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RIO DE JANEIRO
2011
Greice Cristina Augusta da Silva Costa
Rio de Janeiro
2011
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por ter me inspirado alento para concluir esta etapa de minha
vida;
O presente trabalho tem como objetivo apresentar reflexões acerca dos processos de
construção identitária do negro carioca no discurso dos sambas de enredo, tendo em vista os
atravessamentos sócio-históricos e culturais pertinentes à dinâmica discursiva abordada. Para tal,
foi adotado o procedimento da análise do discurso de sambas que apresentem o tema da
monarquia brasileira, tomando como ponto de partida histórico o Segundo Reinado, construído
em torno da figura “Monarca dos Trópicos” (Schwarcz, 1998) D. Pedro II, mas ao mesmo tempo
marcado por coroações de reis negros, legado das matrizes culturais africanas que persiste até
hoje. A fim de melhor compreender a relação entre os fatores discursivos, históricos e culturais
que se interligam na construção simbólica da identidade étnica, buscou-se promover uma análise
integrada do corpus, o qual se constitui de sambas das décadas de 1960 e 1970. Deste modo,
propõe-se aqui a investigação de um discurso de resistência negra em meio à lógica de
configuração identitária dos sambas, trabalhados aqui a partir dos marcos teóricos do
Construcionismo em Psicologia Social articulados às contribuições da Antropologia, no que
concerne à questão da identidade étnica.
assinatura
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 07
1 “Reis Negros” e “Rei Branco”: a monarquia nas festas populares................................................. 09
2 A monarquia no carnaval.................................................................................................................... 13
3 “Caras e Coroas” nos sambas de enredo........................................................................................... 15
4 Um futuro “em branco” para o negro: o ideal do branqueamento................................................ 16
5 Discurso e identidade: a abordagem construcionista em Psicologia Social..................................... 20
6 Apresentação e análise dos sambas de enredo.................................................................................... 25
CONCLUSÃO.......................................................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 49
7
INTRODUÇÃO
valorização das matrizes religiosas, quanto de exaltação aos heróis negros. Estes aparecem quase
sempre ligados à nobreza africana, tidos como símbolos de resistência à opressão do sistema
escravista e, posteriormente, à repressão do regime ditatorial e à discriminação numa sociedade
que pretensamente teria integrado o negro após a Abolição.
Tendo em vista estas considerações, optou-se por delimitar a constituição do corpus da
pesquisa a sambas de enredo das décadas 1960 e 1970, período extremamente conturbado da
História brasileira, marcado pela passagem da experiência democrática, das grandes mobilizações
sindicais da classe operária do governo João Goulart (1961- 1964) para a implantação do regime
militar, com o golpe de março de 1964 (Fausto, 2009). Teve início, então, o período de enorme
repressão política e ideológica, assim como a consolidação dos grandes conglomerados que
controlam os meios de comunicação e a indústria do entretenimento (Ortiz, 1986,).
De maneira sistemática, o Regime Autoritário procurou legitimar, através do discurso
centrado na ideologia da “unidade na diversidade" (Ortiz, 1986, p. 93), um plano cultural para o
Brasil amparado numa historiografia tradicional, articulada ao discurso da mítica democracia
racial. Esta, sob a égide da mestiçagem e da unidade nacional, buscava abafar a pluralidade étnica
e cultural brasileira, em prol de um ideal de unificação disfarçado de fervor patriótico.
Logo, o golpe de 64 desempenhou um papel de normatização da esfera da cultura,
submetendo as diferenças à homogeneidade dos "Objetivos Nacionais" (Ortiz, 1986, p. 82). Para
isso, o Regime Militar exercia controle sobre a produção e a distribuição dos bens culturais,
associando-se à indústria da comunicação e do entretenimento. Segundo J. L. Oliveira (1985), a
intervenção nas escolas de samba não se fez demorar, pois o carnaval, como festa tipicamente
urbana e que congrega largas faixas da população, oferecia o risco de “expressar a consciência
das classes subalternas” (p. 65). O samba, inicialmente criminalizado e visto com preconceito por
trazer a “marca” da cultura negra, angariou cada vez mais prestígio e visibilidade, tornando-se
uma das mais importantes manifestações da cultura popular do Rio de Janeiro.
Porém, se as agremiações e o discurso dos sambas de enredo foram utilizados pelo
Governo Militar como veículos de propagação de seus feitos, através de enredos ufanísticos e
tradicionais, nem todas as escolas de samba desempenharam um papel passivo. Várias
agremiações transformaram-se em centros de resistência, ao gerarem mecanismos de
enfrentamento diante dos valores impostos pelo Poder Militar e pelas classes dominantes da
sociedade, por meio da valorização da cultura negra.
9
Desta forma, até hoje as escolas de samba desempenhariam importante papel político, ao
divulgarem a história brasileira; no entanto, ao ressignificar o discurso oficial da nacionalidade e
afirmar uma singular construção identitária afro-centrada, o discurso dos sambas de enredo
contesta as concepções hegemônicas e se apresenta também como veículo de legitimação de
identidades marginalizadas.
Em relação aos sambas prolíficos em episódios e personagens da História tradicional,
centrados numa realeza europeizada, constatamos que no decorrer das duas décadas que
constituem o objeto de estudo ocorreram transformações significativas: as figuras históricas do
patriotismo aparecem cada vez menos, ao passo que o negro, de uma posição praticamente
invisível, torna-se elemento fundamental no discurso dos sambas, principalmente na forma de
realezas negras, históricas ou míticas.
Num diálogo com a resistência do Movimento Negro, principalmente na década de 1970,
a exaltação de símbolos da matriz cultural africana que se verificou na época persiste até a
atualidade, como herança deste período de luta aberta contra a desigualdade. Esta modificação,
que aponta para o protagonismo dos negros na construção da sociedade, se tornou possível
devido a todo aquele que, como cantou o samba “Dia de Graça”, de Candeia, “deixa de ser rei só
da folia”1 para vir a modificar a sua própria, e muitas outras realidades. Tal perspectiva de
mudança social através do discurso será estudada mediante a análise dos sambas de enredo,
orientada pelo referencial do Construcionismo Social que, devido às suas contribuições à
Psicologia Social, oferece possibilidades de conjugar fatores históricos, sociais e culturais de
modo promover uma investigação mais integrada acerca da questão da identidade negra.
1
Vargens, J. B. M. (2008). Candeia: luz da inspiração (3a ed.). Rio Bonito, RJ: Almádena.
10
percebeu o poder de cooptação social exercido pela Monarquia nos sistemas simbólicos da
sociedade brasileira, representando-a “como símbolo de união (...), pois somente a figura do rei
congregaria este território gigantesco, marcado por profundas diferenças” (Schwarcz, 1998 p.
38).
A figura do monarca foi apropriada tanto pelo discurso do projeto civilizatório formulado
pela elite, quanto pelo discurso dos sambas de enredo, os quais se originaram entre a população
negra e pobre do Rio de Janeiro. Como disse Schwarcz (1998) o "corpo do rei" constituía a
mediação entre duas instâncias: a realeza institucional de um lado e a figura mítica, do imaginário
popular, de outro (p. 21). Estas duas perspectivas, a erudita e a popular, encontram-se
complexamente mescladas no discurso dos sambas de enredo.
Em meio a todo o processo de construção do “Império Tropical”, encabeçado pela
supervalorização da cultura palaciana, a qual que pretendia representar toda a nacionalidade, a
alienação frente às contradições da realidade brasileira era patente: o Brasil, que buscava divulgar
a imagem de monarquia civilizada no exterior, ainda adotava o regime escravocrata. Segundo
Skidmore (1976), o Brasil do século XIX era a única “nação” constituída por mais de cinquenta
por cento de negros (p. 40). A capital, a cidade do Rio de Janeiro, denominada “a Corte” (Lyra,
1977, p. 43) ainda era tomada pela prática da religiosidade barroca, caracterizada pelas
manifestações públicas e grandiosas de fé, procissões e festas de santos da tradição católica
portuguesa, nas quais “a população escrava e/ou negra não perdia a oportunidade para mostrar
suas músicas, danças e batuques” (Abreu, 1999, p. 34).
Assim, o símbolo da monarquia parecia unificar estes universos distintos, posto que em
meio aos cortejos em que tomava parte o próprio monarca, via-se também multidões de negros,
fossem escravos ou libertos, com suas próprias cortes festivas e coroando seus reis e rainhas. Por
isso, Schwarcz (1998) diz que nessas ocasiões, “as realezas se encontravam (...) como se a festa
suspendesse por algumas horas o conflito e congregasse autoridades de ordens diferentes” (pp.
248-249).
Deste modo, africanos e seus descendentes que foram convertidos ao Catolicismo
utilizavam elementos desta religião, ressignificando as práticas culturais do colonizador através
de cerimônias de coroação de reis e rainhas negros, realizadas por irmandades leigas de "homens
pretos", onde tomavam parte negros escravos, forros ou livres. Estas associações eram
constituídas em torno do culto a um santo padroeiro e eram importantes formas de sociabilidade
11
entre negros de diversas etnias, cujo ponto alto consistia nas eleições de reis negros em rituais
festivos, segundo M. Souza (2002, pp.182-183).
Revivendo “antigos reinados” da África nos festejos dos dias de Nossa Senhora do
Rosário e de santos negros, como Santo Elesbão, Santa Ifigênia, São Benedito e o Santo Rei
Baltazar, os cortejos das realezas africanas representavam uma construção simbólica segundo a
qual os negros buscavam lembrar a cultura de seus locais de origem, mas também construir uma
nova identidade. Produto de diferentes contextos culturais em contato, esta religiosidade “afro-
carioca” (Karasch, 2000, p. 361) foi fundamental para a configuração de uma identidade negra
autônoma, posto que, através destas e tantas outras manifestações, como as práticas mágico-
religiosas de origem africana, a exemplo do candomblé, os negros puderam articular novamente
sua vida cultural, estilhaçada pela diáspora.
No Brasil, ocorreram diversos casos de reis e nobres africanos, vendidos como escravos
por motivo de guerras ou intrigas em seus próprios reinos, que procuraram reconstruir, na medida
do possível, práticas e estruturas políticas e religiosas de suas terras de origem (Schwarcz, 1998,
p. 14). Assim, conforme disse M. Souza (2002), a existência de coroações simbólicas de reis
negros “constituía um mecanismo de resistência frente à sociedade escravista, na qual o grupo
dominante de origem européia monopolizava o poder” (p. 173). Estes reis, ridicularizados pela
classe dominante, que classificava tais manifestações como bárbaras e indecorosas, funcionavam
como elo entre a comunidade negra e as matrizes africanas baseadas no culto da ancestralidade,
posto que, mesmo no contexto da dominação colonial e escravista, os reis negros representavam
lideranças importantes na reconstrução cultural e na configuração de uma identidade étnica, num
esforço unificador (Souza, 2002, pp. 194- 195).
Vistas com horror pelos viajantes estrangeiros, as festas populares do Império, com seus
de “rituais misturados” que mesclavam tradições européias e práticas africanas, eram
consideradas sinônimo de atraso e incivilidade e severamente criticadas por amalgamarem “as
velhas tradições dos Habsburgo – linhagem real à qual pertencia D. Pedro II – com as ‘crendices’
de africanos e mulatos” (Schwarcz, 1998, p. 252). As autoridades então passaram a ver os
candomblés, batuques, capoeira e eleições de reis negros como atos políticos, submetendo-os
com o passar do tempo a medidas de controle social cada vez maiores. O Império Brasileiro, com
a sua ânsia civilizadora, fez recrudescerem as proibições e estes festejos rarearam
progressivamente, até serem relegados às áreas mais afastadas da Corte, o centro de poder, pois
12
2 A Monarquia no Carnaval
Ao contrário do entrudo "porco e brutal", em que desde os tempos coloniais pessoas das
mais diversas classes sociais divertiam-se antes da Quaresma atirando umas às outras tinas de
água e “limões-de-cheiro” (Ferreira, 2004), o carnaval carioca no século XIX objetivava
constituir-se em "festa civilizada" nos moldes de Paris e Veneza (Ferreira, 2005, p. 12).
Tal estratégia fazia parte do projeto civilizatório de modelo europeu, empreendido de
forma intensa no Segundo Reinado: era a época das "Sumidades Carnavalescas", associações das
quais participavam membros da alta intelectualidade brasileira. Estas agremiações se
apresentavam em desfiles que, de forma semelhante àqueles que ocorrem atualmente, contavam
com a presença de carros alegóricos. Além disso, a pedido de uma comissão formada por
diversos intelectuais, tais passeatas carnavalescas chegaram a ser assistidas no Paço de São
Cristóvão pela família real brasileira, inclusive por S. M. o Imperador Pedro II (Moraes Filho,
1979, p. 20).
Todavia, não faltava nestes carnavais o caráter satírico, do qual nem o próprio Imperador
teria escapado, como mostrou Jota Efegê ao citar estes versos da Sociedade dos Fenianos: "(...)
Eis o sota escravocrata / Do reinado da patota; / Deste reino-patarata/ Eis o sota escravocrata / Na
sua nádega chata / Fotografou-se o idiota... / Eis o sota escravocrata / Do reinado da patota”
(como citado em Schwarcz, 1998, p. 424).
Apesar de ter sido trazido pelos europeus e de ser considerado como festa das elites, o
carnaval foi sendo apropriado pela população negra do Rio de Janeiro e até hoje se apresenta
como espaço de grande visibilidade para a manifestação da cultura e da música negras; isso teria
ocorrido em parte pelo fato de, historicamente, serem raras as oportunidades dos negros
realizarem seus festejos, os quais passaram a ocupar o período carnavalesco (Ferreira, 2004, p.
192). Desta forma, folguedos que envolviam "cabeças coroadas", como maracatus, congadas e
cucumbis, que foram permeados pela tradição católica ibérica trazida ao Brasil por catequistas
com o objetivo de converter escravos, segundo Araújo (1964 como citado em Augras, 1998, pp.
20-21), foram traduzidos pelos africanos com base em códigos culturais próprios, trazidos de suas
terras de origem. Posteriormente, os elementos destes folguedos interpenetraram o universo do
carnaval carioca.
14
Segundo Roberto Damatta (1997), o carnaval seria uma "festa invertida" (p. 14), ou seja,
uma manifestação marcada pela quebra da rígida hierarquia do mundo cotidiano. Compartilhando
a lógica que orientaria a própria cultura popular, em que os grandes são destronados e os
pequenos são coroados, o carnaval seria o espaço, por excelência, do convívio entre os opostos,
no qual pessoas de classes sociais e etnias diversas, numa anulação temporária das barreiras
hierárquicas do mundo social, conjugam-se numa totalidade contraditória (Damatta, 1997).
Desse modo, o carnaval seria "a festa dos destituídos e dos dominados" (Damatta, 1997,
p. 122), que remete muitas vezes a um período mítico ou aristocrático, assim como os festejos de
religiosidade barroca, nos quais os negros assumem temporariamente o papel dos senhores.
Assim, na coroação simbólica dos reis negros era celebrada uma "África mítica, homogeneizada",
em que africanos e seus descendentes buscaram sobrepor as diferenças étnicas existentes em prol
da construção de uma identidade negra comum, no contexto da escravidão, como uma forma de
resistência à hegemonia dos valores europeus (Souza, 2002, p. 329).
Nos sambas de enredo presentes nos carnavais, a ruptura da vida diária que caracteriza a
dinâmica da festa popular abre espaço para que o negro marginalizado no cotidiano afirme sua
identidade na figura de um nobre ou rei, africano ou afro-brasileiro, exaltando as manifestações
culturais perseguidas pelo poder dominante por suas origens consideradas bárbaras e sujeitas à
vigilância das autoridades. Estas últimas reprimiam os festejos negros tanto pela possibilidade de
constituírem focos de rebelião escrava, quanto por reivindicarem o direito à diferença, numa
sociedade que impõe a democracia racial no século XX e ainda no século XXI.
15
Em diversas culturas, o rei aparece como ligação entre o temporal e o sagrado; dessa
forma, ao constituir a personificação de toda uma estrutura histórica e social, o monarca seria “o
mediador entre o homem e a divindade” (Souza, 2002, p. 26), atualizando, através de toda uma
ritualística, o mito do herói-fundador. A função do rei seria, portanto, a do ancestral vivo, o
símbolo visível da identidade coletiva de uma comunidade, afirmando-lhe os laços e legitimando
a ordem social. Considerada “fonte de sabedoria e união da comunidade” como em alguns reinos
da África (Souza, 2002, p. 221), a realeza confere aos seus súditos uma identidade, diante do
compartilhamento de um passado comum redivivo na figura do rei.
Nas escolas de samba do Rio de Janeiro, é notória a presença da simbologia imperial, nos
nomes das agremiações, nos brasões das bandeiras apresentadas nos desfiles e nos enredos. A
realeza como elemento aglutinador parece corresponder à herança cultural da ancestralidade
africana, a qual, apesar da perseguição empreendida pelo "mundo dos brancos", foi mantida viva
pelos negros que procuraram reter fortes laços com o passado.
Sendo assim, os ritos e símbolos das dinastias européias bem como as tradições ancestrais
africanas se apresentam combinados e ressignificados no contexto do carnaval, quando surgem
no discurso dos sambas de enredo “imperadores tropicais, quase europeus, ao lado de reis
africanos escravizados, mas que reinavam entre os cativos” (Schwarcz, 1998, p. 287). Dessa
forma, entre realezas "reais" e míticas, figuras tradicionais, como de D. Pedro II e Zumbi dos
Palmares, assim como personagens pouco conhecidas, tal qual D. Obá II da Pequena África,
foram sendo apropriadas pelos setores marginalizados da sociedade, os quais utilizariam estas
figuras como referenciais na construção de uma identidade não apenas de brasileiro, mas também
de negro.
16
2
A este respeito ver Reis, J. J. (2003) Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês. São
Paulo: Companhia das Letras.
17
estigmatizado por sua origem “selvática, africana (...) resistente a toda espécie de civilização”
(Azevedo, 2004, p. 34).
Constatamos dessa forma que os negros, apenas formalmente libertos, ainda carregavam o
estigma do passado da escravidão – imposta pelos brancos para civilizá-los, mas que os teria
“embrutecido”, razão a mais para excluí-los da sociedade - além da “marca” de sua origem
(Schwarcz, 2008, p. 245), ou seja, a África, continente relacionado a todos os estereótipos
negativos associados ao negro: “a feitiçaria, a barbárie, a violência, a degeneração e a
imoralidade” (Schwarcz, 2008, p. 115).
Principalmente na década de 90 do século XIX, cresce a receptividade nos meios
intelectuais brasileiros às teorias do racismo “científico”, mormente na Capital da nova
República. Estas doutrinas racistas surgiram na Europa, mas teriam sido sistematizadas nos
Estados Unidos; seus pressupostos afirmavam a existência de uma “hierarquia racial” (Skidmore,
1976, p. 50), na qual as “raças inferiores” eram identificadas com os povos não brancos,
especialmente os negros que brutalizados pelo cativeiro, ocupariam o último nível da escala da
civilização. Este pensamento, formulado para justificar o controle europeu, naturalizava o papel
do homem branco como portador da civilização, assim como os “teóricos” desta pseudociência
propunham que os brancos triunfariam gradualmente sobre o planeta, por serem mais aptos do
que as raças não brancas, naturalmente inferiores e por isso, fadadas ao desaparecimento.
Com a abolição da escravatura e a quase simultânea queda da Monarquia, o racismo
científico constituiu ferramenta muito utilizada no processo civilizatório ao qual a República deu
continuidade. Raimundo Nina Rodrigues, ao fim do século XIX considerado um dos maiores
adeptos do racismo científico no Brasil, embora tenha sido pioneiro na sistematização do estudo
da influência africana na cultura brasileira, produziu publicações impregnadas de afirmações
preconceituosas. Segundo este autor, “a influência do negro há de constituir sempre um dos
fatores de nossa inferioridade como povo” (1957, p. 28 como citado em Skidmore, 1976, p. 77).
Todavia, se os negros foram responsabilizados por todos os males do país devido a sua
inferioridade física, moral e intelectual, justamente eles formavam grande parte da população
brasileira; a mestiçagem cultural e biológica, extremamente condenada pela doutrina racista da
“pureza da raça européia”, tornava a herança africana praticamente onipresente. Para tentar
contornar a contradição entre a realidade brasileira e as condições ideais do pensamento racista
europeu e norte-americano, os autores nacionais se utilizaram de tais teorias, mas apoderando-se
19
3
A este respeito ver Freyre, G. (1966). Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: J. Olympio.
20
2010).
Assim, consideramos que o arcabouço construcionista apresenta-se de grande valia ao
tratarmos do tema da identidade, em relação ao qual não se pretenderá estabelecer aqui uma
definição única, dada a sua complexidade. Segundo R. Oliveira (2006), a identidade seria um
termo “por natureza, polissêmico” (p. 20) sujeito a diversas vicissitudes e apropriado por campos
de saber heterogêneos, como a Antropologia, a Psicologia e a Linguística.
Neste ponto, evidenciamos a proposta epistemológica e metodológica do Construcionismo
Social, que enfatiza a investigação centrada nos processos pelos quais as pessoas descrevem,
explicam ou narram o mundo em que vivem, inclusive elas mesmas (Gergen, 1985, p. 266). Tal
formulação nos aponta para possibilidade de convergências no estudo da construção da
identidade no discurso dos sambas de enredo, visto que nestes últimos a narrativa do passado se
encontra intrinsecamente ligada à produção de sentidos no presente. Estes sentidos/significados
poderiam levar tanto à reprodução de concepções cristalizadas ou favorecer novos olhares sobre
instituições sociais como nação, cultura, religião e etnicidade, as quais têm ampla repercussão nas
formas pelas quais sujeitos e grupos vêem a si mesmos, ou seja, configuram suas identidades.
Desse modo, o Construcionismo nos convida a considerar que os modelos de produção de
conhecimento supostamente neutros seriam historicamente situados, desde os paradigmas
científicos positivistas até os processos de configuração identitária, os quais também seriam
formas de organizar o mundo e dar lugar aos sujeitos. Neste ínterim, tais formas de organizar o
mundo configuram descrições e explicações do mundo que constituem “formas de ação social”
(Gergen, 1985, p. 268), o que nos leva a tratar o discurso e as instituições a que ele dá suporte
como histórica e culturalmente contextualizados e, portanto, sujeitos à crítica e transformação
(Gergen, 1985, p. 273).
Logo, o interesse deste trabalho é delinear pontos de convergência entre a análise do
discurso segundo as concepções construcionistas em Psicologia Social – que, devido às suas
próprias formulações torna de grande relevância o estudo concomitante da História – e algumas
noções da identidade em seu aspecto étnico. Lembramos, assim, da proposição de Fairclough
(2001), ao dizer que “a análise de discurso é uma atividade multidisciplinar” (p. 102), o que
evidencia a necessidade de articular diferentes áreas do conhecimento na tentativa de esclarecer
como é construída a noção da identidade, no presente caso, em sua feição étnica relativa dos
negros do Rio de Janeiro.
22
4
Grifo nosso.
23
associadas à identidade e à diferença, as quais são produzidas ativamente numa arena de tensão
onde os embates de poder geram relações de hierarquia entre os grupos. Assim, as relações de
poder instituídas na demarcação de identidades e de diferenças poderiam construir narrativas de
modo a promover concepções hegemônicas de identidade, pautadas na desqualificação de tudo o
que vier a ser classificado como diferente, já que “a identidade e a diferença não são nunca,
inocentes” (Silva, 2000, p. 75), proposição que traz uma reflexão acerca do caráter ideológico
deste processo.
Com estes argumentos, buscamos delinear pontos de convergência entre a perspectiva
discursiva e a cultural, ao enfatizar que as identidades se produzem em relação com uma rede de
representações sociais atravessada por molduras ideológicas, de modo a configurar os
denominados "sistemas de identificação", os quais se baseiam em oposições (Montes, 1996, p.
59). Todavia, estes sistemas de identificação não conformam oposições rígidas, mas variáveis
conforme os complexos fatores sociais que se articulam em determinado contexto histórico.
Logo, é preciso compreender que a identidade, de forma geral, não pode ser compreendida de
maneira dissociada do contexto e da história (Montes, 1996, p. 60), em função dos quais serão
selecionados determinados elementos culturais que, ressignificados, tem por objetivo construir,
contrastivamente, uma nova identidade.
Portanto, a identidade étnica é constituída de forma processual, com base no
estabelecimento de uma diferença, visto que ela se produz em oposição a uma alteridade e é
constantemente rearticulada de acordo com a dinâmica das transformações históricas e sociais.
Assim, identidade e etnia não podem ser compreendidas “fora desse processo, efetivamente
político, de afirmação e ressignificação das diferenças, que só podem ser entendidas por contraste
e por oposição” (Montes, 1996, p. 61).
Todavia, as identidades que se produzem por contraste não devem ser vistas de maneira
dicotômica, com um pólo homogêneo representando os brancos e o outro, igualmente monolítico,
os negros – e tampouco devemos nos conformar com um meio termo igualmente mistificador
como ideal da democracia racial. O importante é considerar a identidade enquanto fluxo
contínuo, indissociada das relações de poder como não poderia deixar de ser enquanto instituição
social e cultural e, portanto sujeita às transformações próprias da dinâmica discursiva, em
consonância com as especificidades do contexto histórico e cultural.
Ainda assim, necessário se faz atentar para os “essencialismos culturais” que podem a
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levar a concepções fixas sobre a identidade e a diferença, articuladas em torno dos chamados
“mitos fundadores”, entre os quais a identidade nacional se manifesta como um dos principais
exemplos. Ao oferecer determinadas narrativas sobre a “origem” dos povos, a cultura nacional,
que nada mais seria que “um dispositivo discursivo que representa a diferença como identidade
ou unidade” (Hall, 2009, p. 62) busca uma imagem ilusoriamente unificada da identidade,
amparando-se em símbolos e representações que, de produções históricas e culturais, foram
transformados em tradições atemporais, reificadas.
No entanto, mesmo os mitos de origem nacional podem dar margem à construção de um
discurso de resistência, visto que mesmo aqueles que são relegados a uma posição subordinada –
Hall (2009) fala em “povos desprivilegiados” – podem apropriar-se dos elementos da cultura
dominante e mostrarem a “sua versão da história”, ao criar “uma história alternativa ou
contranarrativa” (p. 55). O discurso hegemônico, assim, pode favorecer brechas para que os
marginalizados possam expressar suas contribuições, suas lutas, seu protagonismo, de certa
forma reescrevendo a História ao lembrarem-se daqueles que no passado tiveram sua voz
suprimida pelas relações de poder opressivas.
Apesar da constante recorrência ao passado - e "um dos identificadores da identidade
étnica seria que ela se orienta pelo passado" (Souza, 2002, p. 142) - a identidade negra que se
articula no discurso dos sambas de enredo, longe de se conservar estática, dialoga com o contexto
sócio-histórico em que é produzida numa relação dinâmica, de modo a reconfigurar as origens
comuns, históricas e culturais, coordenando-as com a luta pelo direito à singularidade e à
equidade na participação social (Souza, 2002, pp. 141-142).
Portanto, os mecanismos de construção da identidade étnica do negro no discurso dos
sambas de enredo das décadas de 1960 e 1970 referem-se um processo dinâmico de
ressignificação de elementos culturais, relacionados tanto ao poder dominante – eurocêntrico –
quanto ao seu "contraste", a resistência dos marginalizados – africanos e afro-descendentes. Dado
o caráter político da luta dos negros por uma identidade singular, a qual se articularia às
reivindicações contra exploração a que ainda são submetidos, a legitimação de uma "negritude"
no discurso dos sambas de enredo se fez também pela afirmação de elementos estigmatizados
pela cultura dominante, como as matrizes religiosas africanas e os reis negros, folclorizados pelo
poder hegemônico.
Assim, tentamos aqui estabelecer um diálogo entre a perspectiva antropológica e as
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contribuições teóricas do Construcionismo para a Psicologia Social, contribuições estas que, além
de reconhecerem a centralidade das práticas discursivas nas produções sociais, enfatizam a
variabilidade e a polissemia dos discursos, principalmente nos posicionamentos identitários.
Dessa maneira, a postura construcionista privilegia na análise do discurso a problematização e o
enfrentamento do não-familiar, o que possibilitaria a ruptura com os discursos hegemônicos,
através da reapropriação destes discursos. Portanto, o Construcionismo Social seria uma
ferramenta útil para a desnaturalização de práticas discursivas hegemônicas e a possibilidade de
transformação social5.
No início da década de 60, mesmo antes do Golpe Militar, eram abundantes nos carnavais
do Rio de Janeiro os sambas de enredo ufanísticos, de exaltação aos grandes vultos da História
Nacional, bem ao gosto dos Institutos Históricos e Geográficos criados no Segundo Reinado.
Nestas instituições, também eram recrutados durante a Ditadura Militar os intelectuais
conservadores, a serviço da ideologia do poder autoritário (Ortiz, 1986).
No entanto, os sambas não eram produzidos por estes intelectuais, mas sim por
compositores, em sua maioria negros e mulatos, pertencentes às camadas mais baixas da
sociedade. Esta parcela marginalizada da população, considerada "ignorante e perseguida
sistematicamente pela polícia" (Damatta, 1997, p. 127) se apropriava do discurso da
historiografia oficial, retratando os heróis brasileiros numa moldura mitificada.
O negro, porém, está quase sempre ausente das "datas magnas", recorrentes nos sambas e
ensinadas nos manuais de História da época, como em "Medalhas e Brasões" (Silas de Oliveira e
Mano Décio) citado na íntegra. Este samba, que narra a "gloriosa vitória" do Brasil na Guerra do
Paraguai, não menciona o grande contingente de soldados negros que foram mandados para as
batalhas (Schwarcz, 1998, p. 306); estes passaram despercebidos, não sendo contados entre os
"filhos varonis" da Nação. O Imperador Pedro II, considerado o "Voluntário Número Um" na
guerra, é aquele que concede dádivas e condecorações:
5
Ver Spink, M. J. & Medrado, B. (2004) "Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica
para a análise das práticas discursivas". In: SPINK, M. J. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no
cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (3a ed.). São Paulo: Cortez.
26
A coragem de Caxias
O exército glorificou
A bravura de Marcílio Dias
A marinha consagrou
Num predomínio de fé
Exaltamos Barroso
E o bravo Tamandaré
A cerimônia opulenta
Do dia 22 de julho
De 1840
As câmaras decretaram com felicidade
Que aos quatorze anos sua majestade
D. Pedro II era maioridade
Para que o monarca muito juvenil
Assumisse a regência do Brasil
Logo que teve o gigante ao seu critério
Fundou seu primeiro ministério
Com grande ovação da multidão
Foi sagrado e coroado Imperador
E defensor perpétuo da nação
(...)
Nasceu um nobre vulto de sua geração
E veio abolir a escravidão
Divulgando nossa história pelo mundo
Glórias a D. Pedro II
Ô ô ô salve a Princesa e o Imperador
A recorrência de figuras imperiais nos sambas poderia ser associada ao fato de que, na
representação do povo, principalmente entre população negra, prevaleceu a imagem mítica do
Imperador como mensageiro da "justiça e da segurança" (Schwarcz, 1998, p. 438), posto que os
negros teriam ligado o fim da escravidão à realeza. Esta relação teria se dado muito antes de
1888, pois, segundo relatos do início do Segundo Reinado, “por ocasião da coroação de D. Pedro
II, havia denúncias sobre levantes, tanto próximo à Corte como no interior da província, pois
‘diziam que quando se fizesse a coroação os pretos ficariam forros’” (Gomes, 2006, p. 229).
A Abolição, o ato que mais marcou o Segundo Império, entrou para a posteridade como
ato heróico, mas quase nunca atribuído ao monarca, mas sim à Princesa Regente, Isabel, "A
Redentora". Se no imaginário popular, D. Pedro II é o "Pai dos Brancos" (Schwarcz, 1998, p. 11),
que concede honras e traz a paz e a justiça, Isabel é a "Mãe dos Pretos" por abolir a escravidão, o
que vem estabelecer uma imagem paternalista da Realeza, senhora suprema e distribuidora de
dádivas.
Em 1965, já durante o regime militar, todas as escolas de samba homenagearam os
quatrocentos anos da cidade do Rio de Janeiro. O samba "Histórias e tradições do Rio
Quatrocentão – do morro Cara de Cão à Praça Onze" (Candeia e Waldir 59), da escola Portela,
em sua íntegra se apresenta repleto de personagens históricas, como Estácio de Sá e Tiradentes,
algumas das figuras de um idealizado Rio Colonial, época que aparece em diversos sambas de
enredo como a "idade de ouro" da antiga Capital.
28
1965/ Portela
Rio antigo, das batucadas
Dos rituais, capoeiras e congadas
Oh! Meu Rio colonial
(...)
Salve! A princesa redentora Isabel
Que aboliu a escravatura tão cruel
Esse fato que tanto nos comove...
(...)
Hoje no século XX, do caldeamento de raças
Surgiu com requinte e graça
No mundo aristocrata
Consagrada beleza exuberante da mulata.
O discurso sobre o passado, celeiro de glórias, quase não deixa espaço para o presente;
quando ocorre uma menção à atualidade, ela remete não mais à matriz africana, mas sim à
decantada ideologia da mestiçagem e da harmonia nas relações interétnicas, "encarnada" na
figura da mulata carioca.
Segundo Ortiz (1986), a Ditadura Militar, assim como o Estado Novo, recorreu à
ideologia da mestiçagem para sustentar o discurso da unidade nacional, amparado pelo
pensamento de intelectuais tradicionalistas, a fim de construir uma imagem ilusória de harmonia
resultante do cruzamento entre as raças. Na verdade, este discurso procurava diluir a diversidade
étnica e cultural em prol da unidade nacional, escamoteando as relações de desigualdade e
exploração a que o negro foi submetido. Voltaremos a este tema mais adiante.
No discurso dos sambas de enredo pertencentes aos primeiros anos de Regime Militar, as
personagens do Segundo Reinado são apresentadas como modelos de virtude; são os “vultos
nacionais” que aparecem nos tradicionais manuais de História do Brasil, os quais, carregados de
ideologia nacionalista, certamente não primavam pela reflexão crítica, bem ao gosto do modelo
propagado pelo Poder Autoritário.
29
1968/São Clemente
D. Pedro II
Foi quem incentivou
Dando impulso magistral
A cultura imperial
Grandes nomes
Cobertos de glórias
Passaram para os anais
Da nossa história
Recordar...
Elegância de atitude
Dignidade de ação
Ao despedir-se da nossa nação
Para o exílio
Resolução do regime governamental
Para orgulho do Brasil e do povo tradicional
O grande monarca embarcou
Com toda família imperial
(...)
Glória a Sua Majestade D. Pedro II
Que foi glorificado por ser tão gentil
Como Imperador do Brasil
As negras escravas
Mostrando os seus bamboleios brejeiros
Para Isabel, a Redentora
Mãe branca de uma geração
Que das senzalas extinguiu
Os sofrimentos da escravidão.
Em grande união
Daí nasceram festejos
Que alimentavam desejo de libertação
Era grande o suplício
Pagavam com sacrifício a insubordinação
E de repente
Uma lei surgiu (uma lei surgiu)
E os filhos dos escravos
Não seriam mais escravos no Brasil
Aurinho da lha:
Neste samba, ao lado da tradicional figura da Princesa Regente, surge o rebelde Zumbi
dos Palmares, personificação da luta e da resistência negra e considerado elo simbólico da cultura
ancestral africana, muito presente como elemento de afirmação da identidade étnica nas décadas
de 60 e 70. Segundo M. D. Souza (2001), este “herói transgressor” (p. 82) constituiria um
elemento centralizador de identidades há muito fragmentadas, por ocasião da diáspora africana.
Nos diversos sambas que futuramente se dedicariam à temática da negritude, Zumbi
aparece como figura de liderança, apresentado ora como Rei-Mártir, sacrificado pela causa da
libertação, ora como chefe da "República Negra de Palmares" (Souza, 2001, p. 83). Este
quilombo, reduto de resistência frente à sociedade escravista e opressora, se transformou em
símbolo da tomada de consciência frente à discriminação por parte de militantes do Movimento
Negro no Brasil.
Contrariando o discurso do Autoritarismo, segundo o qual cabia ao povo apenas recordar
os "grandes feitos" dos heróis do passado, sem refletir criticamente sobre a exploração histórica a
que foi submetido, constatamos que o negro, ao homenagear nos sambas os reis negros e sua
herança cultural, afirma uma identidade afro-centrada, singular, posto que ressignificada no
Brasil. Neste contexto, a configuração de uma identidade étnica constitui-se num mecanismo de
contestação do “padrão tradicional” das relações entre brancos e negros (Pinto, 1998, p.274), a
qual, implícita ou explicitamente, impõe a superioridade dos valores europeus. Desse modo,
desde a Abolição os negros ocupariam uma posição de igualdade apenas teórica em relação aos
brancos, posto que ainda hoje se encontrem separados por uma distância abissal no que diz
respeito às oportunidades de educação, saúde, lazer, trabalho e participação política.
34
(...)
Com a invasão dos holandeses
Os escravos fugiram da opressão
E do jugo dos portugueses.
Esses revoltosos
Ansiosos pela liberdade
Nos arraiais dos Palmares
Buscavam a tranqüilidade.
(...)
Surgiu nessa história um protetor.
Zumbi, o divino Imperador,
Resistiu com seus guerreiros em sua Tróia,
Muitos anos, ao furor dos opressores,
Ao qual os negros refugiados
Rendiam respeito e louvor.
Quarenta e oito anos depois
De luta e glória,
Terminou o conflito dos Palmares,
E lá no alto da serra,
Contemplando em sua terra,
Viu em chamas a sua Tróia,
E num lance impressionante
Zumbi no seu orgulho se precipitou
Lá do alto da Serra do Gigante.
Meu maracatu
É da coroa imperial.
É de Pernambuco,
6
Grifo do autor.
35
Zumbi, rei negro também cercado por uma aura mística, é o "divino Imperador", o
protetor esperado, figura aglutinadora da resistência negra frente aos opressores brancos, fossem
portugueses ou holandeses.
Embora remeta ao período colonial e à distante província de Pernambuco, Zumbi aqui
pode ser tomado como símbolo de arregimentação e resistência, desta vez ressignificado a partir
de cânones da literatura européia, pois o quilombo torna-se a antiga cidade de Tróia, igualmente
devastada pelos inimigos.
O suicídio deste líder aqui é tido como um ato desafiador frente à derrota. Segundo
estudiosos, o suicídio entre os africanos escravizados poderia ter como motivos o protesto contra
a condição cativa, vingança contra o senhor, ou ainda, o desejo de retorno espiritual à África
(Karasch, 2000, p. 244). A memória de Zumbi, neste samba, é atualizada através do rito do
Maracatu de Pernambuco, no qual se coroam reis negros que desfilam numa corte festiva.
Quase vinte anos depois, Zumbi também é lembrado no samba comemorativo “Noventa
anos de Abolição” (Wilson Moreira e Nei Lopes); no entanto, esta data é comemorada não com
referências às figuras tradicionais da historiografia, mas sim com a exaltação de personagens
obscuras da resistência negra, participantes da anteriormente mencionada Revolta dos Malês,
ocorrida na Bahia de 1835. Novamente, a luta histórica dos negros contra a degradação do
cativeiro se articula à reivindicação organizada dos movimentos negros contra a discriminação e
a desigualdade, cujos militantes são os "quilombolas de hoje em dia", que assumem o
protagonismo na construção de sua identidade e das lutas sociais. A própria escola de samba
Quilombo surgiu como um protesto à elitização, descaracterização e mercantilização das escolas
de samba7.
7
Ver Vargens, J. B. M. (2008). Candeia: luz da inspiração (3a ed.). Rio Bonito, RJ: Almádena.
36
Apesar de ser considerado apenas como “peça” e “coisa” (Schwarcz, 2008, p. 161), mera
propriedade nas mãos do senhor branco, o negro, seja africano ou crioulo (nascido no Brasil),
durante três séculos de escravidão não permaneceu passivo; antes, lançou mão de diversas
estratégias de enfrentamento. Bastide (1971), por exemplo, diz que a resistência negra à
escravidão poderia se dar abertamente (abortos, suicídios, revoltas quilombolas) ou pela
sobrevivência cultural (práticas religiosas, festejos, cultos e mistérios). Revoltas e insurreições
foram cantadas em diversos sambas, mas da mesma maneira o foram as matrizes culturais
africanas, reinventadas no contexto brasileiro.
Outra forma de resistência seriam as pequenas sabotagens, os pequenos furtos realizados
pelos escravos que, ao minar o patrimônio dos brancos, desforçavam-se da liberdade que lhes
fora retirada. Caso semelhante é contado no samba “Chico Rei” (Geraldo Babão, Djalma Sabiá e
Binha):
Chico Rei, personagem lendária das Minas Gerais, aqui surge no discurso do samba
carioca. Rei na África e escravizado pelos colonizadores, no Brasil sua resistência se fez não pela
luta armada, mas através da burla ao sistema dos brancos, roubando o ouro retirado das minas
onde trabalhava junto dos companheiros. Mesmo escravo, exerce liderança e não deixa de ser rei
entre os seus; quando liberto e rico, exerce sua autonomia e escolhe o seu nome cristão. Neste
caso, é um rei negro que distribui as dádivas e repara as injustiças. Como no carnaval, o negro
oprimido no cotidiano se transmuta em rei.
Conforme o já exposto, as coroações de reis negros nas festas religiosas católicas da
Colônia e do Império atuavam como elementos importantes na reconstrução identitária da
comunidade negra no Rio de Janeiro. Manifestações híbridas, ou seja, resultantes da combinação
das culturas lusitana e africana, segundo M. Souza (2002, p. 217) e constantemente
reinterpretadas pelos afro-descendentes, os reinados festivos de reis do Congo ou de Angola são
frequentemente citados nos sambas de enredo.
A imagem destas realezas, pertencentes ao universo cultural banto, era imbuída de tal
força simbólica que as associações que se formavam ao seu redor agregavam negros das mais
diversas etnias africanas, onde recriavam uma África mítica, unificada (Souza, 2002, p. 173),
perpassada por contribuições européias. Estes reis negros passam a ter lugar no carnaval carioca,
como no samba “Festas e tradições populares do Brasil” (Paulo Granada, Leônidas de Araújo,
Barata e Chocolate):
Assim como em “Danças de um povo livre” (Ivo da Rocha Gomes e João Carlos Grilo),
em que as palavras rebuscadas dão lugar à fala popular do rei negro coroado, que traz consigo as
marcas de sua herança africana, mas também dos folguedos portugueses, o que torna as
coroações de negros no Brasil uma manifestação singular:
Todavia, nem sempre a rainha é negra... No samba “Rainha mestiça no templo do lundu”
39
(Jurandir Cândido e Serafim Adriano), aquela que consegue ultrapassar os espaços da senzala
para o salão é a mestiça, tida na ideologia do “cadinho das raças” como o harmonioso fruto da
miscigenação entre brancos e negros. Ela é a rainha-símbolo da união, da pacificação entre os
antagonismos senzala/ casa-grande. A herança africana, o lundu, precisou se "civilizar" para
adentrar os salões; semelhante ao que aconteceria na história do samba e do carnaval do Rio de
Janeiro, que apesar da marcante presença negra, mercantilizou-se e precisou se tornar mais
palatável para as elites.
Assim, o lundu pode ter sido associado ao congraçamento das raças porque, apesar de ser
uma dança negra por origem, era executada tanto por negros quanto por brancos, escravos e
livres, e foi considerado, segundo relatos de viajantes estrangeiros do século XIX, como o ritmo
de maior trânsito entre os diferentes segmentos sociais e étnicos da cidade do Rio de Janeiro
(Abreu, 1999, p. 92).
Saiu da senzala
Entrou nos salões
Para alegria de todos os corações
(...)
Ao som da melodia
A tristeza da senzala
O escravo esquecia
Cantando o lundu
Dançando o lundu
E tudo terminava em alegria
As escolas de samba continuariam a ser a manifestação cultural urbana mais visada pelo
Governo, o qual acreditava que, "ao controlar as manifestações culturais dos setores mais pobres,
teria assim mais facilidade de barrar as reivindicações políticas destas camadas" (Oliveira, 1975,
p. 43). O “elogio da mestiçagem”, base do mito da democracia racial, continuava a ser veiculado
pela política cultural do Poder Militar, a qual buscou também cooptar a adesão das agremiações.
Numa época de grande repressão política e ideológica, o Regime Autoritário exerce
40
intenso controle sobre a produção e a circulação de bens culturais, do qual não escaparam os
sambas de enredo, ainda mais quando alcançaram maior divulgação, ao ingressarem na indústria
fonográfica (Cavalcanti, 1994, p. 27). Por isso, alguns sambas veiculavam uma exaltação ao
discurso do sincretismo e da mestiçagem, que serviram à normatização da esfera cultural,
construindo um discurso sob a égide da aculturação, “na qual ilusoriamente não se manifestariam
relações de poder” (Ortiz, 1986, p. 95). As divisões hierárquicas eram contornadas, nesta
ideologia do sincretismo que abafa as contradições propondo uma sociedade harmônica, sem
preconceito de raça/etnia ou classe. Esta ideologia foi muito bem utilizada pela política cultural
do regime militar, entrelaçada com o fervor ufanista.
No discurso dos sambas apresentados, verificou-se que a questão da resistência identitária
dos negros é atravessada fortemente pelo fator religioso. Bastide (1971) aponta, historicamente,
para a importância da religiosidade na resistência dos africanos à escravidão, ao afirmar que
“para esse negro abandonado a si mesmo em um mundo hostil (...) a religião permitia reencontrar
a segurança perdida mediante a participação num outro sistema de comunhões sociais” ( p. 518) .
O candomblé, uma das principais representações dos cultos africanos no Brasil, também
alcançou importante local de expressão no carnaval do Rio de Janeiro. Na década de 70, auge da
repressão militar, ganham força os sambas que abordavam a temática denominada “afro-bahia”,
enquanto decaíam sambas que falavam de temas patrióticos. A pioneira na abordagem dos “temas
marginais da História” (Augras, 1998, p.90) foi a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que
já na década de 1960, inovou com a tendência de africanidade nos enredos, que tratavam de
costumes, lendas e mitos do “continente negro”. Mesmo com toda a visibilidade angariada, as
práticas culturais africanas ainda eram consideradas temáticas marginais.
Desta forma, os anos 1970 são vistos como a "época dourada" da exaltação das religiões
afro-brasileiras no discurso dos sambas de enredo, vistas pelo Movimento Negro como expressão
de singularidade cultural e fator de resistência e negação da dominação colonial, segundo M.
Souza (2001, p. 83). O candomblé da Bahia, com seu culto aos orixás, aparece nos sambas do Rio
de Janeiro como sinônimo de africanidade "autêntica".
No entanto, esta tradição religiosa não traduz a totalidade da experiência religiosa africana
existente no Brasil; antes, designa o resultado da redefinição cultural por que tiveram de passar as
mais diversas "nações africanas" no contato com colonizador europeu e também com africanos
das mais diversas etnias. Formou-se, também, uma rede de solidariedade entre africanos e
41
crioulos, que se fazia expressar, em termos religiosos, pela reunião de divindades africanas e
santos católicos no mesmo espaço de culto: o terreiro. Perseguidas pelas autoridades como
práticas bárbaras, as religiões afro-brasileiras consistiram também em resistência ao controle
social exercido sobre os negros, escravos ou libertos (Vainfas, 2002 p. 115).
Deste modo, a matriz nagô-iorubá do candomblé ainda constitui inegável elemento de
afirmação das raízes culturais negras, herança dos negros baianos desta “nação” que migraram
em quantidade considerável para o Rio de Janeiro no final do século XIX, em busca de melhores
condições de vida. Aqui, ocuparam localidades como Gamboa, Santo Cristo e Saúde, que
constituíram a chamada "Pequena África", berço da samba carioca. Nestes bairros, a cultura nagô
fincou raízes e deixou indelevelmente a sua contribuição na formação da identidade étnica do
negro do Rio de Janeiro, ao se projetar até os nossos dias, nos terreiros e nos sambas, num
processo de constante ressignificação. Por sua vez, a realeza das divindades iorubanas é
apresentada em diversos sambas, como “A festa dos deuses afro-brasileiros” (Baianinho):
E chegando à Bahia
Bahia de São Salvador ô ô ô
Os negros pediam aos deuses
Para amenizar a sua dor
Nas noites de lua cheia
Eles cantavam com fervor
(...)
Nas noites de magia
Pretos velhos festejavam
O grande mestre Oxalá
E a rainha Iemanjá
No Reino de Oxalá
O príncipe de Efan
Xangô ficou encantado
E o fruto do amor proibido
Assim foi perdoado
(...)
Ô saravá, ô saravá
A minha fé, a minha fé
Salve o escravo africano
Que trouxe pro Brasil
O candomblé
Assim como ocorre em “Do yorubá à luz, a aurora dos deuses” (Renato Verdade):
(...)
E quando os tumbeiros aportaram,
reis, heróis e deuses de iorubá
em seu novo mundo aclamaram
Xangô seu pai no Axé-opô-afonjá
E os pretos velhos da Bahia
ainda seguem seus antigos rituais,
usando a mais pura magia
nos terreiros de famosos babalorixás.
1978 / Beija-Flor
Raiou o luar
Vou entoar um canto de alegria
Três princesas africanas na sagrada Bahia
Iyá-Kalá, Iyá-Detá, Iyá-Nassô
Cantaram assim a tradição nagô
(...)
Por fim, o samba “Valongo” (Djalma Sabiá), além de mencionar a diversidade de etnias
provenientes da África, também narra a busca pela reconstrução de uma identidade após a
diáspora e as vicissitudes do cativeiro. De rei na África, o negro passa a escravo em terras
brasileiras; não é por acaso que o cais do Valongo, porto de desembarque e venda de escravos, é
tomado como uma espécie de limiar entre a origem africana e a integração no contexto brasileiro,
sob a condição cativa. A epopéia dos negros escravizados de diversas etnias não estaria
43
concluída, pois “as lutas para a sua integração” ainda estariam em curso, através dos afro-
descendentes que “desenvolvendo esta Nação” dão continuidade ao processo de construção
identitária.
Assim como Isabel continuaria associada à mãe dadivosa, que concedeu a “redenção
negra”; é desta maneira que ela surge, num samba dedicado à luta dos negros islamizados que se
insurgiram, “Ilê Saim à Nação Malê” (Samuel, Rocha e Sereno):
(...)
Abalou, os pilares da nobreza
O sacrifício não foi em vão
Pra conquistar um ideal
Outros guerreiros surgirão
Salve o Rei! Manuel Congo
Crioula Mariana, ousadia e valentia
Indo em busca de um sonho
Mas a voz não se calou, hoje eu canto uma exaltação
Glórias a princesa que afinal, assinou a redenção
Apesar do corpus da pesquisa ser formado por sambas das décadas de 1960 e 1970,
acreditamos que uma breve relação com alguns sambas atuais é necessária, visto que o estudo
crítico do passado implica numa relação com o contexto presente.
Nos anos 2000, constatamos ainda uma grande quantidade de sambas de exaltação às
raízes africanas, principalmente de realezas negras; estas são apresentadas como figuras
fortemente associadas à resistência, uma alusão ao constante esforço empenhado pela
comunidade negra no sentido de afirmar uma identidade étnica afro-centrada e construir uma
sociedade realmente pluricultural (Munanga, 2004, p. 118), ao invés de um modelo
homogeneizador de identidade nacional, historicamente construída em bases eurocêntricas e que
busca diluir as identidades dos grupos dominados. Calcada num paradigma civilizatório que
desqualifica a diferença e impõe a democracia racial, a identidade produzida no “cadinho das
raças” ainda persiste no discurso de alguns sambas, como “A Mangueira traz os Brasis do Brasil,
mostrando a formação do povo brasileiro” (Lequinho, Jr. Fionda, Gilson Bernini e Gusttavo
Clarão):
2003 / Mangueira
No paraíso se encantou
Ao ver tanta beleza no lugar
Quanta riqueza pra explorar
Índio valente guerreiro
Não se deixou escravizar, lutou...
E um laço de união surgiu
O negro mesmo entregue à própria sorte
Trabalhou com braço forte
Na construção do meu Brasil
2007 / Beija-Flor
(...)
Oh! Majestade negra, Oh! Mãe da liberdade
África: O baobá da vida Ilê Ifé
Áfricas:Realidade e realeza, axé
Calunga cruzou o mar
Nobreza a desembarcar na Bahia
A fé nagô-yorubá,
Um canto pro meu orixá tem magia
Machado de Xangô, Cajado de Oxalá
Ogum yê, o onirê, ele é Odara
(...)
Zumbi é rei
Jamais se entregou, rei guardião
Palmares hei de ver pulsando em cada coração
Galanga pó de ouro e a remissão enfim
Maracatu chegou rainha ginga
Gamboa, a pequena África de Obá
Da Pedra do Sal viu despontar a Cidade do Samba
Então dobre o run
Pra Ciata d`Oxum imortal
Soberana do meu carnaval na princesa nilopolitana
Agoye o mundo deve o perdão
A quem sangrou pela história
Áfricas de luta e de glória
Obatalá anunciou
Já raiou o sol da liberdade
Aqui, as sagas de realezas negras das mais diversas origens, sejam as realezas divinas dos
orixás iorubanos, o conhecido Rei Zumbi ou polêmico D. Obá II d’África, herdeiro do trono de
Oyó, amigo de D. Pedro II e “reverenciado por escravos, libertos e homens livres de cor”(Silva,
1997, p. 18), imprimem sua marca na construção de uma identidade étnica afro-centrada, que se
reconfigura no discurso da atualidade que apresenta o negro lutador e protagonista de sua propria
história.
CONCLUSÃO
47
Através da análise do discurso dos sambas de enredo das décadas de 1960 e 1970
buscamos evidenciar, a partir da consideração de diversos atravessamentos políticos, ideológicos
e culturais, o papel das figuras ligadas à Monarquia na configuração da identidade étnica do
negro do Rio de Janeiro.
O samba, tido como sinônimo de expressão popular, constantemente se apropria de
cânones da historiografia oficial; esta apropriação, todavia, pode vir a reproduzir as ordens de
discurso hegemônicas, ou ao contrário, contestá-las, a partir de uma fala de resistência, que surge
nas bordas do discurso oficial. A afirmação da identidade negra nos sambas inicialmente se
processou à sombra dos grandes vultos nacionais, mas acabou por conquistar o seu lugar em meio
ao discurso civilizatório da unidade nacional, que ainda opera sob o primado biológico e cultural
do branco, disfarçado de miscigenação democrática.
Desta forma, o negro ignorado no discurso nacionalista do século XIX e retratado como
escravo passivo nos tradicionais manuais de História rompeu o silêncio e, num longo processo de
lutas, se articulou em militâncias em prol da valorização da negritude e da igualdade de
oportunidades, reivindicações que continuam até os dias atuais com os movimentos negros
contemporâneos.
Porém, se a construção da identidade étnica implica no estabelecimento de um contraste e
de uma diferença, vemos que o “enigma da negritude” persiste no Brasil, onde a linha que separa
a classificação entre brancos e negros é móvel, variando de acordo com fatores como status
socioeconômico e nível educacional (Nogueira, 1985, p. 6 como citado em Munanga, 2004,
p.96). A herança da ideologia do branqueamento, ainda presente no discurso dos sambas de
enredo, evidencia o caráter contextual das construções identitárias: ambivalentes, fluidas, que se
fazem notar em sambas que ora afirmam enaltecidamente a negritude, ora contemporizam com a
mestiçagem.
Assim é preciso resistir às formulações que pretendem encarcerar a identidade negra
numa concepção monolítica e atemporal, visto que a ambivalência seria inerente ao processo de
construção identitária: a história do negro no Rio de Janeiro seria ao mesmo tempo formada por
negociação e conflito, continuidade e ruptura, congraçamento e transgressão. Nas relações de
poder assimétricas estabelecidas ao longo da história, o negro que foi visto como o “outro”
obscuro consegue pela resistência inventar e reinventar a si mesmo, através de “todo um campo
de respostas, reações, resultados possíveis”, pois que “a resistência é ela mesma uma ação nas
48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
49
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