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Corpo:
Implicações Para a
Prática da
Atividade Física
RIO CLARO
Estado de São Paulo - Brasil
Setembro 1.996
Oferecimento e Agradecimento
Lucas Vieira Dutra
Ofereço este trabalho aos meus pais e irmãos pelo incentivo e apoio e aos meus filhos.
AGRADECIMENTOS
Observando este trabalho, lembro-me de muitas pessoas que contribuíram para que viesse à luz. Não
vou declinar os nomes por receio de deixar de reconhecer alguém de direito. Meus pais, amigos e colegas do
curso, todos a sua maneira auxiliaram na manufatura do texto, mesmo sem o saberem. Também os funcionários
da Universidade Estadual Paulista, em especial as moças do Departamento de Pós-Graduação, sempre gentis e
solícitas. Os Professores do Curso de Educação Física, muitos dos quais, entre as aulas e nas discussões que
mantivemos, influenciaram a direção que o trabalho adquiriu. O maior agradecimento vai para a amiga e
orientadora Maria Eunice, cuja influência em minha formação vai muito além do que se intenta num
adestramento acadêmico. As suas qualidades profissionais, notadamente a honestidade e o rigor, ombreiam em
excelência as suas pessoais, o que reconheço deixaram marcas perenes em meu espírito. Obrigado!
Sumário
Lucas Vieira Dutra
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................................... i
SUMÁRIO ................................................................................................................................................................... ii
ABSTRACT ................................................................................................................................................................ iv
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................ 01
CONCLUSÃO............................................................................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................................ 54
Resumo
Lucas Vieira Dutra
O assunto desta dissertação é o problema da relação entre Corpo e Mente, bem como algumas de suas
implicações para a atividade física humana. Discutimos inicialmente em que consiste este problema, tentando
identificar alguns de seus componentes, em especial, as conceituações do que seria 'mente' e 'corpo' e a relação
entre eles.
Investigando as raízes filosóficas subjacentes a este debate, consideramos, na antigüidade, as
contribuições das tradições: Idealista, representada pelo trabalho de Parmênides e Platão e Monista e Dualista,
através de Heráclito e Aristóteles.
A seguir, verificamos, na modernidade, os reflexos destas tradições, através das concepções dualistas e
materialistas dos estados mentais.
Como principal representante da visão dualista do problema mente-corpo, consideramos o raciocínio de
René Descartes nas obras Meditações e As paixões da Alma. O posicionamento cartesiano ainda possui muitos
defensores, apesar das dificuldades apontadas pelos seus críticos.
O trabalho de um crítico de Descartes, o filósofo inglês Gilbert Ryle, é discutido em relação ao que
pretende apontar de equívocos lingüísticos no raciocínio cartesiano. Neste tipo de erro residiria, segundo Ryle,
grande parte da fragilidade lógica da visão dualista.
Outro posicionamento que identifica certas dificuldades na visão dualista seria o Materialismo.
Discutimos neste âmbito algumas contribuições para o debate materialismo/dualismo, oriúndas do
eliminativismo, do materialismo reducionista e do Funcionalismo. Analisamos também a incorporação da
abordagem funcionalista ao programa da Ciência Cognitiva, durante as décadas de 70 e 80.
Em seguida, discutimos as implicações da visão dualista para a prática da atividade física, através da
análise do trabalho de alguns teóricos de Educação Física. Estes estudos versam sobre vários aspectos, tais como:
saúde, "fitness" e a necessidade de considerar o fenômeno do movimento humano de uma perspectiva mais
holista, integradora dos vários aspectos do Homem que foram se compartimentalizando ao longo dos séculos.
Terminamos a dissertação sugerindo que a análise do componente lingüístico pode exercer um papel
importante, no estudo do problema da relação mente-corpo. Este aspecto da linguagem parece estar subjacente
nas discussões tanto teóricas quanto práticas e muitas vezes implicam em equívocos que dificultam o debate,
levando a obstáculos trabalhosos de parte a parte.
Abstract
Lucas Vieira Dutra
This thesis deals with the Mind-Body Problem (MBP), and its implications to studies of human
physical activity. For centuries, this MBP has been the subject of attention of a great number of
thinkers in many fields, but in spite of this, we do not have consensus about this matter. In others
words, this problem remains unsolved.
As a matter of fact, the MBP embraces many others problems, mainly the correct definitions of
what is 'body' and 'mind', and the relationships between them. Additional obstacles prevents, on the
one hand, an understanding of human being as a whole, sometimes determinating a partial conception
of them as a quasi-perfect aggregate of parts forming a self-contained, independent physical unit. On
the other hand, humans can be viewed as an expression of an aggregate of two or even three different
substances, one necessarily 'spiritual' or mental.
The present work introduces some of the traditional theories on the MBP and analyses the
influences they led in this field nowadays. Implications of these views to some aspects of human
physical activities are discussed, and the possibility of linguistic errors in the mantenance of the dualistic
view is considered.
Introdução
Lucas Vieira Dutra
Um dos temas mais apaixonantes com que a Humanidade sempre conviveu, desde a Antigüidade, foi o
do relacionamento entre a Mente e o Corpo. Neste final de século, com o grande progresso científico, este
mistério adquiriu contornos ainda mais desafiadores. Quanto mais explicações são propostas para elucidar a
natureza do "mental", muitas vezes confundido e/ou associado com "alma" e "espírito" e sua relação com o
corpo, tantas mais perguntas surgem.
A mente sempre foi considerada um enigma, constituindo um objeto de estudo, principalmente de
filósofos e psicólogos. Contudo, ultimamente, ela passou a ser também matéria de textos e programas
apresentados normalmente ao grande público, principalmente através dos meios impressos de comunicação (1).
Apesar de seu 'difícil' acesso, os fenômenos mentais se reduzem, para a Ciência, a estados cerebrais. O
cérebro constituiria a fonte de onde poderiam surgir, assim que avançassem as pesquisas, as descobertas sobre a
natureza do fenômeno mental. Para os materialistas, não existe a dificuldade platônica de explicar os
acontecimentos da mente entendidos como "invisíveis", i.e., acontecimentos que ocorrem mas ninguém tem
acesso, além do próprio sujeito que os possui.
Das pesquisas do efeito de drogas no cérebro e das doenças neurológicas, novas descobertas acerca
do que seria a mente vêm dando suporte à concepção materialista do mental. Diversos periódicos de
divulgação institucional também abordam o tema. O informe publicitário oficial da Associação Paulista de
Medicina, distribuído através dos jornais de grande circulação, em sua edição de 30 de outubro de 1.992, traz
em seu Editorial a aceitação da interação entre mente e corpo, citando que fatores emocionais influenciam
"praticamente todas as doenças" (p. 01).
Se o grande público pode ter acesso, atualmente, a uma massa de informações muito extensa sobre o
assunto, originada das mais inesperadas fontes, mais premente se faz à Ciência discutir alguns aspectos da relação
mente-corpo. Em especial, os profissionais envolvidos com a atividade física esportiva ou recreativa poderiam,
assim julgamos, incluir em seu programa de trabalho a consideração de tais temas, pelas implicações práticas e de
pesquisa que suscita. Por exemplo, na discussão sobre se Educação Física constitui um tema científico ou uma
disciplina acadêmica, o assunto da relação entre mente e corpo tem o seu lugar (2).
Santin (1.990) sugere a necessidade de se discutir as relações entre o corpo e a mente para a constituição
de um saber apropriado, no bojo da Educação Física. Subordinar, quer o corpo, quer a mente, um ao outro em
termos de importância, vai dificultar o reconhecimento da harmonia e beleza que ao final deve presidir as
considerações sobre o ser humano. Isto porque parece que o Homem é um todo, não obstante dividirem-no
para fins didáticos e de pesquisa e a ênfase num ou noutro aspecto vai influenciar a compreensão dos demais.
Na mesma linha de pensamento, Cunha (1.988) identifica a tendência antiga de se dualizar o ser humano
no ato de estudá-lo, o que leva, em sua opinião, a incorreções pelas parcialidades que emergem. Continuando seu
raciocínio, o autor considera a Educação Física como pré-ciência da Ciência da Motricidade Humana,
constatando ser aquela "tão somente uma tradição disciplinar, não uma autonomia disciplinar" (idem, p. 06). O
que parece estar implícito nesta discussão é o relacionamento entre a mente e o corpo, visto que, segundo
Cunha, falta à Educação Física o que a Ciência da Motricidade Humana procura abarcar: o correto balanço entre
o que a primeira tradicionalmente estudou e o que se concebe necessário acrescentar em conhecimento sobre o
Homem como um todo (Cunha, 1.986 ; Cunha, 1.991).
A partir dos comentários acima, onde ressaltamos a importância do tema da relação mente-corpo em geral
e no contexto da atividade física em particular, iremos discuti-lo sob uma perspectiva teórica de cunho filosófico.
O conceito de corpo
Nomeamos "corpo", no discurso do senso comum, às coisas que ocupam lugar no espaço (que possuem
extensão), que nos rodeiam e que percebemos sensorialmente. Já nas várias abordagens científico-filosóficas,
para que possamos compreender e raciocinar sobre este conceito, procuramos identificar e descrever-lhe os
atributos distinguíveis. Desde a Antigüidade isto já se intentava. Por exemplo, Lucrécio (1.973), discípulo de
Epicuro, salientava que "quanto aos corpos, basta o senso comum para lhes afirmar a existência; se não
pusermos esta crença como fundamento sólido, não haverá, quando tratarmos de assuntos mais obscuros, nada
em que nos apoiemos para estabelecer pelo raciocínio o que quer que seja" (p. 44, linha 420).
Um outro exemplo é a caracterização de Voltaire (1.752/1.978a) que identifica dois aspectos denotativos
essenciais dos corpos: a extensão e a solidez. Sugere ainda a divisibilidade, quando pergunta: "De que se faz um corpo?
De várias partes, e estas tais partes dividem-se noutras partes. E o que são estas últimas partes? Ainda e sempre
corpos..."(p. 129-130). No entanto, em outro trabalho, (Voltaire, 1.734/1.978b) ao criticar uma idéia de Pascal, o
mesmo alerta que "...não conhecemos o espírito nem o corpo; não temos idéia alguma de um e temos idéias muito
imperfeitas do outro. Portanto, não podemos saber quais são seus limites (Vigésima Quinta Carta, LVI, p. 57).
A ênfase na extensão, solidez e divisibilidade está também presente em Locke (1.706/1.973) que
identifica, na sua obra "Ensaios sobre o entendimento humano", vários aspectos importantes para a consideração
dos corpos. Diz ele, principalmente nos capítulos XIV (p. 195), XVI (p. 199) e XVII (p. 201), que todos os
corpos compartilham as características de terem uma extensão mensurável ou atribuída, o que leva à noção de
quantificação e também o aspecto de ocuparem um espaço delimitado. A extensão implica aos corpos se
justaporem uns aos outros, posto que não se interpenetram (cap. IV, p. 174) e condiciona as suas partes
extraporem-se num todo configurável (cap. XIII, p. 192, 193). Pode-se ainda conjeturar outros aspectos sobre os
corpos, tais como a mutabilidade e a diversidade
Entre todas as qualidades mencionadas acima, uma vai assumir importância fundamental no exame dos
corpos: o aspecto da animação da matéria. O corpo, o ente corpóreo, é uma partícula do cosmo material. Alguns
corpos apresentam a capacidade de locomoção, assimilação, crescimento e reprodução, próprios dos organismos
vivos. Tais corpos, além de possuir em si as leis dos processos meramente físico-eletro-químicos, passam a
subordinar-se também às leis que presidem a vida orgânica. Podemos, segundo Jolivet (1.979, p. 116) caracterizar
a vida, descrevendo-a, em sua manifestação, pelo movimento espontâneo e imanente, ou seja, por um
movimento que o ser vivo produz por si mesmo.
O movimento não é sempre comunicado ao ser vivo mecanicamente, de fora, como no caso do
movimento de uma pedra, mas pode resultar de desejos, intenções, crenças, inerentes ao ser vivo (estas noções
serão discutidas no decorrer deste trabalho).
De particular relevância para o Homem é uma região do corpo denominado encéfalo (3) que, em seus
vários estados, segundo os materialistas, caracteriza a atividade mental. Nas discussões sobre a existência do que
se denomina "mente" inevitavelmente se divisa o tema do corpo humano em geral e do encéfalo em particular.
O conceito de mente
O Problema Mente-Corpo (ver Quadro 1) pode ser dividido em três sub-problemas, com o intento de
delinear um possível relacionamento que a mente mantém com o corpo humano. Para termos uma aproximação
adequada desta questão, devemos estabelecer outro questionamento, além da já abordada "O que é o corpo
humano?". A questão complementar que se interpõe justamente é "O que é a mente?".
RELAÇÃO MENTE-CORPO
MENTE CORPO
Iremos basear nossa explanação nos argumentos de Campbell (1.971), Priest (1.991), Searle (1.984) e
Armstrong (1.983), elencando o que os mesmos discutem sobre o que seja a mente. Falaremos sobre
individualidade, pensamento, consciência e intencionalidade.
Uma primeira questão a estabelecer é se a mente (se a entendemos relacionada com o corpo) seria uma coisa,
uma substância, um algo. Assume-se que pessoas adultas saudáveis possuem uma (e uma só) mente. Contudo, isto
não prova que a mente exista, no mesmo sentido em que dizemos, no caso de alguém que tem diabetes, apresentando
sintomas específicos efetivamente averiguados, que o diabetes existe. Campbell (1.971, p. 5) coloca que a sugestão de
considerar-se a mente como uma 'coisa' está aberta a questionamentos, mas que este questionar-se afeta somente o
modo de se colocar o problema, e não o problema em si, que permanece. O autor indica que nova luz pode ser
enfocada na questão ao se assumir a mente como algo, como uma coisa, facultando auferir em que consiste as
características mentais do homem e as relações que mantêm com as suas características físicas.
Metodologia empregada
O termo "método científico" é utilizado normalmente para descrever um conjunto de procedimentos
racionais, sistematicamente empregados na busca e justificação do conhecimento.
A nossa empreitada aqui é discutir como utilizar um método de modo a clarificar nossos argumentos,
tornando possível a obtenção do conhecimento sobre o problema da relação mente-corpo. Com tal objetivo
iremos introduzir brevemente os raciocínios subjacentes aos métodos dedutivo, indutivo e abdutivo (ou
retrodutivo), baseando-nos principalmente em Peirce (1.974) e Beveridge (1.981). Segundo este último, as
principais etapas do método científico podem ser assim resumidas:
"(a)Reconhecimento e formulação do problema;
(b)Coleta de dados relevantes;
(c)Definição de uma hipótese por indução, indicando as relações causais ou padrões significativos dos dados;
(d)Deduções a partir da hipótese e comprovação de sua exatidão pela experimentação ou com a coleta de
mais dados; e
(e) Raciocínio de que se os resultados forem coerentes com a dedução a hipótese ficará fortalecida, mas não
comprovada". (Beveridge, 1.981, p. 56-57)
Estas etapas, aparentemente simples, envolvem inúmeras dificuldades lógicas e práticas, as quais não
serão objetos de análise neste trabalho. Vamos antes, nos concentrar em alguns elementos dos tipos de raciocínio
acima mencionados, de modo a colocarmos posteriormente o método que utilizamos em nosso trabalho.
Peirce (1.974), discutindo as etapas do raciocínio científico, indaga "Qual é a utilidade do pensamento?"
(par. 159, p. 50) e passa a explicar, respondendo a sua própria pergunta, três tipos de raciocínio, o dedutivo, o
indutivo e o abdutivo.
No raciocínio dedutivo, descobre-se uma verdade a partir de outras já conhecidas. "Na dedução,
partimos de um estado de coisas hipotético definido abstratamente por certas características"(idem, ibidem). A
inferência é válida se e somente se observamos uma estreita relação entre a informação contida nas premissas e a
informação contida na conclusão.
O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física 6
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Lucas Vieira Dutra
Nas palavras de Peirce, "a dedução envolve apenas as conseqüências necessárias de uma pura hipótese"
(idem, p. 52), não podendo por isso dar origem a nada de novo (ver também Vargas, 1.985, p. 35)( ). Neste tipo
de raciocínio o nexo lógico é o preponderante, não sendo tão relevante para o desenvolvimento do trabalho uma
ligação das premissas com o mundo real. Por exemplo, no raciocínio:
Gonzales sugere que, na abdução, um aspecto essencial é que a mente procura restabelecer a harmonia na
visão do mundo, quando constata que alguma anomalia ocorreu. Assim, partimos sempre da constatação de um
problema ou de alguma anormalidade. As hipóteses sugeridas vem no sentido de restaurar a quebra da suposta
harmonia, reintroduzindo uma visão coerente do fenômeno a ser explicado.
Comparando os três tipos de raciocínio, Peirce (1.974, p. 52) assevera: "Dedução prova que algo deve
ser; Indução mostra que algo atualmente é operatório; Abdução faz uma mera sugestão de que algo pode ser".
Notas
(1) O Jornal "O Estado de São Paulo", no caderno GERAL de 10 de fevereiro de 1.993, à p. 10 reproduziu texto
do jornalista Andrew Pollack, do The New York Times, relatando, entre outros fatos, que "computador poderá
ser controlado pela mente". Nesta linha de apelo tecnológico, o Caderno de Ciência do jornal "Folha de São
Paulo" do dia 04 de novembro de 1.992, à p. 1-12 (artigo da Redação) relatou que "televisão modifica a estrutura
da mente". Eminentes personalidades, utilizando principalmente tais veículos de comunicação, emitem opinião
sobre o assunto, tentando veicular o tema as suas áreas. O cineasta Ruy Guerra assinou matéria no jornal "O
Estado de São Paulo", denominado "Da mulher, da alma, do índio e do negro", no caderno 2, à p. D-3 (31 de
Outubro de 1.993) e perguntou "algum dia aos animais lhes vai ser reconhecida a existência da alma?". O
renomado consultor de empresas Gutenberg de Macêdo relata em seu artigo "Administração clássica está
condenada", publicado no caderno de empresas do jornal "O Estado de São Paulo" à p. L-1, de 16 de setembro
de 1.993 que "não existe a divisão corpo-mente; o ser humano é uma unidade". No Jornal Folha de São Paulo, o
Caderno MAIS! de 24 de março de 1.996 trouxe vários artigos sobre o problema da relação mente-corpo, com
variados tópicos. Até nas revistas femininas 'curiosos' perpetram reportagens divulgando o tema. A jornalista
Cristina Ribeiro Nabuco retrata no artigo "Corpo e Mente - como as emoções interferem na nossa saúde"
(Revista CLÁUDIA, Ed. Abril, numero 11, novembro de 1.989, p.44) opiniões de médicos, psicólogos e
terapeutas associando diversos aspectos intrigantes do papel da mente na sua relação com o corpo. Até em
revistas pacifistas encontram-se artigos razoávelmente interessantes. Para uma discussão sobre medicina
alternativa, ver artigo do Dr. L. Terry Chapell (Fellowship, March/April, 1.995) e a sessão de cartas, in
Fellowship, September/October, 1.995, p.22-24.
(2) Em nosso trabalho, procuraremos evitar o uso do termo 'Educação Física', dada a sua carga teórica. Contudo,
quando for empregada por autores específicos, a utilizaremos. Teixeira (1.993), por exemplo, relata que a expressão
'Educação Física', como nomenclatura, seria ambígua e imprecisa, e sugere originar-se esta imprecisão, entre outros
aspectos, da atividade de formação do profissional baseada também em exercícios ginásticos, destinados ao
adestramento do corpo, envolvendo atividades motoras. Este contexto nos parece remeter a questões ligadas à
relação presumida da mente com o corpo.
(3) Encéfalo seria a parte do Sistema Nervoso Central contida na cavidade craniana, abrangendo o cérebro, o
cerebelo, pedúnculos, a protuberância e o bulbo raquiano.
(4) Conforme veremos nos capítulos posteriores, a noção de mente "habitando" um corpo ou identificando-se
com ele é objeto de grande controvérsia entre dualistas e monistas.
(5) Cérebro seria a porção do encéfalo que ocupa dentro da luz craniana toda a parte anterior e superior.
(6) Em um livro dirigido ao grande público, Crook (1.986) discute os efeitos da presença do fungo Candida
Albicans no funcionamento do organismo humano de um modo geral e sobre o funcionamento mental em
particular. Um grande elenco de sintomas orgânicos, tais como prostração, debilidade física, depressão e apatia
são associados ao grau de infestação do fungo no indivíduo.
"Alma, não procure a vida imortal, mas esgote o reino do que é possível."
Píndaro (518-438 a.C)
Introdução
Ao nos defrontarmos com o tema da relação existente entre mente e corpo, vemos que as suas raízes
históricas remontam aos Gregos clássicos e a sua discussão contou, já naquela época, com inúmeras
contribuições principalmente por parte dos filósofos. Iremos alinhavar aqui as principais correntes filosóficas que
influenciaram as considerações modernas sobre o que veio a ser denominado problema mente-corpo, sem a
pretensão, no entanto, de desenvolver uma análise detalhadamente filosófica. O intuito é, por um lado,
argumentar que, a rigor, os temas estudados hoje em dia já foram colocados, de modo muito aproximado, desde
os tempos antigos. Por outro lado, levantar o itinerário seguido pelos nossos predecessores pode em muito nos
auxiliar na discussão dos recentes posicionamentos acerca do problema mente-corpo.
Inicialmente, na seção I, averiguaremos, com base na obra de Lombardo (1.987), duas tradições
históricas antagônicas no estudo da relação mente-corpo: a dos Idealistas, na linha de Pitágoras e Parmênides e a
tradição dos Materialistas, que tem como representantes Tales, Empédocles, Demócrito e Heráclito.
A seguir, na seção II, veremos como se originaram as posições de Platão e Aristóteles a partir destas
tradições e também que os posicionamentos posteriores sobre o problema mente-corpo se situam num ou
noutro ponto entre estes dois pensadores. Iremos concluir o capítulo, indicando que os modernos
posicionamentos sobre a relação entre a mente e corpo como que retratam ou se superpõem, em graus variados,
a partir dos posicionamentos discutidos já pelos principais pensadores da Grécia Clássica.
O mundo acima da linha era considerado fixo, imutável, sendo que teríamos conhecimento deste através
do trabalho da mente, da razão. Esta nos possibilitaria alcançar o mundo da verdade e da Realidade última,
permitindo-nos penetrar até as idéias inteligíveis, formas exemplares ou unidades objetivas eternas, não sensíveis.
Estas existem fora e acima das coisas sensíveis e conferem seu verdadeiro sentido ao mundo e à vida. O mundo
inteligível é composto de idéias matemáticas (círculos, triângulos) e de idéias "anipotéticas" (prudência, justiça,
beleza) que constituem em si uma ordem harmoniosa.
O mundo abaixo da linha, no modelo platônico, seria aquele onde os humanos vivem, o mundo das
aparências onde se sucedem as gerações e onde existe corrupção. Este mundo está situado entre o ser e o não-
ser; é fonte de ilusões e a sua realidade é aparente, pois o homem só encontra o princípio de sua existência no
mundo verdadeiro das idéias inteligíveis, arquétipos dos quais os objetos sensíveis não passam de cópias
imperfeitas. Tudo aqui neste mundo do "dia-a-dia" teria sua identidade, através da imitação das formas do
mundo do ser (Prado Jr, 1.981). Nós, os viventes, teríamos opiniões e crenças sobre este mundo do vir-a-ser, que
é um mundo sensível, alcançado pelos sentidos do corpo.
Neste sentido, vemos um sistema dualista onde Platão contrapõe a permanência (eternidade) e a mudança,
num momento e, noutro, os universais (ordem, constância, homogeneidade) e os particulares (variação, indivíduo,
heterogeneidade). Este pensador grego vai oferecer uma explicação para a relação do conhecedor com o mundo físico,
combinando uma dimensão física-sensorial (mundo temporal) com uma dimensão mental-conceitual (formas eternas).
No entanto, o conhecimento certo só existiria no nível dos universais: a ordem somente poderia ser conhecida através
da razão, pois ordem enquanto tal pertenceria ao reino das idéias e não ao mundo dos sentidos.
NOTAS
(1) Este sistema de pensamento vai exercer sua influência na cultura ocidental até o século XI quando Aristóteles
passa a ter precedência, ainda que restrita ao círculo de intelectuais da época (Santin, 1.990, p. 51). Ver
também "Realism", in Hocking (1.939) e Ewing (1.951, 1.957).
(2) A Antigüidade atribuía a ele a elaboração de quatrocentas obras, das quais chegaram até nós quarenta e sete
mais ou menos completas e fragmentos de aproximadamente cem outras. Para uma visão da notável
contribuição aristotélica para a Ciência, ver a obra de Ferguson (1.972). Duas obras fornecem um quadro
acessível do aristotelismo: Adler (1.978), e Veatch (1.974). Outras obras, todas nomeadas "Aristotle", podem
ser consultadas: Laeger (1.948), Mure (1.964), Randall (1.960) e Ross (1.955).
(3) Para averiguar as diferanças básicas entre as filosofias de Platão e Aristóteles, os seguintes autores podem ser
de utilidade: O'Connor (1.974), Cresswell (1.971) e Feibleman (1.973). Por outro lado, existem semelhanças
de igual modo interessantíssimas. Por exemplo, in Feibleman (op. cit.) lemos:
"Looking back on the philosophies of Plato and Aristotle (...) we can
see an important resemblance. Both had the highest ambition: they tried to
construct systems of ideas more general than any other, metaphysical
systems large enough to be all-inclusive. They differed on many minor
points and even on some major ones, but not on the size of the problem.
(...)
2. O Dualismo Cartesiano
Introdução
Neste capítulo, iremos expor o raciocínio de Descartes, analisando as obras Meditações (1.641, 1.973) e
As Paixões da Alma (1.649, 1.973), tomando como itinerário básico as sugestões do prefácio de Costa (in
Descartes, 1.637) e a introdução de Granger (in Descartes, 1.973b). Na Seção I vamos analisar sucintamente
como Descartes erigiu o arcabouço filosófico básico de seu sistema. Na Seção II, averiguando a sexta Meditação,
discutiremos mais detidamente como Descartes estabeleceu a distinção entre a alma e o corpo.
Pela primeira vez na História, a distinção mente-corpo foi tornada sistemática em sua linguagem por
Descartes, cientista, matemático e filósofo francês, nascido em La Haye, em 1.596. Ele preocupava-se muito com
as deficiências e incertezas daquilo que considerava objeto de seu conhecimento, tendo isto manifestado em
muitas passagens de seus trabalhos (Discurso do Método, p. 49/50, 78/79, e a apresentação das Meditações).
Visando minorar esta situação, Descartes tentou fundamentar seu sistema filosófico em algumas verdades
que ele julgara indubitáveis, com especial objetivo de estabelecer os alicerces da Ciência (Meditação primeira, p. 93,
96) e deduzindo delas grande variedade de conseqüências de longo alcance. Na Meditação segunda empenha-se em
demonstrar que a proposição "penso, logo existo", não é passível de dúvida. Esta proposição será sempre
verdadeira enquanto perdurar o ato de pensar. Desta afirmativa básica, Descartes estabelecerá conclusões sobre (a)
a existência de Deus (Meditação terceira), (b) sobre a natureza e a existência de objetos materiais (Meditação
quinta), e (c) sobre o dualismo entre o físico e o mental (Meditações segunda e sexta).
Não é nosso intuito analisar a obra filosófica de Descartes, mas situar como ele delimitou o problema mente-
corpo, realizado no plano metafísico(1). Iremos identificar como Descartes erigiu o arcabouço que sustenta suas conclusões.
Descartes procura fundamentar o seu estudo filosófico sobre o conhecimento humano nas idéias claras
e distintas, isto é, aquelas que podem ser reconhecidas através da intuição (Discurso do Método, p. 51); vai
verificar se os fundamentos donde ele parte, para averiguar a verdade, são "bastante sólidos" (idem, p. 84/85).
Como estratégia metodológica, Descartes começa por rejeitar, como falso, tudo aquilo acerca da qual pudesse
imaginar a menor dúvida (Meditação primeira, par. 10 a 12, p. 95/97).
Descartes propõe o duvidar exageradamente como método: é a dúvida hiperbólica, sistemática e
generalizada. Esta dúvida metódica é diferente da dúvida dos cépticos (no Discurso do Método, à p. 79 ele diz
claramente "Não que nisto imitasse os cépticos que apenas duvidam por duvidar...") pois Descartes duvida
intencionalmente para se chegar à verdade: esta dúvida é provisória, como se vê na Meditação primeira (par. 11,
p. 96). A dúvida dos cépticos é definitiva; a dúvida cartesiana seria ainda diferente da dúvida vulgar, posto que é
entabulada não pela experiência, mas por uma decisão metodológica(2).
Descartes rejeita, com sua dúvida metódica, o que os sentidos nos dão a conhecer, visto que já que uma ou
algumas vezes nos enganaram, podem muitas outras nos enganarem. É o argumento do erro dos sentidos, que
constitui o primeiro grau de dúvida. Neste âmbito, o corpo, através dos órgãos dos sentidos, tem importância,
ainda que negativa, para a obtenção do conhecimento, pois, como no caso das ilusões de óptica, o que julgamos
conhecer pode revelar-se falso. No entanto, este argumento é insuficiente para nos fazer duvidar
sistematicamente de nossas percepções sensíveis.
"...já que, de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida
em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma
idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não
pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que eu sou, é
inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo, e que ela pode ser ou existir sem
ele". (Descartes, 1641/1973, p. 142, fim do par. 17)
A indivisibilidade do espírito é também mencionada no par. 33 desta sexta Meditação (p. 147), bem como certos
aspectos corpóreos que manifestadamente sustentam, dentro do arcabouço cartesiano, a diferenciação do corpo em
relação ao espírito (p. 147/149, par. 34 a 41). Descartes fundamenta ali a distinção entre alma e corpo na confrontação de
suas naturezas, distinguidas em grande parte pela oposição entre parte (corpo: divisível) e todo (espírito: indivisível).
A distinção entre estas duas substâncias, e suas relações (posto que mutuamente excludentes),
constituirão o segundo grupo de problemas dentro do sistema cartesiano. As dificuldades que Descartes enfrenta são
inúmeras. Como dissemos, na sexta Meditação, Descartes assume uma conjugação estreita entre a mente e o
corpo, os quais se apresentam de modo confundido e misturado (p. 144, par. 24). A noção de uma união entre
mente e corpo foi colocada posteriormente por Descartes em sua correspondência com a Princesa Elisabeth, que
indagara anteriormente como a alma podia mover o corpo.
Nas cartas de 21 de maio e 28 de junho de 1.643 (Descartes, 1.973a, p. 309/315), o autor deixa claro
que, não obstante seus argumentos terem se concentrado em grande parte no estabelecimento da distinção
entre a alma e o corpo, temos também uma noção da união entre alma e corpo. Esta noção seria uma das três
noções primitivas (ou gênero de idéias), que conhecemos cada qual de maneira particular e não pela comparação
de uma com a outra (6). No entanto, é na sua obra As Paixões da Alma (1.649, 1.973) que Descartes vai tentar
fornecer uma explicação fisiológica e psicológica detalhada de como se processa esta união substancial entre
mente e corpo, o que configura o terceiro grupo de problemas.
Na obra Paixões da Alma, Descartes sugere que: (I) a mente tem poderes causais sobre o corpo (ver na
primeira parte, o art. 43, à p. 243), como quando faz com que o corpo se movimente e (II) que o corpo tem
poderes causais em relação à alma (ver na terceira parte, art. 199, à p. 299), como no caso em que as paixões e
sentimentos são "excitados" pelos acontecimentos corpóreos, no sistema nervoso e no sangue.
Descartes aponta, por um lado, um grande número de processos pelos quais os movimentos, uma vez
iniciados na glândula pineal, podem ser comunicados a segmentos corporais distantes, mas não clarifica a questão
central de como uma alma incorpórea pode influenciar a glândula pineal. Por outro lado, Descartes descreve
mecanismos fisiológicos mediante os quais diversos estímulos produzem mudanças no sistema nervoso e no encéfalo,
levando a alma a sentir emoções (ver nas Paixões da Alma, art. 38 e 39, p. 242), mas não explica, contudo, como
eventos cerebrais, ainda que originalmente complexos, deteriam a capacidade de fazer surgir eventos na mente. A
existência dos "espíritos animais", causando modificações na glândula pineal, não fornece clarificação adequada para o
problema da relação entre o corpo e a alma. Pois estes não são conectados, segundo Descartes, por relações causais
em sentido estrito, ficando seu entendimento sujeito à natureza das variações e acontecimentos determinados por
Deus (Cottingham, 1.995).
Vemos assim que a concepção cartesiana das relações entre a mente e o corpo parece não seguir os
próprios parâmetros cartesianos de Ciência, sujeitando-se a inúmeras dificuldades, que serão objeto de críticas
entre seus conterrâneos e entre os estudiosos posteriores.
NOTAS
(1) Metafísica pode ser entendida como o estudo filosófico cujo objeto é determinar a real natureza das coisas:
precisar seu significado, estrutura e princípios de tudo o que é enquanto é. Ao homem comum representa que
este estudo seja altamente sutil e teórico, o que o leva a sofrer muitas críticas, mas para os metafísicos significa o
questionamento mais fundamental e abrangente, visto estar relacionada com a totalidade da Realidade. Sobre
metafísica, ver a obra de Lacoste(1.992). Sobre a metafísica cartesiana, ver Tomlin(1.947) e Collins(1.959).
(2) Pelo exame superficial do significado comum das palavras, podemos entender que a dúvida pode se
estabelecer quando (mas não necessariamente) se tem posicionamentos que mutuamente se contradizem. Em
decorrência, surge impedimento para se decidir em favor de um ou de outro posicionamento. A dúvida é a
hesitação de uma crença, a condição de não poder achegar-se a uma conclusão positiva contra ou a favor de
uma certa afirmação. A dúvida difere assim da descrença, que parece, esta, tomar a forma de uma convicção
positiva da falsidade. Descrença, por assim dizer, é uma forma de crença: um acreditar nalguma proposição
que envolva a falsidade de outra proposição, com referência à qual tomamos a postura de descrer.
(3) Através deste artifício psicológico, Descartes procuraria tornar para si mais séria a dúvida, lembrando-se
sempre dela e visaria, ao menos, suspender seu juízo, ainda que não conseguisse chegar ao conhecimento de
qualquer verdade; no entanto, permitirá chegar às primeiras verdades, pela redução ao absurdo.
(4) A título de esclarecimento, resumimos adiante uma Nota da tradução brasileira da obra de Cottingham (1.995,
p. 9), onde as professoras Helena Martins e Ethel Alvarenga, comentando um problema enfrentado na
tradução, expõem com clareza como o termo 'mente' deve ser entendido dentro do contexto cartesiano.
Descartes designava a natureza da coisa pensante (res cogitans) pelo termo mens, dissociando esta noção do
conceito escolástico de anima (ver Segunda Meditação, p. 103, par. 9; ver também nas Meditações, as
Respostas do Autor às Segundas Objeções, p. 162/163 e 175, e Respostas do Autor às Quintas Objeções, p.
191/193, par. 507, 508 e 509). Menos freqüentemente, Descartes usava os termos latinos animus, ratio e
intellectus para designar a res cogitans. Na versão francesa das Meditações, a natureza da coisa pensante foi
designada pelos termos sprit, entendement, raison e ocasionalmente por âme. Nas traduções inglesas das
obras cartesianas, mens é em geral traduzido por mind e sprit para spirits, evitando-se deste modo a confusão
com o termo sprits animaux, que tem conotação diversa dentro do sistema cartesiano.
(5) Para Descartes, as produções lingüísticas realizadas pelo homem distinguem-se inteiramente de qualquer coisa
que um animal ou um mecanismo possa efetuar. Na parte V do Discurso do Método, Descartes identifica
dois meios para "conhecer a diferença que existe entre os homens e os animais" (p. 122 / 125). Um seria a
capacidade do uso das palavras ou outros sinais, combinando-os como faz o homem para expressar aos
outros seus pensamentos; outro seria o fato de se encontrarem feitos mais perfeitos realizados por máquinas
ou animais, no entanto, estas máquinas e animais falham em outras realizações: descobre-se que não agem
com conhecimento, mas sómente pela disposição de seus órgãos.
(6) As outras noções primitivas são as de alma e a de corpo. Ver Landim Filho (1.992), capítulo segundo, p. 37,
para uma discussão sobre pensamento como sendo uma noção primitiva.
Introdução
Iremos neste capítulo discutir alguns argumentos contrários à tese do dualismo mente-corpo, com base na obra
The Concept of Mind, do filósofo inglês Gilbert Ryle. Veremos que, segundo este autor, o dualismo resulta de um equívoco
do tipo lingüístico, ou melhor, de uma coleção de equívocos não envolvendo apenas detalhes, mas, sim, princípios.
Na seção I, analisaremos os argumentos cartesianos identificados por Ryle a favor do dualismo. Na
seção II discutiremos a proposta de Ryle para o estudo dos estados mentais e, na seção III, consideraremos
alguns argumentos elencados por Ryle a favor de uma visão não dualista da conduta inteligente que envolve a
prática de aquisição e alteração de hábitos.
Desenvolvendo uma interessante discussão sobre habilidades, hábitos e inteligência, Ryle (1.949) propõe
a análise destes últimos como uma abordagem alternativa à cartesiana, da entidade oculta conhecida como
'mente', para explicar a atividade mental inteligente (p. 42-50). Antes de introduzir as idéias de Ryle, faremos um
esclarecimento de âmbito lingüistico, acerca de alguns termos aqui empregados(3).
Ryle utiliza o termo 'capacidade inteligente' (intelligent capacities), com o mesmo sentido de
'habilidade'(adquirida), significando poder de agir ou de realizar algo de modo inteligente; competência ou
proficiência numa atividade ou ocupação, segundo uma destreza específica. Ainda que na linguagem comum
habilidade e capacidade sejam por vezes associadas a talentos, ou uma aptidão especial herdada geneticamente, Ryle
aparentemente não confunde os dois primeiros termos com os dois últimos. De fato, numa leitura atenta de sua
obra The Concept of Mind auferimos que Ryle não junta necessariamente em sua argumentação condutas que
teriam origens ou bases inatas com as condutas que são manifestadamente derivadas de treinamento, não-inatas.
No entanto, em nossa discussão sobre hábitos e habilidades ('capacidades inteligentes', para Ryle), estas
ressalvas são importantes. Ryle publicou The Concept of Mind em 1.949 e, na linguagem moderna da
aprendizagem motora, estes termos tem significados precisos. Em Schmidt (1.992), o termo capacidade
(capacidade fundamental) designa "um traço inato, relativamente permanente, estável, do indivíduo, que é a base,
ou sustenta vários tipos de atividades motoras ou cognitivas, ou habilidades (p. 129)". As capacidades seriam
herdadas e não mudariam em sua essência, ainda que haja treinamento. No dizer de Schmidt, "as capacidades
podem ser consideradas como o 'equipamento' básico com o qual as pessoas nascem, para executar diversas
tarefas do mundo real (idem, p. 131). O termo habilidade refere-se, por sua vez, a um conjunto de condutas que
seria modificável pela prática ou treinamento, constituindo uma destreza específica de realizar, executar uma
atividade particular (idem, ibidem).
No que se segue, procuraremos utilizar os termos de Ryle, ressalvados os conteúdos divergentes que
podem levar a equívocos. Na verdade, Ryle centraliza seus argumentos sobre o fato de 'hábitos' poderem ser
confundidos com habilidades, o que ele procura mostrar que seria incorreto.(4)
NOTAS
(1) Ryle (1.949, p. 23) não imputa somente às idéias de René Descartes a paternidade da teoria oficial, não
obstante o filósofo francês estar tentanto reformular as doutrinas teológicas vigentes da alma, dentro do novo
prisma inaugurado por Galileu.
(2) Ryle usa a palavra 'legend', que pode ser também traduzida como 'lenda', numa referência talvez à escassa
base de verdade que ele considera possuir a fábula intelectualista, assim como as lendas antigas dos grandes
feitos de certos personagens.
(3) Agradecemos à Dra. Ana Maria Pelegrini os comentários e sugestões neste particular.
(4) Para uma análise crítica dos argumentos ryleanos, atacando a doutrina intelectualista através da discussão da
ação, ver Parry (1.980). Sobre o argumento de Ryle a respeito do erro-categorial, ver a crítica de Callister (1.977).
Introdução
Discutiremos, neste capítulo, a interpretação materialista das entidades mentais, com base nas obras de
Churchland (1.984), Priest (1.991) e Moravia (1.995). O posicionamento materialista possui muitos adeptos,
tendo em vista sua tencionada simplicidade e a crítica ao dualismo que encerra em seu bojo. Por outro lado, a
visão materialista é muito questionada pelas lacunas que deixa, segundo seus críticos, sem a adequada
formulação, como por exemplo, sobre as qualidades intrínsecas das sensações, das imagens, percepções,
emoções, memórias, desejos, crenças, pensamentos e intenções.
Materialismo, segundo Priest (1.991, p. 98) é a teoria segundo a qual, se algo existe, então este deve ser
físico. Esta tese de que somente objetos e eventos físicos existem, constitui um dos pressupostos centrais do
materialismo. Priest (idem, ibidem) aponta para o fato de que ainda não foi estabelecida uma definição não-
controversa do que seja 'físico', mas é considerado que se algo é físico então possui características espaço-
temporais. Adicionalmente, objetos físicos são aqueles que possuem essencialmente as propriedades de forma,
extensão e dureza (solidez), sendo que alguns são suscetíveis de movimento e outros de auto-locomoção.
A tradição materialista remonta, em seus primórdios, às teses de Demócrito e Epicuro. Demócrito, o
filósofo atomista grego, sustentava que tudo o que existe é composto de objetos físicos, denominados 'átomos'
(etimológicamente, 'indivisível'), em número infinito e em movimento, tão diminutos de modo que são
imperceptíveis. São também impenetráveis e localizados no que Demócrito denomina 'vácuo', ou 'vazio' - puro
nada ou ausência do ser (Duvernoy, 1.993, p. 19, 23, 36-37, 135 ; Nietzche, in: Demócrito, 1.973, p. 354-357).
Várias outras versões materialistas foram propostas na história da Filosofia. Em especial, pela influência
que mantiveram subseqüentemente, podemos ressaltar aquelas esposadas por Thomas Hobbes, de La Mettrie e
Karl Marx. Este último, segundo Priest (1.991, p. 101) o mais famoso materialista da tradição intelectual
ocidental, não era de todo um materialista. Apesar da tese de doutorado de Marx ser sobre o materialismo de
Demócrito, Marx é chamado de 'materialista dialético' ou ainda, 'materialista histórico'. O que estas duas visões
sustentam é que os fatos materiais, em especial, os econômicos de uma sociedade, determinam os outros
aspectos desta mesma sociedade. Especificamente, as leis, religião e outros padrões de pensamento obtidos numa
sociedade estão intimamente dependentes do modo pelo qual a sociedade está economicamente organizada.
Aqui, segundo Priest (ibidem), a visão de que o físico determina o mental, não é a mesma do materialismo
abarcado na filosofia da Mente. Nesta, o materialismo é a visão de que o mental é um estado do físico; é a teoria
de que todos os fatos mentais não se sobressaem em relação aos fatos físicos e não há, nos escritos de Marx,
nada que sugira que ele foi um materialista neste sentido. Seu materialismo é uma doutrina do determinismo
materialista e não uma ontologia materialista.(1)
O materialismo, no contexto da filosofia da mente, tem sido muito questionado sobre sua plausibilidade.
É razoável pressupor que somos somente (2) objetos físicos, ainda que amplamente complexos? Muitos dirão que
pelo fato de pensarmos, termos percepções, emocionarmo-nos e assim por diante, não podemos ser meras
máquinas físicas. Esta ponderação não tem peso científico aceitável. Os materialistas, em geral, não negam a
existência do pensamento, emoções, percepções e imagens mentais. Eles apenas acreditam que nossa bem
treinada vida mental é o resultado de séries de eventos físico-eletroquímicos que ocorrem no cérebro.
De acordo com este breve 'background' histórico, vamos neste capítulo discutir algumas das questões
centrais da abordagem materialista da mente. Na seção I, duas visões materialistas tradicionais serão analisadas, a
saber: o materialismo eliminativista e o materialismo reducionista.
Na seção II, analisaremos algumas críticas levantadas a estas tradições materialistas, tentando identificar
seus pontos fracos, de modo a procedermos uma comparação posterior com o funcionalismo.
Na seção III discutiremos o Funcionalismo, com a abordagem histórica de William James, John Dewey
e George H. Mead e, "mais recentemente", o funcionalismo de Hilary Putnan e Jerry Fodor. Vamos, nesta seção,
diferenciar brevemente o funcionalismo das visões materialistas elencadas na seção anterior.
Na seção IV será analisada uma versão do problema mente-corpo, dentro da Ciência Cognitiva. E,
finalmente, na seção V analisaremos duas questões (I) Podem os processos mentais serem entendidos como
processos cerebrais? e (II) As hipóteses materialistas concernentes ao problema da relação mente-corpo possuem
efetivamente status científico?
O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física 26
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Lucas Vieira Dutra
Seção I - Materialismo Reducionista e Eliminativista.
a) Reducionismo.
Vamos, inicialmente, abordar as teses reducionistas de uma das mais controvertidas escolas materialistas,
denominada Behaviorismo (3), a qual exerceu grande influência nos meios acadêmicos, em especial durante as
duas décadas após a segunda guerra mundial. O mais conhecido behaviorista é o psicólogo americano B.F.
Skinner. Sua visão behaviorista tentou realizar a idéia, oriunda dos Positivistas Lógicos, de que o significado de
qualquer sentença estaria conectado ao exame das circunstâncias observáveis que levaria a verificar ou confirmar
uma sentença proferida. Outro aspecto que ajudou a fortalecer a agenda behaviorista era a pressuposição
corrente de que a maioria (ou até a totalidade) dos problemas filosóficos eram resultantes de equívocos
lingüísticos ou conceituais, sendo passíveis de serem resolvidos, através de uma cuidadosa análise da linguagem
na qual o problema era expresso.
Sob certo aspecto, como aponta Churchland (1.984, p. 23), o behaviorismo não seria tanto uma teoria dos
estados mentais em sua natureza e sim uma teoria sobre como analisar ou entender o vocabulário utilizado, para se
referenciar a estes estados mentais. Apesar de ter sido criticada por "negar" a existência de estados mentais, os
behavioristas, na verdade, desejavam antes aplicar, em seu programa, os cânones da ciência na consideração dos
eventos privados. Esta preocupação pode ser claramente percebida na seguinte passagem de Skinner:
"Inexistindo mundo externo para iniciar o conhecimento, não deveríamos dizer que o
próprio conhecedor é o primeiro a agir? Este é, naturalmente, o campo da consciência ou da
conscientização, que freqüentemente se acusa a análise científica do comportamento de
ignorar. (...) Qualquer análise do comportamento humano que desprezasse tais fatos seria
realmente imperfeita. (...) Mais do que ignorar a consciência, uma análise experimental do
comportamento salientou certos problemas cruciantes. A questão não versa sobre a
capacidade do homem de se conhecer a si mesmo, mas sobre o que ele conhece ao agir
assim. O problema se origina em parte de um fato incontestável, isto é, a individualidade:
uma pequena parte do universo está encerrada na pele de um homem. Seria tolice negar a
existência desse mundo individual, mas também é tolice afirmar que, por ser individual, é de
natureza diferente do mundo exterior. A diferença não está na matéria de que se compõe o
mundo privado, mas em sua acessibilidade." Skinner (1.973), p. 149-150. (4)
Esta passagem encerra uma das críticas mais contundentes de Skinner àqueles que desejavam dar ao
Homem e suas produções um status diferenciado perante a natureza, enquanto objeto de estudo científico. A
questão mais importante era o enfoque prioritário da investigação científica a ser implementado, tendo em vista
os ideais de previsibilidade e controlabilidade que era almejado, num projeto sistemático de pesquisa da conduta
humana. Como o que é mais fidedignamente acessível é a conduta observável, e não existindo ainda ferramental
adequado para o exame da consciência, esta não era prioridade. Mas nem por isso seria necessariamente negada
sua existência. O que os behavioristas procuravam evitar eram as possíveis distorções do conhecimento subjetivo
que o estudo da consciência presumivelmente traria.
Para o behaviorismo, falar sobre emoções, sensações, desejos e crenças não é falar sobre episódios
internos fantasmagóricos. Segundo Churchland (1.984, p. 23) trata-se de um modo de falar, como que tomando
um atalho, sobre padrões atuais e potenciais de comportamento. Em sua forma mais forte, segundo Churchland
(ibidem), o behaviorismo estabelece que qualquer sentença sobre um estado mental pode ser parafraseada, sem
perder significado, em longas e complexas sentenças sobre que comportamento observável iria resultar se a
pessoa em questão estivesse nesta, naquela ou outra circunstância observável.
Exemplificando com uma analogia, temos a propriedade disposicional (5) ser solúvel. Dizer que açúcar é
solúvel não é dizer que o açúcar possui em si algum estado interno fantasmagórico. Seria dizer, ao invés, que se o
açúcar fosse posto na água, então o mesmo iria se dissolver. Esquematicamente, temos:
b) Materialismo Eliminativista.
Uma postura contrária aos teóricos da identidade é defendida por Feyerabend (1.963) e Rorty (1.970),
entre outros. Os primeiros pressupõem que ocorra uma identidade satisfatória 'um-a-um' entre os conceitos da
psicologia do senso comum e os conceitos da neurociência teórica, como requer a redução interteórica. O
materialista eliminativista duvida que tal redução vá ocorrer, como aponta Churchland (1.984, p. 43), porque
nosso 'framework' psicológico do senso comum funda-se numa concepção falsa e radicalmente equivocada das
causas da conduta humana e da natureza da atividade cognitiva, qual seja, àquelas entidades mentais tais como
desejos, emoções e assim por diante. Deste modo, não se pode esperar um adequado e verdadeiro levantamento
neurocientífico de nossa vida interior, de modo a prover categorias teóricas que irão se parear, otimamente, com
as categorias de nosso 'framework' do senso comum. Deveria, em decorrência, ser esperado que o 'framework'
antigo simplesmente fosse eliminado e não reduzido, por meio de uma neurociência amadurecida.
Do mesmo modo que o teórico da identidade aponta casos históricos de redução interteórica de
sucesso, o materialista eliminativista aponta casos de eliminação pura e simples da ontologia de uma teoria antiga,
em favor da ontologia de uma teoria nova e superior. Como exemplos análogos, eles sugerem os casos das
entidades 'phlogiston' e 'feitiçaria' que eram utilizados para explanar, respectivamente, porque as madeiras
queimavam e porque as pessoas tinham possessão demoníaca. Com o tempo, sob as explicações da ação do
oxigênio atmosférico na combustão da madeira e da ocorrência de psicose e outras desordens mentais,
'phlogiston' e 'feitiçaria' foram banidos, não porque eram descrições incompletas da realidade, mas porque eram
descrições completamente equivocadas, não podendo ser aproveitadas num processo de redução interteórica.
De acordo com o materialismo eliminativista, os conceitos da psicologia do senso comum - crença,
desejo, medo, alegria e assim por diante esperam por um desenlace semelhante. Segundo Churchland (ibidem, p.
45), assim que a neurociência estiver amadurecida a um ponto, onde as limitações de nossas concepções vigentes
forem manifestas a todos e, deste modo, a superioridade de um novo 'framework' se estabelecer, poderemos
reconceber nossas atividades e estados internos, no sentido de descrevê-los em termos de nossos estados
neurofarmacológicos, típicos de atividades neurais próprios de áreas anatômicas especializadas.
Feyerabend, segundo Moravia (1.995, p. 118), assume uma visão materialista radical não só do mental,
mas do humano em geral. No seu importante ensaio Materialism and the mind-body problem (Feyerabend,
1.963; Borst (Ed.), 1.983) ele escreve: "Materialism, as it will be discussed here, assumes that the only entities
existing in the world are atoms, aggregates of atoms and that the only properties and relations are the properties
of, and the relations between such aggregates. A simple atomism such as the theory of Democritus will be
sufficient for our purpose (p. 142)".
Rorty (Moravia, 1.995, p. 119), por seu turno, critica entre outros a teoria da identidade tomando o fato
de que, quando abordamos o problema mente-corpo, não podemos falar ontologicamente, ou seja, sobre
entidades, no senso realista do termo. Para ele a mente não é algo que possa ser identificado com algum outro
algo. Nesse sentido, tanto o mental como o corpóreo são meras expressões lingüísticas, partes de um mundo
conceitual definido no âmbito da linguagem.
Resumindo, o materialismo eliminativista, diferentemente da teoria da identidade ortodoxa, não propõe
uma identificação do mental com o corpóreo, mas a eliminação dos termos da psicologia do senso comum
correspondentes ao mental. Com isso, pretende resolver ou ao menos evitar certas dificuldades inerentes à teoria
da identidade.
O Funcionalismo, numa abordagem contemporânea, estabelece que estar num estado mental é estar
num estado funcional, que é um estado definido pelas relações causais entre estados mentais. Um estado mental
é um estado com um tipo especial de causa, um 'input' sensório e com um tipo especial de efeito, um 'output'
comportamental (Priest, 1.991, p. 133). Os estados mentais estão relacionados causalmente uns aos outros e à
totalidade das relações causais. Esta totalidade desempenha um 'papel causal' nestes estados, ou alternativamente,
um 'papel funcional'.
A visão da mente, em termos de categoria de função, foi inicialmente uma abordagem distintiva do
movimento pragmático ou instrumentalista, desenvolvida desde William James até John Dewey e George H.
Mead (Morris, 1.932, p. 274). Recentemente, até o final da década de 80, o funcionalismo tem como seus mais
expoentes representantes Hilary Putnam e Jerry Fodor (Moravia, 1.995, p. 130).
O termo 'função' tem uma variedade de significados e, ao que parece, os fatores subjacentes a estes
significados são as conotações de processo, atividade e relação (Morris, idem, ibidem). O termo 'função' é
utilizado para: (a) denotar o modo normal de atuação de um órgão ou instrumento, como quando duma máquina
ou do coração dizemos 'estar funcionando bem'. Temos outro modo de emprego do termo 'função', no caso de:
(b) indicar o propósito que algo preenche, como quando dizemos que a função do coração é a distribuição
(bombeamento) do sangue. Um terceiro uso do termo indica que: (c) algo realiza, exerce, pratica um certo papel,
como quando se diz, por exemplo, que um ator específico representa Hamlet. E uma quarta acepção: (d) nos
remete ao fato de uma variável ser uma função de outra se, quando um valor é conectado a uma, a outra variável
recebe em decorrência um valor específico.
Destes usos do termo 'função', (b) e (c) - propósito e papel - se aplicam, na anterior interpretação pragmatista, ao
tópico da filosofia da mente. Ambas as acepções do termo 'função' eram utilizados: a teoria era duplamente funcional. Ou
seja, a mente, de um lado, serviria ao propósito de promover a ação orgânica, enquanto que, por outro lado, a mente
abarcaria, compreenderia, representaria o papel do funcionamento de eventos que não são intrinsecamente mentais.
O status de 'mente' pode ser comparado, metaforicamente, àquele de um peso de segurar papel, ou ainda, de
um ator: quando um objeto material específico é ou não um peso de papel depende do papel que exerce; um ator é
Hamlet numa certa situação, sem ser sempre Hamlet. A mesma pedra pode ser ou não um peso de papel; a mesma
pessoa pode ou não ser Hamlet. Do mesmo modo, uma parte da realidade pode ser mental ou estar "na mente" num
momento e não-mental noutro momento. A insistência na natureza instrumental e simbólica da mente é característica
das visões de Dewey e Mead e, em menor grau, de James (Morris, 1.932, p. 277).
Modernamente, o aspecto definidor de qualquer tipo de estado mental enfatizado pelo funcionalismo de
Putnam, na sua primeira fase e Fodor é o do papel da estrutura de relações causais que este estado mental
sustenta com (a) os efeitos ambientais no corpo, (b) outros tipos de estados mentais e (c) comportamento
corpóreo (Churchland, 1.984, p. 36).
Funcionalismo é uma tentativa de suplantar o problema mente-corpo. Segundo esta perspectiva, estar
num estado mental é estar num estado funcional, donde se segue que qualquer ente capaz de estar num estado
funcional é capaz de estar num estado mental, não importando do que este ser é feito, desde que ele, ela ou esta
coisa seja capaz de realizar tal estado.
1. Os estados mentais são estados funcionais que desempenham um papel, dentro de certas
estruturas que caracterizam os sistemas inteligentes.
2. Os computadores possuem, em comum com o homem, a capacidade de processar
informação. Eles constituem bons instrumentos para se estudar o problema mente-corpo.
É inegável os progressos que os estudos abarcados pela Ciência da Computação vêm apresentando. A
miniaturização dos componentes, por exemplo, permitiu o desenvolvimento de ferramentas de 'hardware' e
'software' impensáveis há poucas décadas atrás e desenham um futuro com recursos ainda mais poderosos.
O problema da relação mente-corpo, em que pese os esforços dos estudiosos em estabelecer a interface
'software/hardware', permanece irresolvido. Uma área promissora de investigação surge com a visão
conexionista de redes neurais artificiais, aplicada ao estudo da percepção/ação, a qual não será objeto de nossa
investigação aqui.
Resumindo, a ciência cognitiva compreende um programa de trabalho muito promissor, no sentido de
compatibilizar uma agenda de pesquisa que reúne, de um lado, contribuições interdisciplinares, além de utilizar
intensivamente a ferramenta computador e, de outro, a deliberada investigação de questões epistemológicas, não
se levando em conta fatores afetivos/emocionais ou histórico/culturais.
NOTAS
Introdução
Iremos discutir, neste capítulo, alguns aspectos do pensar dualista para a prática da atividade física,
tomando como fio condutor a análise de algumas implicações do problema mente-corpo, identificadas em alguns
trabalhos recentemente publicados na área. Os autores exemplificados aqui, apesar de não serem necessariamente
representativos de tradições ou escolas de Educação Física, nos auxiliam, em sua argumentação, a delinear
tendências ainda recorrentes na explanação de acontecimentos que envolvem a atividade física.
A visão da vida, da existência que uma pessoa mantém, baseia-se na constatação de um "eu", no sentido
em que esta pessoa afirma "eu sou eu". Temos aqui o princípio da identidade, sustentando o ato de se estar
objetivamente cônscio, consciente da realidade na qual a pessoa está imersa. Quando a pessoa pensa em si mesma,
pensa em algo que identifica consigo mesma, como que permanente e fincado no fluxo dos acontecimentos, em
especial no momento em que pensa neste algo. Quando pensa em algo "fora" de si mesmo, o indivíduo vê aquilo
que o rodeia a partir do contexto deste "eu" ancorado nele mesmo (Popper e Eccles, 1.992, p.57).
Segundo a tradição do Idealismo (ver nesta Tese, Parte I, capítulo I, seções I e II), a visão consciente
deste "eu" determina e fixa os objetos: o homem indaga "o que é isto?" e responde, constatando, "isto é tal
coisa". A consciência determina este eu, que define os objetos que dela se acercam. Pelo modo do eu definir-se
como algo idêntico a si mesmo, tende a ver o resto, simultaneamente, como algo como que excludente a este eu,
em outras palavras algo "não-eu", dando lugar assim ao antagonismo característico da dualidade sujeito-objeto.
Só em relação a esta consciência determinante existiria um aqui e um ali, um "isto" que não é "aquilo", um antes
e um depois, um acima e um abaixo (Popper e Eccles, 1.992, p. 66, 75, 136; Hegenberg, 1.983).
Segundo nosso ponto de vista, o profissional e o estudiosoem geral da atividade física deparam-se,
mesmo que não o saibam, com estas questões afeitas ao sujeito que define dualisticamente a sua existência
durante a sua prática profissional. Pela polarização tradicional que se estabeleceu na área da atividade física em
termos do dualismo mente-corpo, o professor, treinador ou acadêmico necessita muitas vezes posicionar-se. (1)
Este posicionamento implica, no que diz respeito ao seu âmbito de intervenção, estabelecer onde ele vai atuar:
numa mente ou num corpo. É sob este pano de fundo que tentaremos explanar, neste capítulo, alguns tópicos,
envolvendo dualismo e a atividade física.
Na seção I abordaremos, com base nos trabalhos de Weiss (1.969), Harman (1.986), e Meier (1.979), a
questão da possibilidade de mudança da imagem do Homem tradicional, buscando identificar os seus sinais
denotativos. Tentaremos salientar o papel do dualismo no endereçamento desta questão dentro da atividade física.
A seguir, na seção II, analisando os trabalhos de Ross (1.986), discutiremos a tese do autor sobre a possibilidade
de existir uma incompatibilidade epistemológica entre o dualismo cartesiano e a prática da Educação Física.
Na seção III, apresentaremos, com base no trabalho de Balkam (1.986) uma discussão sobre os
conceito de 'fitness' e saúde. Iremos considerá-los em suas implicações para o profissional de atividade física,
contrastando com outras contribuições mais recentes sobre o assunto.
Tomamos até o momento o cuidado de discutir a atividade física sem referência à expressão "educação
física". No entanto, utilizaremos a nomenclatura, adotada por Ross (1.986) em sua análise sobre a contribuição
da atividade física na obtenção do conhecimento humano (3) Este autor é um dos pesquisadores da atividade
física que possui interesse nos seus aspectos filosóficos e, neste trabalho (Ross, 1.986) desenvolve proveitosa
discussão sobre o dualismo cartesiano e a aquisição de conhecimento.
Ross (1.986) discute a concepção de "Educação Física" (EF) frente ao dualismo, considerando se esta
educação seria educação-do-físico ou educação-através-do-físico. Critica o fato dos acadêmicos não se ocuparem
com este aspecto da Educação Física como educação "do" ou "através do" físico, seja de uma perspectiva
metafísica ou epistemológica, creditando esta omissão ao fato da EF envolver pessoas. Ele julga que enquanto
não se entender claramente o que é uma pessoa, não se pode ser realmente efetivo como educador (p. 16).
De modo a entender a posição de Ross acerca da distinção acima mencionada entre 'do' e 'através do' físico,
faz-se necessário um breve comentário sobre o desenvolvimento da prática da atividade física a partir dos anos 60.
Resumidamente, pode-se considerar que, na década de 60, as atividades físicas, destinadas ao
provimento e manutenção da saúde, eram baseadas na utilização do exercício puro, trabalhando o corpo, quase
sem referência à mente. De acordo com esta perspectiva, a educação física, na terminologia de Ross, enfatizava a
educação 'do' físico. Na década de 70, observa-se uma mudança neste modelo, com o indivíduo sendo
paulatinamente encarado como pessoa que, consciente ou inconscientemente, processa informação e, através do
seu corpo, vai obter conhecimento. Após os anos 70, esta tendência se fortalece com a teoria do processamento
de informação, na qual o cérebro assume papel relevante.
Atualmente a teoria do processamento de informação perdeu seu lugar central nas investigações dos
teóricos da prática da atividade física, tomando, em parte, o seu lugar a teoria dos sistemas dinâmicos A visão da
educação física passa a ser entendida como educação 'através do' físico, onde a atividade física realizada pelo
sujeito é integral - com seu corpo e mente - e desempenha papel fundamental na obtenção do conhecimento. É
nesse contexto que se situa a argumentação de Ross (1.986), que discutiremos a seguir.
Segundo Norton, é possível estabelecer parâmetros no sentido de se evitar os perigos apontados por
Balkam. Não existe, segundo nosso ponto de vista, contradição necessária entre as duas visões acima: se for
averiguado , tanto para o aspecto de saúde quanto de 'fitness', a prioridade que é dada ao exercício, poderemos
ter a chave para compatibilizá-los. Dependendo se maior valor ao exercício é demandado de agências exteriores
(p. ex. a sociedade: a mídia, os pais e treinadores, o clube ou academia) ou dos valores pessoais intrínsecos
daquele que se exercita, haverá menor ou maior congruência entre o que a pessoa pode realizar com seu corpo e
o que se realiza, para se auferir um estado ótimo, adequado de saúde para esta pessoa. O conceito de saúde
envolve aspectos físicos e psicológicos e, neste âmbito, dentro de certos limites, as pessoas vão variar
extremamente em suas definições pessoais do que seja 'fitness' e saúde. (Para averiguar posicionamentos mais
recentes sobre o tema da atividade física, 'fitness' e saúde, ver Shephard, 1.995; Pate, 1.995, e Dishman, 1.995)
Aqui temos também, segundo nos parece, aspectos lingüísticos determinando o estabelecimento e
manutenção de valores, subjacentes à tomada de decisão, construção e gerenciamento de condutas, envolvidos
nos comportamentos abarcados sob os títulos de atividade física, saúde, 'fitness'. Na medida em que
identificarmos estas implicações para a prática da atividade física, poderemos construir um vocabulário que
contemple eficazmente as necessidades dos usuários e estudiosos.
Sumariando, nesta seção, discutimos a oposição de enfoque que parece estar subjacente nos conceitos de saúde
e de 'fitness', como sendo uma diferença não de grau, mas de tipo. Conforme observamos, estes conceitos referem-se,
segundo Balkam, a domínios de consideração que, pelos seus objetivos implícitos, podem levar a resultados muito
diferentes para os praticantes de atividade física, dependendo de cada situação. Uma tentativa de solucionar estes
diferentes enfoques será examinada na seção seguinte, a qual considerará a possibilidade de se aproveitar os achados dos
praticantes e pesquisadores orientais de EF no estabelecimento de um posicionamento que resolva estas contradições.
Nesta última seção, iremos analisar posicionamentos que advogam a erradicação da visão dualista
tradicional, visando ao sucedâneo da visão holística, unitária do homem. Nossa maneira de ver cientificamente a
realidade, moldada por séculos da doutrina dualista, influencia nossos novos valores à medida que são
adquiridos. Nas palavras de Johnson (1.986):
De certo modo, estas duas definições, originadas de tradições diversas, parecem espelhar maneiras divergentes
de explanar sobre o que seria o fenômeno lingüístico. A primeira retrata linguagem como o sinal denotativo da
humanidade, alçando o Homem-que-fala como superior sobre os demais animais e estabelecendo o meio de afirmação
da pessoa. O valor da linguagem vai permitir estender ao homem um valor do mundo. Este se torna acessível via
estabelecimento de uma consciência de si como ser situado, possuidor de uma ferramenta de conhecimento. "A virtude
da linguagem...é a de constituir...um universo à medida da humanidade" (Gusdorf, 1.970, p. 12).
A segunda definição assume um compromisso científico, na consideração do que é denominado
comportamento lingüístico. "Todo estudo científico deve partir de fenômenos observáveis ou tangíveis para o
cientista. Assim, a linguagem não pode ser vista como um conjunto de significados ou essências a que se referem
as palavras ou sentenças; nem pode ser identificada aos estados de coisas a que se referem as palavras ou
sentenças" (Terwilliger, 1.974, p. 29). Apesar do autor em seguida reconhecer que as palavras ou sentenças
podem ser providas de significado, assevera que estes 'significados' não residem num mundo à parte, como que,
devendo ser levadas em conta, para se compreender o que seja a linguagem.
À parte os aspectos doutrinários de cada escola subjacentes a estas duas abordagens, o fenômeno
lingüístico que elas remetem ocorre em grupos sociais, em comunidades. Dentre uma ampla gama de aspectos que
o fenômeno lingüístico pode denotar, o fato do mesmo ocorrer no seio de agrupamentos humanos confere a ele o
caráter de mutabilidade. Cassirer(1.972) escreve à p. 181 do seu clássico Antropologia Filosófica que "...a linguagem
humana, desde o princípio, esteve sujeita à mudança e à decadência". Mais adiante, coloca que "A mudança -- a
mudança fonética, analógica, semântica -- é elemento essencial da linguagem"(p. 189). Em suma, o uso da
linguagem carrega em si o germe da mudança e, por extensão, da imprecisão, da redundância, da incorreção. O uso
da linguagem deveria ser cercado de cuidado constante, visto a tendência ao erro ser-lhe como que intrínseco.
A questão do correto uso da linguagem se interpõe ao estudioso, mas não é, segundo nos parece,
preocupação basilar para o homem comum. Para este, a crença de pertencer a uma comunidade lingüística
comum o induz à crença acessória de compartilhar os mesmos conteúdos que, se não idênticos, ao menos seriam
suficientemente assemelhados, o quanto favoreça o entendimento presumido entre os demais falantes.
No âmbito da atividade física, a fronteira entre (I)a linguagem utilizada pelos estudiosos, no esforço sistemático
de investigação do movimento (e também, por extensão, a aplicação dos resultados científicos durante a prática
desportiva ou docência) e (II)a linguagem do usuário, do praticante da atividade física revela-se um grande hiato. Aqui
repete-se o problema do uso de vocabulários afeitos a domínios (como que) distintos, como observou Cassirer:
"Os termos da linguagem comum não se medem pelos mesmos padrões daqueles com que
expressamos conceitos científicos. Confrontadas com a terminologia científica, as palavras da
linguagem comum revelam sempre certa vagueza; quase sem exceção, são tão indistintas e mal
definidas que não suportam a prova da análise lógica". (Cassirer, 1.972, p. 214)
O uso da linguagem, inevitavelmente, traz a tendência de sermos imprecisos, não só por causa da
mutabilidade, mas da maleabilidade do seu emprego. Como ferramenta, a linguagem é a melhor criação do
homem, mesmo o que o distingue perante todos os demais animais; no entanto, possui vícios ocultos.
Frege(1.974) fornece um exemplo de como isto ocorre:
"A linguagem não é regida por leis lógicas, de modo que a obediência à gramática já garantisse a
correção formal do curso do pensamento. As formas em que se exprime a dedução são tão
variadas, tão frouxas e flexíveis que facilmente podem insinuar, sem que se perceba, premissas que,
em seguida, são ignoradas, no momento de enumerar as condições necessárias de validade da
conclusão. (...) Não existe na linguagem um conjunto rigorosamente delimitado de formas de
raciocínio, de modo a não se poder distinguir, pela forma lingüística, uma passagem sem lacunas de
uma que omite membros intermediários". (Frege, 1.974, p. 196)
NOTAS
(1) O profissional e o estudioso fazem saber aos outros, de um modo ou de outro, este posicionamento. E,
segundo nosso entendimento realizam isto, primordialmente, através da linguagem.
(2) Vários textos de renomados profissionais discutem os fatos assinalados, como por exemplo: CUNHA, M.S.V. e
(1.991), FELTZ, D.L. (1.987), GAYA, A. (1.991), GREENDORFER, S.L. (1.987), HARRIS, J.C. (1.983),
NEWELL, K.M. (1.990), RAZOR, J.E. & BRASSIE, P.S. (1.990), TANI, G. (1.989), ULRICH, C. & NIXON,
J.E. (1.978). O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte - CBCE - fez publicar em 1.995, através da Editora
Autores Associados, o livro As Ciências do Esporte no Brasil, cujos organizadores são os professores Amarílio
Ferreira Neto, Silvana V. Goellner e Valter Bracht, que traz importantes contribuições sobre o debate em
questão.
(3) Segundo a Dra. Ana M. Pelegrini (comunicação pessoal) o profissional de Educação Física atua no ensino
de primeiro e segundo graus. O profissional da atividade física atua fora do sistema de ensino. Esta
distinção é relevante para o nosso trabalho que focaliza, essencialmente, a prática da atividade física. Ver
também nesta dissertação na Introdução, nota 2
(4) É importante lembrar, ainda que Ross não o faça explicitamente, que Descartes estava preocupado com a
res cogitans, com o ser enquanto ser racional. A res cogitans não se refere a um sujeito histórico ou
psicológico, mas sim ao sujeito epistêmico, racional do conhecimento. Ver nessa dissertação o Dualismo
Cartesiano, capítulo II, seção I.
(5) Ver a reportagem de Harazim, D. e Cardoso, M. na revista VEJA de 10 de Abril 1.996, intitulada 'Olimpíada -
Sangue, dor e suor'. Após o título, lemos: "Esporte é saúde, diz a ciência e confirma a prática. Mas o esporte
praticado por atletas de ponta treinados para vencer ou vencer, como os que irão para Atlanta, pode moer o
corpo humano" p. 48-57. Ver ainda na Folha de São Paulo, ano 76, nro. 24.497, de 28 de abril de 1.996 à p. 4-14
a reportagem de Kraselis, S. 'VOLEI - Lesões preocupam Atlanta: Seleção cura as "bicheiras" dos atletas'. E,
como era esperado nesta Olimpíada de Atlanta, vários danos ocorreram em atletas, apesar de seu extremo
preparo. Veja por ex. o texto de Nunes, J.P. 'Contusões tiraram várias estrelas da competição', no O Estado de
São Paulo de 05 de Agosto de 1.996, Caderno de Esportes, p. E-11. Por fim, mais recentemente, ver reportagem
de Brasil, U. 'Esforço excessivo reduz vida útil de atletas', no O Estado de São Paulo de 14 de setembro de 1.996,
caderno de Esportes, pag. E-8
(6) O autor menciona, em sua obra, as pessoas dos Estados Unidos, mas podemos estender seu raciocínio de
modo idêntico às pessoas (em especial os jovens) de outros países, notadamente onde a influência cultural
americana é bastante acentuada, como o Brasil.
Conclusão
Lucas Vieira Dutra
Vimos que o problema da relação mente-corpo tem um lugar de destaque nas preocupações científicas
contemporâneas, notadamente nas ciências do Homem. Apesar de ser originalmente um tema de interesse filosófico,
recebe atualmente enorme contribuição da Ciência, em especial pelo desenvolvimento de uma neurociência sofisticada.
Em que pese o surgimento de inúmeras escolas, correntes e tendências sobre como seria a relação entre
os processos corpóreos e os processos mentais, os grandes desafios sobre o problema mente-corpo que surgiram
na Grécia clássica ainda permanecem irresolvidos. Origina-se lá a polarização que se observa, quando se
privilegia mais o 'mental' ou mais o 'corpóreo', para se explicar o problema da relação mente- corpo.
Conforme vimos no Capítulo I, a concepção mentalista compreende a tradição Idealista, representada por
Parmênides e Platão. O enfoque 'corpóreo' compreende a tradição Materialista, que teve como representantes Heráclito e
Aristóteles. Sugerimos, no decorrer deste trabalho, que, a grosso modo, os posicionamentos modernos podem ser
entendidos, em grande medida, como 'recorrências' atualizadas que se situam, em termos de tentativas de explicação do
problema mente-corpo, dentro de um continuum que passa por estes dois extremos Idealista e Materialista.
Procuramos mostrar, principalmente no Capítulo II, que o problema da relação mente-corpo, sob o ponto de
vista dualista, vai encontrar seu maior sistematizador em René Descartes, que propõe o debate amparado em suas obras
de grande alcance filosófico, notadamente as Meditações e As Paixões da Alma. Tão vasta é a influência cartesiana, que
seu eco ainda hoje encontra defensores de peso, como (em parte) Popper & Eccles. No entanto, com igual força, o
dualismo é criticado por teóricos que vislumbram, no sistema cartesiano, deficiências que permanecem sem solução.
No Capítulo III apresentamos as idéias de um dos maiores críticos de Descartes, o filósofo inglês
Gilbert Ryle, que aponta erros categoriais, no arcabouço dualista, calcados no uso inapropriado da linguagem.
Através de certa inadequação no emprego de conceitos, os fenômenos corpóreos e mentais resultam serem
tratados como pertencentes à mesma categoria (ou tipo lógico).
Consideramos também, agora no Capítulo IV, que uma área promissora de investigação do problema da relação
mente-corpo é aquela representada pelo materialismo, que preconiza os achados científicos como primordiais, na
definição do que seja esta relação mente-corpo. Em que pese as dificuldades de algumas escolas, como a behaviorista, em
fornecer definições plausíveis sobre o fenômeno, outras abordagens, como a funcionalista, intentam circunscrever o
problema em bases que afastam, em princípio, as limitações que a interação entre a mente e o corpo condicionam.
No Capítulo V, argumentamos que a influência dualista espraiou-se nas áreas que envolvem a prática da
atividade física humana, moldando boa parte das maneiras de ver o fenômeno do movimento e suas
manifestações. Consideramos que o vocabulário empregado, pelos estudiosos e praticantes, parece ser
fortemente impregnado pelo jargão dualista. Sugerimos que uma tentativa de limitar a abrangência de tal
influência é a oriúnda das práticas orientais de atividade física, que procuram averiguar uma expressão mais
'holista' do movimento.
Hoje se sabe que a atividade física está intimamente interconectada na cultura e na sociedade onde
existe. Paralelamente, constatamos que, ao que parece, a linguagem, como expressão cultural por excelência,
constitui um componente importante na delimitação do que seria o problema da relação mente-corpo. Um dos
sub produtos da linguagem, a terminologia, acaba sendo um grande coadjuvante, tanto nos aspectos facilitador
quanto complicador para o entendimento da questão.
Referências Bibliográficas
Lucas Vieira Dutra