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Tantra = sexo?

Pedro Kupfer

Algumas pessoas têm me procurado através deste site solicitando


informações sobre ‘aulas de Tantra’. Como não sei exatamente o que
elas entendem por Tantra, fico me perguntando como poderia ajudá-las
a encontrar o que buscam, ou a evitar as armadilhas em que se arriscam
a cair.
Para começar, vamos dizer o que o Tantra não é. Tantra não é
um gurumequetrefe prometendo orgasmos múltiplos e iluminação e
cobrando mundos e fundos por isso. Tantra não é uma prostituta com
nome de deusa oferecendo seus serviços na internet. Tantra não é um
grupo de alienados carentes se excitando e alisando em nome da
hiperconsciência. Tantra não é sacanagem, nem infidelidade
institucionalizada. Tantra não tem nada a ver com "soltar a franga".
Tantra não é tara.

Aquilo que os clones tupiniquins de Osho chamam de Tantra, não é o


Tantra (por favor, veja o esclarecimento no fim deste texto, antes de se
ofender e interromper a leitura. Obrigado!). Os cursos de Tantra
associados à sensualidade, técnicas sexuais e promessas de iluminação
através da excitação sexual têm como objetivo sustentar a forma de
vida de certos autodenominados ‘mestres’, que buscam satisfazer seus
próprios desvios sexuais e desejos de manipular pessoas, ganhando um
dinheirinho de quebra.
Então, o que significa essa palavrinha de seis letras? Tantra é o nome de
um vasto leque de ensinamentos práticos que têm como
objetivo expandir a consciência e libertar a energia primal do ser
humano, chamada kundalini. O princípio comum a todos os
caminhos práticos de Tantra é que as experiências do mundo
material podem usar-se como alavanca para conquistar a
iluminação, já que este é a manifestação de uma outra
realidade, sutil e superior, que está conectada com a nossa
própria natureza.

Nesse contexto, a visão do Tantra associada ao êxtase sexual é


pateticamente superficial e parcial, se comparada com a
verdadeira tradição. O Tantra não é hedonista nem orgiástico. O
objetivo do Tantra é o despertar da força potencial no homem.

Um colega, professor de Yoga, comentou recentemente que apenas


10% dos textos tântricos tratariam sobre sexo. Pessoalmente, acho esse
número demasiado elevado. Dos muitos shastras que consegui garimpar
na Índia, em sânscrito e em inglês, não têm sequer um que trate em
detalhe da sexualidade. Algumas técnicas sexuais, como a reabsorção
seminal após a ejaculação (vajroli), se descrevem, por exemplo,
na Hatha Yoga Pradípika.

A única obra hindu que conheço que trata explicitamente sobre


sexualidade, e como aumentar a performance na cama, é o Kama
Sutra, que não é um shastra tântrico e que, por sinal, fala muito
mais sobre ética do que você poderia pensar sem ter a obra em
mãos (1).

Embora existam diversas vertentes dessa tradição, todas têm o


mesmo objetivo e usam as mesmas ferramentas para atingi-
lo: mantras (sons de poder), yantras e mandalas (diagramas sagrados
sobre os quais se exerce a concentração), chakras (centros da força
vital), práticas de iniciação e purificação e um sistema ético que une e
protege o grupo de praticantes. Essa lista de práticas é incompleta, pois
os métodos dessa tradição incluem um espectro muito amplo de crenças
e técnicas.

Tantra significa literalmente tecido, urdidura; pode ser traduzido


como ‘espargir o conhecimento’ ou ‘a maneira certa de se fazer
qualquer coisa’,tratado, autoridade, estender, multiplicar, continuar.

Também designa o encordoamento do sitar ou outro instrumento


musical.É o nome de um movimento filosófico que compartilha
suas principais premissas com a filosofia do Yoga, herança e
patrimônio da cultura dos rios Indus e Sarasvati. O culto da
Grande Mãe está presente na Índia desde o neolítico (8000 a.C.), mas os
mesmos símbolos que o tantrismo utiliza hoje remontam ao paleolítico
(20000 a.C.) e estiveram sempre presentes ao longo do continente
eurasiano.

O Tantra assimilou e organizou os rituais da Magna Mater,


transformando-os num método de emancipação que busca na psique
humana a manifestação da própria força da Shakti. Esse movimento teve
uma forte influência sobre a religião, a ética, a arte e a literatura
indianas, havendo ressurgido com inusitada força entre 400 e 600 d.C.,
quando chegou a transformar-se numa moda que acabou por influenciar
nos modos de pensar e agir da sociedade indiana medieval. Aqui ela se
afirma, populariza e estende ainda mais, dando origem a um grande
número de correntes e manifestações filosóficas, religiosas, mágicas e
artísticas, algumas antagônicas.

"Não se trata de uma religião nova, senão de uma nova


caracterização de fatos que pertencem ao hinduísmo comum, mas que,
às vezes, só se apresentam precisamente em suas formas tântricas.
Percebe-se o selo do tantrismo na mitologia e na cosmogonia, mas,
principalmente, no ritual. O gérmen se remonta com freqüência aos
Vedas, especialmente ao Atharva Veda, que pode considerar-se um
hinário pré-tântrico." Jean Renou, El Hinduismo, p. 89.

O Tantra não pertence à tradição ortodoxa hindu, já que não


existe um darshana com esse nome. Sua visão do mundo é herança
e síntese da Índia aborígene e da Índia vêdica, muito mais antigas do
que imaginaram os estudiosos ocidentais do século XIX. É uma forma
de ver a vida e cada um de seus aspectos.

Há diferentes linhas do tantrismo: o Dakshinachara, linha da ‘mão


direita’,ou de tantrismo branco, se justapõe, através dos “rituais de
compensação”, ao Vámachara, corrente da ‘mão esquerda’, do
tantrismo negro, corrente na qual se destaca a escola Kaula, fundada
por Matsyedranatha por volta de 900 d.C.
O tantrismo negro se caracteriza pelos rituais de transgressão, como
opañchamakara (os cinco m), no qual o praticante utiliza a ingestão de
bebidas embriagantes, carnes e o coito ritual como meios de chegar à
sacralidade. Podemos identificar alguns desses rasgos no Rig Veda, nas
libações ceremoniais do soma e nos rituais sexuais. No ritual de
compensação doDakshinachara, o vinho é substituído por água, a carne
por coco seco, o coito pelo culto da Shakti, etc.

O Yogini Tantra (V:14) diz:


"Madya, o vinho, é o conhecimento intoxicante do Parabrahman
adquirido através do Yoga, que isola o praticante do mundo
exterior. Mamsa não é a carne, mas o gesto em que o sadhaka consagra
todos seus atos à Shaktí.Matsya, o peixe, é o conhecimento sáttvico pelo
qual o adorador sente compaixão pelo prazer e a dor de todos os
seres. Mudra, o cereal tostado, simboliza a renúncia a todas as formas
do mal, que conduzem a novos condicionamentos. Maithuna é a união
da kundalini shakti com Shiva no corpo do adorador."

Um dos artigos de fé do povo vêdico era, portanto, que a união


sexual conduzia à bem-aventurança do além e devia cumprir-se com
verdadeiro espírito religioso para assegurar o bem-estar espiritual,
censurando-se severamente a lascívia." S. B. Lal Mukherjí, ensaio
em Shakti y Shakta, de Sir John Woodroffe, p. 83.

A visão cosmogônica do Tantra, com suas perguntas essenciais,


evidencia uma atitude especulativa sobre a antropogênese que a vincula
ao Samkhya. A cosmogonia se caracteriza pela união dos opostos: isto é,
se trata de umacoincidentia oppositorum, conjunção dos opostos que se
complementam. Essa idéia não é original do Tantra: existiu em outras
cosmovisões ao longo da história da Humanidade; mas o tantrismo
recupera para si esse princípio, muito mais antigo que ele próprio.

Esses dois princípios em coincidentia


oppositorum são Shiva e Shakti. Osrishis, sábios ascetas do alvorecer do
pensamento hindu, chamaram Brahmanou Shiva o princípio primordial.
Tudo existe em função dele, tudo é reflexo e evidência da sua realidade.
Não há noção de criação do mundo nem há Deus: no plano
macrocósmico, Shiva é, parafraseando Aristóteles, o motor imóvel do
mundo. É o Princípio Imutável e Eterno, nem ativo nem criador. Ele não
faz nada: apenas é. Sua manifestação é Shakti, palavra que
significa energia e, por extensão, esposa. Shakti é a Prakriti,
a Natureza do Samkhya, a energia criadora que provoca a manifestação
do Universo.

Shiva é inabalável: a ele pertencem o Ser e a Consciência;


à Shakticorrespondem o movimento, a mutabilidade e a geração. Esses
dois princípios se representam na iconografia do tantrismo unidos
no viparíta maithuna: Shivaaparece deitado ou sentado, imóvel,
enquanto Shakti está sempre sobre ele, ativa no ato da manifestação.

Esse modo de pensamento não é religioso, dogmático ou doutrinário,


mas estritamente especulativo. Dessa maneira, o Tantra, assim como o
Samkhya, se aparta de outras visões que incluem os conceitos de
criação, divindade, origem do mundo, et coetera.

Contudo, o Tantra possui uma certa semelhança com algumas


formas de panteísmo: O que está aqui, está em toda parte; o que não
está aqui, não está em parte alguma (2). Daí provém o culto à Natureza
e à feminilidade. Para o Tantra, o mundo tangível é bem real: ilusório é
pensar que o Ser (Shiva) intervenha ativamente no Universo
manifestado.

Agora, vamos falar um pouco sobre a parte do Tantra que se ocupa


do sexo ritual. A incompreensão do Tantra e o simbolismo que o
transmite colaborou para considerá-lo repulsivo, vergonhoso e digno de
escárnio. A preocupação daquele que condena o Tantra é fruto da sua
própria obsessão com a questão sexual, que o leva a querer coartar a
liberdade dos demais. Nesse sentido, o tantrismo é totalmente
natural, e a sua abordagem do sexo não é patológica, mas
absolutamente sadia, de uma espontaneidade difícil de aceitar
para os padrões da ‘decência’ cristã.
Maithuna, o ritual sexual, não tem nada a ver com pornografia ou
licenciosidade, muito pelo contrário, é um instrumento que revela a
dimensão divinal da natureza humana. Entretanto, nos últimos
tempos, têm surgido mestres inescrupulosos que vendem sexo
como se fosse superconsciência, o que acaba por divulgar e
tornar conhecidas no Ocidente unicamente as formas mais
vulgares e degradadas do Tantra

"O maithuna é a técnica tântrica que mais fascina os ocidentais, que


com demasiada freqüência confundem-na com uma indulgência para
com os apetites sexuais, em vez de vê-la como meio para dominá-los."
Daniel Goleman, A Mente Meditativa, p. 98.

Enquanto alguns buscam a elevação através da repressão ou


da eliminação do desejo sexual e suas raízes (samskaras), para o
tantrismo a sua utilização é condição básica. O homem deve
evoluir executando as mesmas ações que causam a sua
perdição. Assim, afirma o Kularnava Tantra:

Quando caímos no chão, é com o auxílio do chão que nos


levantamos.

"Pelo próprio fato de não se tratar de um ato profano, mas de um


rito, no qual os participantes não são mais seres humanos senão que
estão ‘desprendidos’, como deuses, a união sexual não participa mais do
nível kármico. Os textos tântricos repetem com freqüência o adágio:
‘pelos mesmos atos que fazem com que muitos homens se queimem no
inferno durante milhões de anos, o yogin obtém a salvação eterna’. (...)
O jogo erótico se realiza num plano transfisiológico, porque nunca tem
fim. Durante o maithuna, o yogin e sua náyiká (4) incorporam uma
‘condição divina’, no sentido de que não somente experimentam a
beatitude, senão que podem contemplar diretamente a realidade
última." Mircéa Éliade, El Yoga. Inmortalidad y Libertad, pp. 194, 197.

Um esclarecimento a eventuais leitores desatentos: quando


escrevo "clones tupiniquins de Osho", não estou, de maneira alguma,
querendo ofender Osho ou seus discípulos. Um clone é uma cópia. No
dicionário encontramos a seguinte definição de clone. É "o que aparenta
ser a cópia de uma forma original". Tupiniquim, ainda segundo o
dicionário, significa "indígena pertencente ao grupo dos tupiniquins. Uso:
informal, jocoso ou pejorativo". Um "clone tupiniquim", portanto, é um
imitador que não chega aos pés do original; uma cópia malfeita, chinfrin,
um imitador barato, um auto-didata aspirante a "mestre" de sexo
tântrico. Conheço algumas pessoas desse naipe que, por exemplo,
promovem cursos de "nudismo consciente" e outras palhaçadas. Minhas
desculpas se o tom de algumas seções deste texto ofende pessoas que
consideram que o Tantra seja mesmo uma terapia sexual. Na dúvida,
perguntem ao Dalai Lama, um tântrico da melhor estirpe. Namastê!

A vida do professor de
Yoga
entrevista com Pedro Kupfer

Esta entrevista foi concedida à professora de Yoga e jornalista Ana


Sereno, durante o passado mês de Agosto de 2008. Quando da sua
estadia em Portugal para orientar a sua primeira Formação de
Professores de Yoga fora do Brasil, Pedro respondeu a uma longa lista de
perguntas acerca do que significa ser professor de Yoga. As opiniões
deste professor sobre a missão daqueles que querem passar o
ensinamento e o cenário actual do ensino do yoga para ler nesta
entrevista.

A Formação.

É a primeira vez que trazes esta formação para fora do


Brasil? O que te motivou a fazê-la em Portugal?
Sim, é a primeira vez que ministro esta formação completa fora do
Brasil. Já havia visitado Portugal várias vezes anteriormente, mas nunca
conseguia aceitar convites para dar cursos, pois apenas passava pela
Europa, nas viagens entre o Brasil e a Índia. Dois anos atrás, depois de
recusar vários convites por esse motivo, consegui finalmente vir. Gostei
tanto do que vi em Portugal que passei a incluir a terra de Camões no
meu roteiro anual. Ano passado, conversando com o professor Miguel
Homem, achamos que já havia um número suficiente de praticantes
motivados para participarem do curso de formação, que é bastante
exigente. Ele organizou belamente a primeira turma e o resultado
superou todas as expectativas, tanto em termos humanos, quanto em
termos de prática e estudo.

Pelo que conheces da realidade do Yoga em Portugal, como


descreves o cenário da formação no nosso país?
Considero que é um privilégio participar deste momento tão especial
que o Yoga está vivendo em Portugal. Percebo que muitas pessoas estão
começando a "sair da casca", a ampliar a própria visão da prática e do
trabalho com Yoga. Isso me deixa muito contente e motivado para
continuar esse processo. A iminente fundação do que poderá ser a
Aliança do Yoga em Portugal é mais um sinal de que as coisas estão
mudando para melhor aqui, uma vez que a comunidade de professores e
praticantes é coesa e motivada para fazer um trabalho autêntico e
transmitir livremente a tradição, desvencilhando-se das formas sectárias
ou distorcidas que prevaleceram nas décadas anteriores.

Consegues identificar diferenças na forma como o Yoga é


ensinado em Portugal, relativamente ao Brasil?
Não percebo alguma diferença essencial, já que o Yoga é universal e
a forma de transmiti-lo não tem mudado significativamente ao longo dos
tempos. Porém, percebo uma grande sede de aprender e motivação
muito profunda nos portugueses, e isso faz uma bela diferença no
resultado.

E os portugueses? Qual é a tua opinião sobre esta primeira


"fornada" de professores formados por ti?
A convivência com os praticantes daqui foi a coisa mais agradável
que vivi este ano! Como disse acima, fiquei admirado com a firmeza da
resolução dos portugueses em aprender. Lembre que o professor
somente realiza sua missão quando há praticantes motivados para
aprender. De nada adianta sabermos muito, se estamos sozinhos e sem
poder compartilhar aquilo que amamos. Essa motivação poderá ajudar
imenso esta primeira geração de professores a superar as eventuais e
inevitáveis dificuldades que possam surgir ao longo do caminho de cada
um. Igualmente, impressionou-me a solidariedade, a flexibilidade e a
harmonia no convívio que tivemos durante este primeiro módulo na
Quinta das Águias, em Paredes de Coura.
Ser Professor de Yoga

O que deve um professor de yoga cultivar?


Na verdade, esta pergunta já está respondida no código de conduta
yogíca. São aquelas dez coisas que Patãnjali propõe, ou aquelas outras
vinte que estão no código de conduta de Svatmarama, que estão na
Hatha Yoga Pradípika. No mínimo dos mínimos o professor de Yoga
deveria cultivar o código de Patãnjali.

Qualquer código de conduta é baseado na importância que a


sociedade dá ao dharma e a regra de ouro do dharma é “não faça aos
outros aquilo que não gostaria que eles fizessem consigo”, portanto,
ahimsa é a base para tudo. Neste sentido, o professor de yoga precisa
de saber que ele é, em primeiro lugar, um yogi e, em segundo lugar, um
professor de yoga. Isto não pode ser invertido.

O yogi deve então cultivar a não violência, no sentido em que todos


à sua volta não devem vê-lo como uma ameaça. Esta é a primeira coisa
que a pessoa deve cultivar, primeiro como ser humano, depois como
yogi e em terceiro lugar como professor. Sem ahimsa não há
humanidade no ser humano.

Satya. O professor tem de ser verdadeiro. Não pode dizer uma coisa
e fazer outra. Não pode haver incoerência entre o que se pensa, o que
se diz e o que se faz. Mas também isto é aplicável primeiro ao ser
humano, depois ao yogi e em terceiro lugar ao professor de yoga. A
questão é que este está numa situação peculiar pois ocupa uma
determinada imagem na sociedade. Dentro da sala o professor tem
poder e é possível que os alunos idealizem e achem que ele é um santo,
coisa que ele não é. Ele é um ser humano normal como qualquer outro,
que aprecia as qualidades de um santo mas que, muito provavelmente,
ainda não se conseguiu estabilizar dentro destas virtudes.

Se formos olhar para os exemplos do passado, há muito poucos de


conduta irrepreensível. Apesar de tudo, sejam quais forem os problemas
que o professor de yoga tenha, nunca deveria derramá-los para dentro
da sala ou para cima de alguém – isto é continência, que nos yamas
aparece como bramacharya em relação à conduta, e que no código dos
nyamas aparece como esforço sobre si mesmo ou tapas, que é a
capacidade de criar um limite para si mesmo, e de crescer a partir desse
limite.

Neste contexto cabe ainda asteya, não tirar aos demais tempo,
energia ou emoções e tão pouco permitir que os outros façam isso
consigo. Assim, na sua conduta o professor de yoga também deve ser
parcimonioso ao não exigir dos outros professores, dos amigos, da
família, dos alunos o seu tempo, por exemplo.

Aparigraha, que se traduz como satisfazer-se com o mínimo, e que


pode ser resumido com duas palavras - não possessividade - é outra
questão interessante para o professor de yoga cultivar. Todos nós,
naturalmente, queremos o mínimo, mas querer o mínimo e entendê-lo
não é a mesma coisa. Na medida em que o yogi estiver tranquilo em
relação à questão da abundância do Universo e estiver sintonizado e
aberto para ela, a prosperidade flui em direcção a si, isto está no Yoga
Sútra – quando a pessoa se contenta em ter o estritamente necessário,
todas as riquezas fluem em sua direcção.

Estes são os primeiros cinco yamas de Patañjali que o próprio afirma


serem elementos universais, ou seja, eles deveriam ser cultivados por
todas as pessoas, independentemente de posição social, de profissão, de
tempo, de lugar ou de circunstância. O professor de yoga especialmente
deveria cultivar isto - coerência, veracidade, honestidade e não-
violência.

O que é que um professor de yoga pode ter de sobra e o que


não deve ter nem um bocadinho?
Na minha opinião, o professor de yoga não deveria ser chato.
Ninguém vai querer praticar com um professor chato. Não importa se a
pessoa sabe muito, fala bem, tem um belo sotaque. Não importa as
palavras que usa, o discurso, o currículo. O professor de yoga precisa de
ser um “cara bacana”, tem de ser uma pessoa de boa índole, de
carácter, que tenha abertura e simpatia para comunicar com os
praticantes.

Swami Vivekananda dizia “cara feia não é sinal de espiritualidade


mas sim de disepsia”. Ás vezes, vemos alguns jovens entusiastas e
alguns velhos “avinagrados” assumirem uma postura absolutamente
seca e amargurada. Pode ser apenas uma opinião minha, mas se eu vejo
que Patãnjali fala em santosha e que Krishna fala a Arjuna de kshanti,
que é essa capacidade de estar tranquilo, de estar em paz, de estar feliz
por mais que a situação seja de instabilidade, aceitando o fluxo do devir,
então isto é o que não deve faltar a um professor de yoga.

O que distingue um professor de um praticante experiente e


dedicado? Para além da formação, ao primeiro colocam-se mais
exigências?
Dependendo daquilo que entendermos por experiente e dedicado, a
diferença pode ser apenas o facto do professor ensinar. Se este
praticante é um yogi e se o professor também é um yogi, a única
diferença formal é que um dá aulas de yoga e o outro tem outra
actividade.

Não diria que se coloquem mais exigências ao professor, porque um


praticante dedicado, um yogi, não vai ter uma conduta diferente da
conduta do professor e espera-se, igualmente, que este também tenha a
conduta de um yogi, portanto, neste sentido, não podem haver
diferenças. Se existirem, é pelo facto de o professor de yoga ter
assumido como adequado que todas as suas acções girassem em torno
do yoga, o que não quer dizer levar uma vida de yoga. Um praticante
sério e dedicado pode viver uma vida de yoga sem ser professor, sem
ter apenas amigos praticantes, sem frequentar apenas ambientes de
yoga, sem ser casado com um professor de yoga ou com outro
praticante... Viver uma vida de yoga é sermos capazes de aplicar o
ensinamento no quotidiano.

Uma melhor compreensão do yoga faz com que uma pessoa


se afaste em relação a hábitos como sejam o álcool, o fumo, as
drogas ou uma alimentação desequilibrada?
Sim, porque esta lista de coisas são atitudes auto-destrutivas, ou
seja, não têm ahimsa. Na medida em que nos tornamos conscientes de
que as nossas decisões nem sempre foram nossas, mas que vieram na
forma de condicionamentos externos, quando aprendemos a discernir o
que é bom e o que não é bom para nós, naturalmente, afastamo-nos do
que é mau, pernicioso e perigoso e estabelecemo-nos dentro daquilo
que é sadio. Desta maneira, existe o pratyahara, que é o quinto passo do
Yoga de Patãnjali e que tem o objectivo de fazer a pessoa ver o que lhe
faz bem e afastar-se daquilo que não lhe faz bem. Desta forma, a
prática dentro da sala duas vezes por semana, nem que seja só de
ásana e pranayama, serve como um gatilho para desencadear iniciativas
de mudança para melhor nos hábitos da pessoa.

Estarão estes hábitos relacionados com a cultura onde cada


um se insere ou serão uma realidade intrínseca da cultura do
yoga?
Onde o yoga nasceu, o vinho, por exemplo, é algo recente. Na Índia,
o consumo de álcool é algo muito mal visto. Culturalmente falando, o
hábito de comer ou beber “maconha” em algumas festas não é visto da
mesma forma como beber álcool. O objectivo não é o mesmo daquele
que se procura quando se faz uma festa no Ocidente e se oferece
champanhe aos convidados. O consumo desta droga na sociedade
indiana está directamente associado com a devoção às formas do divino.
No Holi, que é o aniversário de Krishna, todos os indianos, novos ou
velhos, tomam bhang lassi, mas é uma vez por ano e com aquele
objectivo. Agora, nunca vi um professor de yoga indiano com uma lata
de cerveja na mão.

Como é que estes hábitos estão descritos nos textos antigos?


O consumo de álcool, na forma de ritual, aparece no Kularnava
Tantra, mas não é embebedar-se, muito menos todos os dias, é beber
um cálice de vinho num ritual que faz parte de uma ideia maior que
consiste em quebrar com os condicionalismos que a sociedade coloca no
indivíduo, dentro daquela cultura. Este ritual chama-se panchamakara –
o ritual das cinco letras “m”. No quarto capítulo do Yoga Sútra diz-se que
existem yogis que entram em samádhi, usando aushadhi que se traduz
como erva, e que no contexto em que Patãnjali a coloca se refere ao
haxixe, ao ópio e à maconha. O Yoga Sutra apresenta uma lista de
práticas pois Patãnjali não ia deixar de registar aquilo que se fazia na
sua época. Hoje em dia, há yogis na Índia que se vêm como
continuadores do trabalho de Goraksha e que fumam maconha, são
conhecidos como Nágabhavas, são shivaístas. Dentro dos vaishnavas
existe um outro grupo de yogis que se conhecem como Kyaghis e que
fazem a mesma coisa. Faz parte, então, da tradição e da cultura da
Índia. Estes hábitos estão descritos nos textos, sempre dentro de
contextos rituais.

A este propósito, saiu há tempos um artigo no New York


Times, anunciando um retiro em Itália cujo mote era “Yoga and
Wine – práticas e degustações de vinho”. Qual é a tua opinião
sobre isto?
Se alguém me convidasse para um retiro de yoga com vinho eu não
iria, porque se yoga trata de descondicionar, de livrar-se de hábitos
mecânicos de condicionamento, yoga e vinho parece-me contrário ao
propósito de moksha, liberdade e auto-conhecimento. Parece-me uma
iniciativa da Kali Yuga, a época de conflito que estamos a viver, na qual
a distorção do yoga é cada vez mais flagrante.

Em relação àqueles hábitos de que falamos, onde está a


barreira para um professor de yoga? No exagero?
Sim. Nesta questão moderação talvez seja a palavra chave e depois
a decisão cabe a cada um. Eu conheço um professor de yoga que fuma
tabaco. Ele é um bom professor de yoga mas nunca conseguiu
desenvencilhar-se daquele hábito de muitos anos e que por isso está
muito enraizado...

Mas existem muitos outros problemas humanos que não estão nesta
lista, os problemas emocionais, por exemplo. Às vezes as emoções
transformam-se em vícios muito piores do que estes hábitos que
listamos e se eu quero ser livre tenho de me livrar delas também. O
professor de yoga pode não fumar, não beber, não comer carne mas isto
é secundário, porque o principal é se ele está bem resolvido
emocionalmente e se as suas acções, as suas palavras e as suas
atitudes no mundo condizem com o estado de santosha
(contentamento). Mais ainda, se ele é capaz de levar isso para o convívio
com os demais e se ele é capaz de inspirar outras pessoas neste sentido.

Há um ditado taoísta do qual eu gosto bastante, não me recordo


exactamente como é, mas didacticamente diz que às vezes algo que não
faz muito bem ao corpo, mas que conforta a pessoa, é melhor do que
livrar-se desse algo e ficar carente e desequilibrado por dentro.

A atitude subjacente à adopção ou rejeição de hábitos em


consonância com o ensinamento deve ser de renúncia, aliada a
força de vontade, ou de desapego?
A repressão não funciona. Reprimir ou conter sem haver entendido o
porquê dá sempre errado. O que funciona e produz mudanças definitivas
e duradouras nas atitudes das pessoas, o que promove a cura ou a
transcendência em relação a um hábito auto-destrutivo, é a
compreensão. Esta leva-me a exercer o desapego, que consiste em ver
as coisas exactamente como elas são. Ao olhar para um hábito auto-
destrutivo eu tenho de vê-lo exactamente como ele é – o consumo de
tabaco é o consumo de tabaco e não é uma fonte de felicidade.

Intrinsecamente, renúncia e desapego são a mesma coisa, e quando


eu vou trabalhar neste sentido eu vou também precisar de força de
vontade. Tudo o que nós fazemos com apego fazemos porque, em algum
nível, achamos que daquela acção vem felicidade. Quando nos damos
conta disto as máscaras das coisas caem e, assim, se antes o fazíamos
por hábito para podermos ser felizes, depois percebemos que a nossa
felicidade não depende desse hábito. Isto é visão objectiva, ver as coisas
como elas são.

Onde se situa a fronteira entre a liberdade individual do


professor e aquilo que ele deve representar, enquanto um
exemplo a seguir pelos alunos?
Esta é uma pergunta delicada. Pessoalmente, eu acho que não
poderia haver nenhum milímetro de distância entre o que eu sou e o que
eu demonstro ser. Estas duas coisas deveriam estar completamente
coladas, de modo que, exercendo a honestidade, eu não esconda nunca
questões que ainda não resolvi. Não pode haver incongruência,
incoerência entre o professor e a pessoa. Não é sequer questão de ser
professor ou não, mas de ser um humano coerente, estabelecendo uma
coerência entre o discurso e a acção. O melhor exemplo que o professor
pode dar, então, é simplesmente ser coerente.

Na tua perspectiva, qual a importância da prática pessoal


para um professor de yoga?
Como ensinar a tocar violino sem saber quantas cordas tem um
violino? Como ensinar algo sem possuir uma certa familiaridade e
intimidade com aquilo que nos propomos a ensinar? Como se constrói
um professor de yoga? A partir de um praticante sério e dedicado. A
prática pessoal é fundamental porque dali vem o substrato com o qual
se vai construir as aulas que se dão. Esta prática vai evoluindo e a aula é
um reflexo de como está a prática pessoal do professor. Observamos
que quando há pouco tempo e muito trabalho a pessoas sacrificam a sua
prática pessoal. Mas o que entendemos por prática: é fazer ásana,
meditação, pranayma, é estudar, é aplicar o estudo na vida quotidiana?
Na vida de yoga, prática é ter um momento do dia para a sua reflexão
pessoal, para o seu estudo, independentemente se isto é feito através
de uma meditação de um pranayama de uma saudação ao sol, o que
for... Depois a aplicação do ensinamento sobre o qual se fez a reflexão
na prática vem para o quotidiano e aí sim temos um yogi, que é
coerente entre o que faz e o que ensina.

Qual a importância para um professor de yoga de conhecer a


Índia?
Nenhuma. Um professor de yoga pode ser um óptimo professor sem
nunca ter pisado a Índia. Um exemplo disso é Georg Feuerstein que foi
pela primeira vez à Índia há dois anos atrás e, no entanto, escreveu mais
de 30 livros sobre yoga.

Existe aquela ideia de que ir à Índia funciona como uma pós-


graduação. Pela ordem: eu sou um praticante dedicado, depois torno-me
vegetariano, depois faço uma formação, dou aulas de yoga e faço uma
viagem de estudos à Índia. Uma viagem de estudos pode ser feita para
qualquer lugar. O conhecimento está onde estiver o professor, não
necessariamente na Índia, principalmente nestes tempos globalizados
em que vivemos. A Índia em si não tem o yoga, o yoga está na Índia
como em muitos outros lugares.

Como hoje em dia existe aquela popularização massiva do yoga no


Ocidente, muita gente viaja para a Índia em busca do yoga, tendo lá
surgido uma nova geração de professores ambiciosos que não são
honestos e que querem enganar estas pessoas. Quando fui à Índia pela
primeira vez tive dificuldade em arranjar bons professores.

Algum tempo depois, fiquei com dúvidas e decidi voltar para lá para
reaprender tudo o que sabia, porque algumas coisas percebia que
estavam equivocadas, para me reprogramar com alguém que me
corrigisse tudo. No primeiro dia encontrei logo aquele que seria o meu
professor, hoje em dia não é tão fácil. Recebo muitos emails de pessoas
que dizem que vão para a Índia sem expectativas, de mente aberta, à
espera que algo de mágico aconteça, mas geralmente, se a pessoa não
prepara a viagem frustra-se. A Índia dos livros de fotografia não é a
Índia, mas um pequeno ângulo dela.

Hoje em dia, os professores que se encontram na rua e que


oferecem aulas de yoga ou sámadhi instantâneo, em 90% dos casos
querem enganar as pessoas. Há menos de 10% de chance de encontrar
um professor bom e honesto. O facto de estar na Índia não ensina yoga
a ninguém. Pode ser uma experiência de vida, uma experiência
gastronómica, musical, mas se o objectivo for yoga é necessário
preparar-se antes, pesquisar, interrogar, pedir conselhos...
O ensino do Yoga na actualidade

Hoje em dia, no Ocidente, o yoga aparece cada vez mais


como técnica e menos como cultura. Achas que existem cada vez
menos professores de yoga e cada vez mais professores de
técnicas de yoga?
Neste momento de popularização extrema do yoga, não apenas no
Ocidente, mas na Índia também, existem muitos professores de técnicas
e poucos yogis.

Desde antigamente, o yoga nunca foi dirigido ao grande público. Se


formos procurar nos shastras verificamos que o yoga nunca foi destinado
às massas. Krishna diz a Arjuna na Baghavad Gita “são poucos os que
têm interesse em moksha e, desses poucos, menos são os que
conseguem realizar alguma coisa, e destes, são muito menos ainda
aqueles que conseguem realizar a vida na sua plenitude máxima”.

Neste sentido, se formos ainda mais para trás até às Upanishads, lê-
se aquela afirmação da Katha Upanishad que fala sobre o fio da navalha
“estreito é o caminho”. Não há muita gente disposta a andar no fio da
navalha. Então yoga como fenómeno para o combate ao stress, para a
manutenção da saúde e do bem–estar é uma coisa, agora yoga como
caminho para moksha, como instrumento para colocar em prática o
auto-conhecimento é para poucos e neste sentido, deparamo-nos hoje
com esse paradoxo de ver muita gente a ensinar yoga, transmitindo
técnicas baseadas na presunção de que yoga é um sistema para manter
conforto, bem-estar e saúde e poucos, inclusivamente dentro da nação
dos professores de yoga, o vêem como o que ele desde sempre foi – o
caminho para a liberdade.

A diferença poderá estar vinculada com o estilo de vida ou


com a cultura à qual o professor pertence?
O estilo de vida ou a cultura na qual nos inserimos são secundários
em relação a isso. Voltando à Baghavad Gita, quando Arjuna pergunta a
Krishna “como age esse yogi liberto?” ele quer saber como reconhecer o
sábio, mas olhando por fora não existe nenhuma diferença. É como diz o
ditado do budismo zen – “antes da iluminação cortar lenha, carregar
água. Depois da iluminação cortar lenha, carregar água”. Não muda
nada. Se o estilo de vida era ocidental deverá continuar a sê-lo e se era
oriental, igualmente. A pessoa aprecia as coisas da própria cultura e
sociedade e dá-se conta que precisa de devolver alguma coisa para esta
mesma sociedade onde nasceu. Ela não renuncia à sociedade,
desconsiderando tudo o que ela lhe deu de bom, isso seria uma atitude
de ingratidão.

Tudo o que nós somos e temos veio da sociedade. Na Índia existem


dois nascimentos, o primeiro e o segundo no qual o hindu recebe o
cordão Yajñopavitam, com três fios – ida, píngala e sushumna; tamas,
rajas e satva; os três princípios da realidade. Eles representam três
dívidas que a pessoa tem de pagar: a dívida para com os ancestrais
(pitra rihna), que se paga tendo e educando os filhos e assistindo e
cuidando dos pais; a dívida para com os sábios (rishi rihna), que ensinam
a arte de viver ou a vida de yoga e que se paga ensinando a próxima
geração; a dívida para com a sociedade (dharma rihna), segundo a qual
eu devo dedicar uma parte do meu tempo para o bem-estar das outras
pessoas.

Qual o papel do karma yoga na vida de um professor?


Existe um consenso em alguns sectores da nação yogika que diz que
a sua maneira de pagar a dívida com a sociedade deveria acontecer
levando o yoga até às pessoas que à partida poderiam não ter acesso a
ele. Neste sentido, o professor de yoga não precisa deixar de fazer a sua
actividade, mas dentro daquilo que faz, dedica um momento, da sua
semana ou do seu dia, aos demais, levando o yoga até aqueles que não
conseguem ter acesso à sua escola, ensinando em hospitais, instituições
ou prisões, por exemplo. Neste contexto, então, karma yoga é o que se
conhece como o yoga da acção social.

O papel do karma yoga é, por um lado, o pagamento dessa dívida


que o ser humano tem desde o nascimento e, por outro lado, tem a
função de acumular punya, através da acção adequada, que é aquela
que é meritória e que traz paz e tranquilidade.

Que estilos de vida estão em consonância com o dharma?


Todos. Qualquer sociedade humana sempre criou formas de
interrelacionamento, nas quais aquele princípio áureo do dharma de não
fazer aos outros aquilo que não gostaria que fizessem comigo, estivesse
sempre presente. Se considerarmos estilos de vida como formas em que
a sociedade se organiza, todos os estilos de vida, de todas as
civilizações, culturas e continentes, estão baseados no dharma. Agora,
dentro de uma sociedade, seja ela qual for, nós vemos que existem
indivíduos com estilos de vida diferentes. Quando um estilo de vida
atropela esse princípio áureo da equidade e do equilíbrio e a pessoa
exige mais do que dá, então isso chama-se de conduta adhármica ou
que vai contra o dharma. Logo, os estilos de vida que estão em
consonância com o dharma são aqueles nos quais o indivíduo, a família,
ou a nação respeitam o direito comum e reconhecem que o outro, seja
homem ou mulher, branco ou negro, cristão ou pagão, muçulmano ou
judeu, hindu ou budista, têm os mesmos direitos do que eu.
Como procedes quando as tuas preferências não coincidem
com o dharma?
As preferências de cada um não são as preferências do Ser, porque o
Ser não tem ego. Quando ganhamos aquilo a que se chama livre-arbítrio
temos de aprender a usá-lo e, para isso, se não formos capazes de nos
colocar no lugar do outro, os frutos das nossas acções vão-se voltar
contra nós. Assim, liberdade é algo que precisa de ser bem
compreendido para procedermos quando as preferências do ego não
coincidem com o bem comum. Se eu perceber que alguma preferência
que eu tenha esteja a prejudicar o bem comum, outros seres vivos, ou a
mim mesmo, renuncio a essa preferência, ela deixa de ter valor porque
existe um valor maior, que é o dharma.

Onde se situa a barreira entre o professor e o empresário?


Tradicionalmente, o yoga sempre foi ensinado dentro de famílias, em
grupos pequenos ou “tête a tête”. Conforme vai aumentando a procura,
o mercado responde gerando mais professores. O sistema capitalista
tende a massificar meios de produção e de consumo, então para baixar
o custo aumenta-se a produção. A diferença entre um grupo de yoga
dentro de um esquema de produção massiva e um grupo pequeno de
alunos que se ensina em casa, é equivalente à diferença entre a guitarra
que foi feita na cadeia de produção e a outra, que foi feita por um
artesão, sozinho em sua casa, e com tempo para trabalhá-la. Nesta
sociedade contemporânea em que vivemos temos muito o paradoxo do
cash&carry, não queremos esperar.

Mas a resposta a esta pergunta é que não existe barreira. Cada um


escolhe de que forma se vai relacionar com o trabalho de yoga. Algumas
pessoas vão olhar para o yoga como um produto e, analisando, o
mercado, vão ver de que maneira aquilo poderá ser apresentado para
que tenham um retorno. O foco para o professor-empresário deveria ser
ainda o yoga e não apresentar o yoga como um meio para aplicar a
mais-valia em professores e pensar em massas de alunos para ter
retorno financeiro. Em todo o caso, este é um efeito subsequente, não
deveria ser o foco.

Há um fruto que retorna para o professor a partir do seu trabalho.


Mas o foco para o ensinamento é moksha não é dinheiro. Ali está a
diferença entre o professor-empresário em sintonia com a essência do
yoga, e o outro que está focado apenas em ganhar dinheiro. O que
busca moksha, paradoxalmente, obtém um resultado por vezes mais
eficiente do que aquele que está centrado no dinheiro, porque este,
muitas vezes, perde a credibilidade e perde o apoio das pessoas.
Ninguém quer praticar com alguém que está centrado única e
exclusivamente no dinheiro.

Eu gosto sempre de olhar para a forma com que se lidou com as


questões na tradição do yoga, nos tempos passados, e sempre houve
pagamento ao professor (dakshina – que quer dizer direito). O Yoga
nunca foi dado de graça, o conhecimento nunca foi de graça. Então,
findos os estudos o aluno tinha a obrigação de dar dinheiro ao professor.
Na Taittirya Upanishad, que é uma das mais antigas, descreve-se a
situação de um menino que está a deixar a casa do professor na qual
dormiu, aprendeu e estudou, durante anos e tem de deixar dinheiro
antes de partir. Conta-se que este menino entrega o que é descrito como
um presente digno (naquela época, vacas, tecidos, grãos…) e havendo
oferecido este dakshina o professor dá-lhe um discurso final sobre como
ele se deve comportar dali por diante.

Quando o aluno não tinha meios, pedia um mecenato, pedindo


dinheiro ao Rei, que financiava os estudos dos alunos que não podiam
pagar, pois aquele era o destino natural de uma parte dos impostos que
ele recolhia da sociedade. Uma parte desses impostos ia para a
manutenção de templos, estradas, obras públicas, e outra parte ia para
financiar a educação daqueles que não tinham posses. Então, sempre
houve uma retribuição do trabalho do professor, mesmo que não viesse
directamente do aluno.

Dinheiro é uma forma de energia, é a energia de Lakshmi que é a


Deusa da saúde, da beleza e da prosperidade. Em sintonia com Lakshmi,
se eu me dedico ao meu trabalho e se dedico os frutos do meu trabalho
a Ísvara, naturalmente vem alguma coisa para mim nessa forma de
energia, que se chama dinheiro. Se eu não tiver como foco fazer muito
dinheiro, é provável que eu ganhe mais do que se estiver totalmente
centrado nessa ideia. O professor trabalha relaxado, porque ele faz o
trabalho pelo dharma e aquilo é mais uma consequência, juntamente
com os outros frutos que se ganham e que são imensuráveis.
O professor de Yoga na sociedade

Porque é que frequentemente os professores de yoga são


vistos como indivíduos que vivem uma vida de sacrifícios e
privações?
Depende muito do olhar de quem faz o julgamento. Pessoalmente,
não acho que seja sacrificante ou difícil escutar ou repetir o ensinamento
do yoga e, basicamente, o professor de yoga é alguém que partilha a
prática com as pessoas porque ele próprio precisa de fazer essa prática
e de ouvir o ensinamento. Então, dá-se aqui um processo de
retroalimentação. Se nós escolhemos ser professores porque nos demos
conta de que o ensinamento é interessante, é importante e precisa de
ser compartilhado, qual é o sacrifício em ficar perto disso?

Talvez as pessoas olhem dessa forma para o professor de yoga,


porque acham que a vida deste professor não tem nenhuma alegria. Se
o professor de yoga não tem aquela vontade de adolescente de sair à
sexta à noite e de andar sempre pelas festas, talvez quem olhe de fora
pense “coitados, eles acordam cedo, não podem comer carne, não
podem beber, não podem sair à noite…” . Mas é tudo uma questão de
prioridades, nada é imposto ou forçado. Muitas vezes o que as pessoas
não se apercebem é que aquele desapego que foi exercido sobre estas
pequenas situações do quotidiano, ou sobre a alimentação, foi exercido
porque aquilo deixou de ter valor, não há um sacrifício. O facto de
algumas pessoa seguirem um ritmo e outras seguirem outro diferente,
faz com que as pessoas que seguem o ritmo predominante vejam as as
outras como se elas se sacrificassem. Mas a bem da verdade, o
professor de yoga não se priva de nada, ele definiu quais são as suas
prioridades e age de acordo com elas.
Como agir para desmistificar a ideia de que o professor de
yoga é um ser alienado da sociedade com hábitos diferentes,
pontos de vista diferentes, valores diferentes…?
Depende do que se entender por sociedade e por alienação. Na
verdade, a presumida alienação do yogi não é uma alienação grave
porque esta, literalmente, aplica-se a alguém que não pertence à
sociedade. O professor de yoga constrói o seu próprio caminho nas
seguintes bases: ele respeita as leis, mas não só respeita as leis
humanas como também olha para o dharma que é a lei da harmonia
universal e que tem regras que não estão escritas na lei humana. O
dharma fala sobre o convívio entre os humanos, mas também da relação
destes com a natureza, o cosmos e as gerações futuras.

Nesse sentido, existe um compasso entre o ponto de vista do yogi e


o ponto de vista prevalecente na sociedade, em que o primeiro não está
apenas respeitando a lei porque é necessário, senão porque ele próprio
opta por levar uma vida em harmonia com o dharma, pois isso redunda
num bem maior para si e para a sociedade. Depois, como o professor de
yoga também é uma espécie de embaixador de outra cultura, porque a
cultura do dharma nasceu no Oriente, através do budismo e do
hinduísmo, tem algumas coisas que são ligeiramente diferentes – alguns
símbolos, roupas… mas isso acaba por funcionar como uma marca de
identidade que todos os grupos sociais têm. Os surfistas têm a sua
linguagem, o seu lugar de encontro, os seus lugares sagrados como Bali
e Hawaii. Numa palavra - os professores de yoga também formam uma
sub-cultura.

Porque se criam quase comunidades de professores?


Quando não nascemos numa família de yogis, mas nos
reconhecemos como tal, é natural que o estilo de vida daqueles que
compartilham os mesmos ideais nos atraiam. Então as comunidades são,
na verdade, famílias, kulam em sânscrito, que quer dizer clã ou família
estendida. Eu tenho uma família biológica e depois tenho outra família
que é a família do yoga. Esta família não é uma abstracção, entre ela
criam-se laços que permanecem em harmonia, tolerância e aceitação
mútua, sendo o resultado desta convivência positiva.

Então, esta comunidade é uma família, com todos os problemas que


uma família tem mas que não se separa por causa do dharma que
mantém as pessoas unidas, dentro do mesmo ideal e objectivo –
moksha. Este objectivo vence todas as diferenças que existam entre os
membros da família. Quando olho para um colega praticante vejo
alguém que caminha na mesma direcção que eu.

Como lidar com os amigos, com as limitações que eles


projectam em nós?
Amigo que é amigo vai compreender o que o amigo está a fazer e
mesmo que não compartilhe o mesmo ideal ou a mesma visão a
amizade não muda.

Como permanecer integrado numa comunidade cujas


estruturas sociais estabelecidas, sobretudo para os mais jovens,
marginalizam aqueles que não respeitam essas estruturas?
Isto Tem a ver com as sub-culturas que naturalmente se formam
dentro das grandes estruturas culturais. Enquanto eu me enquadro
nesses valores, repito esses gestos, pertenço a essa sub-cultura, mas se
em algum momento eu deixo de ostentar esses símbolos sou colocado
para fora pela minha própria atitude.

Neste sentido, as estruturas das tribos dos jovens por mais que
pareçam coloridas, modernas e abertas são medievais, super fechadas “
senão pensas como eu és um alienígena”, “eu só falo com quem fala a
minha língua”. Então quando temos amigos dentro de uma destas tribos,
se eu mudo a minha forma de ser, mas a amizade existe, ela não se
perde. A resposta à pergunta é que é impossível. O facto de eu viver a
vida de yoga e seguir os seus valores não me vai colocar fora da
sociedade mas é possível sim que, em algum momento, alguma pessoa
observe ou se dê conta e mude determinados hábitos – como deixar as
drogas ou o álcool. A pergunta que eu faço é: eu preciso de pertencer a
um grupo no qual eu sou julgado pelos meus actos e do qual eu vou ser
irradiado se os meus actos não se encaixarem com os actos que esse
grupo aprova? Posso pertencer se para mim isso for importante, por uma
questão de identidade cultural, mas se eu achar que não preciso disso
não fico, e as amizades verdadeiras vão permanecer por mais que as
pessoas naveguem em navios diferentes.

ILUMINAÇÃO PARA
QUE?
Pedro Kupfer
A verdade sobre o puja
Pedro Kupfer

Você sabe o que significa é o pújá? Alguns praticantes acreditam que


o pújá seja uma espécie de transferência de energia, uma saudação
esquisita onde quem 'dá' o pújá perde alguma coisa, e quem o 'recebe',
ganha energia e longevidade, força e mais alguma coisa nebulosa,
arrancada à força do doador.

A palavra sânscrita pújá significa literalmente adoração. Na Índia, a


palavra pújá é usada para descrever as diferentes formas de adoração
aos deuses, seja no templo, seja em casa.

Um pújá é um ato de reverência do devoto em relação a uma


determinada representação de Deus, indicado pela presença de um
símbolo (uma escultura, uma imagem, uma fogueira sagrada, etc.).

Entre os procedimentos do pújá estão a invocação inicial ao Ishta


devattá, a deidade eleita, chamada áváhana, o convite para sentar, a
lavagem dos pés e atos de adoração mediante o oferecimento de flores,
incenso, luz e alimento.
O pújá é precedido pelo sankalpa, a resolução interior de levá-lo a
cabo. Na continuação se faz o múla mantra, o mantra invocatório, e se
dá o nome da deidade à qual o ritual é dirigido. Depois se oferecem os
elementos rituais e se fazem os mantras propiciatórios. O ritual conclui
com o visarjana, o convite para que a deidade se recolha.

Conforme o tipo de pújá, se usam tradicionalmente grupos de vinte e


um, dezesseis, dez ou cinco elementos rituais, chamados upachára.
Dentre eles, os cinco elementos que constituem a matéria
(pañchatattwa), aparecem simbolizados por oferendas de flores
(pushpa), incenso (dhúpa), luz (dípa), alimentos (naivedya) e sândalo
(chandana), significando éter, ar, fogo, água e terra respectivamente.

Esses procedimentos formais prescritos para o pújá buscam venerar


uma das representações de Deus, na forma de um hóspede que se
recebe dentro de casa. Estes atos são feitos em estado de meditação e
vão acompanhados pela recitação de certos mantras e textos escriturais
que variam conforme a tradição do pújári (aquele que faz o pújá).

O ritual do pújá conclui com a distribuição de prasáda, alimento que


foi oferecido à deidade. A aceitação do prasáda é um ato de
reconhecimento da deidade como a fonte de toda a felicidade, a
realização espiritual, a paz e a prosperidade de que desfrutamos.

Outros sinônimos de pújá são vandaná, saparyyá, namasyá, arhaná e


bhajan. O pújá do Bhakti Yoga se faz diariamente, dirigido à deidade de
culto pessoal, Ishta devattá: Vishnu se a pessoa for vaishnava, Shiva ou
Ganesha se for shaiva, Deví no caso de um shakta, etc. É um tipo de
prática chamada kámya, que se faz para realizar algum objetivo.

Como escolher um bom


professor de Yoga?
Pedro Kupfer
COMO FUNCIONA O
SAMSKARA?
Pedro Kupfer

O samskara é o conjunto das tendências subconscientes, de caráter


inato e hereditário, causa dos condicionamentos. As vasanas são os
desejos subliminares que funcionam como força motriz dos pensamentos
e ações do indivíduo. São marcas sutis, porém indeléveis que as
experiências deixam na mente subconsciente. O termo samskara
significa literalmente 'ativador'. Isso sugere que as impressões
subconscientes não são apenas resquícios inertes de pensamentos e
ações passados, mas são forças ativas que continuam determinando os
conteúdos da vida psíquica, impelindo continuamente a consciência para
assumir novas formas que, por sua vez, darão lugar a novas ações. Os
cinco tipos de vrittis mencionados pelo sábio Patañjali no Yoga Sutra são
as maneiras com que essas tendências subconscientes dão corpo à vida
psíquica. Eles são cognição correta, cognição equivocada, fantasia, sono
e memória.

Quando perseguimos ou fugimos de uma situação ou de um objeto,


criamos subjetivamente uma imagem dessa situação ou objeto em nossa
mente. Um exemplo disto aparece num belíssimo texto atribuído a Adi
Shankaracharya, chamado Atma Bodha. Nele, o autor descreve o tipo de
equivocação que acontece quando alguém, percebendo o brilho da
madrepérola, acredita estar vendo prata. Até a natureza da madrepérola
ser conhecida, a idéia da prata é real para essa pessoa. Quando a
natureza da madrepérola se revela, a idéia da prata desaparece. Da
mesma forma, quando alguém vê uma serpente e foge dela, a serpente
é real para essa pessoa. A serpente da qual a pessoa foge pode ser
apenas uma mangueira jogada no chão, mas, para quem só tem esse
conhecimento errado, a única realidade que existe é a serpente. Existem
de fato a prata e a serpente reais, ambas objetivas e verdadeiras.
Nossas imagens mentais da prata ou da serpente evocam essas
realidades, mas não são a realidade, da mesma forma que a fotografia
mostra alguma imagem real, mas não é a realidade.

A palavra sânscrita abhyasa, traduzida geralmente como prática


constante, significa literalmente 'repetição'. Há duas formas de se
interpretar este termo: uma positiva e uma negativa. A positiva consiste
em exercer consciente e diligentemente a atentividade ao longo do dia
inteiro. Em seu aspecto negativo, este termo refere-se à repetição dos
padrões de reação (o tal do samskara) que devem ser superados
mediante uma atitude consciente que precisamos ter para conseguirmos
aprender com as diferentes experiências.

Como sair dessa arapuca?


Existem somente duas maneiras de agirmos no mundo: uma
automática e outra consciente. A repetição automática não nos permite
aprender nada novo. Simplesmente reagimos de maneira mecânica,
repetindo e reforçando ainda mais os padrões e propensões
subconscientes, como máquinas: quando um certo botão é pressionado,
uma determinada reação acontece. Isso faz com que passemos pelas
diferentes experiências sem conseguirmos crescer através delas. Nesse
sentido, precisamos anular esse aspecto negativo do abhyasa cultivando
as atitudes conscientes em cada ação.

Positivamente, abhyasa significa olhar construtivamente para nosso


psiquismo, na distância, compreendendo sua estrutura e funcionamento
e, ao mesmo tempo, deixar de identificar-se com seus conteúdos,
pensamentos e sentimentos. É preciso compreendermos os padrões que
nos impelem à reação automática. Desde o aspecto postitivo, abhyasa é
a capacidade de compreender os padrões subconscientes que subjazem
e predeterminam nossas reações mecânicas. Percebendo esses padrões,
poderemos evitar as situações indesejáveis que eles desencadeiam,
antes que estas aconteçam. Desta maneira, estaremos agindo
livremente, ao invés de apenas reagir como máquinas.

Samskara, corpo sutil e ásana.


A atividade psíquica aciona por sua vez o sistema glandular,
responsável pela secreção dos hormônios. Através das práticas, agindo
sobre os centros de força, podemos neutralizar essas as propensões
indesejáveis da mente e sublimar o samskara. Fazendo ásanas e
contrações (bandhas), por exemplo, pressionamos e massageamos as
glândulas do sistema endócrino, que estão relacionadas à atividade
mental. As mudanças biológicas causam reações nas outras áreas do ser
humano: consciência, mente, emoções e subconsciente.

O corpo sutil, sukshma sharira, está relacionado às emoções: da


mesma forma, também os endocrinologistas sabem que certos
desequilíbrios emocionais estão ligados a disfunções glandulares. As
glândulas do sistema endócrino atuam em consonância com os sete
principais chakras. Cada glândula desempenha um papel no
funcionamento do corpo, segregando hormônios e substâncias químicas
sob influência do princípio de realidade dominante em cada região do
corpo sutil.

Desenvolver a intuição de como o alinhamento trabalha pode


despertar experiências escondidas no corpo, tornando conscientes os
samskaras, os condicionamentos que moldam nossas estruturas
musculares. Nesse plano, ainda mais sutil, o alinhamento funciona para
abrir caminhos para que a energia ascenda. Desta forma, buscar o
alinhamento profundo pode comparar-se à tarefa de lapidar um
diamante. Em primeiro lugar, precisamos colocar muita atenção no
processo e ter claro aquilo que estamos procurando. Partindo de uma
pedra bruta, o lapidador consegue enxergar as linhas onde a pedra pode
ser cortada para assumir a forma desejada.

Para trabalhar sobre os próprios samskaras durante a prática de


ásana não é necessário fazer alguma técnica determinada. Acredito que
qualquer conjunto equilibrado de posturas pode servir como apoio para a
reflexão que nos pode levar a identificar, reconhecer, trabalhar e
sublimar os aspectos menos desejáveis do nosso samskara.

O Tantra e os Yogas
Entrevista com Pedro Kupfer

1) Por que a palavra Tantra está tão relacionada a sexo e


libertinagem?
Por causa dos valores sexistas, hipócritas e distorcidos da nossa
sociedade em relação à sexualidade. A civilização judaico-cristã é
obsessionada com o sexo e incapaz de toma-lo como algo espontâneo
ou natural. Uma prova clara disso é a invasão de imagens com forte
apelo sexual nas capas das revistas, seja para vender produtos de
beleza, seja para vender carros ou o que for. Outra prova é o fato que
alguns autodenominados 'mestres' de 'Tantra', 'Yoga sexual' ou
assemelhados fazem sucesso prometendo orgasmos infindáveis e
iluminação e cobrando mundos e fundos por isso.

Tantra é o nome de um vasto leque de ensinamentos práticos que


têm como objetivo expandir a consciência e libertar a energia primal do
ser humano, chamada kundaliní. O princípio comum a todos os caminhos
práticos do Tantra é que as experiências do mundo material podem
usar-se como alavanca para conquistar a iluminação, já que o este é a
manifestação de uma outra realidade, sutil e superior, que está
conectada com a nossa própria natureza.
Neste contexto, a visão do Tantra associada ao êxtase sexual é
pateticamente superficial e parcial, se comparada com a verdadeira
tradição. O Tantra não é hedonista nem orgiástico. O objetivo do Tantra
é o despertar da força potencial no homem, e isso não é uma tarefa fácil
nem que se possa conquistar dando prazer aos sentidos ou alimentando
a sexo-dependência.

2) É correto dizermos que alguns conceitos foram distorcidos


ao longo do tempo?
Não creio que essa tenha sido uma distorção temporal, mas cultural,
que aconteceu aqui no Ocidente quando esses ensinamentos sagrados
mudaram de contexto, embora hoje em dia haja distorção destes
ensinamentos também na Índia. Ao tirar esse tipo de prática do seu
contexto original para adaptá-la ao gosto ocidental, se corre o perigo de
reduzir a busca da própria essência a um artigo de consumo, um
"produto". Surgem assim adaptações, versões diluídas, para tornar o
produto mais palatável e, conseqüentemente, mais vendável.

3) Qual é a origem do Yoga tântrico?


O Tantra é herança e patrimônio da cultura dos rios Indo e Saraswatí,
no norte do sub-continente indiano, onde nasceram igualmente o Yoga e
o hinduísmo. O culto da Grande Mãe está presente na Índia desde o
neolítico (8000 a.C.), mas os mesmos símbolos que o tantrismo utiliza
hoje remontam ao paleolítico (20000 a.C.) e estiveram sempre presentes
ao longo do continente eurasiano.

O Yoga tântrico assimilou e organizou os rituais da Deusa Mãe,


transformando-os num método de emancipação que busca na psique
humana a manifestação da própria força da Shaktí. Este movimento teve
uma forte influência sobre a religião, a ética, a arte e a literatura
indianas, havendo ressurgido com inusitada força entre 400 e 600 d.C.,
quando chegou a transformar-se numa moda que acabou por influenciar
nos modos de pensar e agir da sociedade indiana medieval. Aqui ela se
afirma, populariza e estende ainda mais, dando origem a um grande
número de correntes e manifestações filosóficas, religiosas, mágicas e
artísticas, algumas antagônicas.

4) Existem diferentes tipos de Yoga. Existe um melhor do que


o outro?
A modalidade de Yoga escolhida por cada um de nós deve estar em
função das nossas expectativas e necessidades. Diferentes formas de
Yoga não dão os mesmos resultados com as mesmas pessoas e não há
consenso sobre o que deveria ser ensinado em uma aula de Yoga.

Entretanto, é preciso frisar que não existe um Yoga superior, mais


completo ou melhor que os demais. Se um professor de Yoga afirmar o
contrário, dizendo por exemplo "o meu Yoga é o melhor do mundo",
estará se colocando numa postura que fere e ética do sistema e
confessando explicitamente que não entendeu uma das partes mais
importantes da filosofia, que é a necessidade de respeitar o Dharma, a
justiça divina.

Cada método se adapta melhor para objetivos diferentes. O melhor


Yoga é aquele que funciona para você, que satisfaz suas necessidades e
preenche suas expectativas, sejam elas quais forem. É questão de
procurar até achar algo que lhe satisfaça.

5) Poderia descrever brevemente os principais tipos de Yoga?


Vou dar uma lista incompleta, pois seria impossível enumerar todos
os Yoga existentes neste espaço limitado. Há muitos métodos diferentes
de chegar no objetivo final do Yoga, que é o estado de união consigo
mesmo e com a alma cósmica.

Dos sistemas de Yoga que utilizam abordagens físicas, os métodos


mais populares no nosso país são o Hatha Yoga, a Yogaterapia, o
Ashtanga Vinyasa Yoga e o Iyengar Yoga.

O Hatha Yoga tradicional é sem dúvida o mais difundido e praticado,


por ser o que chegou primeiro aqui, nos anos 50, dando origem inclusive
a alguns tipos de Yoga que foram criados aqui mesmo no Brasil e que
não possuem nenhuma conexão com as tradições filosóficas da Índia.

O Ashtanga Vinyasa Yoga, o Iyengar Yoga, a Yogaterapia e o Power


Yoga chegaram muito mais recentemente, mas estão conquistando seu
espaço na preferência dos brasileiros, despertando interesse em outros
segmentos da sociedade que os originalmente interessados no Hatha
Yoga.

Se estiver procurando uma atividade desafiante e energética, onde


possa explorar e extrapolar seus limites físicos através de uma malhação
consciente, o Ashtanga Vinyasa Yoga, o Iyengar Yoga ou o Power Yoga
podem ser extremadamente exigentes, adequadas para atletas e
pessoas que gostem de trabalhar o corpo com disciplina e intensidade.

Se for o caso de usar Yogaterapia por indicação médica, se


recomendam uma ou duas sessões diárias de exercícios específicos que
incluam ásana, pranayama e yoganidra, bem como aconselhamento
alimentar. O professor neste caso precisa ter muito estudo e experiência
no assunto. Há professores que preferem negar os efeitos terapêuticos
do Yoga, o que é muito mais fácil que estudá-los.

Existem muitas outras modalidades que não trabalham o corpo,


como o Mantra Yoga, que investiga os efeitos dos sons e das vibrações
sutis sobre a consciência; o Bhakti Yoga ou Yoga devocional, conhecido
principalmente através do movimento Hare Krishna; o Raja Yoga, que dá
muita mais ênfase à prática da meditação; e outros sistemas que visam
a atingir o estado de comunhão através de exercícios de auto-reflexão e
discriminação, como o Jñana Yoga ou de rituais, como algumas formas
ortodoxas de Tantra Yoga.

6) Na sua opinião, como a prática do Yoga vem evoluindo ao


longo do tempo?
O Yoga é inerente ao ser humano e permanece sempre vivo na
memória coletiva da Humanidade. Sabemos que as crianças fazem
espontaneamente técnicas de Yoga, sempre como brincadeira, sempre
de forma instintiva. Isto, porque ele faz parte da nossa essência. O Yoga
nasce a partir da compreensão das manifestações externas da natureza
e suas influências subjetivas sobre a consciência humana.

Durante o processo histórico de formação do Yoga, que durou


milênios, foram acrescentando-se novas técnicas, experiências e
constatações das sucessivas gerações de praticantes, que por
momentos o enriquecem e refinam com novos achados mas às vezes o
rebaixam quando, por exemplo, passam a incorporar a pequena magia
popular.

Entretanto, por mais que mudem alguns dos seus conteúdos durante
essa travessia, a essência do Yoga continua sempre a mesma: mágica,
imutável e atemporal. A mensagem do primeiro praticante,
atravessando as gerações, continua sendo válida para nós, homens do
século XXI.

7) Quais os benefícios que o Yoga pode trazer para seus


praticantes?
O Yoga pode literalmente dar uma vida nova a quem o pratica.
Através das práticas físicas, adquire-se um corpo novo, mais saudável e
flexível, que possibilitará ter uma vida mais longa e com mais qualidade
de vida. Adquirindo a capacidade de relaxar, podemos observar o mundo
com mais objetividade e sermos mais justos em todas as situações que a
vida nos coloca. A prática da meditação é o martelo que destrói a
ignorância real, que é a incapacidade de responder perguntas como
'quem sou eu?' ou 'o que estou fazendo nesta vida?'

8) Há quanto tempo você pratica? Como o Yoga influenciou e


influencia sua vida?
Pratico há 19 anos. Comecei no Uruguai quanto tinha 16 anos de
idade e nunca mais parei. Desde o início percebi que a capacidade de
transformação do Yoga poderia me ajudar e ajudar as pessoas a terem
uma vida mais feliz e saudável. Vejo a prática mais como uma forma de
vida, uma atividade que permeia as 24 horas do meu dia, do que uma
série de exercícios que se fazem algumas vezes por semana dentro de
uma sala fechada.

O Yoga tem a ver com estar presente em todas as experiências de


vida, receptivo e atento para poder realizar o propósito supremo da
existência que é desenvolver a natureza divinal no homem. Esse
processo de 'divinização' do ser humano inclui uma visão do mundo em
que o yogi enxerga o conjunto da sociedade humana como uma única
família. Portanto, implica que o praticante fará alguma coisa para
melhorar as condições de vida dos seus semelhantes no lugar onde ele
mora. Pessoalmente, acredito que é importante reciclar o lixo humano
que a sociedade descartou. Para realizar este ideal, dou aulas no
presídio masculino da minha cidade, Florianópolis.

Como montar uma série


equilibrada de ásanas
Pedro Kupfer

Este é o primeiro de uma série de três textos breves, cujo tema é a


construção da prática pessoal. Ele se complementa com Elementos
essenciais para montar uma prática completa de Hatha Yoga e Dicas
importantes para praticar, que serão disponibilizados brevemente neste
mesmo site. Esperamos que eles sejam úteis para estimular a prática
pessoal.

Na hora de escolher as posturas, leve em consideração os três grupos


de possibilidades abaixo listados. Lembre igualmente da permanência
em cada ásana. Posturas com maior estabilidade, como as sentadas ou
deitadas, permitem uma permanência maior. Posturas de equilíbrio num
pé só, ou sobre as mãos e outras de estabilização ou força pedem uma
permanência mais breve. Consideramos que uma permanência longa,
para iniciantes, seja algo em torno de dois minutos. Um permanência
breve, algo em torno de oito a dez respirações.

Estas instruções, obviamente não têm o propósito de substituir um


professor. São colocadas aqui com o único propósito de esclarecer
eventuais dúvidas sobre o tema. Se tiver alguma outra dúvida ainda, use
a seção de comentários.

1) Grupos posturais
a) equilíbrio,
b) lateralidade,
c) fortalecimento muscular,
d) estabilização articular,
e) inversão,
f) alongamento passivo e
g) relaxamento.

Eis um exemplo de posturas de cada um destes sete grupos:


2) Ações da coluna vertebral
a) lateralidade,
b) tração,
c) torção,
d) flexão,
e) hiperextensão.

Eis um exemplo das ações destes cinco grupos de posturas:


3) Posturas possíveis do corpo:
a) em pé,
b) sentado,
c) deitado,
d) invertido.

Eis exemplos das posições destes ásanas:


A tribo dos yogis,
ontem e hoje
Pedro Kupfer
KARMA É FATALIDADE?
Pedro Kupfer

Na tradição shivaísta, Garuda, o deus-águia, aparece como guardião


do deus Shiva. Um antigo texto chamado Shiva Purana conta que, uma
vez, Garuda, montando guarda no alto do Monte Kailash, morada de
Shiva, reparou num pequeno pássaro que cantava entre as rochas. O
poderoso deus-águia ficou maravilhado pelo contraste entre a majestade
da vasta cordilheira do Himalaia e a delicadeza dessa pequena criatura.
Disse para si mesmo: 'Que maravilhosa é natureza! A mesma
Consciência que criou as imensas montanhas, fez igualmente este
pequeno pássaro, e ambos são igualmente admiráveis'.

Nesse mesmo momento, Yama, o Senhor da Morte, apareceu na


distância, cavalgando seu búfalo negro. Garuda reparou que o deus da
Morte, ao se aproximar, olhou com curiosidade para o pequeno pássaro
ao passar, mas continuou andando, pois ia ao encontro de Shiva.
Considerando aquele olhar de Yama como um presságio da morte para o
pequeno pássaro, Garuda, cujo coração é cheio de compaixão, decidiu
salvá-lo. Pegando com delicadeza o frágil pássaro entre suas poderosas
garras, voou para muito longe, até a beira do rio Ganges. Lá, encontrou
um lugar que lhe pareceu suficientemente seguro, com abundante água,
vegetação e alimento. Deixando o pássaro sobre uma rocha, retornou
para seu posto no alto do Monte Kailash.

Quando o Senhor da Morte estava retornando do seu encontro com


Shiva, Garuda perguntou-lhe: 'Yama, quando você chegou, observei que
se deteve para observar aquele pequeno pássaro. Posso saber porque?'
Yama respondeu: 'Quando olhei para o pássaro, soube que ele iria
imediatamente encontrar a morte nas mandíbulas de uma serpente
píton. Como esse tipo de serpente não vive aqui, no alto do Monte
Kailash, achei isso muito curioso'. Novamente, Garuda maravilhou-se,
desta vez, pela inevitabilidade do karma.

Definindo o karma.
Lendo esta historinha, podemos pensar que karma seja uma espécie
de destino inevitável. No entanto, a idéia de karma como destino ou
fatalidade está longe do que esta palavra sânscrita realmente significa.
Karma quer dizer 'ação', e define não apenas as coisas que fizemos e
fazemos, mas igualmente os resultados que derivam dessas ações. Esse
termo é usado para definir o princípio de causa e efeito que rege todas
as relações no universo. Esse conceito abrange absolutamente todos os
feitos dos homens e suas conseqüências ao longo do tempo, em nível
coletivo e individual.

A doutrina do karma é uma das mais profundas contribuições do


pensamento oriental à humanidade nos campos da metafísica, a ética, a
espiritualidade e a visão da relação entre o homem e o universo.
Podemos definir o karma como uma lei de responsabilidade pessoal, da
qual ninguém pode fugir, e que funciona por si mesma. A lei do karma
nos ensina que qualquer ação que façamos inevitavelmente produzirá
frutos. Dependendo da natureza das nossas ações, esses frutos serão
bons ou não.

A intenção daquele que age determina o caráter moral da ação e


suas conseqüências. Por exemplo, ferir alguém sem intenção não gera
uma retribuição negativa no futuro. A visão que surge da lei do karma
está baseada na razão e não na fé cega: ela fornece uma explanação
razoável e racional para o sofrimento humano, já que se considera que o
karma opera autonomamente, guidado pelo livre arbítrio de cada um e
que, conseqüentemente, aquilo que somos hoje é o resultado do que
fizemos ontem. Portanto, não há fatalidade ou destino marcado.

Podemos distinguir as seguintes regras na lei do karma:


1. Atos bons produzem frutos bons. Atos errôneos produzem
resultados errôneos.
2. Boas ações conduzem à felicidade. Ações contra o bem comum
levam ao sofrimento.
3. Quem age bem, torna-se bom. Quem age equivocadamente, sofre
e faz sofrer.
4. Os resultados das ações são limitados. Portanto, os karmas se
esgotam, cedo ou tarde.
5. Cada um constrói sua própria vida e seu próprio destino.
6. Aquele que realiza uma ação colhe inevitavelmente seus
resultados.

Liberdade, ação e conseqüência.


A lei do karma nos ensina que somos dotados de livre arbítrio e que
cada um é responsável por seus próprios atos, e arquiteto do seu próprio
destino. Precisamos aprender a usar a nossa liberdade em consonância
com o bem comum, de maneira que possamos evitar machucar, ferir ou
fazer sofrer os demais seres vivos: homens, animais e plantas.

Um antigo texto védico chamado Shatapatha Brahmana (VI:2:2:27),


afirma que 'todos os homens nascem neste mundo moldados por si
mesmos'. Isso significa que cada um traça seu próprio destino. As ações
passadas podem condicionar o presente, mas nunca determinar o futuro
de maneira fixa ou inamovível.
Aceitar com gratidão os resultados das nossas ações, quaisquer eles
forem, é a essência do Karma Yoga, o Yoga da ação consciente.
Podemos escolher o que fazemos, mas não temos escolha sobre os
resultados das nossas ações, pois elas já aconteceram. Isso é regulado
pela lei do karma. Não existem nem julgamento, nem juiz. Somente leis
imutáveis.

Podemos usar nossa liberdade para definir o que fazemos, mas não
temos escolha nem liberdade em relação aos resultados das nossas
ações. Porém, o grande problema é que não sabemos disso, e ficamos o
tempo todo tentando manipular os resultados. Ficamos constantemente
tentando mudar aquilo que não pode ser mudado. Isso é uma fonte de
infelicidade e sofrimento contínuo e nasce, em última análise, da
incapacidade de perceber que existe uma limitação em nossos poderes,
e uma diferença entre o que pode e o que não pode ser mudado.

Um mundo para chamar de seu?


É preciso compreender que não estamos no controle de nada. Nós
não acrescentamos nem um só grão de areia às praias, não contribuímos
com uma só gota de água à imensidade dos oceanos, nem sequer
construímos nosso próprio corpo. Essas realidades foram recebidas por
nós, seres vivos, junto com o presente da vida. Constatando isto,
compreendemos que:
1. não controlamos a natureza,
2. não controlamos o que os demais fazem, e
3. não controlamos nossas próprias emoções.

Podemos aprender, sim, a administrar as emoções, mas não as


controlamos. Não podemos nadar contra a corrente. Precisamos
aprender a relaxar, respirar e ir com o fluxo. O mesmo vale em relação à
maneira mais saudável de lidar com nossas emoções. Compreendendo
isto, e honrando a fonte do oceano das emoções, poderemos eliminar as
resistências internas e fontes de conflito, compreendendo que há coisas
que precisamos aceitar como são por não podermos mudá-las (os
resultados das ações), e que há coisas que podemos sim modificar (a
escolha das ações que estamos fazendo agora).

Quando compreendemos que as leis da natureza regulam os


resultados das ações, relaxamos, e vemos tudo como expressão da
graça da criação. Assim aprendemos a aceitar em paz e com gratidão o
que estiver fluindo em nossa direção, relaxamos e aceitamos tudo o que
vem e vai, tudo o que ganhamos ou perdemos. Nunca cresceremos
interiormente se não soubermos aceitar, se não pararmos de nos
defender ou atacar, se não pararmos de ver o mundo como um lugar
hostil.

Aceitação é a chave.
A atitude de aceitação grata é o que abre o coração. Deveríamos
aprender a aceitar, e esquecer crenças e padrões mecânicos como 'eu
deveria ter feito isto', 'estou arrependido', etc. Ao invés disso,
poderíamos pensar 'isto é o que eu fiz ou disse, e foi o melhor que podia
fazer ou dizer, dadas as circunstâncias', ou 'sou totalmente perfeito
dentro da minha imperfeição'.

Ao mesmo tempo, precisamos ter certeza de não estarmos fugindo


às nossas responsabilidades, nem escapando das funções que devemos
desempenhar, pois tanto as responsabilidades quanto as funções nos
ajudam a crescer. Somente poderemos ser felizes ao aceitarmos as
coisas como são, e aceitarmos a realidade como ela é. Assim,
poderemos viver uma vida feliz e livre de conflitos, agindo de modo
consciente, em harmonia com os valores universais e compreendendo as
leis naturais, que regem toda a existência. Namaste!

Patañjali, o tântrico
Pedro Kupfer
Recebi recentemente uma interessante mensagem de um praticante
fazendo, em nome do Yoga tântrico, uma série da categóricas
afirmações sobre o Yoga Sutra. Dentre outras coisas, afirmava o colega
que a obra clássica de Patañjali não menciona prana, chakras, nadis nem
kundalini. Como discordo completamente dessa opinião, escolhi
deliberadamente o título provocativo deste texto, com o objetivo de
instigar a curiosidade do amigo leitor em relação ao pouco conhecido
vínculo entre o Yoga Clássico de Patañjali e o Yoga tântrico (do qual o
Hatha faz parte). Digo isso porque chamar Patañjali de “tântrico” pode
ser considerado uma blasfema em certos círculos de Yoga, já que há
algumas pessoas que têm medo da kundalini e de todos os assuntos
relacionados a esta força.

Assim como o praticante que me motivou a escrever sobre este


interessante assunto, muitas pessoas estão acostumadas a ver o Yoga
de Patañjali como algo distante das muitas formas de Yoga tântrico que
são praticadas hoje em dia, das quais o Hatha é a mais conhecida. O fato
é que o Yoga Sutra menciona sim, explicitamente, chakras, nadis e
prana. No entanto, não dá aos chakras o nome de chakras, nem os lista
na ordem ou segundo a nomenclatura que recebem do tantrismo.
Igualmente, fazendo este texto alusão à kundalini, não usa esse nome
para designar a força potencial que conduz à iluminação. Considerando
que Patañjali viveu muitos séculos antes dos primeiros textos de Yoga
tântrico serem escritos, acreditar que isso pudesse acontecer seria uma
atitude inocente da nossa parte.

É sabido pelos estudantes de Yoga que diversos termos foram


utilizados por diferentes autores para se referir aos mesmos princípios,
como é o caso da identidade entre Purusha e Atman, o que acontece,
por exemplo, no próprio Yoga Sutra ou na Bhagavad Gita. Também é
conhecido o fato de que certos termos mudam de significado de acordo
com o contexto e a época em que são usados. Um exemplo é a palavra
chitta, que no Yoga Sutra de Patañjali designa o complexo intelecto-ego-
mente, e no Tattva Bodha de Shankaracharya, a capacidade de lembrar.
Neste caso, a linguagem que Patañjali usa para se referir àquilo que o
tantrismo chama de chakras, nadis e kundalini, é bem diferente do
vocabulário dos próprios textos tântricos, como era de se esperar.

A modo de introdução poderíamos dizer igualmente que o chamado


Yoga tântrico, do qual nasceu o Hatha, possui uma riquíssima linguagem
figurada, chamada sandhabhasha, “linguagem crepuscular”, ou ainda
abhiprayika vachana, “afirmação intencional”. O obscuro desta
linguagem, cheia de metáforas que são de difícil compreensão se não
tivermos à mão os códigos corretos para decifrá-las, pode levar o
estudante a pensar que está diante de algo totalmente diferente da
tradição maior do Yoga, representada pelo Yoga Sutra e os textos
anteriores a ele. Assim, kundalini, que simboliza o despertar da
consciência, é descrita como uma serpente ígnea que “dorme” no centro
de energia da base da coluna vertebral, chamado muladhara chakra. Os
chakras são centros de força vital que se encontram ao longo do eixo
central do corpo, e estão ligados por uma série de canais energéticos
chamados nadis, que coincidem em grande parte com os meridianos da
energia mencionados na medicina chinesa.

No entanto, o fato da iluminação ser comparada nos textos tântricos


à ascensão de uma serpente de fogo pelo canal central de energia que é
a contraparte sutil e vital da coluna vertebral, não significa que os
humanos tenhamos uma cobra guardada na ponta inferior da coluna
vertebral que pode explodir a qualquer momento. O fato dos chakras
serem descritos nos textos como “rodas” de energia não significa que
esses dispositivos vão aparecer numa ressonância magnética, como
alegam alguns céticos que tentam desqualificar este sofisticado modelo
do psiquismo humano. Kundalini, chakras e nadis devem ser
corretamente compreendidos: eles são representações simbólicas da
potencialidade psíquica humana, que deve ser cuidadosamente
desenvolvida.

Alguns praticantes de Tantra Yoga tendem a enxergar a si próprios e


ao sistema que professam como algo isolado da tradição maior. No
entanto, o vínculo entre a visão tântrica e o não-dualismo do Vedanta,
que permeia todas as escrituras do Yoga, aparece já nas primeiras
Upanishads. A Katha Upanishad (II:1,10) afirma: “O que está aqui, está
lá; o que está lá, está igualmente aqui”. Ora, acontece que este
ensinamento é praticamente idêntico ao que aparece num texto
medieval tântrico chamado Vishvasara Tantra: “O que está aqui, está em
toda parte. O que não está aqui, não está em parte alguma”.

O grande estudioso indiano T. M. P. Mahadevan, afirma em sua obra


Outlines of Hinduism (p.180): “No Kularnava Tantra, Shiva diz a Parvati
que não há diferença entre a filosofia religosa do Tantra e a verdade do
Veda: tasmati vedatmakam shastram viddhi kaulatmakam priye:
“Portanto, Ó querida, saiba que a Escritura que é da natureza do Veda é
da natureza do Tantra”.” Fica assim, portanto, estabelecida a relação
entre o Tantra e o conhecimento ancestral dos Vedas, que é claramente
não-dual.

É verdade que o Tantra resgata elementos ancestrais, que datam do


culto à Magna Mater, a Grande Deusa, cujos elementos estão presentes
ao longo do continente eurasiático desde o paleolítico. Há alguns meses
foi achada na Alemanha mais uma escultura da Grande Deusa feita de
marfim de mamute, que data de pelo menos 35.000 anos atrás, batizada
“Vênus de Hohle Fels”. No entanto, não devemos pensar que a literatura
do tantrismo seja oriunda daquela recuada data. Aquilo que chamamos
Tantra, segundo o estudioso Mircea Eliade (Yoga: Imortalidade e
Liberdade, pág. 171), surgiu entre os séculos IV e VI da nossa era.
Admite-se atualmente que os textos daquilo que conhecemos hoje como
Yoga tântrico tenham surgido a partir do século IX d.C. Dentre eles, os
mais importantes são o Kularnava, o Kalachakra, o Guhyasamaja, o
Vishvasara, o Sadhanamala, o Mahanirvana Tantra e o Satchakra
Nirupana, este último atribuído ao sábio Purnananda Swami de Assam, e
datado do século XVI. Ou seja, todos estes textos são muito posteriores,
mas muito mesmo, à obra de Patañjali, que data do século IV a. C.

O Yoga “tântrico”, antes de Patañjali.


Se, por outro lado, continuarmos nossa procura pelo Yoga de
inspiração “tântrica” nas Upaniads, iremos nos encontar com algo muito
parecido com ele na Shvetashvatara, a “Upanishad do Cavalo Branco”
(shveta = “branco”, ashva = “cavalo”), uma das primeiras e mais
importantes. Vejamos alguns poucos trechos deste shastra: “Mantendo o
corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o
sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o
barco em que ele atravessa o rio do medo.” (II:8). “Controlando sua
força vital (prana), com seus movimentos controlados, o sábio inspira
pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele
controle sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes.”
(II:9). “Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja
seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos
condicionamentos, circunspeção, eloqüência, cheiro agradável e pouca
secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder.” (II:12-
13).

O primeiro parágrafo faz clara alusão à importância do alinhamento


postural durante a prática de Yoga. Uma das maneiras mais eficientes de
se manter a conexão com o coração mencionada no texto, é justamente
cultivando-se uma postura ereta e relaxada. A segunda citação deixa
clara a conexão entre pensamento e respiração, outro dos temas
fundamentais do Hatha. Essa conexão aparece de forma clara na Hatha
Yoga Pradipika (II:2): “Enquanto a respiração (prana) for irregular, a
mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente
permanecerá imóvel e o yogi conseguirá a estabilidade. Por conseguinte,
deve-se controlar a respiração [praticando-se o pranayama]”. Em outro
trecho (IV:21), a mesma obra afirma: “Aquele que detém o alento,
detém também o pensamento. Aquele que domina o pensamento,
domina igualmente o alento.”

A idéia de forjar o corpo no fogo do Yoga, presente no terceiro trecho


aqui citado, é central à prática do Hatha, que busca a transubstanciação
do corpo mortal em um corpo divino, com a dureza do diamante
(vajradeha). Essa idéia está presente na Gheranda Samhita (I:24):
“Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai
rapidamente. É preciso endurecé-lo, forneando-o no fogo do Poder, para
fortalecé-lo e purificá-lo”.

A “vitória” sobre o sofrimento, a velhice e a morte também é um


tema recorrente na literatura do Hatha. A lista dos benefícios advindos
da prática que aparece na Shvetashvatara Upanishad é similar em tom e
conteúdo a muitas outras que aparecem nas obras posteriores: “A
perfeição do corpo físico [manifesta-se como] beleza, graça, força, e a
dureza e o brilho do diamante”, Yoga Sutra de Patañjali (III:47).

“Quando se aperfeiçoa o Hatha Yoga, aparecem os seguintes sinais:


agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior
(nada), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal
(bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nadis”. Hatha
Yoga Pradipika, II:78. Em outro trecho (III:30), esta mesma obra diz que
certas práticas do Yoga “protegem contra a morte e a velhice,
aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais
(siddhis).”

A Katha Upanishad (II:3,16), um dos mais antigos textos de Yoga de


que temos conhecimento, descreve um fenômeno curiosamente similar
ao da ascensão de kundalini ao longo do eixo central da coluna
vertebral, conforme descrita nos textos tântricos posteriores: ““A partir
do coração, surgem os cento e um caminhos (nadis) da força vital. Um
deles conduz ao topo da cabeça. Esse caminho conduz à imortalidade.
Os outros, à morte”.

Desfazer o anáhata granthi, o “nó” energético do chakra cardíaco, é


outro processo ligado ao despertar de kundalini que aparece citado na
mesma obra (II:3,15): “Desfazendo os nós que estrangulam o coração, o
mortal torna-se imortal. Essa é a síntese dos ensinamentos das
escrituras”.

Da mesma maneira, a Maitri Upanishad indica a prática de


pranayama como o meio mais importante para se alcançar a
estabilidade da mente. O texto chega a mencionar a prática que seria
conhecida posteriormente como khechari mudra, que consiste em
recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma
de evitar que o bindu, néctar lunar, se disperse a partir do soma chakra.
Esta é uma das principais práticas dos Yogas tântricos, como o Hatha e o
Laya Yoga. Nesse sentido, concluímos que o Yoga tântrico não está
separado nem é diferente de outros métodos como o Mantra ou o
Ashtanga Yoga. Essas formas de Yoga, bem como outras não
mencionadas, se entremeam e interpenetram num grau tão profundo
que é quase impossível diferenciá-las.

De volta ao Yoga Sutra.


Como o amigo leitor já deve saber, o Yoga Sutra não é um texto para
iniciantes. Assim sendo, o estilo em que está escrito evita, dentre outras
muitas coisas, a descrição detalhada do processo do despertar de
kundalini, bem como deixa de mencionar listas completas de itens como
os cinco pranas, os sete chakras, etc. No entanto, as meditações e
diferentes maneiras de usar chakras, nadis e pranas, estão listadas no
terceiro capítulo, enquanto que a manipulação da energia vital (prana) e
o fruto dessa prática, aparece com detalhes no fim do segundo capítulo.
O manipura é chamado nabhi chakra ("chakra do umbigo", III;30), o
anahata é chamado hrdaye ("do coração" III:34), o vishuddha é chamado
kantha kupe ("poço" da garganta, III;31), o sahasrara é chamado murdha
jyoti ("luz [que brilha] na cabeça", III, 33). Patañjali propõe, no sutra
III:32, uma meditação na kurma nadi.
O primeiro dos sutras acima mencionados diz: “[Meditando sobre] o
chakra do umbigo, ganha-se conhecimento sobre a estrutura do corpo.”
O segundo ensina: “[Aplicando samyama na] região do coração [anahata
chakra], o yogi adquire conhecimento de sua própria consciência”. O
terceiro: “[Exercendo samyama sobre] o centro da garganta [vishuddha
chakra], cessam a fome e a sede”. O quarto aforismo reza: “[Meditando
na] luz do alto da cabeça [sahasrara chakra] obtém-se a visão dos
siddhas, [seres que atingiram a perfeição]”. O último dos acima citados
diz: “[Pelo samyama sobre] kurmanadi (meridiano da “tartaruga”, na
traquéia), o yogi estabiliza seu corpo”. A kurma nadi, ou meridiano
kurma, é o condutor do kurma vayu, a força vital responsável pela visão,
o piscar dos olhos e a estabilidade, tanto corporal quanto emocional e
mental. Ela é localizada entre a traquéia e a parte posterior da
depressão jugular. O kurma vayu é bem conhecido na tradição do Yoga
tântrico: uma menção a ele aparece na obra The Serpent Power (O Poder
Serpentino), de Sir John Woodroffe (p. 78).

O prana é mencionado em I:34: “Ou, pela expiração e a retenção do


prana [a mente pode igualmente estabilizar-se]”. O udana vayu, um dos
cinco pranas, bem conhecidos pelos praticantes de Yoga tântrico, está
mencionado exatamente com esse nome em III:40: “Pelo domínio do ar
vital udana desenvolve-se o poder de levitação sobre a água, o lodo, os
espinhos e demais”. Há uma série de cinco sutras, começando em II:49,
que menciona explicitamente o processo de manipulação do prana
através do pranayama, que curiosamente culmina numa interessante
descrição da visão da “luz interior” (prakasha). Eles são os seguintes: “O
pranayama consiste na regulação da inspiração e da expiração. [O
pranayama consta de] modificações externas, internas ou retenção [da
força vital]. É regulado por lugar, estação e número [e torna-se
progressivamente] mais prolongado e sutil. O quarto tipo [de
pranayama, chamado kevala kumbhaka] transcende as esferas interna e
externa. Assim, dissipa-se o véu que encobre a luz [do conhecimento]...
e a mente torna-se apta para a concentração”.

Até onde sabemos, kundalini ativa, dentre outras formas, se


manifesta como uma luz brilhante, exatamente como descreve o texto
acima. Devemos considerar que a descrição deste fenômeno nos Sutras
seja apenas uma coincidência, em relação ao processo de despertar de
kundalini que o Yoga tântrico ensina? Depois de estudar este texto com
atenção, podemos concluir que o sábio Patañjali sim, menciona no Yoga
Sutra os temas chakras, nadis e prana. Portanto, como praticantes de
Yoga tântrico, acredito que não devamos desconsiderar o que Patañjali
tem a dizer sobre aquilo que praticamos.

Afirmar o contrário é teimar em separar e ver de forma parcial e


compartimentada uma tradição muito ampla e única, que se manifestou
ao longo dos milênios de diversas maneiras e através de diversas
linguagens simbólicas. Espero, com este texto e as comparações que ele
apresenta, ter contribuído para o aprofundamento da correta
compreensão dessa vasta, única e profunda corrente tradicional que é o
Yoga. Acredito que, para essa compreensão, é de imensa utilidade
perceber a continuidade dessa tradição para além das diferentes
linguagens simbólicas que foram usadas ao longo do tempo para
transmiti-la, ao invés de nos centrar nas diferenças, rótulos e métodos,
que podem criar abismos entre os praticantes. Namaste!

Quanto sabemos
sobre a respiração
yogika?
Pedro Kupfer
Criatividade e
tradição
Pedro Kupfer

Qual é o limite entre criatividade e tradição? Até onde poderíamos


usar nossa liberdade pessoal como yogis sem deformar o que
aprendemos com nossos professores? Acredito que a resposta a estas
questões esteja na correta compreensão do que o Yoga é, e da maneira
em que ele funciona. Lembremos então que o Yoga tradicional é uma
forma de vida que abrange duas dimensões.

Essas dimensões são as seguintes: 1) um ensinamento que se aplica


na vida, chamado Brahmavidya, que vem junto com uma metodologia
peculiar através da qual é transmitido, e 2) o ensinamento “técnico”,
chamado Yogashastra, que também tem duas partes: uma que se faz na
sala, que consiste na aplicação de técnicas como o código de conduta,
as posturas, respiratórios, concentração, meditação, etc., e outra que se
realiza fora dela, vinculada com o cultivo das atitudes adequadas e o uso
correto do livre arbítrio. Dentro dessa ordem de coisas, não é difícil
confundir meios e fins, como tem acontecido com certa assiduidade.
Muitas vezes, olhando para a história recente do Yoga, tendemos a
ver uma homogeneidade na maneira em que foi transmitido. Porém,
olhando um pouco mais de perto a trajetória desse ensinamento nas
últimas décadas, essa impressão se esvai. Cada professor segue seu
próprio caminho e as diferenças entre o que eles ensinam pode ser
enorme. Para tentar explanar esta situação, bem como para ilustrar a
questão dos limites entre criatividade e tradição, este texto apresenta
uma breve descrição do ensinamento do lendário mestre
Krishnamacharya e as diferentes interpretações e abordagens que seus
discípulos Iyengar, Jois e Desikachar fizeram desse ensinamento.

Algo que chama a atenção, que aconteceu paralelamente à crescente


popularização do Yoga, é que, em algumas das leituras contemporâneas
do Yoga, a visão e metodologia de ensino sobre o autoconhecimento
foram esquecidas ou deixadas de lado, em favor da execução das
técnicas. A conseqüência natural dessa situação é que freqüentemente,
a imagem do Yoga aparece tolhida, rasa e unidimensional.

As interpretações do legado de Krishnamacharya.


Srivatsa Ramaswami, professor que aprendeu durante 30 anos com
Krishnamacharya afirma, em seu livro The Complete Book of Vinyasa
Yoga (não traduzido para o português): “Durante esse primeiro período
[da vida do mestre, até o início da década de 1950], dois dos estudantes
de Sri Krishnamacharya se separaram dele para ensinar
independentemente. Um deles era B. K. S. Iyengar, estudante e cunhado
de Sri Krishnamacharya. Sendo jovem, e um dos primeiros estudantes de
meu guru, Iyengar desenvolveu um estilo muito físico de Yoga, que era
uma forma agressiva do método que ele havia aprendido com
Krishnamacharya.”

O autor comenta que esse método, aliado ao tremendo controle


corporal que Iyengar exibia, tornou seu Yoga muito conhecido e popular.
Mais adiante, Ramaswami continua: “Não obstante, o método de Iyengar
omitia alguns importantes ingredientes do ensinamento de
Krishnamacharya, como a progressão ou o seqüenciamento dos ásanas,
o uso de contra-posturas, e a sincronização completa da respiração. [...]
Enquanto Iyengar corria o mundo e dirigia uma prestigiosa escola na
Índia, Krishnamacharya continuou ensinando discretamente,
majoritariamente um a um. Ele nunca viajou para o exterior – e nunca
quis – mas teve alguns poucos estudantes ocidentais, como Indra Devi,
que veio até ele.”

Num outro parágrafo, falando sobre outro famoso discípulo de


Krishnamacharya, Ramaswami afirma: “O outro estudante de
Krishnamacharya dos dias de Mysore era Pattabhi Jois, quem se tornou
também tremendamente popular. Ele baseou seu método no pequeno
livro de Krishnamacharya do início dos anos 1930, Yoga Makaranda, e o
batizou de Ashtanga Yoga, inspirado no sistema óctuplo de Yoga clássico
(embora ambos não estivessem realmente relacionados). O Ashtanga
seguia um sistema de movimentos rápidos encadeados numa seqüência,
embora estivesse ausente a respiração deliberada, suave e coordenada
que era central no método de Krishnamacharya. Além do mais, a prática
do Ashtanga adotou basicamente seqüências mencionadas no Yoga
Makaranda, bem como algumas outras que Jois aprendeu de seu guru
durante sua relação com ele – uma quantidade grande de seqüências
que Krishnamacharya ensinaria mais tarde para seus estudantes foi
conseqüentemente deixada de fora.”

Ramaswami é da opinião de que o ensinamento destes dois


professores, além daquele ensinado pelo próprio filho do mestre,
Desikachar, que tem uma abordagem muito mais parecida à do pai, é
apenas uma parte do método que Krishnamacharya elaborou, chamado
Vinyasa Krama. Além da prática física que ficou conhecida e popular
através desses professores, o ensinamento original de Krishnamacharya
incluía, assim como o de todos os seguidores da tradição, práticas
devocionais, mantras, meditação, recitação, canto védico, dieta
vegetariana, gramática sânscrita e estudo das escrituras do Yoga. Hoje
em dia, essa dimensão do ensinamento parece estar ausente da maioria
das escolas de Yoga da atualidade.

Desses exemplos, percebemos que estes dois professores seguiram


caminhos independentes, bastante diferentes do mestre. Iyengar é
conhecido pela capacidade de adaptar as técnicas, através do uso de
props, para as possibilidades e necessidades de cada praticante. Nesse
sentido, abriu as portas da prática do Yoga para pessoas que não tinham
força, coordenação, flexibilidade ou saúde para se beneficiar das formas
de prática mais exigentes. Ele fez isso usando sua criatividade e
profunda intuição. Jois, por seu lado, parece ter se limitado a transmitir
fielmente as técnicas e os seqüenciamentos de posturas que aprendeu
com o mestre através do texto acima mencionado. Isso explicaria o
porquê da diferença entre os métodos ensinados por Iyengar e Jois.
As contribuições de ambos na popularização e divulgação do Yoga no
ocidente são de fato inegáveis. Mas é inegável, igualmente, que as
metodologias de ambos estão centradas principalmente na prática de
posturas e respiratórios. Talvez como conseqüência dessa ênfase dada à
prática, percebemos, na presente geração, uma certa indiferença em
relação à visão e ao ensinamento fundamental do Yoga, com os
praticantes centrados mais na execução das técnicas do que na
aplicação dos valores do Yoga na vida.

Muitos professores e yogis dedicados consideram que, embora


praticar posturas e respiratórios seja importante, não devem ser
subestimadas as demais partes da tradição. Krishnamacharya, como
muitos outros professores comprometidos com essa tradição maior, era
profundo conhecedor e capaz de recitar de memória longos trechos das
Upanishads, da Bhagavad Gita, do Yoga Sutra e outros textos essenciais
da nossa tradição. Observando a trajetória deste grande mestre, vemos
que não é diferente do caminho percorrido por outros que lhe
precederam, bem como por muitos yogis da atualidade.

Alhos e bugalhos.
E nós? Até onde deveríamos usar a criatividade sem atropelar a
tradição? Até onde poderíamos usar a iniciativa sem sacrificar, diluir ou
deformar aquilo que nos foi ensinado? Para responder adequadamente a
estas questões, é preciso separar alhos de bugalhos. (Para os curiosos:
um bugalho é uma saliência arredondada que se forma em algumas
espécies de árvores da família do carvalho a partir de um ovo de vespa.
A vespa desenvolve-se no interior do bugalho, onde viverá suas
metamorfoses: larva, ninfa e fase adulta. Antigamente, as crianças
portuguesas usavam bugalhos como bolinhas de gude.) Por mais que
tanto os alhos como os bugalhos tenham forma arredondada, não
devemos confundir uns com os outros.

Quando dizemos que não é aconselhável confundir alhos com


bugalhos, não estamos afirmando que os alhos sejam bons e os
bugalhos ruins, mas que são coisas distintas. A visão do Yoga é uma
coisa; a prática, outra diferente. O ensinamento do Yoga é chamado
Brahmavidya, que significa literalmente “autoconhecimento”. Brahman é
o Eu. Vidya é conhecimento. Portanto, Brahmavidya quer dizer
conhecimento do Eu, ou conhecimento de si mesmo. A aplicação desse
ensinamento é denominada Yogashastra, ou “ciência de integração”. O
ensinamento é a visão do Yoga. A aplicação dele é a técnica.

Um esclarecimento importante: algumas pessoas pensam que essa


visão do Yoga seja um método de filosofia. Em verdade, ela não é uma
filosofia, mas um meio de conhecimento que revela quem somos. É por
essa razão que no Jñana Yoga, o Yoga do Conhecimento, se dá tanta
importância ao uso correto da palavra. Essa visão é a ferramenta que
nos permite compreender quem somos, da mesma maneira que o olhar
serve para enxergar formas e cores, a audição nos permite reconhecer
os sons, o olfato os cheiros, etc.

Para que o Yoga possa ser chamado Yoga, é necessário que haja não
apenas aplicação de técnicas, mas igualmente uma integração delas
com o ensinamento na vida prática. Por outro lado, para que o método
de transmissão do ensinamento mereça o nome de Yoga, é necessário,
da mesma maneira, que ele seja aplicado na vida. De nada adianta,
como querem alguns “yogis de sofá”, apenas sentar para ouvir o
ensinamento, sem implementar o ensinamento na vida. Nessa situação,
sem integrar visão e ação, o conhecimento sobre si mesmo fica reduzido
a uma teoria. Teorias são explanações mais ou menos plausíveis, que
podem ser adotadas ou descartadas, conforme a situação. Porém,
acontece que você não é uma teoria, e que o conhecimento de si mesmo
não é de maneira alguma algo “teórico”.

Por outro lado, técnicas existem muitas e podem ser aplicadas por
diferentes pessoas, em diferentes momentos e ocasiões, com o objetivo
de aplicar na prática o ensinamento sobre si mesmo. A visão é uma só.
Consideramos que as técnicas são aquilo que muda, enquanto que a
visão e a metodologia que a transmite são elementos invariáveis. Sobre
as técnicas podemos aplicar a criatividade. O que creio que não cabe é
tentarmos mudar ou “aperfeiçoar” esse meio de conhecimento que é a
visão do Yoga. Isso seria tão estéril quanto tentarmos ouvir sons com os
olhos, ou perceber cheiros com os ouvidos. Tentativas de integrar a
visão do Yoga com fragmentos de sistemas psicológicos ou tradições
espirituais como o xamanismo nem sempre produzem o resultado
esperado.

Portanto, podemos exercer a nossa criatividade em relação às


técnicas do Yoga, às práticas de posturas ou respiratórios. Podemos (e
devemos) adaptar o que for preciso, em termos de ásana e pranayama,
às necessidades específicas do nosso corpomente a cada momento e em
cada situação que vivemos. Na mesma linha, temos toda a liberdade
para escolhermos as melhores formas de meditar, dentre aquelas que
forem mais eficientes e significativas para nós. Temos o direito de
escolher os mantras e os temas para trabalhar através das nossas
resoluções interiores. Podemos exercer o livre arbítrio para definir quais
serão as reflexões que precisamos fazer em relação ao código de
conduta do Yoga e os votos que fazemos em relação a eles.

Porém, não deveríamos tentar mudar a visão, que é um meio de


conhecimento completo e acabado. Como exemplo, poderíamos
mencionar o caso do famoso mestre Adi Shankaracharya. Algumas
pessoas pensam nele como um filósofo que fez grandes contribuições ao
Vedanta, mas a verdade é que Shankara foi apenas mais um acharya,
um professor. Um professor notável, é verdade, mas que limitou-se a
transmitir este ensinamento sem inventar nada, sem acrescentar ou
criar nada novo.

Sua missão foi unicamente atualizar a linguagem em que o


conhecimento era transmitido, para torná-lo mais acessível às pessoas
do tempo em que ele viveu. Brahmavidya, como meio de conhecimento
sobre si mesmo, é algo absolutamente invariável, que não está sujeito a
nenhum tipo de ajuste ou aperfeiçoamento. O Ser não muda. A maneira
em que ele deve ser conhecido, tampouco. Compreendido isto, olhando
para esse universo que é o Yoga em termos de prática e ensinamento,
podemos exercer a criatividade e liberdade onde corresponde, e
ficarmos abertos e receptivos em relação ao poder transformador da
sabedoria do Yoga, que está disponível para nós na forma do
autoconhecimento.
Um esclarecimento final: quando dizemos “o Ser não muda. A
maneira em que ele deve ser conhecido, tampouco”, não estamos
afirmando que os yogis tenhamos algum tipo de monopólio sobre o
autoconhecimento e o método que conduz a ele. Algumas pessoas, ao
estudarem Jñana Yoga ou Vedanta, acabam por se confundir e fazer
afirmações taxativas como “somente meu método liberta”. O estudante
deve ter muito cuidado com o fanatismo e se afastar de atitudes
sectárias.

Nós chamamos o Yoga de Yoga por que foi com esse nome que este
sistema chegou até nós. Porém, isso não significa que o ensinamento do
Yoga não existisse ou exista atualmente sob outras formas ou com
outros nomes, noutras culturas e lugares. Alguns exemplos de formas de
Yoga não indianas são estas: o sufismo, o taoísmo, o budismo tibetano, o
budismo zen, e a filosofia de ocidentais como Aristóteles, Epicuro,
Spinoza e Schopenhauer. Swami Dayanada considera que qualquer
ensinamento ou doutrina que mostre a identidade essencial entre o
indivíduo e o todo, e que seja acompanhado de um método para
exposição e aprendizado, pode ser chamado Brahmavidya,
independentemente do nome que tenha recebido originalmente.
Namaste!

O dharma e o
códigoyogiko de
conduta
A compreensão plena do conceito de dharma é essencial para
podermos integrar em nossa vida os aspectos mais profundos da
prática do Yoga, pois ele está intrinsecamente ligado ao código de
conduta yogika, chamadoyama e niyama.

Esse código de conduta é o fruto de um longo processo


de reflexão,discernimento e sensibilização que os yogis da
antiguidade nos legaram, e tem mais a ver
com coerência, motivação e coordenação dos esforços do praticante
do que com repressão e controle, e sendo absolutamente essenciais
para podermos distinguir o certo do errado a cada momento.

Vou lhe contar um exemplo que ilustra perfeitamente a diferença


entrediscernimento e repressão de que falei acima. Meu amigo George
Porto Ferreira foi morar numa reserva ambiental em Rondônia, na
Amazônia, como técnico ambiental do IBAMA. Parte importante do seu
trabalho é defender a mata virgem através de ações contra as
madeireiras que extraem ilegalmente árvores da selva. Um dos
principais motivos do desmatamento, porém, é a criação de
novas áreas de pastagem para manutenção dos rebanhos
bovinos que serão usados como alimento pelo homem.

Recentemente, em uma de suas raras visitas a Florianópolis, George


me contou que tinha se dado conta de que não fazia nenhum sentido
para ele levantar a bandeira do ambientalismo se não assumisse
definitivamente uma dieta vegetariana. Em suma, meu amigo não
decidiu tornar-se vegetariano porque alguém tenha proibido ele de
comer carne, mas porque simplesmente percebeu a incoerência entre
o discurso ambientalista e sua decisão na hora de escolher o
alimento que punha no prato.

Se você come carne, não está unicamente se prejudicando


com um alimento de qualidade altamente duvidosa, ou
colaborando com a matança de milhões de animais usados como
alimento: você está financiando o desmatamento da
Amazônia. Simples assim.

Quem, por um lado, discernir o certo do errado, e, por outro,


for capaz de colocar em prática o esforço para anular a distância
que separa a retórica da prática, é um yogi de verdade.

Dharma: quem precisa


dele?
Pedro Kupfer

Este texto foi preparado para a palestra sobre dharma ministrada por
Pedro Kupfer no II Yoga Sangam, conferência internacional de Yoga que
aconteceu em Florianópolis, em maio de 2001. O nosso caro
leitor/internauta saberá perdoar o estilo coloquial do artigo.

Ao montar o programa deste evento, sempre acabo escolhendo os


assuntos mais espinhosos, mais difíceis de desenvolver, mais polêmicos
e menos conhecidos dentre o enorme leque de opções de estudo que
temos no Yoga. Este ano resolvi encarar aquele que talvez seja o
assunto mais difícil de se abordar: o dharma. Vocês sabem o que é o
dharma? Já ouviram falar nele?
Geralmente pensamos que dharma seja algum tipo de código moral, um
grupo de mandamentos ou proibições que nos obriga a andar na linha e
que somente lembramos ou invocamos quando nos convém.

Nas últimas décadas, a nossa civilização parece haver perdido sua


bússola ética. Nossos líderes políticos ou espirituais pairam no vazio
moral, preocupados apenas com as estatísticas, a roubalheira
desenfreada e a corrupção em todas suas manifestações.

O poeta irlandês W. B Yeats (1865-1939) falou dos nossos líderes


nestes termos:

Os melhores não possuem convicção nenhuma;

Os piores estão cheios de intensidade passional.

Essa crise de valores se estende ao resto da população mundial, que


acaba se espelhando nas lideranças. Para você só precisa abrir o jornal
de hoje para ver a escalada de desfaçatez e corrupção que rolam soltas.
A incoerência entre palavras e ações pode ser vista em qualquer lugar.
Lembre que estamos na kali yuga.

É bom lembrar que as nossas ações forjam o nosso caráter e que


tudo o que fizermos determinará os nossos karmas futuros.

A palavra virtude vem do latim, virtues, que deriva da mesma raiz


que a palavra viril. Então, a pessoa viril, o homem de verdade, não é o
que sai dando porrada nos demais. Etimologicamente, a palavra virtuoso
designa a pessoa forte, poderosa, independente. Resumindo, as virtudes
são qualidades do caráter que nos ajudam a ter uma vida feliz e
vigorosa.

Qualquer outra leitura deste termo, como considerar alguém fraco


por ser bom ou virtuoso, e uma degradação do conceito de virtude e um
sinal da perversão de valores que se consideram desejáveis, que
estamos vivendo nos dias de hoje. Isso tudo acontece por conta de
avidyá, a ignorância. O remédio prescrito por Patañjali para curar essa
doença que é a ignorância e vairagya, o desapego. Porém, cultivar o
desapego pode parecer fora de moda neste presente que estamos
vivendo, onde aprendemos que morreremos se não mantivermos tudo
aquilo pelo qual nos ensinaram a lutar.
E assim, ficamos vivendo nossas vidas inteiras dentro desta
equação:

Ignorância ==> senso de permanência das coisas ==> apego

A jornada em direção à iluminação não pode se fazer carregando


correntes. Precisamos nos libertar de alguns condicionamentos antes de
chegar em algum lugar.

Vamos então entrar no assunto que nos ocupa. Em sânscrito,


dharma significa ‘suporte’, ‘aquilo que mantém unido’, ‘aquilo que
aglutina’.

Se existe uma coisa que apóia, que mantém unidas as pessoas, isso
é o dharma. O dharma é uma doutrina prática. É a lei inerente à
natureza de todos os fenômenos existentes. Não é apenas um conjunto
de crenças separadas da vida diária, senão um conjunto de princípios
para viver uma vida harmoniosa e benéfica.

O título original da palestra era “dharma, quem precisa dele?”


Entretanto, ele não coube no espaço que tínhamos reservado no folheto
da programação. Ficou só “dharma”. Então, voltamos à pergunta que
deu título a esta palestra: quem precisa do dharma?

Do ponto de vista da filosofia hindu, tudo o que podemos querer


fazer nesta vida ficará necessariamente dentro de um dos quatro
purusharthas, os propósitos humanos ou as aspirações legítimas
sancionadas pelo hinduísmo:

1. artha (prosperidade)
2. káma (prazer)
3. dharma (virtude)
4. moksha (libertação ou iluminação)

O dharma é a lei ou a ordem cósmica. Noutro sentido, é a virtude,


concebida como um dos objetivos acima citados. É compreendida como
manifestação ou reflexo da lei divina.

Enquanto as palavras Yoga e religião significam unir, dharma


significa manter unido. O dharma é o que mantém o homem alinado com
a sua lei interior, que o conduz da ignorância à verdade. Embora a
leitura das escrituras não conduza por si só à iluminação, os
ensinamentos nelas contidos provêm uma base e um caminho para viver
a espiritualidade.

Apesar de ser a mais antiga religião, a verdade vislumbrada pelos


rishis, os videntes védicos, provam que a Verdade presente no
hinduísmo está além do tempo e das barreiras culturais.

Nesta altura do campeonato, você pode estar perguntando-se o que


é o hinduísmo. A melhor definição que encontramos foi a que B.G. Tilak
sugeriu:

A aceitação dos Vedas com reverência; o reconhecimento do fato


que os meios ou caminhos para a salvação são diversos; e a tomada de
consciência de que o número de deuses a se adorar é grande, são as
características que distinguem a religião hindu.

O hinduísmo se chama Sanatana Dharma em sânscrito, a verdade


eterna. O hinduísmo não é estritamente uma religião. Está baseado na
prática do dharma, o código da vida. Como o hinduísmo não tem um
fundador, qualquer pessoa que pratique o dharma pode se considerar
um hindu, mesmo que questione a autoridade de alguma escritura, ou
até mesmo a existência do Divino.

Quantos deuses existem?

A palavra Deus não existe em sânscrito com o sentido que lhe damos
aqui no Ocidente. Claro que alguém poderá ver deuses nos mantras
hindus. Pessoalmente, prefiro vê-los como formas de energia,
representações simbólicas intuitivas das camadas da existência que
transcendem o intelecto. A Brihadáranyaka Upanishad (III:9) deixa isso
bem claro neste diálogo:

“Então Vidagdha Shákalya perguntou:

— Quantos deuses existem, Yájñavalkya?

O sábio respondeu de acordo com o seguinte nivid (fórmula


invocatória):
— Tantos como são mencionados no nivid do hino a todos os deuses,
ou seja, 303 mais 3003 (= 3306).
— Sim — disse Shákalya — mas quantos deuses existem mesmo,
Yájñavalkya?
— Trinta e três.
— Sim — disse ele — mas quantos deuses há mesmo, Yájñavalkya?
— Três.
— Sim — disse ele — mas quantos deuses existem mesmo,
Yájñavalkya?
— Dois.
— Sim — disse ele — mas quantos deuses há, Yájñavalkya?
— Um e meio.
— Sim — disse ele — mas quantos deuses existem, Yájñavalkya?
— Um.
— Sim — disse ele — mas quais são os 303 e os 3003 deuses?

Yájñavalkya disse: — Esses são apenas seus poderes (mahima). Eles


são somente trinta e três.

— E quais são esses trinta e três?


— Oito Vasus, onze Rudras e doze Ádityas fazem trinta e um. Com
Indra e Prajapati são trinta e três.
— Quais são os Vasus?
— O fogo, a terra, o vento, o sol, o céu, a lua e as estrelas. Estes são
os Vasus pois configuram este excelente (vasu) mundo. Por isso são
chamados Vasus.
— Quais são os Rudras?
— Os dez ares vitais do indivíduo, mais a consciência, que é o décimo
primeiro. Quando eles partem deste corpo mortal, nos fazem chorar
(rudra = chorar, gritar). Por isso é que eles são chamados Rudras.
— Quais são as Ádityas?
— Elas são as doze luas do ano. Elas são as Ádityas, porque carregam
o mundo inteiro ao longo do tempo. Como elas andam (yanti)
carregando (ádá) o mundo, são chamadas Ádityas.
— Qual é Indra? Qual é Prajapati?
— O trovão é Indra. O sacrifício é Prajapati.
— Qual é o trovão?
— O raio.
— Qual é o sacrifício?
— Os animais sacrificais.
— Quais são os seis deuses?
— O fogo, a terra, o vento, a atmosfera, o sol e o céu. Eles são seis
pois o mundo inteiro é esses seis.
— Quais são os três deuses?
— Os três mundos (bhúr, bhuva, sváhá), pois é neles que todos estes
deuses existem.
— Quais são os dois deuses?
— O alimento e a respiração.
— Qual é o um e meio?
— Aquele que purifica (o vento).
— Mas aquele que purifica é somente um. Como pode ele ser um e
meio?
— Porque nele o mundo inteiro prosperou (adhyardhnot). Então, ele é
um e meio (adhyardha).
— Qual é o deus único?
— A respiração. Ela é chamada Brahman, o além.”

A conclusão sobre este diálogo, extraído de uma das mais antigas


Upanishads, fica com você.

A ética do Yoga é um assunto importante e delicado, que sempre se


menosprezou. Ao que parece, os yogis do século XXI estão tão ocupados
nos seus misteres, que esqueceram ou passaram a considerar
desnecessário deter-se em detalhes aparentemente insignificantes como
não mentir ou cultivar o contentamento.

Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do


Yoga, tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo. Por outro lado,
é desconfortável falar sobre estes assuntos, porque ninguém gosta de
reconhecer-se como mentiroso ou ladrão, para dar os exemplos mais
desagradáveis. Ao invés de ver quem vai atirar a primeira pedra,
lembremos que yama e niyama são os dois primeiros passos da
caminhada, condição indispensável para que a prática dê resultados
concretos.
Yama significa controle ou domínio. É o pontapé inicial. Os yamas
são as cinco proscrições: não usar nenhum tipo de violência (ahimsá);
falar a verdade (satya); não roubar (asteya); não desvirtuar a
sexualidade (brahmacharya); e não se apegar (aparigraha). Esses
refreamentos pretendem purificar o yogi, aniquilar a subjetividade
advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios seguintes.
Desempenham o controle dos impulsos naturais, que se manifestam
através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca,
órgãos sexuais e excretores.

Niyama, as prescrições psicofísicas, compreendem cinco disciplinas:


a purificação (shauchan); o contentamento (santosha); a austeridade ou
o esforço sobre si próprio (tapas); o estudo das escrituras do Yoga e de
si próprio (swádhyáya); e a consagração a Íshvara, o arquétipo do yogi
perfeito (Íshvara pranidhána). Estas atitudes cumprem a função de
domínio sobre os cinco órgãos da percepção (jñánendriyas): olhos,
ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos aponta à
organização da vida pessoal do praticante.
Ahimsá, a não-violência, entende-se como não matar, não agredir, nem
causar nenhum tipo de dor a nenhum ser vivo. Os outros quatro yamas
são corolários, conseqüências naturais da não-violência. Vyása,
comentando o sútra II:30 de Patañjali, diz que “ahimsá é abster-se de
ferir qualquer ser, a qualquer momento e de qualquer maneira. A
verdade e as outras formas de refreamento e observâncias se baseiam
no espírito da não-violência”.

Satya, a verdade, consiste em fazer coincidir pensamentos, palavras


e atos, o que deve entender-se como evitar a falsidade em todas suas
formas, tanto nas relações do yogi com as pessoas quanto dele consigo
próprio. Satya é procurar sempre a verdade, independentemente de
onde essa busca possa nos levar. Entretanto, Vyása esclarece: “a
palavra pronunciada com o propósito de comunicar o próprio
pensamento a outrem é verdadeira, desde que não engane ou confunda.
A palavra deve pronunciar-se não para ferir, mas para beneficiar.
Porque, se ferir, não produzirá harmonia, apenas sofrimento.” Ou seja: a
verdade, por mais verdadeira que seja, não dói.

Asteya significa não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou


conquistas de outrem. Não é apenas não roubar, mas eliminar
totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou idéias) alheios.
Vyása ensina que “steya significa pegar ilegalmente coisas pertencentes
a outrem. Asteya é abstenção dessas tendências, mesmo que em
pensamento.”

Brahmacharya, o não desvirtuamento da sexualidade pode


interpretar-se tanto como total e absoluta abstinência sexual quanto não
dissipação da energia através do orgasmo. Em ambos os casos
pretende-se, embora por meios diferentes, refrear a força geradora, a
fim de entesourá-la para a evolução no sádhana. “Emprega-se hoje a
palavra brahmacharya com o significado de casto, mas a castidade é
uma noção ambígua. Nenhum homem é casto, já que de uma maneira
ou de outra emite periodicamente seu sêmen, nem que seja dormindo. O
que é proibido ao brahmacharin não são as práticas sexuais, são os
vínculos e particularmente os atos reprodutores, que, por suas
conseqüências, o ligam à sociedade, privando-o da sua liberdade. O
brahmacharin não deve ter relacionamentos que impliquem riscos de
concepção. Deve ser, de qualquer modo, econômico com seu sêmen,
consagrando-se ao estudo.”

Aparigraha, a não possessividade, traduz-se em generosidade e


desapego em relação não apenas aos bens materiais, mas também às
relações afetivas. O apego nos tira da sintonia necessária para praticar.
Vyása esclarece que “aparigraha significa desistir de cobiçar,
considerando que a cobiça e o acúmulo causam problemas, que as
coisas estão sujeitas à decadência e que a associação com elas causa
desconfiança e rancor.”

Shauchan é a purificação. A purificação externa inclui alimentação


vegetariana, exercícios de purificação orgânica (como a lavagem das
vias respiratórias e dos aparelhos digestivo e excretor), e manter limpo o
ambiente em que se vive. Um organismo poluído por hábitos impróprios
como o uso de drogas ou alimentação intoxicante gera comportamentos
e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga. A
purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As
técnicas mais refinadas de purificação são tattwa shuddhi e chitta
shuddhi (antar mouna).

Santosha, o contentamento, consiste em cultivar um estado interior


de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas,
o que facilitará muito o progresso na prática. Lembre que o melhor
surfista não é o que surfa a maior onda: é o que tem o maior sorriso nos
lábios. O melhor yogi não é o que faz o exercício mais complicado: é
aquele que sabe viver melhor sua vida (o que está estreitamente
vinculado com o tamanho do sorriso).

Tapas é calor, ascese, determinação, força de vontade concentrada,


austeridade, esforço sobre si próprio: “produz a destruição das
impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal.”
O objetivo desse esforço sobre si próprio é atingir um estado de
purificação que permita ao indivíduo tomar posse do seu corpo, indo
além dos limites impostos pela percepção limitada da realidade. “Uma
linguagem que não fira, verídica, amigável e benéfica, o estudo regular
das escrituras, tal é o tapas da palavra. A serenidade e clareza de
espírito, a doçura, o silêncio, o autodomínio, a total purificação do
caráter, tal é o tapas consciente.”

Swádhyáya é o estudo da metafísica do Yoga e de si próprio;


abrange não apenas o autoconhecimento através da reflexão sobre a
sabedoria das escrituras (shástras), mas também a aplicação prática
desse conhecimento. O swádhyáya alarga os horizontes do intelecto,
enriquece e estimula a prática. O japa, a repetição de um mantra com
fins de meditação, também pode considerar-se swádhyáya. Diz o Vishnu
Purána, VI:6.2: “do estudo deve-se passar ao Yoga. Do Yoga deve-se
passar ao estudo. Pela perfeição no estudo e no Yoga, a Consciência
Suprema se manifesta. O estudo é um olho com o qual o Ser se percebe.
O Yoga é o outro.”

Íshvara pranidhána, é a consagração a Íshvara (Senhor), entendido


como o arquétipo do yogi, o modelo ideal a ser seguido pelo praticante.
Íshvara pranidhána também significa entregar as ações e seus frutos a
uma vontade superior à própria. Pode entender-se como auto-aceitação
no momento presente ou ainda como serviço à Humanidade. A
Bhagavad Gítá diz que “o seu dever é agir, sem procurar recompensas
pelo que você faz”.

Sankalpa: colocando em prática seu dharma pessoal

Sankalpa significa resolução. É uma frase curta, concisa, clara e


altamente evocativa. Tem o objetivo de potencializar algum aspecto
positivo da personalidade, em nível subconsciente.

O sankalpa penetra no subconsciente, fortalecendo a estrutura da


mente e despertando as forças latentes que facilitarão a realização dos
nossos objetivos. Consiste em ativar as qualidades positivas que existem
dentro de todos nós mas que permanecem bloqueadas no
subconsciente. Isso dará uma direção mais adequada à nossa existência.

É preciso fazer um auto-exame para identificar nossa principal


carência e evocar vividamente aquilo que queremos atualizar e
melhorar. Embora o sankalpa se faça mentalmente, ele começa no
coração.

É uma frase curta, mas carregada de significação. Deve manter-se


por dez a quinze sessões sucessivas de meditação ou de yoganidrá, e
repetir-se pelo menos três vezes ao iniciar e três ao finalizar a prática.
Devem ser poucas palavras, e sempre as mesmas, para fixá-las no
pensamento: uma frase curta, do gênero desperto a minha kundaliní, ou
lembro sempre que precisar. Deve ser positivo — por exemplo, estou
saudável ao invés de não estou doente. Deve conjugar-se sempre no
presente. Se você pensar no futuro, nunca vai conseguir o seu sankalpa,
porque a mente subconsciente só entende o presente.

Como você deve estabelecer o seu sankalpa em função da sua


necessidade, é preciso em primeiro lugar ver qual é essa necessidade.
Para ter isso claro, nada melhor do que uma boa auto-análise, profunda
e sincera, que sirva para identificar os aspectos mais marcantes da
própria personalidade e detectar os erros mais graves cometidos nos
últimos tempos. Feito isso, o sankalpa se estabelece com base nas
atitudes opostas àquelas que se precisa eliminar. O sankalpa pode
trabalhar nos níveis físico, vital, emocional ou mental, dependendo da
sua necessidade.

Alguns exemplos de sankalpa:

1. confio em mim;
2. harmonia física e mental;
3. o sucesso me acompanha em todos os empreendimentos;
4. desenvolvo o meu potencial espiritual.

Repita o sankalpa com vontade, fé, sentimento pleno e consciência.

No final do dia, é bom olhar para o dia que passou para refletir sobre
seus desafios. Cada erro é uma lição, cada conquista um
aprofundamento do entendimento.

Perigos do Yoga Vira-Latas


Por Pedro Kupfer

Voltei recentemente de uma temporada de estudos na Índia, onde o yoga é


uma prática baseada em princípios filosóficos milenares. Diferentemente dos
ocidentais, os yogues daquele país estão mais preocupados em saber o que você
faz para melhorar o mundo que em conhecer suas idéias. As comunidades yogues
estão tradicionalmente empenhadas em melhorar as condições de vida das
populações carentes, mantendo hospitais e escolas, distribuindo alimentos e
gerando emprego através do karma yoga, o yoga da ação social.

Essa experiência no berço do yoga contrasta de manei¬ra chocante com o que


percebemos chegando de volta ao Brasil. Lá, é absolutamente normal deparar-se
com yogues que dedicaram suas vidas à prática e ao estudo da filosofa. Aqui, além
de esse primeiro tipo ser raro, existem "profissionais" que envergonhariam os
sábios yogues de outrora, que só não se reviram de indignação nos túmulos porque
foram cremados. Em nosso país, o yoga virou uma mercadoria usada por charlatões
para enriquecer, seduzir e extorquir.

Desde novatos psicografando currículos anabolizados para impressionar


potenciais clientes a temerários que ensinam o que ignoram e mestres facínoras,
impera em algumas áreas do yoga um certo clima de impunidade, de "liberou
geral", no qual os oportunistas fazem a festa. Es¬sas pessoas têm uma visão tão
mequetrefe do yoga que a prática acaba virando uma espécie de ginástica com
incenso. É o que chamo de viralatização do yoga.

Na verdade, a presença de pessoas despreparadas ou mal intencionadas no


yoga não é nova. O Dattatreya Yogashastra, um antigo tratado sobre essa nobre
filosofia, adverte: "Há algumas pessoas que dão discursos sobre yoga ou ostentam
os sinais do yogue, mas não praticam o que pregam. Estão enganando os demais,
somente para obter benefícios e satisfazer seus desejos".
Nesse panorama de "vale tudo" destacam-se, pela periculosidade, algumas seitas
intolerantes, disfarçadas de redes franqueadoras autodenominadas
"universidades", que tratam essa antiga filosofia como se fosse fast-food e
enxergam os praticantes como se fossem notas de dinheiro com pernas. Essas
seitas com fins lucrativos oferecem um vasto leque de produtos, que vão desde
formação profissional (para o bom entendedor, lavagem cerebral pura e simples) a
sexo tântrico (leia-se lascívia desenfreada), sob a supervisão totalitária do mestre.

Espertamente, especializam-se no público jovem, mais fácil de manipular. Os


adeptos são orientados a não misturar-se com pessoas de "nível energético
inferior", não ler livros ou fazer práticas de outras formas de yoga que a
preconizada pelo líder e outras instruções que têm como objetivo alienar o
indivíduo, enfraquecê-lo e torná-lo mais manipulável. Quando há algum
questionamento em relação ao autoritarismo ou a pessoa se afasta da faixa etária
ideal, ela é impedida de continuar freqüentando o curso, descartada como bagaço
da laranja.

É lamentável, mas compreensível, ver a nossa juventude seduzida por esse tipo
de ideologia reacionária. Essas seitas se apresentam sempre sob uma forma light e
criam uma identidade com a linguagem, as atividades e as inquietudes dos jovens.
No entanto, por trás do marketing enganoso, escondem-se a exigência de
obediência cega, o doutrina¬mento e a devoção ao mestre, estabelecida através de
juramentos e outros rituais patéticos.

As palavras yoga e seita são, por princípio, contraditórias. É impossível haver


uma seita formada por yogues de verdade. Se ela existir, estará formada por um
embusteiro e seus asseclas, sejam enganadores, sejam enganados. Pode um patife
ditatorial e sedento de poder, que impõe o culto patológico a sua personalidade, ser
um yogue? A resposta é não.

Cabe lembrar que o yoga é uma ciência complexa e pro¬funda que busca a
realização do potencial humano. Essa realização é chamada nirvana, uma palavra
sânscrita que significa literalmente "sem desejos", exatamente o contrário do que
se preconiza nesse tipo de instituição. Praticar yoga é levar uma vida que exige
transformações pro¬fundas: desde o esforço por superar-se na prática e no
cotidiano, aplicando a consciência a cada ação, até o cultivo das virtudes nos
relacionamentos.

COINCIDÊNCIA,
SUPERSTIÇÃO E
CAUSALIDADE
Pedro Kupfer
Um dos leitmotivs da cultura do Yoga é o aforismo 'tudo está
conectado'. Esse tema, central e recorrente na literatura do Yoga,
aparece explicitado em afirmações vaidikas como 'O Universo inteiro é
uma grande família' (vasudaiva kutumbakam), ou 'Assim como no Ser,
também no corpo' (yata brahmande tata pindade). Muito embora seja
verdade verdadeira que existe uma conexão intrínseca entre Brahman, a
Consciência Única, e todas as formas, animadas e inanimadas, isso não
se estende necessariamente a todos os aspectos da realidade, quando
observada desde a perspectiva do ego ou da mente de cada pessoa. Por
momentos, o ego, permeado pela ignorância, nos faz perceber conexões
onde elas não existem. Um antigo texto não-dualista chamado Yoga
Vasishtha usa o derivativo kakataliya, para referir-se a situações desse
tipo. Kakataliya quer dizer 'sobre o corvo na palmeira'. Porém, antes de
entrar na definição desse importante, mas esquecido conceito, e já que
um dos temas deste texto é a causalidade, permita-me o paciente leitor
ilustrar o quê seriam coincidências acidentais contando dois 'causos'.

Superstição no surf: 'A lua cheia faz o mar subir'.


Na década de 1990 tive a oportunidade de trabalhar como voluntário
durante cinco anos no projeto Sentinelas do Mar, que tinha como
objetivo fazer um estudo do que se conhece como clima de ondas na
costa brasileira. Esse projeto, idealizado pelo Dr. Eloi Melo e patrocinado
pela Marinha do Brasil, antecedeu em alguns anos a popularização das
previsões das condições para o surf na internet e a instalação dos
primeiros waveriders (bóias que medem as ondas em alto mar) no litoral
do nosso país. O Dr. Eloi organizou uma rede de surfistas ao longo das
mais importantes praias de surf da costa ocidental da América do Sul,
desde o sul da Argentina até o litoral do Ceará. Os surfistas recebemos,
durante cinco anos consecutivos, um curso básico sobre engenharia de
ondas e fomos treinados na observação e medição das ondulações, em
termos de tamanho, procedência, intervalo entre as ondas e outros
dados relevantes.
Quando voltamos para as nossas praias, muito contentes com o
nosso recentemente adquirido conhecimento sobre engenharia
oceânica, nos deparamos com uma situação muito peculiar: a força das
superstições na comunidade do surf. Há uma lenda nessa comunidade
que diz que 'o mar sobe de lua'. Ou seja, que haveria uma influência
misteriosa da 'força da lua' na formação das ondas oceânicas. Se bem é
verdade que a proximidade da lua ao nosso planeta nas fases cheia e
nova, influencia nas marés, também é verdade que isso não tem nada a
ver com o nascimento das ondas em águas profundas, que se deve
basicamente, à ação dos ventos em alto mar.

No entanto, na praia de Itaúna, onde eu morava à época, aconteciam


discussões homéricas entre o grosso da comunidade surfística e os
poucos surfistas que aderiram à razão, sobre se a lua fazia ou não fazia
'o mar subir'. As teorias que circulavam naquela época no folclore
surfístico sobre as razões da existência às ondas eram tão curiosas como
ilógicas. 'O mar sobe porque é carnaval', dizia um. 'O mar sobe nos
quatro dias da mudança da lua, ou três dias antes ou depois dessas
mudanças', dizia outro. Ora, recebendo essa informação, eu fazia a
seguinte conta: 4 + ( 3 + 3 ) x 4 = 28. Isso significa que deveríamos ter
ondas em todas as praias do planeta durante os 28 dias por mês lunar.
Ou seja, todo santo dia! As pessoas que usavam estes argumentos eram
totalmente refratárias ao questionamento, e simplesmente se
recusavam a ouvir os argumentos que a física tinha para explicar a
presença das ondas nas praias. Se a chegada de uma ondulação
coincidisse com o dia da lua cheia, nós tínhamos que suportar os
comentários irônicos daqueles que se negavam a enxergar as
evidências. Como veremos mais adiante no texto, algo similar acontece
hoje em dia no mundo do Yoga.

Gatos terapeutas!
Meu amigo Ricardo disse-me numa oportunidade que alguns
terapeutas da Nova Era afirmam que, quando um gato deita sobre os
corpos dos seus amigos humanos, ele irá procurar os 'chakras fora de
equilíbrio'. Assim, uma das funções desses felinos domésticos seria,
desinteressadamente, contribuir para o equilíbrio energético das pessoas
que convivem com eles. Acontece que têm gatos e humanos de
diferentes tamanhos. Se a gata Chandra deita sobre meu tronco, ela vai
pegar dois ou três chakras ao longo do eixo da espinha dorsal. Se a gata
Jaya, que é bem maior, deitar sobre mim, irá pegar três ou quatro
chakras. Deveríamos então concluir, supondo que a premissa fosse
verdadeira, que cada gata faz um diagnóstico diferente dos meus
'desequilíbrios chákricos'? Como poderiam ser interpretados esses
sinais?

O bem-estar que nos produz estarmos em contato com animais


domésticos poderia ser considerado uma terapia de balanceamento dos
chakras? O calor corporal que os gatos transmitem indica que os chakras
foram 'reequilibrados'? Ora, acredito que os gatos deitam sobre os
humanos apenas buscando eles mesmos nosso calor corporal e conforto.
É por isso que eles geralmente buscam a parte mole, entre o esterno e o
abdome da pessoa. Ou seja, pela conta dos referidos terapeutas, os
humanos teríamos desequilíbrios energéticos crônicos apenas nos
centros sexual, solar e cardíaco (svadishthana, manipura e anáhata).
Concluo isso, pois nunca vi um gato deitando sobre os chakras coronário
ou básico de um humano.

O corvo na palmeira.
As duas situações expostas acima apontam para o mesmo fato: a
mente humana tende, precipitadamente, a fazer conexões entre fatos
reais, mas que não estão necessariamente vinculados entre si. A palavra
sânscrita para definir essa situação é, como dizemos no início,
kakataliya. Esta palavra é composta por kaka, que significa corvo, e tala,
que significa palmeira. Traduz-se como o exemplo 'do corvo e a
palmeira'. No entanto, numa tradução livre, mas que apontasse para a
intenção do vocábulo, poderíamos dizer que kakataliya significa
'coincidência acidental'.

Antes mesmo do Yoga Vashishtha, o Nyaya Sutra ('Aforismos sobre a


Lógica'), um texto do século VI dC atribuído ao sábio Akshapada
Gautama, também cita a falácia do corvo na palmeira expondo a
seguinte hipótese: um corvo pousa num coqueiro. No mesmo instante,
um coco maduro desprende-se da árvore e cai. Embora esses dois fatos
estejam aparentemente vinculados no tempo e no espaço, não existe
uma relação causal entre eles. Às vezes, é isso o que acontece na vida.
Porém, a mente, confinada dentro de seus próprios limites lógicos, tende
a criar um nexo entre os acontecimentos, inventando um 'portanto' e um
'então...' para satisfazer-se.

Assim, se alguém, por exemplo, reza para que algo aconteça, e isso
coincidir com a realização daquele desejo, a pessoa tenderá
naturalmente a acreditar que existe uma conexão causal entre a reza e
a realização. Desta maneira, a pessoa desenvolve a idéia de que é
possível forçar Ishvara (o Ser manifestado na forma da criação) a agir de
acordo com seus próprios desejos e vontades. Dessa maneira, aquilo que
parece uma sucessão verossímil de acontecimentos conectados, não
passa de uma falácia, algo que parece verdadeiro, mas não é. Há uma
palavra em sânscrito para dizer falácia: hetvabhasa.
Aristóteles na palmeira.
Essa falácia exposta na filosofia hindu foi igualmente postulada na
filosofia grega pelo grande Aristóteles, que afirmou: post hoc, ergo
propter hoc. Traduzindo: 'Depois daquilo. Portanto, provocado por
aquilo'. Em suma, o que a falácia aristotélica diz é: 'Isto aconteceu
depois daquilo. Como aconteceu depois, isto só pode ter sido provocado
por aquilo'. O coco caiu da palmeira depois do corvo pousar nela.
Conseqüentemente, o pouso do corvo provocou a queda do coco. Essa
falácia, que ficou conhecida como post hoc, pode ser resumida da
seguinte maneira:

1. A aconteceu antes de B.

2. Portanto, B foi produzido por A.

O corolário deste falso silogismo é que, quando B é algo indesejável,


evitar A certamente irá nos ajudar a evitar B. A tendência a cair neste
tipo de pensamento sofismático é natural, já que o seqüenciamento de
eventos na linha do tempo nos faz pensar que cada evento deriva e está
conectado com o anterior, em todos os casos. A lei do karma
naturalmente é o princípio de causalidade, em que cada evento se
origina no anterior e dá lugar, por sua vez ao seguintes. No entanto, é
preciso compreensão para ver onde existe conexão causal entre eventos
sucessivos e onde essa associação é apenas um produto da nossa
mente. Cabe lembrarmos que este tipo de falácia é uma conclusão tirada
unicamente sobre o seqüenciamento dos eventos percebidos desde a
perspectiva de quem interpreta, desconsiderando todos os demais
fatores não percebidos pela testemunha, mas que possam intervir
ativamente na situação.

Superstição e religião.
A superstição é um tipo de crença irracional que leva a estabelecer
obrigações imaginárias, a temer coisas inócuas ou a acreditar em
presságios e sinais, sempre originados por coincidências fortuitas. A
superstição está baseada na falsa conexão de causa e efeito entre esses
fatores aleatórios. De modo geral, pessoas de uma determinada religião
(ou tipo de Yoga!) irão enxergar pessoas de outras religiões (ou
modalidades de Yoga) como supersticiosas. Ateístas e agnósticos, por
sua vez, tenderão a ver pessoas de todas as religiões como
supersticiosas. Ninguém questiona dentro do catolicismo as curas
milagrosas de Jesus, mas, se alguém afirmar que um santo hindu ou
budista realizou os mesmos milagres, os católicos certamente irão torcer
o nariz e chamar aquele santo de charlatão. Já testemunhei
pessoalmente uma situação dessas.

Durante a epidemia de peste bubônica que assolou Roma no final do


século VI, o papa Gregório I ordenou que toda vez que alguém espirrasse
os demais falassem 'saúde!', para evitar que a doença se espalhasse (o
espirro era o primeiro sintoma de que alguém havia pegado a peste e
iria morrer brevemente). Alguns anos atrás, um conhecido cardeal
brasileiro afirmou que os incêndios de Roraima foram apagados pelas
rezas dos católicos e pelas danças dos pajés. Como a chuva chegou
depois, ela só pôde ter sido provocada, na mente dos crentes, pelas
preces e danças.

Da mesma forma, no Tibete existe uma maneira infalível de salvar a


Lua de ser devorada pelo Sol durante os eclipses. Nas noites de eclipse,
as pessoas sobem nos telhados das casas munidas de panelas e outros
objetos que possam produzir barulho, batem esses objetos e gritam
freneticamente até que, alguns minutos depois, o Sol obedece ao
comando dos tibetanos e regurgita a Lua. O povo desce dos telhados
convencido de ter salvado a Lua e contente de poder participar
diretamente na preservação da harmonia cósmica. Por outro lado,
alguns hindus acreditam que dá azar olhar ou apontar para a lua na
noite do festival de Ganesha, chamado Ganesha Chaturthi. Superstições
são encontradas em todas as religiões, em todos os tempos.

Superstição e Yoga: o lado visível do iceberg.


Um grande grupo de praticantes de Yoga se reúne semanalmente
para mentalizar, entre outras coisas, que seu líder é o próximo ganhador
do grande prêmio da loteria de São Paulo. Até agora não houve
evidências de que esse 'círculo de mentalização' tenha rendido algum
dividendo ao ilibado líder, mas o empenho e a fé cega dos seus devotos
continuam inabaláveis. Alguns praticantes evitam 'se misturar com
pessoas de nível energético inferior', i.e., não vegetarianos e não
abstêmios, na crença de que relacionar-se, conversar ou simplesmente
estar em presença dessas pessoas pode 'comprometer o progresso em
direção ao samadhi'. Outros acreditam igualmente que vinho ou
maconha devem ser evitados porque 'entopem as nadis (canais de
energia)'.
Tem pessoas que acreditam que o sucesso no Yoga deriva única e
exclusivamente de repetir técnicas. 'Pratique e tudo acontecerá' é um
slogan repetido até o cansaço por muitos praticantes. É uma dessas
afirmações fáceis de lembrar, mas totalmente equivocadas. É o epítome
do pensamento auto-ajudístico da Nova Era passando como um rolo
compressor sobre a profunda, lógica e bela filosofia do Yoga. 'Pratique e
tudo acontecerá' é a versão hathayogika da afirmação 'você cria sua
própria realidade', que ilude tantas pessoas através de filmes como 'O
Segredo'.

No mundo do Yoga, infelizmente, poucos param para pensar que


repetir mecanicamente gestos ou ações nunca poderá trazer
magicamente paz, felicidade, plenitude, liberdade ou autoconhecimento.
A consciência não se amplia aplicando cegamente técnicas posturais,
respiratórias ou meditativas. A única coisa que amplifica a consciência é
o conhecimento de si mesmo. O resto é aplicar a falácia e concluir que o
coco caiu da árvore porque o corvo posou nela.

Justifico então aqui a afirmação do parágrafo anterior. A prática de


Yoga é uma preparação prévia, para nos qualificar para o conhecimento
libertador. O Vishnu Purana diz que a prática é um olho e o estudo o
outro. Sem mantermos ambos bem abertos, não poderemos ter sucesso
no caminho do Yoga. O conhecimento sobre si mesmo não pode derivar
de uma experiência qualquer, incluindo-se aqui as práticas de ásana e
meditação. Portanto, para obtermos liberdade (moksha), é preciso sim
algo mais do que apenas fazer a prática. Como sabemos, a identificação
do ego com o corpo é algo natural. Se fizermos a prática sem
consciência nem compreensão do contexto, poderemos acreditar que ela
é algo físico, e acabaremos confundindo os meios com os fins, como é
tão comum nos dias de hoje. Se considerarmos que isto não contradiz o
bom-senso nem a experiência humana, já ficaria demonstrado que não
basta apenas fazer a prática e 'tudo acontecerá'.

A parte oculta do iceberg.


Porém, para bem além dos casos ridículos e caricatos acima
narrados, que são apenas a ponta do iceberg das crendices no Yoga, há
muito mais obscurantismo embaixo das águas do nosso folclore.
Infelizmente, verificamos que no mundo do Yoga esse tipo de sofisma é
bastante freqüente, e leva a alguns erros de percepção na maneira em
que o Yoga funciona e, ainda pior, na forma em que é enxergada a vida.
Uma tendência visível no uso da falácia do corvo na palmeira dentro do
mundo do Yoga é pressupor que exista alguma conexão entre as
práticas físicas e energéticas do Yoga e a cura fácil dos males do homem
moderno. Muitas vezes, essa solução mágica para nossos problemas é
colocada de maneira tão leviana, supersticiosa e linear, que se isso
chegasse aos ouvidos dos yogis dos tempos védicos, que sempre deram
tanta importância ao discernimento, à observação e à compreensão da
realidade, estes ficariam justamente indignados.

Sem querer abusar da paciência do amigo leitor, vou agora


descrever uma situação que ilustra plenamente o que foi colocado
acima. Uns dias atrás estava lendo um artigo na internet sobre Yoga e
boxe (esporte que pratico há pouco tempo, mas que estou apreciando
bastante) e, para meu espanto, uma professora que a autora do texto
entrevista, afirma numa determinada altura que 'o virásana (...) confere
confiança, mente estratégica e capacidade de superar todos os
desafios'. Diante disso, pensei: 'Portanto, seguindo a lógica daquela
professora, se eu sentar sobre os calcanhares assumindo a postura
virásana, adquiro imediatamente uma mente estratégica e ainda
desenvolvo a capacidade de superar todos os desafios?' Isso soa sedutor
para qualquer lutador, creio. Mas, olhando com cuidado, percebemos
aqui novamente a presença da falácia do corvo na palmeira.

Pessoalmente, não consegui compreender a conexão causal entre


essa postura e as qualidades que a professora promete que eu vou
ganhar no meu treino de boxe. Não quero aqui ironizar a afirmação dela,
mas sinceramente, não consigo acreditar nessa promessa, nem usando
a lógica, nem o que diz a minha experiência como praticante, já que faço
virásana há muitos e muitos anos e ainda não ganhei a tal da 'mente
estratégica'. Continuo tendo que fazer um esforço enorme para
encadear uma série de mais de seis golpes. Meus colegas, que tem bem
mais desenvolvida a inteligência corporal do boxe, fazem isso com a
maior facilidade. A minha mente estratégica, apesar das décadas de
virásana, está muito aquém da mente estratégica dos meus colegas que
nunca ouviram mencionar essa postura.

Asma e depressão: os limites da Yogaterapia.


Na mesma categoria de pensamento sofismático entram afirmações
como a de que o Yoga cura asma ou depressão. Doenças
psicossomáticas como a asma tem causas complexas e soluções que
passam por uma revisão total da vida e os hábitos do doente. Se essas
mudanças, que são sempre precedidas por uma transformação dos
paradigmas da pessoa, não forem implementadas, de nada adianta fazer
pranayamas ou mantras, pois a asma sempre voltará. O Yoga pode
ajudar uma pessoa a parar para pensar e compreender sua doença, mas
nunca deveríamos afirmar que o Yoga cura alguma coisa. Isso seria
temerário e irresponsável.
No caso da depressão, a situação é ainda mais deprimente, com
licença do trocadilho. Aqueles que conhecem o contexto em que se dá o
diálogo filosófico da Bhagavad Gita, entre o príncipe guerreiro Arjuna e
seu mestre, o deus Krishna encarnado num corpo humano, sabem que o
primeiro apresentava todos os sinais de um quadro de depressão aguda:
fraqueza, desespero, tremedeira, boca seca, desorientação e vontade de
ficar quieto, sem nada fazer, sem ter que decidir nada. Qual é a solução
que Krishna propõe ao príncipe? Uma prática de ásanas para 'voltar a
sorrir'? Coloco essas palavras entre aspas, pois essa expressão aparece
num texto recentemente publicado numa revista sobre o tema Yoga e
depressão. A solução da autora desse texto, obviamente, é praticar
virabhadrásana e outras posturas para 'se sentir um herói' e 'aumentar a
auto-estima'. De novo, a falácia do corvo.

A solução que Krishna propõe perante o quadro depressivo de Arjuna


é o autoconhecimento. A aula que acontece na beira do campo de
batalha não é uma prática de ásana sobre um tapetinho, mas uma lição
sobre a natureza da natureza humana. A cura de Arjuna acontece
através da reconstrução da imagem que ele tem de si mesmo. Krishna,
de forma compassiva, mas firme, mostra para o príncipe que ele não
tem motivos reais para sofrer. A única coisa que ele precisa fazer é
compreender a si mesmo. Processado esse auto-entendimento, Arjuna
sente-se curado e a grande batalha do Mahabharata começa.
Certamente, a Bhagavad Gita não é um livro de auto-ajuda, nem oferece
simpatias, soluções mágicas ou receitas baratas para a cura de algum
mal. Apenas ensina a verdade sobre o que os humanos somos, e qual é
o nosso papel na criação. Isso chama-se autoconhecimento. Em
sânscrito, atmabodha (atma = Ser, Si mesmo; bodha = conhecimento).

Outra situação que identificamos nos meios de Yoga atualmente é a


importação de fragmentos de sistemas filosóficos, religiosos,
psicológicos ou outros. Por vezes, colocar informações fragmentárias
desses sistemas pode ser perigoso. Um professor pode ouvir uma frase
de alguém, que faz muito sentido num determinado contexto, mas que,
se for tirada dele contexto e colocado noutro diferente, torna-se inócua,
incompreensível ou até mesmo contraproducente.

Dou mais um exemplo (prometo que é o último!). Meu amigo Fig


Diel, professor de Yoga que perdeu a visão, precisa medir cada passo
para não tropeçar, cair ou se machucar. No entanto, sua trajetória de
vida é um exemplo de coragem incomum, altamente inspirador para
todos: escala montanhas enormes e com grande grau de dificuldade
técnica, surfa ondas muito grandes, de meter medo em homens de mar
experientes, dá aulas de Yoga, estuda muito, viaja pelo planeta e tem
uma vida independente.

Certa vez, ele sentiu dores no quadril e consultou um 'terapeuta'


que, sem pejo, simplesmente lhe disse: 'dor no quadril é incapacidade
de dar um passo adiante na vida'. Ora, o referido terapeuta (se cabe
usar esse substantivo) não estava olhando para a pessoa à qual dirigiu
suas palavras, senão não poderia ter dito isso. Simplesmente, é
inadmissível dizer para alguém que não enxerga, que faz um tremendo
esforço a cada passo dado, e que já fez tantas e tantas demonstrações
de auto-superação, que dor no quadril signifique incapacidade de dar um
passo adiante na vida.

Se cabe alguma atitude construtiva, sábia ou compassiva em relação


a uma pessoa privada do sentido da visão, essa atitude seria a de
justamente valorizar e validar os atos de coragem em direção a auto-
superação, evitando obviamente a atitude insensível de dizer que uma
dor na bacia mostra incapacidade de andar pelas próprias pernas, ou
cosa que o valha. Se meu amigo Fig tivesse tendência à depressão, ou
se desse crédito às palavras desse pessoa, poderia ter se fixado numa
crença imobilizadora. Sendo ele uma pessoa de valor exemplar, a
afirmação torna-se apenas patética e fora de lugar. Resumindo, pode ser
perigoso importar para dentro do Yoga de maneira descontextualizada
partes de outros sistemas ou modelos de pensamento. Na mesma
esteira, vemos igualmente em alguns professores uma tendência a citar
de forma descontextualizada fragmentos da própria ciência irmã do
Yoga, o Ayurveda, de forma tão confusa que não fica claro qual é o
propósito de cada uma, nem onde uma termina e a outra começa.

'E o que eu tenho a ver com isso?'


Todos os exemplos acima descritos, desde a 'mente estratégica' que
as práticas de Yoga dariam ao boxeador, até a recuperação da auto-
estima do deprimido, são sintomáticos de que alguns setores da nação
do Yoga foram contaminados com o que se conhece como pensamento
mágico. O pensamento mágico é aquele que, confundindo analogias com
identidades, abusando de falácias, sofismas, comparações e simpatias,
estabelece relações de causa e efeito entre eventos que não tem
nenhuma conexão. Muitas vezes, aqui no Ocidente, o pensamento
mágico aparece na forma das variadas distorções da lei do karma, ou
como conseqüência da aplicação do 'pensamento positivo'. Em suma,
não é visto como magia, mas opera da mesma maneira.

O pensamento mágico é um tipo de irraciocínio causal que muito


freqüentemente inclui idéias como a falácia do corvo na palmeira, além
da crença de que a mente tem a capacidade de afetar o mundo físico (o
já mencionado aforismo do pensamento Nova Era: 'você cria sua própria
realidade' é o exemplo mais acabado dessa visão). O pensamento
mágico surge por momentos quando não compreendemos a realidade
que nos circunda, quando não conseguimos estabelecer corretamente as
causas dos acontecimentos, ou quando alguém enfrenta situações limite
nas quais se perde o controle das ações ou emoções.

Esse tipo de condicionamento, por sua vez, nos impede de


reconhecer coincidências ou padrões reais. É obvio que ser otimista é
muito melhor do que ser pessimista, mas daí a afirmar que você cria sua
própria realidade, como se ensina na Nova Era, tem uma longa distância.
Não vai ser por apenas imaginar-se magra que a minha vizinha vai
emagrecer para o verão. Não vai ser por imaginar uma chuva de notas
de 100 dólares no jardim que o marido da minha vizinha vai ficar rico,
como pontificam os profetas new age.

Digo isto porque, apesar de vivermos num mundo laico, numa era
em que a razão deveria estar na moda, e apesar de que o Yoga propõe
uma vida com ambos os pés firmemente fincados no chão da realidade,
as situações listadas mais acima neste texto são sintomáticas de que
alguma coisa está sendo distorcida na maneira em que o Yoga está
sendo visto ou tratado por aqueles que deveríamos cuidar muito bem
dele: os próprios professores e praticantes.

Então, 'o que eu tenho a ver com isso?' Todos nós, praticantes e/ou
professores, mesmo se não tivermos pensado antes nisso, somos
responsáveis por cuidar bem daquilo que foi transmitido para nós pelos
mestres e professores das gerações anteriores. Um dos ensinamentos
que mais gosto do meu mestre, Swami Dayananda, e que ele repete
com alguma freqüência para nos lembrar, é que we are reality people.
Somos gente da realidade. O yogi é uma pessoa que evita viajar na
maionese, capaz de analisar de maneira crítica e isenta a realidade em
que vive. O yogi é uma pessoa que não atribui causas sobrenaturais às
coisas, que não se ilude nem ilude os demais e que, principalmente, não
perde tempo em tarefas de duvidosa eficiência.

Não é fácil separar o joio do trigo em momentos de desorientação.


Porém, a responsabilidade do praticante sério está justamente em
assumir para si essa tarefa de discernir e ajudar os demais a discernirem
o que vale do que não vale. O que é eficiente do que não é eficiente para
curar algum mal. O que é Yoga do que não é Yoga. O que é
autoconhecimento do que é auto-enganação. Todos sabemos que os
seres humanos não deveríamos nos deixar arrastar por crenças
irracionais ou pensamento mágico. Somos dotados de inteligência e
discernimento, e deveríamos usar essas qualidades da maneira mais
construtiva e sábia. Sabedoria, bom-senso e livre arbítrio deveriam
prevalecer sobre obscurantismo, superstições e crenças, dentro e fora
do Yoga. Namaste!
A ciência védica
Pedro Kupfer

A ciência vêdica é um tema tão profundo quanto incompreendido.


Devido a uma grande variedade de razões, os estudos vêdicos não
receberam a mesma atenção que outras áreas do conhecimento antigo.

Isto se deve em parte à atitude eurocêntrica dos historiadores da


ciência, em parte ao preconceito com que essa ciência sempre foi vista
pelos estudiosos ocidentais, em sua imensa maioria cristãos, alguns
deles missionários, que tentaram a qualquer preço encaixar o período de
formação dos Vedas dentro da cronologia bíblica e comprimir a história
dentro de certas teorias especulativas relacionadas com movimentos
migratórios massivos.

O sistema científico vêdico baseia-se na premissa fundamental


upanishâdica Yata Brahmande tata pindade, que se pode traduzir da
seguinte forma: "Assim como é no Universo, assim é também no Ser".
Este sistema de conhecimento concebe todo o existente como uma
unidade. Uma unidade que está regida pelas mesmas leis. O mundo do
infinitamente grande, adhidaivika; o mundo do infinitamente pequeno,
ádhiátmika, e o mundo humano, adhibhautika , convivem sutilmente
vinculados entre si pelo que se chamou a teoria das correspondências,
ou bandhus.

As equivalências ou correspondências entre estes três mundos estão


presentes em todo o contexto cultural vêdico e em qualquer uma das
suas expressões: a literária, nos velhos shastras; a arquitetônica, na
construção dos altares do fogo ou a médica na chamada ciência da vida
ou Ayurveda, para mencionar apenas três.

O mais interessante da ciência vêdica é que ela foi além do estudo da


realidade "exterior", da Natureza. Ela estudou também a consciência e o
processo cognitivo. Isso se vê com clareza no pará, o conhecimento do
self. Os vêdicos afirmavam que a consciência, agindo em si própria,
pode alcançar o conhecimento universal. Um exemplo disto é a
experiência do Buddha Gautama que, partindo da condição humana
limitada e usando apenas a consciência, conquistou a suprema
sabedoria. Acreditava-se que, para complementar a tarefa de
compreender a ordem da natureza, era preciso igualmente unificar esse
conhecimento.

Entretanto, como não era possível encerrar o princípio unificador


numa fórmula, foram utilizados símbolos e metáforas (pratíka) para
descrevê-lo. Esse princípio unificador chama-se Brahma. Brahma é a
essência da existência: se define como satyasa satyam, bem-
aventurança e conhecimento: ánanda e prájña, ou ainda satchitánanda:
existência, consciência e bem-aventurança.

Também se define em termos de opostos, como sat e asat, existência


e não-existência, ou pela negação do que ele é: atemporal, não-espacial,
ou como estando além da causalidade. O conceito de Brahma é utilizado
para descrever a unidade essencial das coisas.

Quando a consciência apreende o universo físico, participa da


unidade. A Mundaka Upanishad, I:1,3, diz que a consciência, átman, é
"aquilo através do qual o universo inteiro pode conhecer-se". Esta
definição explica a afirmação da Brihadáranyaka Upanishad, I:4,10:
Aham Brahma asmi, "eu sou Brahma".

O Yoga, o Tantra, as matemáticas, a astronomia e o ritual do fogo


são, entre outros assuntos, diferentes aspectos do sistema de
conhecimento vêdico, que é verdadeiramente muito vasto para nós,
ocidentais. Em cada um destes aspectos se podem expressar
equivalências nas que os "deuses" vêdicos, por exemplo, podem
representar tanto estrelas ou planetas, como os chakras no corpo
humano, os tijolos empilhados dos altares ou até mesmo as próprias
qualidades humanas.

Em alguns casos, as equivalências entre as diferentes partes eram


definidas através de números. Noutros, adquiriam uma forma mais
metafórica: os olhos do homem se descrevem como sendo o sol e a lua;
fala-se de planetas no corpo humano. Hoje sabemos que existem
correspondências numéricas entre os períodos planetários e certos
processos do organismo.

A interpretação correta só pode obter-se dentro do contexto


adequado. A força da tradição vêdica provém da sua base racional, da
sua aplicação prática. A cosmovisão dos rishis, os sábios vêdicos, passa
pela constatação de que existem correspondências sutis entre o macro e
o microcosmos, e que estas correspondências admitem uma expressão
matemática. A presença dos números e da aritmética nesta sociedade
não é um fim em si própria, mas está em função da edificação de um
sistema ritual altamente preciso.

Os rishis retiravam-se da vida profana para poder dedicar-se à


observação da Natureza. Os refúgios onde viviam nas montanhas e
florestas, segundo consta nas Upanishads e no Rámáyána, constituíam
lugares ideais para a observação do céu, que era feita a olho nu. Isto
explica também o fato de que alguns conjuntos de hinos vêdicos
(mandalas) e outros shastras começam ou terminam com a descrição da
localização do sol em relação aos planetas e às constelações. Os
primeiros leitores ocidentais dos séculos XVIII e XIX menosprezaram esse
detalhe, por não acharem possível que fossem dados astronômicos
concretos. Infelizmente, ainda hoje há quem continue negando essas
evidências.

Pode parecer estranha a fixação por números na cultura vêdica, mas


esta cosmovisão elimina as casualidades. Nada é fortuito quando está
sujeito a tão precisos cálculos matemáticos. Essas relações sutis,
numericamente expressas, abrangem tanto o mais amplo do Cosmos
quanto o mais reduzido da fisiologia humana

As correspondências foram conservadas para elaborar seus rituais de


sacrifício em dois níveis diferentes: no aspecto material, edificando os
altares do fogo, o que deu posteriormente origem às impressionantes
obras de engenharia da civilização dos rios Indus e Saraswatí, através da
secularização do conhecimento sagrado. No aspecto espiritual, através
da revelação dos hinos vêdicos, especialmente o Rig Veda. A mesma
estrutura que apresentam os altares repete-se no Rig Veda. Nela,
podemos contemplar os três níveis da criação: terra, ar e céu (bhúr,
bhuva, sváhá) . O próprio texto do Rig Veda possui a estrutura de um
altar simbólico, sustentado pelo número total de sílabas dos seus 1017
mantras .

Entretanto, a noção de unidade incluía igualmente outros conceitos.


O sacrifício do fogo, agnihotra, pode fazer-se externamente, ou dentro
do corpo (prána yajña), empregando técnicas de Yoga. Os fogos do altar
de Agni possuem un paralelo nos fogos corporais. O sacrifício é um
sistema recursivo: cada nível se baseia na transcendência do nível
anterior.

Isto não só se vê na vida exterior, como também dentro da mente,


que se descreve como um sistema hierárquico com correspondências no
corpo físico denso. Uma interação dinâmica foi postulada entre três
estados fundamentais da matéria: tamas, rajas e sattwa, ou inércia,
ação e equilíbrio. Na filosofia Sámkhya se propõe a interação entre elas,
que define a manifestação de Prakriti, a Natureza.

Claramente, as regiões da atmosfera, o céu e a terra (bhúr, bhuva,


sváhá) correspondem a estas três. Os altares do fogo vêdico possuem
cinco camadas de tijolos, que representam as três regiões e os espaços
intermediários entre elas, onde o céu se encontra com a atmosfera e
esta com a terra. Na medicina ayurvêdica, os três doshas ou humores do
corpo humano, pitta, váta e kapha, definem igualmente um modelo
tripartido.

As correspondências implícitas na premissa da unidade que sustenta


o axioma yata Brahmande tata pindade se expressam também no
sacrifício do fogo, o yajña, que pode fazer-se externamente em uma
cerimônia ritual, ou dentro do próprio corpo. Este último recebe o nome
de prána yajña e usa técnicas do Yoga.

Os fogos do altar de Agni possuem um paralelo com os fogos


corporais. O sacrifício é um sistema recursivo: cada nível se baseia na
transcendência do nível anterior. Isto não se vê apenas na vida exterior
senão também dentro da mente, que se descreve como um sistema
hierárquico, com correspondências no corpo físico denso.

Algo do que nunca se fala, um pouco por ignorância, um pouco por


preconceito, é da relação entre a ciência vêdica e o Tantra. Mas
acontece que o Tantra já aparece nos Vedas. E aparece representando
simbolicamente a teoria da estrutura da consciência.

Os shastras falam da continuidade desse conhecimento desde


tempos muito antigos, e encontramos evidências da sua existência nos
textos, desde que, para decifrá-los, se utilizem as interpretações de
Yashka, ou as que aparecem nos Brahmánas. Para expressar este
conhecimento e, ao mesmo tempo, preservá-lo, os rishis valeram-se do
sandhábhása, uma linguagem intencional, secreta, alegórica e escura,
que afasta os curiosos. Para fazer uma leitura inteligente dos hinos, é
preciso levar isto em consideração.

A teoria dos bandhus, ou equivalências implica que a estrutura da


consciência possui paralelos com a realidade exterior. Alguns Tantras
vêdicos utilizaram-se do sol, da lua e dos planetas para definir as
categorias interiores do pensamento e a natureza da mente. Mas a
tarefa de interpretar os textos vêdicos desde este ponto de vista apenas
começou.

O Rig Veda dá grande ênfase à palavra, vák. O hino X:17 é dedicado


a Brihaspati, o senhor do mantra sagrado. Nele, são descritos o
conhecimento da origem e os secretos da palavra. O interessante é que
Brihaspati é comparado aqui ao sol, à lua e aos planetas. No hino X:125,
a palavra é glorificada como o poder supremo, que sustenta Varuna e
Mitra, o oceano e a compaixão.

Entre os termos de Tantra e de Yoga que encontramos nos textos


vêdicos aparece o mantra Om. Na Chándogya Upanishad, II:22, se diz
que "assim como as folhas surgem do talo, todas as palavras se
originam no Om. O Om é o Universo inteiro". Nos tempos upanishâdicos,
não se falava apenas das equivalências entre o Universo e o corpo como
estruturas, mas davam-se também os detalhes dessas equivalências.

O Veda diz que a Natureza não é real em si; mas é uma


representação simbólica da realidade última. Real é o eterno, aquilo que
nunca muda. E a Natureza muda o tempo todo. Tudo o que for interior é
real, eterno e imutável. Qualquer forma de adoração da Natureza,
incluindo o agnihotra, não se dirige à própria Natureza. Adora-se o
princípio divino que está nela, e do qual ela é apenas uma manifestação.
Se você olhar em profundidade a Natureza, conseguirá ver o princípio
divino que subjaze nela. Por isso mesmo se diz que o Veda não está
contido em quatro livros.

Havia uma vez um rishi, um sábio, que praticou exercícios de


austeridade (tapas) durante toda sua vida. Quando estava por morrer,
revela-se frente a ele Brahma, o Criador, e disse: "já que você fez tanto
esforço, vou lhe conceder um pedido. Diga-me o que quer."

O rishi responde: "me dê por favor mais cem anos de vida."

"Mais cem anos? Mas para que?"

"Necessito estudar os Vedas."

Brahma concede o pedido. Transcorrido esse tempo, o sábio e o deus


se encontram novamente. Brahma diz: "agora chegou a tua hora. O
prazo acabou."

Mas o rishi implora: "me dê outros cem anos, preciso mais tempo
para entender os Vedas."

Com aquela paciência infinita que somente os deuses sabem ter,


Brahma outorga o segundo pedido. Passado aquele século, eles se
reencontram. O deus quer levar o sábio desta vida, mas ele não desiste
e pede: "me dê por favor mais cem anos, há coisas que ainda não
consigo entender."

Brahma concorda e assim passam mil anos mais: o rishi pedindo mais
e mais tempo para estudar, o deus aquiescendo com piedade infindável.
No final, vendo que não conseguia acabar de entender as escrituras, o
rishi, desalentado, pergunta ao deus: "porque nunca termino?"

Ele responde: "porque você não está fazendo Yoga. Porque não serve
para nada estudar os Vedas se você não os coloca em prática, e a
prática do conhecimento vêdico é o Yoga".

Isto é para que você não esqueça que o estudo sem a prática não
produz nenhum resultado. Os shastras dizem que se você for estudioso
dos Vedas, você não é nada, pois o Veda não vai te levar ao moksha, à
libertação. O simples estudo dos Vedas e a recitação dos mantras traz
apenas mais condicionamentos. Por isso se diz que não existe Yoga sem
Veda, e não existe Veda sem Yoga. O Veda está dentro de você, e para
onde você olhar. Enquanto não vir o Veda dentro de você mesmo, e em
todas as coisas ao seu redor, esses quatro livros serão inúteis.

Um mantra do Yajur Veda (XXXIV2-5), que se faz à noite, diz:

A mente vai para longe quando a pessoa está acordada ou dormindo.


Vagueia muito longe e é a luz das luzes.

Que a mente tenha pensamentos elevados.

A mente é um instrumento único e sagrado, presente em todos, que


o sábio usa para seus atos nobres.

Que ela tenha pensamentos elevados.

A mente possui as faculdades da cognição e a sedimentação.

É a luz imortal. Nada pode fazer-se sem a mente.

Que ela tenha pensamentos elevados.

A mente abrange o passado, o presente e o futuro e guia as ações.

Que ela tenha pensamentos elevados.

O Rig, o Yajur e o Sama Veda estão dentro da mente.

A faculdade da cognição está entretecida na mente.

Que ela tenha pensamentos elevados.

Então, uma vez vendo o Veda em você, você poderá reconstruir e


entender os mantras, sílaba por sílaba. Porque? Porque ele está em
todos os lugares: dentro e fora. Esse é o verdadeiro sentido do culto à
natureza. Tornar-se uno com a natureza para poder entender o princípio
divino que está além.

É por isso que até os templos são réplicas da natureza. Templo se diz
mandir em sânscrito, de man = mente, e dir = paz. O sentido desta
palavra é tornar a mente pacificada. Todos os templos construídos
segundo os princípios do vastu shastra, a arquitetura sagrada hindu, são
representações simbólicas da natureza. Se eu não puder ir para a
natureza, trago a natureza para a

Como medir o corpo


prânico?
Pedro Kupfer

O súkshma sharíra, aura ou corpo sutil possui três camadas: corpo


energético, corpo emocional e corpo mental. Se você não tiver
experiência suficiente para senti-lo, e efetivamente ver os chakras e as
nádís ou se você não conseguir ainda medir o tamanho do seu corpo
sutil, isto pode parecer incompreensível.

Então, para que estas afirmações não fiquem no ar, vamos aprender
a medir auras e chakras. É mais fácil começar medindo a aura de outra
pessoa. Coloque-se a algo menos de um metro de distância da pessoa
em quem você fará a medição. Afaste a palma da mão do ombro do
outro, e depois aproxime-a devagar, até sentir um misto de calor e
formigamento bem característico, que emana do corpo. Para estimar
com exatidão a largura da aura devemos prestar bastante atenção no
centro da palma da mão, onde tem um chakra com o que você
perceberá a energia do outro.

Observe que tecidos sintéticos ou de seda obstruem a circulação da


energia e podem fazer uma diferença na leitura. Aliás, evite usar tecidos
sintéticos, pois não têm boa energia. Repita a medição várias vezes, até
ter certeza absoluta do tamanho da periferia da aura do seu
companheiro. Faça isso com várias pessoas. Compare o tamanho do
corpo energético antes e depois de uma boa prática de pránáyáma ou
meditação. Você vai levar um susto.

Uma aura normal tem menos de dez centímetros de largura. Se você


estiver cansado ou estressado, ela fica ainda menor. Após a prática de
Yoga, cresce bastante. Depois de bastante tempo de prática, ela
estabiliza, num tamanho muitas vezes maior que o normal. A aura de um
yogi pode chegar a ser gigante. O tamanho da aura determina, entre
outras coisas, a saúde, o karma e o magnetismo pessoal do indivíduo.

Para medir os chakras, é importante, em primeiro lugar, saber


exatamente onde eles estão. Veja a localização dos principais centros de
força e mais informação sobre eles no capítulo sobre meditação nos
chakras. Um chakra não é um ponto, mas uma área que varia em
tamanho, e que mede normalmente (antes da prática) entre oito e dez
centímetros de diâmetro. Use ambas as mãos para medir o diâmetro, ou
a palma de uma delas para medir a altura.

Digamos que você vai medir a altura do anáhata chakra do seu


amigo. Afaste a palma da mão da região do coração, e depois aproxime-
a devagar, até sentir o limite do chakra. Repita a experiência para ter
certeza do tamanho. Agora, meça o diâmetro: aproxime a afaste as
mãos, lenta e simultaneamente diretamente acima do chakra. Ao medir
o diâmetro desta forma, você poderá ainda sentir o chakra girando nas
palmas das suas mãos e observar o sentido predominante do giro.

O tempo todo, concentre-se na intenção de medir o corpo sutil.


Compare a altura de cada chakra com a altura da aura. Devem ser
parecidas. Depois, concentre-se em sentir a qualidade da energia que
você percebe. Faça isso chakra por chakra, desde o múládhára até o
sahásrara. No início pode resultar difícil, mas, com a prática, você
desenvolve a habilidades e a sua leitura do corpo sutil fica precisa e bem
rápida.

Há muitas outras coisas que se podem fazer para melhorar o


rendimento na prática, como eliminar excessos ou deficiências de
energia que prejudicam o corpo sutil e, conseqüentemente, a prática de
Yoga ou ainda estimular a circulação de energia em partes definidas do
corpo. A força do prána pode aplicar-se a todos os seres vivos com fins
de cura. Mas esse é um assunto muito vasto, que daria por si só para
mais um livro.

Há um certo ponto durante o pránáyáma em que a respiração


pulmonar passa a suspender-se espontaneamente. Não é algo
voluntário, como quando você prende a respiração para mergulhar. O
yogi apenas pára de respirar pelos pulmões, e passa a assimilar o prána
diretamente através dos centros de força (chakras).

Isso se chama kevala kúmbhaka, e é um estágio que se atinge


depois de algum tempo de prática intensa, desde que o praticante esteja
preparado para sentar-se e acompanhar as instruções. O resultado é
imediato. No início, a pessoa não tem domínio sobre este fenômeno.
Apenas acontece, às vezes durante a meditação, às vezes durante os
respiratórios. Depois, a pessoa passa a dominá-lo e pode repeti-lo
quantas vezes quiser e pelo tempo que quiser.

Mas o que há no final do caminho? Para que fazer esses exercícios?


Porque prána também é consciência. Mas essa é outra história... É
novamente a história da sede de poder. Da sede do poder da
consciência. Porque a sede de ar é uma sede básica, vinculada ao
instinto de sobrevivência. Mas a sede de prána é uma sede de
transcender os próprios limites, mergulhar de cabeça no inconsciente e
resgatar a verdadeira potencialidade latente no ser humano.
Isto pode parecer pretensioso, mas é o que queremos os yogis. E nos
jogamos no abismo, sem outros elementos que nossos próprios corpos,
vontades e temeridades. Sem aparelhos, sensores nem eletrodos, sem
laboratório, sem outra testemunha que nós mesmos. E, lá dentro, tudo é
muito vasto. Às vezes dá vertigem. É por isso que o yogi precisa ser um
pouco temerário. Senão, não se joga. Seria como lançar-se ao labirinto
guardando apenas um fio para poder voltar, como fez Teseu.
Salvador Dalí teve uma tirada brilhante e exibicionista, mas que
define com precisão isto que acabamos de afirmar. Ele disse que "a
diferença entre eu e um louco, é que eu não sou louco". Se você for yogi,
pode assinar embaixo. Porque o louco está perdido no labirinto. Mas o
yogi enlouquece conscientemente e sabe exatamente onde ele está e
como agir. E conhece o caminho da volta.

Por isso, loucos são os outros. Talvez você possa ser criticado por
praticar uma filosofia de vida "exótica", alheia ao seu contexto cultural.
Vejamos um exemplo esquemático, porém claro. Se alguém trabalha
sem parar, sem tirar férias, e fica estressado e alienado correndo atrás
do dinheiro e do sucesso, os demais dirão: "Fulano é uma pessoa muito
responsável e bem sucedida".

O detalhe é que Fulano terá o primeiro enfarte antes dos cinqüenta.


E se outro trabalhar menos e dedicar uma parte do dia a fazer
caminhadas ou subir montanhas para ficar deitado ao sol lá encima, as
mesmas pessoas dirão: "Sicrano é muito esquisito. Você percebeu como
ele gosta de entrar no mato e ficar sozinho?" Por isso é que digo que
loucos são os outros. E isto não é uma questão de falta de opção.
O que traz paz ao dia-a-
dia?
Pedro Kupfer

Acredito que a única coisa que pode nos dar paz, mas paz
verdadeira, é sermos capazes de saber quem somos e o que estamos
fazendo aqui. O Yoga nos ensina que nós estamos fabricados de paz.
Essa paz, em sânscrito, chama-se shantah. Não é um sentimento ou uma
emoção, não é aquela sensação de tranqüilidade que ora vem, ora vai, e
que é substituída pelo seu oposto, o nervosismo ou a tensão. Shantah é
Paz com maiúscula, contínua e sólida. Essa paz precisa ser conhecida,
para ser devidamente apreciada. O caminho para a paz chama-se
autoconhecimento. Quando conheço a mim mesmo como paz, nada que
aconteça no mundo das dualidades poderá me tirar do centro. Ou, se
alguma situação me tirar do centro, voltou para ele com rapidez e
flexibilidade, como o bambu que se enverga com o vento e que volta a
ficar em pé quando o este cessa.
Atitudes: atentividade e consciência.
Algo fundamental para vivermos em paz é saber qual é a nossa
vocação, para compreender em que lugar e de que maneira nos
colocamos na sociedade e no mundo. A paz surge naturalmente e sem
esforço em mim quando compreendo que estou fazendo aquilo que
cabe, da maneira mais justa e harmoniosa. Se, ao fazer aquilo que nasci
para fazer, eu cometer alguma equivocação, isso não vai tirar a minha
paz, pois sei que estou fazendo o melhor que posso, com atentividade e
consciência. A Bhagavad Gita nos ensina que é melhor fracassar
cumprindo o próprio dever, do que ter sucesso fazendo o dever de
outrem. Isso significa que, independentemente dos resultados das
minhas ações, eu fico tranqüilo e em paz. Aprender a amar o que se faz,
ao invés de ficar penando para fazer somente aquilo que se quer,
também ajuda a ficar dentro desse estado de tranqüilidade.
Práticas: mantra e meditação.
Uma prática que gosto de fazer para lembrar da paz que sou é cantar
mantras. Os mantras são uma maneira fácil, acessível e rápida de refletir
sobre aquilo que somos. Como prática, eles nos dão ampla liberdade de
escolha, tanto na forma quanto no tema. Se não souber cantar mantras,
não tem problema: escolha uma boa gravação, da qual você goste,
dentre as muitas que temos disponíveis hoje, encontre um lugar
tranqüilo, sente ou deite em silêncio e apenas ouça, dando a si mesmo o
direito de parar.
Outra prática que acho essencial é um tipo especial de meditação
chamado nididhyásana. Essa meditação consiste em fazer uma reflexão
sobre aquilo que se sabe sobre si mesmo. E, isso que se sabe, ou deveria
saber-se sobre si, é que eu sou paz. No desespero e estresse do campo
de batalha, o príncipe Arjuna pergunta para o deus Krishna como
recuperar a paz. Ele está tremendamente deprimido e não consegue
lutar. Krishna não lhe dá uma receita para praticar algum respiratório ou
postura, mas ensina para o príncipe que ele já é a paz que está
buscando ao tentar fugir das suas responsabilidades. Uma vez que
Arjuna aprendeu a lição, cabe-lhe praticar o nididhyásana, ou seja,
refletir sobre aquilo que sabe sobre si mesmo, enquanto realiza as ações
que deve realizar.

Ásana: pensando com o


corpo
Pedro Kupfer
A filosofia hindu afirma que na matéria existe consciência e que na
consciência existe matéria. O Yoga quer pensar com o corpo: através da
experimentação, os yogis da antiguidade descobriram que fazer
exercícios físicos de forma ritual traz enormes conseqüências
metafísicas.

O yogi busca a inteligência que está escondida no corpo, a


consciência que está escondida no corpo: esse é o ponto de partida para
poder achar a verdadeira identidade. Esses exercícios se chamam
ásanas em sânscrito: são um conjunto de técnicas altamente instigantes
e desafiadores, que podem exigir tudo no plano físico, mas que não são
um fim em si mesmos.

Pode-se dedicar uma vida inteira aos ásanas, e nem por isso estará
se fazendo Yoga. O que faz a diferença é a atitude que está por trás dos
exercícios. E, com a atitude correta, vem uma série de coisas junto:
alinhamento, inteligência corporal, respiração consciente, despertar das
experiências do corpo sutil, transformação do organismo, num processo
que poderíamos chamar de alquimia corporal.

A construção de um corpo novo está vinculada com a iniciação, o


novo nascimento do praticante. Constrói-se o corpo novo para perder a
identificação com o ‘antigo’, vinculado a couraças de tensão muscular,
samskáras ou latências mentais.

O Yoga quer dar um corpo novo ao praticante, que ele mesmo irá
construir, célula por célula, fibra por fibra. Usando esse novo corpo como
instrumento, ele poderá avançar a passos largos em direção à meta do
Yoga. O único que se precisa ter é muita disposição e força de vontade.

Entretanto, é preciso ter muita consciência e saber exatamente o que


você faz ao praticar ásana, e para que você pratica. Se não for assim,
corre-se o risco de que o ego cresça em proporção direta ao aumento da
força ou da flexibilidade.

O poder que dá o Yoga é para aniquilar o ego, mas pode ser usado
erroneamente, como combustível para alimentá-lo. Flexibilidade da
coluna não é sinal de progresso no Yoga. Se fosse assim, os
contorcionistas de circo seriam pessoas altamente espiritualizadas. E
você sabe que nem sempre flexibilidade e espiritualidade vão juntas.

A sensação que se percebe ao fazer estes exercícios é como a que se


tem depois de haver ficado durante muito tempo no escuro, e sair
repentinamente à luz do dia. A atenção se localiza apenas no momento
presente: uma nova realidade se nos revela e novas sensações são
descobertas. A conexão com a fonte da existência fica firmemente
restabelecida. Quer experimentar?

Perguntas e respostas
sobre Yoga, para
iniciantes
Pedro Kupfer

Por que os resultados de um mesmo tipo de prática variam de


pessoa para pessoa?
Por que somos todos diferentes, por que não existem dois corpos
idênticos, ou duas mentes que funcionem exatamente da mesma forma.
Assim, as mesmas práticas podem produzir resultados diferentes em
pessoas diferentes.
Há muitos tipos de prática distintos, e precisamos ver qual é o que
melhor responde às nossas expectativas, necessidades e preferências.

O que deve fazer aquele que procura somente um trabalho


físico, seja alinhamento, alongamento, flexibilidade,
fortalecimento, emagrecimento?
Procurar um método centrado nessas técnicas. Não é difícil achar tal
sistema, uma vez que a grande maioria das práticas que conhecemos
como Yoga hoje em dia estão centradas quase exclusivamente no
trabalho corporal.

É possível moldar o corpo e ficar como a Madonna fazendo só


Yoga?
Não creio. Existem muitas práticas diferentes de Yoga hoje em dia e é
difícil falarmos um só tipo de resultado, pois, considerando seus
diferentes efeitos, não podemos colocar todas elas no mesmo patamar.
Há práticas relativamente fortes e outras muito suaves. Idealmente,
quem busca resultados físicos no Yoga deveria acompanhar esses
exercícios de outras atividades aeróbicas que estimulassem o sistema
cardiovascular, como caminhada, corrida ou natação, para mencionar
apenas algumas, e ainda complementar o trabalho do Yoga com
musculação. Porém, cabe lembrar que adquirir um bom estado físico não
é o objetivo da prática.

Como saber se a escola ou o professor são bons?


Usando o bom-senso. Visitar uma escola é uma boa ocasião para ver
de que maneira se ensina ou transmite o Yoga. Por exemplo, podemos
reparar se há algum tipo de ansiedade da parte da pessoa que nos
atende para receber o pagamento da mensalidade, ou para nos vender
algum livro ou produto que não tenhamos pedido ou não nos interesse.
Também, olhar para as pessoas com cuidado, especialmente para o
professor, e ver se nos identificamos com a forma de abordar a prática.
É bom lembrar da importância da compaixão, que deve estar presente
na sala na forma da gentileza, do cuidado com os alunos e do clima de
respeito e tranquilidade que deve predominar na sala de prática. Esses
podem ser sinais de que não estamos numa escola idônea. Há vários
textos sobre este assunto neste mesmo website.

Como não me machucar?


Novamente, usando o bom-senso e a capacidade de auto-observação.
Sinais como respiração ofegante, palpitação, instabilidade ou tremor
excessivo e dores nas articulações, são sinais de que o exercício não
está sendo bem recebido pelo nosso corpo. Se o ritmo da prática for
rápido ou forte demais para mim, se eu não compreendi exatamente em
que consiste um exercício antes de chegar o próximo, se o professor
estimular os praticantes a irem para além dos próprios limites naturais
ou genéticos, talvez eu esteja na sala de prática errada.

Se eu quiser apenas aprender a meditar ou relaxar, devo


fazer Yoga? Ou devo procurar um centro de meditação?
Novamente, isso dependerá do tipo de prática que escolhemos, uma
vez que algumas modalidades de Yoga dão muita importância à prática
de meditação e outras simplesmente passam longe dela.

É possível fazer só yoganidra?


Sim. Mas a imensa maioria dos centros de Yoga irão oferecer essa
técnica de relaxamento dentro de um contexto que inclui igualmente
práticas físicas de diversos graus de intensidade, exercícios respiratórios
e/ou meditação, além da referida prática de relaxamento.

Alcançar meu objetivo depende de mim, do meu professor, da


escola, do método ou da linhagem de Yoga?
Essa pergunta pode ter diversas respostas, dependendo do ponto de
vista de cada linhagem tradicional. Desde a tradição em que
pessoalmente estudo e pratico, aprendemos que a consecução do
resultado depende exclusivamente da gente. Essa visão, aliás, me deixa
tranquilo, pois vejo que não preciso nem devo delegar o poder ou a
responsabilidade pela minha própria felicidade a outrem.

O que acontece se a gente não faz a respiração corretamente


durante a prática?
Respirar corretamente é essencial, não apenas na prática, mas para
viver de maneira saudável. É claro que há uma relação estreita entre a
maneira em que respiramos e a paisagem emocional e mental a cada
momento. Esse é um caminho de duas mãos. Assim, a uma mente
agitada, corresponde uma respiração superficial e insuficiente, e uma
mente tranquila se reflete numa respiração longa e profunda. O Yoga
ensina algumas possibilidades de respiração ampla e completa que nos
ajudam a elaborar uma relação mais profunda com a própria existência.
Se a respiração não for feita da maneira adequada, isso pode ser sinal
de que a mente continua vagueando distraída.

A. As posturas se repetem nos diferentes tipos de Yoga, mas


com diferenças. O objetivo do ásana muda de uma linha a
outra?
B. Conhecer as particularidades de cada método pode ajudar
o praticante a definir melhor sua preferência?
A. É verdade. O objetivo imediato da prática, seja do tipo que for,
deveria estar em função de outro objetivo maior, que nem sempre é
evidente na sala. Esse objetivo maior é o estado de iluminação ou
libertação, chamado moksha em sânscrito.
B. Certamente. Mas essa escolha deveria estar pautada pela própria
experiência da pessoa. Ou seja, todos nós deveríamos testar vários tipos
de prática diferentes, se tivermos dúvidas sobre qual seria a mais
adequada. Algumas pessoas encontrar a prática ideal, adequada e
correta para elas mesmas logo na primeira aula. Outras, naturalmente,
precisam experimentar varias modalidades para ver qual responde
melhor a seus objetivos e necessidades. Nessa ordem de coisas, o
professor cumpre um papel muito importante, pois a empatia entre o
praticante e o professor também é determinante para que o aluno
elabore uma relação pessoal com o Yoga e aprenda a gostar de praticar
sozinho.

A. Como a experiência física nos ásanas se transforma numa


experiência mental e espiritual?
B. Há uma movimentação de pensamentos que eu possa
observar durante o ásana e aproveitar depois, no
cotidiano? Você poderia descrever isso?
A. Em verdade, não há uma transformação de uma experiência física
numa experiência espiritual. A experiência física é um palco no qual
podemos reconhecer a nossa espiritualidade. Nesse sentido, a prática
física é uma espécie de espelho da vida, no qual aplicamos um
ensinamento e uma visão peculiares: nós já somos a felicidade que
estamos buscando. Esse processo da prática chama-se nididhyásana, ou
reflexão sobre si mesmo. É uma forma de aplicar o autoconhecimento na
sala, que nos possibilita depois levar esse depois para o cotidiano.
B. Nessa reflexão, aprendemos a observar o fluxo dos pensamentos
sem reagirmos a eles. Ou seja, noutras palavras, aprendemos a aceitar a
natureza da mente e conviver com ela, sem que os eventuais
pensamentos de preocupação, medo, raiva ou tristeza se tornem uma
fonte de sofrimento.

De que maneiras um aluno que veio de outra escola, de outro


professor ou de outro estilo pode estranhar uma nova
aula? Como ele deve encarar essa situação?
Sou da opinião de que em nenhum caso nos devemos forçar. A
prática de Yoga deve ser fluida, bem como fluida deve ser também a
relação com aquele que nos ensina. Nesse sentido, há muitas
abordagens de ensinamento no Yoga e cada professor, querendo ou não,
irá colocar algumas questões da sua própria personalidade na prática. A
empatia entre aluno e professor é o que, em definitiva, determina se há
identificação com um sistema de prática. Alguns professores têm uma
abordagem mais compassiva e outros uma atitude mais firme na sala.
Eu posso me identificar mais com um ou o outro tipo. Sempre gosto de
lembrar de um ditado tibetano que ilustra o meu gosto pessoal nesta
questão: “conhecimento sem compaixão vale menos que um monte de
estrume”.

Homens e mulheres têm preferências ou aptidões diferentes


para diferentes linhagens de Yoga?
Não. O Yoga é para todos os seres humanos, independentemente de
gênero, idade, etnia, cultura ou quaisquer outras diferenças.

Dizem que o Ashtanga Yoga é um trabalho físico forte, muito


procurado por quem quer ficar forte e bonito. Que tipo de
preparo o Ashtanga exige?
Aquilo que está sendo chamando aqui de Ashtanga Yoga, deveria ser
chamado em verdade de Ashtanga Vinyasa Yoga, para evitar a confusão
entre esse sistema e a escola de Yoga Clássico do sábio Patañjali. A
prática de Ashtanga Vinyasa Yoga não é para qualquer corpo. Não
recomendaria essa prática para pessoas com fragilidade articular na
região lombar, nos joelhos, ombros ou pulsos. Ainda, não recomendaria
esse tipo de prática para pessoas que não tenham um ótimo estado
físico, independentemente da idade.
Praticantes podem se machucar quando se deixam dominar pelo ego
e passam a ignorar os sinais do corpo, como palpitações, desconforto ou
instabilidade, que são as maneiras em que o corpo avisa que alguma
coisa não está indo bem. Ignorar a esses sinais e a dor que pode
aparecer na sequencia é uma péssima ideia, em práticas de Yoga ou em
qualquer outra situação. Persistir nessa atitude pode nos levar a sofrer
lesões, seja na sala de práticas, seja em qualquer outro lugar.
Em relação à transformação da pessoa, o que define este tema é a
abordagem que o professor cultiva na sala: os exercícios que escolhe, as
palavras que usa, as atitudes e a maneira em que transmite o
ensinamento essencial. O mesmo método pode ser transmitido de
maneiras muito diversas.
Qual a diferença do Ashtanga para o Power Yoga? Quem faz
um faz outro? Quem gosta de um gosta de outro? Para quem o
Power pode ser recomendado?
O Power Yoga é uma adaptação, mais suave e livre do Ashtanga
Vinyasa Yoga. Não sendo um método “ortodoxo” no sentido em que é
preciso seguir uma série fixa de exercícios, há muita mais flexibilidade
nas escolhas e maiores possibilidades de adaptação.

E o Iyengar? Serve para melhorar a postura? Se eu estiver


com dor nas costas, devo procurar aulas de iyengar Yoga? O
iyengar pode me machucar ou causar desvios posturais?
Toda forma de Yoga físico, independentemente do nome, pode ajudar
a melhorar a postura. Dores nas costas podem ter muitas origens
distintas. A priori, qualquer forma de prática daquilo que genericamente
é chamado de Hatha Yoga pode nos ajudar a melhorar a forma em que
vivemos no corpo, e na relação que estabelecemos com ele. Nenhuma
forma de Yoga bem praticada iria me provocar desvios posturais.

Já encontrei uma lista enorme de tipos de Yoga. Parece que


sempre tem um americano inventando um novo. Existe tudo isso
mesmo? Como saber o que é verdadeiro e me proteger das
picaretagens?
Existem, grosso modo, dois tipos diferentes de métodos de Yoga: os
tradicionais, e os recentes. Porém, isso não significa que todos os
tradicionais sejam bons e que todos os novos sejam ruins. Os
tradicionais são o Jñana Yoga, o Karma Yoga, o Mantra Yoga, o Kundalini
Yoga, o Tantra Yoga e o Hatha Yoga. Métodos que levam o nome de um
mestre são, de modo geral mais recentes. Alguns desses métodos estão
totalmente conectados com a tradição maior e foram batizados com
nomes diferentes para preservar a maneira peculiar em que aquele
mestre ensinou, como é o caso do Sivandanda Yoga ou do Satyananda
Yoga. Agora, os Yogas novos, surgidos na inércia da moda, que
estiverem desconectados dessa tradição maior, não merecem muito
crédito nem são recomendáveis. Mas repito, não estou afirmando que
todos os Yogas novos sejam ruins. Pelo contrário, algumas dessas
formas novas contêm preciosas contribuições de professores da
atualidade que enriqueceram muito as práticas tradicionais.

E os demais Yogas?
Há uma lista dessas formas de Yoga e seus efeitos
no www.yoga.pro.br, num texto chamado “Que Yoga devo praticar?”

O aluno (que está começando ou pratica sem muita


regularidade ou é veterano) consegue entender as diferenças
entre essas linhagens?
Há algumas diferenças na abordagem, na visão, na maneira em que
se faz a prática das posturas e respiratórios, de escola para escola. No
entanto, o objetivo é um só e é isso o que interessa. De modo geral,
somente depois de algum tempo é que o praticante começa a perceber
essas diferenças, que às vezes são apenas cosméticas (de linguagem,
digo) e às vezes bem grandes.

É comum professores misturarem estilos. Isso é bom?


É frequente sim. Pode ser bom e pode não ser tão bom assim, se o
professor não souber com que objetivo está fazendo essa combinação,
ou se estiver forçando as coisas. O que chamamos “estilo de Yoga” é
apenas uma forma particular de praticar, elaborada por um ser humano
como os demais. Esse estilo nasce baseado nas experiências únicas
daquela pessoa com seu corpo e psiquismo. Cada estilo é, portanto, uma
espécie de herança ou legado deixado por um praticante, seja do
passado remoto, seja do presente. Quando essas experiências do
professor são bem recebidas pelo meu próprio corpomente, eu posso (ou
devo) integrá-las com a minha prática pessoal. Creio que uma “mistura
de estilos” bem sucedida deveria contemplar essa situação.

A. Uma vez cumprido um objetivo num tipo de Yoga, o que


convém fazer?
B. E quando a pessoa alcança o aperfeiçoamento físico e/ou
espiritual e fica capaz de meditar sem precisar do Yoga... faz
sentido continuar praticando? Yoga é para sempre ou é apenas
um caminho para alcançar uma meta?
A. Em verdade, a questão seria se, depois de praticar por um período
suficiente o Yoga físico (chame-se Hatha, Iyengar, etc), a pessoa
passaria para outro nível de abordagem e compreensão do Yoga,
dedicando-se ao Mantra Yoga, ao Karma Yoga, o Yoga da ação
consciente, ou ao Jñana Yoga, que conduz ao autoconhecimento. Este
ultimo é o mais sutil de todos e é aquele que, cedo ou tarde, todo
praticante sério e dedicado irá encontrar.
B. Em verdade, depois que a pessoa se estabiliza no estado de Yoga,
o Yoga não a abandona mais. Ou seja, Yoga deixa de ser algo que
fazemos, para se tornar a consciência daquilo que somos. Noutras
palavras, você não pratica o Yoga algumas vezes por semana dentro de
uma sala com o acompanhamento de um professor, mas cultiva um
estado de consciência chamado Yoga, que se revela na forma da pessoa
simples e tranquila que você é, independentemente da vida que possa
estar levando, numa metrópole ou onde for.
A força do Karma
entrevista com Pedro Kupfer

Para que possamos entender mais sobre karma, a Saraiva.com.br


entrevistou o professor Pedro Kupfer. Pedro nasceu em Montevidéu,
Uruguai. Hoje com 35 anos de idade, descobriu o Yoga aos 16 e desde
aquele momento nunca parou de praticar. Considera o Yoga mais uma
forma de vida do que uma atividade que simplesmente se faz dentro de
uma sala. Viajou extensivamente pela Índia, aprendendo e residindo em
diversas escolas e comunidades de Yoga. Atualmente mora em
Florianópolis, onde ministra cursos e aulas e ensina esta filosofia prática
aos detentos do presídio masculino da cidade. Em sua opinião, dizemos
com freqüência "fulano tem um karma pesado" ou "sicrano pagou seu
karma", sem entender ao certo o que é esse tal de karma.

por Adilson Rielo

Saraiva.com.br - No Yoga, qual é o conceito de karma?


Pedro Kupfer - A palavra karma é de origem sânscrita e deriva da
raiz "kr", que significa fazer, agir, criar. O karma é o resultado das ações,
a lei de causa e efeito. A teoria do karma afirma que a ação e a reação
configuram dois aspectos da mesma realidade. Entretanto, a noção de
karma não tem nada a ver com fatalismo ou determinismo - embora o
efeito esteja potencialmente contido na sua causa - muito pelo contrário,
é uma realidade que pode ser modificada, uma espécie de destino
maleável.

Saraiva.com.br - Na sua opinião, por que no Ocidente temos a idéia


de que o karma é uma coisa ruim?
Pedro Kupfer - Aqui no Ocidente pensamos que o karma seja uma
espécie de fatalidade, algo ruim que acontece sem motivo aparente.
Com freqüência dizemos: fulano tem um karma pesado ou sicrano pagou
seu karma, sem entender ao certo o que é esse tal de karma. O conceito
de karma no contexto do Yoga de Pátañjali não tem nada a ver com isso.
Creio que isto acontece devido à nossa ignorância e a leviandade com
que encaramos as tradições orientais, em geral, e o Yoga em particular.
Para entender que a lei de causa e efeito não é nem boa nem ruim, é
preciso estudar seus mecanismos. O karma não é nem bom nem ruim.
Isto pode parecer incompreensível se não for melhor explicado: pense
que alguém é condenado a ficar numa cadeira de rodas, sem movimento
algum do corpo, a não ser dois dedos de uma das mãos. Sem poder falar
nem mexer-se, sem absolutamente nenhuma independência para fazer
os mínimos movimentos do cotidiano, você poderia imaginar a vida
desta pessoa como uma longa espera pela morte, uma espécie de
vegetal consciente e desesperado. Pois então, pense que essa pessoa
existe mesmo e que ela deu um jeito de receber o Doutorado em
Cosmologia na Universidade de Cambridge, onde ocupa a cadeira de
Newton como professor de Matemática! Essa pessoa é Stephen Hawking,
autor do best seller “Uma Breve História do Tempo”, considerado por
muitos como o mais brilhante físico teórico desde Einstein. Talvez, se ele
não tivesse que ficar sentado na cadeira de rodas, não teria tido a
oportunidade de explorar os limites da astrofísica e da natureza do
tempo e do universo. Talvez, Stephen Hawking fosse, sem cadeira de
rodas, ao invés de um prêmio Nobel de física, apenas um medíocre
jogador de futebol. Então, ficar uma vida inteira num cadeira de rodas é
ruim ou é bom? Depende da sua perspectiva...

Saraiva.com.br - Quais são os tipos de karma?


Pedro Kupfer - Segundo o sábio Patañjali, referência obrigatória para
todos os yogis, existem três tipos de karma: o karma que já foi criado e
está acumulado, chamado prarabdha karma; o karma que está
amadurecendo, como uma semente germinando, ou seja, que já foi
criado, mas ainda não se manifestou, chamado sañchita karma e o
karma que estamos criando neste momento presente, chamado
kriyámana karma.

Saraiva.com.br - Para exemplificar os três tipos de karma, você tem


o exemplo do arqueiro. Você poderia explicá-lo?
Pedro Kupfer - Na verdade, eu uso esse exemplo, mas ele não é
meu; pertence à tradição do Yoga. Estes três tipos de karma se explicam
assim: o arqueiro pega uma flecha da aljava, mira em um pássaro e
solta a flecha. Imediatamente se arrepende, mas já é tarde e não pode
voltar atrás: o pássaro morre. Este é o karma do primeiro tipo que
mencionei acima, o que já foi criado e está acumulado, aguardando uma
oportunidade para se manifestar. As flechas na aljava do arqueiro são
seu reservatório karmico, o segundo tipo de karma: ele pode escolher se
irá tirar uma flecha da aljava ou não, e em que direção irá apontá-la. A
flecha que ele segura no arco, pronta para ser disparada, é o karma
atual, aquele que estamos gerando neste preciso instante.

Saraiva.com.br - É possível, então, mudarmos o nosso karma?


Pedro Kupfer - Claro! Entretanto, talvez esse aspecto da lei de ação
e reação seja o mais difícil de entender para nós, porque ainda vemos
essa lei como algo fatalista, que exclui o livre arbítrio. Vivekánanda, um
mestre de Yoga contemporâneo disse que o karma é a eterna afirmação
da liberdade humana... Nossos pensamentos, nossas palavras, nossos
atos, são fios de uma rede que tecemos ao redor de nós mesmos. Ou
seja, o homem é intrinsecamente livre e responsável pelas suas ações. O
Satapatha Brahmana, um dos mais profundos e antigos textos vêdicos,
afirma que todos os homens neste mundo nascem moldados por si
mesmos. Isto significa que estamos criando a nós mesmos a cada
instante e podemos, através de um ato de vontade, nos transformar e
transformar consequentemente nosso futuro. Com os karmas que ainda
não se manifestaram e os que estamos criando agora podemos exercer
o livre arbítrio. Podemos, como diz Pátañjali, evitar a dor que ainda não
apareceu. Em relação ao karma que já se colocou em movimento,
embora seja inexorável, se podem mitigar seus efeitos através de
práticas de meditação e mentalização, ou de tarefas que coloquem o
foco da pessoa fora do seu ego, como a ação social ou o trabalho pelo
bem comum.

Saraiva.com.br - Quais obras literárias você indicaria para quem


está interessado no assunto?
Pedro Kupfer - Acabou de ser editado em português pela Editora
Pensamento um livro fundamental para entender o Yoga. Trata-se de A
Tradição do Yoga, de Georg Feuerstein, um dos estudiosos que foi mais
fundo na compreensão dessa filosofia. Também gosto muito de Yoga,
imortalidade e liberdade, de Mircéa Éliade, editado pela Palas Athena, de
São Paulo. Os livros de Swami Vivekánanda são muito bons, mas a obra
imperdível para quem quiser acabar de entender definitivamente estas
questões é a Bhavagad Gítá, em que Vishnu, encarnado como Krishna,
ensina o príncipe Arjuna a viver em harmonia com o karma e o dharma -
lei humana, tendo como pano de fundo a terrível guerra travada entre
duas famílias nobres, primas entre si, os Pándavas e os Kauravas, que
simboliza a dialética da vida. Arjuna nega-se a entrar em combate contra
pessoas do seu próprio sangue, refugiando-se numa renúncia mal
entendida. Entretanto, é convencido por Krishna sobre a inevitabilidade
da ação, pois, desde que o homem está vivo, está sujeito à lei do karma,
sendo-lhe impossível fugir à ação. Renunciar não significa subtrair-se à
vida, isolar-se do mundo e da sociedade. Krishna propõe um Yoga em
que ação e contemplação estão intrinsecamente ligadas. O que é
necessário fazer é viver a própria vida executando as ações cabíveis a si
mesmo, eliminando o apego aos seus resultados. Numa palavra, traz o
Yoga para a vida secular, para aqueles que não podem renunciar às suas
responsabilidades humanas - swadharma.

Antídoto contra a
Ansiedade
Pedro Kupfer
Não-violência, dharma e
vegetarianismo
Pedro Kupfer

Voltemos ao código yogiko de conduta. Esse código existe


parafacilitar a tarefa da realização espiritual. Sem ele, não há como
progredir na prática. Não obstante a importância desse código
para o Yoga, hoje em dia muitos praticantes sequer suspeitam
da existência dele.

O esteio central do código yogiko é ahimsa, a prática da não-


violência. Você certamente já ouviu falar na não-violência, uma
prática yogikatão poderosa que, apenas aplicando-a, Mahatma
Gandhi e os lutadores pela independência da Índia foram
capazes de libertar aquele país do jugo colonialista inglês sem
disparar um único tiro. Isso, por sua vez, nos mostra o infinito poder
transformador do Yoga. O ahimsa, portanto, é um formidável
instrumento para nos mantermos harmonizados com odharma.

Existem duas dimensões diferentes na prática da não-violência, que


estão intrinsecamente ligadas: uma pessoal e outra social. A primeira
tem a ver com a forma como a gente se relaciona consigo mesmo e com
a nossaprática pessoal de Yoga. A segunda tem a ver com a maneira
em que vivemos a vida em sociedade, com nossa família, nossos
amigos, vizinhos ou colegas de trabalho.
A segunda dimensão da não-violência, a social, depende diretamente
da primeira, assim como a unha está ligada à carne. Se os praticantes
de Yoga ficarem conscientes o tempo todo de ahimsa, haverá
uma transformação profunda na sociedade. Os shastras, textos
tradicionais do Yoga, convidam o praticante, como corolário
natural da prática da não-violência, a adotar uma dieta
vegetariana.

Em sânscrito, vegetarianismo se
diz shakaharah. Shakaharah significa literalmente “comedor de
vegetais” (shaka = vegetal). A pessoa não vegetariana é
chamada mamsaharah, que significa “comedor de carne” (mamsa =
carne). O Manudharmashastra, um texto de mais de 2.000 anos de
antiguidade, dá a seguinte explicação sobre a palavra mamsaharah,
“comedor de carne”:

“Os sábios declaram que o significado da palavra mamsa (carne) é [o


seguinte]: “ele (sa) irá comer minha carne [na próxima encarnação] se
eu (mam) comer a dele agora”.

Portanto “mamsa” significa literalmente “eu + ele”. Isso nos leva ao


tema da unidade que existe na criação e à constatação de
que, qualquer coisa que fizermos contra a harmonia universal irá
irremediavelmente nos atingir no futuro.

Proibido praticar
Pedro Kupfer

Este texto não noticia que o Yoga esteja sob ataque de forças ocultas,
nem fala sobre um complô ou propõe uma teoria conspiratória contra
ele. Não obstante, lista uma série de acontecimentos, alguns recentes e
outros nem tanto, que revelam a forma em que certas lideranças
religiosas e políticas orientam as pessoas sob sua égide a se relacionar
com esta escola de vida que é o Yoga. Possivelmente, partes deste texto
poderão produzir desconforto em algumas pessoas. Respeitosamente,
pedimos desculpas por isso, mas achamos que seria mais construtivo
falar do que calar perante essas questões, para informação e reflexão
dos nossos queridos leitores.

Cristãos
O convívio dos cristãos com o Yoga tem sido bastante ambíguo ao
longo da história. Sabemos que padres católicos e pastores protestantes,
em missão na terra do Yoga, foram seduzidos pelos belos e práticos
ensinamentos que ele apresenta. O maior e mais conhecido exemplo de
tentativa de integrar o cristianismo com a espiritualidade do Yoga foi o
padre jesuíta indiano Anthony de Mello (1931-1987), autor de belíssimos
poemas que respiram Yoga. Um ano após a morte deste padre-yogi, sua
obra acabou previsivelmente sofrendo severa censura do então Cardeal
Joseph Ratzinger.

Certamente, o amigo leitor conhece bons católicos e até mesmo


algum padre ou freira que pratica, estuda, ensina ou recomenda o Yoga.
Pessoalmente, já ministrei retiros num mosteiro da Ordem dos Marianos
nas montanhas de Portugal e num colégio jesuíta em Florianópolis e
sempre me senti muito bem-vindo nesses ambientes. No varejo do dia-a-
dia, os casos de respeito mútuo e boa convivência entre a religião
católica e o Yoga tem sido mais frequentes que a censura e a proibição.

Não obstante, o Yoga tem, eventualmente, sofrido ataques por parte


dos missionários católicos desde a chegada dos primeiros jesuítas à
Índia, no início do século XVI. Nos dias de hoje, quando a liderança da
nação católica se polariza ao extremo que estamos testemunhando, a
tolerância e o bom convívio simplesmente desaparecem, diante da
urgência de manter o rebanho dos fiéis devidamente sob controle.

Nessa linha, não nos surpreende comprovar que a Igreja


desaconselha veementemente aos católicos a prática do Yoga e de
outras formas da “espiritualidade oriental”. Embora esta atitude esteja
totalmente alinhada com as demais decisões que ela tem tomado
noutros assuntos, o povo católico só tem a lamentar diante dessa
manifestação de intransigência. Desta forma, a Igreja aprofunda
desnecessariamente o abismo que já a separava da imensa maioria dos
fiéis. O segmento dos esclarecidos dentro da nação católica certamente
irá continuar suas práticas a despeito da proibição, que é claramente
mais uma tentativa de interferir no livre pensar dos fiéis, quem sabe,
com o intuito de melhor manipulá-los.

Como editor de um website cujo conteúdo está centrado nos


ensinamentos e práticas do Yoga, recebo com alguma freqüência
mensagens agressivas de evangélicos intolerantes que, simplesmente,
exigem que tire do ar esses conteúdos “satânicos e blasfemos”, que
pare de promover “rituais demoníacos” e que aceite Jesus como meu
salvador. Chama a atenção o tom peremptório dessas exigências. Estes
evangélicos não convidam ao diálogo nem estão dispostos a acatar nada
que não seja um “sim, senhor”. Obviamente, essas mensagens ficam
sem resposta.

Muçulmanos
A proibição da Igreja e as outras tentativas de censura acima
descritas acontecem dentro de um contexto maior em que,
recentemente (novembro de 2008), o Yoga sofreu uma condenação
similar da parte de líderes fundamentalistas muçulmanos na Malásia.
Curiosamente, o novo papa parece estar imitando a ala extremista do
Islame. A diferença é que esses militantes radicais são uma barulhenta,
mas pequena minoria da nação islâmica, enquanto que o sumo pontífice
fala como a autoridade máxima e o guia espiritual de todos os católicos.

Diferentemente da advertência da Congregação para a Doutrina da


Fé, a fatwa emitida pelos muftis não foi apenas uma admoestação por
escrito, já que foi implementada uma verdadeira caça às bruxas nas
escolas de Yoga de Kuala Lumpur, que foram fechadas, e muitos
praticantes acabaram por se fantasiar de dançarinos de balé para
poderem fazer seus mantras e ásanas em paz. Essa decisão dos
fundamentalistas malaios está inserida numa já tradicional e conhecida
desconfiança que as formas mais radicais do islamismo nutrem por tudo
o que não seja a interpretação literal do Alcorão. Até aqui, nada novo
sob o Sol.

“Viva e deixe viver” é uma frase que todos ouvimos em algum


momento. Uma variação dela, “Viva e deixe morrer”, ficou popular
algumas décadas atrás num sucesso de Paul McCartney que servia de
trilha sonora para um filme de James Bond. Aqui em Punta de Lobos,
uma localidade no sul do Chile onde estou escrevendo este texto,
encontrei mais uma variação numa placa fixada no alto de uma falésia:
“Surfe e deixe surfar. Respeite os demais.”

A frase original é a síntese da política do bom convívio que se


estabeleceu naturalmente entre os soldados dos exércitos inglês e
alemão nas trincheiras da I Guerra Mundial. Os soldados pensavam
assim: “se ele não atirar, eu não atiro; ele vive, eu vivo”. Então, de
costas para seus respectivos comandos, os soldados disparavam para o
alto quando recebiam ordem de atacar, já que esse acordo tácito de
não-agressão era mais importante que as ordens recebidas dos
superiores. Viva e deixe viver: poderia ser uma boa ideia aplicarmos
esse mesmo princípio ao convívio entre o Yoga e as religiões que se
sentem incomodadas ou ameaçadas por ele. Se serve para guerreiros e
surfistas, deveria servir para yogis e religiosos também.
Comunistas
Estas situações, por sua vez, me lembram da primeira palestra que
assisti com Indra Devi, uma inesquecível professora russa que tive o
privilégio de conhecer mais de 25 anos atrás. Naquela ocasião, anos
antes da queda da Cortina de Ferro e do Muro de Berlim, ela contou,
num congresso no Uruguai, que o Yoga era proibido na então União
Soviética, e que os praticantes eram perseguidos e presos pelo regime
comunista. Indra Devi nos lembrou naquela ocasião de como era bom
poder estar juntos, praticando e aprendendo Yoga num país livre
(naquele momento, a ditadura militar tinha acabado de cair na minha
terra natal).

Cabe lembrar que a perseguição sofrida pelos yogis dos países do ex-
bloco soviético acontecia ao mesmo tempo em que eram proibidas todas
as formas de culto religioso e livre pensar. Ditaduras, todos sabemos,
não apreciam nada que possa contestar ou colocar em xeque o modelo
de governo. Tampouco apreciam o estado de direito, a imprensa livre, a
liberdade de expressão, a liberdade de ir e vir ou de associar-se. Nessa
ordem de coisas, a proibição do Yoga não surpreende tanto, embora seja
chocante e inconcebível para cidadãos de um país livre.

Cresci durante os duros anos da ditadura militar uruguaia, sem


nenhuma liberdade cívica. Não que a ditadura uruguaia fosse de cunho
comunista, mas na prática, pouco muda a vida sob uma ditadura de
esquerda ou de direita. Até mesmo andar na rua era proibido em alguns
horários. Meu pai e minha mãe, respectivamente professores de filosofia
e literatura, perderam seus empregos no ensino público simplesmente
por pensarem diferentemente dos donos do poder. A nossa família
sofreu muito, com vários dos seus membros e amigos presos e
perseguidos, desemprego e extrema pobreza. Faltava-nos o básico,
como roupas e materiais de estudo e, em algumas raras ocasiões, até
comida. Esse tipo de opressão é algo incompreensível para quem não a
sofreu.

Pelo que sei, a influência da ditadura militar no Brasil foi bem menor
na questão das liberdades individuais e no cotidiano da população.
Quem não sentiu na pele essa falta de liberdade, dificilmente poderá dar
valor às coisas mais simples, como tomar a decisão de fazer uma
viagem ou simplesmente manter a integridade física. Um dos motivos
que me levou a abandonar a minha terra natal foi constatar que, mesmo
depois da ditadura, as pessoas ainda carregavam essa falta de liberdade
em suas mentes. Qualquer ditadura é ruim para um praticante de Yoga,
já que este busca, intrinsecamente, a liberdade, que é justamente o que
aquela nega.

Democracia: a salvação da lavoura


Assim, cristãos raivosos, muçulmanos fundamentalistas e comunistas
inflexíveis têm tentado por diversos meios impedir que o Yoga chegue às
pessoas. Diante dessa situação, os praticantes das democracias não
podemos menos que suspirar aliviados por não vivermos num regime
ditatorial, nem sob a influência emocional ou psíquica de líderes
religiosos opressivos e intolerantes.

Nesse sentido, muitas vezes tomamos com bastante leviandade o


fato de praticar Yoga em paz e livremente. Se formos pensar que no
passado os praticantes de Yoga tântrico, do qual o Hatha nasceu, eram
perseguidos e condenados à morte por esquartejamento entre dois
elefantes, ou que neste preciso momento seres humanos iguais a nós
possam estar sendo perseguidos pela justiça ou condenados por seus
guias espirituais pela “heresia” ou pelo crime de praticar Yoga, devemos
realmente dar graças aos céus pelo privilégio de não sermos
importunados nas nossas práticas e estudos.

Nesse sentido, creio que as religiões monoteístas, com a honrosa


exceção do judaísmo, que sempre estimulou o diálogo inter-religioso,
ainda têm um longo caminho pela frente no que diz respeito à tolerância
e convívio com o que é diferente. No caso, a desconfiança do cristão ou
do muçulmano em relação ao Yoga é oriunda da incapacidade de
compreendê-lo, o que conduz à dificuldade de aceitá-lo.
Mais uma teoria conspiratória?
Alguns líderes católicos e evangélicos estão convencidos de que nós,
professores e praticantes de Yoga, estamos promovendo uma espécie de
complô mundial para acabar com o cristianismo através de uma
conversão disfarçada das pessoas pelas técnicas yogikas. Eles afirmam
que, por exemplo, quando fazemos a saudação ao Sol, estamos
obrigando os praticantes a reverenciar inadvertidamente algum deus
hindu, ou que quando convidamos alguém para fazer um mantra, esse
mantra funciona como uma espécie de lavagem cerebral que irá fazer
com que o cristão rejeite Jesus como o único salvador e queira se
converter ao budismo ou outra religião exótica. A paranóia de ser
convertido, no fundo, pode ser expressão da necessidade de converter
os demais para reafirmar suas próprias convicções. Isso, por sua vez,
pode ser uma manifestação de insegurança em relação ao próprio
dogma.

Na mesma linha de irraciocínio, ensinam que nossas meditações são


formas de adoração satânica, que kundalini é um demônio que precisa
ser exorcizado e que “a mente vazia é oficina do diabo”. Também, soube
recentemente que alguns pastores explicam que o sexo tântrico seja o
objetivo final do Yoga. Considerando a obsessão que a nossa sociedade
tem pelo sexo, essa abordagem deve despertar mais interesse que
rejeição nos fregueses, acredito. O tiro, neste caso, pode sair pela
culatra. Sorte deles, a vertente do Tantra como “terapia” sexual não ser
tão popular assim.

Por outro lado, sabemos que os movimentos missionários salvíficos


têm muitas vezes como características a intolerância e o preconceito,
como ilustra o discurso proferido pelo Cardeal Pio, em Chartres, em
1841:

Nosso século clama: “tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que


um padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus
irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza, e eu aqui estou
para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma
sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser
necessariamente intolerante.

Obviamente, o Cardeal Pio refere-se à sociedade católica. Pouca coisa


parece ter mudado na maneira com que a Igreja conduz seus negócios
no ultimo século e meio, desde que o citado cardeal pronunciou estas
palavras. Portanto, se a única forma de espiritualidade que presta é o
catolicismo, o Yoga não pode senão ser uma excrescência incômoda,
que é necessário apagar do mapa. Talvez os muçulmanos pensem de
maneira similar. E os antigos dirigentes do politburo.

Tolerância e convívio
O hinduísmo tem, historicamente, uma exemplar tradição de
tolerância. A Índia recebeu, ao longo dos séculos, populações inteiras de
pessoas que eram perseguidas em suas terras de origem por causa da
religião, como foi o caso dos cristãos assírio-caldeus, jacobitas e
nestorianos que se estabeleceram no sul da Índia a partir dos primeiros
séculos desta era, o da comunidade dos parsis, que migraram desde o
Irã para Maharashtra há mais de 1500 anos, e o mais recente caso dos
budistas tibetanos que se mudaram para o norte da Índia após a invasão
do Tibete pelos chineses, em 1959. A todas e cada uma dessas
populações, foi dado o direito de estabelecer-se, trabalhar e conviver
lado a lado, pacifica e harmoniosamente, com a maioria da população
hindu.

Note-se que estamos falando aqui sobre convivência entre


comunidades de distintas religiões, etnias, línguas e culturas e que o
Yoga, como todos bem sabemos, dista muito de ser um credo religioso. É
possível distinguir um budista de um hindu por certos sinais externos.
Porém, não é possível identificar um yogi por algum desses sinais. O
praticante de Yoga pode ser tanto budista como hindu, muçulmano ou
cristão. Aí jaz o grande paradoxo das situações descritas no início deste
texto: sem ser uma religião, o Yoga sofre perseguição por parte de
algumas religiões; sem ser um sistema político, regimes ditatoriais se
sentem ameaçados por ele ao ponto de proibi-lo e encarcerar seus
praticantes.

Talvez um dos motivos da desconfiança que o Yoga desperta nesses


setores do establishment seja justamente a quase impossibilidade de
catalogá-lo, de enquadrá-lo dentro de um esquema familiar para quem
pretende julgá-lo desde dentro de um dogma fechado ou de um sistema
totalitário.
O yogi na sociedade
Não existe um gueto de praticantes de Yoga em nenhuma sociedade,
como houve guetos judeus nos países ocupados pelos nazistas durante a
Grande Guerra, ou como há guetos de hindus no Paquistão atualmente.
O praticante pertence a uma família, está inserido na sociedade em que
escolheu viver e exerce suas funções convivendo pacificamente com os
demais. De maneira alguma, poderíamos considerar o praticante uma
espécie de outsider, desajustado, pária social, ou coisa similar.

Não há, afora as escolas de Yoga, ambientes separados onde os


praticantes convivam apenas entre eles, isolados da sociedade.
Tampouco há um perfil social, econômico ou cultural definido do
praticante de Yoga. Não obstante, o yogi é visto algumas vezes como um
avis rara, como alguém esquisito ou alienado e, portanto, potencial alvo
de discriminação ou escárnio. Entretanto, noto que a maioria de nós
convive tranquilamente com os preconceitos que algumas pessoas
nutrem em relação à gente.

Essa eventual fricção se percebe de maneira mais clara em relação à


dieta vegetariana, já que não é raro ver pessoas tensas perante um yogi
vegetariano, que descarregam essa tensão muitas vezes na forma de
agressividade ou comentários irônicos sobre a opção de não comer
carnes. Por outro lado, vemos também praticantes que desenvolvem
uma atitude intolerante perante aqueles que não compactuam com sua
opção alimentar, escolhas ou modo de vida. Porém, essas questões são
muito pequenas, defronte o pano de fundo acima exposto.

Há mais alguma característica que possa definir um yogi nos tempos


atuais? O praticante não tem classe social determinada. Ou, pelo menos,
não deveria ter. Um dos motivos de satisfação que tenho como professor
é ver que na pequena comunidade onde moro e ensino, a sala de
práticas é o ponto de encontro de todas as camadas sociais: o pescador,
o comerciante, o artesão, o engenheiro, o carteiro e o estudante
praticam lado a lado, e há muita harmonia nos relacionamentos. E, afora
as Testemunhas de Jeová que já tentaram me dissuadir de ensinar no
município, percebo que a sociedade como um todo aceita perfeitamente
o fato de pessoas praticarem Yoga, independentemente de posição
social, idade ou gênero.

Conclusões
É provável que tanto o defunto politburo soviético quanto o papa e
os imames islâmicos tenham resolvido proibir e perseguir o Yoga porque
eles sabem positivamente que esta escola de vida tem como objetivo
libertar o ser humano das correntes da ignorância. É possível também
que saibam que o propósito maior do Yoga é moksha, a liberdade, e que
na medida em que as pessoas se libertarem, elas se tornam difíceis de
serem manipuladas, questionadoras, livre-pensantes e independentes.

É possível que a existência de seres humanos assim não seja do


interesse de instituições como as ditaduras ou de líderes dogmáticos.
Felizmente, há lugar para esse tipo de gente nas sociedades abertas e
democráticas. Felizmente, os praticantes de Yoga podemos viver
pacificamente em alguns países, fazendo nossa contribuição para uma
sociedade melhor.

Não obstante, creio que há algo de positivo nessas proibições, já que


as pessoas de bom-senso e inteligência não poderão deixar de perceber
o ridículo dessas patéticas tentativas de apagar o Yoga da memória das
pessoas ou tirá-lo do seu cotidiano. Digo patéticas tentativas, pois todos
sabemos do melancólico destino que tiveram os regimes comunistas,
assim como vislumbramos o possível final dessas religiões que sofrem
presentemente um processo de franca decadência e retraimento nas
sociedades onde a liberdade e a educação prevelecem.

Enquanto isso, o Yoga segue muito bem das pernas, obrigado. Os


cães latem, a caravana passa. Pelo menos, nas democracias do planeta.
Felizmente, lá se foram a Idade Média, a Santa Inquisição, o
obscurantismo e o Muro de Berlim. Pense então no privilégio de viver
num país livre e poder trilhar o caminho da prática e do
autoconhecimento, se você costuma se definir como yogi. E escolha bem
seu candidato nas próximas eleições para que os fantasmas do
autoritarismo e a corrupção se afastem do nosso querido país já que isso
também fere a nossa dignidade, como humanos e como praticantes de
Yoga. Namaste!

Sua prática pessoal


Pedro Kupfer

10 lições para construir uma sequência saudável e equilibrada.

Alguns yogis têm me pedido uma espécie de "fórmula" para elaborar


uma prática pessoal. Particularmente, não gosto muito de receitas, mas
aqui vai uma que pode servir como modelo e inspiração para construir a
prática individual. A organização das diferentes práticas do Yoga em
etapas ou membros é comum a quase todos os sistemas técnicos e
continua sendo usada até hoje, como uma tentativa de sistematizar a
miríade de técnicas que o Yoga desenvolveu desde sua origem para
facilitar o caminho dos praticantes. Em todas elas, há algo em comum:
as técnicas são colocadas sequencialmente, sempre a partir da mais
densa e em direção à mais sutil. Partindo das experiências do corpo
físico e das questões relativas à vida cotidiana, essas práticas assumem
uma progressiva sutileza cuja culminação é o estado de libertação e
plenitude, chamado moksha ou samadhi.

O presente modelo está inspirado no Saptasadhana, a prática em


sete etapas ensinada em um antigo texto de Hatha Yoga chamado
Gheranda Samhita, do século XV. Claramente, o esquema de prática da
Gheranda Samhita está baseado no Ashtanga Yoga de Patanjali, do
século IV a.C.: yama e niyama (código de conduta), asana (posturas),
pranayama (respiratórios), pratyahara (abstração), dharana
(concentração), dhyana (meditação) e samadhi (iluminação). O Ashtanga
de Patanjali, por sua vez, está baseado no Shadanga, a prática em seis
partes ensinada na Maitri Upanishad que tem, pelo menos, 3.500 anos
de idade: pranayama (expansão da vitalidade), pratyahara (abstração),
dhyana (meditação), dharana (concentração), tarka (questionamento
contemplativo) e samadhi (iluminação). As sete fases do Saptasadhana
são as seguintes:

1. Shatkarma: seis ações de purificação


2. Asana: posturas psicofísicas para fortalecimento
3. Mudra: selos energéticos, que estabilizam a energia vital
4. Pratyahara: abstração sensorial, que outorga calma
5. Pranayama: exercícios respiratórios que expandem a energia
6. Dhyana: a concentração, essencial para a correta compreensão do
ensinamento
7. Samadhi: a iluminação libertadora advinda do autoconhecimento.

Iremos analisar, primeiro, a maneira de integrar as diferentes


técnicas com as atitudes e cuidados que precisamos ter para que a
prática seja uma fonte constante de alegrias e descobertas nesse
fascinante caminho que é o autoconhecimento. Conjuntamente, iremos
elaborar sobre o propósito e lugar que cada uma dessas técnicas ocupa
no panorama do Hatha Yoga. Para concluir, daremos algumas dicas para
facilitar as práticas. Cabe lembrar que estas dicas apenas
complementam e não substituem, de maneira alguma, a instrução que
devemos ter em sala de aula, em presença de um professor competente.

10 passos para praticar

1 - Antes de começar...
É recomendável verificar se, no momento em que iniciamos,
precisamos dar uma atenção especial a alguma parte do corpo, à
respiração ou à disposição interior. O corpo, a emocionalidade e o nível
de energia mudam constantemente, e o nosso bom senso precisa ouvir,
interpretar corretamente os sinais dele, e adaptar o que for preciso.

2 - O mantra inicial
Há alguns mantras muito simples, mas não menos eficientes para
criar um ambiente propício e adequado à prática. Recomendamos os
shanti pathas, de invocação da paz como, por exemplo, o svasti patha:
lokah samasta sukhino bhavantu (que significa, aliás, "que todos os
seres no mundo sejam felizes)", precedido por algumas repetições do
Om, o som sagrado que aponta para o Ser. Este mantra irá levar, no
máximo, dois minutos.

3 - Nididhyasanam, o tema de reflexão


É recomendável ter, em cada prática, uma reflexão ou tema, que
possa pautar as escolhas e atitudes, como os valores essenciais do
código de conduta: não violência (ahimsa), veracidade (satya),
simplicidade (hrih), retidão (arjavam), capacidade de adaptação
(kshanti), firmeza de propósito (sthairyam), ausência de egoísmo
(anahamkara) ou outros.

4 - Shatkarma: As purificações
Como é sabido, o Hatha Yoga dá muita importância às ações de
purificação. Escolha então uma das purificações, como a automassagem
abdominal, os exercícios para os olhos, a limpeza nasal etc. Esta parte
da prática pode ser feita em pouco menos de cinco minutos. As ações
purificatórias são as seguintes: dhauti - a purificação do trato digestivo e
outros processos, como a limpeza dos dentes, as gengivas e a garganta;
vasti - a lavagem intestinal, usando água morna e salgada; neti - a
limpeza nasal, feita com um pano ou com água salgada; laukiki (também
chamado nauli) - a automassagem e tonificação abdominal; trataka - a
purificação do olhar através de exercícios que são verdadeiros asanas
para os olhos; e kapalabhati - a limpeza das vias respiratórias.

5 - A série equilibrada de asanas


Esta seção da prática pode levar até 40 minutos. A grande dúvida
que pode surgir neste ponto é como montar uma série equilibrada de
posturas. Na hora de escolhê-las, leve em consideração que uma prática
corretamente balanceada segue uma combinação equilibrada destes
três critérios seletivos: a correta escolha dentro de cada grupo postural,
as cinco ações da coluna e as posturas do corpo em relação à força de
gravidade. Lembre-se igualmente da permanência em cada asana:
posturas com maior estabilidade, como as sentadas ou deitadas,
permitem uma permanência maior; posturas de equilíbrio num pé só, ou
sobre as mãos e outras de estabilização ou força, geralmente mais
exigentes, pedem uma permanência mais breve. Idealmente, uma
prática balanceada inclui várias de cada uma dessas categorias.

I - Grupos posturais
a) equilíbrio,
b) estabilização articular,
c) flexibilidade articular,
d) fortalecimento muscular,
e) alongamento muscular e
f) repouso.

Percebemos que alguns praticantes confundem a prática de asana


com uma espécie de alongamento passivo. Alguns professores, na
mesma linha, dão excessiva importância ao aumento da flexibilidade e
do alongamento. Porém, para que a prática seja equilibrada, é
necessário que inclua, além de posturas de alongamento passivo, outras
de estabilização, fortalecimento e repouso. Uma prática excessivamente
centrada apenas na flexibilidade e no alongamento pode vir a produzir
um corpo hipermóvel, mas não trabalha força nem resistência. Um corpo
hipermóvel, sem estabilidade articular nem resistência, está sujeito a
lesões.

II – Ações da coluna vertebral


a) extensão axial (tração),
b) lateralidade,
c) torção,
d) flexão e
e) extensão.

Estas são as cinco ações que uma coluna vertebral sadia é capaz de
executar. Elas devem ser alternadas, mas não precisam ser feitas
exatamente na ordem dessa lista. Há, ainda, diferentes combinações
dessas ações. Idealmente, antes de cada flexão, extensão ou torção, é
necessário aplicar a tração, para ganhar espaço. Ao passar para a
execução dessas ações, é preciso, na medida do possível, manter ainda
esse espaço. A prática conjunta das posturas com os bandhas, as
contrações de músculos e plexos como o mula bandha (elevação do
assoalho pélvico) e o uddiyana bandha (recolhimento do baixo ventre)
ajuda bastante a manter esse espaço.

III – Posturas possíveis do corpo


a) posturas em pé,
b) posturas sentadas,
c) posturas deitadas e
d) posturas de inversão.

Este último critério leva em consideração a influência da força de


gravidade sobre o sistema circulatório. Por via de regra, começamos a
prática em pé e a concluímos na postura de inversão, seguindo a ordem
proposta acima. Entre o início e o final, há dois grupos posturais: as
posições sentadas e as deitadas. Cada grupo se faz sequencialmente, de
maneira que não precisemos, por exemplo, passar da postura em pé
para a deitada, e logo sentar para ficar novamente em pé.

6 - Pranayama: respiratórios para a expansão da vitalidade

É necessário escolher corretamente estas técnicas, uma vez que elas


não podem ser aprendidas somente lendo um texto. Aliás, cabe lembrar
que o mesmo vale para todas as demais práticas aqui listadas.
Idealmente, opranayama se faz logo após as posturas físicas.
Alternativamente, podem ser feitos junto com a meditação, no fim. Um
bompranayama para iniciantes não leva mais do que dez minutos.

7 - Yoganidra, o relaxamento consciente


Uma prática de relaxamento vai levar pelo menos dez minutos, se não
tiver muito tempo disponível. Idealmente, dedique um pouco mais de
tempo a relaxar, mas sem se deixar escorregar para o sono! Para
relaxar, basta lembrar-se da paz que essencialmente somos, deixar o
corpo imóvel em uma postura bem confortável, suavizar
deliberadamente a respiração e permanecer atento na quietude.

8 - A meditação

Escolha uma técnica, aquiete o corpo e a respiração, e persevere nela


por 15 a 20 minutos. Cabe lembrar que as técnicas de meditação são
muito diversas e que devemos escolher livremente alguma com a qual
nos identifiquemos. Ou, como diz o sábio Patanjali no Yoga Sutra (1:39),
devemos "meditar sobre um objeto que seja agradável". A escolha da
técnica meditativa pode estar em função do tema de reflexão que
aplicamos ao longo da prática.

9 - O mantra final

Este mantra pode ser o mesmo do início, ou outro da sua escolha. O


tempo, novamente, será de alguns poucos minutos. Ao fazer um mantra,
lembre-se sempre de refletir sobre seu significado.

10 - A duração da prática

O tempo total deste modelo de prática é de aproximadamente 90


minutos. Se você não tiver esse tempo disponível, poderá reduzir
proporcionalmente a duração de cada parte da prática. Agora,
passaremos a analisar uma a uma essas técnicas.

Uma nota sobre os mudras


Talvez os mudras sejam as práticas menos conhecidas do Hatha.
Sobre eles, a Gheranda Samhita, que descreve 25 diferentes, afirma que
"devem ser cuidadosamente guardados em segredo". Esses mudras
fazem parte dos procedimentos que não são conhecidos nem praticados
na maioria das versões de Hatha Yoga que vemos na atualidade. Ou, se
fizerem parte, aparecem nas suas formas mais simplificadas.

Talvez o caso mais conhecido dessa extrema simplificação (para não


dizer empobrecimento da prática original) seja a vipata karani mudra. É
um nome usado apenas para descrever uma versão simplificada da
inversão sobre os ombros, deixando de lado as visualizações da energia
vital e o paciente e sutil trabalho realizado com ela. Outros exemplos são
a yogamudra e a mahamudra. Porém, como certamente não
corresponde ensinar práticas avançadas num texto como este, vamos
por enquanto deixá-las de fora da nossa fórmula.

Para concluir, algumas dicas importantes


Tenha sempre um plano de prática, mesmo que você vá adaptá-lo no
andamento da prática, ou que ele não seja usado. Não improvise. Use
seu bom senso!

Estabeleça uma duração razoável para a prática. No mínimo,


recomenda-se uma hora e meia no caso das práticas para iniciantes, e
até duas horas e meia para praticantes com mais experiência.

Sinta-se e esteja à vontade na sala. Crie um ambiente adequado


para praticar, que seja silencioso, onde você não será interrompido.
Desligue o celular!

Não se force: não tente fazer sozinho aquilo que você não sabe ou
não domina. Seja sempre cuidadoso e atento.

É preciso cultivar as maneiras na meditação, mesmo quando


praticando sozinhos. A regra de ouro é: não se mexa. Porém, se mexer-
se for inevitável, pelo menos não faça ruído. Dentro do possível, na
postura de meditação você fica imóvel. Dentro do bom senso, você
cultiva o livre-arbítrio. Se houver algum movimento, que seja silencioso.

Cultive também o estudo, a leitura e a amplitude de visão em relação


ao Yoga em particular e à vida em geral. Boas práticas e namaste"!
O professor de
Yoga, a tradição e
a disciplina
espiritual
Pedro Kupfer

As tradições vivas crescem e mudam de geração para geração.


Basta dar uma olhada na história do Yoga para ver isto claramente.
Conseqüentemente, cada vez que uma tradição é importada e muda de
contexto, alguma coisa também muda nela. Infelizmente, mudança
quase nunca significa melhoria. É virtualmente impossível manter a
tradição intacta, porque o Yoga não é uma múmia: é algo vivo, dialético,
mutante e que interage com o tempo e as pessoas.

Quando o Yoga sai do seu lugar de origem e se adapta ao gosto


ocidental, corre o perigo de acabar reduzido a um artigo de consumo. Há
ocidentais que, havendo aprendido com mestres indianos, criam
adaptações, versões diluídas da tradição para tornar o produto mais
palatável e, conseqüentemente, mais vendável.

Ou seja, deixa-se de lado a "morte do ego" — para usar a expressão


mais crua com que podemos definir o Yoga — e acaba-se por
transformá-lo numa técnica de manutenção da saúde.

Deixa-se de lado a transcendência, para centrar-se no fortalecimento


da individualidade. É o que o lama Trungpa Rinpoche chamou de
"materialismo espiritual". Nada mais longe do objetivo original.

Entretanto, há ainda aqueles que, havendo estudado apenas por


livros, nunca tiveram ou nunca se deram a oportunidade de estar em
contato com a tradição viva. Esses yogis não conseguem jamais
progredir, pois não entendem o presente contido nela. Às vezes, até
ostentam atitudes arrogantes em relação à tradição.

Dessa forma, idéias e práticas são adaptadas, descontextualizadas e


vendidas como técnicas de auto-realização. Técnicas que são como fast
food: parece que satisfazem, mas em verdade ofuscam a fome
verdadeira que motiva a busca espiritual.

Infelizmente, constatamos que muita gente não entende o Yoga, que


acaba sendo usado de forma utilitária para preencher necessidades,
buscando benefícios pessoais, ou satisfazer desejos, expectativas e
fantasias.

Há pessoas que simplesmente não o compreendem: acreditam que


ele seja algo que não é. Outros o tomam por uma espécie de esporte
acrobático, exótico e excêntrico. Também há aqueles que se contentam
com uma pequena porção dele, preferindo criar um culto em torno de
um determinado guru, mas sem perceber a profundidade de seus
ensinamentos.

Diz um provérbio budista que "quando o sábio aponta para a lua, o


tolo olha para o dedo". Raros são os praticantes que fazem um estudo
em profundidade dos shastras e da tradição. Aqueles que querem levar o
Yoga realmente a sério são geralmente execrados, tidos como "radicais"
ou criticados por serem demasiado "hindus".

O perigo de receber fast food espiritual achando que se está


recebendo Yoga se contorna usando o bom senso, pesquisando e
indagando sobre com quem o professor aprendeu e a que tradição ele
pertence. É importante saber quem é o mestre do mestre e qual é
sua linhagem (sampradaya).

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