a Solarização da Religião Egípcia durante o Reino Novo


(c. 1550-1070 a.C.)

Liliane Cristina Coelho

Introdução

A associação de Akhenaton e do Aton, o disco colar, como divindade única é


bastante conhecida dentro e fora da Egiptologia. Já se sugeriu que Akhenaton teria sido o
primeiro monoteísta, ao adotar o culto a uma única divindade durante seu período de
governo, assim como é comum a ideia de que o faraó e sua esposa, Nefertiti, formariam
uma “tríade invertida” com o Aton, onde este seria o criador e as personagens reais os
seus filhos1. Afirma-se também que durante a XVIII Dinastia (c. 1550-1307 a.C.)2 houve
um processo conhecido como “solarização da religião”, que culminou com a adoção do
Aton como divindade principal.
A solarização da religião, que atingiu seu auge durante o reinado de Amenhotep
IV/Akhenaton (c. 1353-1335 a.C.), precisa ser entendida como um processo de longa
duração, cujas raízes podem ser encontradas nos reinados de seus predecessores.
Divindades solares, como Ra, já eram cultuadas em templos ao céu aberto em Heliópolis
no Reino Antigo (c. 2575-2134 a.C.), por exemplo, mas parece ser durante o governo de
Tothmés IV (c. 1401-1391 a.C.) que o Aton começa a se tornar uma divindade

1
É comum, na religião egípcia antiga, a existência de tríades divinas, formadas por um deus pai, uma deusa
mãe e um deus ou deusa filho, conforme pode ser observado, por exemplo, com Osiris, Ísis e Hórus, ou
Amon, Mut e Khonsu, as principais divindades tebanas. Desta maneira, Aton, Akhenaton e Nefertiti
formariam uma tríade invertida, com um deus pais e dois deuses filhos.
2
Sigo aqui a cronologia proposta por John Baines e Jaromir Málek (1996).

18
proeminente, quando aparece relacionado a Amon na inscrição presente em um
escaravelho.
É possível também pensar a solarização como uma simplificação da divindade, já
que um deus que está visível no céu e que percorre uma trajetória diária é mais facilmente
assimilável por populações com religiões menos complexas que a egípcia, como aquelas
presentes na região da Síria-Palestina no período. O trajeto percorrido pelo sol, assim,
poderia ser visto como uma passagem por todas as terras dominadas pelo Aton, sendo o
deus o responsável pela manutenção de todos os espaços preenchidos por ele. Ressalta-
se aqui que os domínios egípcios no período se estendiam desde quarta catarata do Nilo,
na Núbia, até o Eufrates, ao Norte, numa distância de aproximadamente 3200 quilômetros
(Kendall, 1999, p. 157).
A hipótese aqui discutida, então, procura entender a adoção do Aton como
divindade dinástica por Akhenaton (c. 1353-1335 a.C.) como parte de um projeto
político-religioso. Político porque a escolha do Aton está relacionada a um aumento do
poder real, já que o deus não possuía, como Amon ou Ra, um clero forte e atuante, e
religioso porque pode ser entendido como parte de uma Nova Teologia Solar, conforme
proposta de Jan Assmann (2001). Para comprovar tal proposição discuto as diferentes
representações do deus Aton ao longo da XVIII Dinastia, bem como a possível utilização
da imagem do deus como parte de um processo de conquista e manutenção de territórios
fora do Egito. Iniciarei, então, pela escolha do Aton como deus dinástico.

A Escolha do Aton

O deus Aton, assim como a sua representação como o disco solar com braços
terminados em mãos, não foram uma criação de Akhenaton. Há menções ao nome do

Aton ainda durante o Reino Médio, no Conto de Sanehet3, no qual a palavra (em
egípcio, itn) aparece de duas maneiras diferentes, mas muito próximas: (1) como o sol, o
corpo celeste, e (2) como o deus solar que se manifesta no sol (Tawfik, 1973, p. 77). Tais
menções podem auxiliar para o entendimento do crescimento do culto ao deus, que
resultou na religião proposta por Akhenaton durante o seu governo.

3
O Conto de Sanehet relata a história de Sanehet que, ao ouvir a notícia da morte de Amenemhat I, fugiu
para terras estrangeiras, com medo de ser associado ao atentado que levou à morte do monarca. O
protagonista passou muitos anos entre os estrangeiros, mas manteve sempre uma grande vontade de voltar
ao Egito e ser enterrado em sua terra natal. Ao final do conto, Sanehet foi perdoado por Senusert I, sucessor
de Amenemhat I, e foi recebido no Egito pelo próprio faraó (Araújo, 2000, p. 101).

14
Até o Reino Médio (c. 2040-1640 a.C.) a palavra itn foi usada tanto para designar
o sol quanto para nomear uma divindade. Em um primeiro momento a palavra itn aparece
no Conto de Sanehet identificada como o disco solar. Isso ocorre em duas situações:
primeiro em B213, quando Sanehet se dirige ao novo faraó, Senusert I (c. 1971-1926 a.C.)
e diz “Que o medo de ti se mantenha (se repita) nas terras (baixas) e altas, pois tu
subjugaste tudo o que o disco solar compreende!” (Cardoso, 1998, p. 137), e em seguida
quando o protagonista continua seu discurso com a frase “O disco solar se levanta devido
ao amor por ti” (Cardoso, 1998, p. 138). Aqui itn é diretamente relacionado ao sol como
corpo celeste, sem que se faça menção alguma à divindade Aton.
No mesmo conto, no entanto, aparece uma das primeiras menções ao Aton como
uma divindade. Isso acontece em R7, quando o protagonista fala sobre a morte do faraó
Amenemhat I, ocorrida em cerca de 1962 a.C.. Utilizando aqui a tradução publicada por
Ciro Cardoso: “Ele voou para o céu e uniu-se ao disco solar. O corpo divino misturou-
se com aquele que o fez.” (Cardoso,1998, p. 128). Neste sentido, o Aton – aqui traduzido
como ‘o disco solar’ – aparece como uma divindade criadora, já que o faraó se une àquele
que o fez.
Passando ao início da XVIII Dinastia (c. 1550-1307 a.C.), em uma estela do rei
Ahmés (c. 1550-1525 a.C.) aparecem quatro divindades solares: Ra, Aton, Khepri e
Atum. Destes, apenas Aton não aparece com o determinativo de deus, mas com o disco
solar, o que significa, segundo Sayed Tawfik, que os egípcios, nesta época, ainda não
haviam personificado o Aton entre os deuses solares. Na estela o rei Ahmés é “como Ra
(quando ele) se levanta, como Aton (quando ele) brilha, como Khepri (quando ele)
aparece nos olhos, seus olhos nas faces são como Atum no leste do céu” (Tawfik, 1973,
p. 78). Ainda segundo o autor, Aton aparece pela primeira vez com o determinativo de
um deus com o sol sobre sua cabeça em uma inscrição na ilha de Tombos, que se localiza
em uma região próxima à terceira catarata do Nilo, datada do segundo ano do reinado de
Tothmés I (Idem, p. 80).
Já a personificação do Aton, conforme aponta Tawfik (1973, p. 78), ocorreu
apenas durante o reinado de Tothmés IV, que mandou confeccionar um escaravelho em
cujo texto o deus aparece personificado como uma divindade que acompanha o faraó na
guerra, assumindo assim as características de Amon, conforme pode ser percebido em sua
tradução:

15
Os príncipes de Naharin carregando os seus presentes contemplam Men-
kheperu-Ra quando ele sai do seu palácio, eles ouvem a sua voz como a do
filho de Nut, seu arco na mão, como o filho do sucessor de Shu. Se ele desperta
a ele mesmo para lutar, com Aton a sua frente, ele destrói as montanhas,
pisando as terras estrangeiras, trilhando o Naharin e até Karoy, a fim de trazer
os habitantes de terras estrangeiras, como submetidos ao governo de Aton para
sempre (Shorter, 1931, p. 23).

Este escaravelho é bastante emblemático, pois a tentativa de datar o surgimento


do culto ao deus Aton ao longo da XVIII Dinastia e especialmente durante o reinado de
Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.), o pai de Amenhotep IV/Akhenaton, fez com que
alguns artefatos que sugeriam uma época diferente fossem considerados falsos, como foi
o caso deste artefato, que pertencia ao reverendo George Denis Nash e atualmente faz
parte do acervo do Museu Britânico (EA65800), onde consta como uma falsificação. Na
década de 1930, após a tradução do texto hieroglífico publicada no Journal of Egyptian
Archaeology por Alan W. Shorter, surgiu a dúvida sobre a autenticidade do objeto.

Figura 1: Pequena estela de Amenhotep II. In: Hassan, 1953, pl. XXXIX.

A partir da dúvida levantada, uma equipe liderada por F. A. Bannister e H. J.


Plenderleith fez diversos testes químicos na peça, comprovando que o material era
autêntico, assim como a inscrição não havia sido alterada, conforme propagavam alguns
críticos (Bannister & Plenderleith, 1936). A autenticidade foi comprovada por meio da
comparação com o material com o qual foi confeccionado outro escaravelho do mesmo
período, mas não há um método para datar a idade do material, então a dúvida sobre sua
autenticidade continua, conforme é possível observar na página do Museu Britânico na

16
internet, onde o objeto consta como uma falsificação 4. Não há dúvidas, no entanto, com
relação à associação entre o Aton e o deus Amon neste caso.
Assim como acontece com relação à divindade, a representação o Aton como o
sol radiante, ou o disco solar com raios como se fossem braços terminados em mãos, não
foi uma invenção de Akhenaton. Aparece já em uma estela de Amenhotep II encontrada
próximo à esfinge de Gizé, em um templo erigido por este faraó nesta área (Hassan, 1953,
p. 79). Trata-se de uma estela de arenito composta por um painel retangular rodeado por
uma moldura em relevo, acima da qual há uma parte superior arredondada, infelizmente
bastante erodida, conforme pode ser visto na figura 1. Nesta parte arredondada há um
disco solar alado, a forma comum de representação do deus Hórus de Behedet, mas neste
caso há uma particularidade interessante: o disco solar tem dois raios em forma de braços
que terminam em mãos e envolvem o cartucho do faraó Tothmés IV, em sinal de proteção.
Esta imagem, se realmente influenciou a representação posterior do Aton, não
parece ter sido adotada de imediato por Amenhotep IV/Akhenaton. Em um bloco
encontrado em Karnak, datado provavelmente dos primeiros anos do reinado deste faraó,
à direita há uma imagem de Amenhotep IV portando a coroa azul e à esquerda há um
deus hieracocéfalo com o disco solar sobre a cabeça e identificado na legenda como Aton.
O estilo artístico é aquele do reinado de Amenhotep III e a face de Amenhotep IV é muito
semelhante à de seu pai. A imagem do deus, tal como pode ser visto na figura 2, é muito
parecida com a do deus solar Ra.

Figura 2: Relevo com o deus-falcão Aton. In: Seyfried, 2013, p. 207.

4
Forgery/Commemorative Scarab. Disponível em, p. http,
p.//www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=141177&
partId=1&searchText=scarab+aten&page=1 Acesso em: 25jan14.

17
Nos talatat, no entanto, o Aton já aparece representado com sua imagem
tradicional, qual seja, o disco solar com braços que terminam em mãos, conforme pode
ser visto na figura 3. Trata-se aqui de blocos de pedra utilizados nas construções de
Amenhotep IV que foram encontrados reutilizados em edifícios posteriores, a maioria dos
quais, segundo Ramadan Saad (1967, p. 64), têm 22x27x55 cm de lado , mas que
aparecem mais frequentemente na bibliografia com dimensões de 24x26x52 cm,
relacionadas, conforma aponta o egiptólogo canadense Ronald Redford, a uma medida
pura, correspondente ao côvado real, que media cerca de 52 cm 5. Claude Vanderleyen
(1998, p. 418) afirma que, tomando como base a densidade da pedra retirada da pedreira
de Gebel el-Silsila, os blocos teriam em média cinquenta quilogramas cada um.
Os talatat, bem como blocos maiores como aquele apresentado na figura 2, faziam
parte da construção dos quatro templos dedicados ao Aton em Tebas: gm.t-pA-itn, Hwt-
bnbn, rwD-mnw e tni-mnw, nomeados aqui conforme o número de vezes em que seus
nomes aparecem nos blocos (Redford, 1975, p. 9). Sua quantidade chega a dezenas de
milhares e eles foram recuperados principalmente no Segundo e no Nono Pilonos de
Karnak, na Grande Sala Hipóstila do Templo de Amon em Karnak e em Medamud, onde
foram usados como enchimento para as estruturas erigidas por Horemheb, e no pilono de
Ramsés II no templo de Luxor (Redford, 1992, p. 66). Parte de um grande quebra-cabeças,
estes blocos de arenito ajudam a entender alguns aspectos do culto ao Aton em Tebas que,
possivelmente, foram depois transferidos para Akhetaton.

Figura 3: Talatat mostrando Amenhotep IV/Akhenaton celebrando o jubileu. In: Limestone relief
(E.GA.2300.1943) of King Akhenaten. http://www.fitzmuseum.cam.ac.uk/explorer/index.php?oid=56692

5
Ronald Redford, egiptólogo canadense responsável pelo Akhenaten Temple Project, afirma que a
dimensão dos blocos justificaria seu nome, que pode ser derivado da palavra “três”, já que sua medida seria
de três palmos, ou da palavra italiana “tagliata”, literalmente “cortada”, sendo neste caso a “alvenaria
cortada”, segundo o pesquisador. (Redford, 1992, p. 66.)

18
Um ponto importante a discutir aqui é a escolha do Aton, um deus solar cuja
proeminência era bem menor que a de Ra, como divindade principal da religião proposta
por Akhenaton. Sayed Tawfik (1976, p. 226) aponta razões políticas para a escolha do
menos conhecido Aton e não de Ra como deus único no governo de Akhenaton,
defendendo que existia uma grande influência política e religiosa dos sacerdotes de
Amon-Ra em Tebas e de Ra em Heliópolis. Como o objetivo de Akhenaton era aumentar
o poder real, a escolha de Ra não seria a melhor para atingir a meta, já que este deus tinha
um clero poderoso.
O mesmo autor defende, no entanto, que o deus Aton não passa de uma
manifestação do deus Ra. Segundo ele, há uma inscrição fragmentária, na tumba de
Ramose, na qual Akhenaton fala a Ramose sobre a crença no Aton e na qual há uma
associação clara entre Aton e Ra. Ele apoia sua teoria também na existência de uma
necrópole em Akhetaton para o touro Mnevis, animal sagrado do deus Ra de Heliópolis
(Tawfik, 1976, p. 219-221). Tal cemitério, no entanto, não foi localizado pelas equipes
de arqueólogos que escavaram a cidade e seus arredores, apesar de aparecer como uma
das necrópoles que deveriam ser construídas no projeto inicial de Akhetaton presente nas
estelas de fronteira 6. Outra aproximação entre Ra e Aton está na adoção, por parte de
Akhenaton, do título do sumo sacerdote solar de Heliópolis, “Maior dos Videntes”,
também para o sacerdócio maior do Aton.
A questão da escolha do Aton como divindade principal, no entanto, envolve
temas mais complexos, como uma solarização da religião, que é defendida por Jan
Assmann e que é mais bem percebida a partir do reinado de Amenhotep III. Segundo este
egiptólogo, “a Nova Teologia Solar pode ser definida como a explicação e representação
do circuito do sol em categorias não-constelativas de teologia explícita” (Assmann,
2001, p. 201). Esta nova teologia rejeita inteiramente os mitos, o mundo pictórico e o
politeísmo, o que explica a ausência de imagens tridimensionais do Aton na arte do
período.
Esta solarização também pode ser resultado de uma tentativa de recuperar o poder
régio, baseado em governos da IV Dinastia (c. 2575-2465 a.C.), época de construção das
grandes pirâmides mas também de foco no culto solar. Conforme apontam David
Silvermann, Josef Wegner e Jennifer Wegner (2006, p. 27-29), Akhenaton pode ter

6
Uma tradução para a língua portuguesa dos textos presente nas estelas de fronteira de Akhetaton pode ser
encontrada em minha tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Ver: Coelho, 2015.

19
tentado recriar de alguma maneira a relação existente entre o faraó e o deus solar Ra
naquele período, que viu surgir o título “Filho de Ra”. O processo de solarização também
pode ser percebido na região da Síria-Palestina, conforme discutirei posteriormente.
A aproximação entre o deus solar e o faraó, no entanto, já vinha acontecendo
durante o reinado de Amenhotep III. Segundo Cyril Aldred (2001, p. 151-152) é visível,
por meio dos monumentos régios, que houve uma divinização em vida de Amenhotep III.
Este faraó e Tiy, sua esposa, fariam parte de uma tríade divina junto com o demiurgo
solar Atum, assim como posteriormente aconteceria com Akhenaton, Nefertiti e Aton.
A tentativa de aumentar o poder régio por parte de Akhenaton teve início com a
colocação do nome do seu deus em dois cartuchos – tal como ocorria com os nomes do
faraó, aproximando, assim, o rei e o deus. Os chamados “nomes didáticos do Aton”
refletem, então, a ideologia real e o passo a passo de sua reforma. Ao adotar o primeiro
nome didático, “Ele vive – Ra-Harakhty que se alegra no horizonte em seu nome de Shu
que está no Aton”, ainda em Tebas, Amenhotep IV deu o primeiro passo em direção ao
seu intento. O segundo passo foi dado possivelmente no ano 5, quando o faraó mudou
seus nomes e começou a construção de uma nova cidade, Akhetaton, que se tornou o
principal local de culto à divindade solar.

A Solarização da Religião na Região da Síria-Palestina

Dada a extensão do domínio egípcio durante o reinado de Amenhotep III, que se


estendia desde a quarta catarata do Nilo, na Núbia, até o Eufrates, ao Norte, é de se esperar
que existissem relações diplomáticas entre os faraós e os governantes das regiões sob
influência egípcia. Tais relações são conhecidas por meio de um conjunto de documentos,
descoberto em 1887 por uma camponesa que vasculhava as ruínas da antiga cidade de
Akhetaton em busca de materiais que pudessem ser utilizados como fertilizantes no
campo (sebak, em árabe) segundo algumas fontes, e que denominou-se Cartas de Amarna
(Shaw e Nicholson, 1996, p. 27; Araújo, 2001, p. 185). Tais cartas correspondem, na
realidade, a tabletes escritos em cuneiforme e são uma pequena parte da correspondência
trocada entre os faraós e reis de Estados da Síria-Palestina. Atualmente são conhecidos
382 tabletes, dos quais 350 são cartas ou listas que deveriam estar anexadas às cartas e os
demais constam de contos ou relatos mitológicos, possivelmente relacionados ao
aprendizado da escrita utilizada nos documentos por escribas egípcios, e que não constam
na compilação das cartas organizada por William Moran (2004). A linguagem utilizada é

20
o cuneiforme acadiano ou babilônico, a “língua franca” do século XIV a.C., modificado
pelo emprego de termos específicos de cada região Moran (2004, p. 22) 7. Do conjunto,
apenas nove cartas foram “escritas” pelo faraó, sendo todas as outras correspondências
recebidas pelos reis egípcios (Huehnergard e Izre’el, 2003, p. 238).
As Cartas de Amarna, junto com documentos contemporâneos ugaríticos e hititas8
e outras fontes egípcias, são documentos valiosos para a história da Síria e da Palestina
durante parte do século XIV a.C. (Moran, 2004, p. 237-238). A correspondência cobre
cerca de 25 a 30 anos, entre os últimos anos de reinado de Amenhotep III e o primeiro
ano de governo de Tutankhamon9, sendo mais abundante durante o reinado de Akhenaton.
Segundo nos informa o assiriólogo americano William Moran (2004, p. 223), que é autor
de uma das traduções dos documentos, apesar de escritas em acadiano, as cartas são fontes
valiosas sobre o cananita, que tem no hebraico bíblico um de seus dialetos.
Em 1896 Hugo Winckler, um orientalista alemão, realizou a primeira
transliteração e tradução dos textos contidos nos tabletes até então conhecidos. Em 1907,
após novas descobertas que aumentaram o número de tabletes para 358 e quando os
estudos amarnianos atingiram seu auge, o assiriólogo norueguês Jorgen Alexander
Knudtzon publicou o primeiro volume de sua obra Die El-Amarna Tafeln, que até hoje é
uma referência importante sobre as cartas e que estabeleceu não apenas a numeração
ainda utilizada para sua organização, que consta das letras EA seguidas pelo número
correspondente, como também a organização cronológica e geográfica dos tabletes
(Moran, 2004, p. 15).
Foi Knudtzon também quem estabeleceu, em função de diferenças nas formas de
tratamento e de linguagem, a divisão das cartas em dois grandes grupos: no primeiro está
a correspondência trocada com os Estados aliados, um grupo pequeno de cerca de 40
cartas trocadas entre os governantes egípcios e aqueles da Babilônia, da Assíria, do
Mitanni, de Arzawa (Anatólia), de Alashiya (Chipre) e do Hatti (Cohen e Westbrook,
2000, p. 6-7), e no segundo, que soma cerca de 350 cartas, estão as missivas trocadas com
7
Do conjunto, há algumas cartas que não foram escritas em acadiano. São elas a EA 15 (assírio), EA 24
(hurrita) e EA 31-32 (hitita).
8
Refiro-me aqui ao arquivo encontrado na cidade de Bogazkale (Anatólia), datado do reinado de Murshilish
II, filho de Shuppiluliumash, o governante hitita que aparece nas Cartas de Amarna. Trata-se, no entanto,
de um grupo muito fragmentário de documentos, mas que auxiliam para uma reconstrução das relações
diplomáticas no final do século XIV a.C. (Dodson, 2009, p. 53).
9
Alguns autores consideram que as últimas Cartas datam do ano três de Tutankhamon, argumentando que
este foi o ano da transferência da corte novamente para Tebas e consequente abandono de Akhetaton. A
datação das cartas, no entanto, é bastante difícil, pois há assuntos, como as corregências, que devem ser
levados em consideração e para os quais não há documentos comprobat órios. Sobre o ano três de
Tutankhamon ver Kozloff, 1993, p. 48. Já sobre a corregência ver, por exemplo, Aldred, 2001, p. 191.

21
os “vassalos”10 ou Estados subordinados, pequenos reinos da Síria-Palestina que estavam
sob domínio egípcio.
Um dentre os muitos assuntos que podem ser debatidos por meio das Cartas de
Amarna, quando analisadas em conjunto com outros documentos do mesmo período, é a
solarização da figura dos Grandes Reis, não apenas no Egito, mas em toda a região da
Síria-Palestina. É possível perceber, nos cabeçalhos das Cartas dos vassalos, a associação
do rei ao sol: enquanto os Grandes Reis tratam o faraó como “irmão”, os vassalos dirigem-
se a ele por meio de termos como “meu senhor” ou “meu sol”. A orientalista Beate
Pongratz-Leisten sugere que tal identificação, no sul, como por exemplo no Egito, faz
parte da criação de um discurso cosmotopográfico que busca invocar, por meio da
trajetória do sol, a extensão geográfica do controle político de determinado rei em todas
as quatro direções, enquanto no norte, como por exemplo no Hatti, isto reflete o equilíbrio
entre o poder político e o poder regional (Pongratz-Leisten, 2013, p. 299).
Um exemplo da extensão da solarização do rei ao norte pode ser encontrado em
selos aediculae11 do rei hitita Suppiluliuma I (c. 1344-1322 a.C.)12. Nestes, um disco solar
alado é suportado em ambos os lados pelo hieróglifo para “rei”, semelhante a uma coluna,
encimado por uma voluta, que significa “grande”. Próximo a cada conjunto há uma adaga,
signo associado ao título “Labarna”. Um selo semelhante aparece em um edito de
Suppiluliuma I, apresentado na figura 4, referente aos tributos anuais que Niqmaddu II,
governante da cidade costeira de Ugarit, deveria enviar ao rei.

10
Utilizo aqui o termo “vassalo” para fazer referência aos governantes de Estados livres, mas que estavam
diretamente subordinados ao rei egípcio. A utilização do termo é comum aos pesquisadores que estudam
as relações internacionais do Egito durante a XVIII Dinastia por meio, principalmente, das Cartas de
Amarna, e é útil no sentido de que expressa de maneira adequada a relação de dependência entre os
governantes de pequenos Estados da Síria-Palestina e o Egito.
11
A chamada forma aediculae foi criada durante o reinado de Suppiluliuma I. Trata-se de um selo composto
de duas partes principais: um núcleo central, onde o nome do rei, juntamente com o epíteto de "o Grande
Rei" é inscrito em hieróglifos, e uma inscrição cuneiforme que envolve o núcleo, onde os títulos e
genealogia do rei são demonstrados (Yalcin, 2011, p. 524.).
12
Suppiluliuma I foi um poderoso rei hitita que estabeleceu o controle do Hatti sobre a area que vai do
oeste da Turquia ao norte da Síria. Suas conquistas são conhecidas a partir de um texto posterior ao seu
reinado, “O Testamento de Suppiluliuma”, elaborado possivelmente por ordem de seu filho, Mursili II
(Bienkowski, 2000, p. 280-281.)

22
Figura 4, p. Edito de Suppiluliuma I. In: Aruz, J.; Benzel, K. e Evans, J. M., 2008, p. 173.

A solarização, tal como demonstrado até o momento, pode ser vista também como
uma forma de exercer o poder utilizada pelo rei egípcio. Tal afirmativa também pode ser
confirmada por meio da linguagem utilizada pelos governantes estrangeiros ao se referir
ao faraó. Um exemplo bastante claro deste fato aparece na carta EA 147, repleta de
elogios ao rei:

Ao rei, meu senhor, meu deus, meu sol: Mensagem de Abi-Milki teu servidor.
Eu caio aos pés do rei, meu senhor, sete vezes e sete vezes. Eu sou a poeira
sob as sandálias do rei, meu senhor. Meu senhor é o sol que se eleva sobre
todos os países dia após dia, da maneira (de ser) do sol, seu pai gracioso; que
concede a vida por seu doce vento do norte; que estabelece a segurança sobre
todos os países, pela força de seu braço: ha-ap-shi; que eleva seu grito para o
céu como Baal, e todos os países se amedrontam com seu grito (Moran, 2004,
p. 378).

Assim, a identificação do rei ao sol foi utilizada como uma forma de dominação,
o que relaciona a escolha do Aton e a simplificação de sua representação como partes de
um projeto político-religioso que tinha como objetivo manter a soberania egípcia sobre
os territórios conquistados ao longo da XVIII Dinastia.

Considerações Finais

Conforme se pode inferir por meio das fontes aqui analisadas, a adoção do Aton
como divindade principal por Akhenaton pode ser entendida como um processo político-

23
religioso. Político porque a escolha da divindade levou ao aumento do poder real, já que
somente por meio do rei era possível chegar ao deus – o que não era, conforme explica
Ciro Cardoso (2011, p. 12), uma novidade da reforma amarniana, mas que se torna um
ponto positivo exagerado a partir do momento em que a divindade é uma só e o faraó seu
representante e intérprete exclusivo. Religioso porque justamente leva à adoção de um
novo modelo religioso: prevê a centralização do culto a um único deus, mas sem deixar
de lado a existência, defendo aqui, de outras divindades, dentre as quais estão o próprio
faraó e sua esposa.
O processo de solarização da religião passou também pela associação do rei ao
sol, conforme pode ser inferido por meio das Cartas de Amarna, e nelas em especial a
correspondência trocada entre o faraó e os estados vassalos. Já quando se trata dos
Grandes Reis a relação é imediata, sendo estes descritos por meio de associações ao astro
rei, tal como no caso do selo aedicula que contém o edito de Suppiluliuma I apresentado
na figura 4.
Por fim, a simplificação da representação do deus também pode ser associada ao
processo político-religioso proposto por Akhenaton. A imagem do Aton – o disco solar
com raios como se fossem braços terminados em mãos que levam o símbolo da vida ao
faraó e à sua esposa – se para os egípcios impossibilitou a representação em três
dimensões, para outros povos dominados pode ter funcionado como uma forma de
assimilação do astro ao deus, e de sua trajetória como o espaço de seu domínio. Dessa
maneira, o Aton percorreria todas as suas possessões ao longo do seu ciclo diário e
confirmaria a autoridade egípcia sobre todas aquelas áreas.

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25
2

Mitologia do Cosmos e o Egito de Wereshnefer

Mauricio Schneider

O Egito remete ao cenário do Nilo, esse rio benfazejo que é sinônimo de vida para
muitos povos, de outrora ou de hoje, assentados em suas margens. No transcorrer de sua
longeva história de mais de três milênios, e ainda que enfrentasse diversos momentos de
crise, o povo egípcio antigo sempre encontrou no Nilo a artéria de seu desenvolvimento.
Nação agrícola, considerado, e com toda justiça, “o celeiro do mundo antigo”, o Egito
dos faraós extraía seu sustento através do cultivo da terra existente às margens do rio, cuja
inundação anual em muito contribuía para a fertilização do solo – destacou-se, nesse
particular, a rica produção do trigo. “O Egito é uma dádiva do Nilo”, proclama a célebre
frase de Heródoto, mas nada se obtinha sem o trabalho árduo de milhares de camponeses
humildes, realizadores anônimos da prosperidade nacional alardeada a todo canto por seu
senhor terreno, o faraó.
Encravado em meio ao ambiente hostil do deserto do Saara, o Nilo e suas margens
de terra, verdejantes de cultivos, dão ao Egito o aspecto de um oásis esticado. E como tal,
parece ser um genuíno milagre natural. Na mentalidade religiosamente regulada de seus
antigos habitantes, tratava-se de um milagre operado pelos deuses. Todos os anos, o início
da inundação (meados de julho) era aguardado com grande expectativa. Observavam-na
atentamente em medidores especiais, os nilômetros – alguns ainda podem ser vistos junto
das ruínas de certos templos. Uma subida desejável situava-se entre 5 e 7 metros. Do nível
das águas dependia, pois, o futuro do país: se muito alto, destruiria canais e diques,
avançaria sobre vilas e cidades, provocaria o atraso dos cultivos; sendo muito baixo,
comprometeria a extensão das plantações, resultando em fome e carestia. Se o Nilo era
simplesmente “o rio”, a boa inundação manifestava uma divindade, Hâpy, personificação

26
da fartura e da abundância, representada por uma figura andrógina carregando víveres. A
terra escura banhada pelas águas, fonte de alimento, tipificava a vida;1 o deserto
adjacente, seco e inóspito, lembrava a morte.
Na cosmovisão egípcia, o Nilo divide relevância com outro elemento natural: o
sol. Fonte de calor para todas as criaturas, luz poderosa que dissipa as trevas, força
abrasadora que não se pode controlar, o disco solar em seu espetáculo cruzando o céu era
entendido como a manifestação por excelência da energia que engendra a vida – um
verdadeiro e supremo deus, seja chamado de Rá ou por outros nomes.
Nas águas e no sol, os egípcios reconheceram as fontes de tudo o que existe. No
princípio nada havia senão Nun, as águas primordiais, turbulentas, envoltas na mais
completa escuridão. Das águas elevou-se então um montículo de terra onde apareceu,
auto-gerado, o deus-sol – a primeira manhã –, que começou a criar tudo o que existe: o
céu e a terra, o Nilo e as montanhas, os deuses e as deusas, os animais e as plantas, os
homens e aquilo que necessitam em sua existência, também as forças mágicas, para sua
proteção.
Não surpreende que entre os antigos egípcios – esse “povo mais religioso que
existe”, segundo Heródoto – o entendimento do mundo tenha suscitado diversas
especulações em bases mitológicas, a começar pelo problema das origens. Como bem
postulou Leonard Lesko (2002, p. 110), se a tarefa dos pensadores faraônicos era
filosófica e teológica, “seu modo de expressão era mitológico”. Ao longo da história
egípcia, surgiram diferentes concepções cosmogônicas (relativas à criação), não raro
concomitantes, com os grandes centros religiosos procurando afirmar sua divindade como
supremo demiurgo – temática essa das mais ricas do pensamento faraônico, e objeto de
inúmeros e recorrentes estudos (Allen, 1988; Bickel, 1994; Lesko, 2002; Traunecker,
2004). Ainda que guardando suas especificidades, ou sendo contraditórias, essas
concepções apresentam diversos elementos comuns, repetindo por milênios certas
tradições, sobretudo aquelas herdadas dos teólogos da antiga cidade de Yunu, a Helópolis
dos gregos, centro do culto do deus-sol.2 A “Cosmogonia de Khonsu”, por exemplo, que
data do 1º milênio a.C., era senão uma síntese de conceitos locais tebanos com a doutrina
heliopolitana, quase dois mil anos mais antiga (Cruz-Uribe, 1994).

1
Um dos nomes do Egito era justamente Kemet, ou “Terra Negra”.
2
Além de Heliópolis, as cosmogonias mais originais foram aquelas dos teólogos de Hermópolis, que
atribuíam a criação à Ogdoade (as oito divindades casais), e de Mênfis, tendo Ptah como supremo criador.

27
Considerado em suas características particularmente físicas, que mundo egípcio é
esse, criado pela vontade divina? Adentramos aqui no tema central de nossa discussão
nesse volume: a cosmologia faraônica e suas implicações míticas.
Dada à importância do Nilo, era natural que o entendimento espacial egípcio
tomasse por base o curso do rio. Era pela geografia do Nilo que os antigos habitantes se
situavam, se orientavam. Seu país, concebiam, era formado pelas “Duas Terras”, isto é,
as duas regiões observadas na paisagem fluvial. A antiga cidade de Yebu – a Elefantina
dos gregos, junto da moderna Aswan –, marcava o limite meridional de Ta-Shemau, isto
é, a “Terra dos Juncos”, a porção sul do território, região do vale do Nilo, que hoje
designamos de Alto Egito. Até o Fayum, distante centenas de quilômetros mais ao norte,
faixas de terra de poucos quilômetros seguem paralelas ao rio em suas duas margens. O
solo agricultável termina abruptamente no deserto arenoso, com escarpas rochosas por
vezes marcando o encontro entre os dois ambientes. Contavam-se ali 22 sepat, ou distritos
faraônicos, que os gregos chamaram nomos. Para além de Mênfis adentrava-se em Ta-
Mehu, a “Terra dos Papiros”, ou Baixo Egito, com outros 20 distritos. Essa porção norte
é a região do Delta do Nilo, onde o rio se divide em vários braços que seguem a
desembocar no Mar Mediterrâneo. O terreno fértil vai ali se tornando bastante alargado,
formando um enorme triângulo invertido, cuja parte mais setentrional era dominada, pelo
menos nos tempos mais antigos, por pântanos impenetráveis.
Com a maioria das localidades situando-se às margens do rio, a navegação
sobressaía como o meio de transporte por excelência nos tempos faraônicos – de pessoas,
de mercadorias, das mais variadas coisas. No idioma egípcio, o verbo khenti significava
“subir (o Nilo)”, isto é, navegar contra a correnteza, sendo a maneira de expressar “ir para
o norte”; inversamente, “ir para o sul” dizia-se khedi, literalmente “descer (o Nilo)”,
navegar pela correnteza. A palavra para “oeste” é a mesma para “direita”, do mesmo
modo que “leste” equivale à “esquerda”, o que demonstra que a orientação dos egípcios
era voltada para o sul, ou seja, para a fonte, ainda que mal concebida, do Nilo (Allen,
2003, 23).
Em diferenciação à paisagem plana do Egito, as terras estrangeiras eram marcadas
na escrita como lugares montanhosos, mesmo que tal consideração escapasse à realidade.
Ao norte do país, abria-se o “Grande Verde”, isto é, o Mar Mediterrâneo, também
chamado “o grande circundador”, definição que, como lembrou Lesko (2002, p. 142),
“parece ter sido um protótipo do grego okeanós.”

28
O Egito, os outros países, os mares de águas salgadas – nesse mundo perceptível,
incluíam-se também os elementos que o egípcio, incapacitado ao pleno entendimento,
lançou-se ao campo imaginativo:

O céu foi objeto de detalhada especulação. Com nada mais do que o olho nu
para se basear, os observadores egípcios viram-no como a superfície de um
vasto corpo de água – como o Nilo ou o mar, azul durante o dia e negro durante
a noite. [...] As especulações sobre a natureza dessa expansão celestial
centraram-se no céu à noite, provavelmente porque exibe mais características
diversificadas do que o trecho ininterrupto do costumeiro céu diurno do Egito.
As estrelas, como o sol, aparentemente se moviam pelo céu durante a noite e
no decorrer do ano, e por essa razão foram vistas como viajantes sobre a
superfície, ao invés de elementos fixos de sua topografia. (Allen, 2003, p. 24).

Buscando compreender o mundo visível, e também aquele que se julgava existir


além dos limites percebidos, o gênio egípcio produziu outras respostas cujos
protagonistas eram suas múltiplas divindades. Que era a inundação do Nilo senão as
lágrimas de Ísis em pranto pela morte de Osíris? (Derchain, 1970). Nesse sentido, a
interpretação de elementos e fenômenos naturais, ou de eventos cósmicos, integrava-se à
rica e complexa mitologia:

os eventos cósmicos são muitas vezes interpretados através da mitologia. Isso


ocorre não somente na forma de etiologias explicando a razão para o estado
atual do cosmos, mas também como incidentes mitológicos conectados com
eventos recorrentes. Eventos míticos conectam-se com regiões cósmicas
específicas, frequentemente os horizontes do outro-mundo, e com tempos
específicos: um dos casos mais conhecidos é o uso da mitologia do olho de
Hórus para interpretar o crescente e o minguante lunar. (Jorgensen, 2011, p.
74).

No conjunto das especulações mítico-cosmológicas, dois temas ganham


relevância: a separação do céu e da terra e a jornada do astro solar.
Tendo se erguido do montículo de terra nas águas de Nun, o deus-sol, em seu
nome de Rá-Temu, criou Shu e Tefnut. Esse primeiro casal divino gerou outro par, Gueb
e Nut. Desaprovando a união amorosa dos filhos, segundo certa versão, Shu colocou-se
entre eles, erguendo Nut, que se tornou o céu, e mantendo Gueb aos seus pés, tornando-
o a terra. Shu, por sua vez, passou a personificar o ar, o vento, a atmosfera. Descrita desde
a literatura funerária do 3º milênio a.C. (os “Textos das Pirâmides”), essa alegoria mítica
do mundo físico tornar-se-ia, muitos séculos depois, um motivo iconográfico recorrente
nos papiros e ataúdes decorados (Englund, 1974) – imagem bem distinta dos sinais
hieroglíficos indicativos de “céu” (um dossel com apoios) e “terra” (uma extensão plana).

29
Nut era parte integrante do tempo cíclico egípcio. Quando se erguia no horizonte
oriental a cada manhã, o astro solar – mais propriamente, o deus-sol – iniciava sua
“navegação” pelo corpo arqueado da deusa, até ser engolido por ela ao entardecer. No
interior de Nut, o deus-sol prosseguia em seu trajeto noturno, para então ser parido ao
nascer do dia – ou criado numa roda de oleiro, segundo outra tradição (Dorman, 1999).
Sobre essa mística jornada, explicou Lesko (2002, p. 144-145): “O sol egípcio, que os
estudiosos modernos descrevem como um disco, na verdade era concebido como uma
esfera, como fica claro nos antigos baixo-relevos. Para os criadores de mitos, o ‘disco’
necessitaria de asas ou de um besouro para sua propulsão, e poderia tanto ser uma barca
quanto conter uma barca.” 3
O percurso cíclico do deus-sol foi tema, ao longo dos séculos, de diversas
composições mitológicas (Hornung, 1999). O “Livro dos Dois Caminhos”, que data do
Médio Reino, é um desses guias para o espírito bem-aventurado acompanhar a jornada
solar. Espécie de mapa do outro-mundo, nele são descritos os espaços que se alegava
existir no interior do céu – lugares como Rosetau, Duat e Imhet, também os “Campos da
Paz”:

A maior parte do mapa indicava o caminho seguido pelo deus-sol, com seus
acólitos e seguidores, em sua viagem, primeiro de leste para oeste, ao longo
de um canal azul que atravessava a parte interna do céu, e depois de volta, de
oeste para leste, num caminho por uma região escura através da parte externa
do céu. Os percursos descritos nesse livro e em guias posteriores de túmulos
reais do Novo Império (Amduat, Livro dos Portões, Livro das Cavernas) eram
povoados por demônios cujos nomes e características tinham que ser
conhecidas, para que se pudesse superar os obstáculos e portões que eles
aguardavam. Quem não conseguisse passar por eles com sucesso, também não
poderia continuar para sempre nessa jornada cíclica. O principal obstáculo a
ser enfrentado era o demônio Apophis, uma serpente gigantesca que ameaçava
devorar o sol, uma personificação que refletia claramente a familiaridade dos
antigos egípcios com os eclipses solares. (Lesko, 2002, p. 145).

Do interesse mítico-cosmológico, e também funerário, resultou a preocupação não


apenas em descrever textualmente – a começar pelos “Textos das Pirâmides” (Allen,
1989) –, mas também o de representar artisticamente os espaços e lugares que se
acreditava existir no mundo, visível ou oculto. Nesse sentido, as vinhetas ilustrativas que
acompanham o “Livro dos Dois Caminhos” constituem a primeira expressão, por assim

3
Admite-se que a natureza tenha inspirado diversas concepções religiosas egípcias. O sol a navegar pelo
céu referenciava-se na visão dos barcos singrando as águas do Nilo; do mesmo modo, o montículo do qual
se elevou o deus-sol em meio às águas de Nun remetia às porções de terra mais elevada que, ao retroceder
da inundação, iam despontando na paisagem.

30
dizer, da cosmografia mitológica egípcia (O’Connor, 2012; Robinson, 2003). As fontes
imagéticas mais elaboradas, entretanto, são aquelas das composições supracitadas nos
túmulos faraônicos do Novo Reino (situados no “Vale dos Reis”). Nota-se ali que a
disposição do material seguia um padrão simbólico associado à arquitetura tumular – tudo
para que o soberano, em sua vida eterna, compartilhasse a experiência divina (Wilkinson,
1994). Na doutrina funerária, a viagem noturna do sol resultava, pois, no encontro entre
Rá e Osíris, o que remetia ao tema da ressurreição da alma (Janák, p. 2003). Já os inimigos
divinos, os partidários de Apophis, estavam destinados ao sofrimento, ao castigo eterno:
jaziam consumidos pelas chamas, as cabeças decepadas, os membros despedaçados em
grandes caldeirões – a imagem mais próxima, vinda do Egito Antigo, do “inferno” cristão
(Hornung, 1994).
Em que pese todo o misticismo das composições, é notável a tentativa dos
teólogos de racionalizar certos conteúdos: em meio às descrições da jornada do deus-sol,
o passar de cada hora do dia ou da noite, encontramos textos que se apresentam como
genuínos trabalhos científicos de sua época – resultam, de fato, de interessada observação
astronômica. O exemplo mais célebre nesse sentido é o “Livro de Nut”, nome
egiptológico para o antigo “Fundamentos do Curso das Estrelas” (Von Lieven, 2010). 4
Trata-se de um descritivo do movimento do sol, das estrelas e da paisagem celestial,
visível ou oculta. Predomina, de todo modo, a especulação mitológica tradicional. Diz a
passagem relativa ao movimento noturno dos astros:

Quando a encarnação desse deus adentra é em sua primeira hora da noite,


tornando-se poderoso novamente no abraço de seu pai Osíris, e lá se tornando
purificado.
Quando a encarnação desse deus descansa da vida no Duat é em sua [i.e., de
Nut] segunda hora de gravidez. Então a encarnação desse deus está
governando os ocidentais, e dando ordens no Duat.
Então a encarnação desse deus sai na terra novamente, tendo chegado ao
mundo, o jovem, seu poder físico tornando-se grandioso mais uma vez, como
na primeira ocasião em seu estado primordial. Então ele se desenvolveu no
grande deus, o disco solar alado.
Quando esse deus navega até os limites da bacia do céu, ela faz com que ele
entre novamente na noite, no meio da noite, e ele navega dentro da escuridão,
essas estrelas estão atrás dele.
Quando a encarnação desse deus entra em sua boca, dentro do Duat, ela
permanece aberta depois dele navegar para dentro dela, de modo que essas

4
Conhecido por registros monumentais e também em papiro, essa composição atravessou milênios sob
grande interesse dos egípcios. O exemplo mais antigo, no templo de Seti I em Ábidos, data de cerca de
1320 a.C., mas admite-se que o original recue aos tempos do Antigo Reino. Foi copiado também no túmulo
de Ramsés IV no “Vale dos Reis”.

31
estrelas navegantes possam entrar depois dele e aparecer depois dele.” (Allen,
1988, p. 2).

O Duat, espaço próprio de deuses e espíritos, remete à dificuldade dos antigos em


lidar com seus conceitos: se no “Livro de Nut” ele se situa dentro do corpo da deusa, em
outras fontes textuais é colocado abaixo da terra, constitui sua contraparte subterrânea.
Seja como for, o “Livro de Nut”, que pode ser considerado a síntese da cosmologia
egípcia, define o mundo como formado de três partes:

Juntos, o céu, a terra e o Duat compõem o mundo do egípcio antigo – uma


espécie de ‘bolha’ de ar e luz no interior senão da infinidade inviolável das
águas escuras. Esses elementos formam o fundamento para a compreensão
egípcia do ciclo da vida e do destino humano, determinado pelo drama diário
do nascer e pôr-do-sol. São eles também o ponto de partida para toda a
especulação egípcia a respeito das origens do universo. (Allen, 1988, p. 7).

Mas qual o lugar do Egito, mais precisamente, nesse mundo? Chegou-nos,


felizmente, uma preciosa fonte imagética esclarecedora da questão, uma cosmografia que,
a despeito da datação tardia, se fundamenta nas concepções egípcias mais tradicionais.

Representação do Cosmos Egípcio. Sarcófago de Wereshnefer, 30ª dinastia. Metropolitan Museum of Art,
Nova York. In: Ramson, 1914, p. 117.

32
A cerca de 30 Km sul do Grande Cairo, na margem oeste do Nilo, situam-se as
ruínas da antiga Mênfis. Contígua à cidade está sua necrópole, Saqqara, que durante toda
a história faraônica serviu como local de sepultamento para egípcios dos mais variadas
estratos sociais. Em 1912, escavações lá conduzidas pelo antigo Serviço de Antiguidades
do Egito revelaram o túmulo de um certo Wereshnefer, sacerdote que viveu em fins da
30ª dinastia (380-343 a.C.). Da sepultura, violada, proveio um belíssimo sarcófago
retangular talhado em pedra dura (granodiorito). Um ano depois, o governo egípcio
decidiu pela venda do artefato, que seguiu para os EUA, onde passou a integrar a extensa
coleção de antiguidades faraônicas do Metropolitan Museum of Art, em Nova York
(inventário MMA 14.7.1), permanecendo em exibição até hoje (Arnold, 1997). A
descrição acadêmica do artefato coube a Caroline Ransom, a primeira egiptóloga
profissional das Américas (Ransom, 1914). 5
Como típico das peças do gênero no período (Manass,, p. 2007), o sarcófago de
Wereshnefer é um trabalho massivo e esmerado, ricamente decorado, na tampa e na cuba,
com imagens e inscrições mitológicas em relevo inciso. Predominam as cenas e textos
relativos ao percurso noturno do deus-sol no Duat, passagens do “Livro do Amduat”,
cujos protótipos decoravam, séculos antes, os túmulos do “Vale dos Reis”. Na tampa, em
meio às representações tornadas regulares, sobressai uma imagem única: o “mapa” do
mundo combinando a essência da cosmologia faraônica (Allen, 2003, p. 28-29). Vejamos
em detalhes os elementos da cena, reproduzida à página XX.
Delimitando o conjunto figurativo, sobressai uma grande e bela imagem de Nut,
em sua característica personificação de deusa do céu: uma figura feminina nua, o corpo
arqueado (o semicírculo do horizonte), apoiando-se nos pés e nos dedos das mãos
esticadas até o solo. Dentro do corpo aparecem estrelas e discos solares ladeados de
serpentes protetoras – os corpos celestiais em seu movimento noturno, oculto aos
humanos. Um disco solar com serpentes, desta vez alado (próprio ao movimento), 6
aparece entre as pernas de Nut, outro junto da boca: referências ao nascer e pôr-do-sol,

5
Caroline Louise Ransom Williams (1872-1952) recebeu o PhD pela Universidade de Chicago, em 1905
– o primeiro em Egiptologia concedido a uma mulher nos EUA. Foi aluna de Adolf Erman, em Berlim, e
James Breasted, em Chicago, e ao longo de sua carreira compartilhou experiências com muitos outros
egiptólogos eminentes. Curadora no Metropolitan Museum, estudou igualmente as coleções egípcias de
outras instituições, incluindo o Museu do Cairo. Foi também a primeira mulher a integrar o Epigraphic
Survey, que registrava os monumentos na margem oeste de Luxor, tendo atuado no templo de Ramsés III
em Medinet Habu.
6
O sol alado é um dos símbolos mais característicos dos egípcios, associando o deus-sol Rá com a mitologia
do deus-falcão Hórus Behedety.

33
os atos de parir e engolir o astro. Na descrição do artefato, Caroline Ransom não se
conteve de elogiar o valor artístico da imagem:

a forma da área permitiu que o artista fizesse uso de proporções mais


convincentes, ainda que irreais, com a terminação arredondada da tampa
permitindo a bela curva ascendente das costas da deusa. A elasticidade e o
perfeito balanço da figura satisfazem o senso estético, e a grandeza e
graciosidade da concepção apelam para a imaginação.” (Ransom, 1914, p.
118).

Na parte inferior, em contraste com a posição de Nut, vemos Gueb, o deus da


terra, representado de modo bastante original. De duas pernas surgem dois grandes braços
estendidos, as palmas das mãos esticadas, tendo um olho no ponto em que as partes
corpóreas se encontram. Trata-se aqui de um recurso recorrente na arte faraônica, um
rébus hieroglífico, uma “charada” pelas formas da escrita (Wilkinson, 1992): os braços
esticados constituem, em verdade, a forma característica dos braços do ka (o duplo
espiritual egípcio), enquanto as pernas indicam o hieróglifo para o fonema b, do que
resulta o conjunto kab – era dessa maneira que se pronunciava o nome do deus nas últimas
dinastias. Junto dos braços do ka desponta a face de Gueb, em visão frontal – o hieróglifo
her –, encimada pelo disco do sol. Ele lança outros braços em gesto de sustento ao mundo
acima dele.
Sob o corpo de Nut vemos Shu, o deus da atmosfera, também representado com a
face vista de frente, os braços esticados formando uma linha reta em sustento ao céu, com
sóis alados perto das mãos, em referência ao astro em seu movimento diurno. Outro
grande sol alado, recheado de estrelas – o sol em seu aspecto noturno –, se posta
imponente acima da cabeça do deus.
O mundo em si aparece como um enorme círculo, ideia inspirada na jornada solar,
conforme esclareceu Allen (2003, p. 28):

Tendo os antigos egípcios visto o ciclo solar como uma circunavegação dos
limites do mundo, talvez fosse inevitável que viessem a enxergar o próprio
mundo em termos circulares. Indicações para tal ponto de vista podem ser
encontradas desde o Médio Reino, em caracterizações do mundo como
“aquilo que o disco solar circunda”

O círculo do mundo é constituído, em verdade, por dois anéis concêntricos. A


cosmografia segue a típica orientação egípcia em direção ao sul. Esticando-se nas laterais
internas do anel exterior estão duas deusas que, pelos símbolos em suas cabeças,

34
representam o leste (à esquerda) e o oeste (à direita). Junto de seus braços erguidos
aparecem as barcas do percurso do deus-sol – uma para o dia, outra para a noite.
Abaixo de outro sol alado, no que indica o sul, vemos dois chacais ladeando as
águas do Nilo (os hieróglifos das linhas de água em movimento), que se projetam,
segundo se acreditava, de cavernas secretas (indicadas pelos edifícios retangulares)
existentes para além da fronteira meridional do Egito. Defronte às deusas aparecem
figuras antropomórficas enfileiradas: são as divindades que representam os elementos e
forças operando no cosmos. Preenchendo a parte inferior vemos vários anéis alongados,
recheados de figuras humanas, que significam os povos dos países estrangeiros.
O Egito é indicado pelo anel interno, que toma a forma de moldura contendo os
emblemas dos 40 distritos que compunham o país à época.
Em meio a diversos símbolos e divindades, sobressai no interior do anel interno o
mundo terreno, acima, e sua contraparte subterrânea, o Duat, ambos indicados pela figura
de um deus mumificado, de bruços, a erguer a cabeça – uma forma usualmente aplicada
a Osíris. Separados pelo sol alado, tais figuras divinas são mostradas em efeito espelho,
isto é, invertidamente, em alusão ao contraste que representam.
Sobre a espacialidade geral do conjunto, assim explicou Allen (2003, p. 29):

O círculo em si é um amálgama complexo de imagens. Embora apresentado


em duas dimensões, pretendia representar três - um verdadeiro globo. O disco
do sol na parte superior do círculo externo e as imagens dentro do anel interno
pertencem à mesma dimensão que a representação de Nut, Shu e Gueb,
enquanto o resto do círculo deve ser entendido como girado a 90 graus
perpendicular a eles. [...] Apesar do seu tamanho, as i magens dentro do anel
interno devem ser vistas como cobrindo toda a extensão do círculo exterior.”

Em meio às várias especificações mitológicas contidas na representação, a


mensagem mais eloquente da cosmografia de Wereshnefer é esta: o Egito é o axis mundi,
o centro do mundo, enquanto as terras estrangeiras formam sua periferia. 7
No imaginário faraônico, esse contraste espacial evoca o próprio ideal de maat, a
ordem cósmica, o estado perfeito e desejável para o mundo desde a criação, estabelecido
pelos deuses e garantido na terra por seu perpétuo vigilante, o faraó. Uma incursão
estrangeira ao Egito era senão uma ameaça a esse funcionamento ideal do cosmos, uma

7
A ideia de axis mundi ocorre em muitas culturas ao longo da história, cada qual evocando sua cosmovisão
particular: Jerusalém para a Europa do Medievo, Meca para o Islã, Cuzco para os incas, etc.

35
manifestação do caos, ou isfet.8 Nesse particular, uma fonte iconográfica complementa-
se ao cosmos de Wereshnefer, e lhe oferece mais entendimento.
Restou-nos o fragmento de outra representação do mundo egípcio, no mesmo
modelo, hoje no acervo da Biblioteca da Universidade de Yale (Clère, 1958). A porção
que se preservou é aquela relativa ao noroeste do país dos faraós. Mostra uma parte do
anel interno que forma o Egito, com os emblemas distritais daquela região, e o espaço
ocupado pelos estrangeiros, cujo limite é o anel exterior do mundo. Os estrangeiros,
figurados antropomorficamente, estão sob a vigilância de Ha, o deus do Deserto Ocidental
– trata-se, portanto, dos líbios. Os anéis alongados em que eles se acomodam se ligam ao
anel do Egito por meio de laços de corda, indicativo simbólico de que estão controlados.
Para além do anel exterior, aparece um espaço legendado como “as águas frias de Hórus”,
ou seja, a massa aquosa primordial da qual surgiu o deus-sol para dar vida a tudo o que
existe.
Epicentro da bolha cercada pelas revoltas águas primordiais, o Egito seguiria seu
tempo ao ritmo das cheias do Nilo, da jornada cíclica do deus-sol, protegido por múltiplas
divindades, capitaneado pelo sagrado faraó, os estrangeiros afastados do país, a ordem,
enfim, superando o caos. Haveria então de chegar o dia, segundo se acreditava, que as
águas primordiais invadiriam os limites da bolha, engolfando a tudo e a todos, com o
universo retornando ao seu estado mais primevo: o fim do mundo (Elsebaie, 2013). Mas
até lá se passariam “milhões e milhões de anos”, conforme insistiam as fontes. Era tempo
suficiente para Wereshnefer, encerrado em seu sarcófago mas ressurreto no Duat, chamar
de vida eterna.

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la nécropole de Saqqâra dédiées à Jean-Philippe Lauer. Montpellier: Université Paul
Valéry, 1997, v. 1, p. 31-54.
8
O ato simbólico e ritual do controle dos estrangeiros era capturado pela imagem do rei a golpear o s
inimigos, um motivo artístico usual desde a 1ª dinastia. Além da invasão estrangeira, outras manifestações
do caos ameaçando maat incluíam uma inundação catastrófica, uma guerra civil ou uma grave pestilência.

36
BICKEL, S. La cosmogonie égyptienne avant le Nouvel Empire. Göttingen: Vandenhoeck &
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37
3

Deuses Egípcios no Olimpo, segundo Heródoto

Maria Aparecida de Oliveira Silva

Introdução

Heródoto demonstra especial interesse em práticas, representações e


manifestações religiosas dos povos visitados em sua narrativa. A atenção herodotiana a
aspectos da religiosidade humana revela a importância que nosso autor confere ao
conhecimento da história de um povo por meio das suas práticas religiosas, que também
explicam certos acontecimentos dignos de memória. A religiosidade em Heródoto
aparece como algo natural ao ser humano, ele nos mostra como esta se manifesta em seus
mitos, vestimentas, hábitos alimentares, edificações, festividades, por exemplo. Dentre
os vários povos lembrados em seus relatos, os egípcios recebem de nosso autor a narrativa
mais extensa: o Livro II – Euterpe, onde encontramos uma das mais conhecidas
afirmações sobre o Egito, “O Egito é uma dádiva do rio” (y Aiyunıoç [...] 6±qov ıoñ
noıaµoñ) (he Aígyptos dôron toû potamoû) (II, 5), que resume a temática principal
desenvolvida pelo historiador neste livro: o Egito, mais precisamente a região do Vale do
Rio Nilo.
Nosso autor centra sua narrativa em uma região do Egito em que encontramos
também a intensa presença dos helenos. Heródoto claramente demonstra sua intenção de
traduzir o outro em um processo que Hartog chama de “retórica da alteridade” (1999, p.
273), isto é, ver o outro pelo seu olhar, com seus juízos de valores. Não por acaso,
Heródoto conta que o nome da região foi dado pelos helenos:

Mas penso que os egípcios não surgem simultaneamente com o Delta, que foi
chamado Egito pelos iônios, eles sempre existiram, desde o na scimento da

38
raça humana; quando o seu território avançou, muitos o abandonaram para
criar os seus próprios, enquanto muitos desceram pouco a pouco. Isso, então,
chamado de Egito, e da antiga Tebas, o perímetro de seu território era de sei s
mil cento e vinte estádios. Se nós conhecemos bem esses acontecimentos, os
iônios não compreendem bem os egípcios. Se a opinião dos iônios está correta,
mostro que os helenos e os próprios iônios não sabem calcular, os que dizem
que três partes perfazem toda a terra, Europa, Ásia e Líbia. Pois, de fato, eles
devem considerar ainda o Delta do Egito como sua quarta parte, se não
pertence nem a Ásia nem a Líbia. (Histórias, II, 15-16) 1

Essa região se torna tão importante aos olhos de Heródoto que ele a considera a
quarta parte do mundo, o que lhe confere autonomia cultural, econômica e política. Então
percebemos que essa retórica da alteridade nos conduz a uma narrativa em que o outro
não é o outro em si, mas um ser híbrido, melhor que os anteriores, por terem tido contato
com os helenos. O episódio mais emblemático do contanto do heleno com o outro em
Heródoto está no encontro de Creso com Sólon, segundo o historiador, “para ver o mundo,
Sólon ficou ausente da sua pátria e partiu para o Egito, para a corte de Amásis, além de ir
para Sárdis, à corte de Creso” (Histórias, I, 30), fato que demonstra o hábito dos helenos
de viajar e conhecer outros territórios, outras culturas, para que se tornassem mais sábios,
ao mesmo tempo em que dissemina a sabedoria dos helenos. Conforme Ker, as perguntas
de Creso, em Heródoto (Histórias, I, 29-30), demonstram a capacidade de Sólon de
observar o lugar sob a perspectiva de um olhar intelectual, de u m sábio que conheceu
vários territórios e que apresenta uma sabedoria extraordinária. Do mesmo modo,
Heródoto demonstra que a concepção de observação do rei Creso está equivocada, uma
vez que a direciona para sua riqueza, para o mundo tangível, em contraposição ao
inteligível, que representa a sabedoria adquirida pela observação que alimenta o
conhecimento (Ker, 2000, p. 311-312).

Os Helenos no Egito

Dentre os helenos que povoaram o Egito, alguns foram os reminiscentes daqueles


levados na expedição de Cambises:

Após a morte de Ciro, Cambises, filho de Ciro e de Cassandane, filha de


Farnaspes, que morreu antes dele, herdou o seu reino; o próprio Ciro guardou
um longo luto e proclamou a todos os outros povos que ele governava que
guardassem luto também. De fato, Cambises era filho daquela mulher e de
Ciro. Porque ele considerava os iônios e os eólios como escravos herdados de
seu pai, realizou uma expedição militar contra o Egito, levando os outros
1
Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva (2016).

39
povos que ele governava, entre eles, os helenos que havia subjugado.
(Histórias, I, 1) 2

Igualmente Amásis estimulou os helenos a se instalarem no Egito, em Náucratis.


Sobre isso, Heródoto conta que:

Amásis tornou-se um amigo dos helenos e diferentes coisas ofereceu a alguns


helenos, além disso, concedeu permissão àqueles que vinham para o Egito
para morar na cidade de Náucratis; e aqueles que não queriam morar nessa
cidade, mas que navegavam para lá, ele concedeu territórios para que eles
erigissem altares e santuários em honra aos deuses. Então o principal, o mais
renomado e o mais consultado santuário deles era o chamado Helênion, e as
cidade que realizaram suas construções em comum são as seguintes: dentre as
que eram iônias, Quios, Teos, Foceia e Clazômenas; dentre as dóricas estão
Rodes, Cnido, Halicarnasso, e Fasélis, enquanto dentre as eólicas, a única é a
cidade de Mitilene. (Histórias, II, 178)

As interações sociais entre helenos e egípcios assim se naturalizam na narrativa


herodotiana, com influências de ambas os povos, mas cada um com a sua própria tradição
cultural. Apesar desta tradição própria, egípcios e helenos habitantes da região do Vale
do Nilo apresentam um sincretismo religioso que surpreende seu leitor/ouvinte. Trata-se
da questão da origem dos deuses egípcios em Heródoto e sua associação com os nomes
de alguns deuses helenos, com seus ritos e representações:

Dizem que os egípcios foram os primeiros a dar nomes apropriados aos doze
deuses, e que os helenos tomaram esses nomes deles, e que também foram os
primeiros a dedicar altares, imagens e templos aos deuses, também a esculpir
suas imagens nas pedras. (Histórias, II, 4)

Assertivas que são duramente criticadas, séculos depois, por Plutarco de


Queroneia:
E que os helenos aprenderam com os egípcios as procissões e os festivais e a
venerar os doze deuses; que Melampo aprendeu o nome de Dioniso com os
egípcios e o ensinou ao restante dos helenos; que tanto os mistérios como os
ritos de Deméter foram trazidos pelas filhas de Dânao do Egito. Também
afirma que os egípcios se flagelavam e choravam por um deus que ele prefere
não nomear, mas manter-se em silêncio sobre os assuntos divinos. Com
relação a Héracles e Dioniso, quando declara que os egípcios os veneram
como deuses antigos e os helenos como homens envelhecidos, de modo algum
expõe o mesmo cuidado. E afirma que o Héracles egípcio origina -se da
segunda geração dos deuses e que o Dioniso, da terceira, porque tem princípio
de gênese e não são eternos. Mas igualmente os declara deuses e crê que se
deve fazer-lhes oferendas como aos heróis e mortais, mas não se sacrificar
como aos deuses. Isso também foi dito sobre Pan, alterando as devoções e

2
Maria Aparecida de Oliveira Silva, 2015.

40
purezas dos assuntos sagrados dos helenos com as imposturas e ficções dos
egípcios. (Da malícia de Heródoto, 857C-E)3

Por esses e outros relatos, Plutarco chama Heródoto de filobárbaro,


(ijtZoþáqþaqoç) (philobárbaros) (857A), ou um simpatizante dos bárbaros. Em defesa da
origem grega dos deuses e de Héracles, Plutarco sustenta sua afirmação de que Heródoto
é filobárbaro, dado que o historiador expõe em vários capítulos do segundo livro das
Histórias a relação entre as divindades helenas e as egípcias. Heródoto destaca a
influência dos egípcios na constituição do Panteão heleno, na realização de seus rituais e
nas representações de seus deuses, afirmações que suscitam o questionamento de Plutarco
à narrativa herodotiana.

Deuses Egípcios na Hélade

Vejamos então o que Heródoto registra sobre as divindades egípcias que foram
adotadas pelos helenos:

Ainda os nomes dos deuses, quase todos, vieram do Egito para a Hélade. Por
esse motivo, eles vieram dos bárbaros, assim eu descobri que eram, após ter
sido informado; penso que vieram especialmente do Egito. Porque, de fato, a
não ser Posídon e os Dióscoros, como já foi dito por mim antes, também Hera,
Héstia, Têmis, as Cárites e as Nereides, os nomes dos demais deuses sempre
foram os de outrora neste território. Digo os nomes que os próprios egípcios
chamam. E os nomes dos deuses que dizem não conhecer, parece-me que estes
foram nomeados pelos pelasgos, exceto Posídon. Eles conheceram esse deus
por intermédio dos líbios; pois nenhum deles tinha o nome de Posídon desde
o início, a não ser para os líbios, que sempre honraram esse deus. Então, os
egípcios não cultuam nenhum dos heróis. (Histórias, II, 50)

Portanto, segundo Heródoto, existem vários deuses do Olimpo que cuja origem
remonta aos deuses egípcios, presentes não somente em seus nomes como também em
seus ritos e representações. Embora Heródoto demonstre que diversas práticas religiosas
dos egípcios foram adotadas pelos helenos, ele assinala que o contrário também ocorreu;
assim, alguns egípcios também adotaram costumes dos helenos, mas em menor
intensidade, como depreendemos do seguinte relato:

E eles evitam adotar costumes dos helenos. Para dizer de forma resumida, não
adotam de modo algum os costumes de nenhum outro povo. Portanto, os
demais egípcios preservam isso. Mas há Quêmis, uma grande cidade da
província de Tebas, próxima a Neápolis; nessa cidade, existe um templo
quadrado de Perseu, filho de Dânae, e, em volta dele, nasceram palmeiras; e

3
Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva (2013).

41
os vestíbulos do templo eram feitos de pedras muito grandes; e sobre eles
havia duas estatuas de pedras enormes colocadas de pé; e nesse recinto
sagrado existe um santuário, no qual existe uma estátua de Perseu em pé. Esses
quemitas dizem que Perseu aparece muitas vezes para eles nessa terra, e que
frequentemente ele está dentro do templo, e encontram uma sandália que ele
calcava, que tem o tamanho de dois côvados; que quando ela aparece, todo o
Egito se torna abundante. (Histórias, II, 91)

Com isso, Heródoto nos apresenta a diversidade cultural que havia no Egito, pois
os povos habitantes do Delta não tinham as mesmas práticas e os mesmos costumes das
regiões pantanosas. E é na região do Delta do Nilo, onde havia a maior concentração de
helenos, em especial em Náucratis, um importante entreposto comercial, que Heródoto
centra a sua narrativa sobre o Egito. Em razão disso, helenos e egípcios aparecem em sua
narrativa tanto quanto ao lado de persas e medas, o que nos leva a concluir que Heródoto
tem preferência pelos territórios estrangeiros em que os helenos haviam povoado. A
perspectiva intercultural de seu relato traz ao leitor a noção de que a convivência entre
povos distintos em uma mesma região resulta em movimentos de interações e
ressignificações culturais ao lado dos de resistências e preservações culturais. Apesar
disso, ora o heleno incorpora crenças e ritos dos egípcios, ora estes se misturam àqueles:

Portanto, todos os egípcios sacrificam bois puros, os mais vigorosos e os


vitelos, enquanto não lhes e permitido sacrificar as vacas, mas são oferendas
sacrificiais de Ísis. Pois a estátua de Ísis era de uma figura feminina com
chifres de vaca, conforme os helenos representavam Io, e tod os os egípcios
igualmente veneram de modo mais considerável as vacas de todos os
rebanhos. (Histórias, II, 41)

De acordo com o relato de Apolodoro, Io, filha de Ínaco, rei de Argos, foi raptada
pelos fenícios. Esta personagem mítica que despertou o amor de Zeus, que, para escapar
ao ciúme descontrolado de Hera, o pai dos homens e dos deuses a transformou em uma
novilha e a entregou ao pastor Argos. Mas a perseguição continuou e, em sua
movimentação de fuga, Io alcançou o Egito e lá foi cultuada por eles com o nome de Ísis
(Biblioteca, II, 1). Portanto, observamos que Apolodoro reverte o processo de assimilação
dos helenos e o passa para os egípcios, pois estes adotaram Io como deusa e a nomearam
Ísis, conforme os seus costumes.
No caso de Zeus, Heródoto o trata com Ámon como um deus soberano que apenas
muda de nome no Egito, como se fossem a mesma divindade:

Héracles queria de toda maneira ver Zeus, mas o deus não queria ser visto por
ele e, por fim, depois de Héracles ter insistido, Zeus tramou o seguinte: tirou
a pele de um carneiro, colocou na sua fronte a cabeça cortada do carneiro,
vestiu o tosão e assim se mostrou para ele. Desde então, os egípcios moldam

42
suas estátuas de Zeus com a cabeça de um carneiro, e os amônios fazem-na
graças aos egípcios e aos que são colonos dos egípcios e etíopes, e que falam
uma língua que está entre ambas. Parece-me que também o nome que os
amônios tem vem disso, eles o colocaram como o seu epônimo; pois os
egípcios chamam Zeus de Ámon. (Histórias, II, 42)

Mas quanto ao herói pan-heleno Héracles:

E a respeito de Héracles, ouvi o seguinte relato: que ele era um dos doze
deuses. Mas outro relato a respeito de Héracles que os helenos conhecem, em
parte alguma do Egito eu pude ouvir. Ainda que certamente o nome de
Héracles não tenha sido transmitido pelos helenos, mas, sem dúvida, os
helenos o tomaram dos egípcios, e esses helenos colocaram o nome de
Héracles no filho de Anfitrião, tenho muitas e outras evidencias de que isso
foi desse modo e, ainda no seguinte acontecimento, que ambos os pais desse
Héracles, Anfitrião e Alcmena, eram naturais desde a sua origem do Egito, e
por isso os egípcios dizem que não conhecem os nomes de Posídon nem dos
Dióscoros, e que estes deuses não são aceitos como deuses entre os seus
demais deuses. Se eles tivessem adotado o nome de alguma divindade dos
helenos, seria mais provável que tivessem conservado desses deuses não uma
parca memória, mas uma mais marcante deles, se e que, de fato, já naquela
época os homens praticavam a arte da navegação e alguns desses navegadores
eram helenos, como suponho e a minha opinião se sustenta; desse modo, os
egípcios conheceriam mais os nomes desses deuses que o de Héracles. Mas
Héracles e um deus antigo entre os egípcios; como eles dizem, passaram-se
dezessete mil anos até a época do reinado de Amásis, desde que os doze deuses
foram engendrados pelos oitos deuses, um dos quais acreditam que seja
Héracles. (Histórias, II, 43)

Os Dióscoros são os irmãos gêmeos Castor e Polideuces (conhecido também pelo


nome latino de Pólux), filhos de Leda, irmãos de Helena e de Clitemnestra. Conforme o
mito, os irmãos eram filhos de pais diferentes; Polideuces e Helena eram filhos de Zeus,
enquanto Castor e Clitemnestra eram filhos de Tíndaro, o marido mortal de Leda; por
essa razão, eram também conhecidos como Tindáridas. No entanto, ambos teriam nascido
cada um de um ovo posto por Leda, porque Zeus havia se metamorfoseado em cisne para
ter relações sexuais com ela. Os irmãos teriam nascido na mais alta montanha de Esparta,
conhecida por Taigeto. Todos eram de origem peloponésia, tal como se acredita que seja
a origem de Héracles, herói muito cultuado na região. Segundo o mito, Héracles pertence
a linhagem de Perseu e Andrômeda, originários da Argólida, e esta e tida como a
verdadeira pátria do herói. Portanto, Heródoto nos apresenta uma versão que destoa da
mitologia helena, trazendo-nos, assim, a versão dos egípcios.

43
Ciente do estranhamento que seu registro causa ao seu leitor/ouvinte, Heródoto
amplia sua investigação4, indo além dos relatos ouvidos no Egito sobre Héracles, e decide
viajar para Tiro, onde havia um templo de Héracles, fato que assim relata:

Por querer conhecer esses assuntos com clareza de quem eu pudesse obtê -la,
fiz uma viagem de navio até Tiro, na Fenícia; neste lugar, fui informado de
que havia um templo sagrado de Héracles. E o vi ricamente adornado com
muitas e diferentes oferendas votivas; neste mesmo lugar, havia duas colunas:
uma de ouro purificado, a outra de esmeralda, uma pedra que brilhava
intensamente durante a noite. E, quando eu fui para as conversas com os
sacerdotes do deus, perguntei-lhes quanto tempo havia se passado desde que
o templo fora construído; e descobri que eles não estavam de acordo com os
helenos; pois disseram que o templo do deus havia sido edificado na mesma
época em que Tiro havia sido construída, e que haviam se passado dois mil e
trezentos anos desde quando eles construíram Tiro. E vi em Tiro também outro
templo de Héracles em que seu nome era Tasos. E parti também para Tasos,
na qual encontrei um templo de Héracles edificado pelos fenícios, aqueles que,
navegando a procura de Europa, colonizaram Tasos; passaram ha cinco
gerações desses homens, antes de Héracles, filho de Anfitrião, nascer na
Hélade. (Histórias, II, 44)

Tiro era uma antiga cidade do Mar Mediterrâneo situada na Fenícia, cujas
atividades comerciais eram intensas. Não por acaso, Apriés escolheu Sídon e Tiro, ambas
eram as principais fontes de riquezas dos fenícios, as mais ricas da região, seus habitantes
migraram para o norte da África e fundaram a grandiosa Cartago, que também se
desenvolveu por ser um grande entreposto comercial, que rivalizava com a Sicília,
vencendo-a em combates, tornando-se a senhora do comercio mediterrâneo, até ser
destruída por Roma na chamada Terceira Guerra Púnica, em 146 a.C., o que revela a
extensão do poder de Cartago.
E, por fim, Heródoto apresenta o resultado de suas investigações sobre a origem
de Héracles no seguinte registro:

Portanto, as minhas investigações mostram claramente que Héracles e um


deus antigo. E parece-me que esses dentre os helenos fizeram o que era mais
correto: edificaram e dedicaram dois templos a Héracles e realizam sacrifícios
para um, como um sendo um imortal, que tem o nome de Olímpio, enquanto,
para o outro, eles sacrificaram como sendo um herói. (Histórias, II, 44)

E diante dos resultados de suas investigações, Heródoto critica e ainda ironiza a


versão dos helenos:

4
Para mais esclarecimentos sobre o método investigativo utilizado no Livro II – Euterpe, consultar:
Demont, 2009, p. 179-205.

44
Mas os helenos contam muitos e diferentes acontecimentos sem reflexão; uma
história tola deles é esta que contam a respeito de Héracles: depois de ele ter
chegado ao Egito, os egípcios o coroaram e conduziram-no em procissão, e
realizaram sacrifícios para ele como se fossem para Zeus; e, durante muito
tempo, ele ficou tranquilo e, quando começaram a prepara-lo para leva-lo ao
altar, ele voltou sua força contra todos eles e os massacrou. Portanto, parece -
me que os helenos contam essas coisas por serem completamente ignorantes
a respeito da natureza dos egípcios e dos seus costumes. (Histórias, II, 45)

Outro deus cultuado pelos helenos que Heródoto identifica como sendo de origem
egípcia é Pan:

Os mendésios contam que Pan está entre os oito deuses, que, segundo eles
dizem, são esses oito deuses que nasceram antes dos doze deuses; os pintores
o retrataram e também os escultores esculpiram estátuas de Pan, do mesmo
modo que os helenos, com rosto de cabra e pernas de bode, mas de maneira
alguma eles consideram que tenha esse aspecto, mas sim semelhante aos
demais deuses; e por qual razão eles o representam desse modo não me é
apropriado dizer. (Histórias, II, 46)

Quanto a Hermes, helenos e egípcios assimilaram seus ritos e representações dos


pelasgos, conforme lemos a seguir:

Portanto, esses e outros costumes além desses, os que eu relatarei, os helenos


adotaram dos egípcios; e fizeram as estatuas de Hermes , que tem suas partes
pudendas eretas, não porque aprenderam isso com os egípcios, mas com os
pelasgos, e os primeiros dentre todos os helenos a copia-las foram os
atenienses, e os demais aprenderam com eles. Pois, a época em que os
pelasgos se tornaram habitantes do mesmo território, eles reconheciam os
atenienses como helenos, por isso também esses helenos começaram a ser
nomeados assim. Quem quer que fosse iniciado nos mistérios dos secretos
ritos orgiásticos dos cabeiros, os quais os samotrácios praticam por terem
aprendido com os pelasgos, esse homem sabe o que estou dizendo; pois esses
pelasgos que primeiro habitaram a Samotrácia, estes, que se tornaram
habitantes do mesmo território que os atenienses, e os samotrácios aprenderam
os secretos rituais orgiásticos com eles. Portanto, há estátuas de Hermes com
as partes pudendas eretas, porque os atenienses foram os primeiros dentre os
helenos a aprender a faze-las com os pelasgos. E os pelasgos falaram de um
livro sagrado a respeito disso, no qual, entre os mistérios dos samotrácios, os
secretos rituais orgiásticos estão demonstrados. (Histórias, II, 51)

E Heródoto reuniu ainda informações que deram conta de ritos em reverência ao


deus Ares:

E os habitantes locais dizem que essa festa nacional e um costume que provém
do seguinte: a mãe de Ares habitava nesse templo, e Ares havia sido criado
fora de casa; quando chegou a idade viril, quis conviver com sua mãe, e como
os criados da sua mãe não o tinham visto antes, não o permitiram entrar, mas
o expulsaram, e ele trouxe homens de outra cidade para expulsar rudemente
os criados, para entrar e ficar junto da sua mãe. Desde então, dizem que houve
o costume dessa pancadaria na festa em honra a Ares. (Histórias, II, 63)

45
Há vários relatos de templos e cultos em Heródoto sobre a deusa Afrodite, dentre
eles, destacamos o seguinte:

E os fenícios provenientes de Tiro moram em torno desse bosque sagrado, e


esse território inteiro e chamado de o “Campo dos Tírios”. E existe, no bosque
de Proteu, um templo chamado Afrodite Xênia. Ocorre-me que esse templo é
dedicado a Helena, filha de Tíndaro, também porque ouvi um relato a respeito
da estada de Helena no palácio de Proteu; além disso, porque o nome atribuído
ao templo é Afrodite Xênia; pois existem outros templos de Afrodite, mas de
modo algum chamados de Xênia. (Histórias, II, 112)

A suposição herodotiana de que Afrodite Xênia está associada à imagem de


Helena provém deste relato sobre o encaminhamento que Homero dá ao enredo da Ilíada
quanto ao rapto de Helena como o argumento para a Guerra de Troia, visto que havia uma
tradição que atestava que a rainha de Esparta não chegara a Troia, mas que tinha ido para
o Egito:

Parece-me que também Homero conhecia esse relato; mas, porque não
era conveniente para a sua epopeia, ele utilizou o outro relato, até o
ponto em que lhe era permitido, mostrando que também conhecia essa
história5 . E isso é evidente, conforme ele compôs na Ilíada6 (e em
nenhum outro verso ele se retrata) sobre o desvio de Alexandre, que,
quando ele retornava trazendo Helena, de fato, foi desviado para outro
território e que chegou a Sídon7, na Fenícia. E é feita uma menção dele
na Aristeia8, de Diomedes9 ; e os seus versos dizem o seguinte:

De onde vinham os véus de ricos bordados, trabalhos das mulheres


sidônias, as que o próprio Alexandre, semelhantes aos deuses,
trouxe de Sídon, navegando pelo vasto mar,
por seu percurso trazendo Helena de pai ilustre 10.

E ainda faz menção ao isso na Odisseia, nos seus versos seguintes:

Tal remédio sábio teve a filha de Zeus,


eficaz, que lhe deu Polidama, esposa de Ton,
uma egípcia, campos que lhe produzem inúmeros
remédios, muitas misturas eficazes e outras muitas nocivas 11.

5
Esta é a primeira crítica literária que se tem notícia no mundo ocidental.
6
Homero, Ilíada, VII, 289.
7
A cidade de Sídon era um dos mais importantes entrepostos comercias da Fenícia.
8
Em heleno Áqtoıyí¿ (Aristeíei), que literalmente significa “altos feitos”, “proezas”. Trata-se do Canto V
da Ilíada, no qual Homero narra as aventuras do herói Diomedes.
9
Filho de Tideu e de Deípile, Diomedes é um herói etólio, que participou da Guerra de Troia. Destaca-se
como companheiro de Odisseu na maior parte de suas missões, dentre as quais duas foram mais importantes;
a primeira delas foi convencer, junto com Odisseu, o rei Agamêmnon a sacrificar sua filha Ifigênia no porto
de Áulis. A segunda, novamente ao lado de Odisseu, na ida ao acampamento do herói Aquiles para abrandar
sua ira e fazê-lo retornar ao combate ao lado dos aqueus, outro nome dado aos helenos.
10
Homero, Ilíada, VI, 289-292. Pai ilustre porque Helena era filha de Zeus.
11
Homero, Odisseia, IV, 227-230.

46
E Menelau diz a Telêmaco12 estes outros versos:

No Egito, ainda ali os deuses me detinham, embora ansiasse


retornar, visto que não lhes sacrificar os cem bois perfeitos.13

Em tais versos, é evidente que ele conhecia o desvio de Alexandre para


o Egito; pois a Síria confina com o Egito, e os fenícios, os que são de
Sídon, habitam na Síria. Conforme esses versos, também este território
não menos, mas mais é evidente que os versos de Cantos Cíprios14 não
são de Homero, mas de outro qualquer; pois, nos Cantos Cíprios, é
relatado que Alexandre partiu de Esparta e chegou a Ílion no terceiro
dia, trazendo Helena, servindo-se de um vento favorável e do mar
calmo; e na Ilíada conta que ele foi desviado da sua rota quando a trazia.
Então, demos adeus aos versos de Homero e os dos Cantos Cíprios.
(Histórias, II, 116-117)

Sobre o culto a Dioniso, Heródoto conta:

E cada um deles oferece a Dioniso um leitão degolado na noite da sua festa,


colocado diante de suas portas, para que o leitão seja levado pelos seus
porqueiros, por aquele mesmo de quem foi comprado. E os egípcios celebram
o restante da festa a Dioniso, quase em tudo conforme as mesmas práticas dos
helenos, exceto as danças. Em lugar dos falos, eles têm outras invenções,
como estátuas com um côvado de altura, movidas por meio de c ordas, que as
mulheres carregam pelos povoados, movendo suas partes pudendas, não muito
menores que o restante do corpo; e um flautista anda na frente, enquanto elas
o acompanham cantando hinos a Dioniso. Por qual motivo tem as partes
pudendas maiores e por qual razão somente essas partes do corpo se movem,
há um livro sagrado que discorre a respeito disso. (Histórias, II, 48)

A partir desses relatos, notamos que os registros de Heródoto trazem informações


que causam estranhamento aos seus ouvintes/leitores quanto à associação dos deuses
egípcios aos dos helenos. Ao estabelecer uma relação direta entre os deuses, Osíris e
Dioniso (II, 42), ou Apolo e Hórus (II, 146), por exemplo, Heródoto não apenas lhe
confere o mesmo nome, mas associa seus atributos e significados culturais, e desconsidera
suas especificidades. Tal processo assemelha-se ao da associação direta que vemos ainda
dos deuses helenos com os romanos, como Afrodite e Vênus, ou Ares e Marte.
Simplificações que retiram a historicidade de cada divindade quanto à sua origem e ao
desenvolvimento do seu culto para tratar a religiosidade como algo sem contexto próprio,
portanto sem qualquer relação com a cultura e a história de um povo (Lattimore, 1939).
A narrativa herodotiana segue assim uma perspectiva local (Luraghi, 2002), ainda que

12
Filho de Odisseu e de Penélope, o qual foi deixado por seu pai, recém-nascido, quando o herói partiu
para a Guerra de Troia.
13
Homero, Odisseia, IV, 351-352.
14
Os Cantos Cíprios foram compostos por Estasino de Creta, Hegésias de Salamina ou Cíprias de
Halicarnasso Tais contos integram as obras poéticas conhecidas como os poemas épicos ou do ciclo épico,
datados entre os séculos VII e VI a.C.

47
tenha como objetivo expor a história e a cultura dos povos habitantes dos lugares mais
distantes.

Conclusões

A busca herodotiana pela origem dos acontecimentos conduz o mundo helênico


ao dos medos, persas, egípcios, etc. No caso dos egípcios, os primeiros contatos com os
helenos foram por Creta, à época do rei Minos, e se intensificou nos séculos VIII e VII
a.C., período da colonização e fundação de Náucratis (Hicks, 1962, p. 92). Assim, a
exposição de Heródoto revela um autor cujo olhar é filtrado pela lente de um homem
orgulhoso com o momento histórico da Hélade, que se engrandeceu diante de uma vitória
inesperada diante dos persas, e que têm colônias espalhadas por diversas partes do mundo.
Heródoto registra a grandiosidade dos Impérios do Oriente e do Norte da África como
povos que rivalizam em sabedoria com os helenos, ora aqueles se mostram mais sábios
em determinados assuntos, ora os helenos. Contudo, a percepção herodotiana de que a
grandiosidade destes povos também passa pela sua capacidade de dominar e agregar
novos povos, novas culturas e novas formas de produção de riqueza. Heródoto entende
que a diversidade étnica das regiões determina sua prosperidade, tendo Atenas como
modelo, em que havia habitantes procedentes de diversas partes da Hélade e da Ásia
Menor. E Atenas segue sendo seu parâmetro para sua avaliação dos modelos políticos dos
povos visitados, e não poderia ser diferente com os deuses. Por seu relato etnográfico e
investigativo que a narrativa de Heródoto inova 15 e se distancia dos seus anteriores e
inspira os vindouros.

Bibliografia

Edições e traduções

HERÓDOTO. Histórias. Livro I – Clio. Tradução, Introdução e Notas de Maria Aparecida de


Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2015.
. Histórias. Livro II – Euterpe. Tradução, Introdução e Notas de Maria Aparecida de
Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2016.
. Histórias. Livro III – Talia. Tradução, Introdução e Notas de Maria Aparecida de Oliveira
Silva. São Paulo: Edipro, 2017.

15
A respeito desses dois elementos como característicos e inovadores na narrativa herodotiana, consultar
Momigliano, 1978, p. 03.

48
HERODOTUS. The Persian Wars. Books I-II. Translated by Anthony D. Godley.
Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 1981.
PLUTARCO. Da Malícia de Heródoto. Estudo, tradução e notas de Maria Aparecida de Oliveira
Silva. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2013.

Artigos, capítulos e livros

CLARYSSE, W. “Greek Accents on Egyptian Names”. Zeitschrift für Papyrologie und


Epigraphik, Bd. 119, 1997, p. 177-184.
COULON, Laurent; GIOVANNELLI-JOUNNA, Pascale et KIMMEL-CLAUZET. Flore.
Hérodote et l’Egypte. Regards Croisés sur le Livre II de l’Enquête d’ Hérodote. Lyon:
Collection de La Maison de l’Orient et de la Méditerranée 51, 2013.
DEMONT, Paul. “Figures of Inquiry in Herodotus's "Inquiries"”. Mnemosyne, v. 62, fasc. 2,
2009, p. 179-205.
GRIFFITHS, J. Gwyn. “The Orders of Gods in Greece and Egypt (According to Herodotus)”.
The Journal of Hellenic Studies, vol. 75, 1955, p. 21-23.
HARTOG, F. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Tradução de
Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
HICKS, R. “Egyptian Elements in Greek Mythology”. Transactions and Proceedings of the
American Philological Association, v. 93, 1962, p. 90-108.
JAMBON, Emmanuel. “Calendrier et Prodiges. Remarque sur la divination égyptienne d’après
Hérodote II, 82”. In: COULON, Laurent; GIOVANNELLI-JOUNNA, Pascale et
KIMMEL-CLAUZET. Flore. Hérodote et l’Egypte. Regards Croisés sur le Livre II de
l’Enquête d’ Hérodote. Lyon: Collection de La Maison de l’Orient et de la Méditerranée
51, 2013, p. 145-166.
KIMMEL-CLAUZET, Flore. “La Composition du Livre II de l’ Enquête”. In: COULON, Laurent;
GIOVANNELLI-JOUNNA, Pascale et KIMMEL-CLAUZET. Flore. op. cit., p. 17-44.
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LURAGHI, Nino. “Local Knowledge in Herodotu’s Histories”. In: LURAGHI, Nino (ed.) The
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MANSOUR, Karim. “Langue et Poétique d’Hérodote dans le Livre II de l’ Enquête. Étude de
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Oikumene, 2009, p. 154-186.

49
Parte II

Ritos do Egito Amtigo

50
1

O Livro das Respirações

Marcia Severina Vasques

Introdução

O Livro das Respirações era um dos textos funerários egípcios mais comumente
utilizado no período ptolomaico e romano, juntamente com o Livro dos Mortos, do qual
apresenta adaptações. Escrito em hierático, demótico e, mais raramente, em hieróglifo,
tendo como suporte o papiro, compreende um conjunto de recitações de cunho funerário,
cujo objetivo era auxiliar o morto em sua viagem para a outra vida. Ele comporta uma
“recomendação escrita” para ser apresentada, por seu portador, às divindades do Além.
Servia como um tipo de “guia” funerário, um manual de sobrevivência no Mundo Inferior.
Neste sentido, insere-se na categoria literária dos textos religiosos, constituindo uma
literatura funerária, aquela destinada primordialmente ao uso dos mortos e não dos vivos.
O termo - Livro das Respirações - seria uma referência às rubricas portadas, às
vezes, no verso dos manuscritos, cuja tradução seria “documento da Respiração”. O Livro
das Respirações está associado ao deus Âmon e a vários cultos e rituais procedentes da
área tebana. No geral, não possuímos informações sobre os proprietários dos papiros, já
que os dados referentes às escavações arqueológicas e ao contexto de achado destes
papiros se perderam pela falta de cuidado de quem os encontrou e pela inexistência de
uma ética científica para as pesquisas antigas, feitas, muitas vezes, por caçadores de
tesouros. Uma das fontes que possuímos referem-se aos dados arqueológicos a respeito
da família Sóter, de cuja tumba, em Deir el-Bahari, procedem alguns papiros que contêm
o Livro das Respirações.

51
Goyon (1972, p. 190-191) divide o Livro das Respirações em duas partes: “Livro
I” ou “Livro de Ísis” e o “Livro II” ou “Livro de Thot”. O primeiro, mais antigo, pode
remontar ao Período Saíta (XXVI Dinastia, 685-525 a.C.) e o “Livro II” ou “Livro de
Thot”, mais recente, data do período romano, entre o final do século I e o início do século
II d.C.. Existem também as chamadas “Abreviaturas”, que constituíam as versões
simplificadas do texto.

Egito Ptolomaico e Romano

No período ptolomaico (305-30 a.C.) e romano (30 a.C.-395 d.C.) o Egito passou
por dois domínios estrangeiros consecutivos, os quais trouxeram importantes
transformações para o país, mas que pouco alteraram o modo de vida tradicional e as
crenças religiosas egípcias. Segundo Frankfurther (1998, p. 15), mudanças religiosas
ocorreram, no Egito, em primeiro lugar, com o helenismo, quando houve um contexto
novo paras as tradições sacerdotais e para os rituais e, em segundo lugar, com o declínio
econômico da infraestrutura religiosa, isto já no final do período romano. Nos séculos III
e IV d.C. a pressão econômica sobre os templos desencadeou a decadência dos grandes
centros religiosos. A prática religiosa teve de se adaptar às novas circunstâncias e acabou
se situando em dois níveis: os sacerdotes passaram a exercer o seu ofício de forma
itinerante e os cultos realizados nos templos nacionais e regionais foram, em sua maioria,
transferidos para o culto doméstico. O caráter dinâmico da religião popular egípcia pode
ser usado como base para a observação da continuidade no período romano e na cultura
copta de importantes tradições religiosas, não como uma “sobrevivência pagã”, mas como
um fenômeno de reorganização da cultura religiosa.
Também quanto à religião funerária adaptações foram necessárias. As
transformações verificadas, no contexto funerário, já a partir da Baixa Época (525-343
a.C.), buscavam adaptar os costumes funerários às novas condições econômicas do país.
As dificuldades financeiras para conseguir produtos importados e o custo elevado dos
sepultamentos levaram à concentração dos elementos funerários na múmia e seus
envoltórios (máscaras ou retratos funerários, mortalhas, cartonagens1, caixões etc.). No
período greco-romano, a prática da mumificação estendeu-se para o conjunto da
sociedade. A população egípcia é estimada, para esta época, em mais ou menos sete
1
Segundo Walker (2000, p. 163), cartonagem era “um material leve, constituído por camadas de linho e
gesso, usado na manufatura de caixões mumiformes e máscaras funerárias”.

52
milhões de pessoas (Dunand, 1998, p. 99). Observa-se, assim, uma sobrecarga nas
necrópoles, com a reutilização massiva de tumbas antigas.
Em regra geral, os egiptólogos consideram que o sentido e o significado da
concepção funerária permaneceram eminentemente associados à cultura egípcia na época
ptolomaica e romana. Assim, as formas artísticas clássicas, que podem ser vistas na
iconografia das estatuetas, nos retratos pintados e também nas máscaras funerárias,
serviriam a um propósito associado à religião funerária egípcia, que permaneceu em voga
até o estabelecimento do cristianismo. Concordamos com esta visão, no entanto, também
acreditamos que em determinadas localidades, como era o caso de Alexandria e
Hermópolis Magna, por exemplo, houve um emaranhamento material e relacional 2
quando, entre os membros de uma elite local, observa-se uma concepção do Além que
combina elementos de diversas origens, notadamente egípcia, grega e romana. Em cada
localidade do Egito notamos um emaranhamento diferenciado, conforme a presença de
elementos de origem grega e/ou romana e o papel da região na manutenção da religião
egípcia tradicional. O Alto Egito, por exemplo, e a área tebana, da onde deriva o Livro
das Respirações, era um dos lugares onde a tradição faraônica era menos propensa aos
emaranhamentos, embora estes também tenham existido.
Quanto à confecção de textos funerários, ao que parece, não houve nenhuma
influência grega ou romana. Esta literatura, obra de sacerdotes egípcios, sofreu
adaptações aos novos tempos e buscava proporcionar ao morto os elementos
indispensáveis para que ele conseguisse e mantivesse sua nova vida no outro mundo. O
Livro das Respirações está repleto de referências aos cultos tebanos, região da onde
procede. A área de Tebas (atual Luxor), estava dividida pelo Nilo entre a margem
ocidental e oriental. O recinto do deus Âmon e de outras divindades loca is situava-se à
margem leste, enquanto à margem ocidental estava a necrópole, guardada pela deusa
Háthor, a “Senhora do Ocidente”.
A parte residencial de Tebas greco-romana era chamada de Dióspolis Magna
(“Cidade de Zeus”), área que compreende hoje Karnak. A região tebana, com o seu
imenso complexo de culto a Âmon, continuou a representar no Egito ptolomaico e

2
O conceito de emaranhamento que utilizamos é derivado dos estudos de Philipp Stockhammer (2012, p.
50). Para este autor, no processo denominado de “emaranhamento relacional” um objeto estranho a uma
dada cultura pode ser ressignificado, sendo utilizado com uma outra função ou significado diferente daquele
da sua cultura de origem. Já um “emaranhamento material” seria aquele resultado do surgimento de um
terceiro objeto, criado a partir da observação do objeto estrangeiro, mesclado com elementos da cultura
local.

53
romano um importante centro da tradição advinda do período faraônico. É por este motivo
que a Tebaida foi palco de revoltas durante o domínio estrangeiro no Egito. Dois faraós
egípcios governaram a Tebaida por volta de 204 a 186 a.C., quando a dinastia ptolomaica
estava enfraquecida após o assassinato de Ptolomeu IV (Della Monica, 1993, p. 68 -76).
Outra revolta aconteceu sob Ptolomeu IX Sóter II, em 88 a.C.. A última rebelião foi
durante o início do governo romano, em 29 a.C.
Os cultos egípcios continuaram em plena atividade durante os domínios greco-
macedônico e romano com destaque para a tríade tebana, a família divina composta por
Âmon, sua consorte Mut e seu filho Khonsu, e outras divindades locais como Montu, a
quem estava associado o touro Buchis, para o qual existia um santuário importante
chamado Bucheion. Na margem ocidental, o templo de Ramessés III, em Medinet Habu,
tornou-se uma cidade chamada Memnonéia, em grego, e Djeme, em egípcio, então
densamente povoada.
As necrópoles ainda eram utilizadas por particulares na época ptolomaica e
romana. A maior parte dos sepultamentos dava-se em tumbas antigas, do período
faraônico. Por exemplo, a tumba tebana 157, em Dra Abu el-Naga, foi identificada como
sendo aquela de Nabunun, um alto sacerdote de Âmon sob Ramessés II. Ela foi reutilizada
como tumba coletiva durante o período ptolomaico pelos sacerdotes chamados
choachytai3. Outro importante sepultamento era o da tumba da família Sóter, na época
romana.
Cornelios Pollios Sóter foi arconte4 de Tebas sob o reinado de Trajano (98-117
d.C.). Os membros da família Sóter morreram entre 109 e 146 d.C. Sua tumba foi
descoberta em 1820, pelo caçador de tesouros italiano Antonio Lebolo, na presença do
viajante inglês Sir Frederick Hennicker e foi identificada como sendo a tumba tebana nº
32, a qual originalmente pertencia a Djehutimes, administrador chefe do templo de Âmon
e supervisor dos celeiros do Egito, no reinado de Ramessés II. Esta família, cuja extensa
documentação, material e escrita, recebeu o nome de “Soternalia”, constitui uma das
poucas referências que possuímos sobre os proprietários do Livro das Respirações. Filho
de uma egípcia com um romano, Sóter e sua família eram membros típicos da elite egípcia
no período romano.

3
O termo choachytai (“aqueles que fazem libações”) refere-se aos sacerdotes funerários encarregados de
cuidar das múmias após o embalsamamento, de zelar por sua tumba e de depositar para o morto as oferendas
funerárias.
4
No Egito Romano cada metrópole, capital do nomo, possuía um colégio de magistrados, chamados
arcontes, que estavam sob a autoridade do estratego, encarregado do governo civil do nomo.

54
Livro das Respirações

O Livro das Respirações, escrito em papiro, era, geralmente, colocado próximo à


cabeça do morto ou perto dos pés, mas fora das bandagens da múmia. A maior parte
destes textos tem uma fórmula padrão, mas existem trechos originais que foram inseridos
na versão “normal” da composição. Herbin (1999, p. 149) propõe uma nova abordagem
acadêmica para o Livro das Respirações. Segundo ele, a divisão clássica entre “Livro I”,
“Livro II” e “Abreviações” não dá conta da complexidade destes textos, pois eles são
agrupados em categorias formais, como se seguissem uma padronização. Junto às
fórmulas tradicionais existem textos originais que podem ocupar a integralidade dos
manuscritos ou serem justapostos. No geral, os textos dos Livros das Respirações podem
ser associados a rituais e cerimônias próprios de Tebas, região da qual eles procedem.
Provavelmente, a origem do Livro das Respirações está na compilação, no meio
sacerdotal, de um conjunto esparso de fórmulas antigas. O objetivo era não deixar perder
os antigos textos sagrados, adaptados a partir das versões que puderam ser recuperadas.
Alguns trechos do primeiro Livro das Respirações têm relações com inscrições
gravadas na época de Augusto em memória dos touros Buchis, animais sagrados do deus
Montu, de Hermonthis (Goyon, 1972, p. 197). Nestas estelas consagradas ao touro
vinham preces para a sua saúde e sobrevivência, que comportavam fórmulas que
aparecem em alguns destes textos funerários. Uma destas estelas pertence ao nomarca
Kalasiris (Keracher). Goyon (1972, p. 193) acredita que o Livro das Respirações foi um
fenômeno que se limitou ao Alto Egito e, mais particularmente, a Tebas e arredores.
Segundo ele, a frequência de titulares do Livro das Respirações entre os sacerdotes de
Khonsu e a relação deste com Thot poderia indicar que estes textos foram fabricados na
“Casa da Vida” do templo de Khonsu, em Karnak.
Pelos nomes dos proprietários dos papiros deduz-se que a maior parte deles era
composta por indivíduos associados aos templos e cultos de Tebas. Os títulos mais
comuns são de Profeta de Âmon e Pai do Deus, para os homens, e tocadora de sistro, para
as mulheres. O termo profeta era usado no período greco-romano para se referir ao
equivalente a “Servidor do Deus”, em egípcio. Sua função era preparar as oferendas e
realizar os rituais nos templos. Era o único que tinha acesso à imagem divina no santuário
e controlava a entrada do templo. Existiam várias categorias de profetas, conforme o grau
numa escala hierárquica: primeiro, segundo, terceiro etc. Já o sacerdote “Pai do Deus”

55
aspergia água no caminho do deus em procissão. Também trabalhava como artesão no
templo. As mulheres, musicistas e dançarinas, ofereciam serviços ao templo por ocasião
de festivais e determinados rituais. Um nome comum, entre os sacerdotes, é
Amonrasonther, que significa “Âmon-Rê, rei dos deuses”.
O Livro das Respirações, cuja tradução mais exata seria “documento da
Respiração”, serve como uma espécie de carta, uma apresentação do morto às potências
do Além, confirmando as virtudes do seu possuidor. Este é o caso, sobretudo, do primeiro
livro, cujas fórmulas breves são retiradas dos textos que eram gravados nas paredes das
tumbas e nas estelas funerárias. O “Livro de Ísis” é composto por quinze parágrafos, cujo
objetivo é perpetuar a existência do morto no Além. Já o segundo Livro das Respirações,
o “Livro de Thot”, baseia-se, sobretudo, no Livro dos Mortos (Goyon, 1972, p. 201).
Dividido em seis partes ele começa com a referência ao caixão e ao material de que é
feito e termina com a deusa Nut, como a mãe do morto que irá recebê-lo (ela sendo o
próprio caixão) e gerá-lo para uma nova vida. As fórmulas intermediárias procuram
resguardar, preservar a integridade física do morto e fazer com que ele retome a posse de
suas faculdades.
As fórmulas funerárias que compõem o Livro das Respirações podem apresentar
variações, conforme o papiro. Mas em todas o morto está convencionalmente associado
a Osíris, sendo que o seu nome deveria ser escrito após o nome do deus, onde está o N na
fórmula - Osíris N. Na concepção funerária egípcia os elementos que compõem o
indivíduo, que se separaram após a morte, precisam continuar conectados, a fim de que a
vida possa prosseguir no Além. Os elementos mais recorrentes são o ba e o ka,
respectivamente o elemento que se desloca, por isso, comumente traduzido por “espírito
móvel” ou “alma” e o elemento imóvel, que representa a energia vital. Os elementos
corporais, difíceis de discernir, também estão presentes como o cadáver (khat), a própria
múmia e o corpo (djet). Além destes, temos o akh (espírito glorificado), o coração, a
sombra e o nome (ren).
Para Assmann (2001, p. 143-144), os egípcios concebiam uma linha de
demarcação entre a alma e o corpo, que se estendia também para a esfera social e física.
Enquanto o corpo, os membros, o cadáver, o ba e a sombra faziam parte do meio físico,
o ka, o nome e a múmia compunham o meio social. A múmia seria o corpo preparado,
portanto, imbuído de atributos de poder, que propiciava ao morto impor respeito no
mundo subterrâneo. E o coração seria o ponto de intersecção entre ambas as esferas,
determinando a unidade do indivíduo.

56
O ba é representado na forma de um pássaro com cabeça humana e, às vezes,
braços. Provavelmente, por ser o elemento que se desloca foi associado a uma ave, um
falcão na iconografia e uma garça real na escrita hieroglífica (Assmann, 2001, p. 144). É
o ba que está presente na cena do julgamento (capítulo 125 do Livro dos Mortos), quando
o morto deve pronunciar a “Confissão Negativa”, dizer a cada um dos quarenta e dois
deuses do Egito que não cometeu faltas quando vivo. Por meio do ba o indivíduo se
desloca, pode viajar na barca de Rê (o deus-sol) e chegar aos campos do Além, os Campos
de Iaru (Campos de Juncos) e os Campos de Hotep (Campos de Oferendas também
traduzido por Campos da Felicidade), que eram uma espécie de reprodução do Egito no
Outro Mundo.
Ao contrário do ba, o ka estaria associado à esfera social, à duração da vida terrena
e, assim como o coração, tinha a função de proteger o indivíduo. A estátua ka ficava na
capela funerária. Como imagem do morto, incorporava a sua energia vital por meio da
qual ele recebia os alimentos e demais oferendas. A capela era a parte social da tumba
situada na superestrutura, ao passo que o corpo ficava na parte subterrânea conectada ao
Mundo Inferior (a Duat). O coração (ib) representava simbolicamente a moral do
indivíduo, a sua consciência e memória, sendo pesado na balança na Sala do Julgamento,
por ocasião da “Confissão Negativa”. Se o morto mentisse, o coração pesaria mais que a
pluma (símbolo da ordem e da justiça, personificação da deusa Maat) e ao indivíduo seria
destinada a verdadeira morte, pois ele seria devorado pelo monstro chamado Amit. Assim
como o ka e o coração, o nome também estava relacionado à esfera social e à memória,
pois o esquecimento do nome estava associado à morte. Além disso, a escrita tinha um
valor mágico, assim como a fala. Escrever o nome de alguém ou pronunciá-lo era uma
forma de fazer o morto lembrar-se de quem ele era e, de certa forma, voltar à vida.
O primeiro livro inicia-se da seguinte forma:

Início do documento da respiração que Ísis fez para o seu irmão Osíris, a fim
de vivificar o seu ba, de vivificar o seu cadáver, de reunir cada um de seus
membros uma segunda vez; para que ele possa se unir no horizonte ao mesmo
tempo que seu pai Rê; a fim de fazer subir o seu ba ao céu tanto quanto o disco
da Lua; a fim de fazer brilhar o seu cadáver tanto quanto Órion no ventre de
Nut; e que advenha o mesmo para Osíris N. (Goyon, 1972, p. 216-217)

No trecho selecionado dois elementos estão em destaque: o ba e o cadáver (khat).


O mito de Osíris conta como os seus membros esquartejados foram reunidos por Ísis,
dando origem à primeira múmia, protótipo de todas as outras. Por meio da mumificação,
o ba poderá subir aos céus e se unir a Rê. O cadáver, associado a Osíris, volta para o

57
ventre da mãe, a deusa Nut, simbolizado pelos sarcófago que, ao mesmo tempo, é o céu
que recebe o morto associado a Osíris na forma da constelação de Órion.
O receio de perder o coração aparece no segundo livro, o “Livro de Thot” e
apresenta semelhanças com o capítulo 27 do Livro dos Mortos5, como observa-se no
trecho de um filactério6:

Oh, meu coração, eu sou teu mestre! Tu jamais poderás ser-me roubado,
segundo o decreto do grande Tatenen7. Obedece-me tu, meu coração! Tanto é
que tu estarás no meu corpo, tu não te revoltarás contra mim, pois sou aquele
diante de quem o decreto foi promulgado no Castelo do Ka de Ptah8, (decreto)
que te intima a me obedecer no mundo dos mortos (Goyon, 1972, p. 254-255)

Outro elemento importante que compunha o indivíduo era o nome (ren). Para
Goyon (1972, p. 267-270), a grande preocupação com a preservação do nome, recorrente
no Livro das Respirações, deriva do fato de no período ptolomaico e romano não haver
garantias ao morto de que o seu nome fosse recitado e que ele fosse lembrado, seja pela
família seja pelo grupo de sacerdotes responsável por cuidar da necrópole. A solução era
atuar por meio da magia associando o nome do indivíduo àquele de grandes divindades
que, a princípio, sempre seria repetido nos rituais e cultos dos templos.
A litania para a “Conservação do nome”, presente no livro segundo, parece
remontar aos Textos das Pirâmides. No caso do Livro das Respirações é o nome do morto
que deve durar em virtude da potência do verbo. Na concepção religiosa egípcia o nome
exprime a essência mesma de um ser e de um objeto. Ele confere existência a esta
essência: “nomear as coisas equivale a criá-las” (Idem, 204). Pronunciar o nome próprio
de um indivíduo é fazer viver em uma criação permanente, desde que haja uma intenção
favorável. Com má intenção a pessoa pode ser reduzida ao estado de não-existência. Seria
uma segunda morte. A litania é para salvaguardar o morto deste perigo. Ela repetirá o
nome do morto para que ele dure eternamente. Para reforçar esta possibilidade se fará do
morto um deus, lhe dando o nome da divindade:

Que meu nome seja perdurável para sempre em Tebas e nos nomos como é
perdurável o nome de Shu, na Menset9 do alto em Heliópolis, Tefnut, na
5
Chamado “Fórmula para impedir que se roube a N o coração no Mundo dos Mortos” (Barguet, 1967, p.
72-73).
6
Era comum que trechos do segundo livro fossem escritos em filactérios. Segundo Goyon (1972, p. 243),
um papiro deveria ser depositado junto à cabeça do morto e, outro, junto aos pés. Como era dispendioso
obter os papiros com os textos funerários, pelo menos um deles estava em forma reduzida que, no entanto,
preservava o seu valor mágico.
7
Ptah na sua forma de deus demiurgo.
8
Templo de Ptah em Mênfis.
9
Menset do alto e de baixo eram os santuários gêmeos de Shu e Tefnut, em Heliópolis.

58
Menset de baixo em Heliópolis, Geb no Lugar dos estrangeiros10, Nut no
Castelo de seu Ka, Osíris senhor dos Ocidentais, senhor de Abidos, Ísis na Ta-
Ur11, Hórus em Pê12, Uadjet em Dep, Néftis em Heliópolis (Goyon, 1972, p.
272)

A denominação de “Livro das Respirações” deriva, em grande parte, de um


aspecto essencial destes textos, que é a questão da respiração, elemento fundamental para
se viver. Desde os Textos das Pirâmides são escritas fórmulas para conjurar o calor muito
violento e os riscos de asfixia post mortem (Goyon, 1972, p. 206). Várias destas
composições protetoras foram introduzidas nos Textos dos Sarcófagos e no Livro dos
Mortos. No Livro das Respirações há referências frequentes à respiração, às brisas e à
frescura do vento. A faculdade de respirar seria devolvida ao morto por meio do ritual de
Abertura da boca e dos órgãos respiratórios. A partir deste momento, as faculdades
humanas são restabelecidas: a capacidade de beber, de se alimentar e de respirar.
A divindade principal destes textos, associada à respiração, é Âmon, o qual já
aparece como deus tebano, pelo menos, desde a 11ª Dinastia (2134-2040 a.C.), durante o
Primeiro Período Intermediário. Âmon teria sobrepujado o antigo deus da região, Montu
e estava associado a duas outras divindades, com a qual formava uma tríade, sua esposa,
Mut e seu filho, Khonsu. Durante o Médio e o Novo Império Âmon foi elevado à
categoria de deus nacional, ocupando uma posição proeminente no panteão egípcio. O
deus, associado ao ar, estava diretamente relacionado ao mito da criação hermopolitano,
do qual fazia parte. Na cosmogonia de Hermópolis o mundo teria sido criado a partir de
quatro casais primordiais, que representam os elementos do meio aquoso, o elemento
masculino representado pelas rãs e, o feminino, pelas serpentes. Os seres da primeira
criação eram: Nun e Nunet, Heh e Hehet, Kek e Keket e Âmon e Amonet. Os elementos
primordiais, em número de oito, comportam o que chamamos de Ogdoada.
Na área tebana Âmon aparece como o demiurgo, o principal deus criador, “aquele
que fez a si mesmo” (Hart, 1997, p. 22-25). O significado da palavra “Âmon”, o
“invisível” ou o “oculto” e seu epíteto “o misterioso de forma” refere-se ao seu poder
sobre os ventos e a sua relação com fenômenos naturais como as tempestades e está
associado também ao seu aspecto transcendente de deus demiurgo. O dom da respiração
proporcionado pelo deus, o sopro da vida, que aparece no Livro das Respirações se
relaciona com este seu aspecto primordial. A mesma fórmula que aparece nas inscrições

10
Bairro de Heliópolis.
11
“A Grande Terra”, nome do VIII nomo do Alto Egito.
12
Pê e Dep eram localidades que formavam Buto, cidade da deusa serpente do Baixo Egito, Uadjet.

59
dos templos foi usada nos textos funerários. Âmon é aquele que dá o sopro, o ar, em suma,
a vida por meio da faculdade da respiração (Goyon, 1972, p. 210).
No primeiro Livro das Respirações podemos observar a função de Âmon
associada à respiração:

Âmon vem a ti, portador do sopro de vida, ele faz com que tu possas respirar
no teu sarcófago. Tu podes sair sobre terra a cada dia, pois o documento da
respiração de Thot é tua salvaguarda e tu respiras cada dia graças a ele tanto é
que teu olho vê os raios do Disco13 (Goyon, 1972, p. 220)

No segundo Livro das Respirações Âmon aparece com a mesma função em uma
fórmula provavelmente derivada do capítulo 42 do Livro dos Mortos:

Oh, Âmon, dê uma doce brisa ao meu nariz, pois, na verdade, sou teu ba
venerável! Sou este ovo do Grande Grasnador e guardo este grande ovo que
Geb separou da terra14: se vivo ele vive e vice-versa, se ele envelhece eu
envelheço e vice-versa, se respiro ele respira e vice-versa! “O Puro” é meu
nome. Guardai-vos de mim, Guardiões que estão na Duat. Sou aquele que está
em seu ninho enquanto íbis venerável, “Thot” é meu nome! Oh, Âmon, dê
uma doce brisa ao meu nariz, pois sou o ba venerável derivado de ti! Possa eu
viver! Possa eu respirar o teu ar! Sou a íbis venerável no seu ninho; sou um
possuidor do privilégio pela graça de Rê! (Goyon, 1972, p. 259)

Um último elemento presente no Livro das Respirações que destacamos é o que


se refere ao componente ético associado à “Confissão Negativa”. O Livro das
Respirações, utilizado como texto funerário, assim como os outros documentos
arqueológicos encontrados em enterramentos do período romano, apontam para a
adaptação das crenças tradicionais egípcias às novas condições sociais e econômicas do
país. A iconografia religiosa presente no mobiliário funerário (máscaras, caixões,
envoltórios etc.) continua a se inspirar naquela do período faraônico, ainda que tenham
ocorrido modificações no padrão estético. A crença no poder da magia subsiste nas
formas religiosas dos textos religiosos (como a preservação do nome e a preocupação em
não passar fome no Além) como também no tratamento do corpo pela mumificação e na
utilização dos elementos iconográficos tradicionais no material funerário do morto. A
presença do Livro das Respirações, que traz inclusas partes do Livro dos Mortos como a
“Confissão Negativa” (capítulo 125), mostra que o sentido ético tradicional ainda se
encontra presente, como é o caso dos trechos abaixo citados do capítulo XIII do Livro I:

13
O disco do Sol.
Na cosmogonia hermopolitana a terra surgiu de um ovo colocado por uma ave chamada de “O Grande
14

Grasnador”, aqui associado ao deus Thot, na sua forma de íbis.

60
Oh, Aquele cujo olho é de chama, originário de Letópolis 15, Osíris N não
roubou os bens do deus grande. [...]
Oh, Uamenty, originário do Lugar da execução, Osíris N não fornicou com
uma mulher casada 16 [...]
Oh, Nefertum, originário do castelo do ka de Ptah17, Osíris N não blasfemou
contra o deus (Goyon, 1972, p. 224-226)

O morto, associado Osíris, é chamado pelo nome do deus seguido do seu (no texto
o nome do morto viria onde está a sigla N). Além deste capítulo baseado no Livro dos
Mortos no qual o morto deve dizer, perante a assembleia dos quarenta e dois deuses
presidida por Osíris, que não cometeu determinados crimes, outras partes do texto
também fazem referência à sua entrada na Sala do Julgamento (também chamada de Sa la
das Duas Maat, no caso as deusas Ísis e Néftis). Por exemplo, no Livro I ou “Livro de
Ísis”, encontramos a seguinte parte a respeito da pureza do morto, por não ter cometido
nenhuma falta ou crime quando vivo:

Oh Osíris N, tu és puro!
A víscera de teu coração é pura, teus membros anteriores são puros, teus
membros posteriores estão em estado de pureza, teu torso foi purificado pelo
natrão-bed e hesmen! Não há em ti membro em estado de pecado. Osíris N se
lavou nesta fonte do Campo da Felicidade que está ao Norte do Campo dos
Gafanhotos! Uadjet e Nekhbet te purificaram à oitava hora da noite e à oitava
hora do dia: vem portanto Osíris N, tu entrarás na Sala das Duas Maat, pois tu
és puro de toda falta e de todo crime! (Goyon, 1972, p. 217)

Conclusão

O Livro das Respirações (Livro I ou “Livro de Ísis” e o Livro II ou “Livro de


Thot”) faz parte de uma longa tradição literária egípcia cuja antiguidade remonta aos
Textos das Pirâmides. A literatura religiosa, para uso do morto, destinava a propiciar as
condições necessárias para que ele obtivesse a vida após a morte e conseguisse manter -
se, sem maiores percalços, no Além. Era preciso comer e beber, respirar e ter suas
faculdades físicas funcionando normalmente, ser capaz de circular livremente; enfim, ter
todas as prerrogativas que um homem necessita para viver bem. Ambos os livros
buscavam recuperar antigas fórmulas mágicas e religiosas adaptando-as às novas

15
“Aquele cujo olho é de chama” ou “aquele cujos olhos são de sílex” (Barguet, 2003, p. 160) - uma forma
de Hórus, da cidade de Letópolis (em egípcio, Khem), atual Ausim, no Delta.
16
Uamenty: divindade serpente, “aquele que queima”; lugar da execução: lugar do julgamento. A tradução
também poderia ser: “não teve comércio com uma mulher casada” (Barguet, 2003, p. 161).
17
Castelo do ka de Ptah era a cidade de Mênfis.

61
condições de vida, fato que demonstra a versatilidade e a grande capacidade de
sobrevivência do sistema religioso egípcio.
O deus principal deste texto funerário era Âmon, o deus criador responsável pela
potência do vento e das tempestades, aquele que dá o “sopro da vida”. Nesta literatura
funerária Âmon está associado a Osíris e Rê. O conceito egípcio de vida após a morte,
onde ambos os lados estão presentes, o ctônio e o solar, passa a englobar também Âmon,
em dupla associação com Osíris e Rê. Osíris é o Senhor do mundo dos mortos e deus da
fertilidade, em cujo tribunal o morto deve ser julgado para obter a vida definitiva e tornar-
se um “justificado”; Rê, o aspecto solar e celeste, vai propiciar ao morto a sua
“glorificação” pelos raios do sol e a possibilidade de viajar na barca solar rumo aos
Campos de Juncos e aos Campos de Oferendas.
Uma das fórmulas mais importantes do Livro das Respirações era a litania para a
“Conservação do Nome”, uma preocupação dos egípcios que se acentua no período greco-
romano. O nome era um dos componentes da personalidade essenciais para a manutenção
da vida no outro mundo. Associando o nome do indivíduo com aquele de diversas
divindades buscava-se salvaguardar o morto de possíveis calamidades. Pois, na medida
em que os nomes das divindades eram pronunciados nos rituais diários dos templos e os
deuses recebiam oferendas de comida e bebida, o morto, estando a eles associado,
também se beneficiaria magicamente. Inserções de trechos do Livro dos Mortos também
eram comuns, como o capítulo 27 referente ao coração e o capítulo 125 sobre a
“Confissão Negativa”.
Assim como o Livro das Respirações o material funerário da família Sóter
demonstra a continuidade, ainda que adaptada, da tradição egípcia que remonta ao
período faraônico. Em constante sintonização com o texto funerário, a crença no poder
da magia permaneceu a mesma. As fórmulas funerárias e as imagens representadas no
mobiliário do morto cumprem a função de proteger e proporcionar ao mesmo os
elementos essenciais à sua vida no Além. A presença de partes do Livro dos Mortos, como
a “Confissão Negativa”, demonstra que religião e ética ainda caminhavam juntas no Egito
Romano, pois se acreditava que o procedimento adotado em vida influenciaria o resultado
do julgamento no Mundo dos Mortos.

Bibliografia

62
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63
2

A Religião Funerária Egípcia Antigo: dos textos aos destinos post mortem
solar e osiríaco

Cintia Alfieri Gama-Rolland

Introdução

Dentre as civilizações da antiguidade, a egípcia é uma das que mais oferece


testemunhos e chama a atenção por seus vestígios arqueológicos e textuais de caráter
funerário. A religião funerária desse povo, se levarmos em conta apenas as fontes
materiais, pode ser observada tanto por construções monumentais em rocha, como por
meio de tumbas escavadas, complexos funerários ou mesmo por objetos das mais diversas
formas e finalidades, tais como, sarcófagos, caixões, vasos canopos ou estatuetas
funerárias.
Além dos documentos já mencionados, tem-se um grande número de fontes
escritas referentes ao contexto funerário egípcio que dizem respeito tanto a cosmogonias
quanto a confecção de amuletos, encantamentos e guias para a vida após a morte.
Tendo em vista a amplitude da religião egípcia como um todo, pretendemos
fornecer uma breve visão acerca da religião funerária egípcia antiga a partir das fontes
textuais. Logicamente, não se objetiva fazer aqui uma extensa análise de todo esse
universo religioso que, por si só exigiria um volume próprio. Com isso, desejamos
apresentar os três principais corpus de textos funerários para depois analisarmos os
destinos post mortem.

64
Os Textos Funerários

A religião funerária dos egípcios antigos apresenta, de acordo com a época,


diferentes maneiras de representar o pós-morte. Diversas correntes, essencialmente
ligadas às doutrinas heliopolitana e osiríaca, coabitaram se sobrepuseram e foram sendo
adaptadas com o tempo.
Para compreendermos esse Além egípcio, faremos um recorte dos textos egípcios
que tratam do tema e apresentaremos os três textos de base, isto é, os Textos das
Pirâmides, os Textos dos Caixões e o Livro dos Mortos ou Livro para sair à luz do dia.
Não trabalharemos com textos derivados desses, tais como o Livro do Am-duat, Livro das
Cavernas, Livro dos Portões 1, Livro da Vaca Celeste e Livro das Respirações, por serem
livros complexos que aparecem, sobretudo em enterramentos faraônicos, não sendo tão
difundidos2.
No Antigo Império, os Textos das Pirâmides, encontrados nas pirâmides de Unas,
Teti, Pepi I, Merenrê, Pepi II e das rainhas Neith, Iput, Udjbeten e Ankhesenpepi
(Dunand; Zivie-Coche, 2006, p. 253 e Hornung, 2007, p. 13), preocupam-se
essencialmente com o destino real. A quantidade de fórmulas desse conjunto de textos é
muito variável, Sethe, na sua publicação, distingue 714 fórmulas enquanto que Faulkner
chega ao número de 759 (Hornung, 2007, p. 16). O destino post mortem que prevalece é
o de caráter celeste, afirma-se que o soberano morto, por diversos meios de ordem ritual
ou mágica ganha o céu; seja voando, seja subindo uma escada ou ainda saltando como
um gafanhoto. Como akh, ou espírito glorificado, ele se une às estrelas circumpolares ou
ainda pode tomar um lugar na barca de Rê e acompanhá-lo em sua jornada diurna e
noturna.
De uma maneira geral, os encantamentos dos Textos das Pirâmides tratam
sobretudo da subida do rei morto ao céu e sua recepção pelos deuses (Hornung, 2007, p.
17). Essa ascensão estaria ligada à doutrina heliopolitana e em teoria contradiria o
domínio de Osíris, encontrado sob a terra, que ainda não é predominante no Além. No
encantamento 251a , dos Textos das Pirâmides, essa ideia de separação está clara, pelas

1
As composições do Novo Império, de caráter real, tratam do tema da descida de Rê ao domínio inferior
de Osíris, seu encontro e união com Osíris. O Livro do Am-duat e o Livro dos Portões mostram a viagem
da barca com Rê criocéfalo, o Livro das Cavernas mostra Rê, novamente criocéfalo, visitando a pé
diferentes lugares no Além, que ao invés de estar caracterizado por 12 horas ou 12 portas é representado
por 6 cavernas.
2
Por mais que os Textos das Pirâmides também só apareçam nas tumbas de faraós ou pessoas associadas
a eles, como as rainhas, esse conjunto textual teria sido a base para os textos funerários subsequentes.

65
palavras ditas por Nut : “você abrirá o teu lugar no céu entre as estrelas, você não é uma
estrela ? [...] e do alto, você olhará Osíris comandando os espíritos. Você está longe dele,
você não está entre eles e você não estará entre eles”. Esse texto denota uma negação da
morte e da presença do soberano no reino dos mortos de Osíris (Morenz, 1962, p. 264),
representada pela afirmação de uma vida celestial longe da inércia característica do
Mundo Inferior, isto é, o destino osiríaco ainda não tem seu posto de desejável. Por mais
que sejam feitas referências ao Mundo Inferior, sugerindo que o Além seria subterrâneo,
o destino do rei, na ascensão após a morte, tendia mais para um Além solar e celestial,
não sendo nada mais do que um retorno do rei a sua origem (Davies, 1977, p. 166).
Nesse momento, a topografia do Além ainda está mal definida, mas é revelado,
dentre outros lugares importantes, os paradisíacos Campos de Juncos e de Oferendas,
sendo que o céu seria cortado por rios sobre os quais os deuses e mortos circulariam em
barcas (Hornung, 2007, p. 18) denotando o início da associação do mundo dos mortos
com o Egito dos vivos.
Seguindo essa linha de aproximação do mundo dos vivos com o dos mortos, nos
Textos das Pirâmides são encontradas fórmulas mágicas associadas à vida terrena, como
fórmulas contra serpentes e escorpiões, que estão num mesmo contexto em que as
fórmulas para que o morto seja integrado nas revoluções cíclicas do cosmos para triunfar
contra a morte.
Tendo como função essencial garantir a felicidade do rei no Além, toda uma
articulação de fórmulas negando a morte é empregada, o que é verificado pelo não
emprego das palavras morte ou morrer, com uma clara afirmação de que o morto vive.
(Breasted, 1970, p. 91).
É interessante observar também que, nos Textos das Pirâmides, o universo
osiríaco é visto como negativo, como o mundo dos mortos, enquanto que a luz e a vida
estariam em companhia de Rê. A dependência da luz do sol está expressa em quase todos
os textos funerários, por essa razão o morto desejava deixar a sua tumba de dia, momento
em que o sol ilumina a Terra, passando por diversas transformações, para voltar à noite e
entrar no reino de Osíris, o mundo subterrâneo iluminado pelo sol. Com isso, o morto, ao
contrário dos vivos podia dispor de 24 horas de luz solar, agindo em todos os domínios:
inferior, terrestre e celestial.
Com isso, pode-se afirmar que a ideia central dos Textos das Pirâmides era
garantir o Além real, por meio de uma negação da morte enquanto inércia e falta de vida,
afirmando a todo o momento que o rei estaria vivo e chegaria vivo ao céu, de onde ele

66
teria vindo. Assim, nesse primeiro corpus de literatura funerária, há um destino associado
ao céu, às estrelas e ao sol, do qual o mundo subterrâneo começa a fazer parte como
coadjuvante, com Osíris agindo na restauração do corpo e da força física.
O fim do Antigo Império causa uma alteração social e religiosa que vai afetar a
organização do culto funerário – extinção das instituições estatais que mantinham os
sepultamentos ou da doação do rei para o culto do morto – e as ideias sobre o Além, pois
não só as prerrogativas terrenas dos reis passam para elite3, mas também o destino pós-
morte, isto é, ascender ao céu e viver com Rê (Schneider, 1977, p. 32).
Com o advento do Médio Império e os Textos dos Caixões, percebe-se uma união
maior entre as crenças solares e osiríacas que agora aparecem mais próximas do que antes.
Além disso, é nesse conjunto de textos que se vê a entrada de Rê no domínio subterrâneo
e a ascensão de Osíris como senhor do Mundo Inferior, dAt. Mesmo com diferenças, o
Texto das Pirâmides e o Texto dos Caixões, parecem pertencer a uma mesma tradição, e
a um universo que, sem ter ignorado Osíris, ainda não se tornou osiríaco, como acontecerá
com os textos posteriores (Jacq, 1986, p. 17).
De uma maneira simplista e esquemática, pode-se dizer que, nos Textos das
Pirâmides, é Osíris quem entra no domínio solar e que, nos Textos dos Caixões e no Livro
dos Mortos, é Rê quem visita o mundo subterrâneo de Osíris (Breasted, 1970, p. 276-
277), o que será observado nos textos do Mundo Subterrâneo do Novo Império.
Nos Textos dos Caixões, o morto se identifica com ambos os deuses, sobretudo
nos encantamentos de número: 1068 - identificação com Rê e passagem deste pelo Duat
(Carriee, 2004, p. 2234-2235) ; 1099 - o morto na barca com o sol e “justificado” pelo
tribunal de Osíris (Idem, 2004, p. 2272-2279), 1131 e 577 - identificação com Osíris e
sua vida no Além (Idem, 2004, p. 1356-1357 e 2318-2321). A balança de poder entre os
dois deuses eventualmente acaba com a associação de ambos, sendo que esses podem ser
vistos como um único deus: o corpo é Osíris e a alma é Rê.
O essencial do conteúdo dos encantamentos das Pirâmides é retomado, em
particular as bases materiais de existência no Além, juntamente com a proteção contra os
perigos e os seres hostis e a integração ao ciclo solar, ao que se acrescentam as fórmulas
de transformação (encantamentos 268-295). Um tema novo é a reunião esperada com os

3
A usurpação do poder do rei pela elite nomarcal, resultando no que seria um Egito feudal, por mais que
seja aceita por grande parte dos egiptólogos, é criticada por Harco Willems, que mostra que os nomarcas,
se é que já recebiam esse título no Antigo Império, são, na verdade, os vestígios do poder real e não uma
tomada de poder pela elite (2008, p. 36-59)

67
parentes e os encontros do morto com sua própria família no Além (Hornung, 2007, p.
30-31), o que pode ser verificado nas fórmulas 131 a 146.
No Médio Império, cada vez mais se fortalece a ideia de um reino dos mortos, que
se encontra sob a terra, onde Osíris é soberano, o qual é chamado, assim como a
necrópole, de Amentet, Ocidente, ou também Duat, câmara oculta. Esse pós-vida osiríaco
que começa a se manifestar nesse período ainda não apresenta a hegemonia da qual
desfruta mais tarde (Dunand; Zivie-Coche, 2006, p. 256). O maior espaço ocupado por
Osíris na teologia funerária pode ser observado inclusive nas fontes materiais que surgem
nesse período, pois é no Médio Império que temos pela primeira vez figuras mumiformes
como substitutos do morto4.
Por fim, cabe dizer que, para Willems (2008, p. 193-203), o mundo dos mortos
descrito nos Textos dos Caixões não apresenta apenas um caráter mitológico associado
aos deuses, como sempre se pensou, mas sim um profundo vínculo com a vida terrena,
pois o Além seria uma cópia ritualizada do que ocorria no mundo dos vivos, uma projeção
do meio social terrestre : os mortos trabalham em campos, ficam com suas famílias e
amigos, brigam e devem resolver problemas diante de tribunais.
No Novo Império, aparece mais um corpus funerário conhecido como Livro dos
Mortos ou Livro para Sair à Luz do Dia; nome que designa um conjunto de fórmulas
geralmente escritas em papiro5, datadas do Novo Império, Terceiro Período Intermediário
e Baixa Época; as quais seguem o mesmo modelo dos Textos dos Caixões, com
encantamentos para auxiliar o morto. Como os dois corpus anteriores, o Livro dos Mortos
serve, em primeiro lugar, para garantir a segurança do morto, como uma ajuda prática,
um guia mágico para o Além (Hornung, 2007, p. 47).
Esse livro funerário, ao invés de ser escrito em caixões ou nas paredes das
pirâmides, passa a ter como suporte os rolos de papiros que são colocados entre as pernas
dos mortos, entre as bandagens ou ainda dentro de estatuetas de madeira com a
representação de Osíris ou do deus Sokar (Dunand, Zivie-Coche, 2006, p. 258). Assim,
esse tipo de texto antes estritamente direcionado para os reis, nas pirâmides, acaba sendo
acessível a um grupo da população que não pertenceria strictu sensu à elite da sociedade.

4
Tendo em vista que o deus Osíris é representado de maneira mumiforme, acredita-se que arepresentações
desse tipo estão correlacionadas com essa divindade.
5
Capítulos ou fórmulas do Livro dos Mortos podem ser encontrados em objetos tais como shabtis e
escaravelhos.

68
No Livro para Sair à Luz do Dia há textos divididos em rubricas, o que denota
que os redatores tentaram organizar as ideias funerárias utilizadas nos livros funerários
anteriores. Um dos conceitos que aparece com mais ênfase, nesse conjunto de textos, é o
direito do morto de ir e vir livremente, circular sem entraves, entrar e sair da sua tumba,
sendo que, após ter êxito na pesagem do coração diante do tribunal e ter declarado sua
inocência na “confissão negativa”, o morto pode viver no Ocidente junto com Osíris, o
soberano do Além, sendo inclusive especificado, no Capítulo 110, que a vida nos campos
seria como a vida terrena, onde se pode comer, beber e fazer uso das capacidades sexuais.
De acordo com o Livro dos Mortos, além de um pós-vida no Ocidente, o morto também
faz parte da viagem cotidiana da barca solar, participando do renascimento triunfal de
Rê em cada manhã, tornando-se um “glorificado”, akh. Com isso, percebe-se que a
doutrina solar não é abandonada, assim como a celestial, mas que Rê e Osíris, ambos
senhores da mâat longe de serem incompatíveis, são dois aspectos de uma mesma
entidade divina (Assman, 2000, p. 25-26). Percebe-se, aí, o desejo egípcio de não
abandonar ideias, mas sim uni-las por meio de conceitos teológicos.
Essa unificação pode ser observada, por exemplo, no Livro para Sair à Luz do
Dia, mais precisamente o Capítulo 180, que tem por título: “Fórmula para sair à luz do
dia, adorar Rê no Ocidente, louvar os habitantes da Duat, abrir os caminhos ao bem -
aventurado perfeito, que está no mundo dos mortos, dar o caminhar e a liberdade dos
movimentos, entrar e sair do mundo dos mortos, fazer as transformações como uma alma
viva” (Barguet, 1967, p. 264), em que se observa a união de conceitos tanto referentes a
um destino osiríaco como solar, aliando um mundo subterrâneo e Ocidental à luz solar e
à retomada das capacidades físicas.
Pode-se observar ainda, no início desse mesmo Capítulo 180, “Ó Rê que repousa
em Osíris em todas as suas gloriosas aparições)” (Barguet, 1967, p. 264), em que se tem
a união de Osíris em Rê ou Rê em Osíris6.
O Livro dos Mortos, contrariamente aos Textos das Pirâmides, apresenta um
caráter mais “popular”, constituído por fórmulas mágicas dirigidas ao morto. Outro
conceito importante que se desenvolve é o de julgamento do morto, fazendo com que
todos os justos que tenham vivido de acordo com a mâat possam desfrutar de uma vida
após a morte associada a Osíris (Erman, 1937, p. 261-262).

6
Deve-se salientar que é nesse momento, sobretudo no final da XVIII dinastia e nas tumbas ramessidas,
que se encontra as Litanias de Rê, texto em que se descrevem as 75 formas ou aparições do sol e a união
entre Rê e Osíris.

69
Na tumba de Nakht, da XVIII dinastia, temos exemplos de como o morto
imaginava uma bela vida no Além:

Glória no céu, força sobre a terra e justificação no Mundo Inferior. Entrar na


minha tumba e de lá sair; que eu beba cada dia do meu lago; que meus
membros cresçam; que o Nilo me dê alimentos e comidas e todas as plantas
frescas na sua estação; que eu passeie em torno do meu lago, todo o dia, sem
parar; que minha alma volteje sobre os ramos das árvores que eu plantei; que
eu me refresque sob meus sicômoros, que eu coma as frutas que eles dão; que
eu tenha uma boca com a qual eu fale, como os servidores de Hórus; que eu
suba ao céu e que eu desça sobre a terra, sem que me seja imposto nenhum
obstáculo; que ninguém aprisione o meu ka; que ninguém aprisione meu ba;
que eu esteja junto àqueles que são louvados dentre os veneráveis; que eu
trabalhe a minha terra nos campos de Iaru; que eu chegue aos campos de
alimentos; que venham a mim cântaros e pães, com todos os alimentos do
senhor da eternidade; que eu receba meu alimento da carne que está sob a
mesa do grande deus (Erman, 1937, p. 267-268).

Paheri, príncipe de El-Kab, desejava algo semelhante a Nakht:

Tu vives novamente, tua alma não se separa do teu corpo. Tua alma é divina
dentre os “glorificados” e as almas perfeitas falam de ti. Tu estás com eles e
recebes o que te é dado na terra: tu possuis água, ar e tens em abundância o
que desejas. Teus olhos te são dados para ver, tuas orelhas te são dadas para
ouvir o que dizem. Tua boca fala, tuas pernas andam e tuas mãos e braços se
movem. [...] Tu sobes e desces sem que te parem, tu não és expulso do Duat
[...] Tu entras na sala das duas verdades e o deus te saúda. Tu te satisfazes ao
trabalhar na tua porção dos campos de Iaru, o que tu necessitas nasce de teu
trabalho [...] Cada manhã tu sais e cada noite tu voltas [...] Tu contemplas Rê
no horizonte do céu, tu vês Amon quando ele se levanta [...] (Erman, 1937, p.
268-269).

Assim, com esses dois exemplos e os encantamentos do Livro dos Mortos,


podemos perceber que, nesse estágio da história egípcia, o objetivo do morto seria ao
mesmo tempo ocupar os três espaços que constituíam o mundo egípcio, isto é, a terra, o
céu e o Mundo Inferior ; viver no Além, como vivia-se em vida, mas ao mesmo tempo
entrando e sendo aceito no domínio inferior osiríaco e celeste do deus Rê. Tentando
aproveitar ao máximo da luz solar em todos os mundos, sendo aceito pelos outros mortos
e mantendo todas as capacidades que possuía em vida, sem deixar de navegar na barca
solar.
Enquanto se vê uma tendência nas tumbas de particulares em representar a vida
terrena com inserções de capítulos do Livro dos Mortos em suas paredes, nas tumbas reais
pode-se perceber um outro gênero litúrgico que tem sua origem no Livro dos Dois
Caminhos, do Médio Império: as cosmografias. Esse tipo de texto descreve

70
minuciosamente a viagem noturna de Rê durante as 12 horas da noite por regiões
atravessadas por um rio subterrâneo no qual navega a barca solar (Dunand, Zivie-Coche,
2006, p. 260).
Assim, pode-se perceber que os egípcios, por meio de todos os seus textos
funerários, partindo dos Textos das Pirâmides até seus livros mais recentes como o Livro
das Respirações, não sustentaram necessariamente apenas uma visão do Outro Mundo,
mas devido a uma tendência de não abandonar conteitos mais antigos, eles foram capazes
de manter duas ou mais noções conflitantes ao mesmo tempo, tornando-as perfeitamente
compatíveis, devido ao grande esforço dos sacerdotes (Spencer, 1991, p. 139).
Desse modo, nos Textos das Pirâmides o destino real é tanto solar como estelar 7,
ao passo que no Texto dos Caixões inicia-se a entrada do destino osiríaco em detrimento
do destino estelar8, mas sem abandonar a relação com o deus Rê, muito pelo contrário, o
destino solar ainda aparece como principal nesse conjunto de textos; ao passo que no
Livro dos Mortos ambos os destinos post mortem são de igual importância.
Por fim, cabe dizer que, por mais que a complexidade da religião funerária egípcia
forme uma mandala de conceitos, muitas vezes devido à dificuldade em abandonar-se
ideias precedentes, essa mesma inabilidade em adotar rápidas mudanças contribuiu
fortemente para a estabilidade e manutenção da natureza da civilização egípcia, sendo
essa a razão provável para a durabilidade dessa religião (Speelers, 1923, p. 164).
Entretanto, saber até que ponto composições tão diferentes do ponto de vista
formal refletem uma concepção uniforme do Além é uma questão em aberto. Mas, é
incontestável que o Novo Império marca uma virada e, talvez, a diferença entre o Livro
dos Mortos e os livros do Mundo Inferior seja que os segundos fornecem verdadeiras
descrições do Além, ao passo que o Livro dos Mortos seria mais uma ajuda prática para
a viagem e a estadia no Além. (Hornung, 2007, p. 11).

7
Osíris não se encontra totalmente excluído dos Textos das Pirâmides, como deus ele aparece nesses textos
intimamente relacionado com a realeza, o que pode ser explicado pelo seu próprio mito onde ele é
representado como o primeiro rei egípcio.
8
Osíris apresenta em si um caráter estelar relacionado com a constelação Órion, mas como deus associado
ao Além aparece sob a forma de Quentiamentiu, o primeiro dos ocidentais, variante relacionada com uma
forma antropozoomórfica do deus chacal.

71
Os Destinos Post Mortem

Tendo em vista todos os monumentos e registros egípcios referentes à morte, seria


fácil pensar que esse povo fosse tétrico, mas, na verdade, os egípcios têm um grande amor
à vida cotidiana e ao mundo terreno, o qual é constantemente representado em suas
tumbas e se reflete no destino funerário. Eles nutriam dúvidas com relação ao pós-vida, a
uma existência desencarnada ou aos ritos que deveriam animar o morto. No entanto, a
morte é concebida como um elemento de ordem do mundo e os egípcios previam essa
morte durante sua vida. Mesmo assim, há toda uma série de documentos que mostram
que eles também tinham medo desse evento, eles evitavam a palavra morte e as
representações do morto e encontra-se escrito, nas fórmula conhecidas como apelo aos
vivos, a seguinte frase: “vós que amais viver e detestais morrer, pronunciem (para o
morto)” (Morenz, 1962, p. 244).
Entretanto, como forma de controlar esse medo de um destino incerto e
desconhecido, fizeram um mobiliário funerário e guias do Além para garantir um pós-
vida mais confortável e seguro, tentando controlar e delimitar o incontrolável.
Relacionada aos ciclos da natureza – solar, agrícola e cheias do Nilo - , a morte
se apresenta como inserida no grande esquema da criação e vista como cíclica, sem ser
uma mudança brusca ou mesmo uma quebra. A morte não era um fim, mas sim uma etapa,
um estado de transição que possibilita a entrada na outra vida, a vida eterna (Taylor, 2001,
p. 121). Na verdade, é deixado claro em diversos textos funerários que o morto não parte
desse mundo como morto, mas sim como vivo, como um sah.
No início dos conceitos de além-vida, a alma 9 do morto deveria morar na tumba e
receber as oferendas, ali depositadas, por meio da sua estátua 10, isso para os mortos
particulares, pois o rei, como já foi dito, apresenta um destino estelar ou celestial.

9
O conceito de alma para os egípcios não é o mesmo que para a sociedade judaico -cristã. Os egípcios
apresentam 3 formas espirituais, sendo o ba, o mais próximo do que chamamos de alma, chamada pelos
gregos de psiché. Gardiner identifica o ba como um dos modos de existência no qual o morto continuaria
a viver, o que é seguido pelo estudo de Herman Kees, que entende que o ba é caracterizado pela liberdade
de movimento por meio da qual o morto continuaria a viver (Zabkar, 1968, p. 1-2). O destino último do ba
seria estar junto aos deuses, viajar na barca solar, encontrar Osíris, estando no céu e na terra, tendo liberdade
sem limites, podendo entrar e sair do Ocidente e do Oriente, sendo próspero na terra, sendo o agente da
atividade sexual do morto na vida após a morte, assim como ocorre com Osíris (Idem, 1968, p. 101).
O ba é uma personificação da força vital, física e psíquica da pessoa, é a verdadeira natureza e forma do
morto, um alter ego personificado do morto (Idem,1968, p. 113).
10
A estátua do morto servia como repositório para um dos seus aspectos espirituais, o ka, ou duplo, seria
ele quem daria força para o morto no Além e que ingeriria os alimentos, enquanto que o ba, seria um espírito
móvel relacionado às transformações do morto e às viagens diurnas e noturnas. Enquanto que o ka ficaria
na tumba, seria o ba que sairia dela com o nascer do sol, voltando de noite.

72
Após a XII dinastia aparece uma teoria mais espiritual, acreditando-se que a alma
partiria para o mundo de Osíris ao invés de ficar na terra, sendo obrigada a cumprir lá,
em Imentet, o que se fazia na terra, mas agora eternamente (Petrie, 1974, p. 3).
De acordo com a religião egípcia pode-se perceber a existência de três mundos
igualmente reais e relacionados entre si: o mundo dos vivos – terreno -, dos deuses -
sobretudo celestial - e dos mortos - inferior - (Speelers, 1923, p. 159). Dessa tripla
concepção do universo resultaria uma intervenção de um mundo no outro e a organização
do cosmos para este povo.
O tempo de vida era chamado de aha’u, sendo 30 anos o período de uma geração,
100 anos o máximo de vida e 110 anos a idade ideal para a experiência terrena, sendo que
os últimos 10 anos eram considerados como um extra concedido pelos deuses (Hornung,
1992, p. 58-62). Seria durante esse tempo que os egípcios viveriam sobre a terra enquanto
vivos.
Assim, na origem da viagem para o Além há a morte. Uma morte não anárquica,
pois tem um modelo: a morte do faraó e de Osíris. Essa morte é a partida, o rei vai e volta,
ele dorme e acorda, ele morre ao partir e ressuscita ao voltar. Ir e vir fazem parte das
novas capacidades do rei que, na sua função de viajante, pode ultrapassar as fronteiras
entre a vida e a morte.
Recusando a resignação, afirmando que a morte não é nada além do que uma
forma de vida, o morto, o rei nas épocas antigas ou o indivíduo no período posterior, tem
como preocupação essencial evitar, a todo o custo a destruição, a segunda morte que é a
inércia absoluta que proíbe toda a mobilidade em direção a uma outra realidade (Jacq,
1986, p. 18).
No Antigo Império, como é mostrado nos Textos das Pirâmides, o rei está
destinado a uma verticalização do pós-morte, com sua subida ao céu, enquanto que o povo
apresenta uma horizontalização do Além, pela vida na tumba (Jacq, 1986, p. 19). O
objetivo último dessa subida aos céus seria ir em direção a Rê, uma viagem do rei de volta
à sua origem celeste, para o seu pai.
Se a livre circulação em todos os espaços é um ideal fundamental do morto
“glorificado”, é porque a viagem faz parte da ordem cósmica cuja permanência é uma das
chaves da religião egípcia (Jacq,1986, p. 22). No contexto da religião funerária egípcia,
pode-se distinguir três tipos de passagens ou viagens empreendidas pelo morto.

73
A primeira é uma viagem da cidade dos vivos para a necrópole, após o período de
mumificação, em que há o deslocamento da casa do morto até o rio, sua travessia e o
transporte para a necrópole, onde são feitos os rituais.
A segunda, é a passagem entre a existência terrestre e a vida além-tumba, que é
indissociável dos ritos praticados sobre a múmia, fazendo com que haja alterações no ser
que está morto, que passa a ser um vivo no Além. Por fim, a terceira é composta pelas
ações do morto no Além até atingir o seu destino no pós-vida (Jacq, 1986, p. 22-23). Os
textos funerários agiriam, sobretudo, nas duas últimas viagens, pautando os ritos,
tornando o equipamento funerário eficaz e guiando o morto até sua justificação e
glorificação, isto é, até a eternidade.
As concepções com relação ao Além egípcio são diversas e, dentre elas, a noção
de um Além como o reflexo do próprio território egípcio parece ser uma forma de
substrato de todas as ideias do post mortem aparecendo nos textos referentes ao Além.
Para se apresentar um pano de fundo desse imaginário ligado ao destino do morto
pode-se dizer que, de uma forma sintética, temos a união de certos aspectos tanto ligados
ao Ocidente como ao ciclo solar. Assim, após o falecimento, o morto sairia do domínio
terrestre e entraria em outra esfera de contato 11, um mundo próximo aos deuses e com
características distintivas do terreno, sem deixar, ao mesmo tempo, de ser um reflexo da
vida na terra.
Não se pode negar que nos Textos das Pirâmides, o poder de Rê e Heliópolis têm
uma maior influência, no entanto, há uma infinidade de aspectos referentes aos conceitos
celestiais ou solares. Um desses, é o destino do faraó como estrela no corpo de Nut, a
deusa do céu, o qual, mesmo sendo celeste, se alia ao destino osiríaco, sob a forma da
constelação Órion, uma manifestação de Osíris, sob a qual ele é pai de Hórus Sopd.
Mesmo tendo esse caráter celeste, percebe-se uma tentativa, sobretudo no Livro
dos Mortos, em transformar esse deus em proprietário de um domínio ctônico, o que se
vê no diálogo de Osíris com Atum, em que o primeiro se queixa de estar numa região sem
água, sem ar, escura e profunda, Capítulo 175 (Budge, 1999, p. 325-327).
Por mais que o além-vida associado a Osíris não seja o mais antigo, nem o
fundador de uma expectativa de vida póstuma, há algo de diferente na concepção de
imortalidade associada a esse deus, em comparação com a solar ou celestial.
Primeiramente, havia um conceito corpóreo de vida após a morte, isto é, enquanto no
11
Deve-se esclarecer que por mais que a pessoa morta saía desse mundo ela ainda tem meios de interferir
no mundo dos vivos; cite-se aí as cartas aos mortos.

74
destino celeste o morto passa por transformações – falcão, escaravelho, ganso – no
sistema osiríaco é o corpo do morto que continua e com o qual a vida no post mortem
prossegue.
Como Osíris, os humanos deveriam morrer, mas também viver novamente com o
seu corpo terreno e todas as características que tinham em vida, agindo tanto no Mundo
Inferior como na terra. Para tanto, o corpo teria um papel fundamental como centro da
ressurreição e conservação dos elementos imateriais e eternos do ser humano, o que faz
com que seja necessária a sua preservação (Wiedermann, 1901, p. 42). Assim, tanto o ka
teria um repositório, como o ba, que poderia sair durante o dia, mas voltaria de noite,
havendo, assim, a reaproximação dos elementos que haviam sido separados pela morte.
Assim como Osíris foi capaz de se levantar de seu sono da morte, o rei morto
poderá levantar e tomar posse do seu corpo novamente, com isso, a morte seria apenas
um sono, sendo negada (Griffiths, 1966, p. 41) pela afirmação da vida, pela retomada das
ações do corpo, o que é conseguido por rituais, o principal deles o de Abertura da Boca,
bem como a mumificação e por conseguinte, a transformação do morto em um sah. Desse
modo, “O rei não parte morto, ele parte vivo, sentado no trono de Osíris” (Textos das
Pirâmides 134a-b).
Como meio para atingir a eternidade no Além, os mortos identificavam-se com
Osíris, que no seu mito teria vencido a morte, e o filho do morto deveria se identificar a
Hórus e fazer pelo seu pai o que aquele havia feito por Osíris, o que incluiria a
mumificação, o já mencionado, ritual de Abertura da Boca e o culto póstumo.
Dessa maneira, podemos afirmar, que o formato de múmia nada mais é do que
uma maneira de se aproximar de Osíris, havendo a identificação do morto com esse deus,
na expectativa de conseguir controlar a morte, retomar o controle do seu corpo e ser eterno
em paz, no Além, assim como o deus.
Assim, há, na verdade, uma doutrina de continuação da vida mais que uma
ressurreição ou ressuscitação no Além. Desse modo, a diferença entre a teologia
heliopolitana ou solar e a osiríaca é que a primeira nega a morte, enquanto que a segunda
a aceita como uma transformação do morto em espírito “glorificado”, akh.
A transformação em espírito “glorificado”, que implica na mutação em várias
formas, era uma maneira de atingir a vida no céu e, um dos principais meios para obter
esse estado abençoado, seria pela escrita e recitação dos textos mágicos compostos para
este objetivo (Griffiths, 1966, p. 43)

75
Breasted (1970, p. 140-141) explica que o destino solar e osiríaco teriam suas
diferenças, devido a origens opostas. Enquanto que o culto solar teria vindo de uma
teologia estatal, Osíris faria parte de uma crença mais popular, que teria grande apelo
individual, sem todas as transformações místicas associadas ao destino solar. Sendo
assim, para esse autor, teria havido primeiro uma crença num Além subterrâneo,
concernindo todo ser humano, seguida por um Além celestial, privilégio dos reis, que
aparece nos Textos das Pirâmides, já em uma fase em que Osíris é citado nesses textos.
Com o crescimento da crença em Osíris, que teria desbancado outros deuses do Mundo
Inferior, como Anúbis e Quentiamentiu, há uma competição entre esses dois sistemas
religiosos, gerando uma unificação dessas formas de pensamento 12, o que é conhecido
como osirização da religião (Idem, 1970, p.142).
Uma importante conexão entre o deus Osíris e Rê é a morte do último, que
ocorreria no final de cada dia, no Ocidente, fazendo com que o deu s, em sua forma
espiritual, atravessasse o Mundo Subterrâneo de Osíris, onde ocorreria a união de ambos
para a regeneração tanto dos que viviam no Mundo Inferior quanto a do sol em si.
No que concerne à evolução do equipamento funerário, pode-se notar um
caminhar paralelo à evolução do Além osiríaco na mentalidade egípcia. De acordo com
Siedlmayer (apud. Willems, 2008, p.142-144) a maior parte das tumbas do Antigo
Império, não contam com um equipamento especificamente funerário, mas sim com
artefatos escolhidos que apresentam marcas de uso, sendo uma forma de ver o mundo dos
mortos como continuação do dos vivos, mas de uma maneira selecionada, já que o
material que acompanhava o morto era constituído de objetos associados a uma elite.
No entanto, no final da XVIII dinastia, começa a aparecer, no universo funerário,
objetos que não teriam uma utilização cotidiana, como máscaras funerárias, modelos e
shabtis. Nessa mesma alteração há o desejo de se orientar o corpo do morto não mais para
a cidade, mas sim de acordo com os astros, sugerindo uma ideia referente ao Além e uma
mistificação do post mortem. Essa tendência se manifesta inicialmente com os reis, depois
com a elite e em seguida com o povo em geral.

12
Mesmo tendo ocorrido uma unificação entre os conceitos celestial/solar e subterrâneo/osiríaco, percebe-
se que se mantém uma certa distinção entre o destino dos faraós e do povo, pois enquanto que para as
tumbas privadas encontra-se textos referentes ao Livro dos Mortos, para os faraós há livros funerários
específicos, como o Livro do Am-duat, Livro das Cavernas, Livro das Portões, Livro da Terra, Livro das
doze horas da noite, Livro das doze horas do dia ou ainda as Litanias de Rê e o Livro da Vaca Celeste,
sendo que todos estes textos entram em vigor nas tumbas reais, logo que os textos funerários em papiro, o
Livro dos Mortos, tornam-se mais populares.

76
Desse modo, pela evolução do equipamento funerário também se pode notar uma
alteração na concepção do Além que deixa, aos poucos, de ser puramente terrestre e
associado à tumba, passando a ser mais etéreo, associado tanto ao céu como ao mundo
subterrâneo.
Por fim, no Período Greco-Romano, Osíris continua a reinar no Mundo Inferior,
cercado por deuses e espíritos “glorificados”, mas o destino dos homens depende, agora,
apenas de suas ações e não mais de todo o equipamento funerário, o que pode ser
verificado pelo conto da descida ao Mundo dos Mortos do sacerdote Khamose, em que
ele vê um rico perder tudo por ter sido mau, enquanto um pobre, sem equipamento
funerário, recebe tudo por ter sido bom (Erman, 1937, p. 465-466). Isso mostra a que
ponto os artefatos mágico religiosos perdem o seu significado gerando, assim, a
decadência de certas crenças funerárias.
Assim, para os egípcios antigos a morte não era o fim, mas apenas uma interrupção
na existência, uma interrupção violenta, pois cada morte seria como um assassinato sendo,
ao mesmo tempo, a única forma de se atingir a eternidade (Wiedemann, 1901, p. 14). A
morte não era uma inimiga ou um obstáculo, mas uma passagem para outra existência, o
objetivo dos egípcios não era fugir da morte, mas sim não morrer novamente, queriam
encontrar do outro lado a vida que eles tinham gozado na terra (Quirke, 1992, p.141).
Como ocorre com Osíris, deus morto que deve deixar a mulher, o filho e esse
mundo, os mortos humanos também devem deixar a terra, mas eles “não vão como
mortos, eles vão como vivos” (Textos das Pirâmides 134), eles não têm uma vida no
mundo dos mortos como fantasmas, eles acordam para uma vida nova, com plena
possessão de corpo e espírito, assim como Osíris: “eles possuem seus corações, eles
possuem seus espíritos, eles possuem suas bocas, eles possuem seus pés, eles possuem
seus braços, eles possuem seus membros.” (Erman, 1937, p. 257). A vida continua, mas
agora eternamente e em todos os domínios.
O morto é, enfim, aquele que vai poder ocupar todos os domínios: terrestre,
celestial e ctônico, agindo junto aos deuses, transformando-se em um deus e navegando
na barca solar, estando com a luz sempre ao seu lado, mas sem deixar de viver a vida que
teve sobre a terra. A morte nada mais é do que o fechar de um ciclo, o ciclo solar, nilótico
e agrícola, o qual é o mantenedor das forças criadoras do cotidiano egípcio. O morto bem-
aventurado, nada mais é do que aquele que aproveitará de todos os meios disponíveis para
extrair uma continuidade eterna.

77
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78
Parte III

Re1igião e Poder

79
1

Akhenaton, a Cidade de Akhetaton e a Extinção Passageira do Além

Moacir Elias Santos

Enquanto governante Amenhotep IV (1353-1335 a.C)1, posteriormente


Akhenaton, que ascendeu ao trono como sucessor de Amenhotep III (1391-1353 a.C.),
efetuou diversas modificações na sociedade de sua época, mas nenhuma teve tanto
impacto quanto aquela que afetou a religião. Neste ponto o que mais nos interessa é
compreender de que forma a religião funerária do período amarniano foi pensada, visto
que a Duat deixou de existir e com ela todo o imaginário que a compunha, e qual foi o
papel do rei nesta mudança. Uma das medidas adotadas por Akhenaton foi a escolha de
um local para a construção de sua nova cidade, com o objetivo de celebrar a nova religião
sem a influência, pelo menos em teoria, de outros deuses. O espaço encontrado por ele
ficava praticamente a meio caminho entre as cidades do norte, Mênfis e Heliópolis, e a
capital no sul, Tebas. Ao avistar um vale junto a uma curva do rio Nilo, circundado por
montanhas, que constituía um semicírculo, com eixo no sentido norte-sul, o faraó
denominou-o de Akhetaton, literalmente “Horizonte de Aton”. O lugar representa o
espaço onde o sol transformava-se antes do renascimento que ocorria ao amanhecer. Esta
imagem está presente no próprio hieróglifo akhet (Imagem 1) que representa o nome da
cidade, com o sol nascendo por entre duas montanhas.

1
As datas que emprego neste texto seguem a cronologia proposta por John Baines e Jaromir Málek (1996,
v. 1, p. 36).

80
Imagem 1: No hieróglifo akhet o sol é representado emergindo das montanhas no leste.

Na cidade, inicialmente planejada, o faraó ocupou-se em estabelecer a orientação


e a proporção, pois ordenou a construção de duas estelas de fronteira (X e M) que foram
escavadas nos rochedos ao norte e ao sul, situados muito próximos ao rio, e destinavam-
se a delimitar a área de construção da cidade. Nestas estelas estavam os planos para a
nova capital, a exemplo dos edifícios que seriam dedicados ao Aton 2. Era a intenção que
todas as estruturas fossem construídas no alinhamento existente entre as estelas, contudo,
a parte central ficava no curso do rio. Assim, foi necessário um deslocamento para o leste,
formando uma linha paralela. Ao centro desta última foi edificado um altar e de forma
perpendicular uma nova linha foi marcada em direção ao horizonte oriental (Mallison,
1999, p. 75). Seguindo deste ponto para o leste temos, exatamente, o ponto escolhido para
a construção da tumba real.
Na nova religião solar esta mudança da localização das tumbas para o leste foi o
primeiro impacto na destruição da ideia sobre um mundo do além. O ciclo percorrido
anteriormente pela barca solar de Ra, conforme vemos no Livro de Amduat e no Livro
dos Portões, perdeu o sentido, pois o oeste deixou de ser uma referência para a terra dos
mortos. Ra não se juntaria mais a Osíris para que ambos pudessem se renovar e, desta
forma, garantir a existência de ambas as divindades – Osíris continuaria no outro mundo
enquanto Ra renasceria na forma de um escaravelho no leste. No Hino ao Aton a jornada
para o além feita pelo deus-sol foi suprimida e, deste momento em diante, Akhenaton
transformou a noite na ausência do deus, cujo paradeiro é desconhecido, e no local onde
o caos se manifesta, conforme vemos pela tradução da inscrição conservada na tumba de
Ay em Amarna:

Ninguém conhece o teu paradeiro (quando) descansas no horizonte ocidental.


A terra está (então) nas trevas, à maneira da morte. Dorme-se no(s) quarto(s),

2
Para um estudo completo sobre o urbanismo de Akhetaton, ver referência completa da tese de doutorado
de Liliane Cristina Coelho na bibliografia.

81
as cabeças cobertas, um olho não pode ver o outro (lit. o seu igual), todos os
bens das pessoas (lit. deles) podem ser roubados, (mesmo se) estiverem
debaixo de suas cabeças, sem que elas percebam. Todas as feras (lit. todos os
leões) saem de seus covis, todos os répteis picam (na) escuridão (desprovida
de) luz! (?) A terra está em silêncio, (pois) aquele que criou os seres (lit. eles)
repousa no seu horizonte. (Cardoso, 2008, p. 2-3)

Percebe-se que havia uma dependência total da existência da luz do deus, pois, do
contrário, tudo voltava ao caos. Quando Akhenaton levou a cabo os seus projetos para a
nova cidade, outras treze estelas foram erigidas para o estabelecimento das fronteiras
fixas, tanto no leste quanto no oeste. A localização destas estelas aliada à posição da
tumba real revela um importante aspecto do que Akhenaton propôs para a existência post
mortem. Ao ser feito um traçado ligando as estelas com um ponto central sobre a tumba
real temos, claramente, um importante significado simbólico que pode ser confirmado
com o auxílio de uma fonte iconográfica. Numa das paredes da tumba real há um relevo
do sol sendo adorado. O astro surge no horizonte e seus raios atingem o templo, que
aparece sem os muros, e a cidade, de forma que tudo o que é visível é inundado pela luz
do sol. As projeções das linhas imaginárias, visíveis na imagem 2, surgindo no leste a
partir do disco do sol até os pontos onde estão as estelas de fronteira, coincidem com a
representação na tumba de Akhenaton (Mallison, 1999, p. 78). Assim, o local de
inumação do faraó tinha uma importância fundamental para os egípcios vivos e mortos,
visto que Aton se reuniria primeiramente com ele em sua tumba e, desta forma,
asseguraria o renascimento do sol para continuar a vida para toda a criação, conforme as
palavras do Grande Hino:

Ele diz: “(Quando) te levantas, belo, no horizonte do céu, ó Aton vivo, aquele
que deu início à vida, (quando) brilhas no horizonte oriental, tu enches todas
as terras com a tua perfeição. Tu és belo, grande, refulgente, elevado (lit. alto)
acima de todas as terras. Teus raios cingem as terras até o limite de tudo o que
tu criaste. Em tua qualidade de Sol, tu atinges (lit. trazes) os seus confins e os
submetes ao filho amado por ti (lit. de ti). (Cardoso, 2008, p. 1-2)

A dependência dos egípcios do período amarniano para com seu rei é algo muito
destacado na iconografia e contribui para esta afirmativa. Aton sempre está próximo,
conferindo a vida exclusivamente a Akhenaton e Nefertiti, portanto os demais egípcios
só teriam acesso ao deus por meio de seu filho. Esta dependência também poderia explicar
o posicionamento da tumba real na parte leste da cidade, pois, mesmo depois da morte do
rei, Aton iluminaria sua tumba para, posteriormente, agraciar a terra e os humanos. O rei,
neste ponto, ficaria literalmente à frente de todos, fossem eles vivos ou mortos.

82
Inspirados pela construção real, os oficiais e altos funcionários de Akhetaton
também construíram suas tumbas nas montanhas do oriente. Ao longo do período em que
a cidade foi ocupada quarenta e duas tumbas foram edificadas, sendo dezessete ao norte
do vale real e vinte e sete ao sul. A forma destas tumbas seguiu aquela das localizadas em
Tebas, com algumas variações, tais como os corredores mais longos em direção à câmara
principal, ou uma câmara transversa com área menor que continha colunas papiriformes.
Estas seguiam a forma das colunas dos templos, algo que celebrava a existência terrena,
ao contrário das pilastras retangulares que eram comuns nas tumbas tebanas, que eram
decoradas com imagens de divindades. Uma segunda câmara, sem decoração, poderia ser
disposta entre a câmara principal e o santuário. Em uma destas duas câmaras estaria
localizada uma escadaria ou um poço que dava acesso à câmara funerária (D’Auria, 1999,
p. 168). Praticamente todas as tumbas encontram-se inacabadas e muitas não foram
utilizadas, o que se explica a partir do curto período que a cidade foi ocupada durante o
reinado do faraó.

Imagem 2: Relação da posição da tumba real com as estelas. Nesta imagem é possível verificar o
alinhamento proposto, de forma que Akhenaton pudesse se reunir a Aton para garantir a vida aos vivos e
aos mortos. In: www.amarnaproject.com acesso em dezembro de 2014.

As ideias de Akhenaton causaram uma série de modificações na decoração das


tumbas, em comparação ao que estava vigente em Tebas. Nas representações
iconográficas das tumbas tebanas existia uma grande variedade de cenas relacionadas ao
cotidiano de seus proprietários, à presença de membros da família em festivais, como a

83
Bela Festa do Vale, e à peregrinação para o centro de culto de Osíris em Abydos. Em
Amarna o culto de Osíris foi banido e não há qualquer imagem nas paredes das tumbas
que lembrasse as ideias sobre o reino do Além. A antiga tradição cedeu lugar a um novo
repertório, cujo foco quase que permanente é nas imagens da família real, que pode
aparecer isolada em um ambiente privado, a exemplo das imagens repetitivas da adoração
ao deus Aton, ou em cenas que mostram atividades públicas. Este é o caso da janela da
aparição, onde o rei e a rainha distribuem presentes, tal como o colar-shebu que representa
o ouro da honra, conforme se vê nas tumbas de Huya (Tumba Norte 1), de Meryra (Tuba
Norte 4) e de Ay (Tumba Sul 25).
De forma geral havia uma organização das cenas, tal como encontramos em
Tebas. Junto à porta de entrada temos no lintel a figura do morto perante os cartuchos de
Aton, ladeados por aqueles de Akhenaton e de Nefertiti, enquanto que próximo às laterais
da porta há textos com adoração ao Aton e ao casal real. Nas passagens da porta para a
câmara há imagens do morto agachado, acompanhado pela esposa, em adoração ao Aton
e ao casal real, além de textos que são variações do grande ou do pequeno Hino ao Sol.
As paredes da câmara principal da capela revelam também a interação do morto
com atividades da família real, tal como também ocorria nas tumbas privadas tebanas nos
reinados que precederam o de Akhenaton, a exemplo das duas cenas de banquete da
tumba de Huya. Na cena na parede direita, ao lado da entrada, o morto aparece em
pequena escala, com o corpo curvado, próximo a rainha Tiy. Há, ainda, outras cenas que
mostram a família real em trânsito no meio de um trajeto entre o palácio e o templo ou
em adoração. O melhor exemplo, sem dúvida, provém da tumba de Meryra, cujos títulos
eram Sumo-sacerdote de Aton, Chanceler Real e Príncipe Hereditário (Johnson, 1992, p.
65), pois a conservação dos relevos em sua quase totalidade permite o reconhecimento e
a interação entre as representações iconográficas e as paredes. A maior cena na parede
esquerda da câmara principal mostra a família real em diferentes carros saindo do palácio
em direção ao templo. Já a parede oposta, à esquerda, com dois registros, exibe um grande
número de pessoas, entre oficiais, portadores de oferendas e musicistas, que acompanham
a chegada da família real. No mesmo espaço, as oferendas são apresentadas no templo
para o deus Aton, que domina a cena.
A câmara menor, ao fundo, era destinada somente ao morto. Neste espaço, o foco
das atenções era a estátua do ka do morto representado em pé ou sentado. A decoração da
câmara nem sempre estava presente, mas no caso daquelas que possuem os relevos, a
temática incluía a provisão de oferendas para o ka do morto e sua família, além do ritual

84
funerário. Este último só está presente na tumba de Huya. A cena que se encontra na
parede do lado direito mostra a múmia em pé, com um cone de gordura sobre a cabeça,
perante uma mesa cheia de oferendas e víveres. À sua frente um sacerdote-sem faz
libações acompanhado por diversas pessoas que elevam os braços em sinal de adoração.
Uma inscrição pequena menciona que Huya receberia “água de seu tanque e
[provavelmente frutas] de suas árvores” (Kemp, 2012, p. 251). Consoante a opinião de
Barry Kemp “tudo parece muito tradicional, exceto pela notável ausência de
representações evidentes, ou referências ao próprio Osíris” (Kemp, 2012, p. 251). A
maneira com que a cena foi disposta nos revela que os ritos funerários levados a cabo
anteriormente ainda estavam em uso, visto que para a elite um funeral era um evento
notável de exibição pública de sua posição social.
As câmaras funerárias de Akhetaton, assim como as de Tebas, são acessíveis por
meio de um poço, mas na maioria dos casos também estão inacabadas e há dados
insuficientes para comprovar a sua ocupação durante o período de Amarna. Há, contudo,
câmaras que foram finalizadas como as de Nefer-kheperu-her-sekheper, de May e de Any.
Esta, em particular, continha seis estelas que foram encontradas em três nichos próximos
à entrada. Três estelas foram presentes de um irmão de Any, de membros de sua família
ou de pessoas próximas a ele, tal como Tjay (D’Auria, 1999, p. 173). A estela de Tjay
que se encontra no Museu do Cairo tem o topo curvado e apenas um registro onde ele
aparece conduzindo uma biga, acompanhado por Any, que está em pé ao seu lado. Any
está vestido com uma túnica longa e tem em sua cabeça um cone de gordura. Ao redor de
seu pescoço estão quatro colares de ouro. Tais adornos são idênticos e evocam a
premiação real, um importante momento na vida de ambos. Nas inscrições há apenas
referências aos títulos e a oferendas, mas nenhuma divindade é mencionada.
As estelas provenientes de outras localidades continuam sem a presença de
imagens dos deuses, embora mencionem alguns nomes, tal como ocorre com a estela de
Ptahmay, conservada no Museu Britânico. A peça, que pode ser visualizada na imagem
3, possui a forma de uma porta-falsa, com uma cornija no topo e contém dois registros.
Na parte inferior, vê-se no lado esquerdo sentados em duas cadeiras Ptahmay e sua esposa
Takhert. No lado direito estão dois de seus filhos, Paateneheb e Merit. Ele invoca os pais
por meio do gesto – o braço levantado – em frente a uma mesa com oferendas. No registro
inferior o casal Huya e Uabet tem à sua frente dois jovens, seus filhos Hat e Uadj-renep,
enquanto que o casal da direita, Ramsés e Iuy, que está sentado perante uma mesa de
oferendas.

85
O ponto mais importante aqui são as fórmulas de oferendas que emolduram a
estela. A leitura se faz a partir do topo, do centro para as laterais. No lado direito há uma
fórmula direcionada a Ra: “Uma oferenda que o rei faz a Ra, Governante dos Dois
Horizontes, observando para sempre, ouvindo as horas, fortalecendo os olhos (lit. os dois
olhos) para (lit. sobre) ver a sua beleza. Para o ka do Guardião do Tesouro Ptahmay,
justificado, no Oeste”. No lado esquerdo a fórmula está dedicada a Aton: “Uma oferenda
que o rei faz ao Aton, Senhor da Eternidade, observando para sempre (para que) ele dê
pão, cerveja, gado, aves, todas as coisas boas e puras, para o ka do Guardião do Tesouro
Ptahmay, justificado, no Oeste”3. Neste caso temos a coexistência das duas divindades
em um monumento funerário encontrado em Sakkara. Algo curioso é a referência feita
ao outro mundo, o “Oeste”, extinto passageiramente por Akhenaton. A presença deste
artefato em uma necrópole distante de Amarna revela que nem todas as referências a
antiga tradição foram apagadas.

Imagem 3: A estela de Ptahmay onde os nomes de Ra-Horakhty e de Aton convivem. Cortesia: © Trustees
of the British Museum.

Neste ponto, tendo reconhecido a relação existente entre a tumba real, a cidade e
a organização das tumbas privadas, com o seu conteúdo imagético e textual, poderíamos
nos perguntar quais foram as ideias principais desta nova religião funerária. O

3
Tradução de Liliane Cristina Coelho e Moacir Elias Santos.

86
posicionamento da tumba real aliado à imagem de Aton iluminando toda a terra nos
mostra que sem um outro mundo os vivos e os mortos conviviam no mesmo espaço, tal
como indica uma inscrição de Meryre, superintendente do harém: “Justificado em
Akhetaton” (Hornung, 1999, p. 99). Justificado era um epíteto empregado pelos egípcios
que se referia àqueles que teriam passado pelo julgamento póstumo no tribunal presidido
por Osíris e que repetiriam a vida no outro mundo. No episódio amarniano não havia uma
separação clara entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A cidade, portanto, é o
local onde o rei, junto com Aton, proporcionava a vida eterna aos egípcios. Isto explica a
insistência das cenas que mostram o casal real e a vida em Amarna sob diversos aspectos.
Alguns textos informam o que acontecia com os mortos. A ideia do retorno como a
transformação sob a forma de um akh, ou morto transfigurado que vive eternamente no
outro mundo, parece não estar presente, visto que a ideia predominante é que o corpo
mumificado permanecia em sua casa da eternidade, conforme nos informa uma passagem
de um texto proveniente da tumba do chefe dos médicos, Pentu:

Que tu possas conceder que eu descanse em meu lugar da continuidade, que


eu seja incluído na caverna da eternidade; que eu possa sair e entrar em minha
tumba sem que o meu ba seja impedido do que ele deseja; que eu possa ir para
o lugar que meu coração determine, nos jardins que eu fiz na terra; que eu
possa beber água à beira do meu tanque todos os dias sem cessar. (D’Auria,
1999, p. 164)

A continuidade da vida era a própria existência terrena, quando os bas4 dos mortos
acordavam com o recebimento da luz de Aton, ao mesmo tempo em que os vivos se
levantavam pela manhã. As oferendas eram feitas pelo casal real ao deus-sol pela manhã,
conforme a iconografia presente nas tumbas, de forma que propiciavam a sua reversão
tanto para os vivos quanto para os mortos. Os bas que eventualmente estivessem nas
tumbas tinham a liberdade de ir e vir, conforme a ideia que já se encontrava presente no
Livro dos Mortos. O seu destino era o templo, onde partilhariam das oferendas, que
incluíam todos os tipos de víveres, e recebiam o sopro da vida, conforme podemos
verificar nesta inscrição da tumba de Huya:

Que tu possas fazer com que eu esteja continuamente no lugar da


benevolência, em minha tumba da justificação; (e para) o meu ba, que ele
possa vir para ver teus raios e receber o sustento de tuas oferendas... Que eu
possa tomar parte das coisas que emanam [da tua presença, para que eu possa
comer pães redondos, pães-bit, oferecendo pães, jarros <de cerveja,>] carne

4
O plural egípcio é feito com “w”, assim empregamos o uso do plural em português para facilitar a leitura.

87
assada, comida quente, água fria, vinho, leite, tudo o que emana [da mansão
do Aton em Akhetaton] (D’Auria, 1999, p. 171).

Posteriormente, ao entardecer, os bas retornariam para a morada da eternidade. A


concepção relacionada ao sustento do ba tornou-se frequente no período pós-amarniano
sendo reinterpretada a partir de uma deusa da árvore, geralmente Nut, que nutria o morto
e saciava a sua sede no além.
O fato do ba ter a sua mobilidade irrestrita “sem ser bloqueado a partir do que
ele deseja” (Hornung, 1999, p. 97) e ter a seu sustento garantido a partir das oferendas
no templo, fez com que um dos elementos que propiciavam a passagem de um mundo a
outro, a porta-falsa, perder a sua utilidade. O ba não teria mais um caminho para ser
percorrido, visto que o outro mundo havia sido suprimido. Segundo a crença tradicional
egípcia o ba, bem como as demais partes que compunham o ser (o ka, a sombra, o coração
e o nome) deveriam retornar ao corpo após a realização dos rituais funerários. Neste ponto
a ideia durante o período amarniano continuou, mas com algumas restrições, pois o
embalsamamento dos corpos era uma pratica corrente, tendo em vista a sua principal
função como suporte para o ba e o ka. Os restos de ataúdes e sarcófagos, inclusive o do
próprio Akhenaton, também confirmam esta ideia. Mas a regeneração e renascimento em
um outro mundo, tão importante na crença relacionada a Osíris, foi abandonada. Além da
alimentação conferida ao ba no templo supracitada, a ideia do conceito do ka como
princípio do sustento continuou existindo, conforme as inscrições presentes em estatuetas

88
funerárias. A estatueta ushabti de Hat, visível na imagem 4, apresenta justamente esta
ideia, mas tem o rei como o intermediário entre Aton e o morto (Cardoso, 1999, p. 116):

Imagem 4: - Ushabti do ajudante-de-ordens Hat, que apresenta a fórmula de oferendas substituindo o


Encantamento 6 do Livro dos Mortos. In: Bongioanni, Sole Croce (2007, p. 488)

Conflitantes, estas ideias certamente deixariam muitas dúvidas para os próprios


egípcios, visto que as estatuetas de servidores funerários visavam substituir os trabalhos
agrícolas no outro mundo, governado por Osíris. Algumas estatuetas, como as que foram
feitas para as “cantoras de Aton” revelam um conflito. Uma delas, confeccionada em
pedra calcária, que pertence ao Museu Metropolitano de Arte, apresenta o texto “A
cantora de Aton, Ísis, justa de voz”, enquanto a outra, de madeira de ébano, do acervo do
Museu Britânico, apresenta o Encantamento 6 do Livro dos Mortos, onde a morta é
denominada “A Osíris, cantora de Aton, Hatsheret”. A presença do nome “Ísis”, o
epíteto “justa de voz” e a denominação de Hatsheret como “a Osíris”, além da aparência
mumiforme das duas figuras, são todos elementos osirianos. Estes deveriam ter sido
esquecidos, conforme a vontade de Akhenaton. As duas figuras não possuem uma
proveniência registrada, contudo, é provável que tenham sido encontradas em outros
locais, que escapavam de um possível controle. Poderíamos pensar que o trabalho de
exclusão das divindades levado a cabo por ordem do faraó estaria concentrado nos
templos, mas uma estela (Imagem 5) encontrada provavelmente na necrópole tebana
aponta para outra direção. A peça 5, do acervo do Museu Nacional, apresenta o morto
Bakenamon em atitude de receber oferendas que são feitas por um sacerdote anônimo,

5
Inv. 661, conforme a numeração da obra de Kitchen e Betltrão, 1990, v.1, p. 74.

89
posicionado à esquerda. Na parte inferior um casal está sentado perante uma mesa de
oferendas de um sacerdote. Há outras duas mulheres e dois homens posicionados atrás
dele. O que há de mais importante nesta peça é que nas cinco vezes que aparece o nome
do morto a palavra “Amon” foi removida com o uso de cinzéis. Esta é uma confirmação
de que nem todos os materiais de origem funerária foram poupados. A razão da
conservação das estatuetas de servidores funerários deve-se ao fato de que foram
conservadas em uma infraestrutura, ao contrário da estela que ficava visível,
provavelmente no pátio ao lado da capela de seu proprietário. Pinturas das capelas de
algumas das tumbas tebanas também foram danificadas nesta mesma época, o que
confirma a ação da perseguição as divindades também nas necrópoles.

Imagem 5: A estela de Bakenamon (Inv. 661) com as áreas onde o nome de Amon foi removido. Museu
Nacional/ UFRJ. Foto de Moacir Elias Santos.

Outra estatueta ushabti, pertencente a Ipy, uma mulher cujo título era “Ornamento
Real”, apresenta alguns dados sobre a necessidade de mumificar os mortos e manter os
corpos nas tumbas, ao mesmo tempo que afirma que ela poderia acompanhar o sol em
seu trajeto diurno e teria oferendas à sua disposição. O final da inscrição, contudo, refere-
se ao Encantamento 6 do Livro dos Mortos, onde a imagem é invocada para efetuar os
trabalhos no outro mundo (D’Auria, 1999, p.173). Novamente, as velhas práticas
funerárias foram adaptadas à nova crença.
Para Akhenaton a inexistência do outro mundo eliminou também o julgamento
pelo qual o morto teria que passar na Sala das Duas Verdades, perante o tribunal presidido
por Osíris e composto por quarenta e duas divindades, que representavam ações que o
morto não deveria ter cometido durante sua existência terrena. O próprio faraó, “aquele
que vive em Maat”, conferia as benesses para aqueles que agiam conforme a sua vontade.

90
Sem esta relação de lealdade não haveria a continuação da vida, conforme uma inscrição
encontrada na casa de Ramose: “deus do destino, que concede cada tempo de vida e um
enterro (depois) da velhice em seu favor” (Hornung, 1999, p. 102). Com base nesta
ausência de um julgamento póstumo, o amuleto do coração que estava presente nas
múmias de indivíduos de posição social mais elevada caiu quase que em completo desuso.
Originalmente o amuleto em forma de um escaravelho continha um texto mágico (que
poderia estar completo ou abreviado) denominado Encantamento 30 do Livro dos Mortos,
que era utilizado pelos egípcios para evitar que o coração, órgão que representava a sede
da consciência e da inteligência e que registraria todas as boas e más ações do indivíduo
durante sua vida, não se revoltasse contra seu dono perante o tribunal divino.
Um raro exemplar, visível na imagem 6, conservado no Museu Egípcio de Turim,
nos mostra a substituição do Encantamento 30 do Livro dos Mortos por uma símples
fórmula de oferendas, conforme a tradução abaixo 6:

6
Tradução efetuada por Moacir Santos, Liliane Coelho e Ciro Flamarion Cardoso.

91
Imagem 6: Escaravelho com fórmula de oferendas que substituíram o Encantamento 30 do Livro dos
Mortos. In: Cicogna e Pastina,1987, p. 114-115.

Esta fórmula confirma a reversão das oferendas para o morto, por meio da
intervenção do rei. Na imaginação do egípcio que a confeccionou, esta petição restrita à
tumba certamente faria sentido dado o desaparecimento do outro mundo.

Considerações Finais

De forma geral os egípcios que viveram durante a época amarniana parecem ter
sentido a perda da religião funerária que já tinha uma longa trajetória. Às ideias de uma
nova concepção religiosa imposta por Akhenaton, acabou por banir os deuses e o mundo
do além. De acordo com o que investigamos, ao constituir uma nova capital houve um
planejamento a partir de um eixo estabelecido entre as estelas de fronteira, que marcavam
os limites da cidade, e a tumba real, edificada no leste. Este foi o primeiro impacto na
religião funerária tradicional, pois o oeste deixou de ser a terra dos mortos e a viagem
para o além, feita pelo deus-sol para se unir a Osíris, foi extinta. O que lhes foi oferecido
era um rei divino, que partilhava de um renascimento continuo com o sol, que era igual
ao seu deus e que centralizava tudo.
Como substituição deste mundo o além foi transferido para a própria cidade. O rei
e o Aton eram os responsáveis não só pela manutenção da vida para os egípcios vivos,
como também garantiriam a existência dos mortos, uma vez que rei e deus-sol reunir-se-
iam na tumba real a leste da cidade e, assim, assegurariam o renascimento do sol para a
manutenção de toda a criação, tal como menciona o Grande Hino.
Verifica-se, assim, que na iconografia há uma dependência dos egípcios para com
seu rei, uma vez que ele age como intermediário entre Aton e a população. Os oficiais da
época de Amarna adotaram as novas práticas funerárias seguindo, provavelmente, a
vontade do próprio Akhenaton. Modificações ocorridas nas tumbas e na cultura material
funerária esclarecem diversos pontos sobre as novas ideias. O corpo físico e o akh
perderam importância em relação à religião tradicional, pois neste momento o ba teve um
destaque maior, uma vez que era ele que saía da tumba para receber as oferendas que
eram dadas pelo rei no templo dedicado ao Aton. A ideia do conceito do ka como
princípio do sustento continuou existindo, dada a existência de fórmulas de oferendas.
Alguns elementos da cultura material funerária perderam importância, como a
porta-falsa, que não representava mais a ligação entre mundos, pois o além foi excluído.

92
Mas outros, como os ushabtis, foram mantidos. Determinadas inscrições nos mostram o
quanto as novas ideias sobre a vida póstuma foram confusas, pois se verifica a presença
de elementos osirianos entre elas. A nova teologia não funcionou para a população, uma
vez que o rei centralizava tudo, do renascimento com Aton à própria mediação da ordem.
Conforme foi possível observar pelas fontes esta substituição radical não era aceitável,
visto que a morte continuou existindo e levou consigo o rei, de forma que quando o elo
principal foi rompido as ideias não encontraram mais suporte e acabaram esquecidas.
Numa sociedade em que os mitos integravam a visão de mundo, destituí-los acabou por
gerar problemas, pois a mesma estava acostumada com concepções religiosas que já se
encontravam consolidadas desde tempos remotos. Quando o jovem Tutankhamon foi
coroado, pouco tempo depois a religião tradicional foi restabelecida, e com ela as antigas
práticas mortuárias foram retomadas.

Bibliografia

Fontes

CARDOSO, Ciro Flamarion. Grande Hino ao Aton. Tradução com hieróglifos inédita
gentilmente cedida pelo autor, 2008.
. Ushabti do Ajudante de Ordens Hat. Tradução com hieróglifos inédita gentilmente cedida
pelo autor. A tradução do texto havia sido publicada em Deuses, múmias e ziggurats: uma
comparação das religiões antigas do Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1999, p. 116.
FAULKNER, Raymond. O. A concise dictionary of middle Egyptian. Oxford: Griffith Institute/
University Press, 1976.
LESKO, Leonard. H. (Ed.) A dictionary of late Egyptian. Providence: B.C. Scribe Publications,
v. IV, 1989.
. A dictionary of late Egyptian. Providence: B.C. Scribe Publications, v. III, 1987.
. A dictionary of late Egyptian. Providence: B.C. Scribe Publications, v. II, 1984.
. A dictionary of late Egyptian. Providence: B.C. Scribe Publications, v. I, 1982.

Referências Bibliográficas

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1996, v. 1.
CICOGNA, C. e PASTINA, F. Il museo egizio Torino. Milano: Federico Garolla Editore, 1987.
COELHO, L. C. Mudanças e permanências do uso do espaço: a cidade de Tell el -Amarna e a
questão do urbanismo no Egito Antigo. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói: 2015.
D’AURIA, S. Preparing for eternity. In: FREED, Rita. E.; MARKOWITZ, Yvonne. J.;
D’AURIA, Sue. Pharaohs of the sun: Akhenaten, Nefertiti, Tutankhamen. Boston:
Museum of Finer Arts/ Bulfinch Press/ Little, Brown and Company, 1999.
HORNUNG, E. Akhenaten and the religion of light. Ithaca and London: Cornel University Press,
1999.

93
JOHNSON, G. B. “Norman de Garis Davis & the rock tombs of el Amarna.” In: FORBES, D. C.
Amarna Letters: Essays on ancient Egypt ca. 1390-1310 B.C. Volume Two. San Francisco:
KMT Communications, 1992.
KEMP, B. The city ao Akhenaten and Nefertiti: Amarna and its people. London: Thames &
Hudson, 2012.
KITCHEN, K. A. & BELTRÃO, M. C. Catálogo da Coleção do Egito Antigo existente no Museu
Nacional, Rio de Janeiro. Warminster: Aris & Phillips, 1990.
MALLISON, M. “The sacred landscape.” In: FREED, R. E., MARKOWITZ, Y. J. e D’AURIA,
S. H. (ed.) Pharaohs of the Sun: Akhenaten, Nefertiti, Tutankhamen. Boston : Museum of
Fine Arts/ Bulfinch Press, 1999.

94
2

O Ritual do Poder: simbologia e representação social da monarquia


faraônica

Nely Feitoza Arrais

A figura do monarca como representante divino de uma ordem cósmica universal


consiste em uma das mais antigas simbologias nas sociedades humanas, em variados
momentos históricos. A simbologia em torno deste condiz com o seu universo cultural,
apresentando características específicas que dialogam com seu público, representando,
significando e reafirmando sua função e seu lugar social. Analisar, pois, os símbolos e
traços representativos que distinguiam o faraó egípcio pressupõe um mergulho no
universo cultural do Egito Antigo no qual aqueles foram elaborados ou incorremos no
risco de interpretá-los com nossos conceitos, distorcendo ideias básicas que
caracterizaram aquela cultura. Como resume bem Pierre Bourdieu (2007, p. 7)

Se a ‘imigração das ideias’, como diz Marx, raramente se faz sem dano, é
porque ela separa as produções culturais do sistema de referências teóricas em
relação às quais as ideias se definiram, consciente ou inconscientemente, quer
dizer, do campo de produção balizado por nomes próprios ou por conceitos
em -ismo para cuja definição elas contribuem menos do que ele as define. Por
isso as situações de ‘imigração’ impõem com uma força especial que se torne
visível o horizonte de referência o qual, nas situações correntes, pode
permanecer em estado implícito. Embora seja escusado dizer que repatriar
este produto de exportação implica riscos graves de ingenuidade e de
simplificação – e também grandes inconvenientes, pois fornece um
instrumento de objectivação.

Logo, devemos sempre tentar uma aproximação mais direta do universo cultural
analisado. A representação dos faraós seguiu, ao longo da história egípcia, um cânone
simbólico que distinguia os governantes não apenas do restante da sociedade como
também do próprio panteão divino do qual ele fazia parte. Esta construção da figura do

95
faraó percorreu os milênios dessa história com variações tênues referentes a símbolos e
vestuário. A perpetuação desta representação é tanto mais impressionante quando
encontrarmos os mesmos referenciais simbólicos da monarquia dos primórdios da história
egípcia (cerca de 3.200 a.C.) nos períodos posteriores à essa história nos quais povos
estrangeiros dominaram o cenário político da Terra Negra 1. No Egito Lágida (306 - 30
d.C.) e mesmo sob domínio romano (30 – 313 d.C.) esses referenciais continuaram sendo
reproduzidos e incorporados à apresentação social de seus soberanos em território
egípcio.
A compreensão desse universo simbólico, no entanto, defronta-se com séculos de
afastamento e estranhamento em relação aos conceitos egípcios propriamente ditos. A
cultura egípcia foi-nos transmitida pela interpretação de outras culturas. Até a decifração
dos hieróglifos, em 1822 por Jean-François Champollion, os conhecimentos sobre o Egito
e sua história provinham basicamente de duas fontes: História, de Heródoto,
principalmente o Livro II “Euterpe”, que data do século V a.C e o Antigo Testamento,
cuja tradição oral remonta a aproximadamente 1.800 a.C 2 (Gottwald, 1988). As duas
obras foram de grande impacto sobre a cultura latina que as herdou e foram a base de
transmissão de nossa visão moderna sobre variados aspectos da antiguidade. Das duas a
mais importante na idealização do universo egípcio foi sem dúvida o Antigo Testamento,
posto que, o Egito seja aí apresentado como o lugar de vivência e formação dos
descendentes de Abraão, seja em seu aspecto positivo no tocante ao desenvolvimento
numeroso dos mesmos, seja em seu aspecto negativo como o lugar de sofrimento e
opressão que levou a uma consciência étnica destes mesmos descendentes. A própria vida
do líder Moisés é inseparável deste universo mnemônico de grupo (Assmann, 1999, p.
16). Tal fato interfere ainda hoje na visão que nossa sociedade tem sobre a sociedade
egípcia antiga.
Comecemos pelo próprio uso do título faraó. Embora o termo, em egípcio (lê-
se per-aa), apareça nos períodos mais antigos da escrita egípcia, como nos textos das
Pirâmides (aprox. 2.600 a.C.) 3, o seu sentido primordial era a Grande Casa, o que
corresponderia ao Palácio e não ao governante em si. A palavra que designava o

1
Terra Negra, Kmt, um dos etnômios mais utilizados pelos próprios egípcios.
2
A fixação por escrito dos textos bíblicos ainda é motivo de grande controvérsia, no entanto, a maioria dos
autores concorda que só tenha ocorrido a partir de 1.200 a.C. de forma muito fragmentária; a canonização
do corpo documental conhecido como Bíblia Hebraica estabeleceu-se por volta de 400 a.C. Cf Gottwald,
1988.
3
Cf. Wörterbuch der Aegyptischen Sprache. Erster Band.

96
governante era nesu, em egípcio , comumente seguida de determinativos indicativos
do monarca tais como a figura . Também designava o monarca a palavra composta
nesu-bity, em egípcio que pode ser traduzida como rei do Alto e do Baixo Egito (lit.
aquele que pertence ao junco e à abelha). Outros termos significando majestade ou
soberano, também eram empregados. O termo per-aa só passou a ser utilizado para
denominar o faraó em si na linguagem corrente dos egípcios a partir do Reino Novo
(Schneider, 1997, p. 27) e o primeiro documento oficial de um governante utilizando-o
como título foi o sexto rei da XXIª dinastia, Siamun (978-959 a.C.) portanto, já em pleno
Terceiro Período Intermediário. Na última fase da língua egípcia, o copta, o uso da palavra
tornou-se comum para designar o próprio rei. Logo, entre os próprios egípcios a tradição
de se denominar o rei como faraó não foi usual, pelo menos não nos seus dois primeiros
milênios de história.
A tradição grega, também não se utilizou do termo para denominar o monarca
egípcio. Não há uma única menção do termo em todo o livro de Heródoto, o qual emprega
basileus para indicar os líderes egípcios. Mesmo na tradição posterior e em autores gregos
diversos não encontramos o termo faraó transcrito para a língua grega, salvo em
documentos de origem judaica. É na tradição vetero-testamentária que identificamos a
utilização do vocábulo como uma adaptação fonética da expressão egípcia per-aa,
empregado como sinônimo de rei egípcio em todo o texto. Já no primeiro dos cinco livros
da Torah, o Gênesis, o termo é utilizado desta forma (Gn, 12, 15)

Houve uma fome na terra e Abrão desceu ao Egito, para aí ficar, pois a fome
assolava a terra. Quando estava chegando ao Egito, disse à sua mulher Sarai:
‘Vê, eu sei que és uma mulher muito bela, quando os egípcios te virem, dirão:
‘É sua mulher’ e me matarão, deixando-te com vida. Dize, eu te peço, que és
minha irmã, para que me tratem bem por causa de ti e, por tua causa, me
conservem a vida.’ De fato, quando Abrão chegou ao Egito, os egípcios viram
que a mulher era muito bela. Viram-na os oficiais do Faraó e gabaram-na
junto dele; e a mulher foi levada para o palácio do Faraó.4

Mesmo a definição Egito faraônico é usada para delimitar o período de toda


história do Egito até o domínio de Alexandre, aproximadamente entre 3.200 e 332 a.C. A
partir de então inicia-se a fase conhecida como Egito Ptolomaico ou Lágida que se estende
até o domínio romano. Os romanos continuaram a tradição do título faraó nos terrítórios
egípcios para denominar o Imperador reinante. A influência desta nomenclatura é de tal
monta que faraó é aplicado indiscriminadamente, mesmo nos meios acadêmicos e entre

4
Bíblia de Jerusalém (2004) Grifo meu.

97
os especialistas, para designar o monarca egípcio em qualquer período da história egípcia.
Como o termo já está definitivamente associado à história egípcia também aqui será
empregado neste sentido mais amplo.
No mesmo processo de transmissão conceitual enquadram-se diversas ideias sobre
a civilização egípcia que marcaram a interpretação desta sociedade e de seu universo
cultural. É assim que carregamos a imagem do Egito como a “terra da servidão”,
implicando em uma visão errônea, mas comumente aceita, de que no Egito todos os
trabalhadores eram escravos. A visão bíblica, como vimos, foi o olhar dominante sobre o
universo egípcio que só pôde ser resgatado mais diretamente no século XIX com a
decifração de sua escrita a qual proporcionou a utilização de documentos e inúmeras
inscrições para o resgate de sua história. É, portanto, o referencial simbólico do antigo
testamento a base da visão geral que nossa sociedade formulou sobre o faraó. O resgate
do significado propriamente egípcio aos poucos faz-se notar mais intensamente no meio
acadêmico e de forma ainda muito sutil fora deste.
No intuito de resgatar uma visão mais diretamente egípcia, propomos um
mergulho conceitual nos diversos aspectos ligados à simbologia do faraó e sua
significação em seu meio social específico.

O Simbolismo Cósmico

Na cosmogonia egípcia o faraó é o elemento final de um processo de organização


do cosmos iniciada pelos deuses in illo tempore. Partindo da tradição heliopolitana, o
mito da criação pode ser esquematizado de acordo com a figura 1.

98
Figura 1: esquematização do mito de criação de acordo com a tradição heliopolitana.

O mito cosmogônico com os deuses primordiais é inseparável da organização da


própria terra do Egito, centro do cosmos e esta, por sua vez, só pode ser pensada como
formada, i.e. organizada no sentido primordial de criação, a partir da instituição da realeza
a qual garante a ordem social herdada dos deuses. O faraó não apenas completa o processo
de criação. Ele é a garantia da mesma. No processo de organização do cosmos, o caos
original não desapareceu e o ameaça constantemente. É a intervenção incessante dos
deuses que mantém a ordem estabelecida ab initio. Da mesma forma, a ação organizadora
do faraó, mantém a ordem social no mundo humano, ápice do processo criador.
O faraó é, portanto, não apenas o mantenedor da ordem social em seu momento
histórico, aquele que corresponde ao seu período de vida orgânica. Enquanto faraó ele é
o elo entre a ordem cósmica e a humana. Esta última só pode ser compreendida quando
inserida no todo maior que conforma o cosmos. Se o homem apresenta uma visão de
início e fim determinada pelo seu nascimento e morte, o cosmos ultrapassa esta e modifica
o sentido da vida humana acrescentando a noção de eternidade. O que lhe confere uma
visão ampliada. Nesse sentido, mundo natural e mundo social constituem-se como
aspectos do cosmos imperecível. A certeza do ciclo das colheitas, corresponde a certeza
da perenidade da vida.
5
Drioton e Vandier chamaram a atenção para o fato de que a religião egípcia
baseava-se no culto e não na crença (Drioteo e Vandier, 1952, p. 6). Quer isto dizer que
o culto, a ação, seja o elemento determinante da ordem cósmica. Conhecer os ciclos
agrários, o momento de fertilidade dos campos para uma semeadura eficaz implica em
um papel ativo dos homens para com a agricultura. A vida reproduz-se ciclicamente,
eternamente, mas, para tanto, o ato ritual deve ser repetido para tornar-se eficaz. Logo, os
atos humanos que interferem na natureza são a chave para a manutenção da harmonia
universal. Todo ato ritual perpassa o mundo social e o natural. Neste sentido, não há
separação entre as esferas da vida tais como a política, a religiosa, a econômica,
conformando assim a visão monista6 da sociedade egípcia (Cardoso, 1999, p. 24). A
atuação humana no mundo social interfere no mundo divino, assim como a atuação dos
deuses no mundo divino atinge o mundo humano. Por isso, o elemento de união entre

6
Este conceito foi trabalhado primeiramente pelas egiptólogas escadinavas Gertie Englund e Ragnhild
Bjerre Finnestad. Utilizamos aqui o conceito conforme resgatado no trabalho do professor Ciro Cardoso
que propôs o conceito para a compreensão da sociedade egípcia nos seus aspectos ideológicos e religiosos.

99
estes mundos deve existir nos dois e faraó é este elemento por excelência. É assim que o
humano perecível, que não se difere dos demais humanos até tornar-se faraó, atinge o
elemento imperecível do ser divino sem deixar ele próprio de compartilhar da finitude
humana. Aqui reside o momento da hierofania. No dizer de Eliade (s.d, p. 26): “Nunca
será demais insistir no paradoxo que toda hierofania constitui, até a mais elementar.
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa, e contudo, continua a
ser ele mesmo, porque continua a participar de seu meio cósmico envolvente.”
A importância da figura do faraó está em deter a chave de ações rituais que
organizam os dois mundos, compreendidos como um só e mesmo cosmos. Por isso a
simbologia em torno do faraó e todo ritual monárquico são elementos essenciais para a
manutenção do universo tal como o concebiam os antigos egípcios.
Os primeiros documentos nos quais podemos identificar a simbologia em torno
do faraó encontram-se nas antigas pirâmides egípcias, as quais, mais do que monumentais
obras, são também fontes de informações riquíssimas sobre a vida dos egípcios, sua
cultura e sociedade e também de sua crença. No final do Reino Antigo (2740-2198 a.C.),
as paredes das pirâmides foram preenchidas com uma série de textos rituais e mágicos os
quais constituem os chamados Textos das Pirâmides7 datados a partir de 2.380 a.C.
Estes textos foram copiados e transmitidos por toda a história egípcia, sendo
incorporados a outras tradições das épocas mais tardias. Já no final do Reino Antigo,
algumas cópias foram transcritas em sarcófagos de personagens da corte não ligados à
família real. A coleção destes últimos ficou conhecida como Textos dos Sarcófagos.
Os Textos das Pirâmides compõem o mais antigo corpo de escritos religiosos do
antigo Egito, como também da humanidade, até onde temos notícia. Foram encontrados
nas pirâmides de dez reis e rainhas na necrópole de Mênfis, capital do Egito no Reino
Antigo. Neles, a figura do faraó era o centro das inscrições rituais pois trata do destino do
rei após a morte do corpo. Apesar de toda nossa dificuldade em organizar os textos, posto
que não se constituem como uma narrativa início-meio-fim, mas antes como uma
coletânea de fórmulas mágicas, relatos míticos e rituais, é possível uma visão esquemática

7
As primeiras traduções dos textos foram empreendidas por Gaston Maspero em 1881 sob o título Les
Inscriptions des pyramides de Saqqarah, mas a obra mais conhecida e que tornou-se referência quanto à
organização, apresentação e transcrição hieroglífica dos textos foi a de Kurt Sethe Die altägyptischen
Pyramidentexte em quatro volumes, publicados entre 1908 e 1922. A numeração aqui utilizada segue esta
última. A obra de Raymond Faulkner The Ancient Egyptian Pyramid Texts, amplia o número de textos
traduzidos incluindo alguns não utlizados por Sethe. Quanto às traduções mais recentes há uma publicação
de 2013 de Wolfgang Kosack Die altägyptischen Pyramidentexte in neuer deutscher Übersetzung, que
pretende completar o trabalho de tradução iniciado por Sethe que faleceu antes de terminá-la. Baseamos
nossa tradução nos textos hieroglíficos de Sethe e comparando as traduções de Faulkner e Kossack.

100
de todos os aspectos da figura simbólica do faraó, tanto humanos quanto divinos. Os
escritos apresentam de forma frouxa uma temática repetida várias vezes, nem sempre na
mesma sequência, que passa pela reorganização física do morto e a abertura da boca aos
rituais que precedem a coroação do faraó no além. Com a coroação o faraó une-se às

estrelas, torna-se Sia


” (a consciência plena) e une-se ao Sol tornando-se o Ser
Supremo; exige seus direitos e o reconhecimento dos deuses, dirigindo-se a Rá que o
entroniza. Dotado de legitimidade após a coroação e a entronização, o faraó ameaça os
deuses e afasta todos os que se colocam em seu caminho; reconhecido e dotado de
consciência plena, fortalecido pela alimentação que lhe é reservada, ele ascende e torna-
se imperecível.
As primeiras afirmações, seguindo a organização de Sethe, constituem-se como
revelações da origem divina do faraó e da relação direta dos deuses para com ele.

Oração de Nut, a grande benfeitora:


O rei é meu primogênito que nasceu de minhas entranhas; ele é meu amado,
com quem estou muito satisfeita.(1)
Oração de Gueb: o rei é meu filho verdadeiro.(2)

Nos trechos que destacamos abaixo apresenta-se a relação entre o faraó e a ordem
universal (Maat):

“o que faz viver Maat” (1079c)


“Maat é o que faraó fala” (2290b)
“[faraó] colocou Maat no lugar de Isefet” (1775b)

Como afirmamos anteriormente, o caos ou a ameaça de desestruturação do mundo


era uma ameaça constante ao cosmos organizado egípcio. Na língua egípcia a palavra

Maat, em hieróglifos comumente traduzida pelo binômio justiça-verdade, pode


definir também a ordem e a harmonia, ampliando o seu campo semântico em nossa língua
o que dificulta sua tradução por um único termo. Como ocorre com a maioria esmagadora
dos conceitos abstratos na língua egípcia, Maat é personificada em uma divindade, no

caso, a deusa Maat que simboliza toda a ordem social e universal. No


pensamento corrente dos antigos egípcios Maat era o “alimento dos deuses” e era atributo
exclusivo do faraó a oferta deste alimento. Logo, ele era o responsável direto pela
elaboração e manutenção de Maat.
Isefet é o princípio do caos. Geralmente traduz-se em oposição à Maat e
pode ser entendido como mentira, iniquidade, mal, desordem entre outros que indiquem

101
estas idéias. Ao contrário de Maat, Isefet não possui nenhuma personificação possível
pois, para os egípcios e sua lógica monista, a representação de algo se tornava real, da
mesma forma que sua simples enunciação. Esta visão é um dos cernes para a compreensão
do universo hieroglífico e simbólico; a escrita era sagrada não apenas por ser uma dádiva
dos deuses, mas também, por representar a idéia, logo, o pensamento, fonte criadora por
excelência no universo mítico egípcio. Os elementos do universo eram intercambiáveis
pois, todos eram pensados como consubstanciais (Wilson, 1980). Isto implica em uma
identificação entre as partes do todo. Assim, a mistura de elementos como figuras
humanas com partes animais ou elementos da natureza com partes humanas expressavam
esta visão. É comum deparar-se com inscrições mutiladas por representarem animais
peçonhentos ou perigosos. Está implícito nesta atitude o cuidado em evitar que a figura
ataque o escriba trabalhando pois, poderia tornar-se viva ao ser representada fielmente.
Remetendo-nos ao substantivo Isefet, torna-se compreensível a não personificação desta
idéia.
A função primordial do faraó era, portanto, manter o universo regulado por Maat,
impedindo Isefet de se manifestar. Logo, o faraó era a garantia da manutenção do
Universo. Reportando-nos ao processo de criação do mundo, faraó era o ápice deste, mas,
deve ficar claro que o processo iniciou-se com os deuses e faraó foi criado por último
como a explícita função de assumir o trono do Egito. Isso indica o principal locus de ação
do faraó: a sociedade humana. Maat é filha de Rá e incorpora a ordem cosmogônica que
deveria se reproduzir na ordem humana. Faraó é o responsável por realizar Maat entre os
homens assumindo sua função de juiz. Ao demonstrar o caminho certo, impedia a
degradação da ordem. Se os deuses regulavam o Universo, faraó regulava o Estado e esse
equilíbrio é o que mantinha a harmonia do Cosmos.
De acordo com outros mitos, a função do faraó resultou de um momento de
desequilíbrio entre os homens (criaturas) e o demiurgo (criador). No relato conhecido
como “O livro da Vaca do Céu” nos depararmos com uma narrativa sobre a destruição da
humanidade no “tempo em que os deuses reinavam junto aos homens”, tempo mítico que
antecipava, na mentalidade egípcia, a instituição da monarquia terrestre centrada no faraó.
Eis alguns trechos8:

8
Trad. livre da autora sobre a versão alemã de Emma Brunner-Traut AltÄgyptische Märchen. München
: Bechtermünz verlag, 1998, p.101-106. O original em hieróglifos pode ser encontrado em BIFAO, 40.

102
Acontecia então que Rá brilhava, o deus que se auto-gerou e que depois
assumiu a realeza, quando homens e deuses ainda eram unidos. Então, os
homens planejaram um atentado contra Rá, pois ele tinha envelhecido.
[...]
Então, Sua Majestade descobriu o plano que os homens tinham em mente
contra ele.
Falou assim Sua Majestade ao seu séqüito :“Chamem meu Olho, e Shu e
Tefnut, e Geb e Nut, Reúnam os pais e as mães que estavam comigo quando
eu me encontrava ainda no elemento primordial, o Nun.
[...]
Venham com todos ao meu palácio, a fim de formarmos um Conselho e eu
possa retornar ao Nun de onde eu me gerei. “ [...] Disse então Rá à Nun: “Tu,
mais antigo dos deuses, do qual eu saí e vocês deuses dos primórdios. Vejam!
os homens que saíram de meu olho conspiram contra mim.Digam-me, o que
vocês fariam em resposta, pois procuro, em verdade, conselho.Não quero
matar os homens, antes de ouvir o que vocês têm a dizer sobre isto.”
[...]
Então, disseram os deuses à Sua Majestade:“Deixa teu olho (deusa) sair para
que ele os elimine [...] que ele desça como Hathor!”

Hathor, identificada com a deusa leoa Sekhmet, desceu à terra e iniciou a matança
dos homens. Após exterminar uma parte da humanidade, Rá arrependeu-se e decidiu
salvar os homens da fome voraz de Hathor enganando esta deusa ao misturar ocre à
cerveja imitando, deste modo, a cor do sangue que induziu Hathor a beber a cerveja e
terminasse por dormir.

Então assim falou a Majestade de Rá:


“Tão verdadeiro quanto estou vivo, está cansado meu coração de conviver
com os homens.” [...] “Meu corpo dorme como nos tempos primordiais e eu
não posso mais enfrentar quem quiser me atingir.”
Falou então a Majestade de Nun:“Tu, meu filho Shu, olhe por teu pai e o
proteja! E tu, minha filha Nut, carrega-o em teu dorso!”
Nut transformou-se em uma Vaca e a Majestade de Rá sentou-se sobre seu
dorso.
[...]
Os homens então falaram: “Retorna novamente para nós” [...] mas Sua
Majestade permaneceu em seu palácio, bem no alto, nas costas da Vaca. Ele
nunca mais retornou para os homens.

Este relato demonstra que os homens, na concepção egípcia, desviaram-se da


tutela dos deuses, rompendo o equilíbrio inicial da criação e estabelecendo, assim, a
necessidade do Estado regulado por Maat e regido por um faraó. Em um trecho dos
“Textos dos Sarcófagos” temos a seguinte declaração atribuída ao deus criador:

“Eu criei todos iguais e proibi a injustiça, mas, seus corações (dos homens)
transgrediram o que eu havia pronunciado. ” 9

9
Apud Assmann, 1989, p.127, tradução da autora.

103
Assim, a instituição da monarquia foi o resultado de uma segunda chance dada
aos homens. O faraó era a garantia de Maat e proporcionava o equilíbrio necessário para
o afastamento de Isefet da sociedade egípcia. Portanto, no viés ideológico o Estado
justificava-se como mantenedor da ordem social e da vida em comum. Como bem
analisou Jan Assmann (Assmann, 1989, p.126)
O Estado faraônico não era entendido então como uma instituição de força, de
violência e de sujeição (êvdout), conforme descrito no Êxodo, mas, como uma instituição
de liberação: liberação do homem da mão do homem.
Claro está que não devemos incorrer na idealização de bem-estar generalizado ou
de ausência de conflitos, mas, o que esta interpretação nos possibilita compreender é a
própria força da ideologia monárquica faraônica em sua sociedade, o que permite a
manutenção do modelo ao longo de quase três milênios de história. Um egípcio só poderia
viver sob as ordens de Maat, logo, sob o domínio do cetro de faraó, único capaz de
oferecer Maat aos deuses e à sociedade e, ao cumprir sua função plenamente, manter a
criação tal como estipulado no “primeiro dia”. Tendo por base esta concepção do Estado
e não a visão negativa carregada pelo Antigo Testamento podemos resgatar o universo
simbólico da representação e da ação ritual do faraó no universo social que o gerou.
Um outro elemento fundamental para a compreensão do faraó em seu universo
simbólico está em sua divinização. O faraó partilha do mundo humano e do mundo divino.
Não se nascia faraó, tornava-se, ou seja, o humano transformava-se em deus. A ascensão
ao divino era atingida com a coroação e a nomeação dos títulos que lhes eram atribuídos
nesse ato, os quais eram no total de cinco:

Nome de Hórus

Nome das Duas Damas ou das Duas Senhoras

Nome do Hórus de ouro

Nome do Rei do Alto e do Baixo Egito


Nome do Filho de Rá

Os três primeiros nomes apresentam as características divinas: o rei torna-se


Hórus e, assim, atinge o grau de divindade. Os dois últimos nomes são os de natureza
humana. O nome de filho de Rá era o seu nome de nascimento, o que foi escolhido pela

104
família humana; o nome de Rei do Alto e do Baixo Egito corresponde ao seu “projeto
político”, uma indicação de qual será a base de suas ações como regente. Apenas estes

dois últimos nomes são inscritos no serekh , ou cartucho10 como é mais


conhecido. É comum a interpretação de serem estes nomes protegidos por serem, na visão
dos egiptólogos em geral, os nomes mais importantes do faraó. Cremos, no entanto, que
o motivo seja outro. A necessidade de proteção destes nomes pode muito bem se dar pelo
fato de representarem o lado frágil e perecível daquele que era imperecível em sua
essência. A consequência desta divinização no imaginário egípcio não deve ser
menosprezada. Embora a sociedade soubesse que o faraó era humano e, como tal, mortal,
o Egito tinha como seu líder um deus vivo e constituía-se como uma verdadeira teofania
presente no cotidiano. A manutenção da produção agrícola e a segurança alimentar
proporcionada pela estrutura de controle do Estado, reforçavam a visão de um poder
divino regulando o universo egípcio. Esta segurança pode ser ilustrada pela citação
vetero-testamentária feita no início deste artigo: no momento de “fome na terra” os povos
dirigem-se ao único lugar no qual seguramente encontrariam alimento, o Egito.
O controle sobre a terra era, aliás a base do poder do faraó. Desde o Reino Antigo,
o controle da terra no Egito era, não apenas a base do poder político, como também a da
distinção entre aqueles que recebem ou pagam tributos, portanto da própria ordem social.
O faraó possuía o controle teórico sobre toda a terra do Egito, mas, este controle não
significava a posse efetiva de todo o território. O faráo delegava, através de doações reais,
o controle da terra e de seu cultivo a instituições, bem como a particulares uma vez que o
exercício de cargos públicos eram pagos com doações de terras. Estas últimos tinham
muitas vezes o caráter vitalício e mesmo hereditário.
É preciso lembrar que o Estado egípcio apresenta em sua evolução política uma
grande diferença em relação às demais sociedades antigas a sua volta: a centralização foi
um processo presente desde o início, o que significa um forte controle por parte da
administração central sobre os processos sociais. Os primeiros faraós estabeleceram uma
administração real capaz de manter todo o território do Egito de então. Este padrão foi
fundamentalmente seguido posteriormente. Sob um forte governo central todas as
instituições sociais nascentes tornaram-se subordinadas ao controle e autoridade reais.
Esta interpretação do Estado faraônico como árbitro no tocante às instituições e grupos

10
nome dado pelos soldados de Napoleão devido à semelhança da forma com os cartuchos de bala das
armas francesas quando da famosa Expedição ao Egito em 1798.

105
sociais desde os primórdios da história egípcia está bem resumida na formulação de Bruce
Trigger (1989, p. 50) sobre a unificação e a formação do modelo faraônico: “O governo
central, de forma direta ou através dos funcionários mais importantes, tornou-se o
empregador de soldados, criados, burocratas e artesãos, cujos bens e serviços
beneficiavam as classes altas e os deuses do Estado. [...] este modelo cultural tornou-se o
fator majoritário na promoção da estabilidade da nova ordem política.”
Esta formação sócio-política favoreceu a característica sociedade egípcia formada
por uma classe dominante ínfima em termos quantitativos em comparação com o grande
número de habitantes que constituíam o restante da população excluída deste grupo. Disto
resulta uma diferença marcante entre o Egito e outras sociedades antigas como a
mesopotâmica, ainda Trigger: “Os frutos da civilização mesopotâmica foram divididos
entre várias cidades-estados e entre vários grupos dentre estes centros urbanos. Em
contraste, os frutos da civilização egípcia foram absorvidos no interior da corte real e, de
forma mais contrastante, tal como a ênfase nos complexos mortuários reais demonstram,
na pessoa do rei.”
A ideologia monárquica em torno do faraó possuía, portanto, uma sólida base em
sua realidade material. O funcionamento do Estado como provedor e mantenedor do
sistema social que garantia a segurança alimentar era a contrapartida da exploração
consentida por parte da maioria esmagadora da população.

Conclusão

O faraó era provedor, guerreiro e protetor do Egito. Como partilhava da dupla


natureza, humana e divina, era sacerdote por excelência, único autorizado a cumprir o
ritual para com os deuses sendo ele próprio a própria encarnação do deus e concentra
todas as funções responsáveis pela manutenção da ordem e pela integridade do Egito,
concebido como o centro do mundo.
Devemos também notar que essa função protetora do guerreiro faraó nada mais
significava do que a atribuição de legitimidade social do uso da violência por parte do
Estado egípcio, simbolizado no faraó. O faraó não apenas defende, ele também mantém
a ordem social o que implica em uma imposição de normas e critérios que configuram
esta ordem social por ele imposta sobre o contingente populacional do Egito Antigo. As
representações do faraó guerreiro empunhando as armas e massacrando seus inimigos era

106
feita para a leitura de seus pares antes de se constituir como aviso para seus opositores
externos.
O ritual em torno da realeza procurava, assim, representar simbolicamente as
funções atribuídas ao monarca perante sua sociedade.

Bibliografia

Fontes

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KOSACK, W. Die altägyptischen Pyramidentexte in neuer deutscher Übersetzung. Berlin:
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Photographien des Berliner Museums. Leipzig : J. C. Hinrichs'sche Buchhandlung .1908 –
1922 disponível em:
https://www.lib.uchicago.edu/cgi-in/eos/eos_title.pl?callnum=PJ1553.A1_1908_cop3
(acessado em 31/05/2016, 22:42)

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Cairo Press, 1995.
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Fondo de Cultura, 1980.

107
3

O Festival-Sed: reflexões e abordagens

Julio Gralha

O Festival-Sed

No Egito Antigo podemos encontrar diversos rituais mágico-religiosos que


promoviam a legitimidade divina e temporal do rei. Alguns se perdem nas brumas do
tempo e aparentemente, de alguma forma, foram realizados durante o período pré-
dinástico. Infelizmente o registro de tais práticas pré-dinásticas não é claro, mas podemos
fazer tal inferência. Entre estas cerimônias podemos citar um tipo de ritual de coroação
e, sobretudo, o festival-sed que levado a efeito pela realeza egípcia em determinados
períodos garantiria a manutenção da legitimidade do poder da realeza faraônica, da
ordem social e cósmica.
Este festival ocorria normalmente no mesmo período da cerimônia de coroação
no primeiro dia, do primeiro mês (Tebi) da estação Peret1 e levava cinco dias e não tinha
ligação com os ritos de Osíris que ocorriam nos últimos cinco dias mês precedente - Koiak
(Frankfort, 1978, p. 79).
Datar sua origem seria praticamente impossível, mas parece ter como berço o
Egito pré-dinástico, uma vez que pode ser atestado na 1 a dinastia no reinado de Den
(2879-2832 a.C.) e ao que parece, de forma estruturada.
De acordo com Dochniak (1991, p. 53) citando Bleeker (1967, p. 97), o ritual
parece ter suas origens pelo menos no período inicial dinástico e se manteve popular
durante a História egípcia tornando-se cada vez mais extravagante.

1
O ano egípcio era formado por três estações de quatro meses de 30 dias: Akhet, Peret e Shemu. Ao final
de Shemu eram acrescentados mais cinco dias.

108
O Heb-Sed, ou festival-sed era também conhecido como jubileu, e como festival
dos 30 anos durante o período ptolomaico. Além da regeneração e revitalização do rei, o
ritual reafirmava a cerimônia da coroação e permitia ao soberano novo alento para
governar e manter o caos afastado do Egito por mais um ciclo, permitindo assim; vida,
prosperidade e saúde as Duas Terras! A contribuição de egiptólogos de diferentes
períodos nos parece importante neste momento.
Frankfort (1978, p. 79) 2 faz o seguinte relato acerca do festival-sed: “O festival-sed
é normalmente chamado de jubileu, mas não é uma mera comemoração da ascensão do rei. É de
fato a renovação da potencialidade do rei, é o rejuvenescimento da governança.” Dochniak
(1991, p. 53) também ressalta que: “ Indubitavelmente, um dos mais importantes festivais da
realeza foi o sed. Foi através dos ritos do misterioso heb-sed (heb significa festival) que o poder
do rei foi renovado e rejuvenescido.” Gohary (1992, p. 1) ao analisar o festival-sed de

Akhenaton, verificou que “O propósito para o qual o Sed-festival foi prescrito parece ter sido
a renovação simbólica do poder da realeza (capacidade de governar) Esta concepção está baseada
na natureza dos ritos envolvidos.”
Segundo Hornung & Staehelin o Heb-Sed era um festival de regeneração
celebrado após um reinado de trinta anos (Apud Degreef, 2009, p. 27). Degreef defende
que as razões ou os significados deste ritual de caráter individual não estão claros.

O Festival dos 30 anos?

Com relação à realização do ritual após os trinta anos, ou que o festival-sed fosse
necessariamente levado a efeito aos trinta anos de reinado tem sido algo aceito, mas
existem críticas a este respeito. Durante o período ptolomaico (305-30 a.C.) tal cerimônia
ficou realmente conhecida como o festival dos 30 anos o que pode denotar a manutenção
de uma prática faraônica.
Salvador Costa (2006, p. 61) ressalta que:

Nós devemos ter em mente que, de um modo ou de outro, todos os soberanos


que ascenderam o trono do Egito expressaram o desejo de serem capazes de
realizar muitos festivais-sed. Este desejo parece estar relacionado com a
duração de sua vida e seu reinado, em outras palavras, suas expectativas que
cobrem o período de 30 anos que marcam uma geração. Após este período de
30 anos a energia vital do rei tinha que ser renovada de modo a garantir sua
capacidade de manter a ordem cósmica estabelecida a qual era sua principal
responsabilidade diante dos deuses desde o momento que ascendeu o trono.

2
A primeira edição data de 1948.

109
Gohary (1992, p. 3), tomando por base as pesquisas de Kurt Sethe, parece
concordar que não haveria uma conotação mágica para os 30 anos. Talvez devêssemos
procurar nas práticas culturais e sociais possíveis relações que suportem o discurso de
Jocelyn Gohary e Kurt Sethe. O ponto de partida seria fazer um paralelo com a
iconografia egípcia do templo ou a iconografia funerária, pois na grande maioria das
vezes, o faraó é representado jovem, em sua plenitude física, e ao que parece com menos
de 30 anos.
Assim sendo, uma possibilidade é que esta plenitude teria seu ponto mais extremo
por volta dos 30 anos que seria o ápice do poder e experiência do faraó e a partir deste
momento tais faculdades e poderes tenderiam ao declínio. De forma mítica, o 30º ano de
reinado seria o ápice e também o início do declínio do reinado. Esta proposição daria uma
expetativa vida alta para o rei. Ou seja, algo em torno de 50 anos.
Uma segunda possibilidade seria perceber que os 30 anos representariam uma
geração. De fato, proposição bem aceita pela comunidade cientifica. Entretanto
poderíamos levanta a seguinte questão. Mesmo que significasse uma geração qual a razão
de 30 e não 25, 35 anos? Neste sentido, talvez a expectativa média do egípcio antigo tenha
sido algo em torno dos 30 anos. Os estudos sobre a expectativa de vida no Egito faraônico
não são conclusivos, mas seria uma possibilidade. Por outro lado, às pesquisas sobre o
Egito Ptolomaico e Romano, aparentemente, apresentam melhor documentação.
Poderíamos pensar então que provavelmente a realeza tivesse uma expectativa de
vida um pouco maior devido às condições melhores de vida. Todavia se fizermos um
breve levantamento dos reis do Reino Novo (1550-1070 a.C.) poderemos verificar que de
31 monarcas apenas cinco ultrapassaram os 30 anos de reinado e provavelmente os 30
anos de vida – Tutmés III, Amenhotep III, Ramsés II, Ramsés III e Ramsés IX – ficando
o restante, em média, por volta dos 15 ou 20 anos de reinado.
Apenas como exercício (de forma hipotética), tomando por base o Reino Novo
(1550-1070 a.C.), se um jovem monarca assumisse o trono (incluindo aqui o período de
co-regência) por volta dos 12 anos teria 42 no festival-sed, mas uma grande parte dos
monarcas não chegava aos 30 anos de reinado, ou seja, falecia antes de completar 30 ou
35 anos de vida. De fato, aproximadamente 74% dos monarcas faleceram antes de
completar os 30 anos de reinado.
Seria possível que os 30 anos do festival-sed tivessem relação com a expectativa
de vida média do egípcio? Todavia, ao longo dos quase 3000 anos de história do Egito

110
Antigo as condições de vida sofreram variações, e assim sendo, é possível que durante o
Reino Novo esta expectativa de vida tenha sido diferente em relação a outros períodos.
Então como estabelecer que os 30 anos teriam uma clara relação com uma geração?
Outra linha de pesquisa se relaciona a possibilidade de que o festival dos 30 anos,
para além de uma relação com os 30 anos do ciclo de vida, tenha também uma perspectiva
simbólica e mágica ao contrário do que defendem Gohary e Sethe. Ou seja, haveria um
significado simbólico ou mágico-religioso do número 30 para o egípcio antigo?
Infelizmente ainda não temos uma resposta clara.
Outro caminho são os frágeis estudos que relacionam o Ciclo Sothiaco de 1460
anos (Sothic Cycle – O ciclo da estrela Sírius) ao festival-sed e os 30 anos. Desde o início
do século XX, com o desenvolvimento da teoria do Ciclo Sothiaco por Eduard Meyer
(1904) da Escola de Berlin pesquisadores tem desenvolvido pesquisas nesta linha. Bem,
as pesquisas continuam...

Razões para Realização do Festival-Sed

De um modo geral é “dito” que tal ritual deveria ser realizado a partir do 30o ano
de reinado, e daí por diante, de três em três anos. Uma breve análise já apresentada indica
que, em boa parte, se não na maioria, o festival-sed era realizado bem antes. Desta forma
algumas possibilidades poderiam então ser enunciadas:

1. Problemas de saúde poderia levar a realização do festival-sed de modo


regenerar o monarca como no caso Amenhotep III que realizou dois
festivais pouco antes de falecer.
2. O envolvimento em grandes ações, projetos político-religiosos de grande
impacto e momentos de dificuldades poderiam levar a realização deste
ritual. Hatshepsut que assumiu o Egito como faraó o fez bem antes dos 30
anos. Akhenaton realizou três festivais antes de completar 10 anos de
reinado e antes da reforma ao que parece.

Isto, por si só, denota então o grau de poder mágico-religioso que era atribuído ao
ritual além do poder simbólico gerado no imaginário cultural e social, sobretudo em certos
segmentos (os segmentos sacerdotais e da elite mediana, por exemplo).

111
O festival-sed além de representar o rejuvenescimento de uma geração ou um
ciclo de vida, teria também um aspecto mágico-religioso e simbólico. Tal ritual teria como
possibilidade trazer a essência e o poder da juventude para um rei com idade avançada e
desvitalizado. Mas também permitiria ao rei (ainda pleno de saúde) ampliar seu poder
(temporal e divino) e vitalidade de modo a levar a frente seus projetos de governo e
grandes ações. De fato a dar respostas culturais e sociais, e estabelecer formas de
legitimidade diante dos diversos segmentos sociais. A monumentalidade do ritual e sua
preparação por si só poderia estabelecer um imaginário social levando a certa hegemonia
de poder pela realeza.
A importância do ritual pode ser verificada a partir de uma análise comparativa
entre a inscrição do primeiro festival-sed de Amenhotep III (c.a 1370 a.C.) e aquele
realizado por Osorkon II (c.a. 865 a.C.) ao comemorar vinte e dois anos de reinado, quase
500 anos depois. A inscrição se encontra em seu templo situado em Bubástis. De fato, o
texto deste último serviu de base para recuperar a narrativa do primeiro conforme Galán
(2000, p. 255). A manutenção dos decretos, as passagens do texto e do cerimonial
parecem ser fórmulas que deveriam ser repetidas e organizadas com base no deus
dinástico em questão (em algumas passagens temos Amon e em outros rituais o deus
Ptah).

A Morte Ritual do Rei

Se pensarmos na possibilidade de uma morte ritual do rei idoso no período pré-


dinástico, o festival-sed transformaria este ato em algo simbólico. Assim sendo, seria a
solução para evitar a morte ritual de um rei fraco devido à idade avançada e, por
conseguinte, não teria condição de manter as forças caóticas distantes estabelecendo
assim a ordem. Outrossim, uma saída para este dilema seria a coregência.
Se em algum momento o monarca foi assassinado ritualisticamente não parece
haver qualquer indício, apesar de haver discussões neste sentido. Segundo Emery (1961,
p. 108): “A ele (o rei) não era permitido falhar seja por velhice seja por doença. É provável que
em tempos primitivos se o rei mostrasse sinais de falha no seu poder o mesmo seria removido por
morte.”
Os primeiros estudos sobre o assassinato do rei levam em conta as análises de
James Frazer (1890), por exemplo. Frazer analisou o assassinato do rei (regicida), entre

112
os Shilluk na região sul do Sudão como uma forma de evitar grandes desastres em função
do rei está doente ou Senil.
Dada a proximidade entre o Sudão e o Egito, e supondo que tal prática tivesse
raízes milenares seria possível, então que naquela região, alguns grupos sociais adotassem
a prática de execução do rei de forma ritual e logo em seguida coroando um novo rei de
modo a evitar que as forças caóticas tomassem o reino e a comunidade. Assim sendo,
seria uma prática cultural e coletiva do uso da morte como elemento de superação de
possíveis desastres.
Em conformidade com esta proposição é possível que grupos sociais do Egito Pré-
dinásticos fizessem uso desta prática, e com o passar do tempo, com o desenvolvimento
estrutural e complexo das sociedades locais tenham sido criadas práticas mágico-
religiosas que poderiam alimentar o imaginário social destes grupos ao ponto de
definirem como não necessária à execução do rei.
Dois elementos do festival-sed são importantes. O primeiro diz respeito à ideia
que o rei jovem e saudável mantem a ordem e afasta as forças caóticas (a carecia levaria
a execução do rei). O segundo que, em um dos momentos do festival-sed o rito se
desenvolve na tumba e da qual o rei sai em direção ao dia revitalizado e rejuvenescido.
Simbolicamente entraria morto e sairia ressuscitado? Se for assim não precisaria ser
executado, sendo substituído de morte natural. Mesmo doente festivais-seds seriam
realizados até a sua morte natural. Talvez o contato com outros grupos da região, e
mesmo de fora do continente, pode ter contribuído para essa mudança de pensamento.
O fato é que não há indícios sobre estes processos e tais argumentações
permanecem no campo das hipóteses com poucos elementos de fundamentação.

As Fases do Festival-Sed

O festival-sed era provavelmente um dos mais significativos rituais conduzidos


pelo soberano e neste sentido ações eram necessárias. Segundo Upihill (1965, p. 368-
369), tomando por base o levantamento feito por Naville (1892) ao estudar o festival-
sed de Osorkon II, era necessário a construção de palácios, um salão do festival e, em
certos casos o erguimento de obeliscos (como no caso de Hatshepsut em Karnak por
exemplo). Frankfort (1940, p. 80) relata que: “Frequentemente um novo templo era
fundado em vista da dedicação deste para o festival. Em outros casos um Salão do Festival
(Festival Hall) era construído em um precinto de um santuário. Um grande obelisco

113
monolítico era escavado da pedreira de granito de Assuã e embarcado até o local do
festival.”
Uphill (1965) define algumas etapas levadas a efeito antes e durante o festival-
sed. Assim sendo tomaremos por base este modelo de forma concisa e acrescentaremos
outras possibilidades, uma vez que tais fases podem ter variações:

1) Preparação para o festival-sed


Alguns anos antes do festival-sed ser levado a cabo era necessário que a tumba
real, certos santuários estivessem preparados. Além disso, os relevos com inscrições e
fases do ritual deveriam estar preparadas. Para isso uma força de trabalho substancial
deveria ser convocada. Artesãos, escribas, supervisores, operários, sacerdotes entre tantos
estariam trabalhando. Desta forma percebemos que o festival deveria ser planejado com
alguns anos de antecedência.
Além destas construções palácios (em adobe) e templos (sempre em pedra) eram
planejados e construídos. Em alguns festivais-sed obeliscos eram preparados e deixavam
em barcas as pedreiras de Assuã e seguiam centenas e centenas de quilômetros até
Karnak.

2) A proclamação do festival-sed e a aparição do rei


O rei aparece pela primeira vez e faz oferendas a diversas divindades e procissão
é formada. Diante da procissão um sacerdote ou um sábio do pr-ankh (casa da vida, de
fato o lugar que contem os textos mágicos, religiosos e científicos) carregando
documentos ou rituais da continuidade ao festival, diversos outros sacerdotes ou magos
também estão presente. O cortejo então chega ao primeiro pavilhão denominado pr-wr (a
grande casa). A procissão possui diversos membros, existe aquele que carrega partes de
um touro, outros carregam tecidos, outros também parecem entoar cânticos ou palavras
de poder, ou somente gritar. Os familiares e rainha também seguem no cortejo. No pátio
do templo ritos são executados pelos sacerdotes leitores. Os seguidores ou companheir os
de Hórus (Smsw Hru) aparentemente estes carregam os estandartes dos nomoi
(províncias) e do Sul e do Norte.

3) Procissão para o palácio do festival-sed

114
A procissão continua até o palácio no qual diversos ritos são executados. O rei
faz oferendas aos deuses dos nomoi. Apesar de haver uma variação na quantidade de
nomoi em função do período é comum se pensar em 20 províncias ao norte e 22 ao sul.

4) Segunda aparição do Rei e a garantia de oferendas.


O rei passa por diversos encantamentos e diversas divindades, tais como: Thot,
Hórus, Merit entre outras são invocadas ou representadas. Merit representa os Milhões de
Anos. Um momento importante para a revitalização do rei.

5) Ritos secretos na tumba real


Nesta fase o sacerdote sem executa o ritual; diversas divindades são apresentadas.
As divindades do mito de Heliópolis são representadas (Ra, Atum, Shu, Tefnut, Geb, Set,
Isis e Nephthys). Aparentemente na tumba o rei renasce, é acordado e torna-se disperso.
Supera assim a morte para um novo ciclo.

6) Erguimento do pilar Djed e conclusão dos ritos no complexo funerário


Este rito concretiza o renascimento do rei. O pilar Djed, a coluna vertebral do rei
é erguida. Agora ele está sobre seus dois pés e pode sair à ao dia. É a vitória sobre a morte,
é a vitória de Hórus sobre Seth. O rei deve então demonstrar seu vigor fazendo quatro
corridas cerimoniais aparentemente em torno do complexo.

7) Cerimônias concluídas na cidade e no templo


A procissão retorna a cidade e o festival-sed é concluído no templo. O rei usa a
dupla coroa e ainda deve estar usando a pele de touro que havia sido sacrificado para este
fim.
De um modo geral, de forma resumida, temos o festival-sed que é a superação da
morte e do caos. Em duas dimensões a superação deve ocorrer. No templo, as palavras de
poder, as oferendas e os ritos parecem levar a superação das forças caóticas representadas
pela contenda entre Hórus e Seth.
Em outra dimensão, o rei, por meio da sua tumba, transpassa o mundo dos vivos
e mortos para renascer em seu próprio corpo e seguir em direção à luz. Ou seja, uma
ressureição simbólica (não confundir com processos de reencarnação, que aparentemente
não são claros na espiritualidade e religiosidade faraônica).

115
O Festival-Sed de Akhenaton

Os festivais realizados pelo faraó Akhenaton podem ser considerado um exemplo,


ou uma possibilidade de uso deste tipo de ritual de modo a ampliar o poder e a vitalidade
para ações de grande impacto.
Para este faraó, que pretendia fazer uma mudança de eixo dinástico e prática
religiosa, – de Amon-Ra para um deus genuinamente solar, neste caso Aton – o festival-
sed fortaleceria a natureza dual, sobretudo a parte divina do rei.
Era necessário que o faraó Amonhotep IV deixasse de existir e se transformasse
em Akhenaton, que deveria estar revitalizado para levar a cabo as transformações do seu
programa de governo, que em parte contava com a construção, em Karnak de quatro
templos dedicados a Aton, além da cidade de Akhet-Aton.
Defendemos também que era importante refazer a cerimônia de coroação tendo,
como deus que concede o trono das Duas Terras, Ra-Harakhy na forma de Aton e não
mais Amon-Ra. Em vista desse aspecto, seria necessário, um ritual ou cerimônia que
procedesse à morte simbólica do monarca, que revitalizasse o monarca, e fornecesse
legitimidade ao novo deus dinástico e primordial. 3
Esta cerimônia deveria também fornecer a autenticidade à titulatura do rei, uma
vez que esta continha a descrição de como o monarca agiria, uma espécie de plano de
governo.
Se a teologia de Amarna já estava em andamento, consequentemente o festival-
sed de Akhenaton deveria ter algumas especificidades. Neste contexto, tomando por base
os estudos de Donald Redford (1987), Jocelyn Gohary (1992) e Erik Hornung (1999),
podemos analisar algumas destas especificidades.
O festival-sed consistia, em parte, numa procissão que tinha início no palácio,
onde o rei, em um palaquim ou plataforma, que tinha, uma espécie de cesta cujo formato
era o hieróglifo heb, se dirigia para o templo, seguido, à pé, pela família real, diversos
tipos de sacerdotes, membros da burocracia, nobres, músicos, carregadores de produtos
etc. No caso de Akhenaton, tanto ele quanto a rainha e filhas também foram carregados
em uma espécie de liteira ou palaquim.

3
Para uma discussão mais aprofundada ver (Gralha, 2002).

116
Com relação às oferendas aos deuses, aparentemente isso tornou-se reduzido ao
deus Aton. É possível identificar nas talatats que ao fazer oferendas aos nomoi
(províncias) só o deus Aton está representado.
O festival-sed de Akhenaton contém cenas mais livres em expressão do que o
formalismo dos anteriores. Além disso, as procissões parecem ter sido aumentadas,
ganhando importância (Gralha, 2002).
No primeiro festival-sed, podemos perceber que a religião de Aton ainda não
estava totalmente desenvolvida, assim como o estilo artístico de Amarna. O alongamento
do crânio já pode ser notado, mas os exageros nas formas dos anos seguintes ainda não
são visíveis. Apesar de rápida, a mudança foi gradativa. Desta forma, o festiva-sed de
Akhenaton demonstra diversas formas possíveis de legitimar as ações do monarca, o deus
e a estreita ligação entre eles diante dos segmentos sociais egípcios (Gralha, 2002).

Considerações Finais

No presente capítulo nossa intenção foi refletir de forma preliminar sobre duas
situações relativas ao festival-sed que têm sido pouco exploradas.
A primeira se remete aos 30 anos de reinado como sendo o momento para
realização deste ritual. Com a nossa breve exposição argumentamos que esta proposição
parece carecer de indícios sólidos. A razão para os 30 anos poderia estar relacionada a
uma geração ou ciclo de vida do egípcio antigo; ao ápice do tempo de vida e consequente
declínio; a um tipo de simbolismo mágico-religioso do número 30 para os egípcios; e
finalmente uma relação astronômica com o Ciclo Sothíaco (Ciclo da estrela Sírius). Esta
proposição tem sido considerada frágil, mas tem apoio de pesquisadores alternativos.
A segunda situação diz respeito à morte ritual do rei que por falta de artefatos e
indícios parece ter sido pouco explorada. Talvez também haja certo protecionismo no
sentido de negar que a sociedade egípcia primitiva seria capaz desta prática. De fato,
poucos pesquisadores parecem apoiar tal possibilidade. Neste capítulo tentamos refletir
sobre as possibilidades. Enfim, esperamos que as reflexões e abordagens possam ser úteis
aos leitores e pesquisadores.

Bibliografia

117
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118
Parte IV

O Egito e o Diximo ma Visão dos Modermos

119
1

Deuses do Antigo Egito: uma visita a Jaroslav Šerný (1898-1970)

Margaret Marchiori Bakos

Jaroslav Šerný foi uma pessoa estudiosa, metódica, cujos hobbies e prazeres são
pouco conhecidos. Ele nasceu no dia 22 de agosto de 1898, em Pilsen, na região da
Bohemia, na Austro-Hungria.
Seu pai era um funcionário do serviço de correios; da mãe, nada se sabe, exceto
que teve outro filho, além de Cerny. Ele estudou desde 1917, na Charles University em
Praga, onde conquistou o seu doutorado em 1929. Viajou, pela primeira vez para o Egito,
em 1925, quando começou sua longa amizade com Bernard Bruyère (1879-1971) e seu
amor pelo trabalho de decifração das ostrakas1, em Deir el Medina, o foco de seus estudos
para o resto de sua vida, por mais de meio século.
Por razões políticas, foi para Inglaterra, em 1946, onde foi professor de
Egiptologia no University College, e, de 1951 até 1965, professor de
Egiptologia na Oxford University.
A sua especialidade era o hierático, o Novo Reino e a Literatura antiga egípcia.
Morreu em 29 de maio de 1970, em Oxford, Inglaterra.
Entre as mais importantes obras que escreveu, duas foram publicadas post-
mortem. Salientamos “A late Egyptian Grammar”, que teve três edições e “A community
of workmen at Thebes in the Ramesside Period”, que é, sem dúvida, o melhor livro sobre
a Vila de Deir el Medina, na ótica do cotidiano. Finalmente, ele recebeu a maior das
homenagens que um pesquisador pode desejar: o reconhecimento de todos os bons
orientalistas do mundo contemporâneo, como um egiptólogo inigualável quanto ao seu
1
Ostrakas: palavra grega para os pequenos fragmentos de cerâmica usados pelos escribas antigos.

120
olhar humanista, portanto, como um historiador, por conta de suas qualidades únicas de
arqueólogo e filólogo e como o “pai da ostracologia”!
Resolvi escrever este capítulo com dois objetivos. O primeiro, mostrar e
multiplicar o olhar respeitoso de Cerny para com a religião e os deuses dos Antigo Egito,
e, em segundo, divulgar este livro que é pouco conhecido no Brasil: “Ancient Egyptian
Religion2. Acho importante contar, ainda, como fui apresentada a este livro. O fato se deu
em 1988, na magnífica Biblioteca de Egiptologia do University College London, quando
perguntei ao meu orientador, o ilustre professor doutor Geoffrey Martin sobre qual livro
de religião egípcia ele me indicaria.
Geoffrey Martin, ocupava, à época, o mais elevado posto da Egiptologia
britânica: Edwards Professor 3 do University College London. Ele pensou, passeou breves
minutos por entre as estantes e me trouxe o livro de Jaroslav Cerny, afirmando que,
embora o livro fosse sem referências bibliográficas – e os egiptólogos as adoram –, ele o
considerava o melhor sobre o tema, porque as informações vinham da vida prática de
arqueólogo, filólogo e, principalmente, do historiador, e levavam à compreensão do
significado da religião para os antigos egípcios, sendo raros os livros com este objetivo
no tema!4
Diante do texto de inglês impecável, mas de difícil vocabulário de cinquenta anos
atrás, meu primeiro projeto foi a tradução total; depois, formulei questões e respostas,
como em uma entrevista com o autor para, com suas palavras, dialogar informalmente
com o leitor.

Havia uma religião nos tempos Paleolíticos?

Ao longo dos tempos pré-históricos “inexiste uma religião inspirada na emoção”,


porque escrever é o único meio de o homem expressar seus sentimentos. Nenhum outro
produto da cultura humana pode testemunhar a elaboração de crenças religiosas”. (1951,
p. 13)5.

2
Ancient Egyptian Religion, London 1952 (1952, 1957).
3
Este posto foi criado quando da morte de Amelia Edwards da Egypt Exploration Society em 1892.
4
Graças à influência dos gregos, diz Jaroslav Cerny, a religião egípcia era pouco considerada e entendida.
5
Entendo que este conceito de religião é a primeira lição deste livro.

121
Nos tempos pré-históricos egípcios, ou seja, anteriores a 3200 a.C., encontram-se
os períodos chamados de Tasiano, Badariano e Nagadiano; do rei “Escorpião”, seguidos
do período protodinástico (3200 a 2800 a.C.).
Na primeira fase há homens estabelecidos em comunidades próximas ao rio Nilo
e há, além de vestígios de agricultura e de armas, uma maior evidência de crenças
religiosas que vem das tumbas nos cemitérios (1951, p. 14). Assim, criaram-se muitos
mistérios, como por exemplo, entender a posição dos corpos e o sentido da morte que,
possivelmente, era imaginada como um momento de descanso ou sono (1951, p. 15). A
prática de deitar o corpo com a sua cabeça apontando para o Norte, pode ser creditada a
tantas coisas. Por exemplo, ao fato, conhecido por certos textos religiosos antigos, de que
as almas dos mortos, se dizia, viviam entre as estrelas no Norte, o que poderia ser uma
memória da cultura de Merimde-Benisalame, no Baixo Egito, contemporânea do período
Tasiano.

Como você explica o surgimento dos deuses egípcios?

“Poucas informações podem ser colhidas sobre ideias funerárias nos primeiros
tempos (1951, p. 17), exceto que os deuses eram muito numerosos, mas somente Min, de
Koptos, (1951, p. 17) pôde ser identificado, em potes de barro e em uma paleta usada para
pintura de olhos em uma tumba em el-Amrah dos meados do período de Nagada” (1951,
p. ix).
Há evidências, no entanto, de culto a animais, nesses períodos anteriores, porque
foram encontrados cemitérios de chacais, touros, carneiros e gazelas cuidadosamente
enrolados em esteiras ou lençóis (1951, p. 17), ainda da fase da civilização Badariana,
anterior à Nagada.
Uma série de paletas cerimoniais e bastões de comando dos finais do período pré-
histórico e inícios da época dinástica mostram isto em relevos representativos de fatos
históricos ou semi-históricos (1951, p. 17). Tais relevos funcionam como claros exemplos
de estandartes, que têm um significativo lugar na composição geral das paletas.
Estandartes semelhantes foram usados nos tempos históricos com os nomes dos
distritos ou nomos, como esses espaços urbanos foram chamados pelos gregos. Eles
seriam os remanescentes das antigas e independentes cidades-estados que aglutinaram os
dois reinos do Alto e Baixo Egito, cujo número variou de cerca de 22, para o Alto Egito
e 20, para o Baixo.

122
No início, surge uma hoste de deuses. Gradualmente, com a escrita, as fontes
começam a se multiplicar e eles podem se distinguir uns dos outros pelos seus nomes,
festivais e localidades de onde eram provenientes, ou seus cultos. Além dessas
características externas, é difícil determinar suas naturezas singulares. As fontes do Velho
Reino são silenciosas sobre isto, então, elas devem ser buscadas em datas menos antigas,
ainda assim tão precoces como o final da Vª Dinastia (2580-2440 a.C.), quando
informações valiosas são supridas pelos “Textos das Pirâmides”.

Como você caracteriza o papel desses primeiros deuses?

Eles foram “frutos de uma intrínseca e forte união entre política e individualismo
religioso, que apareceram de mãos dadas nos tempos pré-históricos” (1951, p. 19). Cada
localidade tinha os seus deuses com seus nomes próprios. Nestes primeiros tempos, a
religião era fetichista 6. A divindade local era “o deus da cidade” e ele figurava nas
inscrições como a maior autoridade reconhecida pelos seus habitantes: o senhor absoluto
da cidade. Se o número de habitantes decrescia com o tempo, alguns deuses podiam ser
esquecidos e, muitas vezes, absorvidos por deuses de lugares de menor importância. Em
outros casos, duas divindades similares no caráter podiam se fundir em uma só” (1951,
p. 19). “É impossível fazer o esboço de uma pintura ou crença com uma lógica uniforme
e todos os detalhes válidos para o Egito como um todo, porque tal crença uniforme não
existe” (1951, p. 39).
A religião egípcia não é a criação de um simples pensador, mas um resultado de
política local e divergências culturais e há, sempre, uma forte e suficiente força no Egito
para eliminar todas as crenças locais ou para uni-las em um sistema teológico igualmente
ligado a egípcios de todas classes e lugares. (1951, p. 39).
Devido ao poder temporário político, econômico e cultural de sua cidade, de seu
sistema religioso, terminam por serem aceitos além dos limites de seus lugares de origem,
mas isto não significa que as crenças dos lugares que eles invadiram vão abrir mão dos
seus. Ao contrário, o novo sistema quase sempre vai se impor sobre o velho, de tal forma
que o deus ou deuses do velho sistema serão identificados com os novos (1951, p. 39)7.

6
Culto de objetos materiais considerados como encarnação de um espírito.
7
Hoje, poderíamos dizer que, no entendimento de Jaroslav Cerny, ocorriam vários processos de
transculturação como explica Fernando Ortiz, nenhum Deus perdia suas características; elas eram somadas
pelos crentes. Ver: Rama, 1994, p. 33.

123
“Identificado” não é, possivelmente, a melhor expressão. É, talvez, mais acurado
dizer que, paulatinamente, o velho deus começou a ser visto meramente como uma outra
forma do novo, ou como uma parte de outro aspecto dele ou como sendo contido nele
(1951, p.39).
Que essas ideias possam ficar vagas e mal definidas é evidente: estão todas acima
do entendimento humano e dos egípcios. Com a sua geral falta de definição e de
pensamento lógico racional, pouca poderia ser a expectativa por uma sequência clara de
eventos e definições sobre esses assuntos (1951, p. 39).
Seria injusto para com os egípcios, diante do número enorme de divindades que
primeiro apareceram em forma de animais e objetos, que eles consideravam como deuses.
Essas crenças foram-lhes imputadas pelos gregos e por essas convicções eles foram, mais
tarde, ridicularizados, desprezados e perseguidos pelos cristãos (1951, p. 40). “É obvio
que nenhuma mente, por mais primitiva, pode considerar objetos, animais ou mesmo
humanos como mais do que uma manifestação visível ou sede de uma abstrata força
divina? ” (1951, p.40).

Então, por que adoravam esses seres criados por eles?

Ora, os egípcios, como quaisquer outros seres humanos, procuravam entrar em


contato com a força sobrenatural, e viam que a melhor maneira era escolhendo alguma
coisa concreta e facilmente visualizável, um ponto de encontro, dos atributos de uma
personalidade. Vou explicar melhor, usando as palavras de Alan Gardiner 8:
É preciso, sem dúvida, admitir que os iletrados e primitivos camponeses egípcios
podiam em qualquer época ter tomado essas divindades de uma forma mais literal do que
eles tencionavam. A concepção das pessoas comuns sempre tende a dar forma material
para as ideias mais abstratas do que os indivíduos letrados e pensantes que constituem a
classe que dá uma forma mais definida para sentimentos religiosos um tanto vagos. (1951,
p. 40).

Como são representados os animais nessa época?

8
Alan Gardiner (1879-1963) egiptólogo britânico que convidou Jaroslav Cerny para trabalhar na Inglaterra,
onde Cerny conquistou o mais alto cargo na Egiptologia do país.

124
Alguns animais são representados como seres vivos, enquanto outros são
colocados em pedestais, enfeitados com cetros, coroas ou plumas, ou estilizados de várias
maneiras, e eram, consequentemente, considerados como ídolos feitos de pedra, madeira,
argila ou metal. Estátuas de deuses, no entanto, devem ter existido mesmo neste período
remoto.
Os animais selvagens, embora avidamente caçados, eram olhados com especial
admiração e respeito por conta de sua grande força e ferocidade; o leão e o touro selvagem
aparecem nas paletas do último período pré-histórico e na paleta de Narmer como
símbolos de um vitorioso rei deificado destruindo os inimigos. É a leoa que melhor
aparece, na verdade, como uma divindade que tem vários nomes, conforme o sítio (1951,
p. 20).
Animais domésticos, como uma classe, são representados de diferentes maneiras
de culto; touros, carneiros impressionavam os camponeses pelo seu poder reprodutivo e
as vacas, pelos cuidados maternos. O culto ao touro Hapi (grego Ápis) começou na 1ª
Dinastia. Há uma antiga identificação com a deusa Hathor de Dendera e é incerto qual
deles, se algum, é representado com cabeça humana, com orelhas e chifres na paleta de
Narmer e nos marfins das tumbas dos reis da 1ª Dinastia (Djer e Merpabia).
A deusa Hathor recebia uma cabeça humana, mas ela tinha dois chifres de vaca e
um disco solar entre eles. A deusa Mafdet9 era completamente humana, mas se camuflava
na pele de animal semelhante ao gato. Cultos de carneiros são também conhecidos de
vários monumentos da 1ª Dinastia.
Desde tempos remotos, os egípcios domesticaram cães. Provavelmente por sua
utilidade para caçadas. Muitos canídeos, em diversos lugares, de diferentes raças foram
escolhidos para representações. Uma das mais comuns entre os divinizados foi a do
Upuaut “O abridor de caminhos”. Era representado por Anupew, melhor conhecido pelo
seu nome grego, Anúbis, cujo culto foi praticado em vários lugares no nomo XVII do
Alto Egito, a capital que levou, nos tempos gregos, o nome de Kynopolis, isto é, “cidade
dos cães”. O animal de Anúbis era sempre representado deitado, frequentemente com
uma pena de avestruz no dorso. Desde tempos imemoriais, ele era um deus dos mortos e
protetor dos enterramentos; o cão era um animal que perturbava as tumbas enquanto
procurava ossos e seu culto, por isto, foi uma espécie captatio benevolentiae (1951, p.
22).

9
Mafdt, deusa-pantera, matava escorpiões (Hart, 1968, p. 117).

125
Uma deusa-gato – ou deusa-mangusto – “Mafdet”, “Senhora do Castelo da Vida”,
presente desde a 1ª Dinastia, foi desde cedo invocada como protetora contra as picadas
de cobras, uma vez que ambos os animais eram destemidos matadores de cobras. O centro
de culto desta deusa é ignorado (1951, p. 22). A deusa-gato Bastet, desde a IIª Dinastia,
era assim chamada e tinha o seu culto na cidade de Bast (para os gregos Bubastis), no
Baixo Egito. Entretanto, seu animal original não era o gato domesticado, mas sim uma
leoa.
Entre as serpentes, a perigosa naja era o animal da deusa Wedjoyet, “A Verde”,
de Buto no VI Nomo do Baixo Egito. Ela se tornou a deusa tutelar do Baixo Egito, cuja
capital era Buto e ficou neste papel até a unificação das duas terras.
A deusa-abutre Nekhbet, cuja origem era Enkhab, (moderno El-Kab), no Alto
Egito parece não ter tido nenhum outro nome distinto, pois Nekhbet significa
simplesmente “Aquela de Enkhab”. Nos tempos pré-dinásticos, tornou-se a deusa tutelar
do Alto Egito (1951, p. 23).
A reprodução dos sapos era um mistério para os egípcios, o que explica que a
deusa Heket tomou a forma de um sapo, ao redor da IVª Dinastia.
O culto de Íbis é encontrado na 1ª Dinastia, em conexão com o deus Thot. A
origem do nome e seu primeiro local de culto são desconhecidos.
É curioso que, em comparação com os numerosos cultos de quadrúpedes e
pássaros, os peixes eram relativamente raros. Na 1ª Dinastia havia a adoração ao deus-
peixe Neres ou Neser, que tinha a imagem de um golfinho (1951, p. 24).
Entre o mundo botânico, muitas árvores foram importantes, porque consideradas
lugares para as divindades; elas aparecem em alguns estandartes de nomos. Por exemplo,
um sicômoro perto de Memphis, na borda do deserto, dizia-se que era ocupado por uma
deusa muito benevolente, com o epíteto de “Senhora do sicômoro”, e se acreditava que
era ocupada pela alma dos mortos sob a forma de pássaros, que recebiam água e comida
pelo sacudimento da árvore pela deusa.
Muito maior que a categoria das plantas era a dos objetos inanimados,
considerados os lugares das divindades; em princípio, todos os lugares conectados com o
tempo ou com o rei eram divinos. O culto de objetos é uma antiga e velha feição da
religião egípcia; sua grande antiguidade é revelada pelo fato de que a verdadeira natureza
de alguns deles é não somente desconhecida por nós, mas também por eles mesmos, desde
longa data.

126
Quando surgem os deuses principais Seth, Hórus e Thot?

O culto animal de Setekh, nas representações das pedras tumulares da 1ª Dinastia,


de certa forma lembra um asno. Ele tem pernas relativamente longas, orelhas longas e
largas e uma cauda curta, para cima. Parece, entretanto, que em tempos bem antigos,
como no fim do Velho Reino, os egípcios o transformaram em um animal fabuloso,
normalmente representado por um cachorro em repouso, com um longo pescoço e uma
cauda em pé, orelhas aquadradadas (1951, p. 21), e um longo e curvo focinho. Assim, não
surpreende que os esforços dos egiptólogos para identificar esta criatura com algum
animal real tenham sido malsucedidos (1951, p. 21).
O berço de Seth foi Enboyet (Ombos, em grego), uma cidade no V nomo do Alto
Egito, entre as modernas vilas de Nagada e Ballas. Tem sido suposto que o tempo da
grande prosperidade de Enboyet foi um pouco antes do período dinástico, o que é
comprovado pelos grandes cemitérios da época (1951, p. 21). Com a fundação da 1ª
Dinastia, o culto de Seth se espalhou além dos limites do seu nomo: Setekh se tornou
“Senhor do Alto Egito” e um deus representativo de toda a parte do país. Nesta questão,
ele ficou o grande rival de Hórus e essa rivalidade moldou a concepção da natureza do
deus e o seu destino (1951, p. 21).
Hórus, também vem do período pré-dinástico e é o culto ao deus-falcão (em
egípcio Horew “o alto ou elevado”), um nome ótimo para um pássaro de rapina que voa
alto. Era cultuado em muitas localidades, sendo Hierakonpolis (em egípcio Nekhen) a
principal. A capital do seu centro de culto era no Reino do Alto Egito, onde se tornou
Hórus. Era o deus do céu e na 1ª Dinastia, era representado em um barco cruzando o céu,
como um deus-sol.

Como você explica a antropomorfização dos deuses?

A transição da concepção e representação do deus como animal e objetos para a


forma humana, isto é, a antropomorfização, ocorreu no Egito, como entre outros povos
quando chegaram a um certo nível de civilização. Isto aconteceu, por um lado, pela
progressiva dominação do animal pelo mundo material, e, por outro, pela diminuição do
apreço pela pura qualidade física, como a força das bestas selvagens e o poder de voar
alto dos pássaros de rapina, além dos cuidados maternos dos animais ou pelos
conhecimentos adquiridos na misteriosa vida de alguns animais.

127
Deuses, para quem alto poder e inteligência são atribuídos, eram, por conseguinte,
levados a assumir forma humana.
É claro que a antropomorfização dos deuses determina o último estágio no
desenvolvimento, embora isto não necessariamente afetou todas as divindades ou
apareceu em todas as classes da população ao mesmo tempo, porque os grupos menos
intelectualizados, os camponeses, por exemplo, permaneceram mais tempo ligados às
ideias zoomórficas e fetichistas (1951, p. 28).
A antropomorfização dos deuses deve ter ocorrido no início dos períodos pré-
históricos. No princípio da história encontramos uma cabeça humana com chifres de vaca,
presumivelmente da deusa Hathor, na paleta de ardósia de Narmer.
A antropomorfização dos deuses foi sem dúvida influenciada pela identificação
do rei com o deus Hórus, que era considerado o deus por excelência (1951, p. 29).
Um completo abandono da velha concepção zoomórfica de deus deve ter parecido
muito difícil para os egípcios. Eles dificilmente poderiam descartar uma velha ideia em
favor de uma nova. Eles deixariam ambas existir lado a lado, descartando a contradição
lógica implicada na sua mera coexistência. Ou, quando possível, combinariam as duas
ideias na composição de um todo. Assim, os deuses antropomorfizados recebiam um
corpo humano, mas apenas raramente uma cabeça humana; esta, mais vezes, era
substituída por a daquele animal em cuja forma o deus era originalmente acostumado a
aparecer. O corpo humano de Hórus aparecia com cabeça de falcão. O de Anúbis, com
cabeça de cachorro, e Khnum aparecia com cabeça de um carneiro. A adição de uma
cabeça de animal para o corpo era inteligentemente executada, a verdadeira junção sendo
conciliada pelas dobras do toucado e do lóbulo da orelha (1951, p. 29).
Certos deuses sempre aparecem na forma humana, com cabeça humana: Min de
Koptos, Ptah de Memphis, Atum de Heliópolis, Amon de Tebas. Nós temos que assumir
que esses deuses eram representados como inteiramente humanos desde o início. Face ao
curso de desenvolvimento, com o qual as ideias referentes aos deuses seguiram no Egito,
é difícil escapar da conclusão de que esses deuses pertenciam a um período relativamente
tardio na evolução da religião egípcia.
É, entretanto, somente no caso de Min e Ptah que as atuais evidências pictóricas
de maior antiguidade são disponíveis. Encontramos estátuas e pinturas de Min na forma
humana desde a 1ª Dinastia ou antes: a mais antiga de Ptah encontra-se em um vaso de
alabastro de Tarkhan, datando do período do Reino de Udymu, o quinto rei da 1ª Dinastia.

128
A diferença de datas entre Min e Ptah, de um lado, e Atum e Amon, de outro, é
confirmada pela maneira pela qual o problema de sua representação na forma humana foi
solucionado. Isto porque, enquanto Atum, Amon e os deuses que, embora
antropomorfizados, ainda retinham as cabeças dos seus animais, representados
caminhando com suas pernas e mãos bem-articulados (em síntese, como seres vivos), Min
e Ptah sempre aparecem como estátuas em pedestais com pernas juntas, e mãos mal e mal
saindo do corpo. Esta representação de Min e de Ptah, por isso, tem origem em um período
primitivo, quando as técnicas do escultor não eram suficientemente avançadas para
permitir que os membros pudessem ser separados do corpo da estátua. Entre outros
deuses, somente Osíris, e até ele não consistentemente, divide esta peculiaridade com Min
e Ptah, e este fato parece a melhor prova da antiguidade de sua origem. Ele comparece
em documentos escritos somente na segunda metade da VIª Dinastia.
O destino dos deuses individuais nos tempos históricos, desde o quase completo
desaparecimento de alguns, à ascensão e proeminência de outros e, para alguns deles,
também, uma gradual mudança na natureza, eram muito causadas ou influenciadas pelo
desenvolvimento político e mudanças no país. Primeiro, a unificação de localidades
separadas em nomos, os quais, subsequentemente, juntam-se em duas partes, nomeadas
de Alto e Baixo Egito, que, finalmente, uniram-se em um reino único nos inícios do
período histórico. Essas mudanças políticas trouxeram os deuses locais a um convívio
mais próximo. Os deuses das capitais dos nomos tornaram-se os cabeças de todos os
outros deuses nos nomos, e o deus da capital do país unido tornou-se o chefe dos deuses.
Enquanto no curso desse desenvolvimento alguns deuses – como tinha sido apontado –
foram ofuscados por outros menos importantes ou absorvidos por eles e caíram em
esquecimento, sacerdotes e devotos de outros deuses lutaram para preservar suas
divindades locais de um destino semelhante. Eles declararam seu deus como outra forma
ou aspecto de uma divindade importante, diferindo dele em um aspecto não essencial,
atitude adotada especialmente nos casos quando os dois deuses rivais exibiam algumas
características em comum. Vários graus de identificação, assimilação e fusão resultaram
nesse caminho. Então, um número de deusas-leoas tornou-se identificado com a deusa-
vaca Hathor. O nome do deus assimilado ou absorvido, ainda desaparecido inteiramente,
tornou-se um mero epíteto do deus no qual ele foi assimilado; desta forma, Ptah, o deus
de Memphis, absorveu Sokar, o deus das necrópoles da vizinhança, em seguida
aparecendo como Ptah-Sokar (1951, p. 31).

129
Outra maneira favorita de preservar um velho deus ou deusa era trazê-lo para
dentro de uma família de um deus poderoso, e então criar duplas ou tríades nas quais o
deus e a deusa tivessem os papéis de marido e mulher, enquanto a terceira divindade era
muitas vezes incluída como seu filho; por exemplo, em Antinoupolis a deusa-sapo Heket
tornou-se a mulher do deus-carneiro Khnum e em Memphis, Ptah obteve a deusa Sakhmet
como mulher e o deus Nefertum tornou-se seu filho.

Qual é a relação entre a criação dos deuses e a união do Alto e Baixo Egito?

A união dos dois Egitos foi concluída por iniciativa de um rei de Hierakonpolis,
cujo deus-falcão, Hórus, era tido por um deus “do céu”. Hórus manifestou-se na pessoa
do rei do Alto Egito que, apesar do seu nome pessoal, havia sido parido com o nome de
Hórus no seu papel de “deus da conquista”, e se tornou o deus do país unido. A união,
entretanto, deve ter sido completada com a ajuda de cidades e nomos de Ombos e Khmun
(Hermópolis), porque seus deuses, Seth e Thot respectivamente, eram autorizados a
clamar sua importância até no reino unido. Tal importância nunca foi negada para Thot,
que sempre foi considerado uma das altas divindades. Seth, por outro lado, clamou pelo
título de “Senhor do Alto Egito” e se tornou rival de Hórus em tal grau que o rei também
se associou a essa manifestação (1951, p. 32) e era, desde o tempo da 1ª Dinastia, a
personificação de Hórus-Setekh.
Com rei Khasekhemi da IIª Dinastia, o usual nome de Hórus tornou-se Hórus-
Setekh e o rei usava-o na inscrição em granito da porta grande no templo de Hórus em
Hierakonpolis. Em um momento, Setekh até ganhou a predominância sobre Hórus; isto
se refletiu no fato de que o rei Peribsen, da IIª Dinastia, substituiu o nome de Hórus pelo
de Setekh. Um retorno para o nome de Hórus pelos reis mostra que a predominância de
Setekh foi apenas temporária; mas a rivalidade de Hórus e Seth deve ter sido a causa da
introdução tardia de Seth no mito de Osíris como rival inimigo de Hórus.
É impossível decidir em que momento a concepção solar penetrou na ideia de
realeza. A mais antiga evidência para essa tendência parece ter sido o Horus-neme para o
segundo rei da IIª Dinastia, Ra-neb (talvez Rá é senhor), Djoser, da IIIª Dinastia, leva o
título “Rá dourado”. Ambos, Ra-neb e Djoser, entretanto, parecem ter identidade, eles
mesmos, com Rá preferivelmente, do que terem se considerado descendentes do deus-
sol. A identificação, entretanto, não era de longa duração, porque foi completamente
abandonada pelos reis subsequentes. O primeiro rei oficialmente chamado de “filho de

130
Rá” foi Quefrem (1951, p. 34), da IVª Dinastia. Da sexta Dinastia em frente, o título de
“filho de Rá” é usado para todos os reis e se tornou, finalmente, uma parte integrante da
titulação real. Ele introduziu o nome de nascimento do rei e claramente mostra que este
nasceu como filho de Rá. De acordo com um conto de reis da Vª Dinastia, eram filhos do
deus Rá e de sua mulher, a sacerdotisa de Rá. O conto reflete a vitória do culto de Rá sob
esta dinastia; muitos reis construíram santuários para o deus pelo modelo de Heliópolis.
Este culto foi enfraquecendo para o final da dinastia, mas permeou toda a religião egípcia
e levou à identificação de muitos deuses locais com Rá.
Enquanto a antiga representação de “Behdetite” é ainda um distinto deus-falcão
pairando sobre a cabeça do rei, em cenas posteriores, este atributo é aplicado ao deus solar
alado, cujas duas asas simbolizavam proteger o Alto e Baixo Egito. O deus solar alado
claramente representa a pessoa do rei como imanente no sol visível; ele leva o epíteto de
“grande deus”, como o rei, e é intimamente conectado com o nome do rei. Tudo indica
uma completa fusão de Rá, Hórus e rei.
Ao mesmo tempo em que houve meios de reconciliação com a concepção de rei
como deus Hórus, a religião solar de Heliópolis sucedeu em encontrar um acordo com o
novo culto; de fato, uma nova religião foi irresistivelmente espalhando-se do centro do
Delta para o Sul (1951, p. 34): a religião de Osíris. Osíris veio de Djedu, a capital do IX
nomo do Baixo Egito; “Senhor de Djedu” é seu velho título e a cidade foi mais tarde
chamada de Per-Usire (a forma grega de Busíris), “Casa de Osíris”. No entanto, Djedu
foi, provavelmente, não a sua casa original. O deus inicial de Djedu, foi Andjeti, que é
representado na forma humana com insígnias, um longo cajado-cetro em uma mão e um
chicote na outra, com duas plumas na cabeça. Andjeti foi, entretanto, muito cedo
absorvido por Osíris e seu nome virou um mero epíteto daquele deus.
A circunstância que favoreceu a absorção foi que Osíris também era inteiramente
humano na forma. Ele é mostrado com a coroa do Alto Egito, na qual duas plumas foram
anexadas em ambos os lados, sobre um par de chifres de carneiro. Mas há uma importante
diferença entre Andjeti e Osíris: enquanto o primeiro representa um governante, Osíris é
sempre mostrado como uma pessoa, parada, enrolada em um longo manto branco real, os
dois braços segurando um cetro. Seu nome Usire, do qual Osíris é a forma grega, parece
significar “Lugar do Olho”; ele tem a aparência de um de um ser humano e é provável
que Osíris foi, originalmente, um rei humano, sendo deificado após sua morte. Um mito
foi tecido sobre sua pessoa, menos preocupado com sua vida prévia e governo como rei
do Egito, do que com sua morte e subsequente ressurreição, após a qual ele se tornou um

131
governante no reino dos mortos (1951, p. 35). Nenhuma sistemática exposição deste mito
é conhecida das fontes egípcias. Nossa principal autoridade neste respeito é Plutarco, no
seu “Isis e Osíris”; frequentes alusões, entretanto, ocorrem nos textos egípcios de todos
os períodos que mostram que a ideia de Plutarco concorda essencialmente com a crença
dos egípcios.
A mulher de Osíris era sua irmã Ísis, cujo nome significa “lugar”. Ela parece, por
isso, ser meramente uma personificação de “Osíris”, o trono real. Sua outra irmã Neftis
(“Senhora do Castelo”) foi provavelmente só uma criação artificial e uma contraparte do
seu marido Setekh, irmão de Osíris, que com seus parceiros matou Osíris, mas foi vencido
pelo filho de Osíris, Hórus, depois de uma longa luta; Hórus então vingou seu pai e o
sucedeu no trono do Egito.
Há duas versões sobre a morte de Osíris: de acordo com uma, ele foi morto em
Nedit, a situação é desconhecida. Seu corpo foi cortado em pedaços e jogado no rio. Em
ambos os casos a ressurreição é um efeito mágico! A conexão com o Nilo é resultado de
uma antiga interpretação de Osíris como um deus do Nilo e as inundações, bem como da
vegetação, a qual regularmente segue suas enchentes. Este caráter de Osíris como um
deus da natureza, vem de sua antiga aparência nos textos egípcios no final da Vª Dinastia.
Entretanto, o seu caráter real é o aspecto mais constante e marcante; todo o rei, após a sua
morte era identificado com Osíris e, assim como Osíris, imaginava-se que surgisse
novamente na próxima vida (1951, p. 36). Com a revolução “social”, após o final do
Velho Reino, esta concepção de identidade do rei morto com Osíris foi estendida
primeiramente para outros membros da família real e à aristocracia; mais tarde, foi
estendida à população comum até que, no final do Reino Médio, todo o egípcio, fosse
homem ou mulher, tornava-se Osíris após a morte e era chamado “Osíris Fulano de Tal”
(1951, p. 36).
Quando os monarcas de Em-Mont (atualmente Armant), no sul de Tebas, mais
uma vez unificaram o Egito após longo período de anarquia e fundaram a XIª Dinastia, o
deus de sua cidade nativa, Mont, ficou em proeminência e seu culto espalhou-se de Em-
Mont para três cidades vizinhas: Tebas, Medamud e Tod. Esta reunificação foi
conseguida pelo uso das armas e desde aquele tempo, Mont veio a ser visto como um
deus da guerra. A XIª Dinastia foi, entretanto, deposta do poder por um oficial tebano,
Amenmhet e ele e seus sucessores favoreceram outro, até agora obscuro, deus de Tebas,
chamado Amon (1951, p. 37). Atum foi encontrado no Velho Reino, mas Amon só
aparece no Reino Médio.

132
A história de Amon, em Tebas, pode ser traçada a partir do reino de Intef I da XIª
Dinastia, quando o seu nome é pela primeira vez encontrado em uma estela do rei. Ele
tinha, entretanto, sido introduzido em Tebas de Hermópolis, onde ele e sua companheira,
Amaunet, eram membros de uma ogdoade compreendendo quatro divindades homens e
quatro divindades mulheres que personificavam o oceano primordial e suas qualidades
(escuridão, infinitude e invisibilidade misteriosa). A razão para este transplante, de Amon
para uma nova localidade, foi para dar à nação novamente unida um deus supremo
repartido por todos os habitantes em comum. Amon foi feito “chefe dos deuses” e ao seu
aspecto hermopolitano foram acrescentadas características de outros importantes deuses
do país; o próprio deus menfita Ptah, identificado com o deus primordial Tatjenen, o
heliopolitano Rá e o Min de Koptos (1951, p. 37).
A real ascendência de Amon começou com a vitória de Tebas, na XVIIIª Dinastia
sobre os hicsos e a conquista egípcia na Ásia. A rivalidade de Rá foi eliminada pela
associação de Amon com Rá como Amon-ra.
Foi em seu nome e com a ajuda dele que os reis da dinastia fundaram o império
do qual Amon-ra tornou-se o supremo deus e o “rei dos deuses”. Um grande templo foi
construído para ele em Karnak e Luxor, magnificamente dotado de tributos da Ásia. Sua
posição foi, então, assegurada até o final do Egito como uma nação independente!

Como entender a relação entre esses deuses e a arte?

A relação é intrínseca, porque a arte era muito importante para os egípcios antigos.
Então, alguma personificação das divindades era indispensável, e se os corpos humanos
dos deuses tinham as cabeças de vários animais, isto era, certamente em grande parte, um
meio conveniente de se distinguir as várias personalidades. Assim, as cabeças dos animais
poderiam de alguma maneira evocar as qualidades atribuídas ao deus de maneira natural
(1951, p.40).

Todos os deuses egípcios foram criações deles?

Os deuses egípcios tiveram sua origem no país; embora tem sido sugerido,
algumas vezes, que eles vieram de fora, e é possível demonstrar que alguns deles possam
ter vindo de fora, seus nomes podem ser explicados pela linguagem egípcia. Eles são,
então, puramente nacionais e como tal permanecem até que a política egípcia imponha

133
seu culto nas vizinhanças, como Núbia e Sudão, Palestina e Síria. Mas, em seu isolamento
original, eles eram apenas do Egito (1951, p. 41).
Os egípcios eram tolerantes com outros deuses dentro do Egito e igualmente com
os deuses dos conquistados (1951, p. 41). Eles simplesmente os consideram como formas
de suas próprias divindades. Está claro que, nessas circunstâncias, nenhuma heresia pode
aparecer e, com exceção do curto período de Akhenaton, nada é conhecido sobre
perseguição religiosa. Está pouco definido se a religião de Akhenaton fosse intencionada
como universal, para todas as pessoas do império, muito embora alguns aspectos o
sugiram. É curioso que medidas de força tivessem sido tomadas, tanto na sua
disseminação como na sua posterior supressão (1951, p. 41).
Cercados pela natureza de que dependiam, os egípcios viam a natureza divina em
todo o cósmico, acima da terra, céu e ar, as enchentes do Nilo presentes em todo o lugar
e sem necessidade de um tempo ou forma organizada de culto (1951, p. 41).
Na fantasia poética de um povo oriental, eles agiam como seres humanos e como
tais, eles falavam. Mitos surgem por suas personalidades e atos (1951, p. 41), e os egípcios
nem mesmo os escolheram por colocar neles defeitos ou fraquezas às quais eles estavam
sujeitos. Apenas poucos mitos tardios vieram para nós, por inumeráveis alusões e eventos
míticos em textos, que estavam florescendo no final da Vª Dinastia.
Para finalizar, algumas informações pessoais. No prefácio do seu livro, Jaroslav
Cerny conta que ao ser convidado a escrever sobre a antiga religião egípcia, relutou, e
somente aceitou a missão quando entendeu que ninguém, com um conhecimento maior
do que o seu sobre este tema, aceitaria a tarefa. Ele informa aos egiptologistas que o livro
se dirige para leigos curiosos porque o espaço é tão pequeno que precisou ser muito breve
e incluir apenas o essencial. Por tais razões, com a modéstia que o caracterizava, ele
considerou o seu texto pouco original, apenas um resumo de pesquisas já publicadas,
disse, em obras raras e em linguagens de vários países com restrito acesso. Ele lia as
línguas mortas egípcias: a hieroglífica, demótica, cóptica, além da grega e o latim, bem
como as vivas: inglês, francês, italiano, alemão como em sua própria língua, o tcheco.
Ao mesmo tempo, Jaroslav Cerny situou o seu livro para além dos catálogos
ilustrados sobre estranhos deuses egípcios e da visão de uma religião egípcia como um
mero aspecto da história política do Egito. Entendemos que é esta visão exatamente a que
dá o tom de sua obra, porque é a sua proposta de tornar a religião egípcia, de forma
inusitada, compreensível.

134
O sábio provoca o leitor, dizendo que o volume teria atingido os inteligentes
capazes de encontrar no livro respostas às suas questões e, assim, capacitar-se o suficiente
para levar à frente suas leituras, com a consulta à bibliografia do volume.
O autor conseguiu o seu objetivo, ao longo de todos esses anos, entre 1951 e a
atualidade! Estou desdobrando o seu estímulo, no esforço de trazer seu livro ao leitor
brasileiro de uma forma dialógica como acredito que gostaria. Sem essa leitura, por mim
feita em 1988, o meu caminho pela egiptologia teria sido bem menos intenso, proveitoso
ou interessante!
Muito obrigada!

Bibliografia

BAKOS, M. M. O gênero epistolar e a vida cotidiana no Egito Antigo: as contribuições de Ciro


Flamarion Cardoso e Jaroslav Cerny. Revista Phoînix, v. 21, n. 1, 2015, p. 27-43.
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RAMA, A. A. Transculturación narrativa en América Latina . México: Siglo Veintiuno, 1994.

135
1

A Religiosidade Egípcia Antiga e sua Leitura no Filme “O Príncipe do


Egito”

Raquel dos Santos Funari

No cinema, mais do que no teatro, os personagens


são, antes de tudo, sujeitos de experiências
emocionais: a alegria e a dor, a esperança e o
medo, o amor e o ódio, a gratidão e a inveja, a
solidariedade e a malícia, conferem ao filme
significado e valor. (Munsterbert, 2003, p. 46)

Introdução

O Príncipe do Egito seria um tema de uma obra de História? Claro que não, é um
filme, mas tem muita repercussão em como entendemos o passado. Como lembrava Paulo
Celso Miceli, em capítulo que se tornou um clássico, “a História é matéria difícil, e essa
dificuldade não vem de datas e nomes com que se imagina poder ensiná-la, pois, se
dependesse disso, ela seria apenas chata. A História exige muita sensibilidade, coisa que
pode ser cultivada, mas não ensinada ”. Claro, foi essa sensibilidade que me levou, e levou
a tantos de nós, ao estudo da História, mas ela nem sempre estava presente nos livros e
na percepção do que seria propriamente História. Foi essa atração, tão bem definida por
Miceli como uma “sensibilidade”, que me conduziu ao Príncipe do Egito e aos usos do
passado, objeto de estudos anteriores e deste capítulo.
A Antiguidade apresentava-se à minha frente, no Príncipe do Egito, não como
sucessão de datas e personagens, mas como criação efetiva e afetiva de nossa realidade
quotidiana, para além da busca das origens verdadeiras de um personagem como Moisés.
Conforme me aprofundei na pesquisa, pude observar a relevância de um estudo sobre o

136
filme e suas interpretações ou representações. Agora, volto-me para verificar como a
religiosidade egípcia aparece no filme e em sua recepção.

Como Estudar o Cinema: uma perspectiva cultural

O estudo do cinema deve ser entendido no contexto dos debates historiográficos


das últimas décadas, em particular, como parte das discussões da História Cultural. Um
exame da historiografia constata que as origens mais antigas da História Cultural
remontam à Grécia antiga, com seus mitos, mas também com o surgimento da
historiografia, com Heródoto. Seria apenas no século XVIII, contudo, que as modernas
preocupações com a História da civilização teriam uma seqüência com o que se passa
hoje ainda, no século XXI, na historiografia cultural. Já em nossa época, floresceu a
História das Mentalidades, que talvez tenha começado com a tese de Alphonse Dupront,
defendida na Sorbonne em 1956, mas só publicada em 1997, sobre o mito da cruzada ,
mas a grande marca foi o livro de Jean Delumeau, sobre o medo no ocidente . A coerência
e flexibilidade da História Cultural devem-se à diversidade das suas fontes, à diferença
dos pais fundadores dos Annales, centrados na História stricto sensu. Em particular, faz-
se recurso às Ciências Sociais e à Filosofia, à Escola de Frankfurt (Benjamin, Adorno).
A História Cultural pode ser considerada uma modalidade de História Social, mas
diversa da História Social clássica, que se preocupa com as classes sociais, pois se
preocupa com os fenômenos simbólicos. Esta História Social das Representações ocupa-
se das práticas e das formas de representação. A História Cultural volta -se para o
ambiente, que ultrapassa o conceito mais restrito de “contexto”. O texto ou o filme não
existem sem seus paratextos, que permitem que um livro ou um filme passem por diversos
intermediários, do editor ao livreiro, do produtor cinematográfico ao distribuidor. Há,
pois, dois aspectos importantes, na pesquisa cultural ou simbólica: os aspectos
mensuráveis e os mediáticos.

O Cinema

Os filmes permitem que se usufrua, de maneira intensa, as emoções provocadas


pelas imagens, de modo a reconhecer valores sociais e questionar os próprios valores.
Segundo a descrição clássica do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1996), a interação
das pessoas com o cinema permite o desenvolvimento do que se poderia denominar

137
“competência para ver”, isto é, uma certa disposição, valorizada socialmente, para
analisar, compreender e apreciar qualquer história cinematográfica contada (Duarte,
2002, p.13). O gosto pelo cinema, como um conjunto de preferências, liga-se, de forma
direta, à origem familiar e social das pessoas e tais preferências por determinadas formas
culturais fazem parte do universo de preocupações de professores e pesquisadores.
A linguagem cinematográfica, por ser direta e sensorial, está ao alcance de todos
e prescinde de uma educação formal dos sentidos, à diferença da escrita, dependente de
um domínio de códigos e estruturas gramaticais e lingüísticas padronizadas. Nas
sociedades modernas, fundadas nos múltiplos meios audiovisuais, as interações com os
esses meios começa na mais tenra idade. O cinema funda-se, em sua expressão como
linguagem, da câmera, da iluminação, do som e da montagem, também conhecida como
edição. Entre os recursos mais usuais estão os flashbacks ou cutbacks, às vezes marcados
pelas imagens distorcidas ou pelo uso de cores, ou preto e branco, de forma diferencial.

O Príncipe do Egito: um estudo de caso

O Egito Antigo tem recebido uma atenção dos diretores de cinema. O filme O
Príncipe do Egito, dos fundadores da Dreamworks Pictures David Geffen, Steven
Spielberg e Jeffrey Katzenberg, foi lançado em 1998, simultaneamente em cinqüenta
países, em vinte e dois idiomas, como inglês, alemão, mandarim, grego, hebraico, francês
e português entre outros. Um desafio que levou centenas de artistas, técnicos, animadores
e músicos a trabalhar por quatro anos para levar às telas o filme. Na verdade, é uma
história de dois irmãos, que se separam e distanciam a ponto de se tornarem
completamente opostos.
No campo das artes, a recepção das obras, por parte dos críticos ou estudiosos,
tem sido chamada de fortuna crítica. Na origem, fortuna foi um termo usado para designar
a perenidade de uma obra, sua capacidade de resistir ao tempo. Fortuna é uma palavra
latina, cujo sentido abrange a sorte e o destino, associada, desde o Renascimento à noção
de permanência, acenada por Horácio, Odes, 3, 30: exegui monumentum aere perennius
(“executei um monumento mais perene do que o bronze”), para se referir à relevância
futura da obra poética ou artística. O segundo termo da expressão “fortuna crítica”
remonta à noção grega de krisis (separação), do verbo krinein (separar). A crítica,
portanto, procura distinguir partes de uma obra, separar o superior do inferior, ou o joio
do trigo.

138
O cinema apresenta um tipo de fortuna crítica menos consolidado, mais efêmero
ou mesmo circunstancial, pois as críticas consubstanciam-se, via de regra, em publicações
diárias ou semanais de divulgação. Muitas vezes, as avaliações são mesmo anônimas e
não se pode, tampouco, determinar com clareza as motivações econômicas dos analistas.
De todo modo, um apanhado das críticas o Príncipe do Egito permite notar uma imensa
recepção positiva.
O filme - com sua temática séria e mesmo dramática - parecia inaugurar um filão
de desenhos voltados para o público adulto, ainda que sem afastar as crianças. Isso não
ocorreu exatamente desta maneira, nos anos que se seguiram. Não se multiplicaram os
desenhos de temas bíblicos ou apenas sérios. Contudo, houve sim uma mudança, com a
generalização de filmes animados voltados para o público infantil e adulto a um só tempo.
Os filmes infantis passaram a contar com piadas, situações e atrações para os adultos que
acompanham as crianças ao cinema. O segundo aspecto relevante refere-se à referência à
consulta a pregadores da Direita cristã americana. Isso demonstra que o filme estava bem
inserido num ressurgimento do conservadorismo cristão americano, ainda que estivesse
atento, claro, a não ferir as suscetibilidades do público judaico, na raiz na narrativa bíblica
de base.

Ramsés

No filme, o faraó bíblico é apresentado como Ramsés, nome que não aparece nas
fontes judaicas. O relato da Bíblia Hebraica nunca menciona um nome concreto e nem se
pretende ser uma narrativa histórica, no sentido moderno da palavra. As grandes linhas
parecem retratar os acontecimentos, mas sempre de maneira já bem inserida na
perspectiva teológica dos compiladores do texto bíblico. A maioria dos estudiosos
relaciona a estada dos antepassados dos hebreus no Egito com o domínio dos Hicsos
naquele reino, entre 1720 e 1580 a.C. Os hicsos, como semitas, poderiam ter facilitado as
idas e vindas dos semitas nômades, talvez chamados de Hapiru (Hebreus), termo que
poderia designar apenas “nômades”. Seria como a palavra moderna “beduíno”, derivada
do árabe badawi, habitante do deserto.
A partir do Novo Reino, com a retomada das dinastias egípcias e com a expansão
em direção à Palestina e à Síria, parece ter havido a entrada de novos nômades, hapiru
que vinham como escravos. Haveria, pois, duas populações hebraicas, uma mais antiga e
próspera, no Delta, e outras mais recentes e escravizadas. Alguns estudiosos modernos

139
consideram que foi Seti I (1291-1278) a escravizar os nômades e que seria Ramsés II
(1292-1225) o faraó do Êxodo, que teria ocorrido em 1225 a.C . Contudo, Flinders Petrie
descobriu e publicou, no monumento funerário de Merenptá, filho de Ramsés, uma
inscrição sobre suas vitórias militares que menciona o seguinte:

Canaã foi saqueada, foi conquistada Ashkalon, Gezer foi tomada, Ienoam não
existe mais, Israel está desolado, não há semente, a Palestina tornou-se uma
viúva para o Egito.

Isto significa que, à diferença do relato bíblico, haveria israelitas na Palestina


nessa época (ca. 1215 a.C.). Como quer que seja, a moderna erudição relacionou o Êxodo
a Ramsés II, personagem bem conhecido pela Egiptologia, e esta associação passou para
a cultura popular, por meio da mídia.
O tema da esfinge é milenar, das mais profundas tradições egípcias. O nome é
grego, sphinx, derivado do verbo sphingein, “estrangular”, “apertar”, aparentado ao nosso
esfincter e se refere mais às associados da mitologia grega do que egípcia. Na tradição
posterior grega, mais conhecida, a esfinge é uma criatura com corpo alado de leão e
cabeça de mulher , enquanto os egípcios o tinham como homem com corpo de leão. A
esfinge egípcia associava-se ao horizonte, como o deus Harmakhet, Hórus no Horizonte,
e, portanto, um potente símbolo religioso de completude e proteção . O filme apresenta a
esfinge com imagens que remetem à sua imagem no Ocidente, como algo ameaçador . As
cenas do Príncipe do Egito que retratam a esfinge são muitas e nelas toda a simbologia
posterior à civilização egípcia é ressaltada, num exemplo de inversão tão comum, quando
símbolos religiosos positivos são tomados como malignos. Isto ocorre, em particular, nas
décadas recentes, no uso dado pela mídia a personagens históricos ou lendários.

A Religiosidade Egípcia Antiga

Para podermos efetuar um estudo comparativo da leitura moderna, no filme O


Príncipe do Egito, dos conceitos e práticas egípcias antigas é necessário, antes, tratarmos,
ainda que de forma sucinta, do tema. Em primeiro lugar, os egípcios antigos sequer
tinham um conceito semelhante ao de religião, palavra latina que não existia em egípcio
(ou mesmo em grego, entre outros idiomas). Por isso, preferimos um termo moderno,
religiosidade, até para deixar bem claro que, com isso, buscamos práticas, conceitos e
mesmo sentimentos que transcendem à razão e que existem em todas as sociedades,

140
épocas e culturas. O mausoléu de Lênin atesta o poder da religiosidade, mesmo em um
contexto ateísta. Vamos, então, a alguns aspectos da religiosidade egípcia.
Talvez se possa começar com o egiptólogo canadense Bruce G. Trigger (1993),
esse grande estudioso do Egito antigo que em sua obra clássica sobre o Egito, quando
enfatizava as diferentes cosmovisões dos egípcios antigos e as modernas, oriundas do
Iluminismo. Estas distinguem, de forma clara, o natural e o sobrenatural, em parte,
também, como resultado da releitura moderna do pensamento filosófico grego antigo. Já
os antigos egípcios colocavam as divindades e os seres humanos em interação social e
física (Shaw, 2004, p. 127). Paul Veyne (1983) lembrava que a História é o inventário
das diferenças e este é tanto mais o caso quando tratamos do Egito antigo e, em particular,
sua religiosidade.
O conhecimento sobre o tema provém, em grande medida, do estudo dos vestígios
arqueológicos, tanto na forma de textos, como das estruturas de templos e locais de culto.
Muitos textos que aparecem nas paredes dos templos egípcios referem-se à listagem da
natureza e quantidade de oferendas nos santuários. Um dos aspectos mais notáveis da
religiosidade egípcia liga-se à fertilidade, embora, no passado, tenha havido certo pudor
em tratar desses temas. Nas últimas décadas, por outro lado, com a crescente discussão
de tais assuntos no mundo ocidental, o caráter sexual da religiosidade egípcia tem sido
destacado, o que a aproxima do mundo greco-romano, mas a afasta da tradição judaico-
cristã. O culto de Osíris, um dos mais importantes, está em estreita ligação com a
fertilidade e a sexualidade e, também, com o sentimento não só das elites, como das
pessoas comuns. John A. Wilson (1944) foi um pioneiro a defender a tese da
democratização da vida pós-morte no Egito antigo, questão que tem gerado crescente
interesse (Smith, 2009).
Os estudiosos enfatizam a importância da piedade dos egípcios para com os
deuses. Neste contexto, um conceito essencial era Maat, termo que talvez possa ser
traduzido por harmonia ou verdade, conceitos que, para nós, não são muito obviamente
relacionados. Os ensinamentos (sebayt) indicavam uma preocupação com a paz, que
levava a rituais e cultos, além a comportamentos de respeito à ordem dos deuses.

A Representação da Religiosidade Egípcia no Filme Príncipe do Egito e suas


Repercussões

141
No filme, há uma clara contraposição entre bons e maus, entre os hebreus devotos
a um Deus único e verdadeiro, e os egípcios, que cediam a crenças supersticiosas, que
não eram verdadeiras, ou mesmo maléficas, demoníacas. Por um lado, há uma evidente
caracterização dos egípcios e seus sacerdotes como supersticiosos, numa relação com a
percepção moderna de que tudo aquilo era magia sem fundamento, crença de primitivos.
Essa caracterização é de particular ressonância para aqueles, no mundo contemporâneo,
que têm uma perspectiva racionalista do mundo, derivada do Iluminismo. De fato, essa
abordagem está em consonância com o ethos do desencantamento do mundo, no sentido
usado por Max Weber (Pierucci, 2004; Schluchter, 2013), assim como da morte de Deus,
segundo outros tantos como Nietzsche (2012), e parte do público do filme, em particular
na Europa ocidental, são descrentes no sobrenatural. No entanto, a maioria das pessoas
nos Estados Unidos, na América Latina, na África e na Ásia crê nisso, numa imensa
variedade de perspectivas, mas acreditam. O filme apresenta, também, uma oposição
entre crenças egípcias voltadas para a maldade, por oposição à fé mosaica, apresentada
como ética e benéfica. A mensagem é um tanto contraditória, pois as pragas lançadas por
Deus parecem, em certos aspectos, punições coletivas, sem que os egípcios, de maneira
individual, fossem responsáveis pelos atos arbitrários contra os hebreus, segundo o filme.
Mas, na narrativa do filme, seguindo o texto bíblico, essas ações de Deus são tomadas
como medidas que estabelecem a justiça, ante a injustiça. Há, pois, uma verdadeira
reversão do que seria, de fato, a religiosidade egípcia antiga, centrada na Maat, na justiça.
Essa representação não deixa de levar-nos a pensar. O fascínio pelo Egito antigo
é milenar. Já os antigos gregos e romanos foram maníacos pelo Egito, como testemunha
a pirâmide de Céstio, em Roma, um entre tantos exemplos. O próprio filme O Príncipe
de Egito, assim como outros que se passam às margens do Nilo, como Os Dez
Mandamentos, fundam sua popularidade não tanto nos hebreus, mas na pompa e
circunstância do Egito faraônico e mesmo na sua exótica religiosidade. Neste aspecto, o
fascínio pelo Egito está em relação com sua religiosidade e, talvez, com os sentimentos
mais profundos do ser humano que, longe do desencantamento do mundo, encantam-se
com tudo que é desconhecido, com as forças superiores e fora da nossa total compreensão.
O Egito, também como apresentado no cinema, continua a inspirar o ser humano a refletir
sobre si mesmo.

Bibliografia

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XAVIER, I. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983.

144
2

O Filme O Egípcio (1954) e o Culto ao Aton: da luz solar à tela do cinema

Leandro Hecko

Introdução

O Cinema quando olha para temas históricos sempre busca retratar questões
passíveis de serem muito atraentes para o grande público. Não obstante, para o
historiador, olhar para a produção fílmica é tarefa bastante complexa que se assenta em
formas de análises históricas que buscam problematizar a produção cinematográfica
como fonte histórica, representação da história, objeto de estudo do historiador já dentro
das tendências historiográficas contemporâneas ou ainda um pouco de tudo isso, entre
outras possibilidades.
Considerando a miríade de fatores que percorrem a análise do historiador,
resumidamente poderíamos elencar algumas a partir de diversos estudos já muito
difundidos, como: olhar o filme do ponto de vista estético, cultural, político, de suas
técnicas de produção e outras intencionalidades em torno de sua produção (Benjamin,
1987); a relação do filme com a sociedade, portanto entre História e Cinema já levantada
por Marc Ferro há tempos (Morettin, 2003); construção de um discurso chamado
cinematográfico, de uma estrutura clássica de organização da obra fílmica (Xavier, 2005);
a veiculação e manutenção de imagens canônicas e efeitos de realidade que tais imagens
provocam (Saliba, 2007). Tais fatores apontam a necessidade de, para o historiador (ou
mesmo, professor de História), se fazer um levantamento de problemas teóricos, da

145
construção de métodos de análise para pesquisa histórica, de se pensar em formas de
abordagem, enfim, que se pense em como utilizar fontes fílmicas (Napolitano, 2006).
Neste ínterim, cabe ainda considerar o problema geral das temporalidades quando
se trabalha com um filme, que basicamente nos coloca numa relação entre passado e
presente que pode culminar em formas de usos do passado, alterando-o e ressignificando-
o à luz do presente, embora ele venha a conter um pouco de cada temporalidade.
Basicamente, pensando na questão cronológica, há que levar em conta que o filme
histórico é produzido em um tempo diferente do período que busca retratar e que, por sua
vez, pode ser lido/assistido já em outro tempo, noutro contexto cultural. Neste sentido, as
informações factuais presentes no filme, a possibilidade de associá-las a fontes históricas
que permitam sua reflexão dentro de um contexto passado e as suas apropriações pelos
leitores/espectadores ajudam a complexificar ainda mais e aprofundar a visão que se
queira ter de um filme histórico.
Feitas essas considerações, é a partir dessas ideias que aqui propomos uma leitura
do filme O Egípcio, percorrendo o seguinte caminho: primeiramente atentaremos para o
período ao qual o filme se remete, compreendendo o Antigo Egito na chamada reforma
amarniana empreendida pelo faraó Akhenaton (1352-1336 a.C.), da XVIII Dinastia
(1550-1295 a.C.), do Reino Novo (1550-1069 a.C.)1 caracterizando-o com o intuito de
propor um recorte temático a ser observado na produção fílmica; em segundo lugar,
observaremos a sua transposição para o romance O Egípcio (1945) de Mika Waltari, que
serviu de inspiração para o filme, frisando também o recorte temático efetuado; em
seguida, passaremos à sua apropriação por parte do filme, congregando história, romance,
drama e entretenimento; por último, levantaremos os pontos principais a serem
considerados na leitura do filme O Egípcio, à guisa de considerações finais.

Aton: “Teus raios abraçam as terras”.

Dos episódios da longa história egípcia um dos mais impactantes lançados do


Oriente à cultura Ocidental é o representado pela reforma religiosa do faraó Amenhotep
IV (1352-1336 a.C.), da XVIII Dinastia, que ficou mais conhecido como Akhenaton,
“Agradável a Aton” (Grimal, 2012, p. 232). Sua significação ecoa ainda hoje entre

1
Diante das variações que podem ser encontradas na cronologia das dinastias egípcias, utilizaremos como
referência o Historical Dictionary of Ancient Egypt de Morris Bierbrier (2008), conforme consta em nossas
referências.

146
maçons e rosacruzes ou ainda junto a quem queira insistir em um suposto monoteísmo 2
empreendido em um capítulo da história dinástica egípcia.
Resumidamente o que Akhenaton empreendeu foi uma alteração no âmbito da
religião, negando os demais deuses em detrimento a Aton, o Disco Solar, como único
deus (Gralha, 2012, p. 22). Houve alteração de seu nome, que embora inicialmente tivesse
como os demais faraós um nome de Hórus (Ka-nakht-qa-shuti, a seguir Kanakht-iten-
mery) e um nome de Hórus de Ouro (Tjes-khau-em-iunnu-qema, a seguir Tjes-renef-em-
iten) tais denominações se transformariam mostrando um rei que não é mais filho de
Osíris, mas um rei solar (Cardoso, 2011, p. 7). Junto a tal alteração, o faraó ainda levou a
cabo a construção de uma nova cidade, a que chamou de Akhetaton, “Horizonte de Aton”,
com palácios, bairros de oficiais e pessoal administrativo, templos e moradias. Ela recebe
hoje o nome de Tell El Amarna ou Amarna (David, 2003, p. 5), de onde por vezes se
refere à cultura em torno das alterações de Akhenaton como sendo “amarniana”. Tais
mudanças significaram, obviamente, um grande contexto de insatisfação junto aos
sacerdotes dos antigos deuses e demais segmentos relacionados ao poder econômico e
militar, que viram recursos sendo direcionados à construção e manutenção da nova
cidade.
Cabe aqui, por sua vez, questionar-se sobre as características dessa nova religião
causadora de conversão e constituição de fieis e também, revoltas sobre a sua presença.
O próprio Akhenaton determina que se apaguem menções a deuses anteriores, como é o
caso de diversos cartuchos com a referência a Amon-Rá. Por outro lado, entre os egípcios
de Tebas ou ainda entre os próprios funcionários da construção de Akhetaton são
encontrados registros da continuidade de cultos ou menções a outras divindades já
cultuadas desde muito tempo. Ciro Flamarion Cardoso, em sua leitura, atribui os conflitos
ao fato de não ser possível a substituição de uma ideologia orgânica por outra tão
rapidamente (Cardoso, 2011, p. 20). Somado a essa interpretação, podemos considerar
claramente que em poucos anos, de fato, uma cultura religiosa não se altera em tamanha
profundidade e rapidez, como exigia o culto a Aton, que passaria a ser considerado único
Deus, criador de tudo e de todos os seres.
Para compreender melhor esse contexto, Ciro Flamarion Cardoso (2011, p. 3-24)
elenca algumas fontes quem podem ser utilizadas para se pensar na religião solar, entre
elas o Livro da vaca do céu, Pequeno Hino ao Aton, Grande Hino ao Aton, a arquitetura
2
Sobre essa questão, ver o artigo “O politeísmo dos antigos egípcios sob o Reino Novo (1530-1069 a.C.)”
de Ciro Flamarion Cardoso, conforme consta nas referências.

147
dos novos templos e a arte amarniana. Em suas considerações, fica evidente que a
presença do Sol entre as divindades adoradas já era antiga e, não obstante em Amon-Rá
já se tenha uma certa proximidade, é com Akhenaton que surge o que se pode chamar de
exagero, ou radicalismo ou o ímpeto de um homem, o faraó Akhenaton, fazer opor -se
àqueles que cercavam o poder sacerdotal, político, militar e econômico, que deveriam
centrar-se exclusivamente na figura do faraó. É neste ponto e para se pensar no conjunto
de características “onde se expressa de modo eloqüente a nova doutrina do deus que enche
o vazio do céu com sua beleza fulgurante para proteger e animar tudo o que criou”
(Araújo, 2000, p. 330-331) que utilizaremos como referência para este breve exercício de
leitura o Grande Hino ao Aton, na tradução de Emanuel Araújo (2000), pois é o lugar
onde algumas características do culto a Aton e do próprio deus podem ser apreendidas e
também servirão como uma base para leitura do filme.
O hino encontra-se escrito em 13 colunas no alto da parede oeste do túmulo de Ay
(Araújo, 2000, p. 331), um dos últimos faraós da XVIII Dinastia e que esteve a serviço
de seus antecessores, como Amenhotep III, Akhenaton e Tutankhamon. O Grande Hino
ao Aton possui, na tradução de Araújo (2000), 13 partes, compreendendo um exórdio,
uma parte sobre o esplendor universal de Aton, uma sobre a noite, outra sobre a relação
de Aton com os homens, outra com os animais, uma sobre as águas, outra sobre a criação
do homem, outra sobre a criação no ovo, outra sobre a variedade da criação, uma sobre a
fecundação do solo, outra sobre as estações, uma sobre a glória de Aton e uma sobre a
revelação ao rei. É no exórdio que já aparece Aton e sua relação com Akhenaton, nos
seguintes termos:

O grande vivente Aton está em festa, senhor de tudo o que o disco solar
envolve, senhor do céu, senhor da terra, senhor da morada de Aton em Akhet-
Aton, o rei do Alto e do Baixo Egito, que vive em Maat, senhor das Duas
Terras, Nefer-kheperu-Ra Ua-en-Ra, filho de Ra que vive em Maat, senhor
das coroas, Akh-en-Aton, grande em sua vida. (Araújo, 2000, p. 331-332)

Tal passagem aponta para o elo entre Aton e Akhenaton e a extensão dos seus
domínios territoriais que tudo toca com os raios manifestos do seu Disco. Junto a relação
Aton/Akhenaton aparece também, pouco adiante, referência a Nefertiti, sua esposa
dizendo: “...e sua amada, a grande rainha, senhora das Duas Terras, Nefer-neferu-Aton
Nefert-iti” (Araújo, 2000, p. 332), que em sua construção coloca sob os auspícios do sol
o próprio casal real, fixando o elo entre a unidade divina de Aton e do faraó.

148
O trecho a seguir, “O esplendor universal de Aton”, continua a enfatizar o deus
como vivo, criador da vida, mostra seu movimento no céu e afirma que “Teus raios
abraçam as terras até os confins de tudo o que fizeste” (Araújo, 2000, p. 332). No item
seguinte, a visão negativa da noite aparece, pois “o país fica nas trevas, como na morte”
e diversos perigos rondam a existência (Idem, 333), devendo existir recolhimento
subtendido em silêncio para oração. Porém, passada a noite Aton e os hom ens se
entrelaçam “em adoração ao resplandeceres, (pois) em todo o país se irá ao trabalho
(Idem).
Fica evidente o jogo de oposições, a percepção entre o significado de Aton e dos
seus raios no dia e que efeitos a sua ausência causa durante a noite. Também, evidencia-
se o poder criativo do deus que criou tudo, que dá vida e movimento a tudo, movimenta
as águas e ajuda a fecundar o solo. Outro ponto que merece ser trazido para reflexão é o
final do Hino, onde se esclarece a revelação de Aton ao faraó:

“Estás em meu coração


e nenhum outro te conhece
senão teu filho Nefer-kheperu-Ra Ua-en-Ra,
(pois) tu o iniciaste em teus desígnios e em teu poder.” (Araújo, 2000, p. 336)

Nestes termos, é a Akhenaton que Aton dá o privilégio de manifestar-se como


parte de si e, neste ato, dar-se a todos os demais homens que vivem sob a sua criação.
Assim, observados os breves excertos do Grande hino ao Aton, podemos apontar como
características, em resumo, a sua unicidade com o faraó, a sua força criativa bem como a
vastidão de sua criação, a sua unicidade como deus solar responsável por tudo e todos
que existem e ainda a relação de revelação do deus para com o faraó, único que pode falar
por ele. Na leitura dos trechos, todavia, alguns silêncios podem ser notados, quanto a vida
após a morte, o desejo pela eternidade para os homens e a preocupação com a morte.
Exalta-se a vida, a criação e sua vastidão, mas não se evidencia aquilo que ao longo das
mais de trinta dinastias se percebeu na história egípcia: a preocupação com a morte, com
a transição e com a eternidade e claro, esta ausência também deve ser considerada, ao
menos à luz dessa importante fonte, uma característica do culto a Aton.

Aton, o Sol que Brilha também no Cinema.

Na sua representação no cinema ou no mundo dos documentários, o episódio de


Amarna é retratado em diversos momentos, associados ao faraó e a sua reforma religiosa

149
ou à sua esposa Nefertiti. O episódio ganha dimensões de grandiosidade, ficção, loucura,
exagero, fanatismo, a depender do público que se queira agradar, e as inspirações para o
cinema e documentários são as mais diversas: fontes arqueológicas, textuais, literatura ou
ainda o próprio imaginário oriundo do conjunto de fatos históricos que transitam entre a
academia e a vida prática das pessoas.
Seguindo essas ideias e antes de entrar em alguns aspectos propriamente do filme
no recorte temático em questão, cabe contextualizá-lo dentro de sua inspiração para
composição: o livro O Egípcio de Mika Waltari (veja-se Imagem 1). O filme O Egípcio
(1954)3 é uma produção estadunidense baseada na obra homônima de Mika Waltari
(1908-1979) um escritor finlandês, que além de O Egípcio (1945) escreveu outros
romances que envolvem temas históricos. No livro em questão, concebido e escrito em
uma época turbulenta da II Guerra Mundial temas diversos são explorados em torno de
valores humanos, família, amizade, culto religioso, guerra, espionagem entre outros que
podem significar inquietações biográficas do seu autor em sua trajetória de vida. No livro
o foco está na personagem Sinuhé, que ao menos em nome é baseada em fontes da própria
antiguidade egípcia. Todavia, seu contexto insere-se no recorte cronológico de
Akhenaton, na XVIII Dinastia, contando por exemplo com capítulos bastante precisos
como décimo terceiro, intitulado “O Reino de Aton na Face da Terra”, ou ainda em
diversas outras passagens da obra. Tal qual o filme, a obra é rica em detalhes sobre o
referido período dinástico e os conflitos gerados pela imposição do culto a Aton.

3
O filme foi produzido por Darryl F. Zanuck, dirigido por Michael Curtiz, com roteiro de Philip Dunne e
Casey Robinson, qua adaptaram o romance à tela do cinema.

150
Imagem 1: Assim como diversas outras adaptações de livro ou temas de cunho histórico, O Egípcio deve
ser problematizado. Aqui, lado a lado, a inspiração (o livro O Egípcio de 1945 de Mika Waltari, à esquerda;
e a obra fílmica, O Egípcio de 1954, à direita.

Sobre o texto que se conhece como As Aventuras de Sinuhé ou História de Sinuhé,


este é oriundo de diversos manuscritos sobre papiros, que eventualmente podem ter sido
utilizados para se aprender a escrita egípcia. Diferentemente do que se expressa no livro
e no filme, a história de Sinuhé advém da XII Dinastia, do Reino Médio (2055-1650)
entre o final do reinado de Amenemhat I (1985-1955 a.C. e a transição para o trono, de
seu filho, Senusert I (1965-1920 a.C.). Pelas informações dos manuscritos, Sinuhé 4 seria
um funcionário da família real (Canhão, 2013, p. 84) e passaria por diversas experiências
de vida, viagens e conflitos bastante diferentes das que se passam no filme. Na História
de Sinuhé, portanto, nos remetemos à XII Dinastia, no livro e no filme que levam o nome
de O Egípcio, nos colocamos na XVIII Dinastia e a personagem Sinuhé é recriada em
outro contexto e com diferentes ações das que são postas nos manuscritos, o que
claramente não atrapalha nossa leitura diante do recorte temático e cronológico
estabelecido no reinado de Akhenaton e no culto a Aton.
O intuito do filme, por seu lado, como aponta sua sinopse contida no próprio DVD
é o de retratar que:

Nos tempos da décima oitava dinastia do Egito, Sinuhe [...], um pobre órfão,
torna-se um brilhante médico. Junto ao seu amigo Horemheb [...] ele é
apontado para servir ao novo Faraó. Vivendo na corte, Sinuhe começa a
perceber coincidências entre acontecimentos que marcaram as dinastias
faraônicas e tragédias que marcaram sua própria vida. Cada vez mais absorto
pelas intrigas da corte, ele passa a conhecer bizarros segredos de seus
governantes e muitas respostas para perguntas que ele carregou consigo
durante toda a sua vida” (O Egípcio, 1954)

Considerando o breve enredo anunciado e o desenvolvimento do filme, apontam-


se paralelos estreitos entre Sinuhé e a história bíblica de Moises (Sales, 2009, p. 133),
uma vez que Sinuhé é recolhido das águas do Nilo sendo adotado por um modesto médico
egípcio que desconhece seu sangue real (Idem). O filme se passa na XVIII dinastia, sob
reinado de Amenhotep IV, que muda seu nome para Akhenaton, como já dissemos.
Sinuhé possui um servo e um grande amigo, Horemheb. No descritivo de José Candeias
Sales:

4
Há uma versão em língua portuguesa da História de Sinuhé organizada por Telo Ferreira Canhão na obra
Textos da literatura egípcia do Império Médio, indicado em nossa bibliografia.

151
As boas intenções de Sinuhé, que se torna no brilhante médico do epilético faraó,
apostado em procurar a verdade na corte amarniana e no templo de Aton, o deus
único proclamado pelo faraó para desgosto dos irados sacerdotes politeístas,
opõe-se uma sedutora babilônica de nome egípcio, Nefer [...] que o tenta separar,
a todo custo, da abnegada e monoteísta Merit [...]. Com a morte desta, o revoltado
Sinuhé, que atribui a culpa às ideias religiosas e a Aton, o deus do faraó, acaba
por se aliar a Horemheb e envenena Akhenaton” (Sales, 2009, p. 133-134)

No recorte que nos interessa, o contexto no filme em que se retrata a reforma


amarniana empreendida por Akhenaton, podemos observar inúmeras passagens que
merecem atenção e uma breve descrição, já que podem ser relacionadas as características
apontadas em trechos do Grande Hino ao Aton. Passamos aqui a pontuar os trechos de
interesse dentro do filme.
Em meio às desventuras de Sinuhé, vemos a menção a deuses, no plural, já no
início do filme, mostrando a possível existência de outros cultos que não o oficial a Aton.
O filme tem como espaço a cidade de Tebas. Logo após os minutos iniciais, considerando
a morte do faraó Amenhotep III, fala-se de sucessão. Em torno de 20 minutos de filme
aparece a figura do sucessor, em um lugar deserto, aguardando o nascer do sol, a prestar
culto ao deus solar. No filme, diante das pessoas da corte, entende-se uma forma menos
aristocrática e menos arrogante do faraó ao tratar as leis, manifesta, por exemplo, na forma
como o ele lida com Sinuhé e Horemheb, que seguindo as leis antigas, por terem tocado
o faraó ao tê-lo salvo de um leão e de um surto epiléptico seriam condenados a morte. Em
torno dos 29 minutos, o faraó menciona a necessidade de recolhimento para orações, com
a chegada da noite. No filme, aparece como símbolo oficial do faraó deus a cruz ankh,
em amuletos e em uma escultura no próprio templo central do palácio do faraó. Fica
evidente um contexto turbulento na cidade, pelas divergências entre o culto a um deus
único ou a outros deuses, expresso em um conflito civil e também nos jogos de interesses
dos antigos sacerdotes que ainda estão muito próximos de Akhenaton., mas o querem fora
do trono. Isso fica claro o intuito dos sacerdotes dos antigos deuses (em torno de 1h20 de
filme) e de Horemheb estabelecerem união para acabar com o faraó.
Um ponto que merece destaque do filme é o templo central do palácio (que
aparece diversas vezes, entre elas em torno de 1h23 de filme), a céu aberto, um novo
templo colocado para adoração ao sol. Fala-se no filme também do sofrimento que o novo
deus trouxe ao Egito, malgrado apareça retratado um faraó benevolente, piedoso e pleno
de sabedoria da nova religião. Em alguns momentos dá-se a impressão da constituição de
um deus com tonalidade judaico-cristã, que pode reverberar as tentativas de apropriação

152
dessa forma de monoteísmo como próximas dessa religiosidade. Neste sentido, por
exemplo, o próprio faraó declara que “Eu só posso dar ouvidos a Aton” (em torno de 1h27
de filme), mostrando seu foco em torno desse único deus do qual saiu.
Neste ínterim, em um contexto de conflito civil e um iminente ataque Hitita o
faraó declara não poder dar ordem para guerra, para que não haja derramamento de sangue
e diante disso, por exemplo, Horemheb diz que “Akhenaton deve ser separado do Egito”
(em torno de 1h44 de filme). Evidencia-se uma grande conspiração para a
morte/envenenamento do faraó, o início de um massacre aos seguidores do deus solar na
cidade (em torno de 1h53 de filme) e por fim, mesmo em meio aos conflitos no templo
principal o culto continua, embora o templo venha em seguida (em torno de 1h58 de
filme) a ser violado e dentro dele ocorra um massacre dos fieis. Constrói-se a imagem de
um templo devastado e em chamas. Chegando o contexto da morte do faraó (a partir de
2h07 de filme) Akhenaton ainda fala sobre ele ser fraco mas não ter sido abandonado pelo
deus solar, deus de toda criação, símbolo de calor, luz e poder e afirma ser feliz por ter
sido capaz de reconhecer Aton como o deus que está em tudo e em todos. Aqui,
salvaguarda engano, novamente se poderia pensar em uma forma de deus judaico-cristão.

Imagem 2: No item 1 a família real fazendo uma oferenda ao Disco Solar, de Amarna, sala principal de
culto do palácio real (fonte de época, 1352-1333 a.C., Museu Egípcio, Cairo). Nos itens 2 e 3, o faraó e a
esposa Nefertiti e na imagem seguinte ambos prestando culto ao Disco Solar, na representação do filme.

Feitas essas considerações, temos ainda que enumerar entre as informações


históricas sobre a reforma amarniana e o Grande Hino ao Aton o que a nosso ver aparece
de interessante no filme, como característico do culto a Aton e do contexto histórico que

153
retrata em sua construção romanesca e cinematográfica da história. Entre os itens a
chamar a atenção, podemos começar pelo retrato dos conflitos entre o culto a Aton junto
a coexistência de elementos da antiga religião, ao menos no interesse dos sacerdotes, por
exemplo, em retomar os antigos deuses. Também chama a atenção a postura do faraó,
quando aguarda o nascer do sol, em culto a céu aberto tal qual se evoca no Hino a
importância do seu nascer todos os dias para tudo o que existe. Em oposição, aparece
também a questão negativa da noite, momento no qual o faraó se recolhe para as orações
e que, no Hino, fica evidente pelos perigos que rondam o mundo na ausência do sol.
No filme, o faraó se mostra bastante benevolente e piedoso e, fica claro, em
aproximação à linguagem do próprio Hino, em que este parece querer mostrar e derramar
graças aos seres humanos e tudo o que existe. Também nos é clara a proximidade
mostrada entre o faraó e Aton, bem como a sua exclusividade de diálogo cotidiano com
ele, que é o único deus de toda a criação. Além desses elementos, ainda podemos destacar
a forma como a reconstituição dos templos aparece, veja-se a exemplo o templo central,
que mostra o céu aberto e a figura de Aton em uma das representações mais tradicionais,
o disco solar pleno de raios para todos os lados que findam em mãos (veja-se a Imagem
2) para abraçar tudo aquilo que existe sob seus auspícios.
Percebe-se, portanto, que o filme ao tratar do tema da reforma religiosa de
Akhenaton, do culto a Aton e explorar as suas consequências sociais e a caracterização
de algumas ideias religiosas aponta para pontos cruciais, presentes na obra literária que o
inspirou e também em algumas fontes históricas identificáveis, como a que arrolamos
aqui. Cabe considerar, neste sentido, a riqueza de possibilidades apresentadas pelo filme,
das quais aqui apenas se vislumbrou uma, que podem ser trabalhadas e fazemos a
salvaguarda de que a abordagem que se apresentou aqui buscou ser bastante breve em
cima de seus objetivos.

Considerações finais

Por fim, ao se considerar a representação cinematográfica empreendida pelo filme


O Egípcio do recorte que vislumbramos no presente texto, podemos pontuar algumas
questões que devem ser ponderadas em uma leitura histórica do episódio de Amarna. A
primeira delas se liga à riqueza de se abordar temas sobre o Antigo Egito no cinema, pois
cada filme apresenta um universo grande de possibilidades de discussões que podem ser

154
dinamizadas como problematizadoras do conhecimento histórico e suas incontáveis
formas de representação no cinema.
Em segundo lugar, cabe considerar o conjunto de subsídios que serviram de base
para a construção do filme (alguns fatos sobre a reforma amarniana, as fontes históricas
e o romance de Waltari e seu contexto de produção), que se mostram bastante complexos
e interpenetrados, diante da quantidade de informação que o filme quer nos passar e, ao
fim, sempre há uma relação entre o cuidado com a análise e a própria dificuldade de
análise que, para tanto, deve buscar se fundamentar em elementos teórico-metodológicos
que discutem a relação Cinema e História. A isso também se liga a questão das
temporalidades, pois quando se discute uma representação fílmica de temas históricos, as
múltiplas temporalidades e a relação entre passado e presente se põem em evidência.
A terceira se liga ao que podemos compreender como elementos constituintes do
culto solar, posto em prática no momento histórico preciso da história das dinastias
egípcias e que podem, nesta breve leitura, ser identificadas como questões contundentes
para se discutir elementos essenciais do culto a Aton e dos desdobramentos sociais e
políticos de tal prática. Lembrando sempre o devido cuidado entre as linguagens presentes
na obra cinematográfica e o interesse do historiador em abordar um filme para discutir
qualquer tipo de conhecimento histórico.
A quarta consideração final, mas que propriamente não se colocou presente no
texto, diz respeito a nossa experiência em utilizar o filme O Egípcio em sala de aula, no
curso de graduação em História no qual atuamos, que sempre se mostra produtiva diante
dos três itens anteriormente mencionados. A linguagem cinematográfica e a forma como
o filme trabalha os figurinos, as decorações de interiores e a caracterização dos cenários
se mostram como bastante instigantes e mobilizadoras, atraindo interesse para o
conhecimento da história do Antigo Egito.
Por último, cabe dizer que o cinema possui bastante relação com o conhecimento
sobre o Antigo Egito que as pessoas carregam consigo, constituindo-se sem dúvida uma
fonte inspiradora de manifestações de egiptomania, egiptofilia, egiptosofia e, por que não
dizer de futuros egiptólogos ou historiadores que venham a possuir interesse especial
sobre a cultura egípcia antiga. A representação do Antigo Egito no cinema, ao fim, não
deve ser menosprezada diante de toda a potencialidade que representa junto aos
sentimentos que as pessoas nutrem por esse passado tão grandioso e significativo à
história da humanidade.

155
Bibliográfica:

Fontes

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CANHÃO, T. F. Textos da literatura egípcia do Império Médio. Textos hieroglíficos,
transliterações e traduções comentadas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.
FILME: O Egípcio, Twentieh Century Fox, E.U.A, 1954.
WALTARI, M. O Egípcio (1945). Tradução de José Geraldo Vieira. Le Livros Eletrônicos, 1958
(com base na edição de 1958).

Artigos, livros e outros

BALDISSERA, J. A. e Bruinelli, T. O. Tempo e Magia - A história vista pelo cinema:


Antiguidade. Porto Alegre: Escritos, 2014.
BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: BENJAMIN, W.
Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas v.1)
BIERBRIER, M. L. Historical Dictionary of Ancient Egypt. Plymouth/UK, 2008.
CARDOSO, C. F. S. “O politeísmo dos antigos egípcios sob o Reino Novo (1530 -1069 a.C.)”.
In: LIMA, A. C. C.; TACLA, A. B. (org.). Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA,
Ano 1, nº 1, Niterói: Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade – CEIA - da
Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008. p. 63-76.
CARDOSO, C.F.S. “Uma reflexão sobre a importância da transcendência e dos mitos para as
religiões a partir do episódio da reforma de Amarna, no antigo Egito.” PLURA, Revista de
Estudos de Religião, v. 2, n.1, 2011, p. 3-24.
DAVID, R. & DAVID, A. E. Biographical Dictionary of Anciente Egypt. London: Seaby, 2003.
GRALHA, J. “Egípcios.” In: FUNARI, P. P. (org.) As religiões que o mundo esqueceu: como
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GRIMAL, N. História do Egito Antigo. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
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XAVIER, I. O Discurso Cinematográfico. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

156
Sobre os Autores

CINTIA ALFIERI GAMA-ROLLAND


Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, mestre em
arqueologia pela Universidade federal do Rio de Janeiro, doutora pela
École Pratique de Hautes Études, Paris. Antiga conselheira científica do
Museu do Louvre. Integrante de duas missões arqueológicas no Egito e
pesquisadora da coleção egípcia do Museu de Arte de São Paulo- Masp.

JULIO CESAR MENDONÇA GRALHA


Prof. Dr. Hist. Antiga e Medieval da UFF (UFF-ESR); coord. do Núcleo de
Estudos em História Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar
(NEHMAAT-UFF) e do Laboratório História Espiritualidade e
Religiosidade (LHER-UFF). Pesquisador do núcleo Antiguidade e
Modernidade: História Antiga e Usos do Passado – Unifesp e Editor da
Revista Mundo Antigo.

LEANDRO HECKO
Graduado (UEL), mestre (UFRGS) e doutor (UFPR) em História.
Atualmente é professor Adjunto no curso de História da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, em Três Lagoas, atuando nas disciplinas
de Antiguidade Oriental, Antiguidade Clássica, Teoria da História e
Prática de Ensino em História. É autor do livro A Egiptomania e os Usos
do Passado.

LILIANE CRISTINA COELHO


Professora de História do Centro Universitário Campos de Andrade
(Curitiba-PR). Doutora em História, em Egito antigo, pela UFF.
157
Atualmente é membro do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA-
UERJ) e orientadora do Grupo de Estudos Kemet – História e
Arqueologia do Egito Antigo (GEKemet/CEIA-UFF). É especialista em
cidades e urbanismo no Egito antigo.

MARCIA SEVERINA VASQUES


Professora Associada II do Dep. de História do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes e do Programa de Pós-graduação em História da
UFRN. Possui graduação em História e doutorado em Arqueologia pela
USP. Atua nas áreas de egiptologia e História Antiga com destaque para o
estudo do Egito Romano.

MARGARET MARCHIORI BAKOS


Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista Senior da
Fundação Araucária. Bolsista de Produtividade do CNPq. Professora
aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

MARIA APARECIDA DE OLIVEIRA SILVA


Graduada, Mestre e Doutora em História pela USP. Pós-Doutora em
Estudos Literários pela Unesp/Araraquara e em Letras Clássicas pela
USP. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a Antiguidade Clássica e
suas Conexões Afro-asiáticas da Unifesp. Tradutora de Heródoto e
Plutarco.

MAURICIO SCHNEIDER
Bacharel pela UFPR (História, 1995), Doutor pela USP (Arqueologia,
2006). Professor Doutor na Universidade Paranaense, Campus Cascavel,
Colegiado de Pós-Graduação em História.

MOACIR ELIAS SANTOS


Arqueólogo; Mestre e Doutor em História Antiga(UFF), Pós-doutorado
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na UEPG; Diretor do Museu de Arqueologia Ciro Flamarion Cardoso
(Ponta Grossa – PR). Professor de História da Uniandrade e coordenador
do curso de especialização em História Antiga e Medieval da Pós-
graduação Itecne (Curitiba – PR). Membro do CEIA, GEKemet e do
NEHMAAT, da UFF.

NELY FEITOZA ARRAIS


Doutora em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense e
Professora do Departamento de Educação do Campo, Movimentos
Sociais e Diversidade (DECAMPD) da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ)e do Curso de Licenciatura em Educação do Campo do
Instituto de Educação da UFRRJ- Campus Seropédica.

RAQUEL DOS SANTOS FUNARI


Licenciada em História pela Faculdade de Filosofia de Belo Horizonte
(1986), mestre (2004) e doutora (2008) em História também pela
Unicamp. Atualmente é pesquisadora colaboradora em pós-
doutoramento no Departamento de História da Unicamp.

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