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Severino E.

Ngoenha
José P. Castiano

PENSAMENTO ENGAJADO
Ensaios sobre Filosofia Africana,
Educação e Cultura Política

Editora EDUCAR
Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC)
Universidade Pedagógica

MAPUTO, JANEIRO 2011


Ficha técnica
Título: PENSAMENTO ENGAJADO S ENSAIOS SOBRE FILOSOFIA
AFRICANA, EDUCAÇÃO E CULTURA POLÍTICA
Autores: Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Revisão: Eduardo F. Buanaissa
Foto da Capa: José P. Castiano
Capa: José P. Castiano & Sérgio Zimba
Maquetização: Berta Maria Preciosa Samuel
Impressão: DINAME
Tiragem: 1000 exemplares
Nº de Registo:6674/RLINLD/2010
Editora: Editora EDUCAR, Universidade Pedagógica
Publicação: CEMEC, Centro de Estudos Moçambicanos e
Etnociências, Universidade Pedagógica
Maputo, Janeiro 2011
Índice

Nota Introdutória ............................................................................................. 4


Introdução ........................................................................................................ 5
José P. Castiano e Severino E. Ngoenha

Por um Pensamento Engajado......................................................................... 13


Severino Ngoenha ............................................................................................
O “Espírito” da Democracia ........................................................................... 45
José P. Castiano ................................................................................................
Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? ...................................................... 71
José P. Castiano

Filosofia como Engajamento contra os Mitos ................................................ 85


Severino Ngoenha ............................................................................................
Engajamento por uma Educação Glocal ......................................................... 97
José P. Castiano ................................................................................................
A Actualidade de Junod ................................................................................... 110
Severino Ngoenha ............................................................................................
Educação e Pobreza ......................................................................................... 126
José P. Castiano ................................................................................................
Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção ........................................................... 138
José P. Castiano

Mudança Paradigmática na Educação............................................................. 162


José P. Castiano
Vigilância Epistemológica através da Educação ............................................. 193
José P. Castiano ................................................................................................
Concepções Africanas do Ser Humano ........................................................... 206
Severino Ngoenha ............................................................................................
Ensino da Filosofia e Povos Africanos ............................................................ 221
Severino Ngoenha ............................................................................................
O Diálogo entre as Culturas através da Educação .......................................... 238
José P. Castiano
Introdução

Comecemos pela imagem na capa deste livro: trata-se de uma árvore com
cerca de 250 anos de idade, 42 metros de altura, cujo nome local é Mbaua
e o científico é khya myasica. A árvore encontra-se a aproximadamente 80
Km de Quelimane, na localidade de Umbauane, Província da Zambézia em
Moçambique. Por um mero acaso ela ainda está «viva» e frondosa: esteve
prestes a ser abatida em troca de apenas 100 dólares americanos com os
quais um «empreendedor» estrangeiro queria comprá-la de um camponês
que tinha a sua casa por baixo dela. Esta árvore serve de sombra e «sala de
jantar e de estar» ao camponês. O empreendedor pretendia abater a árvore
por causa da madeira. A sua intenção era de a revender na sua pátria lon-
gínqua, algures na Ásia.
A vida desta árvore foi salva por um cidadão moçambicano engajado
que ofereceu ao camponês o equivalente aos 100 dólares... como seu salá-
rio mensal, desde que este não a vendesse e cuidasse dela, como um «bom
selvagem!».
Só assim é que podemos hoje ainda ver esta árvore frondosa a olhar-nos
através dos séculos comparando-se à figura literária Azaro, o rapaz espírito,
na novela do escritor nigeriano Ben Okri, The Famished Road. Azaro, um
menino que atravessa séculos da História da Nigéria «conversando» tanto
com os vivos quanto com os espíritos dos parentes e outros já mortos, sem
crescer e, por isso, a colocar as mesmas perguntas ingénuas e infantis em
todas as épocas; ele indaga sobre o sentido dos episódios históricos que vai
assistindo duma forma que embaraça os adultos vivos e mortos. Esta é uma
imagem similar ao Menino da Trompeta do prémio Nobel da literatura, o
alemão Günter Grass.
Pelo que a acção deste cidadão, que salvou a árvore, representa, de-
cidimos dedicar o que este acto simboliza de patriotismo e africanismo, o
Pensamento Engajado.
6 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Os artigos contidos neste livro foram escritos em circunstâncias dife-


rentes. A primeira: a maior parte deles foi escrita, por cada um de nós sepa-
radamente, em momentos diferentes para responder a diversas solicitações
também do momento, algumas imediatas e outras que exigiram um pouco
mais de reflexão; isto explica uma aparente dispersão dos temas que são
abordados nestes artigos.
A segunda circunstância é talvez a mais importante: no momento em
que escrevemos os diferentes artigos, encontravamo-nos a viver em países
totalmente opostos em termos de desenvolvimento, de consequência, as
nossas preocupações eram diferentes, pois estavam ligadas aos contextos
científicos e culturais em que nos encontrávamos. Uma boa parte de artigos
foi escrita na Suíça e a outra em Moçambique. Naturalmente que somente
este facto pode ter concorrido para o desenvolvimento temático diferenciado.
E, o que ainda poderia parecer pior, não houve troca de pontos de vistas e
nem conhecimento sobre a actividade intelectual que íamos desenvolvendo.
Entretanto, estas diferenças acabaram sendo insignificantes quando
decidimos «juntar» os artigos nesta obra. À medida que cada um de nós
foi lendo os textos aqui contidos, fomos notando, para nossa surpresa, da
existência de temas concêntricos. Em primeiro lugar resultou que os temas
«Moçambique» e «África» estiveram sempre no centro das nossas lucubra-
ções, umas estritamente numa perspectiva filosófica, outras de carácter mais
socio-antropológico: é difícil estabelecer fronteiras disciplinares quando o
pensamento está engajado por preocupações patrióticas, porque é disso que
se trata. Aliás, um dos títulos que veio à ribalta ainda na gestação deste livro
era mesmo «filomoçambicando» porque se tratava de olhar primeiro para o
nosso país, depois para a África, aplicando uma perspectiva filosófica.
A perspectiva particular que a filosofia teima em cultivar é, a nosso
ver, a do engajamento numa reflexão sobre a condição humana, neste caso
concreto, sobre a condição humana dos moçambicanos e dos africanos na
história. Moçambique e África são, portanto, o objecto comum das reflexões
e o portador de uma história heróica na luta pela sua liberdade. Tornava-se
urgente e imperioso compreender a fundamentação, o substrato, a génese
do que podemos considerar o «fazer história» do conjunto de homens e
mulheres que habitaram, habitam e vão habitar Moçambique e África.
Pensamento engajado 7

Cedo constatamos que a condição humana, com que os Moçambicanos e


os africanos entram na história dita universal, é a de escravos, colonizados
e, hoje, globalizados; enfim, como objectos e não sujeitos e fautores da sua
história. O «nosso» pensar filosófico engajado por Moçambique e pela África
empurrava-nos para a emergência (nos seus dois sentidos: de «emergir» e
de «urgência») de duvidar desta história e procurar os fundamentos não de
uma história e condição humana objectivada pelos comerciantes de escravos,
pelos colonizadores e, hoje, pelo globalizador, mas sim pelo sujeito epistémico
moçambicano e africano.
E isto significa, sobretudo, pormo-nos a nós mesmos as seguintes
questões: Existe algum substrato que possa justificar o conjunto de acções
dos moçambicanos e dos africanos? Esse conjunto de homens ou mulheres,
intelectuais ou camponeses, pedreiros ou arquitectos, macondes, tutsis,
chonas, malinkés ou qualquer que seja a dita «etnia» que, no passado, se
levantaram para resistir às tentativas de subjugação, de subalternização, de
escravatura, de colonização, de opressão perpetradas pelos colonialismos,
teriam eles um sonho comum que justificasse serem fautores da sua história
colectiva? E os que decidiram abandonar os seus estudos, a comodidade das
suas famílias, o emprego que custara a ter, o sonho de constituir uma família
na normalidade, para se entregarem a uma luta com armas ou simplesmente
com base em protestos, nas ruas, nas igrejas, nas machambas, nas fábricas,
nas minas e em todo o lugar para libertarem a «terra e os homens» moçam-
bicanos e africanos? Teriam eles um sonho comum que estivesse por trás
desta «união na diferença»? Aliás, somente um sonho muito mais profundo
poderia justificar tal empreendimento, as Independências. Conquistadas as
Independências, o que justifica os anos de escuridão em que, como africanos,
não nos entendemos mesmo usando o mesmo idioma e linguagem? Porquê
uma parte de nós ainda pegou em armas e foi «às matas» largando o doce
sabor das Independências, fazendo alianças estranhas? Como justificavam
estes africanos as suas acções? E hoje? Com a paz poderíamos dizer que já
não há razões para continuar a luta, para o combate: o que nos move, ainda
como países e continente, para as campanhas eleitorais esgotantes e onerosas
insistindo em candidatar-nos ou em formar filas para escolher os «nossos
representantes»? O que nos leva a lutar todos os dias para apanhar chapas e
8 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

combes, todos os anos a lutar por um lugar na escola, o que motiva os «5 de


Outubros» nas ruas do continente, o que leva a alguns de nós mobilizarem-
se, alguns cidadãos das diferentes Beiras a «resistir» formando cordões de
vigilância em volta da «coisa pública»? Como explicar os insultos mútuos
e os intermináveis debates nos Parlamentos em torno das diferentes leis?
O que motiva as pessoas a irem à rua protestar contra mortes macabras de
jornalistas – Carlos Cardoso – economistas – Siba-Siba? Haverá um sonho
comum, por trás dos vários sonhos particulares, que teima em atravessar
épocas inteiras da nossa história, que teima em abrir brechas nas fronteiras
étnicas e geográficas, profissionais, de idade, etc. num sinal de unidade na
diversidade?
De facto, só pode haver um sonho dos sonhos, um motivo dos motivos,
um fim dos fins que sempre que este sonho, este motivo ou fim, alguém
ou alguns ousem pô-los em perigo, levantamo-nos todos e protestamos
pegando naquilo que está ao nosso alcance, e o que as circunstâncias histó-
ricas particulares podem muito bem justificar, como arma de protesto: uma
azagaia, uma AKM, um papel e lápis, um martelo, um pneu, uma proposta
parlamentar. Este fim é a LIBERDADE. Mas trata-se, neste caso, de uma
forma de Liberdade muito específica: A Liberdade de continuar a sonhar
com mais liberdades, a Liberdade de continuarmos a lutar por este sonho.
A consciência deste sonho, da sua importância, levou a que um dos
autores escrevesse no livro Os Tempos da Filosofia: «Se existe um substrato
filosófico que está na origem axiológica de Moçambique – e da África – é
sem dúvida a busca da Liberdade». Por isso, o fim de todo o pensamento
«filomoçambicano» (parafraseando o título inicial deste livro que ficou pelo
caminho) e africano é a Liberdade. Isto quer dizer que, em nosso entender,
o pensamento deve ter uma causa, deve engajar-se por uma causa; o que
justifica uma busca filosófica sobre Moçambique e sobre a África é a Liber-
dade; o que justifica uma acção como sendo justa, é a medida em que esta
mesma acção concorrer para aproximar-nos cada vez mais deste fim, é o seu
engajamento pela Liberdade. Assim, a filosofia africana como uma das formas
de pensamento, deve continuar a buscar respostas novas e contextualizadas
à velha questão platónica do «melhor governo», em fundamentar e lutar por
uma melhor sociedade no futuro. Este – a busca da Liberdade – é um tema
Pensamento engajado 9

concêntrico numa boa parte dos artigos contidos neste livro. É um dos eixos
que escolhemos para o nosso pensamento e engajamento.
Um outro eixo temático subjacente aos artigos apresentados neste livro
é a busca de novas formas de INTERSUBJECTIVACÇÃO. Isto é, um pro-
jecto de «deconstrução» e de «construção» epistémicas da ideia de África.
Enquanto uma deconstrução epistémica, o projecto de intersubjecti-
vacção comporta duas partes: trata-se de deconstruir, por um lado, as con-
sequências que a implantação duma modernidade não negociada em África
comporta como riscos para todo o continente: Continuaremos a olhar para o
Ocidente como a fonte eterna do nosso modelo de desenvolvimento donde
pretendemos copiar as suas instituições, a sua moda, os seus valores, os seus
modelos democráticos, etc.? Substituímos Deus pelo Ocidente, quais camelos
nitzscheanos que se rendem perante os valores decadentes de um Ocidente
moribundo e desorientado? Aceitaremos simplesmente ser eternos escravos/
colonizados/globalizados de forma moderna?
Por outro lado, a deconstrução pretende revoltar-se contra um discurso
que procura nas tradições milenares moçambicanas/africanas uma panaceia,
uma caixinha mágica, donde podemos retirar soluções para os problemas que
África moderna enfrenta; queremos deconstruir um discurso que busca o
nosso futuro, como nação, deliberadamente no passado e, sobretudo, chamar
a atenção para o facto de que o passado e as tradições milenares, interessam
ao pensamento filosófico engajado, somente na medida que este passado
oferece soluções válidas para afastarmos os obstáculos à nossa Liberdade
de continuar a sonhar com a própria Liberdade e a de agir livremente em
função deste sonho milenar.
A intersubjectivacção é, ao mesmo tempo e como dissemos, um projecto
de construção epistémica no contexto africano; a construção integra duas
partes fundamentais; a primeira: procura dizer adeus ao paradigma da dico-
tomia na análise dos fenómenos sociais, políticos, culturais e económicos de
África/Moçambique; ou seja, hoje, não faz muito sentido olhar para a África
como este continente dual onde, por um lado temos a tradição que nos puxa
para trás e, num outro canto, a modernidade esperando pacientemente que a
tradição se decida a avançar, ambos numa luta conflituosa eterna, de vida ou
morte. Pretendemos dizer que esta forma (dicotómica) de olhar para o Ser
10 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

africano e as suas manifestações já não nos satisfaz. É preciso inventarmos


novos conceitos que resumam o tempo filosófico da África de hoje. É uma
África que não pode se deter nesta luta interminável entre o moderno e a
tradição e gastar as suas energias nesta luta. A «crise do muntu» (Eboussi-
Boulaga) deve ser ultrapassada para podermos projectar este mesmo muntu
de uma forma mais libertária porque amarrado pelo deus-moderno e pelo
demiurgo-tradição num debate interminável; muitas tradições já se moderni-
zaram e feições trazidas pela modernidade emigraram para o lado da tradição.
Todavia, um segundo momento da construção da intersubjectivacção
é a necessidade de fundamentar o diálogo necessário entre os pensadores/
filósofos profissionais e os pensadores/filósofos não-profissionais, ditos «sá-
bios» (Odera Oruka). A academia deve reencontrar-se com as culturas num
exercício em que não são as colectividades unanimizadas, mas sim sujeitos
críticos e reflexivos das diversas culturas – entendidas não somente no seu
sentido antropológico (veja o artigo O «Espírito» da Democracia inserido
neste livro) - que entram em debate. Até poderíamos dizer que é um diálogo
de «sujeitos hermeneutas e críticos» do interior de cada grupo cultural de
que os mosaicos africanos são compostos.
Desta feita, temos a veleidade de entender por diálogo intercultural,
não somente como um diálogo limitado à interpretação comum na literatura
filosófica moderna (no sentido vertical de Norte e Sul), como as chamadas
«epistemologias do sul» parece pretenderem significar, mas, para nós, torna-
se inadiável cultivar o sentido horizontal do dito diálogo intercultural, isto é,
entre as culturas africanas. Convém chamar atenção que, para nós, o termo
«cultura», embora faça referência à dimensão antropológica do seu uso, po-
rém não se esgota aí; cultura para nós é empregue na sua acepção filosófica
de «segunda natureza» humana. Neste sentido do termo, a cultura, embora
contendo elementos de cultura material e valores tradicionais, tem a preten-
são de ultrapassar estes elementos do «passado» ao incluir as concepções e
projecções societais da Africa moderna.
Assim, o elemento-chave, o átomo, o centro para este diálogo, já não
seriam as ditas culturas no sentido antropológico, mas sim os sujeitos episté-
micos destas «culturas». São os sujeitos e não as culturas que podem dialogar.
É esta a razão de termos optado pelo termo «intersubjectivacção» no nosso
projecto filosófico. Se nos é permitido inventar um termo, podemos chamar
Pensamento engajado 11

de «inter-sujeito» ao sujeito moçambicano e africano que está engajado em


construir espaços da intersubjectivacção.
Repare-se que decidimos pelo termo «intersubjectivacção» e não, como
seria de esperar, «intersubjectividade». Assim procedemos porque enten-
demos que, já agora, os inter-sujeitos estão em «acção», que para o tipo de
praxis filosófica com a qual estamos comprometidos, a acção é fulcral. E a
acção do filósofo deverá buscar e fundamentar novos espaços que podem
ser criados para o exercício das liberdades individuais e colectivas. Embora
procurando encontrar outros espaços onde o diálogo entre os inter-sujeitos
possa ser possível, não é, no entanto, por acaso que o espaço de intersubjec-
tivacção privilegiado e por excelência, na maior parte dos artigos que este
livro contém, seja a educação. A educação é o espaço, quanto a nós, onde
a coexistência, já agora, entre o discurso moderno e o discurso tradicional,
poderão entrar num debate argumentativo, sem contrições à liberdade de
expor os sonhos particulares, e sobre problemas que ambas, porque con-
temporâneas, enfrentam.
Enfim, digamos que vemos a filosofia da intersubectivacção não somente
como um complemento necessário à filosofia que tem a Liberdade como
paradigma (paradigma libertário), mas sim e sobretudo como condição fun-
damental para a realização e o exercício das liberdades.
No fundo, a teleologia da reflexão filosófica que coloca a Liberdade como
paradigma axiológico das nossas acções e, por trás do projecto da intersubjec-
tivacção, está o engajamento pela emancipação da própria filosofia africana.
Quer o paradigma libertário quer a intersubjectivação, são, no fundo, partes
intrinsecamente ligadas no projecto da emancipação da filosofia africana de
limitar-se em ser unicamente «africana», e poder constituir-se em uma parte
importante da filosofia universal.

José P. Castiano e
Severino E. Ngoenha
13

POR UM PENSAMENTO ENGAJADO

Severino Elias Ngoenha

As análises sobre as votações moçambicanas de 1995 foram unânimes


em afirmar que nós fomos votar pelo fim da guerra. A adesão massiva das
populações às eleições da primeira legislatura da segunda República foram
interpretadas em uníssono como sendo uma acção popular orientada para
sancionar e legitimar o fim do conflito bélico. Se aceitarmos este facto como
postulado de base da nossa análise, temos que admitir, a priori, que a primeira
legislatura cumpriu com o mandato que lhe foi confiado. Durante os cinco
anos que se seguiram às eleições, os deputados da Frelimo e da Renamo
respeitaram o mandato que lhes tinha sido confiado pelos eleitores. O Go-
verno governou e a oposição tentou fazer oposição no respeito pelos papéis
democráticos que lhes tinham sido confiados, sem nunca exceder nas suas
prerrogativas, mas, sobretudo, respeitando a necessidade de prosseguir o
conflito que os opunha em termos políticos e no respeito de um certo número
de regras ditadas pelos acordos de paz e pela nova constituição.
Nesse mesmo período, o processo democrático e de reconciliação foi
acrescido e alimentado pelas primeiras tentativas de criação do que co-
mummente se tem chamado de Sociedade Civil: nasceram novas formações
políticas, mas sobretudo organizações cívicas e sociais; as igrejas começaram
a participar em actividades de carácter cívico, educativo, sanitário; nasceram
organizações de jovens e de mulheres; surgiram universidades privadas,
imprensa independente e liberdade de opinião. A isto se deve juntar o
crescimento económico (PNB), o restabelecimento da rede económica e
comercial, o lançamento do processo de desminagem, a reconstrução da
rede de comunicações, a luta contra o que se chamou de pobreza absoluta.
Uma vez mais, se fizermos fé naquilo que segundo os analistas políticos
era o mandato do povo, a primeira legislatura da segunda República cumpriu
quase integralmente com o mandato que lhe foi confiado. Contudo, dois
14 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

problemas cruciais surgiram durante a legislatura e merecem uma atenção


especial da nossa parte: um económico e outro político (a organização dos
poderes públicos).
No decorrer da legislatura nasceram nas diferentes comunidades moçam-
bicanas novas exigências e problemas, ligados ao processo da transformação
em curso. Isto não anula em nada o a priori positivo da primeira legislatura,
mas os actores políticos e a qualidade de uma legislatura não se podem limi-
tar ao cumprimento linear e lato do mandato popular, por mais importante
e substancial que a paz possa ser. A legislatura e os actores políticos devem
também ser julgados pela sua capacidade de interpretarem as necessidades
«movediças» das populações que, por sua vez, dependem de mutações sócio-
económicas e mesmo epocais e históricas que bruscamente invadiram a vida
das populações.
Neste contexto de aceleração histórico-temporal, aquilo que no meio dos
anos noventa era o único objectivo das populações - a paz ou pelo menos em
nome da qual se mobilizaram para votar - sofreu uma metamorfose enorme,
ligada à dramática mudança da estrutura económica do país.
No decorrer da primeira legislatura, o elemento paz, sem nunca perder
a sua importância e primordialidade, foi rapidamente igualado e mesmo
ultrapassado pelos imperativos económicos ligados às mudanças radicais
que se operaram na gestão do país e na sua organização social. O período
da primeira legislatura foi marcado pela inversão da tendência económica
de natureza distributiva e planificada e de toda a dimensão social que a
acompanhava, para uma orientação individualista, concorrencial e toda a
dimensão de violência social e de competitividade que a caracteriza. Isso
trouxe consigo uma mudança radical, não só na organização económica, mas
também na estrutura social e relacional entre os cidadãos.
O período da primeira legislatura coincide com o incremento dos in-
vestimentos estrangeiros, sob a forma de empréstimos, com as consequentes
imposições de políticas por parte dos organismos internacionais e países
estrangeiros. O país acumulou dívidas colossais e foi obrigado a proceder à
privatização de infra-estruturas que, até então, tinham simbolizado parte da
identidade nacional (basta pensar na indústria do caju). Não faço um juízo
de valor. Constato simplesmente que o povo não só não era consultado na
Pensamento engajado 15

transformação radical da sociedade e na privatização dos espaços de impor-


tância vital e simbólica. O que sob o ponto de vista político me parece pro-
blemático é que o povo não tinha nenhum mecanismo de participação, nem
sob a forma de referendo, nem pressionando os seus eleitos a defenderem
os seus interesses e a sua visão da sociedade.
A este défice jurídico e constitucional deve-se acrescentar as dificuldades
nacionais em termos de comunicação (televisão, rádio, jornais), o nível de
analfabetismo elevado e, ainda mais importante, a discrepância entre as con-
cepções político-culturais das populações e o tipo de democracia estabelecido.
A questão filosófica que se põe é a seguinte: como fazer com que a de-
mocracia não se transforme num jogo de elites, que a maioria da população
possa, de facto, participar com conhecimento de causa, não só através de um
boletim de voto de cinco em cinco anos, como uma assinatura de cheque em
branco para as elites políticas que se sentem legitimadas a fazer privatizações
que vão em detrimento do povo que nelas depositou confiança?
Se quisermos ser mais explicativos podemos dizer que três níveis de
problemas manifestaram-se no desenrolar-se mesmo da primeira legislatura:
o papel do novo estado moçambicano na nova sociedade moçambicana, a
questão da representatividade e a soberania nacional face à comunidade
internacional.

O Papel do Novo Estado Moçambicano na Nova Sociedade


Moçambicana
É de uma evidência a la palisse que a natureza do Estado moçambicano
da segunda República é radicalmente diferente da natureza do Estado da
primeira República. Na primeira República, os fautores e os executores da
política estatal conheciam exactamente o lugar de cada um e o que tinham que
fazer. Podemos dizer que o Estado moçambicano, pela sua natureza libertária
e socialista era, não direi providencialista, mas distributiva. O papel de cada
funcionário do aparelho do Estado, desde o ministro até ao servente de uma
escola primária, era estar ao serviço do que se acreditava ser o interesse dos
moçambicanos. O Estado moçambicano era implacável contra tudo que,
de longe ou de perto, se parecia com a corrupção, desvio de bens públicos,
tentativa de enriquecimento pessoal, acumulação individual, etc.
16 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Os valores moçambicanos eram contar com as próprias forças, o amor


pelo trabalho, o direito à escola, à educação, à saúde; era o facto de que
éramos socialmente responsáveis uns pelos outros; era a luta contra todas
formas de discriminação, quer fossem na base da raça, da etnia, da tribo, da
região origem, etc. Estar ao serviço do nosso povo era um valor, participar
na construção de Moçambique através do trabalho e dedicação era um valor.
Estes valores constituíam o essencial daquilo que era ou devia ser o Estado.
Esta era a maneira através da qual o Estado estava (ou pretendia estar) ao
serviço das populações.
Mas apesar das intenções excelentes, esse Estado era habitado por con-
tradições intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos prece-
dentemente anunciados. A dinâmica participativa estava subordinada a uma
ideologia unilateral de uma única família política, que se arrogava deter a única
visão justa para a construção do país. Essa ideologia política é compreensível
no quadro da divisão do mundo que então se vivia, apesar de a Frelimo se ter
visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida
do bem fundado da sua «opção» ideológica. Aliás, esta tese encontra uma
confirmação na adesão sem reservas da maioria da classe política de esquerda
às teses e às posições ultra-liberais que repentinamente irromperam na vida
social moçambicana durante o início da segunda República.
De um dia para o outro as coisas mudaram. Era como se, de repente e
sem aviso prévio, nos encontrássemos diante de uma passagem de nível sem
guarda. Nesta mudança que corresponde à mudança das relações de força na
política mundial, a sociedade moçambicana viu-se, de um dia para o outro,
radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma economia
selvagem. Não digo liberal, digo selvagem, porque o liberalismo tem regras.
Por exemplo, se o pressuposto é a livre iniciativa dos indivíduos e a possibili-
dade de concorrerem uns com os outros (Bentham), a situação moçambicana
não se prestava a isso, quer porque as populações não tinham formação e
informação, quer porque não tinham os meios financeiros necessários para
entrarem neste tipo de economia. Abandonar as populações de um momento
para o outro ao volante de um porsche que vai a duzentos quilómetros à hora
sem lhes terem previamente ensinado a conduzir, significava condená-los
inevitavelmente ao desastre.
Pensamento engajado 17

Ora, a mudança política e económica comportou uma mudança nos


métodos de governação e nas prestações dos poderes públicos. O Estado da
primeira República pecava pela sua pan-presença. Ele decidia pela educação,
pela saúde, pela moral pública e individual, pela justiça, pelos valores indi-
viduais e colectivos. E para isso combatia os alicerces individuais e culturais
dos indivíduos e dos grupos.
A segunda República tomou uma postura inversa. Ela peca pela sua
ausência. As populações não sentem no Estado – desde as instâncias mais
elevadas até ao servente de uma escola ou dum hospital – «uma pessoa jurídi-
ca» que está presente e ao seu serviço. O Estado ficou «dólar-crático». Tudo
se faz em função do rendimento, do ganho, das mordomias. O funcionário
do Estado transformou-se de servidor público em servidor de si próprio,
instrumentalizando o privilégio que o seu lugar lhe concede. O funcionário
não serve: serve-se. Esta situação está em discrepância com a ideia que as
populações fazem de um funcionário. A ideia que as pessoas têm de um
professor é de um homem que é uma referência para as populações, não só
pelo seu saber, mas também pela sua conduta moral. Ver um professor a
vender notas e provas de exame é simplesmente escandaloso. Ver o hospital
transformado num comércio ia contra a ideia que as populações tinham da
deontologia médica, mesmo sem conhecerem o juramento de Hipócrates.
Apesar do famoso crescimento económico e dos índices do PNB, a
situação das populações piora, a qualidade do ensino piora. Aos jovens dá-
se a consumir uma cultura feita de telenovelas e de slogans tipo «2M nossa
tradição nossa cultura», ou então «a nossa cerveja, a nossa maneira de ser e
de estar». O tratamento nos hospitais depende de dólares, a boa escola custa
caro, todas as coisas a que as populações de baixo não se podem permitir.
Isto põe um problema enorme de justiça, a nível distributivo e a nível de
sanção jurídica.
Um dos primeiros sinais da ausência do Estado foi dado quando as
populações começaram a fazer justiça com as próprias mãos. Muitas vezes
queimava-se um miúdo que roubara para comer, quando funcionários do
Estado e outros desviavam coisas muito mais consistentes - esvaziaram lite-
ralmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do Estado
a estrangeiros ou que têm 500 mil dólares para comprar apartamentos - e
18 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

eram indemnes a qualquer sanção. Esta violência social, porque é disso que
se trata, tem que ser analisada em todos os seus parâmetros. As populações
começaram a ser violentas. Podemos dizer que os miúdos da rua são violen-
tos, há assassinatos na cidade, assaltos à mão armada que culminaram em
violência-espectáculo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Ma-
cuácua. Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dólar-cracia»: a
instauração do dólar em valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dólar»,
justifica todos os meios.
Então, ao mesmo tempo que o número e a qualidade de carros e casas
de luxo aumenta na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilândia
e mesmo Portugal aumentam, que se multiplicam as viagens para Dubai,
para bronzear-se no Estoril ou para o Carnaval no Rio, o número de pobres,
de miseráveis não cessa de aumentar. O número de doentes que morrem de
malária devido à falta de saneamento de meio aumenta.
Assim, a segunda República muito depressa oscilou da democracia à
«dólar-cracia». Com a passagem da primeira à segunda República, deitou-se
fora a água suja e o bebé. Valores verdadeiros para qualquer sociedade foram
negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos.
Durante o período da primeira República nós cantámos que a linha
de ordem do nosso povo era a unidade, o trabalho e a vigilância. Podemos
perguntar se estes valores não têm todo o seu lugar no Moçambique de hoje.
Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime político? A
unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo
e o racismo não constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O
trabalho, o facto de contar com as próprias forças, num mundo de assistidos
e objecto das ajudas e caridade internacional não é um valor a cultivar? A
vigilância contra as divisões, com o perigo de recair no colonialismo, na
dominação não é um valor a cultivar e a defender?
De facto, a falta desta vigilância condena a maior parte da população,
os mais fracos, a processos que recordam muito o que era a época colonial,
mas sobretudo distância entre o Estado da sociedade. Vale a pena recordar o
debate português1 em volta da Sociedade de Geografia no fim do século XIX,

1
BIGNASCA, A., La Singolarità terribile del Colonialismo Portoghese: il Dibattito
della Società di Geografia. Roma: Armando, 1971, pp.71-82.
Pensamento engajado 19

depois do ultimato que a Inglaterra impôs a Portugal. Homens como Eça


de Queirós pensavam que Portugal deveria desinteressar-se dos «selvagens»
que viviam nas colónias. Aliás, Portugal tinha-se mostrado mau colonizador
e isso só lhe tinha valido frustrações e humilhações, desde a perda do Congo
a favor dos belgas até ao ultimato britânico.
Contra estas teses, jovens como António Ennes defendiam que era
necessário ter colónias rentáveis como moeda de troca para melhor integrar
a Europa. Para isso, Portugal teria primeiro que pacificar as suas terras,
controlá-las com militares e com a administração, e assim poderia dizer aos
parceiros: tenho terra para cultivar, militares para defendê-la e, sobretudo,
pretos para trabalhá-la. Era o início do trabalho forçado que acabou substi-
tuindo a recém extinta escravatura pelo chibalo que faz da colonização por-
tuguesa uma das mais cruéis e os povos de Moçambique dos mais sofredores.
Quando vejo certas práticas a que se prestam certas elites moçambica-
nas, como acordos de parceria com empresas ou indivíduos sem escrúpulos,
acordos que não têm em conta os interesses das populações, pergunto-me
se o discurso é diferente do discurso de António Ennes. Mas, sobretudo, o
risco maior é condenar as populações mais fracas do nosso povo ao novo
chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade.
Aliás, não é a primeira vez: todo o sistema de dominação do nosso povo
contou sempre com a cumplicidade de grupos entre nós. A escravatura foi
facilitada por certas práticas internas pela cobiça e sobretudo pela falta do
sentido histórico, pois quando o momento chegou, vendedores e vendidos
tornaram-se todos escravos e colonizados.
A falta de sentido histórico seria pensar que nós, pequenos grupos,
constituiríamos as excepções de um processo neocolonial no qual somos ou
podemos ser cúmplices. Se a questão é dinheiro, então somos mais baratos que
os nosso predecessores. Temos que lembrar que uma espingarda no século
passado era mais difícil de construir que um mercedes hoje. Se temos que
nos vender para obter um carro, temos que pensar não só na traição histórica
para com os nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no
preço dessa mesma traição.
Podemos considerar que a Frelimo traiu a sua causa? Aquela mesma
Frelimo que era constituída por rapazes e raparigas que estavam dispostos
20 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

a morrer todos os dias durante dez anos em nome da liberdade do nosso


povo? O que é que aconteceu?
Não foi, em primeiro lugar, a Frelimo que mudou. Há um facto que
ninguém quer reconhecer, mas que é fundamental para entender o Moçam-
bique de hoje e as circunstâncias das nossas vidas e acções. Se raciocinarmos
em termos libertários podemos afirmar de uma maneira apodíctica que face
à intransigência e ao anacronismo histórico do fascismo português, nós, co-
lonizados e em busca da liberdade-independência, fizemos uma guerra justa
e ganhámos. A guerra não foi ganha militarmente, mas o terreno de batalha
não era esse. O terreno de batalha era político e foi um acidente histórico de
responsabilidade portuguesa que obrigou Moçambique e as outras colónias
portuguesas - fossem a excepção no contexto africano - a pegar em armas.
Mas com o 25 de Abril essa anomalia histórica foi corrigida e abriram-se as
portas para as independências políticas das então colónias portuguesas.
Na Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica defendi que
a Frelimo não escolheu o comunismo: foi-lhe imposto por um processo
histórico-político. Agora, tristemente, tenho que defender que o liberalismo
selvagem em curso não é também resultado de uma escolha, mas da derrota
na segunda guerra. De facto, os objectivos libertários da primeira guerra
foram derrotados na segunda guerra.
O período que vai de 1945 até 1989, como já se escreveu enormemente,
foi dominado pelo conflito ideológico que opôs o bloco chamado de esquerda
ao bloco de direita. Nós entramos neste conflito pela janela da nossa vontade
de nos libertarmos do colonialismo. A prova da nossa participação periférica
está no facto de termos parado com a guerra no momento mesmo em que
os generais R. Reagan e M. Gorbatchov assinaram o armistício do fim das
hostilidades. A guerra terminou com a vitória do bloco da direita. Dado que
nós estávamos no bloco da esquerda, perdemos. Temos que ter a coragem
de dizer que se ganhamos a guerra de libertação (nessa luta nós estávamos
no sentido da história, contra o anacronismo histórico do colonialismo por-
tuguês), perdemos a segunda guerra.
O fim de todas as guerras é concluído com «actos cívicos» nas quais
as partes se encontram, com aparente cortesia e mesmo cordialidade, bem
vestidas e engravatadas para o processo de diálogo. Na realidade, trata-se de
Pensamento engajado 21

um encontro humanamente duro e humilhante para os vencidos, durante o


qual os vencedores ditam as suas condições.
No panorama geral do conflito da guerra fria, a principal discussão
do armistício fez-se em Helsínquia e teve como protagonistas Reagan e
Gorbatchov. Assinado o documento principal, deixou-se que a resolução
de detalhes ficasse a cargo dos burocratas ou dos oficiais subalternos, mas
sempre no espírito da carta fundamental. Isto explica que os acordos de paz
moçambicanos tenham sido assinados numa insignificante comunidade de
Roma sem tradição nem prévia experiência política.
Os vencedores da guerra decidiram que em Moçambique, a Frelimo
renovada – nome que nunca tomou, mas devia ter emprestado da Unita
renovada – fosse a melhor força política para governar Moçambique. Com
efeito, a natureza do capitalismo é não ter tempo. Dado que a estrutura ad-
ministrativa de Moçambique tinha sido escangalhada e recomposta por esta
força política, para o funcionamento eficaz e imediato de um liberalismo que
em termos de eficiência e cumprimento de prazos e datas é mais rigoroso
que os sistemas de esquerda, o melhor governo seria o da Frelimo. Dava-se
a Frelimo o mandato de governar com ordens precisas: utilizar as próprias
estruturas para escangalhar o munus socialista e colectivista que ela mesmo
tinha criado, introduzir o capitalismo contra o qual tinha lutado – sistema
que tinha sido historicamente responsável pela submissão dos moçambicanos.
Aceitaria a Frelimo destruir o que ela mesma tinha construído? Aceitaria
dizer às pessoas que tinha educado que o homem novo agora era o capitalista,
que a palavra de ordem era acumulação individual, era a exploração do mais
fraco? Aceitaria a Frelimo dizer que, afinal de contas, o roubo e a desones-
tidade eram valores? Aceitaria a Frelimo transformar as funções estatais de
serviços para o maior número em lugares de apropriação e de acumulação?
Aceitaria a Frelimo destruir a sua lealdade com os camponeses, com os com-
batentes da Independência?
A bola parecia estar no campo da Frelimo: ou ela queria permanecer
coerente consigo própria e, então, reconhecia a sua derrota e retirava-se, ou
então ela se metamorfoseava e tornava-se uma «Frelimo renovada», atacando
o poder a todo o custo. Existe, teoricamente, a possibilidade de a Frelimo ter
aceitado a sua nova condição como forma de resistir, na medida do possível,
22 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

aos ditames dos vencedores a fim de continuar a defender os seus valores


originais.
Então a Renamo estava condenada a ser oposição? A nova missão do
pequeno batalhão era ser uma pistola apontada à têmpera da nova Frelimo,
governante. Se a Frelimo se comportasse bem, a Renamo continuaria na opo-
sição quer ela quisesse ou não. Se a Frelimo se comportasse mal, a oposição
premiria o gatilho e a Frelimo saltaria. Só que a Frelimo mostrou-se mais
liberal do que era previsível. Isto leva-me a pensar que muitos socialistas da
primeira República não o eram por convicção, mas por imposição ou por
oportunismo político.
A partir do momento em que a Frelimo jogava bem o jogo liberal, a Re-
namo transformava-se num espantalho que só serve para afugentar pássaros.
Mas as duas questões de fundo são: primeiro, a Frelimo ultraliberalizou-se
estrategicamente como forma de manter o poder (e servir os interesses dos
moçambicanos) ou como estratégia de enriquecimento de um certo número
de indivíduos? Se foi uma estratégia para conservar o poder, que fim tem o
novo poder e Governo da Frelimo? Segundo: a comunidade internacional,
virando as costas à Renamo e seguindo a estratégia da Frelimo, levanta o
problema do futuro da democracia e da sua legitimação em Moçambique.

A Questão da Legitimação
A participação nas eleições de 1994, mais do que legitimar as novas forças
políticas em presença e a nova governação nacional, era um assentimento
que ia mais em direcção da necessidade de terminar com a guerra e todas
as consequências que ele comportou em termos de acentuação da pobreza,
da fome, da imigração das populações do campo para a cidade, etc. Mas,
de nenhuma maneira, uma legitimação política. Com efeito, ninguém pode
legitimar o que não conhece, e nenhuma legitimidade é possível (legítima)
se ela não parte e não se alimenta do substrato mental, cultural e filosófico
do povo que deve supostamente governar e representar.
Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cida-
dãos moçambicanos não possuem os apetrechos intelectuais necessários
para participarem, e por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos
Pensamento engajado 23

paradigmas respondem a pressupostos culturais e históricos ocidentais. Por


outro lado, todos os trabalhos de história e de antropologia levados a cabo
sobre as diferentes culturas moçambicanas2 mostram que a participação
popular na coisa pública e os diferentes sistemas de governação das culturas
nacionais, diferem em toda a medida do sistema constitutivo e da organização
dos poderes públicos actuais.
Todavia, e não obstante as afirmações precedentes, as eleições políticas
de 1994 marcaram o início de uma nova legitimidade política, não fundada
sobre a tradição ou sobre a força das armas, mas pelo princípio da soberania
popular.
A nossa questão será justamente de nos interrogarmos quanto ao estatuto
político desta nova legitimação.
Em Moçambique, o nascimento do projecto nacional está indissocia-
velmente ligado aos nomes de Eduardo Mondlane3 e da Frelimo. As lutas
dos povos africanos pelas próprias liberdades, na qual se situa o projecto
de Eduardo Mondlane e da Frelimo, inscreveram-se em dois movimentos
históricos opostos. O primeiro inscrevia-se e fundamentava-se no substrato
cultural dos diferentes povos autóctones, o segundo tem o seu fundamento
na história do movimento Pan-africano que nasceu com os negros da diás-
pora: República das Palmeiras no século XVII no Brasil, Haiti de Toussant
Louverture no século XVIII, os marrões da Jamaica no século XIX, mas,
sobretudo, as metamorfoses históricas e culturais dos negros nos EUA:
Os primeiros movimentos eram culturalmente homogéneos, tinham as
suas delimitações geográficas e políticas bem definidas. As fronteiras traça-
das ou reconhecidas por Berlim eram para os diferentes povos, entidades
geo-políticas demasiado extensivas, mas sobretudo não correspondiam às
dinâmicas políticas próprias dos diferentes grupos nacionais. As entidades
políticas forjadas pelos povos africanos (Estados, Impérios) não paravam
sempre nas fronteiras étnico-tribais, bastando pensar no império de Gaza
ou no Império do Monomotapa. Contudo, a extensão de uma identidade
política a grupos culturalmente heterogéneos era acompanhada por uma
série de medidas de inserção jurídica, económica, política e cultural que se
inscreviam nas dinâmicas culturais autóctones. Todavia, nenhuma destas
2
Cfr. Documentos de Antropologia Moçambicana. Lisboa, 1996.
24 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

dinâmicas correspondia nem geográfica, nem politicamente àquilo que os


portugueses chamaram Moçambique.
Se a entidade Moçambique era (como, aliás, todas as colónias africanas
pós-Berlim) demasiado grande sob o ponto de vista geográfico e culturalmente
heterogénea em relação às dinâmicas políticas autóctones a Moçambique e a
África, ela era, ao contrário, demasiado reduzida em relação aos objectivos
primeiros do pan-africanismo que prospectava uma unidade política de
todos os negros do mundo no solo africano (Delany, Marcus Garvey). Os
objectivos do movimento Pan-africano foram-se reformulando sem nunca,
contudo, renunciarem ao objectivo de unir politicamente a África, como
testemunha a obra política e literária de K. Nkrumah Africa Must Unit, ou
mesmo os esforços da criação de uma África federal de Dubois ou, ainda,
de Patrice Lumumba.
Eduardo Mondlane, como K. Nkrumah ou Azikiwe, pertence por forma-
ção e convicção ao movimento Pan-africano cujas ideias tiveram um impacto
considerável nos anos em que ele viveu e estudou nos EUA. Contudo, a acção
política de Eduardo Mondlane e da Frelimo foi precedida e condicionada
por dois factos políticos e históricos importantes: a partir do congresso Pan-
africano de Manchester de 1945 fala-se abertamente e, pela primeira vez, da
questão de autodeterminação dos povos africanos. Mas ao mesmo tempo,
o congresso observou que «as divisões arbitrárias e as fronteiras territoriais
delimitadas pelas potências coloniais constituem outras tantas medidas de-
liberadamente tomadas para impedir a unidade política da África».
Se a questão da independência estava posta sem equívocos, restava deli-
mitar o quadro geopolítico no qual estas independências se deviam inscrever:
etnias, antigos Estados africanos, zonas economicamente viáveis, ou espaços
coloniais delimitados em Berlim?
O co-presidente do congresso de 1945, Dubois (com Carter G. Woo-
dson, fundador da Association for the Study of Negro Life and History
em 1915) foi também um dos promotores da redescoberta da História, das
tradições e da cultura da África pré-colonial. Contudo, ele pensava – como,

3
Cfr. NGOENHA, S.E., Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.14.
Pensamento engajado 25

aliás, todos os líderes políticos da época – que a África fragmentada não


podia, por si só, na sua própria terra, tomar claramente consciência da sua
unidade a não ser sob a forma de uma muito vaga comunidade de origens
e de tradições, consideradas num sentido muito geral. De facto, a noção de
Pan-africanismo era afectada por um alto grau de abstracção em relação à
realidade. Tratava-se mais de uma doutrina cultural (ou do reconhecimento
de uma unidade espiritual entre negros, como dissera Langston Hughes)
do que de uma verdadeira ideologia política. Foi o que fez Azikiwe com o
seu Renascent Africa de 1937, Césaire no Cahier d’un retour au pays natal,
a revista Presence Africaine, ou ainda Cheikh Anta Diop com as Nações
Negras e Cultura.
Por falta de uma ideia clara de unidade e mesmo de condições práticas
para que essa unidade fosse possível, começou-se a falar de unidades regio-
nais. Mas uma vez mais tinha que se definir os contornos políticos e jurídicos
de tal unidade. E, sobretudo, definir-se se tal unidade devia preceder ou vir
depois das independências das delimitações individuais daquilo que eram
os Estados coloniais. Este assunto esteve no centro do debate político entre
os anos 1957 e 1959.
Em 1961, um ano antes da fundação da Frelimo, a África independente
divide-se claramente em dois grupos: o grupo de Monróvia e o grupo de Casa
Blanca. Contudo, a ideia que prevalece é que a unidade que é preciso realizar
neste momento não é a integração política dos Estados Africanos soberanos,
mas a unidade das aspirações e da acção, do ponto de vista da solidariedade
social africana e da identidade política.
O pan-africanista e funcionário das Nações Unidas, Eduardo Mondlane
sabe, ao fundar a Frelimo, que o quadro geopolítico das liberdades (inde-
pendências) africanas por vontade da ONU, guiada pelas mesmas potências
que em Berlim tinham, cinquenta anos antes, dividido o continente sem
se preocuparem nem com as culturas nem com os homens negros que nós
somos, com a conivência dos novos dirigentes africanos, deve ser o espaço
da colonização europeia, portanto portuguesa, para Moçambique. Isto quer
dizer: do Rovuma ao Maputo.
Ora, neste espaço geopolítico tinham precedentemente surgido for-
mas de nacionalismo que, sem serem o resultado de uma evolução política
26 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

interna às culturas locais, inscrevia a sua dinâmica nos substratos culturais


locais. Não há dúvida que sob ponto de vista da evolução da política mun-
dial, Mondlane teve razão em criar a Frelimo, como meio de dar força e
legitimidade internacionais – no sentido da ONU e, a partir de 1963, da
OUA – às reivindicações dos povos que viviam no espaço geográfico que se
estendia do Rovuma ao Maputo. Contudo, havia aqui uma transferência de
legitimidade. A Udenamo, Unamo e Manu, reivindicavam a sua legitimidade
nos povos respectivos. A Frelimo que, justamente, não queria nem podia ser
um simples somatório dos três movimentos nacionalistas que o precederam,
nem sequer era o somatório dos grupos etno-tribais de Moçambique, não
podia imediatamente receber a sua legitimação do interior e, portanto, das
dinâmicas político-culturais interiores aos povos de Moçambique.
Quanto ao exterior, a Frelimo podia receber uma caução, mas não le-
gitimação do Pan-africanismo que, entretanto, tinha sido redimensionado e
mesmo isolado com a elevação do espaço colonial a quadro geopolítico para
a proclamação das independências. A divisão de 1961 e a criação da OUA
eram, de facto, uma vitória das antigas potências coloniais. E, paradoxalmente,
eram a ONU e a OUA a legitimarem a Frelimo como movimento de libertação
de Moçambique, e mais tarde, como representante do povo moçambicano.
Se as independências se devem inscrever no quadro geopolítico colo-
nial, elas não se podem inspirar culturalmente nem nas lutas autóctones dos
diferentes povos de Moçambique e das suas evoluções e debates políticos,
nem sequer se podem inspirar na dinâmica histórica do Pan-africanismo. A
acção de Eduardo Mondlane e da Frelimo deve geopolítica e juridicamente
inspirar-se e, de qualquer modo, dar continuidade ao trabalho de centraliza-
ção levado a cabo pelas autoridades coloniais portuguesas e, por outro lado, a
partir do Partido transformado em Estado depois da independência, criar uma
Nação à imagem e semelhança da Europa. Aqui surgem duas dificuldades:

a) Os portugueses para centralizarem a governação dos povos de Mo-


çambique, não só não legitimavam o seu poder a partir dos povos
de Moçambique, mas violavam sistematicamente os seus direitos
mais elementares. Se a Frelimo-Estado de Moçambique seguia esta
governabilidade tinha ou que dialogar e fazer dialogar os diferentes
Pensamento engajado 27

povos e culturas nacionais, o que era tecnicamente impossível, tendo


em conta sobretudo o factor tempo e os imperativos regionais; ou
então, com uma legitimação proveniente do exterior, impor aos povos
de Moçambique culturas políticas estrangeiras. Mas, se assim fosse,
em que medida a imposição da Frelimo seria na prática diferente da
imposição dos portugueses? Em que medida a governação da Frelimo
seria menos colonialista em relação às práticas culturais dos diferentes
povos e culturas locais?

b) A história social e política da Europa, que doravante servia de mo-


delo, tinha visto nascer o Estado a partir das Nações. Ora, em que
medida o Estado de Moçambique estaria à altura de criar a Nação,
tarefa primordial que lhe foi confiada pelo Partido?

A missão histórica que foi da Frelimo – criar uma nação moçambicana


– partiu de movimentos políticos, culturalmente circunscritos (Udenamo,
Unamo e Mani), mas teve que se forjar logo depois uma ideologia unitarista.
Depois da independência, o postulado de unidade nacional, que em si mesmo
não é nem pode ser discutível, implicou também uma governação a partir
de cima. O primeiro paradoxo era que o governo legitimava o seu poder no
povo, mas governava contra os pressupostos jurídicos das culturas nacionais.
O segundo paradoxo era que a legitimação teórica e histórica dos pressupostos
políticos de governação respondia a pressupostos europeus: recordemo-nos
que o marxismo é filho de um debate histórico próprio da cultura ocidental.
Estes paradoxos e mesmo a desconsideração das culturas nacionais no
processo político e de governação foram, historicamente, o preço que tiveram
de pagar as culturas nacionais pela edificação do Proto-Estado moçambicano.
A Nação democrática que se auto-proclamou em 1994 novo actor histó-
rico da vida política e social moçambicana quer, como afirma a constituição
de 1990 e os acordos de 1992: Todos se reconhecem actores e sujeitos da
história, ou seja, um partido único não pode ser o dirigente da sociedade e
do Estado4 .
Por democracia se entende, portanto, um sistema de partidos. Ora, este
sistema tipicamente ocidental desde há dois séculos tem vindo a provar a sua
28 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

funcionalidade. Contudo, no contexto histórico actual, caracterizado pelo


fim do bipolarismo, muitos sociólogos e politólogos se interrogam quanto à
pertinência da divisão clássica da política em partidos e a capacidade deste
sistema de representar verdadeiras alternativas políticas e, sobretudo, de
representar os diferentes estratos da sociedade.
Mas a questão mais interessante para nós é que em nenhum país africano
o sistema de partidos como o proposto pela constituição e pelos acordos de
Roma parece estar à altura de mobilizar o imaginário colectivo das popula-
ções. Das duas, uma: ou o africano (e, portanto, também o moçambicano) é
geneticamente anti-democrático como sustentam alguns eugenistas (Medeved
Arison), ou então o sistema de partidos é, talvez neste momento, um mal
necessário, mas não corresponde ao substracto cultural dos nossos povos.
Não se trata de uma inadequação dos africanos à democracia, mas do
modelo Europeu falsamente universal, que não se coaduna com as nossas
culturas. Não são as culturas que se têm de adaptar a todo o custo a mode-
los, que responderam ao génio próprio de certos povos num determinado
momento da sua história, mas os modelos que se têm de forjar a partir das
culturas. Isto significa que nós temos de inventar um modelo de sociedade
que nos seja próprio, um modelo que corresponda às nossas culturas, às
nossas sensibilidades, um modelo capaz de mobilizar o conjunto de moçam-
bicanos a participarem não só nas eleições, mas na vida integral da sociedade
moçambicana.
Depois de uma entrevista que dei ao jornal Savana em Setembro de 1996,
um deputado disse-me que ele tentava levar os seus eleitores a interessarem-se
e mesmo a controlarem a sua actividade de deputado, mas em vão: os «eleito-
res não conhecem as suas prerrogativas jurídicas e políticas como eleitores».
Os deputados são, teoricamente, representantes dos interesses dos
eleitores. Que tipo de mandato, eleitores que ignoram as suas prerrogativas
políticas e jurídicas, podem confiar a um deputado? E se os deputados não
têm um mandato claro dos seus eleitores o que é que eles representam? O
que é que os autoriza a falarem em nome dos seus eleitores?

4
Cfr. NGOENHA, S.E. Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.21.
Pensamento engajado 29

Mas supondo que os eleitores decidam controlar, acompanhar, influen-


ciar a execução do mandato de um deputado ou, mais profundamente, que
eles queiram fazer presente a um deputado que representa no Parlamento
as suas preocupações, que não são sempre iguais, mas variam com o tempo
e com as circunstâncias: de que mecanismos jurídicos e constitucionais dis-
põem? Que mecanismos estão previstos pela lei que permitam que os eleitores
interpelem os seus representantes?
Se os parlamentares representam simplesmente as posições dos próprios
partidos, em discrepância total com os interesses e a compreensão das pessoas,
estamos num sistema de partidocracia.
Será que o sistema de representação parlamentar é conforme o génio
político e cultural moçambicano? Será que os mecanismos de representa-
ção tipicamente moçambicanos são os partidos? Os indivíduos, os grupos,
as culturas e a sociedade exprimem as próprias opiniões, preocupações,
posições através dos partidos, ou existem outros mecanismos, outras vias,
outros veículos de opinião e de tomada de posição que são mais congénitos
aos povos de Moçambique?
A democracia moçambicana e o seu sistema de representação vão ter que
colocar o problema dos pressupostos. Temos que centrar os nossos esforços
sobre a condição da democracia: a dimensão sócio-cultural. A democracia
vai exigir, como condição preliminar, uma acção concebida a partir das rea-
lidades autênticas das nossas comunidades autóctones, apreendidas a partir
do interior. Contudo, as eleições políticas de 1994 e a nova constituição,
fundando doravante a legitimidade política sobre a soberania e a vontade
dos moçambicanos, consagram simbolicamente uma ruptura fundamental.
Para além do princípio de legitimidade política, é o fundamento mes-
mo da relação social que é posto em causa. Na era da nação democrática,
a política substitui o princípio religioso ou dinâmico para unir os homens:
ela reivindica o direito de instaurar o social. Doravante, todos os homens
no interior do espaço nacional são iguais em dignidade. Esta cidadania não
é simplesmente um atributo jurídico e político, no sentido estrito do termo.
É também um meio para adquirir um estatuto social: a condição necessária
- mesmo se concretamente não suficiente - para que um indivíduo possa
ser plenamente reconhecido como actor de vida colectiva. Existem, no
30 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

entanto, dois problemas fundamentais. Primeiro – o nascimento da nação


democrática foi precedido, e talvez mesmo condicionado, pela presença de
uma outra nação que vive no seu seio: a nação produtivista. Não é por acaso
que a democracia foi precedida por uma adesão às instituições económicas
internacionais como o FMI e BM, composta por indivíduos mais preocupados
em satisfazer os próprios interesses que a satisfação dos seus deveres cívicos
– que segundo Rousseau constitui o principal problema moral para aquilo a
que ele chama o homem social. A lógica produtivista intimamente ligada à
eficácia da produção, tende a preceder os valores propriamente políticos. A
participação na vida económica é a fonte essencial do estatuto social. Assim,
a dimensão económica e social da vida colectiva impõe-se em detrimento do
projecto político. Este facto enfraquece ulteriormente o nosso «Proto-Estado
Democrático» que se vê obrigado a renunciar às suas prerrogativas estatais
(que lhe foram confiadas pelos eleitores) para satisfazer as imposições anti-
democráticas do FMI e do Banco Mundial5 que se arrogam a prerrogativa
de legitimar o poder.
Como se isto não bastasse, os eleitores não têm mecanismos jurídicos
legais previstos pela constituição que lhes permitam fazer-se ouvir ou sim-
plesmente participar no debate público. Existe, por conseguinte, um outro
problema jurídico, desta feita ligado à democracia representativa.

A Democracia Representativa
A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parla-
mentar. Todavia, para que o parlamento seja democrático, deve respeitar
três princípios fundamentais: a tolerância, a separação dos poderes, a justiça.
Isto significa que uma democracia digna desse nome não se pode contentar
em ser uma democracia formal, cega às desigualdades materiais entre os
membros da sociedade, mas ela deve visar um objectivo concreto: a justiça
social. Podemo-nos perguntar: em que condições reina a justiça social? Isto
é uma questão difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua realização

5
Cfr. NGOENHA, S. E., Para uma reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de
Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.33.
Pensamento engajado 31

supõe, pelo menos, a criação de mecanismos susceptíveis de impedir o de-


senvolvimento de desigualdades demasiado grandes no seio da comunidade.
A nossa constituição, inspirando-se na história das democracias re-
presentativas, separa claramente o poder executivo do legislativo e este do
judicial. Que mecanismos temos para garantir a separação de poderes e gerir
eventuais conflitos entre eles?
Dois tipos de conflitos têm perturbado de maneira recorrente a vida
das democracias contemporâneas: primeiro, o conflito entre o executivo e
o legislativo, quer quando a constituição dá mais importância a um ou ao
outro, quer quando os representantes do executivo usam todos os subter-
fúgios para fugirem ao controlo dos representantes do povo. O membro
da Renamo ou do MDM quando se pronunciam no parlamento, fazem-no
como representantes do povo. O executivo não deve ridiculizá-los ou fugir
às questões, muitas vezes judiciosas e pertinentes levantam.
Segundo, o conflito entre o executivo e o judiciário. Nomeados pelos pri-
meiros, os agentes do segundo, isto é, os magistrados, têm muita dificuldade
em fazer compreender aos responsáveis do executivo, que ninguém pode estar
acima da lei. Este é um problema que os pais da democracia representativa
não resolveram. Trata-se de uma questão que tem minado a vida política,
mesmo nas democracias mais experimentadas. Em Moçambique podemos
falar do paradigma Anibalzinho-Nyimpini.
Que o presidente Chissano tenha feito ou não pressão ao pé das autori-
dades judiciárias, os juízes não podem ser completamente livres de uma certa
pressão psicológica no acto mesmo de instaurar um processo e de judiciar
Nyimpini.
Mas a verdadeira questão não é nem a atitude do presidente, nem Ani-
balzinho, nem Nyimpini. A questão é como fazer com que entre o poder
executivo e o judicial não haja interferência, numa democracia que quer estes
poderes iguais, mas subordina a nomeação do judicial à decisão do executi-
vo? Que o presidente faça pressão ou não, que diga algo ou não, que o seu
pessoal governativo intervenha ou não, o seu estatuto vai necessariamente
condicionar o desenrolar do processo. Este não é um problema só moçam-
bicano e, talvez ainda mais por isso, deve mobilizar as nossas inteligências
com vista a encontrarmos uma saída…
32 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

A estes pontos tem que se acrescentar um que é a maneira particular


como um certo Ocidente se arroga sempre mais, e de maneira antidemocrá-
tica, prerrogativas de legitimação anti-coloniais das emergentes democracias
africanas, e mete sob tutela as nossas economias e, em consequência, a nossa
soberania.

A Questão da Soberania
A constituição de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios
gerais ou, se quisermos, as proposições de base que orientam o conjunto de
normas jurídicas e a promulgação das leis. Trata-se de ideias ou de proposi-
ções que inspiram e orientam todos os enunciados e todos os actos do direito.
O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «Um Estado
soberano, independente e democrático sob a direcção da FRELIMO». O
artigo II define a ideologia moçambicana como Democracia Popular. O ar-
tigo III indica a Frelimo como a entidade que «supervisa a acção dos órgãos
estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os
interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV indica
os objectivos fundamentais da República: «a eliminação das estruturas de
opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes
está subjacente a extensão e reforço do poder popular democrático; a edifi-
cação de uma economia independente e a promoção do progresso cultural
e social; a defesa e consolidação da Independência e da unidade nacional;
o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação
com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra o colonialismo
e o imperialismo».
Estes artigos mostram a vocação libertária da constituição e a filosofia
prática subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituição.
A constituição da II República não renuncia ao substrato filosófico de
base e aos seus corolários de lógica jurídica. Só que o exercício deste projecto
libertário não se exercerá, doravante, através do partido Frelimo (apesar de
se reconhecer o seu papel fundamental na construção de Moçambique), mas
através de um sistema de competição entre partidos autónomos, com obri-
gação de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como
Pensamento engajado 33

espaço geopolítico (do Rovuma ao Maputo), e a unidade nacional através


da luta contra o tribalismo.
Os pressupostos filosóficos estipulados na primeira República e con-
firmados pela segunda aparecem em contradição com os seus corolários
políticos. Para compreender o que está por detrás deste fenómeno, tem que
se recorrer à história das lutas ideológicas que a subentendem.
Lutar contra o colonialismo, libertar Moçambique e ser soberano são
conceitos fundamentais e constituintes da nação moçambicana. A comuni-
dade internacional só pode ser positiva e a favor de Moçambique na medida
em que respeite este substrato filosófico de base. Isto é, respeito pela sobe-
rania, configurada num espaço geopolítico bem determinado e pela unidade
nacional.
Ora, o centro nevrálgico da constituição de 1975 era a liberdade/
independência. O centro da constituição de 1990/1992/1994 é liberdade/
democracia. Em 1975, a liberdade era entendida como contraposição ao
colonialismo. Em 1992, à liberdade como anti-colonialismo se junta a demo-
cracia. Teoricamente, trata-se de um avanço considerável. Todavia, a opinião
pública moçambicana parece acreditar que a nível da liberdade fundamental
(independência e soberania), Moçambique tenha pura e simplesmente re-
gredido (regresso de portugueses, economia sob tutela, ONG, cooperação,
doadores, etc.). Pode-se progredir em democracia, recuando em soberania?
A II República nasceu dos escombros da antiga União Soviética e do
fim da guerra fria. Os valores que a ideologia vencedora apregoa são contrá-
rios ao espírito da Primeira República defendidos pela Frelimo. Mas serão
compatíveis com o espírito que é, ou que devia ser, da Renamo enquanto
partido nacional: a defesa e a promoção da unidade e integridade nacionais?
A situação actual de Moçambique caracterizada por democratismo (que
é diferente da democracia), super liberalismo que se traduz em privatizações
sumárias, e tutela governativa, são a prova da nossa entrada no fim da história,
no ponto final da evolução ideológica da humanidade.
É neste contexto que deve ser vista a segunda República moçambicana.
Mas resta uma questão de fundo: qual é a relação que existe entre o objec-
tivo de fundo que persegue o africano, o moçambicano, isto é, a liberdade
de dispor de si mesmo e esta forma de hegelenismo político-social? Qual é
34 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

a relação que existe entre este sistema mundial dominante e a possibilidade


real de ser soberanos, sem termos que obrigar os moçambicanos a terem que
pegar em armas para uma segunda colonização, como escreve Heliodoro
Baptista no artigo do Savana (nº 167, Março 1997)?
Duas aporias parecem remar contra a nossa liberdade e libertação: uma
está intrinsecamente ligada à mesma ideia de soberania e outra à nossa inca-
pacidade como povo de assumi-la com tudo o que ela comporta em termos
de responsabilidade. E outra é ligada ao Ocidente sempre mentalmente
imperialista
Eis porque é ridículo e contraditório ter uma constituição cujo pres-
suposto filosófico (soberania) tem que ser garantido por uma comunidade
internacional, democrata no interior dos países de origem, mas selvagem nos
seus princípios políticos, jurídicos e nas suas práticas económicas.
Falar de soberania moçambicana é hoje um autêntico abuso de lin-
guagem. De facto, toda a estrutura constitucional moçambicana, desde os
seus fundamentos filosóficos, jurídicos para terminar na prática política,
encontra-se esvaziada de conteúdo. Eis porque a política moçambicana,
apesar da aparente democracia, tornou-se numa coisa ligeira, leviana onde
cada um procura os seus fins individuais: o «cabritismo» que é, de facto, o
laissez faire, laissez passer moçambicano.
Todavia, esta situação é possível ou pelo menos é facilitada por um outro
facto: «a nossa incapacidade de assumir o que a liberdade comporta como
responsabilidade». O camaronês Mveng fala da pauperização antropológica
do negro. Eis porque o maior comunista de ontem pode tornar-se no maior
apóstolo do liberalismo selvagem; o revolucionário de ontem no reaccionário
de hoje, os libertadores de ontem no instrumento de colonização de hoje.
A Frelimo viu-se obrigada, por razões militares e pela pressão exterior,
a instaurar um sistema democrático, sem estar realmente convencida de
dever compartilhar o poder, cuja legitimidade auria da luta armada contra
a colonização portuguesa. Hoje a Frelimo vê-se obrigada a harmonizar as
exigências de duas autoridades: a Renamo e a Comunidade Internacional.
Ora, se a força da Renamo no contexto nacional é muito fraca, o mesmo não
se pode dizer da Comunidade Internacional, que impõe literalmente de uma
maneira abusiva e anti-soberana a política, a economia e o tipo de governação.
Pensamento engajado 35

No contexto económico dominante, o governo precisa do dinheiro dos


doadores e da comunidade internacional para melhorar a vida dos moçam-
bicanos, o que, aliás, é a sua função política como partido no poder, mas
está consciente da divergência de interesses entre os moçambicanos e de uma
certa Comunidade Internacional (cf. entrevista com Mariano Matsinha, in:
Savana 25.04.1997).
A Renamo é vista como instrumento da Comunidade Internacional,
cujos objectivos são o enfraquecimento do Estado, a divisão do país. Con-
tudo, a Comunidade Internacional, apesar da sua força, só pode governar
de maneira indirecta, pois dificilmente pode pegar em armas e ocupar mili-
tarmente Moçambique, ou mesmo nomear governadores e administradores
em Moçambique. A Frelimo submete-se aos dictats da Comunidade Inter-
nacional fazendo o que esta exige, a fim de obter dinheiro e financiamentos,
ao mesmo tempo que a nível político, tenta isolar a Renamo (Carta Aberta
aos Moçambicanos de Afonso M. M. Dhlakama, Savana, 04.04.1997) e os
outros partidos da oposição. Todavia, apesar das aparências, o verdadeiro
adversário da Frelimo, não é a Renamo, como ontem não era a Renamo -
Samora Machel quis discutir directamente com os sul-africanos e não com a
Renamo. Hoje a táctica é a seguinte: fazer a vontade dos doadores a fim de
ter investimentos, mas isolar politicamente a Renamo e os outros partidos
da oposição.
Às estratégias de apropriação do poder e do seu abuso por parte de uma
certa Comunidade Internacional, a Frelimo responde com uma dupla táctica:
docilidade e submissão aparente face à Comunidade Internacional, e isola-
mento das oposições políticas nacionais. Este processo faz-se em detrimento
de uma democracia real que, portanto, se tinha começado a engodar. Isto
faz-se, por outro lado, em detrimento de um debate democrático cultural, que
tenderia a deslocar realmente o centro de gravitação do poder em direcção
às pessoas reais, aos grupos e às culturas. As consequências são: o isolamen-
to dos partidos da oposição, a diminuição da possibilidade da democracia,
o centralismo político, que impede a possibilidade de uma cultura política
moçambicana. Isto é, a criação de um substracto político nacional a partir
dos valores do homem de Moçambique, o reforço das tendências autoritárias
e centralizadoras do partido no poder, que se vê obrigado a recorrer a armas
nacionalistas para defender o país.
36 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

A responsabilidade da Comunidade Internacional no que se passa em


Moçambique é enorme. Existem diferentes Comunidades Internacionais,
aquelas pretensamente neocoloniais e tuteladoras, e outras cujos objectivos
são de ajudar a construir uma comunidade política soberana, democrática,
solidária e fundada sobre valores moçambicanos. Penso que seria tempo
de uma análise crítica das atitudes da Comunidade Internacional e da sua
responsabilidade no clima que existe no Moçambique de hoje. Existe hoje
um risco de confusão entre a democracia e o neocolonialismo; risco de ver
na democracia e no liberalismo, simples avatares do neocolonialismo.
O maior erro, que poderiam cometer as «velhas democracias», seria
apresentarem-se como modelos, como os que sabem como as coisas devem
ser feitas, como os problemas devem ser resolvidos, o que elas não são e nem
podem ser; e impor, mesmo em termos económicos, o modelo e o estilo de
sociedade que elas consideram boa para Moçambique. Neste sentido, é extre-
mamente lamentável a atitude de certas organizações. Exigir que o Estado, o
Governo, adopte e implemente práticas políticas e económicas decididas por
investigadores e por centros de poder ocidentais, como condição da ajuda
económica, é uma política que se baseia no desprezo pelos governantes na-
cionais. O perigo evidente, neste caso, é desacreditar gravemente o Governo
aos olhos do povo, mas sobretudo desacreditar a própria democracia aos
olhos do povo e dos seus líderes.
A comunidade internacional, pelo menos a não colonialista, deve rever a
sua posição, deve compreender que ela não pode ser colonizadora, neocolo-
nizadora, tuteladora, sem ser contra Moçambique e contra os moçambicanos.
O específico das ciências filosóficas no contexto actual deveria ser a
invenção de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer
contra o intervencionismo anti-democrático dos democratas ocidentais,
quer, e sobretudo, no trabalho sobre as condições susceptíveis de libertar a
imaginação e a criatividade nos moçambicanos, a fim de podermos assumir
responsavelmente a nossa liberdade.
A «tarefa» da filosofia é não esquecer que a nível interno ainda não somos
capazes de ser cabalmente responsáveis pela nossa liberdade. Incumbe-nos,
portanto, descobrir e inventar espaços de liberdade concretos, dar material
e instrumentos teóricos aos políticos nacionais.
Pensamento engajado 37

A reflexão filosófica moçambicana tem que se situar na intersecção


do conflito de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e
Moçambique; entre a nossa vontade de soberania e a nossa incapacidade de
assumi-la; entre a nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ociden-
tais de se libertarem dos seus élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve
investigar as razões históricas, culturais e sociais que estão na base da nossa
fraqueza existencial e as maneiras concretas de combatê-la. A ideia da sobe-
rania (liberdade) tem uma valência interna condicionada pelo movimento de
participação cultural, que comummente se chama democracia. Esta deve ser
internamente garantida por uma cultura política moçambicana que se forja
a partir das culturas políticas nacionais, e que tenha em conta a preservação
e o incremento da soberania moçambicana.
A filosofia africana na sua valência política deve contribuir para a re-
alização das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acção
significa interrogar as legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e
internacionais), e tentar dar palavra às pessoas, grupos e culturas que foram
privadas dela até aqui. A filosofia não se pode contentar em justificar o status
quo, mas, ao contrário, deve dessacralizar os equilíbrios políticos que pare-
cem únicos. Eis porque eu proponho um contracto cultural, social e político.

Contrato Cultural
A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional.
A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade
em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades
naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito
pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela
dignidade das pessoas.
Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conhe-
ceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma
vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história,
das sociedades e das culturas.
As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia podem
e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade
38 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles
concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.

Contrato Social
A segunda República é percebida pelos moçambicanos como profun-
damente injusta.
O conceito de justiça não é e nunca foi exclusivamente político. Ain-
da menos jurídico. Ele pode ser apreendido em diferentes sentidos: ético,
metafísico-histórico (justiça imanente), religioso (transcendental), até mesmo
estético. Entre estas múltiplas acepções, não separáveis por nenhuma fron-
teira bem definida, toda uma série de ligações mais ou menos subterrâneas
se teceram durante séculos. Esta é a razão pela qual a dimensão política e
a dimensão ética estão ligadas, como bem prova John Rawls (1987) na sua
Teoria da Justiça que, há trinta anos, teve o grande mérito de dar um novo
alento à questão da filosofia política, que tinha sido transcurado depois de
Rousseau e de Kant.

Contrato Político
Sabemos da História que o processo da escravatura foi facilitado pelas
nossas divisões internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado
pelas nossas divisões; sabemos que, para neo-colonizar a África, o Ocidente,
desde o Congo até Moçambique, passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou
divisões.
Mas a Historia também nos ensina que quando fomos capazes de uni-
dade, fomos fortes e conseguimos, se não ganhar, pelo menos resistir! Eis
porque o «contrato político» que permitiu a unificação da Udenamo, Unamu
e Mani e a fundação da Frelimo tem um grande valor pragmático-político,
mas sobretudo moral.
É necessário que as diferentes forças políticas e sociais do país sejam os
principais interlocutores uns dos outros, que tenham o sentido da significação
profunda da «palavra» em termos de escuta, diálogo, espaço de reconcilia-
ção. Mas como família moçambicana, que tenhamos o sentido do segredo
Pensamento engajado 39

(prudência, cautela) familiar, isto é, do que não pode a nenhum preço ser
dito aos estrangeiros, seja eles quem forem. Isso permitiria evitar a ingerên-
cia dos que se sentem autorizados a meter o nariz nas nossas coisas privadas
(ministérios) com a pretensão de querer resolver problemas em nosso lugar.
Por conseguinte, os partidos políticos devem considerar-se adversários
e não inimigos. Devem rivalizar uns com os outros não a partir de pertenças
étnicas ou regionais, de amizades e apoios internacionais, mas de progra-
mas políticos com vista a incrementar as liberdades nacionais, os espaços
democráticos, a participação das culturas no debate civil, do nível de vida
moçambicano, etc. É indispensável criar um espaço público e uma espécie
de contratualismo moçambicano. Para isso, deve-se concretizar um múnus
de princípios, um contrato político que os governantes, independentemente
da família política a que pertençam, deverão imperativamente respeitar e
defender a todo o custo, um número de valores mesmo materiais, que não
podem ser alienados sem o consentimento explícito dos moçambicanos,
através de um referendo, por exemplo.
As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais
interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças
políticas moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscu-
tível, deveriam fazer com os povos de Moçambique uma espécie de contrato
social sobre a essência mesma da liberdade moçambicana, sobre o que não
é negociável, o que deveria constituir o fundamento normativo do Estado.
A nível de bens económicos que constituem o património nacional (portos,
caminhos de ferro, minas, a terra, etc.), de jurisdição política, espaços estri-
tamente nacionais que não são acessíveis a estrangeiros (ministérios, lugares
de defesa, de segurança, de planificação, etc.), prerrogativas ciumentamente
nacionais não cedíveis a ONG, cooperações, doadores, etc.
41

O «ESPÍRITO» DA DEMOCRACIA

Severino Elias Ngoenha

Embora o partido libertador e maioritário no Parlamento moçambicano


hoje, a Frelimo, defenda, recorrendo ao que chama de verdade histórica de
que ele é o autor da constituição de 1990, o primeiro texto mãe a consagrar
liberdades democráticas individuais aos moçambicanos, e a Renamo argu-
mente, em contrapartida, que se não fosse a pressão que veio das matas não
teríamos Democracia, na verdade, a «paternidade» do espírito da Democracia
que se fez verter naquele pertence à história comum, e não de partes, dos
moçambicanos.
Pretendemos, neste artigo, conceptualizar e defender este espírito à luz
dos processos sistémicos, metodológicos e ético-morais do Moçambique
de hoje. Faremos isto tornando frutíferas as evidências explícitas e implíci-
tas deste espírito centrando-nos no texto constitucional, sem, no entanto,
limitarmo-nos a ele.
Uma cultura política baseada num culto ao conflito, ao contraditório,
pode penumbrar o espírito da Democracia, espírito este que está profun-
damente impregnado na história comum dos moçambicanos. E dizer ou
colocar as coisas desta forma não significa (e nem pode significar) esquecer as
atrocidades cometidas durante a chamada guerra dos 16 anos, em que mor-
reram mais de um milhão de concidadãos. Bem pelo contrário. «Aquilo» não
deve voltar a acontecer neste solo pátrio. Colocar a história de Moçambique
do lado do espírito comum dos moçambicanos é deixar-nos conduzir pelo
espírito da Democracia; ou seja, significa reconhecer o simples facto de que,
se todos reclamam a paternidade da Democracia (e nenhum pai reclama a
paternidade de um filho que não quer) é porque o espírito da Democracia
42 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

(melhor: o espírito democrático) está impregnado no fundo, bem no fundo


destas almas. E este espírito basea-se num acordo básico que temos como
moçambicanos: de que precisamos de uma Constituição democrática para
vivermos conjuntamente.
O texto constitucional aprovado pelo Parlamento moçambicano a 16 de
Novembro de 2004, hoje em vigor, proíbe que se toque, de ânimo leve, no
espírito democrático nele plasmado. De facto, no seu artigo 292º (Limites
Materiais), no capítulo Revisão da Constituição, reza, na sua alínea b), que
qualquer revisão deve respeitar a forma republicana de Governo, e, através
da alínea l) que também as normas que regem a nacionalidade não podem ser
alteradas para restringir ou retirar os direitos de cidadania. Qualquer grupo
que quiser alterar estes e outros aspectos constantes nos limites materiais6
devem estar sujeito a um referendo. O resto, podemos alterar.
Entretanto, qualquer asserção sobre o espírito da Democracia deveria
começar como uma pergunta: Porquê precisamos de uma Constituição?
A Constituição, esta lei-mãe, é como um espelho. Vamos ao espelho todos
os dias, não somente por motivos estéticos, mas por motivos profundamente
humanos, de rever-nos a nós mesmos, de nos reconhecermos a nós mesmos.
Se não formos ao espelho por longo tempo, não nos reconheceríamos a nós
mesmos. Há, no entanto, uma diferença entre o espelho e a Constituição:
ao espelho vamos todos os dias, mas à Constituição somente e sobretudo,
quando se sente que uma parte do corpo (Moçambique) está sendo violada
ou há dificuldades de a manter sã e próspera. Assim, a primeira resposta bá-
sica à pergunta porquê precisamos de uma Constituição? A resposta é: para
que todos nós nos possamos reconhecer neste texto-base, principalmente
quando os nossos direitos que lá inscrevemos, como cidadãos e como grupos,
estiverem a ser violados.
Porém, embora a resposta seja plausível, ela não é suficiente. É apenas o
começo. Precisamos de discernir mais elementos constituintes da nossa De-
mocracia que, sem ferir, confiram a substância necessária que corporize um
Estado e uma forma de convivência democrática. Quais são estes elementos
complementares mas ao mesmo tempo fundamentais à constituição para
que, no seu conjunto, o espírito da Democracia se reconheça no dia-a-dia
dos moçambicanos? Quais são as várias e outras formas de materializar o
Pensamento engajado 43

espírito democrático que, de vez em quando, impregna nos reclamantes da


sua paternidade, i.e. de todos moçambicanos?
A intenção deste artigo é a de procurar resposta a uma questão que
consideramos importante: Como corporizar o espírito da Democracia em
Moçambique para além do texto-mãe constitucional? Partimos do pressu-
posto que as constituições garantem uma Democracia enquanto sistema;
contudo, para além da garantia do funcionamento do sistema democrático
há elementos, há dimensões da Democracia que não se encontram explícitas
no texto-mãe, embora implícitas. Essas dimensões são o método de trabalho
democrático e, ainda mais importante, os valores democráticos. Partimos do
pressuposto que o espírito pleno de uma Democrcia terá que tomar em conta
estas três dimensões: sistema, método e valores.

Democracia como Sistema


O espírito do sistema democrático, como bem fundamentaram os cássi-
cos da filosofia política (Locke, Rousseau, Hobbes), reside na chamada divisão
de competências entre as instituições e os titulares dos poderes legislativo,
executivo e judiciário e na garantia da participação dos cidadãos, individual
e colectivamente, na gestão da coisa pública.
De facto, os clássicos sublinharam a necessidade de separar entre quem
formula leis, daquele que julga e, outrossim, daquele que tem por missão
vigiar o seu cumprimento; deve perceber-se que este princípio de divisão de
poderes visava, na óptica dos clássicos, combater as monarquias absolutistas
(portanto combater a possibilidade institucional do abuso do poder) que
imperavam na Europa e defender o direito do cidadão como portador da
liberdade de emitir juízos sem o perigo de ser perseguido por isso. Pois, a
invenção da cidadania implica isto mesmo: a possibilidade de cada indivíduo
usar o espaço público para fazer o uso público e livre da sua razão, como
diria Imanuel Kant no seu texto Was ist Iluminismus?
Este espírito, nomeadamente o da divisão de poderes e o da defesa do
indivíduo perante a possibilidade do uso arbitrário do poder pelos titulares
dos órgãos do Estado, está praticamente vertido em quase todos os textos
constitucionais dos regimes democráticos africanos, salvo algumas excep-
44 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

ções. Em Moçambique, a julgar por este espírito, temos uma Constituição


moderna e democrática.
Que ainda exista a grande preocupação de como assegurar a plena
separação de poderes, no sentido de garantir que o poder executivo dos
governantes do dia não intervenha nos processos judiciários, esta preocupa-
ção foi constatada e discutida num dos textos desta colectânea. Em Por um
Pensamento Engajado, o texto referido, abordam-se dois conflitos que não
são somente inerentes à nossa Democracia moçambicana: primeiro, o conflito
entre o poder executivo e o poder legislativo que se manifesta a partir do
próprio texto constitucional dando, num e noutro caso, importância diferente
a cada um deles; por outro lado, é identificado o conflito potencial entre o
executivo e o judiciário dado que os titulares e agentes deste são nomeados
pelos titulares do executivo. Na prática e por causa desses conflitos, torna-se
impossível garantir a máxima «ninguém está acima da lei».
Existem, no entanto, outros conflitos que ferem o espírito da democracia
como sistema e que merecem ser analizados com mais cuidado. O primeiro
desses aspectos refere-se à ideia de que uma Constituição deve ser um recurso
último para gerir politicamente a diversidade cultural devido, como se argu-
menta, ao facto de Moçambique ser um mosaico de culturas; usa-se, neste
argumento, o termo cultura numa perspectiva principalmente antropológica.
O segundo aspecto a aprofundar é o caracter da ligação entre o liberalismo
político (consagrado no texto constitucional) e o liberalismo económico
(também indirectamente consagrado no mesmo texto): é uma ligação ne-
cessária ou contingente? Um terceiro aspecto de não menos importância do
nosso sistema democrático diz respeito ao tratamento das minorias políticas
(oposição) pelas maiorias que chegam ao poder democraticamente (por via
das eleições). São estes os problemas do sistema democrático moçambicano
mas que são extensíveis aos outros países africanos. Respostas não claras a
estas questões têm levado a muitos problemas que concorrem para penum-
brar o espírito da Democracia dos sistemas de governo no contexto africano.
Comecemos pela questão da diversidade. Nos debates sobre a possi-
bilidade do contratualismo político insiste-se muito no tipo de contrato de
natureza política que viabilize a convivência entre as diferentes culturas em
Moçambique. Para tal constatação, tem sido tomado como pressuposto o
Pensamento engajado 45

chamado «mosaico de culturas». Argumenta-se, com razão, que a diversidade


de línguas, de hábitos e costumes, de crenças colectivas, de práticas religiosas,
etc., não deve ser fonte de desunião, senão exactamente o contrário: deve
ser vista como uma riqueza. O discurso sobre as premissas principais para a
formação de uma nação unida, portanto, para além de se basear na perten-
ça a um território e a uma história comuns de sofrimento, descriminação e
luta, tem sido também argumentado com base no princípio da «unidade na
diversidade». Enquanto a dimensão «unidade» é vista sob o ponto de vista
político (como uma nação), a dimensão «diversidade» neste argumento, é
tomada, geralmente, na sua acepção antropológico-cultural. Pensa-se que as
culturas – enetendidas na sua dimensão antropológica – são a fonte primária
das identidades diversas que deverão concorrer para a formação de uma
identidade nacional7 .
Nesta argumentação – referimo-nos àquela que considera as culturas
como a base e fonte primária das identidades que iriam confluir numa uni-
dade nacional – assenta-se sobre uma problemática sobreposição entre a
concepção cívica e a concepção étnica do processo da formação das nações
em África8 . Na primeira estamos a tratar de cidadãos, portanto como matéria
constitucional da democracia; na segunda estamos a tratar de comunidades,
ou seja, de grupos com um outro tipo de ligações (língua, costumes, religião,
crenças, etc.) que primeiramente não operam numa esfera política, mas
atingem-na como consequência.
No caso de Moçambique, as comunidades étnicas não tiveram a ocasião
de se desenvolverem e se tornarem formas de articulação política e econó-
mica. Este processo de amadurecimento, como sabemos, foi interrompido
pela colonização.

7
Veja-se, por exemplo, o Manifesto Eleitoral da Frelimo onde a justificação apresentada a mobilização
do respeito pela «Unidade Nacional» são a «origem étnica, rácica, religiosa, de região» e também
«línguas». (Frelimo, Manifesto Eleitoral. Maputo, Outubro 2004, p.16).
8
Aqui fazemos referência à diferenciação adiantada por Ferdinand Tönnies entre as noções Gesells-
chaft (sociedade) e Gemeinschaft (comunidade). Os laços entre os cidadãos numa sociedade são
burocráticos (a Constituição é o último garante) e entre os membros das comunidades são sanguíneos.
Os termos «concepção cívica» e «concepção étnica» foram emprestados de Habermas do artigo
Porquê necessita a Europa de uma Constituição? In: ROCHA, A.S.E., «Europa, Cidadania e Mul-
ticulturalismo». Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, Minho, 2004, pp. 21-40.
46 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Daí, seria ingénuo pensar que essas comunidades linguísticas e cultu-


rais poderiam formar hoje base de uma articulação política no contexto da
formação da nação moçambicana. Não existe, neste momento, nenhuma
esfera pública nem na economia, na arte, na cultura, nas diferentes regiões
ou províncias, etc. onde a articulação dos diferentes actores tem como
base a língua ou a cultura. Mesmo os diferentes agrupamentos em forma
«Associações de Amigos de …» não se mostraram viáveis; o seu fracasso na
articulação dos interesses dos pretensos membros e a sua incapacidade para
evoluir para além dos seus membros fundadores é uma prova da inviabilidade
de qualquer projecto político que tenha como base tais afinidades baseadas
em «culturas» na esfera pública. Por fim, também não podemos considerar
as províncias como culturalmente (no sentido antropológico) homogéneas
para serem a unidade cultural que seria a base para a unificação política dos
moçambicanos.
Não se pretende defender aqui que as permissas étnico-culturais não
façam algum sentido para a articulação de iniciativas de políticas no contexto
democrático. A política linguística é um bom exemplo de espaço de articu-
lação e comunicação, mesmo e sobretudo ao nível do Parlamento. O que se
pretende dizer é que a viabilidade dessas comunidades, no sentido de Tönnies,
veicularem interesses políticos com base nas afinidades étnico-linguísticas é
extemporânea; a época histórica em que seria possível a essas comunidades
culturo-linguísticas evoluírem para formarem sociedades políticas ficou his-
tóricamente, graças ao colonialismo, ultrapassada. As culturas não são um
espaço de reivindicação de afinidades políticas de qualquer ordem.
Trata-se, pois, de fundamentar a unidade política e a política da unidade
nacional de Moçambique a partir de um outro ângulo, dum discurso de natu-
reza política e não cultural. O ponto de partida para esta nova argumentação
da unidade nacional pode ser tomado da própria evolução constitucional em
Moçambique. Somos do ponto de vista que, a começar pela Constituição
Pensamento engajado 47

de 19759 , passando pela de 199010 , até ao texto constitucional aprovado


pela Assembleia da República em 200411 , emergiu uma nova forma de so-
lidariedade no seio dos moçambicanos: baseada no Direito e, na verdade,
no direito fundamental de sermos e articularmo-nos como moçambicanos.
Ser moçambicano passou a ser um valor. Aqueles textos constitucionais
inauguraram e consagraram uma única cidadania, a moçambicana; neles,
tomam-se as culturas diferentes como elementos que fundamentam o que
chamamos por «concepção cívica» para a nação moçambicana. A procla-
mação da Independência Nacional foi, sem dúvida, o acto criador, o acto
fundador, acto este necessário para qualquer processo identitário. Esta nova
forma de integração social (cívica), que vai para além das relações pessoais,
familiares, étnico-linguísticas, desenvolveu-se como possibilidade graças ao
novo estatuto de cidadão moçambicano fixado pela Constituição de 1975.
Extrapolando para os outros países africanos, podemos defender que as Inde-
pendências inauguram o espaço histórico, a primeira possibilidade empírica,
para a formação e o desenvolvimento de sociedades civis nos diversos países
africanos. Este espaço criado como resultado de uma luta armada é o que
permite, mais tarde, a que todos os moçambicanos tivessem a oportunidade
e o direito de reivindicarem uma cidadania mais activa, ou seja, a luta ou
as lutas pela ampliação dessas liberdades. Esta cidadania activa tinha sido
negada pelo colonialismo. Infelizmente, algumas dessas lutas posteriores de
reivindicação e para a ampliação dos espaços de exercício da cidadania, pela
ampliação do espírito da democracia, foram ou tiveram que ser violentas.
Hoje, porém, a fundamentação da unidade nacional deve acentar sob
outros alicerces, precisamente porque se configuram novos espaços e, res-
pectivamente, outros substratos por debaixo das solidariedades.

9
Sobre esta Constituição lê-se, no preâmbulo do texto de 2004: com a Independência Nacional
«devolveram-se ao Povo moçambicano os direitos e as liberdades fundamentais».
10
No mesmo texto lê-se: «A Constituição de 1990 introduziu o Estado de direito democrático […]
para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições
multipartidárias».
11
Sobre a Constituição aprovada em 2004 diz-se que « desenvolve e aprofunda os princípios funda-
mentais do Estado moçambicano» (carácter soberano do Estado, baseado liberdade de expressão,
organização partidária e garantia de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos).
48 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Em primeiro lugar, como resultado da nova aliança capitalista no con-


texto da globalização, formaram-se e articulam-se novas solidariedades entre
os que estão do lado perdedor. De facto, há uma aliança sem precedentes
entre os capitais manufactureiro (em países desenvolvidos poderíamos chamar
por industrial), comercial e bancário-financeiro, com os bancos comerciais
a ocupar o lugar central na aliança. Esta aliança dos sectores mais fortes da
economia é feita à custa da democratização económica, em que o operário
explorado é o mesmo: homens e mulheres da periferia.
É neste contexto que o economista africano Ayittey, no seu livro Africa
Unscheined, fala da nova cheetah generation: trata-se de uma nova geração
que se despediu de duas heranças ideológicas, nommeadamente da ideologia
do Estado-pai que exagerava pela sua pan-presença (Ngoenha) e das ideo-
logias baseadas no suposto conluio sistémico dos extrangeiros contra nós.
Relativamente à despedida da ideologia da paternidade (exagerada) do
Estado: esta geração não acorda de manhã e espera que seja afectada num
dos sectores considerados como prioritários para o nosso país. Os cheetah
procuram o seu emprego percorrendo todos os dias as ruas das cidades
capitais e distritais, procurando vender tudo o que lhes vem à mão; são já
pais que reclamaram contra o facto de a polícia ter ensaiado o encerramento
das fabriquetas de CDs fraudulentamente copiados dizendo que com este
gesto ficariam sem poder levar o pão à casa, sem pagar as propinas da escola
dos seus filhos (entrevista na TVM); são mães-jovens que desde manhã até
à noite se sentam à porta dos prédios e lojas para venderem e revenderem
produtos agrícolas, refrescos, doces, rebuçados e outros para poderem
justificar o seu rendimento diário que, muitas vezes, acaba a caminho para
casa; são os mesmos e as mesmas que, ao princípio da noite, empurram-se
na azáfama das filas para matricular-se nas escolas técnico-profissionais ou
faculdades universitárias, frequentam aulas de inglês e informática ou ain-
da secretariado. Não esperam pelo Estado para lhes indicar que decisões
tomar: «viram-se» por eles mesmos, é uma «geração da viragem»! Tentam
tudo para viver e sobreviver. Na verdade, como diz Ayittey, nasceram numa
nova selva: a cidade onde cada um deve virar-se. Com uma diferença: são
técnicos formados, são profissionais temporários, leêm jornais, participam
em ralis políticos, informam-se sobre os processos que lhes são vitais (sobre
Pensamento engajado 49

a taxa de câmbio do dia, por exemplo) e, de forma semi-estruturada, sabem


como exercer pressão a partir da rua e do «chapa 100». De facto, não são
uma geração; o termo correcto para classificá-los é «classe», nomeadamente
a classe dos perdedores da globalização, a classe dos afectados pelos riscos
globais, como diz Ulrich Beck em Risikogesellschaft (Sociedade de Riscos)12 .
O que Ayittey considera cheetah generetion nós chamaremos por classe
dos afectados pelos riscos globais. Eles vivem as consequências nefastas dos
riscos e neles se baseiam as novas solidariedades. A propósito da mudança
de uma sociadade classista capitalista para uma sociedade classista de riscos
Beck escreve:
A força motriz da sociedade de classes (capitalista) deixa-se resumir pela fra-
se: Tenho fome! O princípio que vai por a Sociedade de Risco em movimento
será, pelo contrário, baseado na expressão: Tenho medo! No lugar da soli-
dariedade devido à miséria enfrenta-se a solidariedade baseada no medo.13

É o medo cotidiano pelas consequências da pobreza, e não o medo da


condição de pobreza em sí, que constitui a nova força motriz da solidarie-
dade desta nova classe; e é por isso que o seu engajamento político não é, à
primeira vista, em torno de quaisquer valores patrióticos, sociais ou morais.
É em volta da sobrevivência, é em volta do medo. Da mesma forma que esta
solidariedade em volta do medo de sobrevivência atravessa todos os estra-
tos sociais, desde os mais desfavorecidos aos mais favorecidos, atingindos
e ainda-não-atingidos, atravessa também todas as culturas no seu sentido
antropológico (etnias, religiões, hábitos, costumes, etc.). Em todas as culturas
encontramos os atingidos e os ainda-não-atingidos. (pensemos no risco de
ser atingido pelo SIDA, no risco de respirar o ar poluído com tudo aquilo
que a MOZAL representa no imaginário ambiental, no risco do aumento dos
preços, no risco provocado pelas crises financeiras, etc.). É por isso, também,
que as acções políticas da classe de atingidos parecem, aos olhos dos poderes,
baseadas no irracionalismo, fanatismo, extremismo políticos, diz-nos Beck.

12
Cfr. BECK, U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1986. Neste livro Beck divide a «Sociedade de Riscos» em duas classes: os «afectados» e
os «ainda-não-afectados» pelos riscos, mas nenhuma delas pode evitar os seus efeitos.
13
Cfr. BECK, 1986,p.66.
50 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Assim, também as justificações comuns («são as políticas do Banco


Mundial que nos obrigam...»; «são consequências da globalização capitalis-
ta»; «os países ocidentais não gostam da nossa independência»; «comércio
internacinal injusto para nós»; enfim, justificações baseadas numa teoria de
conluio ao nosso desenvolvimento) sobre as causas do estado precário da
sua situação social já não são plausíveis aos seus olhos. Da mesma forma que
veêm como muita relutância os argumentos históricos, segundo os quais,
vivemos ainda as consequências de uma longa noite colonial.
Um outro tipo de medo é característico na classe dos ainda-não-atingidos
(as elites): o medo da invasão pela classe dos atingidos aos empregos, às man-
sões, aos carros (o «movimento de 5 de Fevereiro» em Maputo (2008) come-
çou por atingir o mais evidente símbolo de luxo na rua: o automóvel). Daí se
perceber as alianças (ou solidariedades) entre as elites políticas, económicas e
intelectuais. Estas também atravessam as frágeis fronteiras linguísticas, étnicas,
regionais, costumeira de Moçambique. No entanto, porque os lugares ao sol
são poucos, no seio desta classe surgem os que pretendem falar em nome das
culturas, arvorando-se seus representantes. Assim se percebe a politização
das etnias: fala-se em nome de uma comunidade (política) imaginada a partir
das afinidades culturais e étnicas para se reivindicar ou assegurar espaços de
articulação política, económica, social e académica.
Voltando ao nosso ponto central: o discurso sobre a unidade nacional -
tanto por parte de quem a defende, como por parte dos que querem montar
cancelas no rio Save para dividir Moçambique - torna-se obsoleto se continuar
a ter como pressuposto o velho paradigma de «matar a tribo para erguer a
nação». O que está errado nele é a sua base: a existência da possibilidade
de articulação política de comunidades etno-linguísticas num contexto de
sociedades políticas nacionais. Por isso, se há algo que pode marcar a linha
divisória da diversidade em Moçambique, e que mereça uma atenção no
sentido de desenvolver o espírito da Democracia como sistema, esta linha é
marcada pela posição que os grupos sociais e indivíduos ocupam em relação
aos riscos económicos e sociais e muito pouco em volta das línguas, hábitos
culturais, crenças religiosas, etc.
A segunda grande questão resulta de uma abordagem bastante difusa,
no debate político moçambicano, acerca da relação entre os liberalismos
Pensamento engajado 51

político e económico: existe, entre eles, uma relação necessária ou contin-


gente? Perguntando-nos de forma mais simples: Moçambique, ao consagrar
constitucionalmente o liberalismo político, deve necessariamente adoptar,
como consequência, uma economia liberal (liberalismo económico)? Ou pode
ser possível que o regime da democracia liberal (liberalismo político) pode
coabitar com as formas mais socialistas de estruturar e organizar a economia?
O adeus ao regime político marxista (Estado-providente) em Moçambique
deveria necessariamente significar também um adeus à orientação socialista
da economia, enterrando o socialismo como um faraó, ou seja, levando con-
sigo ao fundo da terra toda a sua riqueza de medidas e solidariedade social
instalando-se um Estado minimalista liberal?
De facto, nem teoricamente e nem na prática, existe uma ligação neces-
sária entre o liberalismo económico e político. Sob o ponto de vista teórico,
é uma relativa distorção na interpretação teórica da tese de Marx - mais
especificamente o princípio de que a infraestrutura económica explica, em
última instância, a superestrutura político-ideológica - que levou a uma fa-
lácia de haver uma ligação necessária entre os dois processos, quanto a nós,
independentes. Esta ligação falaciosa levou os actores políticos a tomarem
opções de políticas económicas de certa forma anti-populares, em nome do
liberalismo, porque os mesmos actores se teriam «esquecido» do termo «em
última instância», preferindo fazer uma ligação directa.
Sob o ponto de vista prático, os sistemas económicos (socialistas) adop-
tados pelos países nórdigos como a Holanda, Noruega, Dinamarca, etc., são
exemplos empíricos de regimes de liberalismo político, mas que descansam
sobre uma economia baseada na solidariedade social para com os mais des-
favorecidos e no princípio de subsidariedade para derimir as disparidades
de carácter regional.
O adeus ao marxismo não poderia ter significado também a morte de
um Estado orientado pelos valores de solidariedade e justiça sociais na sua
política económica e a consequente instalação de uma economia capitalista
«selvagem» na qual cada um está por si só. O argumento político que se
adianta, segundo o qual «não se pode distribuir o que não se produz» não
pode traduzir-se no seu correlato «vamos esperar sermos ricos para podermos
redistribuir a riqueza pelos pobres». O resultado desta poluição no debate
52 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

teórico sobre ou «liberalismo político ou socialismo» é um desvio do espírito


da democracia, na sua vertente económica. Podemos ir mais longe afirmando
que, nos países africanos de hoje, a maior ameaça à estabilidades dos regimes
políticos democráticos (baseados na democracia liberal), é a falta de uma
democracia económica e não da existência de diversidade de culturas.
O que queremos dizer com o termo «democracia económica?
«A democracia económica começa […] pela ética dos resultados. Não nos
adianta muito saber que [os] dirigentes […] são bem intencionados, que
contribuem para escolas das regiões pobres, se, no conjunto, o resultado é
o aprofundamento das desigualdades […]» escreve o economista Douwbor
no seu livro Democracia Económica14 .»

O que Dowbour propõe é, no fundo, um adeus à ideologia de que o


mercado regula tudo porque o resultado desta economia capitalista selvagem
é a pauperização progressiva dos mais pobres: o problema é que os grandes
vencedores vencem sempre porque têm a capacidade de mudarem as regras.
E quando o fazem, é sempre em atenção aos seus interesses empresariais
(veja-se a última conversa chamada «público-privado» entre os ministérios
económicos do Governo moçambicano e os representantes dos empresários
[CTA, Conferederação das Associações Económicas]; na sua pauta de debate
constam assuntos como «a depreciação do metical», «Regulamento da Lei
Cambial», «revisão das tarifas e taxas dos scanners», «revisão dos preços e
dos períodos dos pagamentos na contratação com o Estado», «revisão da
taxa rodoviária para a exportação», «redução da carga fiscal», «eficiência da
colecta de impostos», etc.).
O princípio da viragem paradigmática proposto por Dowbour é simples:
a gradual passagem (que ele chama de «deslocamento sísmico») do paradigma
económico da competição substituindo-o pelo paradigma da colaboração.
No paradigma económico da cooperação deve reinar o princípio da «pro-
ductividade sistémica» (ele empresta este termo de Celso Furtado que usa
«rentabilidade social»). Como o próprio diz:

14
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste
do Brasil, 2007,p.171.
Pensamento engajado 53

«A lógica básica é simples: quando um grande produtor de soja expulsa


agricultores para as periferias urbanas de região, podemos eventualmente
dizer que aumentou a produção de grãos por hectar, a produtividade da em-
presa rural. O empresário dirá que enriqueceu o munincípio. No entanto, se
calcularmos os custos gerados para a sociedade com as favelas criadas e com
a poluição das águas, por exemplo, ou o próprio desconforto de famílias ex-
pulsas das suas terras, além do desemprego, a conta é diferente. Ao calcular
o aumento da produção da soja, mas descontando os custos indirectos gera-
dos para a sociedade, o balanço sistémico será mais completo e tecnicamente
correcto. Ou seja, temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o
resultado em termos de qualidade de vida, de progresso social real.»15

Da mesma maneira que, se um banco leva as poupanças dos seus clientes


e aplica-as em acções especulativas do mercado e, no fim do ano, apresenta
no seu relatório de contas lucros fabulosos (veja-se os relatórios anuais dos
bancos) aumenta o PIB, mas, provavelmente, esse «desvio» de aplicação
(que segundo a ideologia do «mercado livre» não vê nenhum problema) teve
como «resultado social» a descapitalização de comunidades ou uma redu-
ção do «uso productivo» das poupanças. O lucro, na óptica da democracia
económica, tem de ser social, e a productividade tem de ser calculada numa
base sistémica.
Podemos assim concluir que, pelo menos nas nossas circunstâncias, a
ideologia do liberalismo económico, ou melhor, nas condições de um capi-
talismo selvagem, ou melhor ainda, da dolarcracia, oespírito da democracia
continua sendo sistematicamente ferido.

Democracia como Método


Não é possível construir uma democracia sem democratas. «Demo-
cratas» são os titulares de órgãos políticos eleitos na base de regras claras e
pré-estabelecidas. O método, neste contexto, define as vias segundo as quais
os titulares de cargos políticos chegam ao poder.

15
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste
do Brasil, 2007,p.172.
54 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Uma característica importante de regimes democráticos – senão mesmo


a condicionante para que qualquer regime seja classificado como «demo-
crático» – para além da divisão de poderes, é a eleição do presidente e dos
parlamentares através de eleições periódicas e a consequente limitação no
tempo do exercício do cargo, ou, limitação das vezes que os titulares podem
candidatar-se ao mesmo. Ou seja, a organização de eleições depois de um
determinado período (normalmente de 5 anos) é o método na base do qual
as democracias modernas representativas procuram garantir a reprodução
dos seus «democratas».
Neste contexto, quase todos os países africanos possuem, no mínimo,
leis eleitorais que pretendem ser democráticas. Porém, só por sí a existência
de uma lei eleitoral não garante que os eleitos sejam democratas. Tiranos ou
populistas também podem deixar-se eleger por métodos democráticos ao
nível nacional, tendo sido, porém, «eleitos» de forma não democrática para
se tornarem candidatos ao nível dos seus partidos.
A existência de um sistema de eleições ao nível da nação, só por sí, não
garante que os melhores filhos desta nação sejam os que são eleitos. Alguns
dirigentes africanos foram eleitos e depois (ab)usaram dos poderes que tive-
ram para mudarem a Constituição por formas a se «fazerem» eleger de novo.
Assim também, nem todos os bons e corajosos dirigentes que fizeram os seus
países desenvolver, foram eleitos em processos democráticos.
No que concerne aos regimes democráticos, o risco que sempre está a
espreita de tiranos ou populistas se fazerem eleger, pode ser definido de duas
formas: atarvés da limitação do período do exercício do poder pelo candidato
vencedor e através da limitação das vezes que um mesmo candidato se pode
recandidatar, independentemente de ter mostrado bons serviços. Estas limi-
tações, no mínimo, evitam que o poder seja exercido pelas mesmas pessoas
durante muito tempo. Qualquer poder, quando exercido durante muito
tempo, corrompe; ou, no mínimo, levanta a suspeição de se ter corrompido.
No entanto e como vimos, a aplicação do método democrático nas
eleições ao nível nacional não é uma condição suficiente para garantir que
tenhamos «democratas» como candidatos a titulares dos cargos mais altos.
Ou seja, a realização das eleições periódicas não constituem por si uma ga-
rantia do «espírito» democrático. Dois passos em diante devem ser dados:
Pensamento engajado 55

o primeiro que obrigue os partidos políticos a realizarem eleições internas


democráticas periodicamente e, o segundo, que obrigue os partidos diferen-
tes a entrarem num «pacto de transferência de poderes» no caso de haver
mudança do partido governamental como resultado das eleições.
Os partidos políticos, junto às organizações da chamada Sociedade Ci-
vil, são a forma moderna de participação política organizada dos cidadãos.
Nesta conformidade os partidos políticos deveriam ser o viveiro do espírito
da democracia que depois iria transbordar ao nível nacional através da sua
participação nas eleições. Assim, entre as obrigações dos partidos políticos
(expressa em lei) deveria constar a apresentação de evidências de organiza-
rem eleições internas periódicas para o preenchimento de cargos partidários.
Também, à semelhança do contexto nacional, ao nível partidário deveria
haver a limitação do período de exercício dos mandatos mais importantes,
particularmente do seu presidente e das comissões ou comités centrais. Estes
pode ser considerados o «viveiro» dos futuros presidentes. Esta exigência
seria duplamente favorável ao desenvolvimento do próprio partido: os seus
membros haveriam de experimentar e interiorizar internamente o método
democrático e instalar-se-ia um mecanismo transparente de selecção de líderes
capazes de concorrerem à escala nacional que iriam aumentar as probabili-
dades de sua vitória. A ideia de base é a seguinte: a consolidação do espírito
da democracia ao nível nacional passa necessariamente pela construção do
mesmo espírito ao nível do funcionamento interno dos partidos que actuam
na arena nacional.
Para garantir este propósito seria necessário condicionar a legalização
dos partidos políticos ao cumprimento das normas democráticas no seu
funcionamento interno. Da mesma forma, dever-se-ia instituir um órgão
apropriado para monitorar e sancionar os partidos políticos que não cum-
pram estas normas. No Brasil, por exemplo, este órgão é o Tribunal Eleitoral.
Embora sem eliminar totalmente, o estabelecimento de um mecanismo de
natureza jurídica para sancionar o não cumprimento do método democrá-
tico, à semelhança de um Tribunal Eleitoral, diminuiria a probabilidade de
candidatos com evidências de métodos tiranos de governar concorrerem para
as eleições nacionais; isto diminuiria, por sua vez, a probabilidade da nação
ser governada por um tirano ou por uma oligarquia.
56 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Uma outra melhoria do sistema democrático diz respeito a prevenirmo-


nos, enquanto nação, para as mudanças de regimes políticos, ou seja, de
partidos no poder. E aqui o assunto de fundo é a consciência e a regulação
da separação e ligação entre o Estado e o Governo.
A essência de um Estado reside na organização das relações sociais
(poder) usando procedimentos institucionais pré-estabelecidos; ou seja, que
não obedecem às vontades de momento do líder. Em qualquer dos casos,
estes procedimentos devem prevenir e, se este for o caso, poder neutralizar
os focos de conflitos entre os membros e grupos sociais. Por isso, basta que
uma parte da sociedade concorrente ao poder (partido, associação, igreja)
ou um indivíduo (presidente, rei) se confunda com o Estado, então não
haverá possibilidade deste Estado derrimir os conflitos que vão aparecendo
na sociedade.
No entanto, a concorrência política para o exercício da hegemonia (para
derrimir conflitos) num Estado – dado que nem todos podem estar na po-
sição de fazê-lo – detrminou o surgimento do fenómeno que consideramos
ser «político». Ou seja, paradoxalmente à natureza contratual do Estado
para manter a convivência social harmoniosa, esta somente pode ser mantida
num ambiente social em que se criam espaços abertos a todos os cidadãos
ou grupos destes para a competição no exercício do poder.
O sistema de representatividade parlamentar (para onde entram grupos
e indivíduos vencedores das eleições) e a Constituição (documento-mãe que
se aplica a todos os cidadãos) são duas das maiores conquistas do Estado
moderno. Os parlamentos profilaram-se como o espaço para debater e apro-
var leis; a Constituição profilou-se como o espaço onde são fixadas as leis
fundamentais. Nesta ordem de ideias, uma Constituição é um documento
que fixa os aspectos fundamentais de um Estado.
O Governo, por seu lado, pode ser definido como um conjunto de pes-
soas que exercem o poder político numa determinada sociedade e durante
um determinado período. A responsabilidade dum Governo é, portanto,
dirigir os destinos de um Estado durante este período. Pela sua precariedade
temporal, o Governo e os seus titulares podem ser modificados com certa
facilidade, o que não é o caso das estruturas do Estado.
Pensamento engajado 57

Por sua vez, a essência de um partido político é a de ser uma associação


de cidadãos livres com um fim deliberado de assumirem o poder político.
Alguns partidos resultam de vínculos pessoais; outros, os de massas, atinjem
uma complexidade maior que os seus laços só podem ser mantidos de forma
burocrática e impessoal. Quaisquer que sejam os casos, os partidos políticos
surgem para «representarem» algumas camadas da sociedade na corrida para
o poder. A participação política está, portanto, na génese das associações par-
tidárias. É por isso que os partidos políticos surgem somente no contexto da
institucionalização das democracias representativas no séc. XIX na Europa.
Ora, governos e partidos, pela sua natureza precária em termos de
existência, tendem a ser temporários, portanto a mudar. Em contrapartida
o Estado não.
Embora a noção de Estado pareça muito mais abstracta que as noções
de Governo e de partido político, a ligação entre eles durante o período de
exercício do poder de um determinado partido e seu respectivo Governo,
é feita através de pessoas concretas. Assim, é «natural» que alguns partidos
políticos, uma vez no poder, queiram criar o maior número possível de «car-
gos de confiança», ou seja, aqueles cargos em que as pessoas são nomeadas
porque se deposita a confiança inteira nos seus titulares. Ora, esta é a forma
mais comum que os partidos encontram para se manterem no poder: mistu-
rando os cargos políticos «de confiança» com os cargos administrativos do
Estado. Este (ou seja, a mistura de cargos políticos com os cargos técnicos-
administrativos) é um dos efeitos perversos das democracias modernas que
os teóricos da separação de poderes não conseguiram superar. Por isso, a
este nível, se torna necessário introduzir um método para preservar o espírito
democrático.
Desta forma, é com base na possibilidade de os partidos e os governos
mudarem-se no exercício do poder e, para manter o espírito da democracia
no Estado, que a transição de um Governo para outro deve ser acautelada
por um «pacto de transição». Este pacto visa evitar a prática de the winner
takes all. Esta prática iria perigar a própria essência do Estado que, como
dissemos, é de concórdia e não de conflito. Dever-se-á, pois, definir, no
quadro do pacto de transição, o princípio da separação de cargos políticos
dos cargos técnico-administrativos. Os cargos políticos podem ser mexidos
58 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

pelo Governo do dia, equanto que os outros não necssariamente. O critério


para substituir os titulares dos cargos políticos são as eleições, enquanto que
o critério para a substituição dos cargos técnico-administrativos é a compe-
tência, e não a pertença a qualquer associação política, social, cultural ou de
natureza religiosa.
A definição exacta dos cargos políticos e dos cargos técnico-administrati-
vos deveria ser matéria constitucional. O Governo e outros titulares nomeados
pelo presidente vencedor são, por excelência, os cargos considerados como
de natureza política. O espírito da democracia não pactua com dirigentes
eternos, por mais bons e carismáticos que sejam.

Democracia como Valores


Valores constituem a base duma democracia vigorosa; manifestam, na
verdade, o seu verdadeiro espírito da democracia.
Numa democracia é importante ter informações sobre os processos e
factos políticos dos partidos, sobre a acção dos Governos e das associações
da sociedade civil, sobre as oportunidades de negócios, etc. O acesso à in-
formação, como se soi dizer, é fundamental na era moderna e pós-moderna,
para poder tomar-se decisões políticas acertadas. A informação responde à
uma questão básica em política, nomeadamente «o que se faz?», «quais são os
dados à disposição?». Porém, embora sendo importante ter acesso às infor-
mações mais importantes, ela não é suficiente para um sistema democrático
em desenvolvimento e nem pode alimentar por muito tempo o seu espírito.
O mesmo tipo de informação que precisamos para poder ganhar eleições,
pode ser usado também para manipular as mesmas eleições. Neste ultimo
caso teríamos um vencedor das eleições pelo domínio de informações, mas
seria um domínio manipulado. Em suma, teríamos uma democracia sem
democratas.
Um democrata teria que ir mais longe do que obter informações. Ou
seja, deve também ter conhecimentos consolidados sobre como funcionam
as instituições e o sistema social. Em outras palavras, deve dominar o nível
de teorias científico-sociais que respondem à pergunta «como se faz?» ou
«como se organiza?». Esta questão é fundamentalmente metodológica, como
Pensamento engajado 59

vimos no capítulo anterior quando discutimos a democracia como método.


O domínio dos métodos é fundamental para se poder participar nos debates
democráticos de uma forma consciente, porque nos permite um certo prag-
matismo nas nossas propostas para melhorar o próprio sistema democrático.
Karl Popper diria que nos permite fazer uma certa «engenharia social», ou
seja, irmos substituindo «os males pelos males menores». A grande inven-
ção da democracia é, nesta ordem de ideias, permitir-nos poder substituir,
periodicamente e cada vez mais, governos maus por governos menos maus.
E, para que uma sociedade possa fazer isso, não basta ter informação sobre
o «que se faz», mas também sobre «como se faz» ou «como se poderia fazer
melhor» no interior do quadro democrático.
Embora o conhecimento dos métodos democráticos seja muito importan-
te, temos que reconhecer que em sociedades complexas como as modernas,
seria inapropriado exigir que todos conheccessem com profundidade o mé-
todo de Hondt, por exemplo. O domínio de conhecimentos desta natureza é
necessariamente elitista, isto é, só pode ser dominado por uma certa classe de
profissionais ou de pessoas letradas. Em Moçambique somente uma pequena
parte da população seria capaz de dominar o sistema eleitoral nacional, ou
o que é usado dentro de um partido ou associação.
Tanto o acesso à informação, como o acesso ao conhecimento são ambos
limitados a certas pessoas. No pior dos casos, o acesso a ambos pode ser so-
negado de diversas formas e artimanhas às pessoas comuns ou aos adversários
(como aliás sucede frequentemente na esfera política e económica). Todavia,
o que não é facilmente manipulável ou sonegável são os valores. Ninguém
pode reclamar a exclusividade de dispor de valores somente para si mesmo
porque é impossível imaginar uma vida humana sem valores.
De entre os valores, existem aqueles que podemos chamar por «uni-
versais» ou ainda «bens transculturais» (Acílio Rocha). Ou seja, aqueles
que encontramos profundamente enraizados no ser humano enquanto vivo.
Referimo-nos aos valores «liberdade», «tolerância» e «justiça social». Esses
valores alimentam o espírito democrático e são independentes de quanta
informação dispomos ou do nível de conhecimento que possuímos.
O valor mais elevado impregnado no espírito da democracia é a liberda-
de. Em «Was ist Iluminismus?» Kant nota que a modernidade caracteriza-se
60 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

pela saída do homem da sua menoridade. E diz que é o próprio homem que é
o culpado da sua menoridade (selbsverschuldet). Acrescenta ainda que o lema
do iluminismo é: «tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento».
Assim, o valor máximo, que é a conquista da modernidade, é a liberdade
(«para este iluminismo porém nada mais se exige senão Liberdade» – escre-
ve Kant). Este filósofo acrescenta ainda que a liberdade fundamental é a de
fazer um «uso público» – diferentemente do «uso privado» – da razão em
todas as questões.
Em Locke, por exemplo, há valores que são prévios ao próprio contrato
social entre os cidadãos, sendo a liberdade um deles (ao lado da propriedade
e da tolerância). Ou seja, só homens livres é que podem entrar em contrato
social. Por natureza, o soberano ou o tirano tiram partes da liberdade dos
outros para poderem governar.
Um outro valor muito evocado no contexto do espírito democrático
moçambicano é a tolerância. Em muitas campanhas para a paz foi frequente
ouvir apelos para que todos os concorrentes nas lutas políticas permaneçam
«tolerantes» para com os adversários. Este valor é muito cultivado no seio
das congregações religiosas, particularmente após a guerra em Moçambi-
que. Curiosamente, porém, quase todos os escritos do iluminismo sobre a
tolerância eram dirigidos contra a intolerância da religião cristã para com o
pensar diferente.
O apelo à tolerância tem, em todo caso, a sua funcionalidade no con-
texto das democracias modernas, principalmente das democracias africanas,
algumas das quais nasceram e triunfaram após lutas armadas. Portanto após
um ambiente social de intolerância das potências colonizadoras. O que
pode, porém, incomodar ao espírito da democracia, e a medida que ela se
desenvolve como sistema e como método, não é o valor tolerância em si,
mas os seus limites. Muitos adversários políticos no contexto dos debates
democráticos parlamentares se perguntam frequentemente «até aonde pode
ir a tolerância?» Ou seja, o paradoxo deste valor é mesmo o apelo de termos
que ser tolerantes perante intolerantes: estaríamos legitimados a, em nome
da tolerância, a não tolerar os intolerantes?
Mais uma vez, o problema do exercício prático do valor tolerância
é teórico: não podemos chegar a uma definição positiva de quando é que
Pensamento engajado 61

estamos a ser tolerantes ou intolerantes perante fenómenos ou factos de


natureza política. Só podemos discutir os limites da tolerância, ou seja, pela
sua negativa perguntando-nos «onde termina a tolerância?»
O primeiro limite da tolerância deve ser a violência física. Ou seja, a
tolerância deveria acabar quando o interlucutor começa a usar a violência
física para fazer valer os seus interesses ou ideias. Este é um consenso fun-
damental ao qual a sociedade moçambicana teve que chegar, infelizmente
após uma guerra fracticida. Por este limite (violência física) ser óbvio, não
nos vamos ocupar mais dele. Há outro limite mais subtil: a injustiça social.
Não será violência quando nas nossas sociedades africanas uma grande
maioria vive em condições de pobreza? Não é violência negar a uma criança o
direito ao ensino? Não será violência quando uma parte da sociedade morra
por falta de assistência médica, enquanto a outra tem todas as possibilidades
de tratamento nas melhores clínicas? Ou quando negamos a uma parte da
população o acesso à àgua potável e ao mesmo tempo uma pequena parte
consome num dia a mesma quantidade que a outra usa numa semana? Esta
é uma violência subtil.
Portanto, a injustiça social deve ser o segundo limite da tolerância.
Formulado de forma positiva, diríamos que a justiça é um valor que deve
complementar a tolerância. A tolerância, como dissemos antes, não é sufi-
ciente para manter a paz e a democracia.
A justiça social é um dos bens que chamamos por transcultural. O seu
espírito não depende de culturas e nem de camadas sociais. Sobre este aspecto
há muita literatura. A mais conhecida é sobre «justiça como equidade» adian-
tada por John Rawls (Uma Teoria da Justiça). Walzer, Taylor, MacIntyre mas
sobretudo Sandel criticaram, cada um a partir do seu ângulo, esta teoria da
justiça adiantada por Rawls. Eles criticam sobretudo a ideia de Rawls sobre
a «posição original»: uns dizendo que o liberalismo de Rawls baseia-se numa
concepção deficitária de justiça por ser abstracta (Sandel). Ou ainda, como
o faz MacIntyre, critica-se o facto de Rawls supostamente ter «inventado»
princípios prévios às várias culturas concretas. MacIntyre defende que «o
transcultural é abstracto».
A liberdade, a tolerância e a justiça social como valores não consti-
tuem, no entanto, o monopópio apenas da modernidade. Ngoenha tem
62 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

demonstrado, como o paradigma libertário no pensamento africano resulta


do contacto que a África teve com a modernidade europeia. Os africanos
entram na modernidade primeiro como escravos, depois como colonizados e
finalmente como globalizados. No entanto, teríamos que pesquisar se, antes
da sua entrada na modernidade, indivíduos ou grupos isolados africanos
não se revoltaram contra os soberanos locais africanos da época. Aí poderí-
amos radicar a origem profunda do valor Liberdade que ainda hoje subsiste
nos moçambicanos e vai alimentando, em cada fase histórica, o espírito da
democracia.
O mesmo podemos dizer do valor tolerância. Este radica também na
alma profunda das populações moçambicanas antes do seu contacto com
a modernidade europeia. Os povos asiáticos que visitaram as nossas costas
antes do século XV foram recebidos com tolerância (sem violência). O facto
de os povos africanos terem abraçado as instituições, as religiões, para além
dos produtos de troca que os povos asiáticos traziam, atesta a existência, já
nesta época, do espírito de tolerância e alto sentido de interculturalidade.
O que porém teria falhado, é o facto de não termos observado os limites da
tolerância.
Ainda o mesmo podemos concluir sobre o valor justiça social. No caso
africano, existe uma vasta literatura que aponta a solidariedade como sendo
um valor tradicional que forma e se consubstancia no mundo da vida comu-
nitária onde existe ajuda mútua. Este espírito de solidariedade adjacente às
almas africanas constitui a base sobre a qual se pode erguer, num contexto
moderno e de globalização, o espírito da democracia. Nyerere tentou capatar
esta solidariedade com o seu projecto social Ujamaa.
A luta de libertação lançou não somente os fundamentos políticos do
futuro Estado moçambicano, como também e sobretudo, os fundamentos da
ética política, ética esta centrada, em nossa opinião, no princípio da solida-
riedade. Recordemos o lema da luta armada segundo o qual «os responsáveis
são primeiros no sacrifício e últmos em benefícios». Resta saber como este
princípio pode alimentar, no contexto moderno do liberalismo político, o
espírito da democracia.
63

PUBUNTU: NOVO MODELO DE


JUSTIÇA GLOCAL?

Severino Elias Ngoenha

A centralidade da questão da justiça é hoje sobejamente reconhecida


pelos diferentes círculos de pensamento, não só filosóficos, mas também
sociológicos, jurídicos e sobretudo económicos.
Deveria surpreender que o sec. XX com o seu processo colonial, e com
tudo o que isso significa em termos de descriminação, de violação dos direitos
mais elementares da pessoa e dos povos, de mortes, não tenha feito da ques-
tão da justiça um dos temas principais do seu debate de ideias. Digo deveria
porque, na realidade, a identificação dos temas centrais do debate de ideias
é intrinsecamente ligada à História, e esta é um campo aberto, multiforme e
destituído de uniformidades. Porém a apreensão conceptual das prioridades
históricas, no sentido hegeliano, depende de hermeneutas cujas prioridades
interpretativas não são dissociáveis dos interesses e das relações de poder
que marcam os seus lugares de observação. É assim que na primeira metade
do sec. XX o debate de ideias foi dominado pelo estadual-centrismo intra-
europeu e, na segunda metade, pelo conflito ideológico entre os blocos da
esquerda e da direita.
O fim desta disputa viu a emergência do que Francis Fukuyama, com uma
falácia hermenêutica da Filosofia da História16 hegeliana chamou O fim da
história, entendo a emergência de um pensamento único pós-dialéctico, que
paradoxalmente ganha forma na hodierna meta-narrativa ultra-liberal, com
os seus corolários da globalização, sob égide de uma economia individualista.

16
NGOENHA, S.E., Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII, Porto: Ed. Salesianas,
1992.
64 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Entre os vários questionamentos filosóficos que o processo da mundia-


lização suscita, ressalta a uniformização axiológica e cultural do mundo; o
paradoxo ecológico, entre o imperativo de uma solidariedade diacrónica para
com as gerações futuras e o esquecimento – no sentido heideggeriano – de
uma solidariedade sincrónica para com os países pobres do planeta. Mas a
questão crucial é a assimetria sempre maior entre a globalização de riscos e
a localização de riquezas, o que levanta imediatamente a questão da justiça
planetária. De facto, para o grande público, a mundialização apresenta-se
como uma questão de justiça ou injustiça global, configurado simbolicamente
pelo movimento não global e pelos alter-mundialistas, ou se quisermos, pela
oposição simbólica entre Davos e Porto Alegre.
No seu início, o movimento de Porto Alegre apresentou-se como anti-
globalização. O facto mesmo que este movimento se tenha metamorfoseado
e se tenha tornado num movimento por uma outra globalização, mostra
de um lado, que a hodierna mundialização pode ser compreendida através
de categorias agostinianas da teologia da história (mundus)17 , na qual a
humanidade passa gradualmente da cidade terrestre a Civitatis Dei. Mas
a esta modernidade pró-cristã, se deve acrescentar – o que Agostinho não
previu – a modernidade pós-cristã, que comportou o gradual esvaziamento
das categorias da teologia da história e a emergência de uma nova volteriana
civis terrestre – filosofia da história – baseada sobre uma iura humana con-
tratualista, como ele emerge nos alvores da modernidade com os trabalhos
de Hobbes, Rousseau, Locke, Monstesquieu.
Mas por outro lado, um dos principais problemas desta nova politeia
baseada sobre o contracto – quer nas suas vestes liberais, como demonstra
o surgimento dos socialismos utópicos (Fourier, Jean-Giresse, Robet Ower)
e depois do marxismo – como nas suas vestes neo-liberais é a justiça: como
fazer com que o Príncipe (Maquiavel), o Leviathan (Hobbes), ou os detentores
dos poderes democraticamente instituídos (Rousseau, Locke, Montesquieu)
sejam o menos injustos possíveis? O pensamento utópico (Gioacchino di
Fiore, Campanella, Thomas More) que acompanha suspeitosamente toda
a modernidade, funciona como revelador da discrepância entre os ideais

17
DUMOUCHEL, P., Mondialisation et Philosophie de l’Histoire. In: BONIN Pierre-Yves (dir.), Mondia-
lisation: perspectives philosophiques, Laval: Les Presses de l’Université, 2001.
Pensamento engajado 65

modernos e a sua efectiva realização. Aliás, este é o sentido da crítica pós-


moderna (Lyotard, Vattimo, Derrida e Rorty), na realidade começada pelos
filósofos da suspeita Nietzsche, Freud e Marx.
A solução liberal-económica parece ser incapaz de dar a eudemonia
para o maior número preconizada pelo utilitarismo de Bentham e Stuart
Mill. Se Adam Smith parecia convencido que a solução do problema moral
não estava no proibicionismo clássico das doutrinas morais, hoje podemos
constatar que o livre jogo dos interesses egoístas, racionalmente calculados,
não trouxe a eudemonia para todos que se procurava. Dos dois correctores
postulados – Providência e Estado – o primeiro foi abandonado e o segun-
do é um artefacto em crise. Alias, a globalização axiológica e de crenças
levanta(ria) um problema de uma organização mundial do político e do
económico subordinado a substratos teológicos, num mundo de disparidades
de panteões, mas também de munus axiológicos não ancorados a nenhum
credo transcendental.
O Estado, principal regulador das relações sócio-económicas da moder-
nidade, é hoje um artefacto em crise. A sua saída da cena política remete(ria)
as relações sociais aos simples ditames da razão económica, o que é de natu-
reza a aumentar as discrepâncias sociais e a repropor o postulado hobbesiano
bellum omnia contra omnes. É sintomático que a chamada «revolução de ‘68»
tenha sido feita em nome de valores da esquerda, contra um Estado que era
tido por opressor e fazedor de guerras e que hoje, volvidos cinquenta anos,
a esquerda anti-estadual de ontem, se tenha transformado no maior defensor
do Estado, contra o privadicionismo do liberalismo global. Para os herdeiros
da esquerda hegeliana, o Estado já não funciona como lugar da realização da
liberdade, mas como último baluarte de uma justiça social em perigo.
De facto, não se vislumbram no horizonte instituições susceptíveis de
substituir o Estado na sua função de regulação e de equilíbrio social, o que
Rousseau considerava a correcção do estado da natureza. Apesar do sec. XX
ter visto a emergência de instituições globais, elas não parecem estar à altura
de se substituírem ao Estado na regulação do social. A ONU, instituição
não democrática e sem nenhum poder de coerção sobre os seus membros,
serve de caução às relações assimétricas entre países no nome do Direito
Internacional, como alias já fizera a Ius Inventionis de Cristóvão Colombo
66 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

que serve de substrato do direito internacional moderno desde a escola de


Salamanca até Kelsen.
As outras instituições globais importantes FMI, BM, OMC inscrevem
as suas acções no interior de um paradigma económico-centrista que levam
a extremos problemáticos as desigualdades e injustiças entre países.
Mas de uma maneira mais preocupante, assiste-se a emergência de máfias
globais, empresas de drogas; mais paradoxalmente e na esteira do Estado
moderno, trata-se de organizações com duas caras, pretensão de ser politica-
mente correctas no Ocidente, mas com atitudes e funcionamentos selvagens
no terceiro mundo. Ainda mais paradoxal, é o facto destas organizações
funcionarem com o assentimento implícito ou mesmo com a conivência e
cumplicidade de Estados democráticos.
Em definitiva, os alter-mundialistas levantam a questão da justiça no
mundo global. Se a globalização não parece uma questão discutível, o que
põe problema é saber se esta globalização pilotada por grandes grupos eco-
nómicos, por doutrinas neo-liberais, de Davos, do FMI, BM, das bolsas de
valores, não é um mecanismo orientado a exacerbar ulteriormente a fractura
entre ricos e pobres. Isto evidencia todo o mecanismo de violência que acom-
panha a questão da globalização económica. Mas esta questão, justamente
por causa da sua dimensão global, ultrapassa as fronteiras regionais, apesar
de algumas tentativas de filósofos pós-modernos em teorizarem o fim de um
discurso meta-narrativo a favor de uma espécie de tribalização epistemológica.
Dois argumentos podem demonstrar a fragilidade deste discurso, pri-
meiro, a dimensão meta-narrativa do discurso neo-liberal e da globalização,
com os seus assertores teóricos que são o G8, Davos, BM, FMI, OMC etc.
Segundo, a existência de um enunciador epistémico comum transversal a to-
das as sociedades, isto é, a questão da justiça. São prova disso, o ressurgimento
da filosofia política nos EUA envolta dos trabalhos de Rawls, a teologia da
libertação latino-americana ou ainda as teorias pós-coloniais; todos centrados
sobre a questão da justiça.
Com efeito, o ultra-liberalismo e a globalização, como discurso único
e como novo discurso meta-narrativo, tem mobilizado um número sempre
crescente de intelectuais e pensadores, pela aversão filosófica de uma sote-
reologia imanente que o liberalismo é suposto representar na teologia da
Pensamento engajado 67

história fukuyamana; pelos limites objectivos de um sistema antropocêntrico


e de depredação da natureza; pela insustentabilidade antropológica e social
da uniformização axiológica do mundo e das culturas; mas sobretudo pela
injustiça planetária que ela provoca, globalizando os riscos humanos e sociais
dos seus empreendimentos mas privatizando as suas benesses.
Se o grande problema da filosofia desde Karl Marx, consiste em não
contentar-se em interpretar o mundo mas em militar para a sua transforma-
ção, então a questão é saber se o liberalismo pode incorporar preocupações
fundamentais de justiça social e planetária, e se não, questionar-se quanto a
possibilidade de pensar a um modelo alternativo.
Se a correlação ontológica necessária entre as categorias heideggerianas
de Sein e mit-Sein não surtiram efeitos nas doutrinas morais e políticas da
segunda metade do sec. XX, podia se ter esperado que a categoria existencial
do Sein-In-der-Welt, levasse através do reconhecimento dos limites ontoló-
gicos intrínsecos ao homem, a reconhecer através de uma ecologia primeiro
filosófica e depois política, a necessidade de repensar os modelos políticos, de
desenvolvimento – a famosa questão de decrescimento económico avançado
por Serge Latouche18 – o relacionamento com a natureza – os contractos
naturais de Michel Serre e Luc Ferry19 – mas sobretudo a necessidade de
associar a necessária solidariedade diacrónica com as gerações futuras com a
solidariedade sincrónica com todos os povos, corrigindo assim a contradição
histórica de uma modernidade que tornou-se possível graças ao encontro
com os outros, mas realizou-se contra esses mesmos outros (E. Dussel)20 .
Infelizmente a Real Politik presidida pelo postulado egoísta da não
negociabilidade do nível de vida dos ricos, matou ao nascer a possibilidade
de um compromisso histórico global, em favor, uma vez mais, de estratégias
de dominação.

18
LATOUCHE, S., Décoloniser l’imaginaire: la pensée créative contre l’économie de l’absurde. Paris,
Parangon, 2003.
19
Cfr. NGOENHA, S.E., O Retorno do Bom Selvagem. Uma perspectiva filosófica-africana do problema
ecológico, Edições Salesianas, Porto, 1994.
20
DUSSEL, E., L’éthique de la libération. À l’ère de la mondialisation et de l’exclusion, Paris:
L’Harmattan, 1998.
68 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

A verdadeira questão glocal de hoje – no sentido que interpela as rela-


ções entre grupos no interior de todas as sociedades, mas também a relação
entre as diferentes partes do mundo – é a justiça. Trata-se então de estender
a questão posta a África do Sul, pelo graffiti que ornamentava a casa de
Desmond Tutu na Cidade do Cabo, ao mundo inteiro: How to turn human
wrongs into human rights?
Esta questão esteve na base do movimento, primeiro, da teologia de
libertação latino americana - basta consultar os trabalhos de Leonardo
Boff - depois do movimento de filosofia de libertação – cfr. a centralidade
da questão da justiça no pensamento de Dussel – e hoje nos trabalhos da
filosofia de interculturalidade (Raul Bentacourt).
Mas como se sabe, o movimento da teologia de libertação latino-ame-
ricano foi precedido pelo movimento de Black Theologie of Liberation dos
EUA com os trabalhos de James Cone, que por sua vez depende de todo um
movimento político-cultural de revindicação de igualdade de direitos, quer
dizer de justiça, que ganha forma nos EUA já durante o período da escravatura
e cujo ápice foi atingido em Harlem da Black Rennaisance com os trabalhos
sócio-filosóficos de Dubois, literários, de Langston Hugues, políticos de
Marcus Garvey. Todavia, os eventos dos anos sessenta com Martin Luther
King e Malcom X – definidos por James Cone como partes complementa-
res de um mesmo processo, ou ainda a emergência de movimentos como o
Black Power, estão a demonstrar que os problemas da justiça não tiveram
um êxito positivo.
A filosofia africana, por seu lado, reclamou a justiça, primeiro como
reconhecimento da dignidade humana dos africanos, depois como direito a
soberania política. Hoje a questão de fundo é a possibilidade de utilizar os
recursos africanos para o desenvolvimento do continente, o acesso aos mer-
cados internacionais contra as barreiras proteccionistas dos potentes, uma
soberania alimentar, direito a não ser sufocado pelo sistema da dívida, etc.
Nos últimos anos o Ocidente aproximou-se das questões dos danados
da terra. Alter-mundialistas, sociólogos, economistas, filósofos reabilitam a
filosofia política com a questão da necessidade de um novo contracto social.
É obvio que não se pode dizer que o terceiro mundo tenha inventado a justiça
como questão maior da filosofia política. Alias, a justiça está presente sob for-
Pensamento engajado 69

ma de Filia em Aristóteles, Eros em Platão, Ágape em Agostinho, distributiva


em Thomas de Aquino, equidade em Kant, etc. Isso não obstante, a particular
contribuição sul-africana da justiça através do conceito operatório Ubuntu
(justiça restaurativa) merece uma menção especial, e isto por duas razões.
Primeiro, a filosofia africana ocupou-se essencialmente de problemas
particulares do mundo negro: luta contra a escravatura, integração social
das diásporas, emancipação política, luta contra a pobreza absoluta. Esta
é a razão pela qual não teve eco fora do mundo negro, e mesmo aqui de
uma maneira diferenciada. As questões postas pela filosofia africana nunca
interessaram os asiáticos. A teologia da libertação interessou os latino ameri-
canos, mas muito rapidamente trilharam caminhos diferentes dos nossos. As
questões da filosofia Bantu, da etnofilosofia, da Negritude, da autenticidade,
são questões de uma filosofia que corre o risco de ser etnocêntrica, racial ou
quando muito afrocêntrica. Interessar-se pelas questões da justiça significa
debruçar-se sobre questões que ultrapassam o âmbito afro-africano, e por
conseguinte, a qualidade e a pertinência da resposta podem constituir uma
contribuição africana no âmbito da filosofia em geral, mas também, dada a
natureza polissémica da justiça, ao direito, a moral e a política.
Neste sentido a RSA com o seu conceito de justiça restaurativa, como
foi praticada e como pode ser teorizada, pode constituir uma das primeiras
contribuições importantes do continente africano para um debate de ideias
que ultrapassa a dimensão africana. Não é por acaso que o processo da
reconciliação interessou filósofos como J. Derrida, P. Ricoeur entre outros.
A segunda razão tem a ver com a especificidade e a pertinência teórica
do conceito Ubuntu na reflexão sobre a justiça.
Em relação ao resto do continente negro, a RSA tem a particularidade
de não ser uma colónia mas uma República independente com um sistema
político baseado sobre a segregação racial. Por isso, enquanto os nacionalis-
mos que atravessaram o continente, sobretudo na segunda metade do sec.
XX, eram de natureza emancipadora, o nacionalismo - ou os nacionalismos
sul-africanos - é, como os movimentos pós-escravatura nos EUA, anti-
segregação. Isto explica aliás, alguns empréstimos teóricos que contribuem
a dar um respiro histórico amplo a reflexão sul-africana.
70 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

No seu livro auto-biográfico Africa, The Time has Come, Thabo Mbeki21
mostra-se um fino conhecedor da história dos movimentos panafricanos e
das filosofias políticas que subentenderam os seus diferentes movimentos.
Por isso, quando fala de African Rennaisance conecta deliberadamente o
substrato filosófico-político da nova África do Sul, com o espírito do movi-
mento de Harlem entre os anos ‘20-‘40, que mereceu da parte do filósofo
afro-americano Alain Locke, o nome de Black Rennaisance.
O pai imputativo do movimento americano, William Dubois, desde os
seus primeiros trabalhos The Philadelfia Negro, passando pelo Black Folks,
até às controversas com Booker Washington, tinha claramente demonstrado
que a questão negra era fundamentalmente política, e era a esse nível que
tinha que ser resolvida. O objectivo de Dubois era fazer com que os negros
gozassem, como os outros cidadãos, de todas as prerrogativas previstas pela
constituição americana. Mas esta passagem tinha que ser acompanhada por
uma série de medidas de descriminação positiva, susceptíveis de levar os
então negativamente descriminados a integrar a sociedade global. A posição
deboista recorda de perto a política pós-apartheid da África do Sul.
Langston Hugues, na tentativa de colmatar o maior deficit histórico-
identitário dos negros nos EUA, como aparece no Black Folks de Dubois22 ,
isto é, a necessidade de uma autónoma definição de si lança-se a procura da
sua blackness. Porém, nesta sua busca existencial ele descobre a sua twoness.
A busca de uma autodefinição de si, leva-o a cair na conta que para fazê-lo,
como os intelectuais do Renascimento Irlandês, tinha necessariamente que
passar pelo outro, pelas suas categorias linguísticas e culturais. Ele então se
dá conta que o pluralismo cultural lhe é interior. Ele poderia ter dito como
Rambow eu sou um outro. Este é o sentido profundo da sua afirmação eu
também sou a América.
O espírito que atravessa o renascimento afro-americano e o sul-africano, é
de uma busca identitária que por razões históricas e sociológicas não pode ser
exclusiva mas inclusiva, não é de separação mas de integração no respeito da
dignidade e das particularidades de cada pessoa e grupo. Este é o significado
mais profundo do conceito Ubuntu, cuja expressão iconográfica é Rainbow

21
Ed. por Thabo MBEKI, 1998.
22
DU BOIS, W. E. B., As Almas da Gente Negra, Lacerda Editores, 1999.
Pensamento engajado 71

Nation. Contudo, o espírito de Ubuntu como orientação performativa da RSA


pós-apartheid encontra-se já no discurso de Albert Luthuli na recepção do
prémio Nobel para a Paz em 1961: A futura África do Sul será africana, mas
não será necessariamente negra. Estavam lançadas as bases que se tivessem
sido cuidadosamente analisadas, poderiam ter orientado diferentemente a
filosofia africana e sobretudo evitado debates estéreis envolta de questões
etnofilosóficas, negritude ou ainda de autenticidades.
Mas se o objectivo não era expulsar os estrangeiros ou invasores, porque
não havia estrangeiros nem invasores; se a luta não era racial mas anti-racial,
se não se tratava de dividir mas unir, quais eram os apetrechos intelectuais
capazes de servir de fundamento a uma tal empresa? Em outras palavras, se a
questão era mudar as relações de poder e de sociedade, qual era a concepção
operacional da justiça que podia favorecer a emergência de uma vida comum
entre as diferentes raças – o que supunha provavelmente uma reconciliação
entre as partes – mas desta feita, no respeito do espírito de igualdade que
toda e qualquer democracia supõe?
As tradicionais concepções operacionais de justiça eram evidentemente
inadequadas. Tratava-se de encontrar um conceito operacional de justiça,
que não se configura como o Maat egípcio ou como a Minerva grega, cujos
corolários das suas visões do que é justo, acabam quase sempre leviatanamente
cortando, separando, dividindo; mas quase nunca recriando, recompondo,
recosendo o tecido social. Paul Ricoeur23 fala da produção da violência pela
justiça, e considera que o direito penal é um escândalo intelectual, na medida
em que acrescenta um sofrimento a um sofrimento, o sofrimento da pena ao
sofrimento do mal feito a uma outra pessoa.
A isto pode se acrescentar a preocupação manifestada por Karl Jaspers24 ,
em resposta aos crimes da segunda guerra mundial, em encontrar uma justiça
que não de limite a estabelecer os factos, mas que compreenda uma dimensão
catártica; ou como diz Derrida25 , que liberte o opressor.
23
Avant la justice non violente, la justice violente, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité,
reconciliation, réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.159-171.
24
Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.),
Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
25
DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR
(dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
72 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Onde ir buscar uma justiça que compreenda os imperativos da catarsis


através do reconhecimento do outro e da reconstrução da relação social? A
justiça que se procurava, era a justiça de uma costureira que com o trabalho
tenaz e de muita paciência cose a diferentes partes afim de construir uma
peça única. Onde ir buscar um tal conceito?
Aqui reside a segunda fonte específica da busca sul-africana: a dimensão
teológica. A escolha de uma comissão de reconciliação e não a instauração
de um tribunal especial para punir os crimes contra a humanidade, mostra-
va claramente que o caminho a percorrer para passar do human wrongs ao
human rights subordinava a tradicional justiça punitiva à reconciliação. Isto
é, o reconhecimento público do mal cometido, o arrependimento, a vontade
de reintegrar a comunidade com uma nova atitude relacional (é o que se
chama Ubuntu).
Ora Desmond Tutu não foi só o executor material desse processo, mas
de certa maneira também seu conceptualizador. É na mediação teológica,
trabalhando de uma maneira particular São Paulo (metanóia) mas também
a tradição vetero-testamentária do retorno dos malfeitores a justiça e ao bem
comum, que Tutu construiu durante as suas pregações de combate que ele
livra ao Apartheid a partir de 1976, o pensamento de reconciliação.
Todavia, Tutu inspirava-se teologicamente na Black Theologie of Libe-
ration dos USA iniciada por personalidades como James Cone. Esta teologia
com um processo que os pós-modernistas chamariam de dekostrution, chama
em causa a instância última da garantia moral da sociedade americana, aquele
Deus bíblico que serve de garante da constituição.
Fazendo uma exegese histórica das manifestações de Deus, os teólogos
da libertação negra americana evidenciam que o Deus bíblico inscreve a sua
acção num quadro histórico dominado pela hegeliana contraposição dia-
léctica mestre-escravo. Mas a particularidade do Deus vetero-testamentário
era estar sempre ao lado dos oprimidos, e os oprimidos nos EUA eram os
negros, como vão também ser os negros na RSA. Esta conclusão exegética
vai constituir o leit motiv de toda a teologia negra nos USA, o que aliás vai
ser retomada primeiro pela teologia de libertação latino americana e depois
pela sul-africana.
Pensamento engajado 73

Todavia, apesar de estar ao lado dos oprimidos, o Deus vetero-testame-


tário não quer a morte dos opressores mas a sua conversão, o que a teologia
Paulina chama de metanoia. A premissa deste restorative justice encontrar-
se-ia, segundo Gustavo Zagrebelsky26 , na oposição que o direito hebraico
faz entre nispat e ryb, isto é, entre a justiça concebida como intervenção de
uma terceira pessoa e a justiça entendida como encontro entre o culpado e a
vítima cujo objectivo não é a punição do culpado mas a composição da con-
troversa graças ao reconhecimento do mal feito, o perdão e de consequência
a reconciliação e a paz. A finalidade desta forma de justiça é a inclusão, é
recozer as relações sociais.
Contudo, mesmo que se reconheça o seu fundamento hebraico, não se
pode ignorar a novidade sul-africana em ter estendido esta forma de justiça ao
plano colectivo e nacional, em suma ao plano político. Pode-se então deduzir
que a RSA promoveu um novo modelo de Justiça? Trata-se de um imbróglio
jurídico-político-ético-religioso como parece sugerir Barbara Cassin, ou de
um abandono positivo das limitações disciplinares?
Quid da reparação? Pode a nova justiça negligenciar a questão da re-
distribuição?
A restorative justice, na argumentação de Tutu, implica a reparação. Só
que o prelado introduz uma diferença entre o conceito de reparação e o con-
ceito de compensação. O reconhecimento público dos males subidos é uma
reparação, mas compensar implicaria a possibilidade de quantificar os sofri-
mentos, restituir alguém pela perda de um ser querido. Esta argumentação é
considerada por Jacques Derrida não convincente sob plano intelectual27 , e é
contestada no plano prático, por exemplo, pelos companheiros sobreviventes
de Steve Biko, fundador do movimento da consciência negra28 .

26
Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.),
Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
27
DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.),
Vérité, Reconciliation, Réparation. Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
28
Cfr. CHARLAND, M., Prudence Plurielle. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Re-
conciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.205-215
74 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Esta justiça como reconhecimento (recognition) que implica a restau-


ração da dignidade humana das vítimas, pode fazer a economia da justiça
penal e retributiva e ainda mais da justiça social distributiva?
O objectivo final da justiça restaurativa (ubuntu) não era simplesmente a
identificação do outro, nem mesmo perceber o outro como semelhante, mas
também dar-lhe o respeito, admitir que a minha vida é igual a sua. Trata-se
do reconhecimento do seu ser, da sua existência, da sua identidade, do seu
lugar numa cidade comum. Fazer comunidade é tornar-se uma sociedade de
com-munia, isto é de dádivas (munia) partilhadas.
A mútua construção de uma comum comunidade de destino não impli-
ca então uma redistribuição social dos bens oriundos da segregação que se
quer ultrapassar, não necessariamente como reparação dos tortos subidos,
mas tradução para o terreno existencial dos postulados ético-jurídicos? Se
essa justiça não se faz ágape/dilectio não se corre o risco de se transitar de
racialização política-jurídica do apartheid a uma racialização económico-
social pós-apartheid?
O tecido social que a costureira começou a coser com coragem e ab-
negação, necessita de muito fio e muita bordado para que não se rasgue
ao primeiro movimento desajeitado. Este processo de solidificação, pode
prescindir de uma redistribuição económica?
A RSA, mundo em miniatura, onde uma minoria detém os meios de
produção, o saber, os meios económicos e a maioria é miserável, pode ser
um laboratório onde se experimentam as soluções de justiça susceptíveis de
ser globalizáveis (rainbow world); como pode ser uma simples extensão do
sistema mundial baseado sobre a desigualdade, onde os negros como nos
EUA, na Jamaica no Brasil, para dar alguns exemplos, passaram pura e sim-
plesmente de escravatura a semi-cidadãos, tributários unicamente de deveres
servis. Em suma, rainbow world ou apartheid económica?
75

FILOSOFIA COMO ENGAJAMENTO


CONTRA OS MITOS *

José P. Castiano

A filosofia, como qualquer outra ciência, está na fronteira máxima entre


a acção ou o agir e a reflexão ou o pensamento.
A particularidade dos filósofos, porém, é que eles residem nos ambos
extremos: ou pensam demais ou agem demais. Entendo o demais como sendo
sinónimo de para além das fronteiras epocais e políticas. Isto quer dizer que
há, na História do pensamento filosófico, dois paradigmas de conceber o papel
do filósofo numa sociedade: o paradigma duma filosofia da contemplação
(que se concentra mais no pensamento) e o paradigma de uma filosofia de
intervenção (que concebe o pensamento para servir a acção, em particular
a política). O primeiro poderia chamar-se de um paradigma hegeliano e o
segundo de um paradigma marxiano. Para Hegel, a filosofia é o resumo do
tempo no pensamento (ou num conceito) e como tal ela só vem ao entardecer
quando tudo já aconteceu. Para Marx, pelo contrário, a filosofia é chama-
da não somente a revelar e compreender o mundo, mas sim e sobretudo a
transformá-lo. O acto de revelar e de compreender o mundo não é um fim
em si, mas sim um meio para mudá-lo. Assim, o filósofo não deve somente
contemplar o mundo, mas sobretudo ajudar a mudá-lo, assevera-nos Marx,
ou a moldar o futuro, como sustenta Ngoenha.
Poderia propor outros exemplos que ilustrem esta contraposição na
História do pensamento filosófico desde a Grécia até aos nossos dias. Porém,
acho que este é um debate falso. Mesmo a contraposição entre a contempla-
ção e a intervenção é falsa porque, para mim, um filósofo é ambas coisas: um
*
Apresentação perante estudantes de filosofia e docentes na Faculdade de Medicina da UEM no dia
22 de Setembro de 2007. O tema inicial deste artigo foi “O meu credo filosófico”.
76 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

contemplador em acção e um actor em reflexão. Eu penso que há um eixo


que une estes dois paradigmas aparentemente opostos da filosofia: é que os
dois paradigmas são, na sua essência, um engajamento de desmistificação per-
manente contra os mitos. Para mim a filosofia é uma arma de desmistificação
ou de revelação dos mitos. Em outras palavras e paradoxalmente, a filosofia é
um espelho do mito, isto é, torna os mitos perceptíveis aos humanos através
de um exercício de reflexão crítica.

A Filosofia como Espelho do Mito


Se não fosse o espelho, não nos conheceríamos a nós mesmos. Se fi-
cássemos muitos anos sem nos vermos ao espelho, o mais provável seria
não reconhecer a nossa própria foto actualizada. A nossa face seria a de um
estranho. No entanto, por mais estranho que pareça, por mais atraente que
seja um espelho, ninguém gosta de ir ao espelho nu. Nós só vamos ao espelho
depois de nos vestirmos para vermos se a máscara (a nossa personalidade)
ficou bem, conforme o que queremos parecer. Mas mesmo assim, são pou-
cas as pessoas que ficam satisfeitas com a sua imagem ao espelho: sempre
gostaríamos de trocar de roupa para criar melhor impressão.
É assim a filosofia: quando ela se coloca perante o espelho vê mitos. Não
é por acaso que a filosofia nasceu do mito. O mito vai ser sempre o que a
filosofia vê quando se põe perante um espelho numa batalha interminável. Por
isso, a natureza e a essência da filosofia é desvelar estes mitos. Neste empenho
de desmistificação, a filosofia chega até ao extremo de olhar-se ela própria
como um mito e não o seu oposto. Não é, pois, por acaso que Richard Rorty
pensava que o maior erro da filosofia foi o de ter-se visto como «espelho da
natureza», ou seja, que tem a possibilidade de conhecer e revelar a verdade
que governa os fenómenos naturais e os factos sociais. A razão se tornara
ela própria um mito. Pois, se sabemos que a filosofia nunca vai ser capaz de
conhecer a natureza das coisas, porquê então filosofar?
No entanto, mesmo estando constantemente a se descobrir como um
mito, a filosofia nunca deixou de lutar contra o mito. O mito é a sua imagem,
o seu reflexo e ao mesmo tempo o seu oposto, a sua sombra. Assim, radicali-
zando a nossa posição, a filosofia leva o tempo a lutar consigo própria (o mito).
Pensamento engajado 77

Daqui deriva a posição central que quero defender: um filósofo digno


deste nome é um caçador de mitos, isto é, de si mesmo. A sua arma é o argu-
mento. Ele é severo, rigoroso e intransigente quando se trata de argumentar
contra o mito.
Mas há uma pergunta à qual não podemos escapar se estivermos de
acordo com o pressuposto de que a essência e a origem da filosofia está na
sua luta e amor contra e com o mito: será que a filosofia se desenvolveu re-
alizando uma transformação gradual dos mitos ou nasceu por uma ruptura
radical com os mitos do seu contexto?29
O mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. A palavra mito
tem, na sua origem grega, duas acepções. Uma: contar, narrar, etc. E outra:
conversar, anunciar, designar, etc. Assim temos que o mito é um discurso
que é feito para um certo número e tipo de ouvintes. É uma narrativa feita
em público por um narrador (na Grécia por um poeta). Outra característica
básica do mito é que o público aceita o que ouve como verdadeiro, pois o
poeta é um escolhido dos deuses para narrar aos ouvintes o passado, ou seja,
a origem das coisas. Assim, a palavra do poeta como o enviado divino – o
mito – é uma revelação também divina.
Houve dois grandes poetas na Grécia Antiga: Homero – de família aris-
tocrata, escreveu duas obras a Ilíada e a Odisséia e Hesíodo – um camponês,
de classe mais baixa que escreveu Teogonia e Trabalho e seus Dias.
O mito, tal e qual é narrado na Grécia Antiga, tem três formas principais
de justificar a existência e o estado das coisas.
A primeira forma: Tudo o que existe decorre de uma relação sexual entre
forças divinas que geram titãs (seres semi-humanos e semi-divinos), heróis
(filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano),
humanos, o resto das coisas da natureza e as suas qualidades respectivas
(quente, frio, bom, mau, etc.). Esta é uma narração de origem ou genealógica.
O exemplo duma narração genealógica:
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansieda-
de e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada
ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor,

29
Os exemplos que se seguem foram adaptados da página electrónica http:/www.algosobre.com.br
(consultada a 20 de Setembro 2007).
78 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

isto é, o nascimento do deus Eros (Cupido). A seguir dá-se um exemplo


extraído do Banquete 203a, de Platão:
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se
encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de
jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou na porta. Ora, Recurso,
embriagado com o néctar – pois o vinho ainda não havia – penetrou o jardim
de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de re-
curso, engendra um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe
o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado
em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque
também Afrodite é bela. E por ser filho, o Amor de Recurso e de Pobreza,
ficou nesta condição . Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de
ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e
sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas
e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a
precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e
corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações,
ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível
mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no
mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo
ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de
modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está
no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.

A segunda forma: Explorando a rivalidade ou uma aliança entre os


deuses. No caso da rivalidade o mito explica as guerras e no caso da aliança
entre as forças divinas surgem novas coisas no mundo.

O poeta Homero, no livro Ilíada, explica as derrotas e as vitórias ora dos


troianos, ora dos espartanos a partir das rivalidades dos deuses que estavam
divididos e o Zeus, de cada vez, tomava partidos diferentes. O interessante é
notar, porém, que a causa das guerras era a deusa do amor – Afrodite – que
aparecera como a escolhida nos sonhos do príncipe troiano – Páris – e as
outras deusas zangaram raptando a mulher do general grego – Menelu – co-
meçando aí uma guerra entre os humanos.
Pensamento engajado 79

A terceira forma: O mito distribui as recompensas ou os castigos que


os deuses dão, dependendo se as pessoas ou os semi-deuses obedecem ou
desobedecem.

O uso do fogo pelos homens é um bom exemplo pois, para os homens, o


fogo é o que os diferencia dos animais; ele serve para cozinhar os alimentos,
a iluminar caminhos na noite, a se aquecer e serve para fabricar instrumen-
tos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um titã (semi-deus), Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deu-
ses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os homens.
Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina,
eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também.
Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher encantadora
(Pandora) a quem foi entregue uma caixa – conhecida por Pandora box –
que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora
foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as ma-
ravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guer-
ras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males do mundo.

A filosofia emerge – e penso que não deve perder esta sua origem e na-
tureza – de uma luta com o seu oposto, o mito, encostando os argumentos
que tenham fundamentos duvidosos cada vez mais contra a própria parede.

O Meu Credo Filosófico


Porém, nem todos os filósofos, ao olharem para o espelho, acertaram
sempre na definição do mito. Isto porque o mito consegue sempre deslocar-se
para zonas de maior penumbra e esconder-se lá onde raramente um filósofo
desprevenido poderia pensar em procurar o seu lado perverso: no próprio
íntimo do homem. Quando o filósofo pensa ter destruído o mito, ele volta a
espreitar com mais força.
Porquê esta persistência do mito?
Muito simples: porque, como descobriram os antropólogos e historiado-
res nos meados do século passado, os mitos são parte integrante da organi-
zação social e cultural de todas as sociedades; no mito estão profundamente
80 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

entranhados os modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Assim, embora


a filosofia seja uma racionalização do mito, ela não consegue sair do interior
do próprio mito.
Como dizia, filósofos diferentes caçaram e acertaram em mitos diferen-
tes. O meu credo filosófico gira em volta daqueles filósofos que penso terem
sido os que mais acertaram deconstruindo os mitos que ameaçavam as suas
sociedades e, por isso, transcenderam as suas épocas. A minha escolha des-
tes filósofos prende-se, portanto, pelo facto de terem desvendando os mitos
que nos ajudam a compreender o nosso tema de hoje: o papel do filósofo
na desmistificação dos mitos da globalização. Naturalmente que nem todo
pensador que escolho é filósofo. Mas como pensadores souberam transcender
as suas épocas, isto é, engajaram-se no combate contra mitos que a maior
parte dos seus contemporâneos acreditaram. Esses filósofos são: Sócrates,
Marx, Nietzsche, Eduardo Said, Cheikh Anta Diop, Hountondji e Ngoenha.
O primeiro, Sócrates, engajou-se contra o mito que todos nós temos
em algum momento e é o básico para ser destruído em primeiro lugar, se
queremos ter a pretensão de sermos considerados filósofos: o mito de sermos
os detentores da verdade, de sabermos tudo, enfim, de nos considerarmos
superiores aos outros. Sócrates, como é sabido, gostava de dizer: «só sei que
nada sei, e é nisto que penso superar aos que pensam que sabem». Com isto
Sócrates queria dizer que explicar a origem e a verdade das coisas através de
objectos e realidades materiais torna-se absurdo. Só no interior do homem
se pode encontrar a verdade e Sócrates passa toda uma vida a ridicularizar
aqueles que pensam saber qualquer coisa que não seja de natureza espiritual.
Até Platão, seu discípulo, se indignou pela maneira como ele assistiu a De-
mocracia a ser capaz de condenar à morte ao seu mestre por «adorar deuses
falsos» e por não aceitar ser impingido uma verdade que não fosse produto
do pensamento. Hoje, num mundo considerado globalizado, o Ocidente se
comporta e é visto como um mito de uma civilização avançada a qual sabe
o caminho que os nossos países devem seguir o modelo democrático por ele
construído. Sócrates nos inspira como exemplo para, na pretensão de sermos
filósofos africanos hoje, combatermos este mito. Ou seja, deconstruirmos o
Ocidente como um mito.
Pensamento engajado 81

Marx, por sua vez, desmistifica o capitalismo mostrando que este siste-
ma é uma ideologia que se baseia no carácter fetichista perante o dinheiro.
Ele descobre que, por causa do dinheiro, o homem aliena-se da sua essência
que é o trabalho. O capitalismo não é uma ordem natural da sociedade e
nem a última palavra do desenvolvimento das sociedades. É por causa deste
elemento de alienação capitalista que Marx denuncia, que hoje somos capa-
zes de ter consistência teórica na luta contra a opressão do capital global e
podemos denunciar que o liberalismo político não assenta necessariamente
numa ordem económica capitalista. Por outras palavras, Marx despertou-nos
para a ideia de que podemos ter uma democracia liberal que esteja assente
numa ordem económica mais justa que supere as injustiças inerentes ao ca-
pitalismo selvagem (i.e., sem regras que limitem o fetichismo pelo dinheiro
e pela propriedade), como o que impera hoje em Moçambique. Mostrar as
fraquezas e as contradições internas de um capitalismo selvagem deveria ser
uma batalha de qualquer que se preze ser filósofo africano engajado pela
liberdade.
Nietzsche foi o mais radical na destruição do mito. Ele denuncia a racio-
nalidade como sendo um mito da modernidade. Quer transmutar todos os
valores modernos. Para ele o Homem moderno sucumbira perante a religião
e perante o Estado, tornando-se um camelo. É preciso renascer como uma
criança que abandona toda a carga da tradição. Para ele a razão não é mais
outra coisa que a vontade pelo poder, uma ambição que a razão ocultara em
forma de iluminismo.
Nietzsche quer ver de volta o culto ao Dionísio: Zeus engendrou Dioní-
sio com Semele, uma mulher mortal. Hera, mulher de Zeus, ficou colérica e
condenou Dionísio à loucura. Desde então, Dionísio vagueia sem rumo pela
África do Norte e na Ásia Menor. Um «deus estranho» este que vagueia e
desaparece de repente. Dionísio distingue-se de todos os deuses pelo facto
de ser um deus ausente. Mas ele voltará liberto da loucura, renascido dos
mistérios da vagabundagem. Assim, o caos do Ocidente é um presságio do
regresso de Dionísio para repor a moral, a ordem e a liberdade. Para mim, um
filósofo deve desvelar tudo o que se tornara tradição: a própria racionalidade
e a tradição propriamente dita. Aliás, um filósofo deve ir muito mais além:
demonstrar que o pensamento dicotómico, que está por trás da nossa forma
82 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

de analisar as sociedades africanas de hoje, já não faz sentido epistémico para


abarcar as dinâmicas sociais africanas e resumi-las num conceito.
Eduardo Said, em Orientalismo, mostra como uma civilização, o Ociden-
te, fabrica o mito de uma outra, o Oriente. Neste livro se percebe muito bem
como o Ocidente, para dominar os outros territórios, projectou a ciência para
o conhecimento do Outro, objectivando-o. Said mostra como um discurso
científico – feito em forma de relatos de viagens, de discursos políticos, de
pinturas, de literatura, de romance, de estudos antropológicos, geográficos,
linguísticos, etc. – foi capaz de legitimar a dominação. Tudo isto, segundo
Said, fazia parte de uma arquitectura monumental de criação do Oriente
pelo Ocidente. Nas palavras do próprio autor, entretanto, o orientalismo
não pode ser compreendido como um complô imperialista ‘ocidental’ para
subjugar o mundo «oriental». (…) É antes uma distribuição da consciência
geopolítica em textos estéticos, eruditos, económicos, sociológicos, históricos
e filológicos». Este estudo de Eduardo Said foi seguido, no contexto africa-
no, pelo livro The Invention of Africa de Mudimbe. Para mim estes livros
desvelam o mito da invenção do Outro (africano ou asiático) pelo Ocidente.
Para Cheikh Anta Diop a origem e o berço da humanidade assim como
a emergência da civilização do mundo devem ser procurados em África. O
lugar que a Grécia ocupa na História do pensamento científico filosófico,
deveria ser ocupado pelo Egipto Antigo, e, no sentido mais alargado, pela
África. A civilização egípcia é especificamente negra. Anta Diop aponta como
sendo características comuns de toda África o matriarcado a espiritualidade,
o humanismo e o pacifismo. Em Precolonial Black Africa Diop destaca o
desenvolvimento da produção do saber científico (escrita, matemática, lógica,
astronomia, medicina, etc.) nos centros do saber do Egipto, em Tumbuktu,
no Benin (que ele compara com o classicismo grego); e destaca, em segundo
lugar, o desenvolvimento técnico (arquitectura sudanesa, ganêsa e nigeriana,
a metalurgia, o fabrico do vidro, a tecelagem, técnicas ligadas à agricultura,
pesca, caça, etc.) nesses centros de produção do saber. Anta Diop é aqui
alinhado não tanto pelo conteúdo do seu discurso, mas por ter sido um dos
primeiros a recentrar África na História do pensamento e da criação científica.
Destruiu o mito de uma África à margem da História universal.
Hountondji lança uma crítica geral ao que ele mesmo cunhou por
Pensamento engajado 83

etnofilosofia. Este filósofo destrói o mito do unanimismo (a ideia de que


os africanos pensam da mesma forma, adoram os mesmos deuses, dançam
da mesma forma, etc. adjacente aos estudos etnológicos e antropológicos).
Hountondji não considera etnofilosofia como uma filosofia, porque mesmo
que esta consiga mostrar as contribuições que são especificamente africanas
na civilização, elas são simplesmente aspectos da Mitologia. A filosofia co-
meça onde a sabedoria e a opinião popular terminam já que estas últimas
constituem acepções a-críticas em relação às tradições e à autoridade que os
costumes exercem sobre o homem africano. A existência da filosofia pres-
supõe, segundo Hountondji, a emergência do logos e da escrita a partir da
oralidade e do mito. Por outro lado a filosofia só pode ser concebida como
resultado de uma actividade crítica de um sujeito autónomo que não está
totalmente submerso no grupo e no mundo, senão que se põe a si mesmo à
margem deste grupo e do Mundo. Embora Hountondji possa ser tomado
com reservas por ter elitizado o conceito e a prática da filosofia ao submetê-la
aos critérios do logocentrismo e da escrita, isto não invalida porém o grande
mérito de nos ter alertado para a necessidade de preservar o carácter crítico-
reflexivo da filosofia profissional africana. Filosofia é um engajamento crítico.

O Filósofo e os Mitos na Globalização


O Ocidente é, para Moçambique e para África, uma espécie de Deus;
os africanos substituíram Deus pelo Ocidente – como diz Severino Ngoe-
nha em Os Tempos da Filosofia. Em tudo o que pretendemos fazer, como
o desenvolvimento, fazemo-lo à imagem e semelhança do Ocidente como
horizonte, como justificação, como legitimação. Hoje, um filósofo que tenha
a pretensão de tal ser, deve, em relação a esse mito, deixar de ser tradutor
do pensamento ocidental, para ser um intérprete daquele.
Ulrich Beck na Sociedade de Riscos defende que as sociedades capita-
listas modernas já não se caracterizam pela distribuição desigual de capitais,
mas sim por uma distribuição desigual de riscos globais. Esses riscos, por
serem invisíveis, continua ele, distribuem-se desigualmente de forma argu-
mentativa. O intelectual moçambicano deve ser capaz de interpretar, para o
seu povo, o que certas opções e propostas teóricas e políticas do Ocidente
84 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

comportam como riscos para os nossos povos. Resumindo os riscos que a


globalização pode comportar para o caso dos países africanos incluindo Mo-
çambique, Ngoenha, como texto final de Mukhatchanadas, escreve: Então
Deus, por trás do seu sacrário, satisfeito nos seus sapatos made in CEE, nas
suas calças «Tio Sam» e a sua camisa FMI e BM, ordenou à Caritas Interna-
cional, à Cruz Vermelha, aos Médicos sem Fronteiras, que mandasse para
os países dos danados algumas centenas de toneladas de arroz, milho, feijão.
E acrescentou: Oh, não se esqueçam sobretudo de meter debaixo dos sacos
de arroz algumas toneladas de granadas, de bombas e metralhadoras! Ah,
metam também dentro os nossos desempregados e resíduos nucleares.
O segundo mito que um filósofo nas condições de Moçambique e face
à globalização tem pela sua frente é a sua própria tradição. Os intelectuais
moçambicanos/africanos estão encalhados numa espécie de dança de amor
muito estranha com as suas tradições-mães: convidam-nas para à pista de dan-
ça quando se sentem exaustos de dançar com o seu Ocidente-Pai. O convite
à mãe é formulado quando se sentem abandonados pelo pai e precisam da
mãe para, de alguma forma, continuarem a sobreviver como intelectuais. A
tradição é um refúgio onde têm a certeza que podem continuar a dançar no
palco do grande público global. Na tentativa de recentrar o sujeito africano na
História, vêm a tradição como o último reduto. A perdição do nosso filósofo
é maior porque, habituado a livros na sua confrontação com o pensamento
ocidental, quando se vira para a tradição-mãe nota que não há livros, mas
sim pessoas sentadas à volta da fogueira imbuídas no exercício da palavra
(oralidade). O nosso filósofo fica, assim, perdido porque primeiro não domina
o instrumento fundamental que o haveria de permitir sentar-se à fogueira
com os outros: a língua. Segundo porque a interpretação do que a tradição-
mãe diz pressupõe uma mudança radical nos termos do método (deixar de
trabalhar num contexto de escrita para passar para um contexto oral) e em
termos éticos (deixar-se ensinar pelos seus interlocutores tradicionais).
Pensamento engajado 85

ENGAJAMENTO POR UMA


EDUCAÇÃO GLOCAL

José P. Castiano

Qualquer projecto de educação fundamenta-se na concepção predo-


minante sobre o homem. Pois, o homem é o ponto de partida e de chegada
da acção educativa. Ele é o ponto de partida porque a educação parte da
imagem que temos do homem que queremos construir. O mesmo homem é
o ponto de chegada porque a finalidade do acto educativo é a de desenvolver
as faculdades deste. Será assim na educação glocal que, quanto a mim, inicia
com a introdução do currículo Local em Moçambique? Sob que fundamentos
ela assentaria?
Para empreender qualquer acção educativa partimos, no entanto, da
crença que este homem tem condições (faculdades) potenciais para ser educa-
do. A educabilidade do homem, isto é, a capacidade do homem ser educável,
assenta no facto de ele ser um ser racional; um ser que, segundo Sartre em
Ser e Nada, se fragmentou do ser entanto que tal, para ser em si possuidor
de uma consciência. Dizer que o homem é um ser racional significa, no fun-
do, que este homem é potencialmente capaz de usar as suas faculdades de
pensar e julgar para poder decidir sobre a sua acção sobre factos e artefactos
com os quais entra em contacto. Por outras palavras, cada homem usa a sua
faculdade de pensar, i.e. de usar a sua razão, e de julgar para poder agir ou
emitir juízos sobre os fenómenos que o rodeiam.
Por isso, a primeira fundamentação para a educação é a de libertação:
libertar as faculdades do homem poder pensar sobre si mesmo e de poder
formular seus próprios juízos. De fazer o uso público da sua razão, diria o
filósofo de Koenisberg, Immanuel Kant. Este é o sentido profundo quan-
do dizemos que a educação é um instrumento de libertação do homem.
86 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Refere-se portanto a uma libertação no sentido de o homem ser capaz de


pensar correctamente e de emitir juízos de valor de forma autónoma e sem
contrições positivas.
Dissemos antes que a educação se deve centrar no homem. O seguinte
problema educativo começa, entretanto, quando temos como pressuposto
que todos os homens são iguais, todos os homens são diferentes. Como ga-
rantir assim que todos sejam tratados de forma igual e de forma diferente ao
mesmo tempo? Daqui infere-se a segunda fundamentação da educação que
é a de garantir a igualdade de todos porque todos são educáveis; ao mesmo
tempo, porém, a educação deve reservar espaço para que as diferenças entre
os homens e grupos sociais não morram dado que ela deve, por exemplo,
garantir que cada utente dos serviços educacionais possa desenvolver a sua
própria cultura. Formulado mais concretamente: podemos perguntar-nos se
cada aula providencia a ocasião institucional no qual se concretiza a ideia de
que todos são iguais, mas diferentes ao mesmo tempo. É possível o professor
atender a todos de forma igual ao mesmo tempo que trata a todos de forma
diferenciada?
Daqui deriva a terceira fundamentação para a educação que é a de cul-
tivar um homem universal (i.e., que possa viver na base do saber e valores
universais) mas ao mesmo tempo que conheça e pratique as suas tradições
familiares e culturais. Ela deve permitir que a criança entre no mundo global
com os pés firmes, apontamos já algures30 .
A educação é um caminho que começa na família – onde a criança
nasce – até ao sistema-mundo, passando pela comunidade e pela nação.
Ora, o caminho da criança ao sair do seu meio familiar para um em que as
autoridades comunitária e estatal se acrescentam à autoridade familiar, não
deve ser percorrido de uma forma violenta. Na entrada para ser um membro
de pleno direito da sua comunidade e depois para cidadania, a criança não
deve ser nem fisicamente, nem simbolicamente violada.
Até agora já se conseguiu, pelo menos formalmente, fazer com que a
criança não seja fisicamente agredida; no entanto ainda resta muito por fa-
zer para eliminar aquilo que se considera como sendo violência simbólica,
se emprestarmos um termo muito usado por Bourdieu. É desta forma que
o professor tem a gloriosa responsabilidade de fazer com que a marcha da
Pensamento engajado 87

criança da família para a sociedade e para o sistema-mundo não seja nem


corporalmente e nem simbolicamente (espiritualmente) violenta.
Chegados aqui urge perguntar em que medida a introdução do currículo
local no sistema do ensino moçambicano vem responder a estes fundamentos
da educação?
O currículo local é uma parte do currículo do ensino básico (20% do
tempo alocado para cada disciplina) que deve ser preenchida por conteúdos
que os membros da comunidade abrangida por uma certa escola, de uma
forma organizada, acham ser relevantes para a criança inserir-se na sua própria
comunidade, após ou mesmo durante o período da sua frequência na escola.
Portanto, não se trata de conteúdos que são determinados centralmente
pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento (INDE) ou pelo ministério mo-
çambicano de educação, embora ambas instituições, por serem de carácter e
dimensão centrais, possam de certa forma influenciar na determinação dos
conteúdos. Trata-se sim de conteúdos que devem ser produzidos pelos pro-
fessores com a ajuda da comunidade, dos próprios alunos e das instituições
locais como as da saúde, da agricultura, do meio ambiente, etc.
No entanto, para que estes conteúdos se tornem ensináveis, ou seja, para
saírem da cabeça dos membros das comunidades e dos papéis das instituições
locais para a sala de aulas, é necessário que o professor os adeqúe à idade,
à classe/ciclo dos alunos e atendam às competências localmente necessárias
para a vida da criança na comunidade. Para além disso, o professor deve
produzir textos (brochuras do currículo local) e materiais didácticos. Assim,
os professores devem ser capazes de trazer para a sala de aulas os factos e
artefactos culturais do local onde uma certa escola se encontra inserida.
Em relação ao levantamento dos conteúdos relevantes para serem abor-
dados pelos professores na sala de aulas já se fez muita coisa embora reste
ainda muito por fazer. Foram, neste âmbito, levantados conteúdos sobre a
história local da escola e da comunidade, sobre a proveniência do nome da
escola, sobre as principais culturas locais, sobre os recursos locais, sobre a
vegetação e a fauna, sobre as estruturas administrativas e tradicionais locais,
sobre os principais pratos, sobre as profissões locais, sobre os hábitos e
costumes das localidades, sobre as crenças colectivas, etc. O desafio agora
(2009) é trazer estes conteúdos para a sala de aulas repartidos em ciclos e
88 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

classes assim como elaborar materiais de ensino e de aprendizagem na base


desses conteúdos para que a criança possa efectivamente aprender aspectos
ligados à sua cultura e que sejam relevantes para a aprendizagem.
Muitos conteúdos, portanto, dizem respeito às tradições e aos costumes
levantados pelos professores nas comunidades. No entanto, como educado-
res, a nossa tarefa não termina na recolha e na sistematização dos conteúdos
considerados relevantes localmente, e nem deve por aí terminar. Pôr um
ponto final aqui seria continuar a condenar aos alunos a meros elementos
que se destinam a absorver as tradições e os costumes ancestrais; estaríamos
a perpetuar, usando a educação, aquilo que alguns filósofos africanos chama-
ram de anthropological mess, ou seja, a ensinar um conjunto de conteúdos
não relevantes para a vida do estudante hoje e aqui. É necessário, portanto,
fazer mais do que isso, mais do que o INDE fez até agora. É preciso passar-
mos para o passo seguinte: o de fazer justiça ao sentido da palavra educação
usando, naturalmente, esses conteúdos recolhidos.
Dissemos antes que a primeira fundamentação da educação é a de de-
senvolver a faculdade de cada aluno pensar por si mesmo e de julgar. No que
diz respeito a uma Educação Glocal, é muito importante que desenvolvamos
nas crianças não só o conhecimento dos conteúdos e tradições locais como
os que demos exemplos acima; é ainda mais importante desenvolver, e só
assim faz sentido falarmos de educação, a faculdade de cada criança julgar,
ou seja, de formular seu próprio juízo sobre estes mesmos hábitos e tradições
que o professor recolhera das cabeças das comunidades e das instituições
tradicionais locais.
Portanto, a maior forma de inserir a criança numa determinada tradição
viva não é só dizendo-a sobre o quê (conhecimento dos factos e artefactos),
mas sobretudo o porquê desses factos e artefactos locais (faculdade de julgar).
Aliás, esta é a missão da educação para o futuro.
Um parêntesis: quando falamos de factos locais referimo-nos aos eventos
próprios de um local, sejam eles ligados com a história de um determinado
local como a batalha de Manhiquene; sejam eles de carácter cultural, como por
exemplo o M´saho (festival de timbilas de Zavala ou de Varimbas de Sena). E
quando falamos de artefactos culturais referimo-nos aos produtos materiais
que são fabricados nas diferentes comunidades culturais de Moçambique.
Pensamento engajado 89

Por exemplo, o vestuário tradicional da Ilha de Moçambique é diferente do


vestuário tradicional de uma outra parte qualquer.
Cultivar a faculdade de pensar significa, portanto e no âmbito do currí-
culo local, que nos esforçamos para que o aluno conheça e aprenda os factos
(eventos do passado e presente), artefactos (produção material específica)
da sua cultura assim como a vida espiritual da zona. Portanto, uma imple-
mentação correcta do currículo local vai permitir inserir ao aluno e à aluna
na vida económica, social, política e espiritual da comunidade em que ele
está inserido ou inserida.
Por outro lado, cultivar a faculdade de julgar significa, no âmbito do
currículo local, que o professor deve proporcionar ao aluno e à aluna os
instrumentos teóricos necessários para ele se confrontar criticamente, isto
é, argumentativamente, com os mesmos factos, artefactos e a vida espiritual
da comunidade onde vive. Isto vai fazer crescer, sem dúvida, o espírito de
engajamento pela coisa pública na comunidade por parte dessas crianças,
uma vez conhecerem do que se trata e, por isso mesmo, poderem defender
ou argumentar com propriedade sobre aquilo que se pode considerar como
tradição local e sobre os acontecimentos de natureza política, porque é disso
que se trata.

Escola como Espaço Glocal


Na definição que demos acima sobre o currículo local vimos que este
é preenchido por conteúdos pedagogicamente considerados como sendo
relevantes para a aprendizagem do aluno a partir da comunidade segundo
a definição que nos é dada pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento da
Educação, uma instituição moçambicana ligada à pesquisa de base na edu-
cação. Parte-se portanto da ideia que cada escola está inserida num determi-
nado meio cultural e que se deve dar oportunidade a cada aluno e aluna para
poder explorar as potencialidades educativas que este meio oferece a fim de
melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos e das alunas.
Entretanto, ao fazermos o levantamento das questões locais, é muito bem
possível que surjam conteúdos que podem ferir os Direitos Humanos, podem
ser discriminatórios com base ao género ou à raça ou ainda que possam ir
90 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

contra o ideal da dignidade humana. É esta a oportunidade educativa para


humanizar a educação. Para isso é importante estarmos vigilantes para que
este tipo de conteúdos seja efectivamente retirado dos programas de ensino.
O currículo local não tem o objectivo de instigar a qualquer forma de dis-
criminação racial, cultural ou em termos de género; também não pretende
e nem deve ser uma fonte do divisionismo baseado em pertenças étnicas ou
mesmo contra a dignidade de qualquer ser humano.
O espírito do currículo local é que as crianças se confrontem racional
e criticamente com o meio natural, social, cultural, epistémico e político no
qual vivem e que o professor seja o facilitador desta confrontação com o
respectivo meio. Quando usamos o termo confrontação não nos referimos
somente ao conhecimento das danças, das lendas, das profissões, da história
local, das tradições, dos hábitos e dos costumes, etc. O que é ainda mais
importante é desenvolver o saber fazer e o saber estar com outros na comu-
nidade e sociedade. Por exemplo, não basta que a criança saiba como é que
tradicionalmente os seus pais e tios sempre construíram e constroem uma
palhota africana, mas é necessário dar ferramentas para que a criança possa
melhorar essa mesma palhota, isto é, torná-la mais segura e confortável, sem
no entanto deixar perder a estética e arquitectura básica da casa africana
(normalmente redonda, principalmente o seu tecto/cobertura). E esta tarefa
(desenvolver a nossa civilização africana) é da educação e é educativa.
O que queremos dizer com este exemplo é que o levantamento e o
conhecimento das tradições ou dos valores que governam a vida local não
é e nem pode ser um objectivo em si e terminal da educação com base nos
conteúdos locais. Esse levantamento e conhecimento são apenas um ponto
de partida necessário para podermos efectivamente desenvolver as nossas
tradições, enfim as nossas civilizações africanas. Porque um verdadeiro de-
senvolvimento só se pode basear no conhecimento profundo das tradições
culturais e valores locais. Mas, por outro lado, nós podemos desenvolver
estas tradições e valores somente na medida em que eles oferecem respostas
alternativas válidas para resolver os problemas sociais, económicos, políticos
e espirituais da actualidade. Na globalização só podemos estar firmes na
medida em que oferecemos soluções locais para os problemas que nascem
do interior desta mesma forma de existência global. Por via do currículo
Pensamento engajado 91

local abrimos a porta ao aluno e à aluna para que eles mesmos se inspirem
na cultura local para poderem encontrar soluções localmente fundados aos
problemas globais.
Na prática, porém, para conhecer as tradições, não basta (embora seja
importante) que o aluno ou a aluna seja levado a observar factos e artefactos
na sala de aulas ou através de uma visita de estudo. É necessário que o pro-
fessor elabore textos onde descreva estes eventos históricos ou os artefactos
culturais; os textos devem ser escritos por formas que sirvam de apoio ao
próprio professor e sirvam também como meio de aprendizagem ao aluno e
à aluna. Para isso, o professor precisa de registar minuciosamente os eventos
e artefactos no acto da recolha dos conteúdos junto à comunidade e às insti-
tuições locais. O professor precisa de reunir o maior número de informações
possível, não só sobre o passado mas também sobre o presente de que ele
deve ser um testemunha atento.
Pensamos que para poder recolher as informações e registá-las correc-
tamente, o professor precisa de um apoio concertado das autoridades da
educação e das instituições do Ensino Superior, particularmente da Universi-
dade Pedagógica. Este poderia muito bem constituir também um dos campos
ainda virgem para muitas investigações dos estudantes do nível de mestrados.

Da Escola como Espaço sem Violência


Em que medida uma educação Glocal, como a que viemos fundamentan-
do, é uma oportunidade para construir uma escola sem violência, sobretudo
a simbólica?
Todos sabemos que quem tem poder, se não tiver o devido cuidado,
estará sempre tentado a usá-lo em seu benefício violando os direitos dos
outros. O professor ou a professora têm, no contexto da sala de aulas, de-
masiado espaço, no contexto legislativo educacional actual, para exercerem
o seu poder sobre os alunos ou as alunas; e isto pode conduzir ao uso da
violência física e simbólica.
No tempo colonial, por exemplo, um aluno que não fosse capaz de
assimilar uma determinada matéria na aula era batido com reguadas na mão
ou noutra parte do corpo qualquer. Esta prática constituía uma violência
92 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

corporal ou física que inculcava a dimensão do medo na aprendizagem. Este


tipo de atitude, por parte dos professores, não é educativa e constitui uma
violação aos direitos da criança. Também não podemos insultar a criança ou
submetê-la aos castigos corporais de qualquer espécie. A criança merece o
nosso respeito para que ela nos possa também respeitar.
Mas há um outro tipo de violência mais subtil, a que chamamos de sim-
bólica ou espiritual. Quando uma criança entra pela primeira vez na escola
e lhe é praticamente vedada a possibilidade de comunicar-se e desenvolver a
língua com a qual cresceu no seu ambiente familiar, estaríamos, no fundo, a
dizer à criança duas coisas muito graves: que a língua com que se comunica
em casa não serve para adquirir conhecimentos científicos na escola e, o que
é ainda pior, estamos a dizer que aquela língua é inferior em relação àquela
que se usa na escola. Assim, estamos a violar um símbolo importante que a
criança trás de casa. Mas também estamos a fazer uma violência simbólica e
espiritual quando, ao invés de ensinar a tocar a timbila na escola, ensinamos
somente a tocar uma viola. Fazemos violência simbólica quando classificamos
de dialectos em vez de língua, de feiticeiro/curandeiro em vez de médico
tradicional, de droga em vez de remédio, de seitas em vez de religião.

Dos Perigos

Há certos perigos que podem espreitar ao tentarmos implementar uma


Educação Glocal, onde uma das bases é o currículo local.
Em primeiro lugar é preciso alertar para o perigo do folclorismo ao in-
troduzir os conteúdos ou temas do currículo local. É preciso ter em atenção
que, ao introduzir-se o currículo local estamos a tentar implementar dois
princípios de cada ser humano não negociáveis por via da educação: o do
direito à diferença e ao mesmo tempo o da igualdade de oportunidades.
O princípio do direito à diferença exige uma atenção muito especial aos
processos de produção e valorização das culturas e do ambiente social em
que cada escola se encontra e exige, como disse, que se aproveitem todas
as possibilidades e potencialidades naturais, sociais, culturais, históricas e
políticas locais para a aprendizagem da criança. Todos os aspectos locais
têm um valor educativo em potência.
Pensamento engajado 93

Por seu lado, o princípio da igualdade de oportunidades exige que a


educação possa oferecer as mesmas oportunidades de progressão a todas as
crianças no sistema de educação, independentemente do lugar onde estudam
dentro do país. O perigo que correm as pedagogias que tentam valorizar as
culturas locais no contexto da educação glocal é o de usar os elementos das
culturas locais como uma espécie de folclore, ou seja, que só sirvam para
embelezar o currículo nacional com alguns elementos da tradição sem no
entanto tomar a sério estes elementos em todas as fases da actividade pe-
dagógica. Geralmente, em nome da igualdade sacrifica-se a diferença. Não
se trata pois de desenvolver o que se pode designar por um currículo para
turistas, ou seja, o tipo de currículo que admite esporadicamente e de forma
fragmentada temas de natureza local cultivando nos alunos atitudes exóticas
e folclóricas quando estão perante as suas próprias tradições. Trata-se, pelo
contrário, de fazer com que os alunos reconheçam e se confrontem com a
sua tradição viva, promovendo um olhar do diferente como algo de estra-
nho e de exótico, numa atitude comparativa que tem, muitas vezes, o efeito
perverso de separar o nós dos outros e de realçar as diferenças, reforçando
os estereótipos entre as gerações e povos.
Em segundo lugar é necessário alertar para o perigo da mistificação
das tradições ou dos conteúdos locais. O objectivo último da introdução de
conteúdos locais não é só para ter em conta a função reprodutiva da escola
(como uma instituição que deve espelhar o que a sociedade/comunidade
tem como valores e tradições), mas também se deve olhar para a função
produtiva/inovadora da escola, i.e. a responsabilidade desta instituição em
melhorar a vida das pessoas que vivem nas comunidades. A inovação só pode
ser possível se se der a oportunidade às gerações mais novas de se confronta-
rem criticamente com os valores e as tradições locais (o que não significa não
respeitá-las). Lemos em várias escolas a tendência de mistificação das tradições
e costumes em lugar de se mobilizar, através da escola, um esforço intelectual
para compreender a racionalidade que está por trás delas. Como manifestação
desta mistificação pode observar-se a tendência de só considerar-se os velhos
da comunidade como informantes ou pessoas de recurso.
O terceiro perigo que pode matar o processo de implementação do
currículo local é o que diz respeito à preparação teórica (mediar uma con-
94 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

frontação argumentativa e não contígua de saberes de natureza e lógica de


fundamentação diferente), pedagógica (elaboração de textos didácticos a
partir de conteúdos locais) e ética (humildade intelectual para aprender
com os membros das comunidades escolares) dos professores. Embora
tenha encontrado muitos professores que se mostram entusiasmados com
a possibilidade de abordar na sala de aulas aspectos do mundo da vida dos
alunos e da comunidade circundante, este entusiasmo porém é insuficiente.
Sob o ponto de vista teórico é preciso preparar os professores para
mediarem uma confrontação argumentativa entre os saberes de natureza
argumentativa diferente. Sob o ponto de vista pedagógico torna-se necessá-
rio preparar os professores a tornarem os saberes, temas e conteúdos que
recolhem das comunidades ensináveis, ou seja, destrinçar os conteúdos em
objectivos e competências assim como fragmentá-los em tempos lectivos e
de aprendizagem. Há muitos conteúdos relevantes que já foram recolhidos
do seio de personalidades das comunidades diferentes deste país, mas o
problema parece prevalecer em como levá-los à sala de aulas (definir objec-
tivos e competências, enquadrar, dosificar, etc.). Sob o ponto de vista ético
os professores devem ser preparados para tratar os assuntos muito sensíveis
da vida da comunidade. São assuntos que dizem respeito aos tabus, às cren-
ças, à medicina tradicional, etc. com que o professor se vê pela primeira vez
confrontado em abordar na sala de aulas. Ainda sob o ponto de vista ético os
professores deverão ser preparados para exercerem a sua função investigativa
dos saberes locai com a necessária humildade intelectual, isto é, de serem
capazes de deixarem-se ensinar conteúdos, valores e saberes por parte dos
membros da comunidade (mulheres, homens, jovens, velhos, etc.).
Estas matérias deverão fazer parte dos módulos tanto de formação ini-
cial assim como das capacitações (formação em exercício). Também temos
que considerar que o papel do professor passa a ser, no contexto de uma
educação glocal, não só o de transmitir conhecimentos (que vêm nos livros
escolares) mas também o de produzir os mesmos através da sua própria
investigação e dosificação para serem ensinados. Este último aspecto dá
matéria suficiente para se repensar nas estratégias pedagógicas nas formações
(inicial e em exercício) dos professores, ou seja, em buscar novas estratégias
de formar um professor-investigador. Teremos que baixar alguns conteúdos
Pensamento engajado 95

metodológicos que, no contexto da educação actual, são ensinados somente


ao nível superior universitário, para a formação de professores primários, se
apostarmos numa educação glocal de qualidade.
A escola é uma instituição de transmissão de conhecimentos e saberes.
O quarto perigo reside na possibilidade de se introduzir na escola conteú-
dos ou valores de qualquer tipo (ex: de natureza supersticiosa, boatos ou
anticonstitucionais). Por isso é necessário, numa primeira fase, desenvolver
mecanismos de selecção (não confundir com censura) dos conteúdos rele-
vantes. É uma responsabilidade social das estruturas de educação garantir
que estes conteúdos sejam veiculados pela escola de forma mais científica (no
sentido de um conhecimento fundamentado) possível. Uma das formas de
certificar-se desta cientificidade é garantindo que o professor tenha material
didáctico de consulta (livros) em relação ao currículo local, o que actualmente
não existe. Por isso propomos que esta grave lacuna de falta de material seja
minimizada na base de temas gerais de nível de cada Província as autoridades
provinciais de educação se encarregariam por elaborar brochuras didácticas
em redor aos temas provinciais propostos.
Um último perigo diz respeito à exclusão dos alunos e jovens na definição
dos conteúdos de aprendizagem. Como nos referimos acima, a tendência das
consultas que se fazem às comunidades e instituições locais quando se ela-
boram as brochuras escolares do currículo local é a de abrangerem somente
ou quase que exclusivamente às pessoas idosas das comunidades, deixando
os jovens e os próprios alunos à margem. De facto é preciso recordar per-
manentemente que não há ensino possível sem o seu reconhecimento, por
parte daqueles a quem o ensino é dirigido.
De tudo o que foi abordado, pensamos, porém, que o maior desafio ao
nível da formulação de uma educação glocal que se impõe ao nível teórico, é
o da formulação de um discurso lógico que mostre que este tipo de educação
se enquadra num âmbito mais amplo de uma utopia social. A nossa utopia
social é a de construir um Moçambique mais justo. Pois, se ontem o para-
digma da nossa acção deveria ser julgado na medida em que ela se aproxima
à liberdade dos moçambicanos contra o jugo colonial, hoje a nossa utopia
deve ser formulada em termos do que a liberdade conquistada comporta
como responsabilidade; pensamos que o eixo desta responsabilidade está
96 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

num engajamento pela justiça social. Lutar pela liberdade hoje significa lutar
por uma justiça social, é o que queremos dizer. Uma educação glocal deve
estar em condições de avaliar os aspectos do passado, dos hábitos culturais,
dos saberes locais a partir do ângulo em que eles se aproximam ao ideal da
justiça social. Este é, se assim quisermos, um fim pelo qual vale a pena engajar
o nosso pensamento e engajarmo-nos.
97

PORA ACTUALIDADE DE JUNOD

Severino Elias Ngoenha

Este artigo resulta de uma série de conferências organizadas em Maputo


por Nicolas Monnier no quadro do lançamento da Fundação Henri Alexan-
dre Junod. A primeira dessas conferências foi feita por Mia Couto, na qual,
com toda a eloquência que se lhe reconhece, traçou um portrait biográfico
exemplar de Junod, ainda por cima apoiado por uma série de ilustrações
fotográficas do etno-missionário e do Moçambique do seu tempo. Por isso
não vou refazer a biografia de Junod, mas reflectir sobre a actualidade da sua
obra, isto é, trato de reflectir sobre uma série de actualidades sociais a partir
dos problemas que se depreendem de uma leitura atenta do missionário e
etnólogo romando. Para isso vou tomar como postulados algumas questões
paradigmáticas solevadas por Mia: i) As suas classificações linguísticas e a
sua dimensão antropológica; ii) A sua posição pró-Gaza e anti-portuguesas;
iii) Os encontros com Frei de Andrade a Genebra que o levaram a atenuar
as suas críticas ao colonialismo português.

A Dimensão Antropológica
Decidi subordinar esta reflexão às metamorfoses do meu percurso iden-
titário e a maneira como entrei em contacto com a minha identidade tsonga,
categoria etno-linguística intrinsecamente ligada as classificações linguísticas
e a monografia etnológica de Junod.
Eu nasci na então cidade de Lourenço Marques, de pais oriundos da
província de Gaza, Ngoenha -Tusini da parte paterna e Mondlane - Cambane
da parte materna. O estado actual das investigações da etno-história moçam-
98 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

bicana avança a hipótese de uma origem Ndau dos ngoenhas, que teriam sido
forçados a emigrar para as actuais províncias mais ao sul, sobretudo Gaza e
Maputo, em seguida aos conflitos zulo do sec. XIX que acabaram levando os
vencidos a fugirem para Moçambique e a constituírem o Império de Gaza.
A minha avó paterna, apesar de ter sempre sido idiomática e cultural-
mente uma Changana perfeita, quando tinha dois copos, metamorfoseava-
se e metia-se a cantar em Ndau. Contudo, apesar da guerra, dita civil, que
assolou o nosso pais durante anos, ela nunca quis deixar o seu Chibuto natal,
provavelmente porque nessas terras repousavam os restos mortais do seu
querido marido, Ukjafeno Ngoenha, avó que não tive a sorte de conhecer.
Assim, apesar dos esforços de toda a família ela persistiu em ficar em Chibuto
perto do seu marido.
Todavia, o fenómeno das terras pesadas acabou fazendo claudicar a sua
tenacidade; e quando se sentiu muito perto da morte tomou a última grande
decisão da sua vida, mas infelizmente foi para trocar Chibuto pelo cemitério
de Lhanguene.
O meu pai, se tivesse hoje vinte anos estaria na moda! Desde sempre tem
dois furos nas orelhas, o que significa moda para muitos jovens hoje, mas que
no passado remoto, era sinónimo de submissão aos vencedores Ngunis que
chamavam aos futuros Tsongas junianos, thongas isto é vencidos, escravos
ou mesmo cães.
Quando eu nasci, os meus pais viviam no Bairro do Aeroporto. Em
casa, a língua era obviamente o Changana, mas bem cedo o meu Changana,
como de muitas crianças da minha idade era uma mistura entre o Changana
-intra-muros- e o Ronga da socialização ambiente, gradualmente substituí-
dos pelo português devido ao factor escola e por ter ido habitar num bairro
cristão-lusofilo de São José de Lhanguene.
Nós changanas-rongas-lusofilos não tínhamos ritos de iniciação, grios,
circuncisão, e se os tínhamos, eu não os conheci. Os meus pais, cristãos
praticantes, eram também contrários aos Timambas, não acreditavam nos
feiticeiros, não frequentavam curandeiros. Breve, não fui educado no orgu-
lho de uma particular pertença identitária nem a nenhum munus axiológico
culturalmente (etnicamente) conotado. A isto contribuiu o facto que quando
a independência chegou eu tinha doze anos apenas.
Pensamento engajado 99

Com a independência surgiu a primeira consciência identitária. Fas-


cinado por Samora Machel, pelos seus discursos carismáticos e incisivos,
como todos os adolescentes da minha geração aprendi a ser moçambica-
no. Mas este postulado identitário era acompanhado por uma negação de
outras identidades consideradas nefastas para a identidade moçambicana;
tribalismo, regionalismo, racismo. Quer dizer que a minha compreensão
identitária supunha a afirmação de uma identidade moçambicana, que por
sua vez supunha uma apreensão negativa e a consequente negação de uma
suposta identidade Ndau de onde provavelmente provêm os meus bisavôs
(ou mesmo trisavôs), Changana de proveniência dos meus pais, Ronga do
meu lugar de nascimento.
A minha afirmação como moçambicano foi de tal maneira marcante, que
ainda hoje, talvez também por outras razões, continuo a fazer da moçambi-
canidade o socle fundamental da auto-compreensão do meu Eu em termos
identitários. Eu me identifico, me compreendo e me afirmo antes de mais e
sobretudo como moçambicano.
Apesar de ser então seminarista e membro da Igreja Católica (o que quer
dizer universal) foi como moçambicano que fui continuar os meus estudos
em Roma em 1984. Paradoxalmente, na capital da cristandade aprendi a ser
africano. Não fui o primeiro nativo de algures em África a africanizar-se na
Europa. Personagens como Senghor, Cheikh Anta Diop, Sekou Touré (…)
tinham ido para Europa (França) como Walof, Serere, Bamaleque e foi em
Paris que descobriram o orgulho de uma certa africanidade. Para isso tinha
contribuído o encontro primeiro através da literatura e depois ad personam
com os escritores da Black Rennaissance americana, em particular Langston
Hugues, Claude Mackay; a descoberta do lugar central que ocupavam as
chamadas artes negras na grande cultura parisiense – Josephine Baker – e eu-
ropeia – a importância do Jazz nos anos trinta, o reconhecimento da influência
da escultura negra na revolução que o cubismo de Picasso, Braque, Matisse
representa para a revolução da arte ocidental do sec. XX. Mas sobretudo, a
mudança paradigmática da antropologia francesa a partir dos anos trinta, de
uma perspectiva evolucionista, administrativa, residualista e racista, versus
uma perspectiva crítica, que resultou na reabilitação das culturas africanas
por Maurice Delafosse, Les Negres, Paris Rider, 1927; Georges Hardy, L’Art
100 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Nègre, Paris, Laurens, 1927; Leo Frobenius, Histoire de la Civilisation Afri-


caine, Paris, Gallimard 1926. A este esforço de reabilitação vieram juntar-se
os grandes nomes de Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier,
Lévi-Strauss, Mircea Eliade.
Quando eu cheguei a Europa, na década oitenta, o movimento da negri-
tude estava já sem fôlego para seguir a corrida dos tempos, e estava substituído
por uma literatura africana crítica com pressupostos e objectivos diferentes
dos valores defendidos por Senghor, Cezaire e Damas. A partir dos anos
setenta nos países francófonos e anglófonos os processos das independências
africanas deixam no palco problemas identitários que ganham corpo através
do nascimento de uma literatura filosófica, primeiro de carácter etnológica –
Tempels e Kagame – e depois crítica – Hountondji, Towa e Eboussi.
Assim, enquanto a pouca filosofia que se aprendia em Moçambique era
uma simplificação do marxismo para o maior número e escolástica para o
exíguo número de seminaristas ao qual eu pertencia, os meus novos colegas
oriundos da África anglófona e sobretudo francófona analisavam a emergência
de um pensamento filosófico grego a partir de uma perspectiva que Assante
chamaria de afroncêntrica que ia de Cheikh Anta Diop até Obenga, liam
a filosofia da história e de direito de Hegel com os olhos críticos de Towa,
analisavam as teorias diferencialistas de Gobineau a partir do criticismo de
E. Firman e racialistas de Blyden, etc.
Então comecei a deixar-me instruir, não só pelos meus professores, es-
pecialistas em Aristóteles, Kant, Sartre, Habermas, Lyotard (...); mas também
pelos meus colegas iniciados na neo-tentativa de filósofos africanos a levar a
Africa a ser sujeito da sua Historicidade, através da mobilização dos métodos
desta disciplina na análise da actualidade dos problemas do continente.
Esta introdução filosófica-africana de carácter teórica e epistemológica
foi acompanhada por uma imersão nos dilemas etno-antropológicos de
uma africanidade vivida, que se manifestavam sob forma de etnicismos, que
levavam muitos colegas de um só e mesmo país a agruparem por zonas de
origem, pertenças étnicas, línguas de comunicação comum, etc.
Em relação a esses colegas eu sentia-me diferente, distinto, particular.
Porque fazia parte do último grupo de países a aceder a Independência?
Porquê a Independência teve que passar por um processo de luta de liber-
Pensamento engajado 101

tação nacional? Pelas opções ideológicas do país que é o meu? No colégio


urbano, em frente mesmo da Basílica S. Pedro, onde vivi quatro anos, colé-
gio histórico construído sobre um antigo cemitério romano por vontade de
Urbano VIII em seguida aos eventos que tinham levado a condenação de
Jordano Bruno e de Galileu e a necessidade de dar uma formação substancial
e uniforme (propaganda fidei) aos futuros evangelizadores do novo mundo,
Moçambicanos éramos dois, mais tarde três. Um do sul, eu, um do centro
e outro do norte.
Contrariamente aos nossos colegas, quer fossem do Uganda, do Zaire ou
da Nigéria que apesar do catolicismo e no alto nível de instrução juntavam-se
só por regiões de proveniência, nós moçambicanos estávamos sempre juntos,
falávamos sempre português (características sobre as quais o colonialismo e
a Frelimo estavam de acordo) para a surpresa e incompreensão dos nossos
colegas. Aliás, a questão mais comum colocada por eles era: vocês vêem da
mesma tribo, são da mesma região, porque falam português entre vocês?
Padres ou seminaristas, nós moçambicanos, membros de uma qualquer
etnia, raça ou região, universalistas pela nossa profissão de fé; nós luso-falantes
pelo assimilacionismo colonial português e pelas estratégias de unidade post-
colonial, éramos antes de tudo e sobretudo moçambicanos.
O afro-moçambicano talvez fosse melhor dizer o moçambicano-africano
em que eu me tinha tornado, solicitou um professor alemão para dirigir a
sua tese de licenciatura sobre temas de filosofia africana. Isso não é filosofia,
ouvi-me responder. E de uma maneira mais pertinente, você é jovem, aprenda
a fazer filosofia debruçando-se sobre os clássicos da disciplina, quando tiver
aprendido e consolidado o método e o espírito da filosofia, então fará o que
quiser. Que remédio, aceitei a melhor parte deste discurso epistemologica-
mente e moralmente discutível e fiz uma tese de licenciatura sobre Giovanni
Battista Vico e um doutoramento sobre Vico e Voltaire.
Enquanto me debruçava sobre a minha tese, durante as férias de verão fui
a Londres para um estágio linguístico. Inscrevi-me numa escola, a Tottridge,
quarteirão norte da cidade, dirigida por uma sul-africana. Numa sexta-feira,
depois de uma pequena festa da escola, a directora pediu-me para acompa-
nhar uma estudante que vivia perto da casa onde eu era hóspede. Como sou
obediente e fiel aceitei, e desde então acompanho essa jovem, que desde há
102 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

doze anos tornou-se minha esposa. Por acaso essa moça era Suiça – da parte
italiana e, ainda mais por acaso, entre as diferentes possibilidades que tinha
ela escolheu fazer os seus estudos universitários em Lausanne.
Junod era suíço de Neuchatel. O azar quis também que a única missão
Suiça de língua francesa - havia outra de língua alemã em Basel - tivesse sido
fundada em Lausanne.
Foi um antropólogo de Universidade de Lausanne, Gerald Berthoud,
que me levou a me interessar pela missão romande. Nunca soube se a sua
principal motivação fosse a estima que ele tinha pelo trabalho científico de
Junod, a quem ele consagrou um capítulo num dos seus livros, Antropolo-
gia Geral Teoria, ou se estava a procura de traços de um outro Berthoud
que no fim do sec. XIX de Neuchatel, de onde ambos eram oriundos, tinha
desembarcado em Moçambique fundado a missão Suíça. Alías Berthoud e
Junod são os únicos missionários cujos restos mortais repousam em Rikathla.
Apesar de existirem algumas obras e objectos, sobretudo de carácter
etomológico e etno-museológico nos depósitos e na biblioteca do museu de
etnologia de Neuchatel, os principais trabalhos de Junod encontram-se nos
arquivos de departamento missionário de Lausanne, sobejamente conhecido
entre nós, por ter sido frequentado por investigadores, como Teresa Cruz
e Silva, Alexandrino José, Janet Mondlane, Nicolas Monnier, entre outros.
Quando pela primeira vez fui ao Departamento Missionário, fui rece-
bido por um bibliotecário angolano que se mostrou interessado em receber
um investigador moçambicano, mesmo se o meu «catolicismo» e percurso
jesuíta – a universidade gregoriana onde fiz a minha tese é a Meca do saber
jesuíta – suscitou algumas perplexidades. Soube rapidamente que o traba-
lho de arquivo e de catalogação dos diferentes documentos existentes na
biblioteca era obra de um certo André Clerc, antigo missionário que depois
do seu regresso definitivo para Suiça nos anos sessenta, tinha dedicado a
esse trabalho o essencial do seu tempo. Para além de ser a principal chave
para a compreensão da particular organização dos arquivos do DM, André
Clerc passou a ter para mim uma importância ainda maior quando soube
que ele tinha sido o tutor de Eduardo Mondlane com quem manteve uma
correspondência intensa – que se pode consultar nos arquivos – quer no
período em que Mondlane esteve em Chikuki, quer no período americano
Pensamento engajado 103

passando pelo período delicado dos seus estudos na África do Sul. Por outro
lado, vim a saber que Clerc tinha sido o fundador dos miklawas onde tinham
germinado ideais nacionalistas nos jovens como Mondlane, Mocumbi, Graça
(…). Soube que Clerc era o responsável da comissão das bolsas de estudo
que permitiu a formação de um certo número dos quadros moçambicanos
do post-independência. Soube das relações estreitas que existiram, durante
a Luta de Libertação Nacional, entre a Frelimo e o DM; basta pensar que
esta estava constantemente sob vigilância da PIDE.
Um dia enquanto trabalhava na biblioteca e falava com curiosidade e
interesse do papel importante de Clerc na vida de Mondlane, de Moçambique
e da sistematização dos arquivos ouvi-me perguntar, porque não vai vê-lo?
Ele é velho mas ainda completamente lúcido.
Foi assim que vim a saber que ele estava ainda vivo.
Pedi o número de telefone e chamei imediatamente. Alô, aqui André
Daniel Clerc. Quem é o senhor? Quem era eu? Ou para dizer como Mon-
taigne, quem sou eu? Católico educado em Roma por Jesuítas, casado com
uma Suiça, membro da Universidade de Lausanne, não como estudante, mas
como professor. A minha imagem (portait) não correspondia em nada ao
que o «velho missionário», educador de gerações de moçambicanos poderia
esperar.
– Sou «moçambicano» e chamo-me Severino (…); antes que eu pudesse
terminar Clerc interrompeu-me para perguntar U wa ka mani (Donde vens
e de quem és filho ou qual é o teu apelido):
Ni wa ka Ngoenha, ni huma kapfumo (je suis un Ngoenha, je suis ori-
ginaire de Maputo).
U wa ka hina (Tu és dos nossos!). Eu acabava de descobrir, que ao lado
da minha identidade moçambicana ligada, primeira a delimitação geo-colonial
de Berlim e depois a Independência nacional mas sobretudo a minha escolha;
ao lado da minha identidade africana ligada a minha africanização em Roma
mas também a minha adesão, eu tinha uma outra identidade imputativa que
até então eu ignorava: que se declina missiologica e antropologicamente
como Tsonga.
O que é que significava e de quê (circunstâncias) e quem dependia uma
tal identidade?
104 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Em poucas palavras e a priori se pode responder que a ideia de uma


identidade Tsonga é intrinsecamente ligada à missão, aos seus debates etno-
linguísticos ligados às suas necessidades de evangelização, às necessidades
escriturais do repertório protestante, e por último à circunspecção etnográfica
dos trabalhos de Junod.
A razão de ser desta pretensa identidade tem, portanto, que ser procurada
do lado da missão suíça, nas metamorfoses históricas que levaram à criação
da missão de Vaud (conflito com o poder político da terra de origem), na
dimensão missionária da jovem Igreja Livre, no repertório protestante que
exige a transmissão da fé através da Bíblia, nas vicissitudes histórico-sociais
da Europa na fase da industrialização, nos paradigmas evolucionistas do sec.
XIX, nos processos classificatórios das ciências a partir do sec. XVIII, nos
conflitos católico-protestantes, etc. Breve, é do lado de Lausanne e da missão
Suíça que se tem que indagar a razão de ser desta construção identitária.
Ora, no Moçambique da II República, começaram veleidades tribais
bastante veementes. Não se trata simplesmente de Ndaus e Senas no Centro,
ou Macuas e Macondes no Norte, mas sempre mais se ouve falar nos Rongas,
Changanas e Bitongas no Sul; e mesmo de Tsongas sobretudo pelos membros
da Igreja Presbeteriana...
Também participa desta forma de veleidades étnico-tribais, o surto
repentino de associações de amigos de Gaza, da Zambézia, do Maputo; e
risca de ganhar proporções políticas se o Ministério de Educação tem que
deferir ou transferir a introdução do ensino bilingue por razões de equilí-
brio étnico-linguístico ou pior, se ou principais partidos políticos nacionais
se identificam ou são identificados com uma região, ou pior, com uma dita
identidade étnica. O que significa que não somos indemnes de um conflito
étnico no país, com consequências que podem ser muito nefastas como vimos
no Biafra dos anos sessenta ou no Ruanda dos anos noventa.
Estudar Junod, como outras figuras de invenção identitária pelo Mo-
çambique fora, deveria levar-nos a ter consciência da dimensão construída,
inventada, das nossas ditas identidades étnicas muitas vezes por razões –
bíblicas, teológicas, cristãs, missionárias, coloniais – alheias e em princípio
coercivas em relação a uma certa autonomia aos nossos processos sociais.
Mesmo se devemos também reconhecer, que a invenção exógena partiu de
Pensamento engajado 105

dinâmicas proto-culturais que já estavam presentes, e foram seguidas por um


processo de re-apropriação pelos actores locais.
Ter consciência destes processos talvez nos leve a moderar/atenuar
certas adesões acríticas a certas reivindicações identitárias, que na realidade
representam ou podem representar uma ameaça a convivialidade civil mo-
çambicana, espaço identitário que não resulta simplesmente da arbitrária
divisão de Berlim, nem das estratégias assimilacionistas luso-católicas de
António Ennes; mas da capacidade dos nacionalistas moçambicanos de faze-
rem uma leitura histórico-política objectiva quanto ao espaço geo-político da
reivindicação das independências, que não podiam ser de nenhuma maneira
as etnias, como também não puderam ser nem a África unida de Nkrumah,
nem os espaços de complementaridade cultural de Cheikh Anta Diop, nem
os espaços de complementaridade económica de Mamadou Dia; mas as fron-
teiras coloniais assumidas pela carta da Organização da Unidade Africana.
E segundo lugar, pela coragem de mobilizarem os eláns proto-nacionalistas
existentes (Udenamo, Unamo, Mani) alguns nascidos mesmo nos miklawas
tsonga-centradas, para reivindicarem uma moçambicanidade.
Uma das funções (talvez fosse melhor dizer desafio) dos estudos sociais
e antropológicos é deconstruir estas realidades identitárias, relevando o seu
carácter «construído» por razões, muitas vezes exógenas e desconhecidas aos
actores locais. Em todo o caso, ter consciência da dimensão construída das
identidades étnicas e culturais deveria relativizar adesões muitas vezes acrí-
ticas a certos etnocentrismos que podem minar a identidade moçambicana.
Mas a identidade moçambicana é também uma construção – eu diria
mesmo a infieri – em nome da qual, num primeiro momento combateram-se
ideologicamente (matar a etnia para nascer a Nação) as identidades locais.
O problema é saber como equacionar os diferentes níveis de pertença não
para que se excluam nem que se combatam, mas para que se completem.
O segundo desafio da ciência entre nós é criar os pressupostos, as bases,
as teorias, os postulados, os axiomas, para fazer uma ciência que nos permita
de melhor apreender as nossas realidades sociais.
Há alguns anos atrás em frente da entrada principal da Universidade
Eduardo Mondlane viam-se muitos trabalhadores que participavam na cons-
trução das embaixadas da China e da Alemanha. A maioria dos pedreiros,
106 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

carpinteiros que participaram nessas empresas limitavam-se a seguir ordens


e ignoravam completamente quer a estrutura das obras em construção quer
o resultado: um edifício de arquitectura asiática e outro europeu. Quem
conhecia antecipadamente o resultado era o arquitecto que projectou a obra.
Fazer ciência significa não limitar-se a ser pedreiro, mas ousar ser ar-
quitecto. Este é um déficit ou, se quisermos, um dos desafios da ciência em
Moçambique. Ora, Junod também correu o risco de limitar-se a ser pedreiro e
nunca ser um arquitecto, pois os seus primeiros trabalhos etnográficos foram
subordinados a um questionário que recebeu do antropólogo administrativo
inglês Lord Brice. Muitos outros missionários na América Latina, na Austrá-
lia e em África e na Ásia tinham recebido questionários da escola francesa
ou inglesa e o trabalho deles tinha sido preencher fichas e questionários e
enviá-los aos antropólogos que estavam nas capitais. Morgan, Taylor foram
alimentados assim e daí produziram as suas monografias.
Junod não se contentou em preencher as casinhas que lhe foram man-
dadas pelos sábios de gabinetes, mas ele foi para além disso e é isso que faz
com que ele seja reconhecido e os seus trabalhos pertinentes para as análises
sociais hodiernas. Quer dizer que ele entrou em contacto com os paradigmas
teóricos então vigentes, com os construtores de estradas ingleses mas também
francesas. Se ele tivesse simplesmente preenchido as casinhas nunca teria
sido o antropólogo que ele é hoje. Ele foi o trabalhador predestinado a ser
pedreiro mas que com a sua curiosidade e trabalho ousou projectar o seu
próprio edifício, é por isso que hoje ele faz parte dos antropólogos reconhe-
cidos pela sua particular contribuição ao mundo científico.
O desafio que se coloca às ciências sociais moçambicanas é que não se
contentem em ser pedreiras dos arquitectos Bourdieus, Levy Strauss; Mas
que procurem na emergente filosofia africana crítica e hermenêutica e post
colonial – pressupostos teóricos de reflexão – sem que isso signifique virar
as costas à teorização ocidental. Mas sobretudo, que não reduza o projecto
antropológico ao estudo dos selvagens de Moçambique, mas ouse reflexiva-
mente uma auto-reflexão crítica (sciere) e mesmo tomar os missionários de
ontem e de hoje – cooperantes, doadores, ONG – como objecto de estudo.
Pensamento engajado 107

Entre o Assimilacionismo e o Multiculturalismo


A pertinência científica e a actualidade da obra de Junod reside também
no facto de ele ser susceptível de ser mobilizado para uma melhor compre-
ensão de fenómenos socio-políticos que constituem preocupações actuais
quer para a sociologia como para a filosofia política.
Com o fim do apartheid, a África do Sul orientou-se de uma espécie de
multiculturalismo doutrinal iniciado por Henrik F. Verwoerd, em direcção a
uma espécie de assimilacionismo (Ubuntu). Ao mesmo tempo, Moçambique
fez o caminho inverso: do assimilacionismo colonial seguido pela doutrina
revolucionária do «matar a tribo para criar a nação», foi se repristinando o
reconhecimento e a valorização das diferenças culturais internas, a partir da
introdução da educação bilingue (método pedagógico outrora praticado no
Sul de Moçambique pelos missionários suíços), até a derrapagens etnicistas
preocupantes que vão do surto repentino de organizações de amigos desta
ou daquela cidade (que em alguns casos os nomes das cidades são simples
sinónimos, apenas velados de revindicações étnicas) até uma certa etnicização
da política.
O mundo actual, dito de globalizado – utilizo globalização porque é
ligado ao conceito geográfico de globus que entra na linguagem científica a
partir do século XVI, enquanto mundialização é ligada a filosofia e teologia
da história começada por Santo Agostinho no século IV (cfr. Marramão) – é
caracterizado, entre outras coisas, por uma grande mobilidade de pessoas, de
raças, de religiões e de culturas. Quando as pessoas vão do Sul ao Norte são,
de todas as maneiras cunhadas de imigrantes e, por conseguinte, intimadas
a se integrarem o que é de facto um eufemismo para dizer que se têm que
assimilar. Em contrapartida, a deslocação Norte-Sul independentemente das
razões chama-se cooperação, o que dá aos generosos «expatriados» direito
a manter as suas especificidades culturais que de todas as maneiras são su-
periores que as práticas dos indígenas…
No debate actual quanto aos «modelos de gestão da diversidade», a
América do Norte (Canadá e Estados Unidos) privilegiam o modelo multi-
cultural, por razões inerentes a sua génese histórica: a situação da comuni-
dade amero-indiana, os afro-americanos, as perseguições e as guerras entre
108 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

religiões que estão na base da imigração de muitos europeus para os EUA


entre os séculos XVI e XVII, a matris anglo-saxónica das elites americanas,
as imigrações europeias dos séculos XIX e XX.
Pode-se considerar que o apartheid na África do Sul foi, em definitivo, o
multiculturalismo levado às suas consequências extremas, e esta tem sido uma
das críticas que a Europa Ocidental tem feito ao modelo norte-americano; o
perigo da criação de um apartheid sob forma de «gethização» com todos os
corolários de conflitos sociais que uma tal situação provoca. É assim que ao
invés do multiculturalismo, e contra o velho sistema assimilacionista praticado
na época colonial (França e Portugal), a Europa política fala de integração (o
que comporta o respeito de uma base axiológica comum que torna possível a
vida social, mas ao mesmo tempo a possibilidade dos diferentes indivíduos e
grupos terem valores próprios e fazê-los mesmo beneficiar aos concidadãos) e
a Europa científica viu lá a possibilidade de abrir um novo domínio de saber
intitulado intercultura.
Ora, esses debates que na Europa são contemporâneos, constituíram
os substratos das ideologias políticas na África Austral desde o fim do sec.
XIX com as estratégias assimilacionistas começadas com António Ennes em
Moçambique, e as estratégias separatistas da África do Sul que com Verwoerd
atinge simplesmente o cume de um processo iniciado muito antes.
Junod atravessou, de uma maneira atenta e muitas vezes crítica, as fron-
teiras políticas desses dois sistemas sem nunca chegar nem a aderir nem a
opor-se totalmente a nenhum deles. Para o etnólogo – e teólogo romântico
– que ele era, o apartheid sul-africano tinha uma faceta positiva na medida
em que favorecia a emergência e a afirmação de particularidades, expugna-
das do outro lado da fronteira pelo assimilacionismo português. Ao invés,
para o missionário, a irredutibilidade ontológica entre as raças no sistema do
apartheid metia em causa a universalidade do cristianismo e abria espaço a
teorias poligenistas e predeterministas, o que os pressupostos evolucionistas
do assimilacionismo não permitiam.
Por conseguinte, a África, nas suas metamorfoses históricas e Junod na
sua maneira de estar, entre o registo universalista e assimilacionista da missão
e as preocupações particularistas do etnólogo, são de grande pertinência
e actualidade nos debates hodiernos da filosofia política e sobretudo, na
Pensamento engajado 109

exigência actual de encontrar um modelo que permita uma convivialidade


pacífica entre pessoas de culturas diferentes, que não é um epifenómeno,
mas tornou-se constitutivo das sociedades contemporâneas.

Junod e o Colonialismo
Entre os vários conotativos atribuíveis a Junod – missionário, antropó-
logo – a categoria mais geral, mas também mais problemática é a categoria
de colonizador. Com efeito, Junod defendia a colonização dos africanos,
ele veio para a África como colonizador. Só que colonialismo no sec. XIX
é um conceito positivo. Colonizar queria dizer libertar o negro da pobreza,
da escravatura, do islamismo, etc. Então dizer-se grande colonizador no sec.
XIX era sinónimo de grande filantropo, humanista. Os colonialistas, aliás
humanistas de hoje chamam-se doadores, ONGs, cooperantes, ...
Se o missionário era tão colonizador como o militar e o mercante, eles
diferiam contudo nos objectivos. O que diferencia Junod de António Ennes
primeiro e de Mouzinho de Albuquerque depois, é que os portugueses que-
riam colonizar Gaza de um colonialismo de exploração. Enquanto Junod
concebia a colonização da África e dos africanos por parte dos europeus
simplesmente como meio para libertar os negros do paganismo e da igno-
rância. Como a escola de Salamanca no sec. XV (Soares, Vitória) a propósito
da colonização da América, ele subordinava a Ius inventionis à Ius praedi-
canda evangelium. Era necessário que a colonização fosse rentável para as
duas partes senão seria moralmente injustificável. Esta é a razão pela qual no
conflito do fim do sec. XIX que opôs portugueses – que queriam reintroduzir
a escravatura através do xibalo – e Gaza, ele era da parte de Ngungunhana.
Este combate de Junod é ainda de grande actualidade, dado que algumas
práticas económicas e sociais de hoje (condições de trabalho e salários) levados
a cabo pelos novos «Mouzinhos» de Albuquerque, que sejam moçambica-
nos, portugueses de volta, sul-africanos ou outros agentes da globalização
económica se parecem muito com o xibalo do passado.
A diferença específica do colonialismo de Junod era a missão cristã. Foi
por razões de envagelização que ele deixa a Suiça, e atravessa fronteiras geo-
gráficas, linguísticas, culturais até chegar no que hoje é Moçambique. Todavia,
110 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

ele trazia já consigo uma certa inclinação para os estudos sociais – o que vai
muito interferir no seu trabalho de missionário -, na medida que ele fazia
parte daquelas pessoas que olhavam com uma certa angústia as transforma-
ções bruscas que se produziram na Europa em seguida à revolução industrial
e que levaram a perda de identidades locais, do folclore, de especificidades
culturais, de referências morais, etc.
Este processo de transformação era tanto mais significativo, quanto na
esteira da filosofia e da teologia românticas, Junod pensava que as identida-
des, as línguas e as culturas fossem espaços epifánicos privilegiados para a
revelação divina. Por isso, Junod chega à Moçambique com predisposição
de defender particularidades. O grande dilema é como conciliar a actividade
missionária com a actividade antropológica.
O missionário é alguém com convicções fortes, que tem «verdades» a
levar aos outros homens, povos e culturas. E em nome das suas verdades ele
intima os outros a abandonarem as suas crenças e práticas culturais inerentes.
Neste sentido o missionário é um reformador de crenças mas ao mesmo tempo
também de culturas. Como consequência, o missionário que acredita que a
sua fé pode ser difundida sem limites de fronteiras geográficas, linguísticas
e culturais, é na realidade um universalista.
O etnólogo, por sua vez, de um lado não tem verdades a transmitir, está
mais interessado a aprender das culturas que a ensinar; por outro lado está
interessado na maneira particular através da qual a humanidade dá razão a
existência por meio de uma cultura particular. Neste sentido, a pior coisa que
pode acontecer com um antropólogo é chegar a um lugar por onde tenha já
passado um missionário.
Ora, Junod – e aqui reside ambiguidade do seu trabalho – é ao mes-
mo tempo um reformador de culturas e um defensor de particularidades.
Podemos questionar a sua pretensão de ter estado, exactamente porque
missionário, numa posição privilegiada para fazer a sua inchiesta etnológica,
como podemos também questionar a pertinência epistemológica de inchiesta
antropológica que se limita unicamente a aurir informações nos já convertidos
membros da Igreja.
Mutatis mutandis devemos relevar que já na introdução da sua célebre
monografia ele afirma querer ser o mais objectivo possível, tentando render
Pensamento engajado 111

as particularidades do grupo sem tentar influenciar e interferir nelas. Foi


esta perspectiva teórica muito próxima da antropologia científica do seu
tempo que fez dele um dos poucos antropólogos missionários: o facto de ter
reconhecimento e pertinência nos debates académicos.
113

PEDUCAÇÃO E POBREZA*

José P. Castiano

A questão que pretendo tratar é esta: Nos tempos de pobreza que afec-
ta a maioria dos moçambicanos, qual pode ser a contribuição específica da
pesquisa educacional no alívio ao sofrimento dos moçambicanos (devido à
pobreza)?
E a proposta que quero defender é esta: Para que a educação contribua
realmente para o combate à pobreza é necessário que o projecto educacio-
nal assente nas necessidades materiais e espirituais das comunidades. Esta
proposta parte do pressuposto básico que a pobreza da qual a sociedade
moçambicana enferma, tem uma face material, mas também tem outra face
que é imaterial. Por consequência, a pesquisa educacional é chamada em
primeira linha a elaborar um discurso pedagógico a partir do inventário atu-
rado que deve fazer sobre as necessidades básicas de aprendizagem materiais
e imateriais tendo como centro comunidades concretas. Penso que esta é a
direcção que as linhas de pesquisa que se desenvolvem, tanto na Universidade
Pedagógica assim como em outras instituições de educação, poderiam tomar
se têm como pretensão serem úteis na luta contra a pobreza.
Se formos a falar em termos gerais, a pobreza material e a pobreza espi-
ritual, chama-nos a atenção para a necessidade de acelerar o aprofundamento
de duas «revoluções» que penso estarem a tomar seus contornos próprios
na sociedade moçambicana: uma é a revolução agrícola cujo objectivo é
eliminar a fome e a pobreza material. A outra é a revolução cultural cujo
marco fundamental é uma dupla abertura: para as novas tecnologias e para

* Texto da oração de sapiência pronunciada em Quelimane por ocasião da abertura do ano


lectivo na Universidade Pedagógica, a 22.02.2005.
114 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

os saberes locais. A luta contra a pobreza é apenas uma fase dum objectivo
mais amplo: o desenvolvimento de Moçambique. Mas o desenvolvimento
deve basear-se no homem moçambicano que vive em comunidades concretas.
Este deve estar apto para dominar tanto as novas tecnologias e usá-las em
prol do desenvolvimento, assim como ser capaz de beber dos saberes locais
e tradicionais que estão depositados em pessoas concretas nas comunidades
na medida em que (as tradições) são mobilizáveis para dar respostas aos
problemas inerentes à pobreza.
Para ilustrar a ligação entre a pobreza material e imaterial, permitam-me
que o faça por meio de uma história:
Durante um festival tradicional chamado «Ndaam Koya», David Millar,
membro de uma organização denominada CECIK encontrou Adongo Nso,
um velho da comunidade Gowrie-Konkwa no norte de Gana. O velho esta-
va a tocar um instrumento musical muito antigo que emitia melodias estra-
nhas, mas muito bonitas, próprias para celebrar o evento. Esta era a primeira
vez que David via aquele instrumento e escutava aquele tipo de música, não
obstante ele estar a trabalhar há muito tempo naquela mesma vila. Assim, ele
aproximou-se ao velho que lhe fez revelações interessantes:

David: Que idade tem este instrumento e há quanto tempo o tem estado a
tocar? Eu venho anualmente para estas celebrações de «Ndaam Koya», mas
nunca lhe tinha visto a tocar este instrumento!

Adongo Nso: É um instrumento muito antigo usado pelos nossos antepas-


sados para adorar os seus antepassados ou para as cerimónias fúnebres. So-
mente a minha família tem habilidades de fabricar e de tocar este instrumen-
to. Não é possível encontrá-lo num outro lugar.

David: Imagino que tens uma família muito grande. Quantas pessoas da tua
família sabem tocar este instrumento e quantos jovens da tua família sabem
tocar ou estão a aprender de si a usá-lo?

Adongo Nso: Somente dois de nós sabemos usar este instrumento. Eu e o


meu irmão gémeo! Os nossos filhos e netos recusaram aprender porque eles
disseram que é um instrumento tocado por homens pobres e que iria perpe-
Pensamento engajado 115

tuar a sua pobreza; como vê, as pessoas vêm a pobreza em várias dimensões.
Adicionando ao facto de não ter condições materiais, pode também ver-se
como uma pobreza de espiritualidade, de conhecimento e de habilidades.

David: Podes explicar um pouco mais esta outra dimensão da pobreza?

Adongo Nso: Os missionários foram os primeiros a dizer-nos sobre a nossa


pobreza espiritual. Eles pensaram que pobreza era venerar os nossos an-
tepassados. Eles mesmos ocuparam-se de fazer-nos cada vez mais pobres
destruindo as nossas religiões.

A seguir os funcionários do Governo vieram com os seus conhecimentos


sobre a produção alimentar e de novo nos disseram que o nosso conheci-
mento, a nossa capacidade de produzir era pobre. Estes também nos fizeram
cada vez mais pobres ao tentar destruir o nosso conhecimento e substituí-lo
com as suas técnicas. Hoje temos uma pobreza «absoluta» na nossa comu-
nidade e estes que substituíram os nossos conhecimentos e capacidades são
responsáveis por isso.31

David: E qual é a sua sugestão para isso?

Adongo Nso: O Governo deveria, de certo, olhar para a pobreza material.


Mas a pobreza no conhecimento, capacidades e espiritualidade deveriam
também fazer parte da sua preocupação.

O Governo de Moçambique acaba de anunciar que cerca de 75% do


orçamento será aplicado nos diversos programas de redução da pobreza32 .
Penso que a história que acabei de contar pretende mostrar que a pobreza
não pode ser só equacionada em termos materiais. Aliás nos mostra que a
pobreza espiritual está muito mais enraizada em nós do que às vezes pensa-
mos. Neste aspecto aprecio bastante o lado da pobreza que o actual Chefe

31
Tradução livre minha de: MILLAR, D.; HOOFT, K.; HAVERKORT, B.; HIEMSTRA, W., An-
cient Visions and New Challenges. In: Compas Magazine for Endogenous Development. Nr. 4,
March 2001.
32
Segundo o Telejornal das 20 horas, de 17.02.2005 na Televisão de Moçambique (TVM).
116 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

do Estado costuma falar. Pois, se ele insiste na ideia de «os moçambicanos


devem confiar nas suas próprias forças» para vencer a pobreza, isto significa
que é um apelo para mobilizarmos os inimigos não materiais do desenvolvi-
mento, aos quais o nosso velho Nso na nossa história classifica de «pobreza
de conhecimento, de habilidades e de espiritualidade».
Como então a pesquisa educacional pode redireccionar-se para que
contribua para o combate à pobreza? Se quiser tornar a história frutífera
para o tema que estou a abordar, ou seja redireccionar a pesquisa na educa-
ção para o combate à pobreza pondo no centro a comunidade na definição
das necessidades de aprendizagem, então o velho Nso na nossa história faz
quatro propostas interessantes, a saber: a primeira, em relação ao objecto da
pesquisa educacional; a segunda, em relação ao sujeito da pesquisa educacio-
nal; a terceira, em relação às metodologias de pesquisa e a quarta em relação
à utilidade social dos resultados da pesquisa (responsabilidade perante as
comunidades).

Em seguida vou explorar cada uma destas propostas.


Primeiro: Em termos do objecto de pesquisa. A comunidade deve ser o
objecto central da pesquisa educacional. Colocar a comunidade no centro
significa que ela é o início e o fim da pesquisa educacional. Pondo a comuni-
dade como o objecto central da pesquisa no contexto da luta contra a pobreza
significa, em primeiro lugar, equacionar as metas da «Educação Básica para
Todos» assim como os «Objectivos do Milénio» a partir da comunidade.
Concentremo-nos na Educação Básica para Todos tal e qual ela foi definida
na Conferência de Jomtien. Para isso temos de equacionar o que significa
«educação básica», por um lado, e o que significa o termo «todos», por outro
lado Esta equação vai ser feita evidentemente a partir de uma comunidade.
Comecemos pelo termo «básico». Na aplicação prática há uma restrição de
educação básica para uma educação escolar ou primária. O termo básico
pretende sublinhar que não é só com a formação escolar primária que se po-
dem cobrir as necessidades básicas de aprendizagem. Pois, as que se podem
considerar como sendo necessidades básicas para um indivíduo, se estendem
e variam ao longo de toda a vida. Portanto, não deve reduzir-se a educação
básica a uma educação oferecida pela escola primária e esta não deve bastar
Pensamento engajado 117

para o indivíduo. Por outro lado o básico é confundido com o mínimo ou seja,
as necessidades básicas passaram a ser entendidas e aplicadas no sentido de
«o mínimo que se pode dar», de «pacote restrito e elementar de capacidades»
úteis para satisfazer as necessidades imediatas. Na aplicação dos programas
de ensino básico, o conceito de necessidades básicas passou a ter a conotação
de «programa mínimo», «conteúdos mínimos», ou ainda «padrões mínimos»
de aprendizagem. Mas partindo da ideia de que cada escola deveria ter o
seu projecto pedagógico e este deve assentar-se nas necessidades básicas da
comunidade, então e pondo a comunidade no centro da pesquisa, teremos
que ser capazes de definir o que pode ser considerado uma educação básica
para cada escola numa determinada comunidade.
O outro termo a equacionar é o de «todos». No tempo das matrículas,
as nossas comunidades e bairros quase que se dividem em duas partes: en-
tre as crianças que conseguiram a matrícula e as que vão ficar mais um ano
fora da escola; entre os pais e encarregados que conseguiram matricular os
seus filhos e educandos e aqueles que não conseguiram fazê-lo. Então aí o
termo «todos» se restringe aos poucos com lugar na escola. A pergunta é:
e os «outros» que não conseguiram entrar na escola perdem o seu direito?
Ficam desempregados? Quais são as alternativas que se lhes oferece? O sis-
tema de educação elitista que herdamos do colonialismo está desenhado por
formas a «lavarmos as mãos» para os «outros» mal o processo de matrículas
termine. Pois, após terminar o processo das matrículas, concentramo-nos
então literalmente na parte das crianças da comunidade que conseguiram
matricular-se para lhes fornecer livros, afectar ou contratar professores, etc.
Os jovens que perderam a matrícula, os adultos e as mulheres fora do sistema
escolar, ficam a espera para o outro ano. Estão condenados a não terem a
oportunidade de desenvolver as suas capacidades para o combate efectivo
à pobreza material e imaterial. A linha divisória nas comunidades e bairros
entre as pessoas nas comunidades passa a ser a escola.
Penso que aqui a pesquisa educacional tem muito a dar na luta contra
a pobreza, apontando ou reordenando as linhas de pesquisa tanto para os
que estão dentro do sistema como para os que estão de fora.
Para as crianças que estão dentro do sistema poderia formular questões
concretas que afectam a aprendizagem nas comunidades (que podem ser
118 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

tratadas usando métodos qualitativos e quantitativos). A título de exemplos


de perguntas podemos formular as seguintes: qual a percentagem de crian-
ças que devem tomar conta dos irmãos em casa? Quais e como as crianças
ajudam aos parentes nos trabalhos caseiros? Qual é a percentagem daqueles
que desistem porque devem ajudar na agricultura e/ou na pastagem? Qual
é a parte de crianças que num determinado ano teve de começar a trabalhar
para poder ganhar o pão? Quais são as crianças que desistiram pelo facto de
os pais não estarem interessados na sua escolarização ou na continuidade dos
estudos? Quantas crianças desistiram por causa dos custos reais (apesar de a
escola teoricamente ser gratuita)? Quantas crianças na comunidade desistiram
porque tinham que tomar conta dos doentes nas suas respectivas famílias?
Por gravidez? Quantas refeições têm as crianças em casa? Estas e outras mais
perguntas estão dirigidas para apurar os factores da pobreza que afectam a
aprendizagem ou provocam a desistência obrigando o Estado a despender
recursos enormes. Penso que o pesquisador, ao direccionar as linhas de pes-
quisa para estes problemas, pode influenciar positivamente para a definição
de estratégias educacionais a nível da comunidade e pode também ganhar
espaço na definição do discurso educacional. Mas penso também que este é
o tipo de informações ou dados que os directores de escolas e os directores
distritais de educação devem dominar para terem maior domínio das polí-
ticas educacionais a nível local e poderem optar por vias mais acertadas na
implementação da educação para todos também ao nível local.
O que pode fazer o pesquisador educacional para os que estão fora da
escola, sobretudo para os jovens e para as raparigas nos bairros e nas comuni-
dades? Penso que a ideia lançada em Jomtien e que infelizmente ficou apenas
bastante teorizada, porque não se traduziu ainda em prática sistematizada,
a ideia portanto de «educação básica fundada em necessidades básicas»,
deve ser explorada e aplicada usando como horizonte de implementação a
comunidade. Se por um lado o pesquisador educacional se pode concentrar
na inventariação do que são as necessidades básicas de aprendizagem em
comunidades concretas, também poderá, por outro, desenhar programas
educacionais adicionais e alternativos para esses jovens com base nessas ne-
cessidades. O que impede, por exemplo, a uma escola organizar cursos para
preenchimento de requerimentos (para a obtenção de títulos de terra ou de
Pensamento engajado 119

negócios) ou o que trava a nossa Universidade Pedagógica em abrir cursos


de capacitação, de actualização ou de reorientação profissional de acordo
com a demanda? Penso que absolutamente nada, a não ser o próprio siste-
ma do ensino que é mais selectivo e excludente do que aberto e inclusivo.
Naturalmente que o desenho destes programas alternativos ou adicionais vai
requerer repensar no sistema de creditação ou certificação escolar. Mas isso
é um problema técnico e não de princípios ou de fundamentos do sistema
de educação.
Segundo: Em relação ao sujeito da pesquisa. O professor deve ser o su-
jeito central da pesquisa educacional. A actividade de pesquisa deve deixar de
ser o privilégio elitista universitário. O termo bastante usado pelo Presidente
da República que «os moçambicanos, para combater a pobreza, devem acre-
ditar nas suas próprias forças» é um apelo muito claro para a necessidade de
passarmos a ser sujeito (e não objecto) do processo do desenvolvimento. Na
educação significa que o professor deve ser o centro das nossas atenções. O
desafio que é agora lançado ao professor é o de não ser só um transmissor de
conhecimentos, mas também e sobretudo ele deve passar a ser um produtor
de conhecimentos. O que aflige o velho Nso na nossa história acima é o facto
de não ter campo ou espaço institucionalizado que lhe é posto à disposição
para passar a ensinar aos mais novos a técnica do fabrico e a arte de tocar o
instrumento tradicional para tocar melodias lindas. O que lhe aflige é o terror
de não haver possibilidade de as cerimónias de veneração aos antepassados
serem abrilhantadas com a música, dança e canções por ele consideradas de
«apropriadas». Se a escola não se abrir totalmente para esse desafio, ou seja
para o conhecimento, as habilidades e a espiritualidade, o desenvolvimento
ficará adiado. A educação com base na comunidade é uma questão de «educar
ou perecer» (educate or perish) como escreveu o grande historiador africano
Joseph Ki-Zerbo.
As questões colocadas acima só podem fazer sentido se o professor tiver
capacidade técnica de formulá-las e de investigá-las. Ou por outra, mesmo
que a Universidade Pedagógica (neste caso) tome dianteira em chamar a
atenção para aquelas questões, ela não está em condições de fazer aquele
levantamento sem o auxílio dos professores concretos nas comunidades. É o
professor que deve saber o porquê dos seus alunos e alunas terem problemas
120 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

na aprendizagem e até mesmo desistirem. Também é só com base nele que se


pode elaborar um discurso em volta das necessidades básicas de aprendiza-
gem para alargar as ofertas educativas. Por isso penso que os programas de
pesquisa educacional desenhados no contexto de combate à pobreza devem
necessariamente envolver professores nas escolas. Este envolvimento deve
mostrar claramente em que medida o professor é o sujeito e não um mero
participante para fazer número.
Ao nível da Universidade Pedagógica foi um grande passo abrir cursos
para a Educação Básica. No entanto, ainda estamos muito longe de pensar
todo o sistema de formação de professores em função dos desafios que se
colocam em termos de necessidades básicas de aprendizagem. O que temos,
e para começar é bastante bom, é a vontade e a consciência da necessidade de
oferecer um currículo de formação de professores baseado nas necessidades
materiais e imateriais. Porém, enquanto não tivermos o conhecimento de
quais são as necessidades concretas teremos sempre que adiar o desenho de
conteúdos para uma formação que dê respostas claras para estas necessida-
des. Por isso, para mim, a Universidade Pedagógica e outras instituições de
formação de professores deve formar um professor que deverá ser sujeito da
pesquisa educacional porque só ele poderá ajudar a cada escola a desenhar o
seu próprio projecto educacional. As experiências da ADPP mostram que o
tipo de formação de professores baseado na comunidade é possível e é nossa
a responsabilidade social de aprofundar aquela experiência.

Terceiro: Em relação às metodologias. penso que se estivermos a falar


em termos de combate à pobreza, tanto os métodos quantitativos assim
como os qualitativos são igualmente mobilizáveis para este combate, desde
que tenham a comunidade no centro da sua pesquisa. Mas aqui penso que a
Universidade Pedagógica e outras instituições de pesquisa educacional têm
uma dupla missão. Por um lado é a missão de ensinar e treinar professores e
disseminar as metodologias de pesquisa centradas nas comunidades e valores
locais. Por outro, o que é mais complicado, é a missão de elaborar um discur-
so em torno dos métodos (locais/tradicionais) de ensino e de pesquisa. Isto
significa na prática, que ao lado do inventário sobre as necessidades locais de
aprendizagem que está a ser feito pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento
Pensamento engajado 121

de Educação (INDE) no âmbito do currículo local, deve-se paralelamente


fazer um inventário dos «saberes educacionais e/ou pedagógicos» também
depositados e circulados nas comunidades. E também significa tornar estes
saberes educacionais frutíferos para o processo de ensino e de aprendizagem
na escola. Se resgatarmos somente o conteúdo das necessidades básicas e dei-
xarmos os métodos e as estratégias locais de como essas mesmas necessidades
duma ou doutra forma são resolvidas no contexto local, então correremos o
risco de falhar na contribuição que queremos dar para o combate à pobreza.
Penso que a pesquisa educacional deveria tomar uma atenção especial na
recolha e sistematização dos «saberes educacionais».
Naturalmente que a «viragem» da pesquisa educacional para a comuni-
dade levanta novos problemas éticos e epistemológicos que não serão aqui
discutidos. Um exemplo para a reflexão ética seria a questão dos direitos de
propriedade intelectual sobre o conhecimento produzido no contexto da
pesquisa educacional com base na comunidade. O outro problema (episte-
mológico) seria pensar até que ponto os métodos de tradição positivista ou
interpretativa se adequam e são plausíveis no contexto da pesquisa onde as
pessoas nas comunidades vivem com muitas crenças anónimas e numa cultura
oral. Estas questões, porém, já foram por mim discutidas num outro âmbito33 .
Quarto: Utilidade social da pesquisa educacional. Uma pesquisa edu-
cacional que se quer no contexto da luta contra a pobreza deve estar em
condições de mostrar a sua utilidade (imediata, a curto ou a longo prazo) para
a comunidade onde ela foi realizada. Penso que a pesquisa educacional, tal
como é praticada hoje, percorre um «caminho» muito longo para ter algum
impacto directo na comunidade. O pesquisador que vai à comunidade ou
a uma escola concreta, volta para a Universidade ou Instituto de Pesquisa
com um conjunto de dados e materiais, mas também com uma boa vontade
de melhorar as condições que encontrou. Faz um «relatório de campo» para
a agência com as necessárias «recomendações» e entrega-o. Se se tratar de
um trabalho de fim de curso, ele recebe a sua nota e considera a pesquisa
«fechada». Se se tratar de uma pesquisa mais séria, o nosso pesquisador fica

33
Cfr. CASTIANO, J.P., Community-Based-Research and Education: Towards an African Approach.
In: INDILINGA 2003.
122 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

com a sensação de «missão cumprida» quando entrega o relatório «dentro


do prazo». Para ele o problema acabou. Porém, na perspectiva da pesquisa
com base comunitária, o problema da responsabilidade (ou do compromisso)
social começa aqui mesmo. O que se faz hoje com as «recomendações» saídas
destes relatórios? Praticamente quase nada, senão desaparecer em seminários
de pesquisa ou em conferências que se fazem em inúmeros hotéis nas capitais
provinciais e em Maputo. Quem é responsável por elas? Quase ninguém!
Acho que a nossa responsabilidade social aqui deveria ser a de estudarmos a
possibilidade de «reciclar» estas recomendações por formas a terem retorno
na comunidade onde a pesquisa foi feita. Naturalmente que quando falo de
«retorno» não significa que todas as recomendações deverão ser aplicadas;
isto seria utópico e também não seria desejável. O termo «retorno» aplica-se
no sentido de as ideias ganhas pelo pesquisador serem circuladas e debatidas
ao nível local por formas a enriquecerem as estratégias e as ideias locais na
construção de uma escola que seja vanguarda na luta contra a pobreza. É
necessário fazer da escola na comunidade um espaço de debate de ideias e
de valores e torná-los frutíferos no combate a pobreza.
Estas propostas sobre a pesquisa educacional no contexto de luta contra
a pobreza não têm necessariamente que ser as únicas. Mas penso que vão fazer
parte de outras propostas para eliminarmos o mais depressa possível tanto a
nossa pobreza material como a imaterial. A pesquisa educacional tem agora
a oportunidade de arregaçar as mangas e fazer-se à luta contra a pobreza.
E para isso tem o melhor aliado que jamais poderia ter tido: o Governo de
Moçambique que acaba de declarar que vai disponibilizar muitos recursos
para esta luta por via da educação. Mas a pesquisa educacional baseada na
comunidade tem uma oportunidade redobrada porque o mesmo governo, na
pessoa do Presidente da República, aquando da investidura dos governadores
provinciais, declarou que os distritos devem transformar-se na base e centro
de toda a acção governativa. Que outra oportunidade podemos esperar para
arregaçar as mangas e ir para as comunidades? Para tornar realidade o sonho
do velho Nso em poder ensinar na escola aos mais novos o conhecimento e as
habilidades do fabrico e a arte de tocar lindas melodias, enfim para sairmos
da «pobreza espiritual» que ele mais temia, teremos que repensar a pesquisa
educacional pondo no centro a comunidade concreta.
123

FILOSOFIA, ENSINO E
INTERSUBJECTIVACÇÃO

José P. Castiano

O tema Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção tem como motivação a


necessidade de hoje reflectirmos sobre o estatuto do ensino da filosofia nas
escolas, na formação dos professores de filosofia (até agora a decorrer somen-
te na Universidade Pedagógica) e nos programas de investigação filosófica.
Usaremos o termo filosofia profissional ou filosofia institucionalizada para
classificar a esta filosofia ensinada nas escolas e na universidade. Chamarei,
em contrapartida, filosofia não-profissionalizada ou não-institucionalizada ao
saber crítico reflexivo expresso individualmente pelos sábios num determi-
nado contexto cultural. Enquanto a primeira filosofia é geralmente baseada
no texto escrito, a segundo baseia-se na oratura.
O intuito desta comunicação é fundamentar a necessidade de a filoso-
fia profissional africana submeter-se a si mesma a uma dupla emancipação,
nomeadamente emancipar-se do eurocentrismo e emancipar-se do debate
tradicionalista. Isto faz parte de um programa ainda mais amplo que é o da
emancipação da filosofia africana de ser africana. Vejo a dupla emancipação
como um caminho necessário para que a filosofia profissional possa desmargi-
nalizar-se a si mesma e desmarginalizar à(s) filosofia(s) não-profissionalizadas
ou não-institucionalizadas nos programas de aprendizagem, de formação
e de investigação filosóficas em Moçambique. É só desmarginalizando as
outras formas do saber que a filosofia profissional ganhará o seu estatuto
primário enquanto filosofia do ensino e formação: não ensinará pensamentos
(teorias), ensinará sim os alunos e formandos pensar por si mesmos, como
Kant defende.
124 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Para ajudar-me a reflectir sobre este tema vou convocar principalmente


Foucault, Marx, Hountondji e Odera Oruka.
A paixão teórica de Foucault, segundo Jardine34 , consistia em examinar
os mecanismos e os efeitos práticos do poder e do conhecimento. Nesta ópti-
ca, Foucault serve-me para deconstruir os mecanismos pelos quais a filosofia
profissional institucionalizada exerce o seu poder de marginalização perante
as filosofias não-profissionais e não-institucionalizadas. A deconstrução dos
mecanismos institucionalizados de exclusão que a filosofia profissional usa
para com as outras filosofias é uma boa porta-de-entrada para mostrar os
possíveis caminhos da auto-emanciapação da filosofia profissional do euro-
centrismo e do debate tradicionalista.
Por seu turno, a paixão de Marx foi desmistificar o capitalismo como
um sistema económico e fundamentar uma sociedade pós-capitalista em
que a classe trabalhadora se veria livre das relações de trabalho baseadas na
exploração do homem pelo homem. Ou seja, Marx quis pôr a filosofia ao
serviço das mudanças sociais. Por isso, ele ajuda-me a reflectir sobre como,
no contexto moçambicano, renovar o estatuto filosófico do ensino e da
formação filosóficas: ensinar uma filosofia que seja responsável, engajada e
comprometida para com os problemas nacionais e mundiais.
A paixão do filósofo beniniano Hountondji foi, numa primeira fase, a de
desmistificar a tendência unanimista que a filosofia Africana parecia, aos seus
olhos, estar a tomar devido a um debate poluído pela antropologia. Para ele,
a Etnofilosofia de Tempels e outros não passava mais de uma antropologia
com a pretensão de ser filosofia especial dos diferentes povos africanos. A
ameaça da antropologização da filosofia ainda não desapareceu. Pois, nas
nossas universidades parece que a febre das chamadas etnociências (incluin-
do a tendência para a etnofilosofia) está a ser moda. A obra de Hountondji,
sobretudo a sua filosofia do sujeito, ajuda a olhar para o ensino e a formação
filosóficas em Moçambique como um empreendimento que deve ter em
conta os diferentes imaginários culturais dos povos de Moçambique, sem,
no entanto, cair no antropologismo ao qual Hountondji já nos teria alertado.
Por último, a paixão do queniano Odera Oruka foi de dar voz (no
sentido de pôr o sábio a falar por si) ao que chamei acima de filosofias não
34
Cfr. JARDINE, G.S M., Foucault e a Educação. Edições Perdago, Portugal, 2007,p.43.
Pensamento engajado 125

profissionais africanas. Oruka, em vida, desenvolveu um tipo de investigação


filosófica que acabou por se estabelecer na filosofia Profissional Africana
como uma corrente denomina por Sage Philosophy. Neste sentido, Oruka
vai ajudar-me a procurar e a propor formas de como os imaginários sócio-
culturais moçambicanos e as formas filosóficas adjacentes podem ser tidas em
conta nos programas de ensino, formação de professores e de investigação
filosófica institucionalmente.
Termino esta comunicação explorando a possibilidade de a universidade
moçambicana tornar-se um verdadeiro espaço de inter-subjectivacção, ou
seja, um espaço virado ao saber desinteressado e que não marginaliza os
saberes não profissionalizados do seu seio. A filosofia profissional, que por
definição significa amor (desinteressado) pelo saber, deve tomar dianteira
neste combate e causa.

Para quê Ensinar Filosofia?


Depois desta breve introdução e antes de abordar o tema directamente, é
necessário responder à seguinte questão clássica sobre o ensino da filosofia: é
possível ensinar filosofia? Porquê se deve ensinar uma tal ciência que, segundo
opiniões comuns, só atrapalha e serve somente para falar? Aliás a essência
da própria filosofia pode levar a confirmar a tendência de se considerar a
filosofia como sendo inútil do ponto de vista económico e social. Heidegger,
para quem a linguagem é a casa do ser, confirma que a palavra é o elemento
fundamental numa casa da filosofia.
Sob este ponto de vista, a filosofia está, nos tempos modernos em Mo-
çambique e no mundo, em desvantagens relativas. Primeiro: o mundo de
hoje é de poucas palavras e de muita imagem. O tempo que gastamos em
frente ao televisor a ver filmes, vídeos e reportagens sensacionalistas é muito
superior em relação ao tempo de leitura e de conversa com os colegas e fami-
liares. Também os recursos que usamos para adquirir aparelhos multimédias
parece tender a superar de longe ao que gastamos na compra de livros ou
em construir bibliotecas. Em quase todo o mundo as editoras e os jornais
de qualidade sobrevivem a muito custo. As bibliotecas das nossas cidades
e universidades andam às moscas. Segundo: este tempo em Moçambique
126 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

parece ser mais de negócio que de ócio, como disse o professor Machado da
Universidade do Minho. O desenvolvimento económico com a sua filosofia
de empreendedorismo parece estar a conquistar mais espaços na educação
em Moçambique do que a reflexão desinteressada. Uma boa vida é, hoje em
dia, aquela que procura permanentemente dar respostas mecânicas às ne-
cessidades materiais. O penso logo existo cartesiano passou a ser substituído
pelo consumo logo existo. Ninguém como o filósofo francês Gilles Lipovetsky
fundamentou a era do consumo. No seu recente livro A Felicidade Paradoxal
ele sustenta que a sociedade evoluiu para o hiperconsumismo: o indivíduo,
divorciado da política e do interesse colectivo, centra-se no prazer buscando-
o no consumo dos bens materiais. Ora, o ócio é a casa da filosofia porque é
nele que se reflecte. Pensar passou a parecer luxo e inutilidade. Terceiro, a
institucionalização da filosofia no ensino, formação e investigação parece estar
contrária à essência da própria filosofia como um pensar livre. É que assim a
filosofia passa a submeter-se aos critérios de utilidade. E neste caso ela não
tem outra saída senão ser tentada a ser uma espécie de estudo de legislação,
estudo do direito, ou como é o caso na UP, a aceitar o seu lado pragmático
criando um curso de filosofia do desenvolvimento. Filosofia começa a ficar
ao serviço do Estado desde Napoleão Bonaparte. Em vez de, com o ensino
da filosofia, se cultivar para uma cidadania crítica, cultiva-se para uma cida-
dania aparentemente engajada, significando este engajamento justificar ou
fundamentar a normatividade do Estado. Nas universidades não se ensina o
pensar senão o empreendedorismo.
Uma quarta desvantagem específica para Moçambique é a desconfiança
(ou o desejo) permanente de que filosofia aprendida seja ou uma ideológica
ou religiosa. A recente experiência de Moçambique com o ensino unilateral
da filosofia marxista e com uma literatura filosófica mais virada para o campo
libertário (Fanon, Nkrumah, Cabral, Nyerere) encontra-se ainda recalcada
nas preconcepções das pessoas que, quando ouvem falar de filosofia, não a
separam das conotações ideológicas. Por outro há a experiência do ensino
da filosofia nas escolas missionárias que leva a ligar a filosofia à religião,
confundindo-a ou reduzindo-a ao ensino da moral religiosa.
Com estas desvantagens todas é lógico que a pergunta (o que significa
o ensino da filosofia e a respectiva formação filosófica dos professores hoje?)
ganha ainda mais sentido hoje em Moçambique.
Pensamento engajado 127

A estas desvantagens extrínsecas à filosofia profissional, acrescentam-se,


como se não bastasse, as desvantagens intrínsecas à própria filosofia e ao acto
de filosofar. À pergunta filosófica se faz algum sentido ensinar filosofia teve
diferentes respostas pelos próprios filósofos.
Para Baruch Espinosa, por exemplo, há uma incompatibilidade entre
filosofia e o seu Ensino. Quando um filósofo é obrigado a ensinar filosofia, este,
praticamente perde a sua liberdade de pensar porque teria que estabelecer
fronteiras entre o que deve dizer, quando deve fazê-lo e em que medida deve
fazê-lo no âmbito de um programa preestabelecido. Ele declara que nunca
aceitaria ser professor de filosofia numa faculdade. Frederich Nietzsche é
ainda mais radical. Para ele o Estado constrange aqueles que seleccionou
a passarem um tempo determinado, num lugar determinado, no meio de
homens determinados, para um aluno determinado a fazer filosofia. Pode
realmente um filósofo, com plena consciência, passar a ensinar, ou seja, em
horas preestabelecidas, ter que dizer certas coisas? Para Heidegger, por ou-
tro lado, afirma que ensinar (filosofia) é mais difícil do que aprender, não
porque o professor deva ter mais conhecimentos que o aluno de filosofia,
mas porque ensinar é fazer aprender.
Estas breves considerações sobre a aprendibilidade (não ensinabilidade)
da filosofia mostram que ela, ao longo da história e em diferentes contextos,
trouxe mais problemas que soluções. Ou seja, dito de uma forma mais filosó-
fica, o horizonte aporético da filosofia é muito mais vasto do que o horizonte
eurético que ela pode oferecer à sociedade. (como disse Fernado Machado)
Em nossa opinião, a aparente dificuldade de se ensinar filosofia em Mo-
çambique e na África em geral prende-se com o facto de a própria filosofia
profissional (esta que se deve ensinar e que se institucionaliza) estar à margem
da sociedade por duas formas: pelo conteúdo do seu ensino e pelo facto de
praticamente marginalizar as formas de pensar filosóficas ainda não-profis-
sionalizadas. O pressuposto é que se as preocupações temáticas da filosofia,
reflectidas nos seus programas de ensino, formação e pesquisa, estiverem a
procurar respostas a problemas concretos de Moçambique, então esta filo-
sofia será relevante e daí, aprendível. Interessa, pois, em seguida, olhar para
dentro da filosofia profissional para revelar os mecanismos institucionalizados
pelos quais ela se marginaliza a si mesma, concomitantemente, marginaliza
as filosofias ainda não-profissionalizadas. Para isso, nos vai ajudar Foucault.
128 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Focault
O que significa, então que a filosofia profissional africana deve des-
marginalizar-se? Significa que ela deve deixar de predeterminar as condições
epistémicas pelas quais se produz um discurso para que seja considerado
como filosófico.
Michael Foucault encontra três procedimentos externos e outros três
internos na base dos quais um tipo de discurso exclui outros discursos con-
correntes. Aos procedimentos externos pertencem a interdição, a oposição
entre o racional e o louco e a oposição entre o verdadeiro e o falso (Foucault
1971,10pp.). Aos procedimentos internos de exclusão dos discursos perten-
cem o comentário, o autor e a disciplina.
Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filosofia
africana profissional deve esconjurar-se para que ela própria esteja apta para
desmarginalizar-se. A forma elementar de exclusão que os filósofos africanos
profissionais mais usam é a interdição, isto é, tirar o direito aos seus colegas
sábios de dizerem tudo e em quaisquer circunstâncias; justifica-se que não
é qualquer um que pode ser cientista e, por extensão, filósofo. Os sábios
interditos de entrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais,
etc.), embora possam contribuir lá com o seu saber. O sistema formal de
qualificações não prevê equivalências para as suas qualificações e nem os
quadros nacionais profissionais prevêem as suas qualificações. Embora uma
grande parte da sociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários
tipos de perturbações individuais e colectivas, esses sábios são interditos, na
linguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos.
Foucault chama o segundo procedimento por oposição razão e loucura:
[O] louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. A
palavra do louco é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo
verdade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-se de
excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de não ser
escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada como palavra de
louco. No entanto, diz Foucault, todo este discurso do louco não desaparece,
mas continua a provocar ruído no seio do discurso formal. Por isso, diz ele,
que é no teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a possi-
Pensamento engajado 129

bilidade de representar o papel da verdade mascarada (Foucault 1971,11p.).


Assim procede também o filósofo africano profissional. Ele criou proce-
dimentos para que a palavra do sábio tradicional seja logo rejeitada, mal seja
proferida num espaço público. A filosofia profissional africana criou rituais
para declarar a maior parte do que vem da tradição como sendo supersti-
cioso, ou no mínimo suspeito. O sistema de educação construiu um aparato
burocrático que não deixa o sábio tradicional desenvolver o seu discurso ou
cair no ridículo. São declarados loucos no sentido de Foucault. A coisa piora
porque, num contexto desses, o que é encarado por louco não é somente o
sábio tradicional mas também todo aquele que, embora treinado formalmente,
pretenda estudar questões ligadas à tradição. A filosofia africana académica
é racional; pelo contrário, a filosofia que emana dos saberes tradicionais é
irracional, é de loucos (no sentido de Foucault empregamos este termo). No
entanto, é o próprio filósofo profissional que volta e meia pretende ouvir, em
surdina, a palavra dos sábios da tradição. Como o próprio Foucault diz, ao
louco se lhe atribui estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida,
o de pré-anunciar o futuro, o de ver com toda a ingenuidade aquilo que a
sabedoria dos outros não pode perceber. É assim que são tratadas as áreas da
medicina tradicional, a do direito costumeiro, a das filosofias etnocêntricas e
por aí fora. Senão, qual é a universidade que lhes abriu as suas portas?
Há todavia uma terceira forma de exclusão do discurso periférico tradi-
cional: a oposição entre o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault (1971,15),
é nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, onde se criam os crité-
rios e se institucionaliza a oposição entre o verdadeiro e o falso nas ciências:
antecipando-se aos conteúdos actuais, desenham-se planos de objectos pos-
síveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis. No caso da filosofia africana, e
seguindo esta forma de proceder, a oratura (provérbios, contos, mitos, crenças
colectivas, etc.) toma o lugar do falso. Para que ela se tornar verdadeira deve
ser escrita e ser submetida ao tribunal da lógica. Os argumentos usados pelas
filosofias ainda não-profissionalizadas são declarados, muitas vezes, pouco
sólidos ou mesmo sem nexo.
Estes procedimentos externos completam-se com os procedimentos
internos da própria filosofia Profissional Africana: o comentário, o autor e a
classificação das disciplinas.
130 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

O pressuposto do qual Foucault parte para caracterizar o comentário


como procedimento interno de exclusão é que todas as sociedades têm dois
discursos: primeiro, estão os discursos que se dizem ao correr dos dias e das
trocas, e que passam com o acto mesmo que os pronunciou. Este é o tipo de
discurso que é efémero, do dia-a-dia, do quotidiano ou de narrativas menores.
Segundo, existem as narrativas maiores que são os discursos que contam-se,
repetem-se, propõem fórmulas e rituais perenes. São narrativas que estão na
origem de certo número de novos actos de fala que os retomam, os transfor-
mam ou falam deles. Segundo Foucault, estes discursos podem ser textos
fundadores religiosos ou jurídicos, podem ser também textos literários ou
científicos. São narrativas ou discursos fundacionais. O que seria, entretanto
o comentário? Segundo Foucault, o comentário é aquele que permite dizer
algo para além do próprio texto (fundador), mas com a condição de que o
texto mesmo seja dito e de certo modo realizado (Idem,21). Assim, o comen-
tário é periférico, pertence ao efémero, à sombra (e não à ideia) platónica.
Não será isso que se verifica na prática da filosofia institucionalizada?
Às narrativas maiores não pertence apenas todo o cânone da filosofia oci-
dental (europeia e americana, mas sobretudo a europeia) e o discurso das
filosofias tradicionais fica relegado às narrativas menores e toma a função
de comentários? Sem dúvida que, quando fazemos programas e cursos de
filosofia nos países africanos, duma forma aberta ou simulada, os saberes
endógenos, tradicionais e locais permanecem como exemplos periféricos
da filosofia, ou seja, com um estatuto subalterno e marginal. Se a própria
disciplina da filosofia africana é dada, em muitos casos, como uma cadeira
somente, então imaginemos o lugar que é reservado aos saberes indígenas e
tradicionais originários de cada cultura africana. Mesmo nos casos em que
os cursos de filosofia adoptem uma abordagem em que a filosofia africana é
tratada transversalmente, e não como uma disciplina, aí os assuntos da filosofia
tradicional também têm a função de comentários. Isto é, permitem reforçar
o lugar de narrativas maiores aos textos fundadores da filosofia, que são os
ocidentais. É isso que Kagamé fez ao encontrar as categorias aristotélicas no
sistema do pensamento dos banyaruanda; é isto também que Tempels fez ao
tentar mostrar que os Bantu possuem (também) uma ontologia comparável
à europeia e por aí fora.
Pensamento engajado 131

Passemos, em segundo lugar, para o autor. Foucault chama de autor


não […] o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o
autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem
de suas significações, como foco de coerência (Idem,22). Assim, no domí-
nio das narrativas pequenas, o autor do discurso não existe ou é apagado.
O discurso que este pseudo-autor formula é considerado como conversa
do quotidiano, como um discurso proferido por um louco. Este autor fica
no anonimato dentro de uma colectividade. A partir do século XVII par-
ticularmente, a menção do autor de um discurso não serve somente para
indicar o dono da obra; esta menção serve para dar um nome às teorias com
um corpo coerente (marxismo, por exemplo) ou a um teorema (teorema de
Pitágoras, por exemplo), ou ainda a uma linha de pensamento (kantianismo,
por exemplo). Assim, o autor é aquele que indica a direcção em que devem
ir as interpretações, que dá nós de coerência aos comentários que se fizeram,
que se fazem e que se irão fazer.
Neste aspecto sobre o autor não precisamos de alongar muito ao adoptar
a ideia para a nossa realidade. Pois, é notável que a oratura, forma privilegia-
da em que circula o texto das filosofias tradicionais africanas, não tem, aos
olhos do etnofilósofo, seus próprios autores. A etnofilosofia e as etnociências
fazem circular a imagem de existência de filosofias, ciências africanas de
carácter colectivo (filosofia sem filósofos, ciência sem cientistas). Os autores
tradicionais ficam diluídos, anónimos por trás dos provérbios, dos contos,
das lendas, das canções. O que sucede é ainda pior: o etnofilósofo e o et-
nocientistas não se vêem obrigados a mencionar os autores dos saberes que
recolhem, porque, doutra forma, a sua menção poderia tirar-lhes o mérito
de serem eles que pensam e escrevem. É este o mecanismo pelo qual o autor
tradicional desaparece na sua qualidade de sujeito que prescreve significações,
que reflecte criticamente sobre a sua condição. O mecanismo de exclusão
do autor tradicional funciona de duas maneiras: o autor etnofilósofo não
menciona o colega tradicional reduzindo-o à condição de informante e o
filósofo profissional africano à periferia e, desta posição epistémica, incapaz
de fornecer grandes sistemas de pensamento com significações próprias.
O princípio de disciplina, juntamente com o do comentário e do autor. A
disciplina define-se como um domínio de objectos, um conjunto de métodos,
132 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de


definições, de técnicas e de instrumentos (Foucault 1971,24).
Foucault alerta-nos, no entanto, que nem tudo o que é dito e escrito
sobre o objecto de uma disciplina faz parte desta mesma disciplina. Assim,
nem tudo o que é dito e escrito sobre a doença pertence à medicina da mes-
ma forma que nem tudo o que é dito e escrito sobre as plantas pertence à
disciplina de botânica.
Ora, isto levanta o problema do critério da exclusão do conhecimento
que não é chamado para o interior de cada disciplina. Por outras palavras,
as perguntas que podemos lançar são: porque é que todo o corpo do que é
dito sobre as doenças pela medicina tradicional não passa a pertencer au-
tomaticamente à medicina? Porque é que o conhecimento dos herbanários
tradicionais não pode pertencer ao corpo de conhecimento da disciplina de
botânica? Ou ainda: porque é que as posições que existem nos provérbios,
nos contos, nos chamados usos e costumes, etc. não podem fazer parte dos
capítulos da filosofia como sejam a ética, epistemologia e/ou metafísica, isto
é, passarem a incorporar-se como parte integrante da filosofia praticada nas
instituições formais? Enfim, qual é o critério de exclusão?
A estas perguntas Foucault responde dizendo que é [n]o interior dos
seus limites [que] cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas;
mas ela repele, para o outro lado das suas margens, todo o saber que esteja
fora dos seus limites; em outras palavras estipula-se que uma proposição deve
preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto
de uma disciplina.
É este mesmo mecanismo que tornou possível chamar todo o (ou parte
do) pensamento filosófico que não proviesse dos profissionais como sendo
selvagem, primitivo, tradicional, ilógico e por aí fora. De facto, o que temos
hoje na filosofia profissional africana são regiões do discurso que se abrem
e se fecham às novidades sugeridas da tradição. Num primeiro momento
fecham-se declarando errado ao conhecimento que emana das entranhas
tradicionais ou tratando como loucos, primitivos, selvagens os seus autores.
E num segundo momento a filosofia profissional africana abre-se quando
precisa de se legitimar a si mesma enquanto filosofia africana. Este último
foi e é o caso das etnociências e da etnofilosofia. De facto, fizeram o papel
de comentários à filosofia ocidental.
Pensamento engajado 133

Marx

Rechamar Marx para a filosofia hoje em Moçambique tem um duplo


interesse: O ensino da filosofia na primeira República foi baseado (em al-
guns momentos quase que exclusivamente) em Marx e os seus discípulos
do Leste como Lenine e Mão-Tsé-Tung. Estes são os «autores» no sentido
de Foucault, que acabamos de ver. O facto de quase toda a nossa geração
de moçambicanos nas décadas de setenta e oitenta ter-se confrontado quase
única e exclusivamente com as obras de Karl Marx ou interpretações marxistas
impregnou em nós uma estrutura mental e analítica que ainda hoje, cons-
ciente ou inconscientemente, recorremos para analisar os fenómenos sociais
e políticos em nossa volta. Em segundo lugar porque o Marxismo pertence
à uma espécie de tradição filosófica em Moçambique. Foi o marxismo que
infundiu categorias como capital, classe, ideologia, partido, proletariado e
outros por aí fora. São essas categorias que constituem hoje os alicerces da
linguagem filosófica e social de qualquer um de nós hoje.
A tradição do ensino filosófico em Moçambique teve três fases: a colonial,
a marxista-ideológica e a liberal. Na fase colonial a filosofia era ensinada em
dois espaços: nos liceus e nos seminários. Nos liceus a filosofia era ensinada
aos alunos do 6º e 7º anos. No 6º ano o programa de filosofia era basicamente
a História de Filosofia alicerçado por dois compêndios de filosofia da autoria
de Saraiva e Bonifácio. O peso aqui era dado à filosofia clássica aristotélica
e platónica, assim como a escolástica. Ao lado da filosofia os alunos tinham
uma cadeira denominada Organização Político-Administrativa de Portugal.
Esta cadeira complementava à filosofia por subsidiar aos estudantes com
rudimentos do direito administrativo e da configuração política do Império
Português. Recorde-se que nos anos anteriores, isto é no 3º, 4º e 5º anos, os
alunos tinham a disciplina de Moral e Religião que indotrina valores da reli-
gião cristã a todos eles. No 7º ano os alunos tinham psicologia como cadeira
que substituía a filosofia. A filosofia estava muito ligada à psicologia. Convém
acrescentar que todas eram cadeiras são obrigatórias para todos os alunos
do secundário, independentemente da sua orientação profissional posterior.
Nos seminários, por seu lado, o ensino da filosofia era mais clássico. O
programa de filosofia contemplava, para além do seu estudo, leituras obri-
134 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

gatórias de textos de Escolástica, da Lógica Antiga e Moderna, seminários


de Aristóteles e Santo Agostinho, Teoria do Conhecimento e Filosofia da
Natureza. Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino assim também Heiddegger,
parecem ter sido o prato forte dos seminaristas. Acrescente-se que o estudo
e a leitura de textos em latim e alemão faziam parte da formação filosófico-
teológica. Este tipo de programa de formação em filosofia continua até hoje
nos seminários médios. Isto é importante porque a maior parte dos estudan-
tes que seleccionamos até agora na UP, para serem professores de filosofia,
provêm destes estabelecimentos de ensino.
A segunda tradição de ensino e formação na filosofia em Moçambique,
como dissemos, é a marxista. Esta, podemos chamá-la de tradição filosófico-
ideológica. Esta teve diversos espaços e níveis de ensino e formação. Nas
escolas secundárias havia as cadeiras de marxismo-leninismo e de educação
política (como é óbvio, as duas substituem, respectivamente, as cadeiras de
filosofia e de organização político-administrativa do tempo colonial). À parte
disso os alunos tinham aulas de preparação político-ideológica que também
transmitia alguns rudimentos de análise marxista da sociedade. Ao nível da
formação de professores tínhamos os institutos pedagógicos onde se formam
especificamente professores para as cadeiras de Marxismo-Leninismo e Edu-
cação Política. Alguns professores, para o nível superior, foram formados
nos países socialistas como a Alemanha Democrática, a União Soviética,
Polónia, etc. Não se deve esquecer que as cadeiras de Marxismo-Leninismo
e Educação Política eram de carácter obrigatório para todos os cursos de
formação de professores. Os programas de ensino eram fundamentalmente
naquilo que se considerava serem as três componentes fundamentais da dou-
trina do marxismo (chamados por fundamentos): O Materialismo Histórico,
a Economia Política do Capitalismo e o Socialismo Científico. A leitura de
textos nos manuais do marxismo-leninismo, de textos directos de Marx e
Lenine constituíam os materiais de ensino e de formação. Estes textos são
misturados com os discursos políticos partidários e presidenciais das grandes
ocasiões como sejam as nacionalizações, os congressos do partido Frelimo,
planos estratégicos de desenvolvimento, etc. Ao mesmo tempo, circulavam
textos, que se consideram «literatura marxista revolucionária», de teóricos
como Franz Fanon, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere,
Pensamento engajado 135

Fidel Castro e outros para fundamentar a possibilidade da construção de


uma sociedade socialista em Moçambique. Uma boa parte dos docentes que
iniciaram e abriram os cursos de filosofia da Universidade Pedagógica foi
forjada por esta tradição.
O marxismo deve interessar-nos, em primeiro lugar, pela função que
reserva à classe operária Libertaria que às outras duas classes, nomeadamente
a classe camponesa (que era vista como sequela da sociedade feudal deca-
dente) e a classe burguesa (que era a camada exploradora).
Sob o ponto de vista político, a ideia da praxis revolucionária significa
auto-emancipação. Ou seja, expressa a convicção de que nenhum salvador,
nenhum herói esclarecido ou uma elite intelectual irá libertar a classe maio-
ritária dos trabalhadores. Com esta posição, Marx colocava-se claramente
contra o materialismo francês e contra o idealismo alemão, ao mesmo tempo
que usava a filosofia para dar conta dos movimentos operários do sec. XIX.
A ideia marxiana da auto-emancipação pode ser feita frutífera para a
problemática do ensino/formação/pesquisa da filosofia em Moçambique.
De facto, a reflexão sobre o ensino da filosofia em Moçambique deve, num
futuro breve, passar pela reflexão em torno da auto-emancipação da própria
filosofia. O que quero mostrar aqui é que a filosofia deve encetar um combate
contra os constrangimentos internos à sua própria emancipação. Esta auto-
emancipação da filosofia em Moçambique deve ser dupla: do eurocentrismo
e do debate tradicionalista.
Em relação ao centramento do ensino da filosofia nos assuntos europeus
não preciso muita argumentação: basta olhar para a série de temas que com-
põe o programa de filosofia nas universidades, olhar para os autores que são
tratados desde a Grécia Antiga até aos pós-modernistas e olhar também para
o conjunto de temas das teses defendidas tanto ao nível de licenciatura bem
como ao nível dos mestrados de filosofia na Universidade Pedagógica. Neles,
o lugar que é preservado para autores africanos e moçambicanos é exíguo e
periférico. O ensino da filosofia deve, na minha opinião, auto-emancipar-se
do Ocidente. Emancipar-se para mim não é uma espécie de luta contra o
património do pensamento filosófico ocidental. É antes de mais cultivar nos
alunos uma atitude de confrontação crítica para com os sistemas de pensa-
mento que evoluíram no Ocidente. Significa que devemos abordar Kant,
136 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Hegel, Marx, Heiddegger, Habermas e outros com a consciência de que o


seu edifício teórico foi constituído para dar respostas filosóficas a problemas
concretos da sua região e época. Emancipar a filosofia profissional africana
significa, para mim, insistir no princípio segundo o qual: pela sua natureza
os problemas que a filosofia deve tratar são concretos num determinado
contexto; pela sua natureza, as respostas filosóficas a estes mesmos problemas
são universalisáveis. Esta deve ser a chave e o espírito para a emancipação
da filosofia profissional e do ensino da filosofia.
O ensino/formação/investigação da filosofia em Moçambique deve
emancipar-se do debate tradicionalista. Esta emancipação é tridimensional:
emancipação do essencialismo/unanimismo, da religião e do elitismo da escrita.
Emancipação do Unanimismo: Com efeito, o primeiro passo libertário da
filosofia africana é libertar-se a si mesma da propensão de tender a dedicar-se
a assuntos que as seguintes frases nos sugerem: «os africanos pensam assim»,
«os yoruba acreditam que…», «a essência da ontologia dos sena/ronga/macua
é esta», «os bantu acreditam que…», etc. A filosofia deve manter-se vigilante
a este tipo de busca filosófica onde uma comunidade ganha a capacidade de
pensar, o que é filosoficamente uma aberração. Mesmo os velhos supostos de
estarem em condições de orientar certas cerimónias e/ou ritos de iniciação,
religiosos, familiares, etc. manifestam discordâncias nas suas interpretações
sobre os mesmos fenómenos e processos. De outra forma não se justificariam
os longos debates que antecedem o início de certas cerimónias. De facto, o
unanimismo existe somente na cabeça do (etno)filósofo.
A segunda dimensão da qual a filosofia profissional africana deve eman-
cipar-se é a religião. Há muitos que, como Mbiti, propõem que a verdadeira
filosofia africana deve procurar-se por trás da religiosidade naturalista do ho-
mem africano. Nesta ordem de ideias, a tarefa da filosofia segundo Mbiti seria,
primeiro, descrever as práticas religiosas dos homens africanos e, segundo,
interpretar estes mesmos a partir da visão religiosa dos africanos. Porém, a
filosofia africana não deve estar presa às profecias religiosas. Como sublinha
Ngoenha no livro Das Independências às Liberdades, se adoptarmos uma
visão futurista, a religião faz profecia e a filosofia utopia. Isto significa que a
filosofia deve-se libertar da religião para que a própria filosofia não se veja
na contingência de espalhar profecias e se concentre em elaborar utopias.
Pensamento engajado 137

Emanciapação da Oratura: Quando falamos da filosofia nas condições


de África, coloca-se sempre o problema do papel da oratura dos sábios
africanos para a criação de um sistema filosófico. Em torno da problemática
da oratura se tem levantado muitas questões a saber: os dizeres orais ou
provérbios africanos podem ser considerados filosofia ou não? Ou é filosofia
o conjunto de textos da interpretação filosófica da oratura que deve fazer
parte do corpus da filosofia africana? Ou ainda ambas? Qual é o papel do
filósofo africano profissional perante estes dizeres? Transcrevê-los ao estilo
de Griaule? Interpretá-los com base na ordem discursiva formalmente esta-
belecida da filosofia como uma disciplina académica, seguindo, desta feita, as
pegadas de Tempels e Kagamé? Ou entrarmos num diálogo intersubjectivo
entre os sábios e os filósofos profissionais?
Resumindo, podemos dizer que a filosofia africana deve libertar-se de
ser considerada africana pelo facto de estar a debater com muita insistência
sobre a tradição. Ela, enquanto filosofia, deve tratar de questionar assuntos;
enquanto africana deve tratar assuntos que dizem respeito (mas que não se
limitam) à África. Nós pensamos que já é momento para a filosofia africana
libertar-se a si mesma do debate tradicionalista. O debate tradicionalista é
aquele que tende a mistificar em vez de desmistificar, tende a idolatrar os
hábitos e costumes tradicionais, em vez de questionar a contemporaneidade
dos valores que estariam no seu substrato; enfim, é um debate poluído pelo
misticismo. Para a filosofia africana avançar um pouco mais na sua própria
liberdade (porque está presa ao debate tradicional) ela deve acender o fogo
libertário interno que queime os mitos que a prendem ao tradicionalismo
e assim poder concentrar-se na busca de respostas a assuntos que dizem
respeito ao futuro.
Para além de a doutrina de Marx ser útil para abordar a questão da auto-
emancipação da filosofia profissional e seu ensino/formação/investigação, ela
propõe ferramentas alternativas de interpretação e abordagem de fenómenos
actuais. Peguemos, por exemplo, na chamada crise económica mundial. Sob
o ponto de vista marxista, a forma como se está a apresentar as terapias é
contrária à sua solução. A crise não é somente financeira (dos bancos) ou de
empresas de imobiliárias ou ainda de empresas de automóveis. Não se deve
tratar esta crise pelas partes, senão olhá-la de uma forma global. Olhar de
138 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

forma parcial aos fenómenos sociais como este é uma forma típica de como
a burguesia capitalista tende a fazer. Se adoptarmos uma perspectiva mar-
xista, segundo o neo-marxista brasileiro Michael Löwy, esta crise de todo
um modelo da civilização ocidental e moderno capitalista. O problema é que
a classe operária mundial é actualmente duplamente explorada: de forma
clássica isto é, pela venda da sua força de trabalho em troca de um salário,
mas ao mesmo tempo pelo sistema financeiro através dos bancos que cobram
juros astronómicos. Estes juros provocam um sucessivo endividamento dos
operários que são obrigados a trabalhar cada vez mais. Portanto, trata-se de
uma crise do sistema todo e não de cada um deles. Assim também, não se
acaba com a crise com reformas senão com uma revolução total civilizacional.

Hountondji
O filósofo beniniano Hountondji interessa-nos na sua segunda fase onde
ele retrata-se da sua posição em relação ao seu conceito inicial de filosofia.
Em quanto que na primeira fase ele define a filosofia como um «conjunto
de textos escritos por africanos e considerados por eles como filosóficos»,
Hountondji da segunda fase já admite que a filosofia africana pode também
conter textos orais. Portanto, o Houndondji da segunda fase é aquele que,
não abandonando a crítica unanimista, distancia-se da sua posição inicial
admitindo implicitamente que pode haver filósofos de tradição oral.
É importante sublinhar que o projecto filosófico de Hountondji não
visava escapar ao debate sobre os conteúdos que os chamados etnofilósofos
arrolavam nas suas obras e que, de certa forma, estavam a fazer furor. Pelo
contrário ele queria, com essa definição restritiva da filosofia, evitar que o
debate sobre a identidade da filosofia africana se limitasse à ideia de que
esta só poderia nascer e desenvolver-se em volta de questões tradicionais,
e que, à semelhança da ideia geral sobre a tradição, a filosofia africana se
transformasse num pensamento de consenso e unânime a todos os africanos.
Ele queria cortar o crescimento de uma filosofia africana que tivesse uma
imagem anti-filosófica: uma que não contem em si mesma a possibilidade de
um debate crítico. Era preciso, segundo Hountondji, desmistificar a ideia de
uma África homogénea no pensamento.
Pensamento engajado 139

Para nós interessa repisar, usando Hountondji, que, ainda hoje, a ten-
tação unanimista está sempre a espreita. A filosofia profissional africana
ensinada em Moçambique pode cair nesta tentação. Mas não é tudo. O
projecto do Hountondji visava também libertar a própria filosofia africana
do debate poluído tradicionalista. O método do Hountondji foi cortar este
debate e permitir que, na filosofia africana, houvesse outras tendências que
não fossem do continente negro.
Por último Hountondji dá-nos pistas para subjectivar a filosofia africa-
na. Como fazê-lo? O próprio Hountondji não dá resposta a esta questão. A
resposta virá, no entanto, do queniano Odera Oruka.

Oruka
Sage Philosophy, um projecto iniciado por Odera Oruka, parte dos se-
guintes pressupostos básicos: [i] Que o pensamento tradicional africano, em
várias áreas, não está escrito ou transcrito; ele é veiculado de forma oral; [ii]
Tal como Platão escreveu os diálogos de Sócrates (e através deste de outros
como Thales de Mileto), ao filósofo profissional africano cabe-lhe a missão
de transcrever o pensamento filosófico tradicional. Porque na sua maioria
está de forma oral.
Estes princípios levantam, à partida também dois problemas, a saber:
o problema do critério para identificar o «sábio» que potencialmente pode
ser considerado como um filósofo; o segundo problema é o do critério ou
dos critérios para classificar um certo pensamento tradicional como sendo
filosófico.
Como pois identificar um filósofo tradicional do qual depende a escolha
da pessoa que podemos transcrever o seu pensamento para texto escrito e
comentado? Convém antes dizer que há uma atitude geral – denunciada por
Oruka – segundo a qual considera-se «sábio» a uma pessoa iletrada que vive
numa comunidade cuja maioria dos seus habitantes também é iletrada; supõe-
se também que a comunidade não seja tecnologicamente não desenvolvida.
Assim, a sobrevivência da comunidade entanto que tal, a vida espiritual e
transcendental é explicada e interpretada com a ajuda destes sábios.
140 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Oruka alerta que devemos ter em atenção não confundir um sábio de um


profeta, embora uma mesma pessoa possa ser ambas as coisas. Um profeta é
aquele que tem a tendência de predizer ou adivinhar o futuro da sua comu-
nidade. Este conhecimento do futuro lhe é dito por revelação, algumas vezes
em sonho, ou ainda através da leitura que fazem da sua própria experiência
e passado. Muitos dos profetas exploram o futuro de uma forma sistemática.
Oruka dá o exemplo de um profeta chamado Elija Masinde, do Quénia, que
fez o predicamento do desaparecimento dos colonialistas brancos quase trinta
anos antes do Uhuru (independência).
Embora um profeta possa predizer o futuro, na óptica de Oruka, esta
pessoa não é (ainda) um sábio: A person is a sage in the philosophic sense
only to the extent that he is consistently concerned with the foundamental
ethical and empirical issues and questions relevant to the society and his abi-
lity to offer insightful solution to some of those issues ou seja, a pessoa é um
sábio no sentido filosófico somente na medida que ele está consistentemente
preocupado com questões éticas e empíricas fundamentais relevantes para
a sociedade e tem a capacidade de oferecer soluções fundamentadas para
algumas daquelas questões.
Em muitos países africanos – diz-nos Oruka – procurou-se sábios entre
os não letrados. Mas isto não quer dizer que a sagacidade exista somente
nas culturas iletradas. Segundo ele, a causa é porque as sociedades africanas
perderam interesse em contactar a essas pessoas devido à educação formal
introduzida pelos colonialistas. Esta valoriza mais o conhecimento adquirido
através dos livros, nas bibliotecas e de pessoas com uma formação formal
(técnicos). Deve notar-se, porém, que todas as sociedades têm sábios que
procuram formular um discurso coerente em relação à sua existência. Oruka
diz que não interessa se o nome que esta pessoa foi recebendo em diversas
culturas foi o de filósofo, homem de Estado, sábio, ou cientista. Sob esta
perspectiva podemos dizer que um Gandhi, um Marx, Nyerere ou John
Rawls são todos eles sábios das suas respectivas sociedades.
Mas também há casos contrários em que alguns filósofos ocidentais,
embora tenham escrito, coisas muito comuns (sabedorias populares) e pouco
abonatórias para a categoria de grandes pensadores, são, no entanto, tomados
como tais. Oruka dá o exemplo de Arthur Schopenhauer que teria escrito que
Pensamento engajado 141

mulheres são apropriadas para serem enfermeiras e professoras das crianças


porque elas são infantis e não muito visionárias em relação aos homens. Para
Schopenhauer as mulheres estão num estado intermediário entre a criança
e o homem, ou seja, uma criança grande. No entanto os escritos de Schope-
nhauer são considerados como sendo de um grande pensador.
A diferença entre as sociedades reside no facto de que numas sociedades
a estrutura social leva a valorizar mais o pensamento expresso nos livros,
enquanto noutras não estão estruturadas desta maneira.
Desta forma Oruka acha que, tal e qual se fez com Tales de Mileto (de
quem sabemos somente que defendia que o princípio de todas as coisas é a
água) ou de Anaxímenes (de quem sabemos somente que teria defendido que
o princípio de todas as coisas o fogo), se deve fazer o mesmo com os dizeres
dos actuais sábios africanos. Ou seja, sabemos que essas frases se tornaram
filosóficas por terem sido, ao longo da história do pensamento, repetidas e
comentadas como sendo argumentos diferentes em volta de um assunto. Esse
foi o caso de Sócrates: para Oruka este não passou de um sábio consideran-
do que ele usou a sua sabedoria para abordar as questões na praça pública.
Da mesma sorte foram os sofistas que vendiam o conhecimento que tinham
sacrificando, algumas vezes, a própria verdade. Os sofistas violavam assim
a definição verdadeira da filosofia (amor desinteressado pela sabedoria).
Assim, também hoje em África devemos começar por transcrever os saberes
dessas pessoas.
Sobre a questão dos critérios para o reconhecimento de que estamos
perante um sábio, a resposta de Oruka é também clara ao afirmar que […]
the best judge must be the community from which the person hails, ou seja,
o melhor juiz deve ser a comunidade na qual a pessoa pertence. Embora
o pesquisador se deva basear na informação e no julgamento dado pela
comunidade, Oruka acrescenta que este deve também estar em condições
de diferenciar entre os que são alegadamente sábios no sentido filosófico
do termo, porque a própria comunidade pode ter alguns equívocos do que
pode ser um sábio confundindo com alguns que são simplesmente charlatães.
Oruka debruça-se também sobre as questões do método do sage philo-
sophy. Ele acha que, em primeiro lugar, o pesquisador deve assumir que, em
qualquer sociedade, existe dois tipos de afirmações, nomeadamente aquelas
142 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

que são sábias e outras comuns (recorda-se que Foucault também opinava
que em qualquer sociedade existem dois tipos de discursos: o racional e
o do senso comum). Em segundo lugar, Oruka propõe que, por questões
metodológicas, o pesquisador deve distinguir três tipos de afirmações: [i]
afirmações sábias, [ii] afirmações comuns e [iii] afirmações loucas.
Na sua opinião, o entrevistador-filósofo profissional deve agir como
um provocador, de certo modo agindo com ironia socrática, para ajudar ao
entrevistado a dar parto às suas ideias (método maiêutico). Oruka conta um
episódio que demonstra que este papel nem sempre é fácil e gratificante.
Numa das entrevistas ele perguntou sobre a morte. Enquanto um dos sábios
mostrou-se indignado com a pergunta e reagiu perguntando se Oruka queria
a sua morte, um outro, pelo contrário, respondeu dizendo que a morte é tão
boa como a vida; porque segundo ele se não morrêssemos não haveria comida
suficiente para todos e isto mostra, na sua própria opinião, a bondade de Deus
A obra de Oruka é interessante para mim por duas razões: embora
retomando o espírito principal do empreendimento da etnofilosofia (que é
procurar conteúdos filosóficos por trás dos saberes populares), Oruka no
fundo faz duas críticas fundamentais. Por um lado, nega alinhar no unani-
mismo da etnofilosofia. Por outro, ao apresentar os saberes tradicionais como
resultado de uma reelaboração individual acerca de questões fundamentais
da vida da comunidade por parte do sábio, ele critica a ideia de que os sábios
tradicionais não têm pensamento individual elaborado sobre as questões
fundamentais da vida. Oruka resiste assim à tentação unanimista da filoso-
fia africana denunciada por Hountondji, mas constituindo um projecto de
filosofia subjectiva africana, mas consequente com a realidade africana do
que o projecto do beniniano.

Conclusão
Kant, na sua informação acerca da orientação dos seus cursos no semes-
tre de Inverno de 1765/1766 apresenta-se mais desolado do que confiante
perante o ensino e a formação filosóficos.
Pensamento engajado 143

Ele escreve no seu relatório que […] de um professor espera-se que,


nos seus ouvintes, forme, primeiramente, o homem que entende, depois,
o que raciocina e, finalmente, o sábio. Para ele o aluno não deve aprender
pensamentos, mas aprender a pensar; não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se
se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo. Se o
aluno aprende pensamentos (e não a pensar) então ele levará uma ciência
emprestada para fora da sala de aulas. Ele sofrerá de uma doença que se
chama ilusão da sabedoria.
Assim, o nosso projecto do ensino da filosofia (africana) deve passar
pela transformação das aulas (de filosofia) em espaços em que debate entre
si sobre questões fundamentais da nossa vida. Chamemos a este tipo de aula
espaço de intersubjectivação.
145

MUDANÇA PARADIGMÁTICA
NA EDUCAÇÃO

Severino Elias Ngoenha

I
Este artigo tem como objectivo explorar a possibilidade de referências
teóricas na busca de respostas à seguinte questão: como e até que ponto os
resultados de pesquisas realizadas pelos docentes universitários em contextos
culturais moçambicanos são integrados nos programas de ensino, particular-
mente nos programas de formação de professores? Duma forma mais ampla a
mesma questão coloca-se nos seguintes termos: qual é o estatuto dos saberes
resultantes das pesquisas feitas pelos africanos no quadro geral da academia?
A resposta a esta pergunta parte do pressuposto da existência de duas
formas idealtípicas de integrar os saberes produzidos localmente num con-
texto mais amplo da produção científica: Uma forma de integração é como
«exemplo» e outra como «paradigma». Se abordarmos a questão em termos
do estatuto desses saberes no quadro das (re)formulações curriculares em
curso nas nossas universidades moçambicanas, significa que no primeiro caso
– isto é como «exemplo» – o saber produzido localmente pelos docentes ad-
quire o estatuto periférico, marginal, ilustrador das regularidades e das formas
(pré) estabelecidas no quadro das ciências modernas. Como diz Ngoenha35
(num dos artigos deste livro), tem um estatuto de «pedreiro». No segundo
caso – isto é como paradigma – o estatuto seria o de serem estruturantes, de
modelos, de formas, enfim de organizadores do conhecimento, e não de um

35
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
146 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

simples exemplo como no primeiro caso. Emprestando o termo de Ngoe-


nha, diríamos, para este segundo caso, o estatuo de arquitecto. O arquitecto
projecta a forma inspirada numa determinada cultura; o pedreiro tem a
pesada tarefa de colocar os tijolos obedecendo às formas predeterminadas
pelo arquitecto. Somos pedreiros ou arquitectos no quadro da produção do
saber de natureza científica?
Neste artigo procuramos mostrar, em primeiro lugar, que o estatuto
dos saberes produzidos localmente tem sido, até agora, periférico. Contudo,
não pretendemos ficar por esta constatação: pretendemos, para além disso e
tendo como pano de fundo as minhas pesquisas no quadro da introdução dos
conteúdos locais/tradicionais no Ensino Básico em Moçambique desde 2003,
explorar e tornar evidentes sinais e tendências de superação deste estatuto
periférico pelo estatuto de paradigma. Dito de outra forma, este artigo procura
evidenciar algumas referências teóricas à disposição dos pesquisadores uni-
versitários em Moçambique, à luz das quais se podem tipificar os paradigmas
de enquadramento ou integração dos resultados da pesquisa nos programas
de ensino. As referências paradigmáticas que exploramos neste artigo, são
tornadas frutíferas a partir dos esforços de auto-inscrição36 dos intelectuais
africanos no processo da criação/produção do saber de natureza científica ou
que tivesse esse estatuto no concerto universal do que é aceite como ciência.
Uma reflexão cuidadosa – mas ao mesmo tempo muito geral – para aferir
a questão como é que os intelectuais africanos se representaram a si mesmos
no quadro da produção do saber de natureza científica, mostra duas posições
epistemológicas: a primeira posição é como objecto de estudos/pesquisas con-
duzidas, quer pelos próprios intelectuais e académicos africanos, quer pelos
seus congéneres europeus no contexto da colonização e/ou da globalização.
Nestes estudos o africano aparece como objecto da curiosidade científica
dos pesquisadores sejam europeus, sejam eles africanos. A segunda posição
epistemológica é a do reconhecimento dos africanos como sujeitos, ou seja,
construtores de saberes que procuram interpretar a sua própria realidade.
Desta se lhe abre (ao africano) a perspectiva de ser também um sujeito que
formula juízos científicos sobre a sua própria realidade e, a partir disto,

36
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
Pensamento engajado 147

reclama ter o poder de formular sua própria epistemologia, não periférica e


marginal, e que lhe seja outorgada o estatuto de conhecimento científico no
quadro da educação, sobretudo superior, em África. Denominaremos estas
duas tendências de objectivação e de subjectivação respectivamente.
O aclaramento destas posições de auto-inscrição dos africanos (objec-
tivação e subjectivação) serve para justificar a necessidade de defender uma
terceira posição epistemológica que consideramos como sendo emergente
e a mais apropriada para fazer justiça à luta que afinal está por detrás dos
dois paradigmas anteriores: a luta pelo reconhecimento do local (africano)
como lugar epistémico não-periférico, que pode ocupar uma posição cen-
tral e estruturante no quadro das reformulações curriculares em curso nas
nossas escolas e universidades. Insistimos aqui na questão de reformulações
curriculares porque entendemos que este é um campo importante onde se
(devia) receiam os estatutos epistémicos dos diferentes saberes.
A terceira posição aqui defendida é a da intersubjectivacção. Na inter-
subjectivacção reserva-se papel central ao pesquisador no contexto local: ele
deverá ser um agente activo na produção de novos saberes com base nos quais
participa na criação de escolas moçambicanas de pensamento. As escolas (o
mesmo que dizer paradigmas) nascerão da participação activa nos espaços
de intersubjectivacção – argumentamos no fim deste artigo.

II
A tese que defendemos neste artigo, é a seguinte: existem (já) sinais e
tendências de superação do estatuto periférico (exemplo, pedreiro) dos sabe-
res produzidos pelos pesquisadores africanos para um estatuto paradigmático
(central, arquitecto) na produção (pesquisa) e na disseminação (educação);
todavia, o pressuposto básico para esta mudança é o engajamento do professor-
pesquisador universitário na criação intencional e na ampliação de espaços de
intersubjectivacção dos saberes produzidos.

Para explicitar esta tese desdobremo-la em quatro argumentos a saber:


primeiro que o estatuto quer dos saberes produzidos por pesquisadores africa-
nos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional produ-
148 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

zidos pelos professores no âmbito do currículo local no âmbito micro-escolar


permanece, para ambos casos, periférico, marginal, de exemplo perante os
modelos, os paradigmas assimilados no quadro de um sistema de educação
orientado e construído segundo os padrões de ciências ocidentais. Em se-
gundo lugar argumenta-se que o estatuo periférico dos saberes produzidos
por ambos consubstancia-se no papel de servir apenas de exemplo quando
integrados nos quadros curriculares do Ensino . Trata-se da continuação do
argumento sobre a apropriação dos saberes locais pelo sistema de educação,
argumento este que já defendemos algures37 . O terceiro argumento postula
que existem sinais e tendências paradigmáticas de referência teórica a serem
recuperados das propostas de auto-inscrição dos intelectuais africanos no
concerto universal da produção do saber de natureza científica. Trata-se de
tendências de objectivação e de subjectivação. O quarto e último argumento
justifica a necessidade e o imperativo da criação formal de espaços de inter-
subjectivacção. Estes serão os celeiros de futuras escolas moçambicanas de
pensamento. Só assim, defende-se, será possível superar tanto a objectivação
como a subjectivação porque será nestes espaços onde nascerão referências
de cariz paradigmático justamente para servir as reformulações curriculares
que se quer justas em relação ao contexto em que fazemos educação.
Convém, porém, a este passo da nossa explanação, fazer dois reparos de
natureza metodológica. O primeiro reparo é que os argumentos para consubs-
tanciar a tese são desenvolvidos obedecendo a dois níveis de ilustração: num
primeiro aborda-se a questão do estatuto do saber produzido pelo pesquisa-
dor que trabalha nas universidades; num segundo plano aborda-se o estatuto
do tipo de saberes educacionais elaborados pelos professores primários no
quadro das suas tentativas em recolher os conteúdos locais relevantes para
a aprendizagem dos alunos. A recolha destes saberes pelos professores tem
como objectivo serem enquadrados no currículo moçambicano do Ensino
Básico, o que recebeu o termo de currículo local. No primeiro caso, usarmos
o termo formador-pesquisador para referir os professores universitários
com o duplo papel, nomeadamente o de formador de professores e o de

37
Cfr. CASTIANO, J.P., African Traditional Knowledge and Education Today. In: Hountondji,
P.J.: La Production du Savoir dans l’Afrique d’Aujourd’hui. Centre Africaine des Hautes Études.
Porto-Novo, Bénin, 2009,pp.425-456.
Pensamento engajado 149

pesquisador; no segundo caso usamos o termo professor-pesquisador para


fazer justiça ao facto de que, no âmbito da introdução dos saberes locais
nas escolas moçambicanas, o professor deixa de ser somente transmissor do
conhecimento plasmado nos programas de ensino, e passa a ser também um
agente activo na organização e na produção dos saberes a serem ensinados
na escola onde se encontra a trabalhar38 .
O segundo reparo metodológico diz respeito à natureza não acabada dos
argumentos aqui alinhados. De facto o epicentro desta análise são os saberes
locais e a sua integração nos programas de ensino do nível básico, área que
nos propomos concentrar-nos mais. Assim o nosso focus a partir do qual
seguimos o fio de argumentação é a produção dos saberes educacionais por
parte do professor-pesquisador e a análise do estatuto que estes saberes vão
assumindo no processo de negociação da sua integração na escola oficial.
No que diz respeito à análise de como o formador-pesquisador, portanto
o docente universitário, integra os resultados da sua pesquisa nos seus
programas de ensino carece ainda de um estudo mais profundo analisando
exemplos mais concretos. Este nível só pode ser ligeiramente aflorado no
quadro deste artigo, sem no entanto poder formular evidências acabadas.
Assim, nos juízos que fazemos, limitamo-nos, por enquanto, às experiências
pessoais como formador-pesquisador dos saberes locais e sua integração no
processo de ensino e de aprendizagem (currículo local) e como docente de
filosofia de educação na Universidade Pedagógica.

III
Formulamos o primeiro argumento da seguinte maneira: Tendo como
pressuposto a extraversão na produção e na disseminação dos resultados de
pesquisa, o estatuto quer dos saberes produzidos por formadores-pesquisadores
africanos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional em
África produzidos pelos sábios nas comunidades permanece, para ambos casos,
periférico, marginal, de exemplo.

38
Cfr. CASTIANO, J.P.., Os Saberes Locais vão à Escola. In: Síntese, Revista da Faculda-de de Ci-
ências Sociais da UP, Maputo, 2008.
150 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Por uma questão de lógica argumentativa, divido este argumento em


duas partes: a primeira explicita o carácter periférico dos resultados dos
formadores-pesquisadores que realizam as suas actividades de pesquisa no
contexto da sua missão universitária (de pós-graduação ou como pesqui-
sadores seniores) e a segunda parte caracteriza-se os saberes educacionais
produzidos pelos professores-investigadores ilustrando-os na base de alguns
textos aleatoriamente seleccionados das brochuras do currículo local das
províncias de Sofala e Manica.
Comecemos, portanto, com a primeira parte do primeiro argumento.
Hountondji (2000,p.41) sustenta que a característica geral da pesquisa nas
universidades africanas é a extraversão; isto é, a pesquisa está virada para
a exportação para o Ocidente dos saberes produzidos. Ele sustenta que há
razões organizacionais e cognitivas que consubstanciam esta posição. Sob o
ponto de vista da organização do processo de pesquisa nota-se que nos países
africanos não existe uma produção industrial dos instrumentos que facilitam
e garantem uma boa qualidade de pesquisa tais como microscópios, papel,
computador, etc.; estes são importados a preços altíssimos, na sua maioria
dos países europeus; as editoras, jornais de natureza científica e académica
mais significantes – espaços onde os resultados das pesquisas podem ser
divulgados –, as livrarias e bibliotecas mais prestigiadas – distribuidoras de
informação científica – também se encontram, na sua maioria, nos países
do Norte (Europa e América); as línguas por meio das quais se divulgam os
saberes produzidos em África são de origem europeia (ou em inglês, ou em
francês, ou ainda em português); isto coloca aos pesquisadores e estudantes
europeus – utilizadores privilegiados das informações – em condições cul-
turalmente vantajosas no que diz respeito ao acesso e à disseminação dos
saberes desta natureza.
Sob o ponto de vista dos conteúdos do conhecimento nota-se, entre
outras coisas, que a agenda de pesquisa e os interesses cognitivos que estão
no substrato dos projectos de pesquisa são ditados, em última instância, por
interesses ligados ao desenvolvimento da actividade científica das univer-
sidades do Norte acolhedoras; da mesma forma, os paradigmas e modelos
teóricos, quer de natureza positivista-objectivista quer de natureza (cultural)
interpretativa-subjectivista, são impostos aos formadores-pesquisadores em
Pensamento engajado 151

África pela própria lógica do empreendimento da produção científica; a legi-


timação dos resultados de pesquisa é feita na base do cânone predeterminado
pela tradição científica europeia.
A organização da pesquisa na nossa Universidade Pedagógica assim
como noutras universidades moçambicanas, está também a braços, por um
lado, com dificuldades de ordem material e organizacional e de ordem epis-
temológica, por outro. As dificuldades de ordem material vão desde a falta de
laboratórios bem apetrechados, o fraco acesso aos livros de especialidade, a
não existência de assinaturas regulares de revistas especializadas que possam
actualizar de forma permanente aos formadores-pesquisadores no que diz
respeito às pesquisas realizadas por colegas em outras universidades, entre
outras. A pouca actividade de pesquisa na Universidade Pedagógica é reali-
zada, na sua maioria, num contexto de pós-graduação ou de consultoria ou
ainda daquilo que comummente se chama por acessoria. Esta situação leva
logicamente a certos constrangimentos estruturais e temporais resultantes
desta condição, mas sobretudo leva também a constrangimentos de ordem
epistemológica. Se tomarmos em conta que nas pesquisas que os docentes
realizam é feita quase sempre no contexto da sua pós-graduação – a maioria
dos livros publicados são textos dos trabalhos de doutoramento – a fase do
trabalho de campo é feita em Moçambique, ficando o chamado tratamento
de dados e o seu respectivo enquadramento teórico para a fase de estadia
nas universidades do Norte; para o caso da maioria dos docentes da Uni-
versidade Pedagógica são universidades da Alemanha, da França, do Brasil,
etc. Esta extraversão determina em grande medida que o quadro teórico
ou os paradigmas de análise são inspirados ou simplesmente copiados dos
livros de autores recomendados como essenciais, na sua maioria do Norte.
São teorias produzidas em contextos diferentes aos que o nosso formador-
pesquisador se confronta no seu trabalho de campo. Esta acepção se pode
confirmar rapidamente com um simples olhar quantitativo e qualitativo à
bibliografia das dissertações. A título ilustrativo pode ler-se num dos textos
de resumo da comunicação do colega Jó Capece39 (título: Ligação Escola-

39
Este artigo foi escrito, primeiramente, no âmbito de uma comunicação apresentada no seminário
sobre Formação de Professores em Moçambique, realizado na Universidade Pedagógica em Maputo
(Maio 2008) no qual Jó Capece apresenta o tema referido no texto.
152 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Comunidade e os Saberes das Comunidades Locais) no qual se lê: Tomando


como referência as obras de Joseph Campbell O poder do mito, Jorge Torres
Santomé O Currículo Local, Michael Apple Conhecimento Oficial: educação
democrática numa era conservadora, Jean-Claude Forquim A escola e cultura:
as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar e o depoimento
da entrevista… (com) ... um conjunto de elementos que fazem ponte entre
os saberes das comunidades locais e o conhecimento oficial. Está claro que
Capece usa os depoimentos dos elementos da comunidade para confirmar o
saber contidos nos livros. Uma coisa notável também, parece que estes ele-
mentos da comunidade não têm nome digno de se mencionar ou ser citados
neste tipo de artigos ostensivamente académicos.
Continuemos, agora, com a segunda parte do primeiro argumento,
explorando, desta feita, a questão dos caminhos de integração dos saberes
educacionais produzidos pelos professores-pesquisadores a partir das reco-
lhas que orientaram nas diversas comunidades no currículo oficial do ensino
básico em Moçambique.
Em 2003 o então Ministério de Educação e Cultura moçambicano in-
troduziu algumas inovações no sistema de educação. Uma destas inovações
é o chamado currículo local. Desde lá para cá ainda não houve um balanço
sistemático e global (relatórios oficiais) avaliando os resultados daquela re-
formulação curricular.
Entretanto, em diversas sessões de capacitação dos professores em
matérias de integração de temas locais no currículo centralmente definido
surgem muitas questões colocadas pelos professores procurando saber como
podem integrar estes mesmos na sua actividade de leccionação. Algumas das
perguntas mais recorrentes são as seguintes: Como integrar os conteúdos do
currículo local nos planos de aulas? Como seleccionar os conteúdos do currí-
culo local? Em que momento da aula pode tratar-se de matérias do currículo
local? Que língua se deve usar para o tratamento dos conteúdos do currículo
local (em caso de o professor não ser oriundo da zona)? É possível tratar os
Pensamento engajado 153

conteúdos do currículo local em todas as aulas e disciplinas40 ? Como é feita a


integração dos 20% do currículo local? Pode fazer-se uma avaliação somente
de conteúdos do currículo local? Como professor posso integrar conteúdos
no currículo local que eu achar pertinentes para a aprendizagem do aluno
ou somente tenho que obedecer aos conteúdos recolhidos e compilados na
brochura? A brochura do currículo local é renovável? É possível integrar
conteúdos provenientes de outras zonas, por exemplo danças? Como tratar
os conteúdos que não são do domínio do professor?
Estas e outras perguntas aqui não reproduzidas apontam para a existên-
cia de dificuldades de ordem do conceito do currículo local, mas sobretudo
no que concerne aos métodos para recolher e inventariar esses conteúdos
e também métodos apropriados para poder abordar os mesmos na sala de
aulas. Embora falte um acompanhamento sistemático dos professores por
parte do Ministério de Educação e Cultura e por parte do Instituto Nacional
de Desenvolvimento da Educação, o facto de os professores começarem a
preocuparem-se com a formulação de perguntas para o melhoramento da
sua própria actividade, não nos pôde passar despercebido.
Com efeito, para além de maior capacitação dos professores primários
para poderem ter bases em metodologias de recolha dos conteúdos do cur-
rículo local e em metodologias apropriadas para ensinar os mesmos, o que
os professores mais necessitam é de transformar as suas recolhas em material
didáctico (textos de apoio) aos quais podem recorrer sempre que estiver no
seu programa a inclusão dos conteúdos locais. O maior desafio, portanto,
neste momento é o da transposição didáctica no sentido de transformar os
temas, tópicos e alguns textos contidos nas brochuras do currículo local em
textos que sejam coerentes, sistematizados, bem estruturados, mas sobretudo
responsáveis aos anseios e conteúdos recolhidos nas comunidades. Para nós
e no contexto da tese aqui em labuta, consideramos que é nesta fase – que
aparentemente é a da transcrição dos resultados das entrevistas e de recolhas
40
Deve notar-se que o novo currículo do ensino básico em Moçambique comporta três áreas curri-
culares, nomeadamente a área de Comunicação e Ciências Sociais (com as disciplinas de Língua
Portuguesa, Línguas Moçambicanas, Língua Inglesa, Educação Musical, Ciências Sociais e Edu-
cação Moral e Cívica), a área da Matemática e Ciências Naturais (que comporta as disciplinas de
Matemática e Ciências Naturais) e a área das Actividades Práticas e Tecnológicas (que comporta
as disciplinas de Ofícios, Educação Visual e Educação Física).
154 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

nas comunidades – que o professor-pesquisador elabora a primeira parte


dos saberes educacionais a partir de contextos locais. Os textos básicos são
colocados no que o INDE convencionou chamar de Brochuras do Currículo
Local.
Os textos a seguir são transcritos das brochuras de alguns distritos da
província de Sofala. São textos elaborados na sua íntegra por professores
primários após terem entrevistado (o termo mais usado pelos professores é
recolha em vez de entrevista) sobre os temas e conteúdos locais aos membros
das comunidades. Preferentemente foram alvos das entrevistas os pais ou en-
carregados de educação que fazem parte dos Conselhos de Escolas. A escolha
dos textos é aleatória; o único critério foi evitar incluir textos que abordam
os mesmos conteúdos locais dado que o objecto da nossa argumentação não
é uma comparação, senão mostrar a variedade e a profundidade de como
os temas de carácter local são transferidos pelos professores para um texto
de natureza didáctica. A repetição foi também evitada, porque se pretende
aferir, no fim, como é que os professores integram estes conteúdos no currí-
culo central e oficialmente definido para ilustrar os desafios que se colocam
à construção e as reformulações curriculares no contexto da formação de
professores. Os textos foram literalmente transcritos, i.e. copiados tal e qual
foram elaborados pelos professores. Não procedemos à correcção linguística.

Texto 1: As Plantas Medicinais em Cheringoma


(FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)

Nhangarume, Ncundo-ncundo, Zingazimo, Nhampheraphera, Vungute,


Raiz de Papaira (quer dizer papaeira), Raiz de piri-piri, Raiz de Santo-Antó-
nio, Ndulando, Mpundopundho, Papaia Verde, Raiz de Recino (quer dizer
rícino), Kmbamcolo, Khundokundo, Mpanguire, Gona Zololo, Nhanfungu,
Ntsembe, Nkotamo, Sequesse, Minimini, Fula, Mussequece, Pau-Preto.

Nhangarume – serve para curar abcessos ou enxassos (quer dizer inchaço) a


partir das suas raízes raspando e pondo na ferida.
Ncundo ncundo – serve para dores de barriga a partir da sua raiz pondo
água tomando-a 5 minutos depois.
Zingaazimo – é uma planta que serve para expulsar espíritos maus. Pilam-se
Pensamento engajado 155

as folhas e põem-se numa bacia com água depois esfrega-se todo o corpo,
serve também para curar dores de estômago.
Nhapheraphera – serve para prevenir em caso de adulteiro, a continuação
de doenças como: febres, diarreias e tosse. Recolhe-se as folhas, lava-se e
mergulha-se num copo e os adultos tomam um copo e os adultos tomam um
copo as crianças uma colherinha.
Folha de limoeiro – serve para curar tosse. As próprias folhas fervidas be-
bendo água.
Vungute – é uma planta que trata as mulheres que tem problemas em produ-
zir leite materno. Para os homens serve para aumentar sexo. Modo de pre-
parar: nas mulheres leva-se a fruta e fura-se a mesma e pegam nos mamilos
e colocam-nos no burraco (quer dizer buraco) a mulher vai usando até sair
leite sendo duas vezes por dia. Para os homens sobe na árvore e abre bura-
quinho na fruta fixa na respectiva árvore e o rapaz que ainda não atingiu a
idade de casamento, vai subindo de manhã e a tarde para introduzir seu sexo
no buraco (6 aos 11 anos).
Raiz de papaeira – cura dores de dente. Coloca-se no dente que possui um
buraco, deve ser posto no dente que estiver a doer.
Folha de eucalipto alivia as febres fortes e malária. Junta-se as folhas de au-
calipto, da goiabeira, limoeiro e mistura-se numa panela com água que basta
e ferve-se faz-se bafo (duas vezes por dia).
Raiz de piri-piri – usa-se para curar a mordedura de cobras. Preparação: tira-
se a raiz, raspa-se e deita no recipiente de preferência copo e mistura-se com
água uma quantidade regulada e depois toma-se a água.
Raiz de rícino – serve para curar dores de dente. Preparação: leva-se a raiz
de rícino e das bananeira, pilam-se e depois juntam-se com óleo do rícino
mistura-se muito bem, coloca-se no buraco onde estiver a doer.
Kmbamcolo e Khundokundo serve para curar ferida; modo de preparar:
pila-se a raiz de khundokundo e raspa-se; a farinha é posta da ferida.
Mpaguire – serve para tirar grávida (abordo). Tira-se as folhas, lava-se e
pila-se. Põe-se no copo com água e toma-se a própria água. Evita-se usar a
mulheres que tenham grávida de dois meses ou mais se não pode morrer.
Gonadzololo – serve para dar mais potência sexual masculina. Estrai-se
(extrai-se) a raiz, lava-se, raspa-se e guarda-se e depois pila-se até ficar em
pó e guarda-se num frasco. No momento preciso tira-se uma colheirinha e
mistura-se com água e toma-se. Aconselha-se usar gonadzololo a partir dos
156 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

40 anos ou mais.
Nhanfunga – serve para dar força, vitamina, aumenta sangue as mulheres
grávidas e fortalece a mulher no momento de parto.
Ntsumbe e Nkotamo – serve para tratar as mulheres que não concebem.
Sequece – serve para curar tuberculose e tosse. Modo de preparação: tira-
se folhas e as próprias raízes, põe-se na panela com água e põe-se a ferver.
Toma-se a água fervida para adulto metade de chávena e duas colherinhas
para as crianças, sendo três vezes por dia.
Minimini – serve para prevenir conjuntivite e complicações de parto. Modo
de preparar: pode se tomar as sementes ou pilar-se mistura-se com água e
toma-se. Também pode ser usada por pessoas que não têm boa mão para
melhorar a criação.
Santo António: serve para dores de estômago e para curar cólicas (dores de
barriga) para bebé.

Texto 2: A Pescaw
(FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)

C.Naturais
3. Classe
2. Ciclo
A Pesca é uma actividade extra praticada pelas comunidades que vivem per-
to do rio. Pela natureza dos rios do distrito de Marínguè. A pesca é artesanal
e periódica. Para esta actividade a comunidade utiliza o anzol, redes, konga,
ndzize.
Os principais pescados são: peixe muni-muni, macacana e nsimbo.

Texto 3: Plantas de Valor Espiritual


(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Gorongoa, Sofala)

6.Classe
Ciências Naturais
1.Ciclo

Objectivo geral: conhecer as plantas de valor espiritual


O distrito de Gorongosa é rico em plantas de valor espiritual usada pela
Pensamento engajado 157

população de azares e de espíritos maus. As plantas de valor espiritual são:


Nktunite, Chizinga Ázimo, Ntondo, Mpangapanga (usa-se nas machambas),
Mpacassa, Mulembe. Dada a importância destas plantas são respeitadas pe-
las populações.

Vocabulário
Valor: importância
Afugentar: expulsar, tirar, correr

Questionário:
s-ENCIONEALGUMASPLANTASDEVALORESPIRITUAL
s4RAGAPELOMENOSTRÐSPLANTASESTUDADAS

Sugestões metodológicas
Propor aos alunos que tragam para a sala das aulas plantas de valor espiritual
que os pais conhecem
Visitar um lugar onde estas plantas existem.
O professor organiza o plantio das plantas em redor da escola.

Texto 4: Os Mitos e Tabus do Distrito de Muanza


(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Muanza, Sofala)

No distrito de Muanza, existem tradições com um papel educativo para a


comunidade. Tabus são proibições que são feitas a certas práticas;
Mitos: são consequências da desobediência das práticas dos tabus.
As proibições
Em Muanza é proibido o seguinte: sacudir a roupa ou esteira no período
nocturno, lavar panelas no rio, praticar relações sexuais na floresta, sentar
no tronco caído na floresta, assobiar nas noites, pernoitar em cima de uma
árvore.

Consequências
Crê-se que com estas práticas será devorado pelo leão ou leopardo.
158 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Vocabulário
Mito: justificação
Tabu: proibição
Tradição: hábito, costume
Questionário
1.O que são mitos e tabus?
2.Quais são os tabus do distritos que aprendeste?

Sugestões Metodológicas
O professor poderá recorrer a entrevista aos líderes comunitários e pessoas
mais velhas da comunidade, ou convidar alguém da comunidade para falar
sobre o tema.

Texto 5: Estrutura da Comunidade


(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito da Machanga, Julho 2004)

Na comunidade existem várias estruturas tais como:


s%STRUTURAADMINISTRATIVA
s%STRUTURAPOLÓTICA
s%STRUTURATRADICIONAL

Composição da estrutura administrativa:


1º Administrador
2º Chefe do Posto
3º Presidente da Localidade
4º Secretários de Bairros
5º Chefes de Quarteirões
6º Chefes de 10 Casas
Sendo assim o Distrito de Machanga é constituído de Postos Administra-
tivos e 8 Localidades.

Postos Administrativos:
1. Sede – com as seguintes localidades:
1.1 – Mavinga
1.2 – Zimuala
1.3 – Javane
Pensamento engajado 159

2.Divinhe
2.1 – Divinhe
2.2 – Maropanhe
2.3 – Buene

3.Chiloane
3.1 – Chiloane
3.2 – Inharingue

Composição da estrutura política

Comité Distrital
Secretário do Comité Distrital – 1º secretário
Secretário para Organização, Mobilização e Propaganda
Chefe do DAF
Dentro desta estrutura existe uma outra denominada Comité de Verificação
composta por 1º Secretário e 4 membros.

Comité de Zona
1º Secretário do Comité de Zona
Secretário para organização

Comité de Círculo
Secretário do Comité do Círculo
Secretário para a organização

Célula do partido
Secretário da célula
Assistentes
Composição da estrutura tradicional
1- Régulo
2- Chefes de povoação
3- Chefes de grupos de povoação
O régulo tem a sua equipa de trabalho conhecida por Sacutas destes fazem
parte os mensageiros, polícia do regulo e advogados.
Principais regulados do Distrito: Chiteve, Beia-Peia, Zimuala, Javane, Mo-
160 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

tongua, Vumone, Mutambanhe, Gumbaza (Maropanhe), Ziminine (Inha-


ringue), Nhanguvo, Chiloane, Metuge.

Funções das diferentes estruturas


a) Estrutura administrativa: garantir melhor administração dos serviços;
b) Estrutura Política: assegurar os trabalhos do partido através dos seus
membros;
c) Estrutura tradicional: garantir a tranquilidade na sua área de jurisdição,
orientar cerimónias tradicionais e cobrança de impostos.

Ficou evidente, neste primeiro argumento, que, para ambos os casos,


o resultado final dos saberes produzidos no contexto da pesquisa científica
praticada pelos universitários e dos saberes produzidos em contextos edu-
cacionais mais localizados pelos professores-pesquisadores no âmbito da
construção do currículo local, é de serem duplamente marginais: sendo no
primeiro caso marginais no contexto universal da produção do conhecimento
científico, e, no segundo caso, sendo marginais em função do conhecimento
oficialmente aceite como apropriado para ser ensinado pela instituição escola.
Em seguida, no argumento 2, vamos procurar concretizar mais mostran-
do como esses saberes estão sujeitos a uma apropriação estruturada. Faremos
isso olhando mais especificamente para o papel desses saberes na construção
do currículo e dos programas de formação de professores (tendo como foco
de análise a Universidade Pedagógica) e na construção do currículo local
como parte integrante do currículo centralmente definido em Moçambique.

IV
Vejamos, pois, o segundo argumento: O estatuto periférico e subordi-
nado quer dos saberes produzidos por formadores no âmbito das pesquisas,
quer o que é produzido pelos professores-pesquisadores no âmbito do cur-
rículo local têm pouco impacto nas reformulações dos fundamentos das (re)
construções curriculares ao nível universitário e ao nível do Ensino Básico.
Desdobremos, também, este segundo argumento em duas partes. Na
primeira mostra-se que ainda está muito longe um impacto paradigmático dos
resultados das pesquisas dos formadores na concepção das reformas curri-
Pensamento engajado 161

culares em curso nas universidades africanas, na formulação dos princípios e


fundamentações curriculares assim como na docência de disciplinas/cadeiras
particulares. Na segunda parte do argumento mostra-se que, não obstante
à pressão dos grupos epistémicos locais para a integração dos saberes locais
na escola, o resultado da recolha e – para usar o termo do Instituto Nacional
de Desenvolvimento da Educação – da integração dos chamados conteúdos
locais no currículo nacionalmente definido é a manutenção, na sala de aulas,
do estatuto subordinado, inferior, marginal dos conteúdos recolhidos para
o currículo local. Portanto, em ambos casos há um processo de apropriação
desses saberes por parte da estrutura e ordem científicas (pré)estabelecidas
nos programas curriculares de formação de professores nas universidades
assim como na escola básica. Em ambos casos podemos falar de haver um
processo de apropriação dos saberes produzidos em condições periféricas.
Esta apropriação é estruturalmente condicionada pelos princípios e funda-
mentações das reformulações curriculares que, deliberadamente, olham para
a experiência ocidental na educação como o epicentro e para as experiências
africanas na educação como periferia.

A Apropriação dos Resultados de Pesquisa pelo Cânon Cur-


ricular Universitário
Comecemos por demonstrar a primeira parte do segundo argumento.
Tomemos, de novo, a pesquisa que é feita na Universidade Pedagógica como
ponto de partida.
Um dos ramos mais desenvolvidos e fortes da pesquisa na Universidade
Pedagógica é, sem dúvidas, a etnomatemática. E isso deve-se principalmen-
te aos trabalhos do seu mentor principal: Paulus Gerdes. Por isso é justo
começar por aqui. No texto da apresentação por ocasião do relançamento
da 3ª edição (1ª edição 1979) do livro Exemplos de Aplicações da Matemá-
tica na Agricultura e na Veterinária, publicado pela primeira vez em 1982,
Gerdes41 conta no início a ideia de investigar os conteúdos matemáticos
nas culturas moçambicanas. Em 1977 começou a formação de professores
41
Cfr. GERDES, P., Exemplos de Aplicações da Matemática na Agricultura e na Veterenária, Lulu.
com & TLANU, 3ª Edição, 2008.
162 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

de matemática para a 5ª e 6ª classes na então Faculdade de Educação da


Universidade Eduardo Mondlane. Gerdes conta que era necessário motivar
os poucos estudantes porque, entretanto, quase nenhum estudante gostava
da matemática porque esta lhes parecia ser uma disciplina esotérica, pouco
interessante, e pouco útil para o desenvolvimento social, cultural e econó-
mico do país. Gerdes prossegue dizendo que como um dos componentes de
motivação, introduziu-se no currículo uma disciplina chamada Aplicações da
matemática na vida corrente das populações. Entre outras coisas, a disciplina
incluía visitas de estudos. Uma das visitas feitas foi à fábrica de cervejas onde
os estudantes teriam, segundo Gerdes, constatado que operários pouco ou não
escolarizados trabalhavam com números negativos para controlar vários pro-
cessos na fábrica… No prosseguimento das pesquisas, os estudantes teriam
contactado primeiramente pessoas-na-vida-diária, tais como camponeses,
agentes de extensão rural, médicos veterinários (…) para conhecer a natureza
do seu trabalho e saber onde a matemática era usada na sua vida, saber quais
eram as situações mais frequentes na sua prática onde surgiam dificuldades
em lidar com números e figuras geométricas. A seguir, tentou-se formular
os problemas matemáticos envolvidos numa forma acessível e didáctica….
Devo acrescentar que As aplicações tem capítulos de matemática aplicadas
à sementeira, à adubação, ao combate à certas doenças que afectam o gado
bovino (riquetsiose e coccidiose). Este livro pode ser considerado – e espero
não estar a trair a ideia de Gerdes – como o texto fundador da pesquisa na
etnomatemática em Moçambique.

A Apropriação dos Saberes Locais pela Escola

Discutamos agora as questões colocadas para a integração destes textos


exemplares nos programas do ensino.
No debate em relação ao texto Plantas Medicinais colocou-se o proble-
ma da sua integração nos programas do ensino básico da seguinte maneira:
onde podemos enquadrar o assunto da planta Gona Dzololo no programa
de ensino?
No debate acordou-se que este tema do currículo local pode ser perfei-
tamente enquadrado no tema Plantas Medicinais do 3º ciclo no programa de
Pensamento engajado 163

ensino centralmente definido. Também notou-se que este tema não deveria
ser integrado na 5ª classe porque as crianças da 6ª classe são mais crescidas e
as da 5ª classe não; também deixou-se de lado a possibilidade de enquadrar
este tema no capítulo sobre Aparelho reprodutor da 5ª classe, porque esta
planta não serve os propósitos da reprodução; a outra possibilidade afastada
é de incluir a planta Gona Dzololo no capítulo que fala de medidas para
evitar gravidez, da 7ª classe ou ainda na disciplina das Ciências Naturais, na
6ª classe, onde existe uma unidade temática sobre plantas.
NOTA: neste caso viu-se que era importante o professor primeiro
informar-se com todos os detalhes sobre o conteúdo do tema (Gona Dzolo-
lo). Em segundo lugar o professor deve consultar os programas de ensino e
analisar os objectivos ou competências descritas no programa para decidir
sobre a inclusão ou não desta planta na sua planificação da aula. Por exem-
plo, as competências contidas no programa de Ciências Naturais (6. classe)
são: conhecer as principais plantas existentes na sua comunidade; conhecer
a importância das principais plantas da comunidade; usar plantas da comu-
nidade para resolver os problemas da vida real; conhecer as características
gerais botânicas das principais plantas da comunidade e dominar métodos
de protecção e conservação das principais plantas da comunidade42 . Depois
de estar claro sobre as competências o professor pode então decidir em que
capítulo ou tema centralmente definido pode integrar o Gona Dzololo como
um exemplo local.
Em relação ao texto sobre as pescas foi observado que é preciso localizar
mais os textos. Localizar significa fazer um texto mais interdisciplinar abran-
gendo aspectos das Ciências Socais (que costumes e hábitos estão ligados à
pesca? Quem vai geralmente à pesca? Como são distribuídas as partes do
peixe? Há peixes que têm um significado especial como por exemplo azar,
má sorte? O que se faz para que a pessoa tenha sorte na pesca? Quais são
os mitos ligados à pesca), da disciplina de Ofícios (sugerindo que os alunos
fabriquem ou tragam os instrumentos de pesca na escola como anzol, konga,
ndzize). Uma outra vertente de localizar este tema significaria colocar os no-
mes tradicionais dos instrumentos, procurar saber o significado dos nomes dos

42
MEC/INDE, Programa do Ensino Básico, 3, ciclo, 6. e 7. Classes. Maputo, Moçambique, 2003, p.496.
164 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

rios, perguntar sobre as cerimónias tradicionais praticadas nos rios, perguntar


sobre os mitos ligados aos rios, transcrever contos locais sobre os rios, etc.
No que diz respeito ao texto sobre O valor espiritual das plantas foram
colocadas algumas reservas pelos professores em relação à sugestão metodo-
lógica, nomeadamente a de fazer o seu plantio em redor da escola para que
as crianças possam observar as plantas referidas como exemplos. Pelo facto
de as plantas terem o valor espiritual deveria haver, segundo os professores,
extremo cuidado em relação a esta sugestão dado que se deve pedir a anuên-
cia e a intervenção dos membros do Conselho de Escola para autorizarem a
abertura deste mini-viveiro nos arredores da escola.
Por fim, em relação ao texto sobre danças, observaram os professores,
que dever-se-ia destacar os tipos de danças segundo a sua função (para alegria
ou que expressam a tristeza); deveria também alistar-se as formas como se
executa cada dança; e, finalmente, deveria especificar os actores e os execu-
tores das danças (crianças, adultos, homens, mulheres).
A partir das observações adiantadas acima que ilustram como os pro-
fessores integram, mas sobretudo, como negociam os conteúdos locais no
quadro do sistema oficial de ensino e a sua integração neste mesmo sistema,
feita acima, estamos em condições de passar para o argumento seguinte, o
terceiro.
Este argumento pode ser formulado da seguinte forma: há sinais e/ou
tendências novas paradigmáticas (de objectivação e de subjectivação) que
podem servir, por um lado, de referência teórica para a construção curricular
no âmbito de formação de professores e, por outro, como referência para a
planificação curricular ao nível das diferentes cadeiras. As várias correntes
de objectivação e de subjectivação podem também constituir-se em quadros
teóricos paradigmáticos na elaboração e efectivação de projectos de pesquisas
dos formadores-pesquisadores no esforço do resgate dos saberes locais para
a formação de professores.
A nova tendência paradigmática é tornada frutífera a partir das propostas
dos intelectuais africanos no esforço da auto-inscrição da sua identidade no
contexto universal da produção de um saber que possa ser legitimado como
sendo de natureza científica.
Pensamento engajado 165

Kuhn43 considera paradigmas as realizações cientificamente reconhecidas


que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência. Durante o período de pre-
dominância de um paradigma pratica-se aquilo que Kuhn chama de ciência
normal; esta constitui uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em
exemplos seleccionados. A actualização da promessa de sucesso é garantida
e constantemente renovada e ampliada à medida que abordamos novos
problemas e encontramos as respectivas soluções no quadro do mesmo pa-
radigma. Kuhn44 também sustenta que os paradigmas orientam as pesquisas,
seja modelando-as directamente, seja por regras abstractas.
A classe intelectual-académica africana – pelo menos no que diz respeito
às ciências sociais e humanas, na filosofia em particular, – sempre procu-
rou auto-inscrever-se na história da produção do conhecimento científico
procurando conferir-se a si mesma a autoridade de falar em nome do ima-
ginário colectivo africano. Uma leitura atenta à história desta auto-inscrição
dos intelectuais africanos no mundo da ciência nos faz deduzir referências
paradigmáticas que podem ser tornadas frutíferas para o nosso propósito.
São paradigmas de objectivação e/ou de subjectivação do sujeito africano
enquanto participante do empreendimento da produção técnico-científica.
O que está em causa é, porém, a busca da identidade própria no seio da
comunidade científica local e universal e a elaboração de um discurso de
significação simbólica que pudesse dar conta da condição africana.
No eixo das reflexões académicas sobre a sua condição histórica e
contemporânea, ou seja, no centro das diferentes formas da auto-inscrição
(Mbembe) dos intelectuais africanos na história universal, repousam três
eventos eixos: a escravidão, o colonialismo e a globalização. Nestes eventos
o intelectual africano – mesmo que aparentemente fosse como membro da
elite da sua sociedade – participa respectivamente na condição de escravo,
colonizado e globalizado. É assim «natural» que o paradigma libertário,
como sustenta Ngoenha (2005), ou seja a preocupação da fundamentação

43
Cfr. KUNH, T.S., A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva, Ciência, S. Paulo,
Brasil, 2000,p.3.
\44
Idem, 2000,p.72.
166 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

da liberdade do africano, constitua a referência principal na actividade in-


telectual dos africanos.
Em relação aos três eventos ou processos foram desenvolvendo-se duas
tendências paradigmáticas: a da objectivação e da subjectivação.

Paradigma da Objectivação
A primeira tendência, que chamo por objectivação, nasce da ideia de
que, como consequência da escravidão, da colonização e da globalização, o
Eu africano se tenha alienado a si mesmo a ponto de se tornar estranho ao
seu próprio corpo (Mbebe 2001). O discurso sobre a condição da própria
existência, a redimensão da identidade enquanto africano, são feitos a partir
do lugar que a história dita universal, elaborada a partir duma perspectiva
predominantemente do Ocidente, o reserva. É essa a base do ocidentalismo
no qual a figura do africano sofre um processo de objectivação: ele entra na
história dita universal como objecto (e não sujeito) da sua própria história. Na
historiografia o Ocidente, apresenta-se como uma posição de localização his-
tórica e científica, como o centro referencial da produção do saber de natureza
tecno-científica. O sujeito ocidental apropria-se das referências simbólicas e
tecno-científicas, incluindo as que encontrara nas colónias, reelaborando-as
e disseminando-as de acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao outro
africano. Se antes era a Antropologia que se encarregava de estudar o «ou-
tro», hoje encontramos uma certa continuidade da tendência objectivação
no chamado movimento das etno-ciências, incluindo a etnofilosofia.
Depois da independência em Moçambique a tendência de objectivação
continuou por uma série de estudos antropológicos, etnográficos em diversos
ramos das etnociências, particularmente na Etnomatemática, levados a cabo
nas diferentes instituições superiores e de pesquisa moçambicanas. Entretanto
o saber científico moderno é o único que continua a ser reconhecido na esfera
pública formal, precisamente pela sua qualidade de saber dominante. A sua
transmissão nas diferentes vertentes é legitimada pela estrutura dos cursos
ministrados em diferentes faculdades, perpetuando a condição colonial no
ensino.
Pensamento engajado 167

Paradigma da Subjectivação
A segunda referência, que chamamos de subjectivação, tenta contrapor-
se à perspectiva eurocêntrica/ocidental do discurso sobre a condição su-
balterna do africano-objecto na dita história universal, refugiando-se num
discurso do imaginário tradicional, de nostalgia em relação ao passado idílico
e de idolatria às tradições locais. Mais do que isso, busca e rebusca a sua
legitimidade em tradições muitas vezes recriadas a partir das quais pretende
elaborar significações e identidades homogeneizantes. Trata-se, desta feita, do
afrocentrismo e da filosofia ubuntu. Estas referências procuram re-centrar o
sujeito africano na sua própria História e na produção do saber de natureza
científica. O afrocentrismo e a filosofia ubuntu apresentam-se como esforços
académicos de subjectivação ou seja de retomada da perspectiva das tradições
e dos valores africanos depositados, acredita-se, nas comunidades africanas.
Ambos manifestam-se numa semântica de «autenticidade», «originalidade»,
«nossa cultura» e por aí fora.
Senghor e Alassane Ndaw, na sua visão afrocêntrica, defendem uma
posição animista do conhecedor (Cfr. Ngoenha 1992): para conhecer as
propriedades do mundo a epistemologia africana tradicional defende que o
sujeito cognoscente deve estar em união com o seu objecto, e não na posição
de um observador alheio e frio – como é no caso da epistemologia ociden-
tal. Duma posição de observador não se chega ao âmago das coisas, não se
chega ao conhecimento delas. Não é a análise do mundo, mas a união com o
mundo que nos pode levar a conhecê-lo na sua essência, numa dança eterna
de amor, pois, conhecer é captar o espírito da coisa, do objecto em causa. A
epistemologia negro-africana ignora a separação entre a “ordem do conhe-
cer” e a “ordem do ser”. O conhecimento é um ser e não só um instrumento
ao serviço do homem45 . De facto, assim se defende, é só numa relação de
amor, de sentimento, que o conhecedor revela os mistérios do seu objecto
do conhecimento, chega a compreender o sentido da existência do objecto.
A unidade, e não a separação entre o objecto e o sujeito, é aqui defendida.
No caso de Moçambique a Independência em 1975 trouxe consigo a
necessidade de reconstituir e dar uma nova direcção à produção científica.
45
Cfr. NGOENHA, S. E., O Retorno do Bom Selvagem. Edições Salesianas, Porto, 1992, p.24.
168 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Na área da produção do saber de natureza científica, uma classe jovem de


intelectuais moçambicanos fizeram uma ruptura com os moldes de produção
científica vigentes no tempo colonial no domínio das ciências sociais e hu-
manas. Essa ruptura epistemológica entende-se como sendo a mudança do
objecto da investigação para áreas temáticas como o impacto do capitalismo
colonial e a sua relação com a economia africana, o paradigma dos movimen-
tos de libertação, direito e economia de Moçambique e da região, etc. Para
o período da produção socialista e o da economia de mercado a temática da
investigação em ciências sociais virou para a análise do processo da implan-
tação da economia e sociedade socialista, o impacto da guerra, a resolução de
conflitos, o processo da paz e a construção de uma sociedade democrática,
questões ligadas à pobreza, à posse e propriedade da terra, mulher, género,
línguas moçambicanas, etc. Mais recentemente os temas de pesquisa na
área social e humana estão mais virados para o impacto (social, económico
e psicológico) do alastramento do HIV/SIDA, o contexto regional da do-
minação sul-africana sobre a economia moçambicana e regional, o impacto
da cooperação internacional na soberania e independência moçambicanas,
etc. Toda esta investigação social pós-independência, porém, realiza-se num
contexto de forte dependência em relação aos doadores externos onde as
consultorias matam a possibilidade de uma pesquisa séria e de qualidade.
Como vimos, para o caso de Moçambique, a história intelectual do
esforço de subjectivação na produção do saber de natureza científica carece
ainda de uma reconstrução teórica. Por agora só existem pistas.
No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por isso surpreen-
dente, ambas referências (as etnociências e o afrocentrismo nas suas diversas
variantes) representam, no fundo, um esforço de negação em relação ao
estatuto de inferioridade e de subalternização reservado ao cientista africano
na historiografia da produção científica universal.

Paradigma da inter-subjectivação
Passemos agora ao quarto argumento segundo a qual, a inter-subjecti-
vação constitui uma referência de superação dos paradigmas de objectivação
e da subjectivação.
Pensamento engajado 169

O nosso programa de investigação, como dissemos algures, é o de superar


as referências da objectivação e da subjectivação, porque ambas obsoletas
para o contexto actual da África e, por inerência, de Moçambique. E, para
isso, argumentamos, é necessário reconhecer os novos contornos criados já em
volta dum novo referencial teórico: o da intersubjectivacção. Expliquemo-nos.
Este quarto argumento defende a criação intencional e de institucionali-
zação de espaços de intersubjectivacção e de escolas de pensamento nas uni-
versidades como uma forma de superação dos paradigmas de objectivação e
de subjectivação. Adoptando uma prspectiva da sociologia do conhecimento,
a intersubjectivacção refere-se ao aumento de espaços de argumentação que
permitam o surgimento de escolas de pensamento nas universidades. Dessas
escolas, argumenta-se, surgirão momentos semelhantes a pré-paradigmas
(Kuhn) e, mais tarde, de paradigmas.
Em termos mais claros: é necessário criar e institucionalizar fóruns onde
os produtores dos saberes locais e os pesquisadores e docentes profissionais
da pesquisa científica se encontrem e se alimentem mutuamente; no fundo a
ideia é a abrir as portas das universidades e institutos superiores de formação
aos produtores de saberes até agora considerados marginais.
Como dizíamos, os momentos pré-paradigmátcos são caracterizados,
segundo Kuhn, por debates frequentes e profundos a respeito dos métodos,
problemas e padrões de soluções legítimas oferecidos pelos paradigmas an-
teriores. Pensamos que este momento pré-paradigmático pode ser induzido
pelas universidades ao abrirem as suas portas para outras epistemologias (for-
mas de conhecer e de legitimar o conhecimento) alternativas e concorrentes.
O pressuposto que nos permite aventar a possibilidade de se induzir os
momentos pré-paradigmáticos para a intersubjectivacção são inspirados, de
facto, por Habermas: este tem a pretenção de ter mostrado que a Filosofia
da Consciência, portanto centrada no sujeito (paradigma da subjectividade),
se encontrava esgotada; dito de uma outra forma, quer dizer que a solução
algo sentimental da solidão metafísica, à la Descartes, em que um sujeito
entende tudo, apresenta sintomas de esgotamento. É preciso passarmos para
um paradigma da intercompreensão ( nós chamamos por intersubjectivacção)
170 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

que, segundo Habermas46 , ...é a atitude performativa dos participantes da


interacção que coordenam os seus planos de acção através de um acordo
entre si sobre qualquer coisa no mundo.
Se adoptarmos uma perspectiva da intersubjectivacção, a verdade deixa
de ser contemplada simplesmente na perspectiva da sua objectividade, ou
somente na sua perspectiva de subjectividade; a verdade, na perspectiva da
intersubjectivacção, passar a ser um processo, i.e. que se desenvolve no acto
da troca das “pretensões de validade” (Habermas) entre os indivíduos em
interacção. Portanto e nesta óptica, a verdade pode somente manifestar-se
numa situação comunicativa na qual os interlocutores, cada um com a preten-
são de validade e em interacção, se engajam num exercício de argumentação.
Em termos concretos, o salto para um paradigma de intersubjecti-vacção
deverá ocorrer a dois níveis. Ao nível da interacção entre os formadores-
pesquisadores dentro das universidades e ao nível da interacção entre os
formadores-pesquisadores e professores-pesquisadores.
Quanto ao primeiro nível (entre os docentes universitários pesquisado-
res) trata-se de, teoricamente, deixarem que os resultados das suas pesquisas
empíricas lhes sugiram sinais de desafios aos esquemas teóricos aprendidos
nos bancos da universidade. Significa perguntar-se, até que ponto os dados
empíricos encontrados nos contextos tradicionais e africanos desafiam as
ferramentas teóricas que se levam da universidade para o campo de pesquisa.
A teoria deve deixar-se enriquecer e, se necessário, transformar pela prática.
Por seu lado, o segundo nível de intersubjectivacção, tem como objectivo
estabelecer uma cadeia circular de interacção e legitimação dos saberes no
qual os extremos estão as duas tradições de práticas académicas, a formal/
moderna (predominantemente escrita e universitária) e a local/tradicional
(predominantemente oral e não formalizada). A legitimação e a validade do
conhecimento produzido, seja no contexto institucional moderno na base da
cultura escrita, seja no contexto institucional tradicional na base da cultura
oral, será feita no contexto de um espaço coabitado por ambas comunidades
epistémicas sobre temas e problemas comuns. Como participante, os deten-
tores dos saberes tradicionais locais ver-se-ão partilhando benefícios para a

46
HABERMAS, J., Discurso Filosófico da Modernidade. Publicações Dom Quixote/Nova Enciclo-
pédia, Lisboa, 1998, p.277.
Pensamento engajado 171

manutenção e desenvolvimento do seu capital cultural e de conhecimento.


O desafio é desenvolver fóruns e mecanismos de levar o conhecimento local-
mente legitimado para fórums mais abrangentes de legitimação académica
e global.
Até agora a prática é que o conhecimento produzido nas universidades e
nas instituições de pesquisa, para se afirmar, deve ser exposto nos fórums de
carácter nacional e internacional. Esta não é uma prática nova. A novidade
aqui proposta, porém, é que os fórums científicos nacionais e internacionais
abram as suas portas para os portadores dos conhecimentos dos colegas
pesquisadores do contexto local/tradicionais. Estes devem ser convidados
a expor as suas ideias e conhecimentos no seio da comunidade científica
global, numa ronda de um diálogo intersubjectivo circular. Se é certo que
as etnociências e a etnofilosofia preocuparam-se até hoje em identificar os
sábios das comunidades, estes porém, sempre foram tratados simplesmente
como uma espécie de «fontes primárias», de «testemunhas», de «informan-
tes», para a recolha de dados e menos como interlocutores válidos na troca
de conhecimento.
Para além das novas formas de legitimação, um aspecto particular, e
que faz parte da criação deliberada dos espaços de intersubjectivacção, diz
respeito à escolha deliberada de modelos e ídolos africanos para serem in-
cluidos nos programas de ensino, particularmente o universitário. De facto,
como em todas as actividades, o homem cultiva modelos a seguir, cultiva os
seus heróis. Aquí trata-se, portanto, de desmarginalizar cientistas, invenções
e ideias africanas na dita narrativa universal sobre a história das realizições
científicas. Pensamos que um pricípio semelhante aos de quotas (descrimi-
nação positiva) na escolha de autores e cientistas a serem referenciados nos
estudos e pesquisas, seria muito saudável.
Na verdade, ninguém vai gostar do que não conhece. Esta máxima inclui
também os nossos estudantes. Se eles não forem expostos aos pensadores e
cientistas africanos, perderemos a oportunidade de construir o novo para-
digma da intersubjectivacção a partir dos seus sinais emergentes.
173

VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA
ATRAVÉS DA EDUCAÇÂO

José P. Castiano

As inquietações que pretendo abordar neste artigo, são existenciais, e


penso que também para muitos africanos contemporâneos. No centro delas
estão as seguintes questões: Será que o discurso que apresenta a África como
um continente entre a tradição e a modernidade é epistemologicamente co-
erente? questionando de forma mais construtiva: Não estarão o moderno e
a tradição numa relação dialética de tese e antítese, portanto na eminência
de epistemologicamente encontrarmos a síntese? Desde já adianto a minha
hipotética resposta: Penso que já existem espaços epistémicos onde tanto os
elementos considerados da tradição e aqueles que se quer da modernidade
coexistem, mas não numa «coexistência silenciosa» como o filósofo de Benin
Paulin Hountondji classificou, mas ambas vivem num debate de valores, de
argumentação concorrendo para uma síntese. Por isso, partindo desta ideia,
pretendo fundamentar a educação como um dos espaços importantes para a
coexistência de discursos sobre a tradição e a modernidade. Em consequência
disto pretendo justificar a necessidade de uma vigilância epistemológica para
com as posições que exacerbam tanto o modernismo como o tradicionalismo
no panorama actual do discurso educacional.
As questões que se colocam surgem, no fundo, a partir de algumas
inquietações e circunstâncias na experiência da minha vida pessoal. Pois
me pergunto frequentemente: Porque é que eu para concorrer para o meu
posto de trabalho tive que, ao mesmo tempo, escrever um requerimento e ir
«tomar banho» dado pelos espíritos dos meus avós? Porque é que continuo
a pensar que o facto de não ter sucesso em alguns empreendimentos da vida
se deve às «cerimónias» que ainda não fui capaz de realizar para agradecer
174 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

aos meus antepassados? Porque é que quando vou ao hospital em muitos


casos para «curar bem» tenho que «completar o tratamento» com uma visita
adicional ao médico tradicional? Porque é que a minha sobrinha se chama
Maria Luísa na escola e N´tsai em casa, sendo este último o nome que é só
evocado nas cerimónias familiares? No final de contas será ela a mesma ou
pessoa diferente quando está na escola e quando está em casa?
Porém o que me é mais dramático nesta «dupla existência» é que o
meu «duplo», este «outro Eu», o outro mundo, este outro banho, este outro
nome, não obstante eu usá-lo como recurso explicativo aos meus problemas
existenciais de saúde, de emprego de família, etc., ele não emerge, não o
ponho à disposição para o debate, não o levo ao escrutínio da argumentação
científica e desinteressada.
Estas inquietações pessoais levaram-me a abrir mais o horizonte das
questões que coloco à nossa existência como africanos: Como se inventou a
África? Como nasceu a ideia da África? Como foi modelado o discurso sobre
as tradições? Se perguntarmos com Hountondji47 : Como cresceu o «mito
da africandade»? A história da «invenção» e do desenvolvimento da ideia
do negro primitivo, ou seja, da imagem do «Outro» é o tema do livro The
Invention of Africa de Mudimbe. Este defende que o discurso sobre uma
África primitiva foi modelado por missionários, antropólogos, aventureiros
europeus e finalmente filósofos na sua disputa por dominar a terra e as almas
dos africanos, numa lógica imperialista de dominação do continente.
No contexto da filosofia europeia da modernidade são notórias as
posições dos filósofos alemães Kant e Hegel. As posições de Kant quanto
ao negro podem ser tomadas do seu ensaio Von verschiedenen Rassen der
Menschen, ensaio este escrito em 1775. Nele Kant é da opinião de que a raça
branca é anterior à raça negra e que as tonalidades diferentes da pele dos
seres humanos se devem a causas naturais, particularmente ligadas à posição
geográfica em que cada uma habita. Assim, para ele, a raça negra é produto
da humidade e do calor que actuou sobre a pele da espécie original, a «raça
branca». (Cfr. Masolo 1995)

47
Cfr. HOUNTONDJI, P., The Struggle for Meaning. Reflections on Philosophy, Culture and De-
mocracy in Africa. Ohio University Center for International Studies, Africa Series No.78. Athens,
Ohio, 2002.
Pensamento engajado 175

As posições de Hegel quanto ao «Negro» só poderão ser devidamente


compreendidas se forem equacionadas no contexto da sua filosofia da histó-
ria. Partindo da forma hegeliana de conceber o curso da história real como
produto da (auto)objectivação do espírito, infere-se que um determinado
nível de desenvolvimento histórico-cultural reflecte necessariamente o nível
de maturidade da Razão do momento de um determinado povo. Pois se a
cultura e a história europeias se apresentam desenvolvidas, este facto se deve
à superioridade da racionalidade do povo europeu que toma consciência
da sua história. Mas, ao analisar a história universal, Hegel procura saber o
contributo dos diferentes povos para o que chama por a «autoconsciência
universal» da história. Aí ele chega à conclusão de que a África Subsaharia-
na, «(n)esta porção da África, falar da história é um facto fora da questão».
Em África a história não é o resultado da manifestação do espírito ou da
sua autoconsciência, mas sim resultado de uma sucessão de contingências e
surpresas. «Os africanos vivem num estado de inocência. Eles não estão cons-
cientes de si mesmos». Ele compara a vida dos africanos ao estado natural da
vida antes de Adão e Eva na Bíblia em que o Homem não era consciente das
suas potencialidades. Os africanos não conhecem a Razão, e por causa disso,
eles não possuem história, não se desenvolvem, não têm cultura. Torna-se
portanto bastante óbvio que o ponto de partida para a chamada «educação
indígena» projectada no tempo colonial para a maioria dos moçambicanos
fosse baseada na imagem de um negro primitivo e selvagem, comparado à
uma criança que não atingira a maturidade. O negro não podia ter autonomia.
O último aspecto levantado por Hegel é retomado pelas teses «pré-
lógicas» do filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl expostas nos seus
livros mais conhecidos Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures
(1910) e La Mentalité Primitive (1922). Este dedicou quase quarenta anos a
estudar as formas de pensamento dos africanos, ou, como ele denomina, a
«mentalidade primitiva». Segundo Lévy-Bruhl, a mentalidade primitiva não
funciona segundo estas inferências práticas e nem são baseadas na observação.
Ainda segundo ele, os africanos estão constantemente a introduzir elementos/
factores não relacionados com a observação quando procuram formular um
discurso sobre as suas experiências.
176 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Ao lado das posições europeias cresce, entre os estudiosos de assuntos


africanos, a etnofilosofia. A essência desta «corrente» é a de pressupor que
o pensamento em África é eminentemente comunal. A etnofilosofia procura
«descobrir» o conteúdo filosófico do mundo africano que se encontra por
trás dos mitos, dos contos populares, crenças religiosas, provérbios e línguas
africanas. Foi desta forma que Placide Tempels, John Mbiti assim como Alex
Kagamé procuraram provar a partir de diferentes perspectivas a existência
da filosofia africana. Tempels, por exemplo, pensa ter descoberto o espírito
ou a «força vital» dos Bantu. Entre outras coisas ele defende que os africanos
acham que o homem só está «completamente morto quando ele já não tem a
possibilidade de, através do médium, entrar em contacto com as pessoas vivas
e assim interferir no mundo. Assim, do ponto de vista dos Bantu, segundo
Tempels, não há nenhuma acção em que não seja o homem responsável.
O homem é o agente de tudo o que acontece de mau. Consequentemente,
embora um Bantu reconheça que a causa é a mordedura da cobra, mas esta
não seria considerada a causa suficiente para explicar o acto porque a cobra
não possui vontade própria para prejudicar alguém. Há sempre uma pessoa
que é considerada como autora moral do acto. Assim, e ainda de acordo
com Tempels, para a cura da vítima não bastará uma cura farmacológica
(material); será necessário encontrar o «causador moral», ou seja a força
causadora, deste acto e comunicar com ele para depreender o que ele ou ela
quererá. Só depois disto é que a ordem das forças regressará ao equilíbrio48 .
A Europa não só inventou uma África «tradicional». O grande intelectual
palestino Edward Said escreveu um livro com o título de Orientalismo que
leva o subtítulo O Oriente como Invenção do Ocidente. Ele mostra aí como
o «Oriente» foi sendo criado baseado por um discurso de alteridade pro-
duzido e moldado pelo poder político (os países do oriente como colónias),
pelo poder intelectual (como objecto de estudo das ciências modernas) e
pelo poder cultural (hierarquização de valores). Ele mostra como a imagem
do oriente é produto de energias intelectuais, estéticas, eruditas e culturais
conjugadas em redor do imperialismo49 .

48
Cfr. MASOLO, D.A., African Philosophy in Search of Identity. East African Educational Publishers. Nai-
robi, 1995.
49
Cfr. SAID, E.W., Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. Caminho das Letras, São Paulo, 1978.
Pensamento engajado 177

Mas se a África primitiva, tradicional, comunal descrita pelos antropó-


logos, etnólogos, geógrafos, missionários e filólogos pode ser considerada
uma lenda que os europeus inventaram e acreditaram nela, também não é
menos certo que a tradição africana como ela é descrita por uma boa parte
de africanos contemporâneos também pode ser uma lenda; mas é uma lenda
que continua a ser inventada e contada por uma boa parte de intelectuais
africanos menos atentos e continua a ser acreditada por uma boa parte das
crianças africanas que vão diariamente à escola. A geração dos intelectuais
pós-independência estava demasiadamente ocupada em lutar contra a ideolo-
gia remanescente do colonialismo e em fundamentar os «valores da unidade
e soberania nacional» para se dedicar a uma «vigilância epistemológica» para
desmistificar esta lenda. O primeiro grande desafio da filosofia africana, como
defende Hountondji, é de «desmistificar a africandade», ou seja, destruir o
mito do primitivismo e tradicionalismo africano, tal e qual ele foi defendido
e continua a ser difundido pelos seus inventores.
No mesmo sentido de Hountondji, Edward Said apela para a decons-
trução em relação ao discurso hegemónico europeu. Usando este conceito,
com a Independência de Moçambique a deconstrução abarcou inicialmente
as áreas da administração e política, abarca hoje a área económica e, como
desafio, deverá estender-se para a área tecnológica e epistemológica. Mas a
deconstrução que defendo, deve ser também em relação ao tradicionalismo,
ou seja, em relação à invenção e reinvenção das tradições para a legitima-
ção de certas esferas do poder. Um exercício teórico desta natureza teria
consequências políticas fatais (legitimar o separatismo, por exemplo). Aos
intelectuais cabe o desafio de estarem vigilantes contra este monstro.
A introdução do currículo local nas escolas básicas institucionalizou no
espaço escolar a possibilidade de coexistência de discursos de deconstrução
do tradicionalismo e do modernismo. Com este artefacto (currículo local),
vão entrar «oficialmente» nesta instituição de negociação de saberes (escola)
os diversos conhecimentos e saberes existentes nas aldeias. Os professores
vão fazer esforço por casar saberes de natureza mais universal com os saberes
de natureza e origem local. A criança vai aprender, para além dos valores
éticos universais derivados da cidadania e da economia do mercado capita-
lista, também os hábitos e costumes locais e tradicionais. Isto é, a criança vai
178 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

ser inserida ao mesmo tempo num discurso moderno científico universal e


numa «tradição viva» local.
Mas a entrada dos saberes locais na escola básica deve ser antecedida
por um vasto movimento de «re-apropriação». O capítulo 7 do último livro
de Paulin Hountondji50 leva um título interessante: Reappropriation ou seja,
«re-apropriação» em português. Neste capítulo ele começa por emprestar o
conceito de «extraversão» de Shamir Amin que o havia empregue para carac-
terizar o tipo de economia dos países da periferia, particularmente dos países
africanos. Segundo Amin, as economias africanas da periferia estão viradas
para a exportação de matéria-prima o que perpetua o subdesenvolvimento e
a pobreza nestes países. Hountondji empresta este conceito para se referir ao
tipo de discurso e escritos que a etnofilosofia e as etnociências fazem: trata-se
de um inventário dos chamados saberes tradicionais indígenas (ou locais)
escritos sempre na terceira pessoa que tenta tratar, sem os «donos» estarem
presentes, o que as pessoas nas comunidades africanas é suposto saberem. Na
opinião de Hountondji, a etnofilosofia e as etnociências nasceram como um
discurso em que o pesquisador, seja ele europeu ou africano, sabe de antemão
que o seu público certo é não-africano e que ele pode se orgulhar por, na
sua qualidade de «porta-voz» fiel da comunidade que estuda, por não correr
riscos de ser contradito. A exclusão do público africano está clara não só na
língua de publicação (inglês, francês, português), mas sobretudo no conteúdo
do discurso, na escolha dos temas, nos métodos e na forma como se tratam
os problemas. Daí Hountondji usa o conceito de «extraversão intelectual»
com o tipo de economia dirigida para o exterior, sem no entanto se reduzir a
isso. Penso que o primeiro passo das ciências sociais em Moçambique é a de
libertarem-se a si mesmas da «extraversão intelectual» a que estão voltadas.
Até hoje, a história da educação em Moçambique tem-se caracterizado
como um meio pelo qual se possibilita a «extraversão». A educação, no tempo
colonial, era um instrumento importante para transmitir o sentimento de in-
ferioridade das populações locais africanas e manter o mito da superioridade

50
Trata-se de The Struggle for Meaning. Reflexions on Philosophy, Culture and Democracy in Afri-
ca traduzido para o inglês por John Conteh-Morgan e leva um prefácio assinado por K. Anthony
Appiah. O título original em francês leva o subtítulo Un itinéraire africain (Um itinerário africano)
como Appiah nota no seu prefácio ao livro (HOUNTONDJI, 2002,xi).
Pensamento engajado 179

racial dos portugueses. Já nos princípios do sec. XX, Blyden notava que o
resultado da educação colonial era uma criança que era metade europeia e
metade africana, uma criança em dois mundos. Isto contrariava o objectivo
mais sagrado de qualquer educação que é o de formar em pessoas aquelas
qualidades que lhe permitam mais tarde uma óptima inserção na sua própria
sociedade e cultura51 .
Em Moçambique, desde o tempo colonial até hoje, a língua portuguesa
é a língua oficial de ensino. Ela garante a ligação entre as elites económicas,
políticas e intelectuais moçambicanas com o mundo internacional. Os falantes
do português têm acesso mais facilitado aos mercados de trabalho e maiores
possibilidades de ascensão social. O português também é o meio de participa-
ção política: É a língua parlamentar, é a língua pela qual circulam os panfletos
eleitorais, etc. Dificilmente uma pessoa seria escolhida para cargos públicos
de alto nível se ela não fosse bom falante e cultor da dita língua de Camões.
Com a introdução das línguas maternas no novo currículo do ensino
básico deve estimular-se uma comunicação ‘inteligente’ com as milhões de
pessoas vivendo no interior e aprender mais das culturas locais. Efectivamen-
te, no interior de Moçambique vivem milhões de moçambicanos que mantêm
também as instituições correspondentes. O contacto com estas pessoas, so-
bretudo com os estudiosos locais, só pode ser frutífero através da sua língua.
Retornando a Hountondji. Ele escreve sobre a necessidade de apropria-
ção da herança científica universal existente e desenvolvê-la duma maneira
selectiva e independente de acordo com as nossas necessidades e programas
de desenvolvimento. Ele continua dizendo que o «vasto movimento da
apropriação» deve ser acompanhado por um processo de re-apropriação
metodológica e crítica do que é usualmente chamado de Conhecimento Local
e Tradicional. A re-apropriação seria, neste ponto de vista, uma condição
básica para a existência e o desenvolvimento de uma ciência africana que
seja responsável aos problemas específicos dos povos africanos. (Hountondji
2002,243f.)

51
Cfr. AKIMPELU, J.A., An Introduction to Philosophy of Education. The Macmillan Press, London
and Basingstoke, 1981.
180 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

No entanto há algumas inquietações: Como é que a lógica da extra-


versão pode ser quebrada? Como é que a marginalização do conhecimento
local pode ser superada e ser estabelecida uma relação progressiva entre o
conhecimento universal e o local? Como integrar o conhecimento local no
vasto campo do conhecimento e da ciência universal? Quais são os meios
que temos ao nosso alcance para abrir o conhecimento local para ser testado,
validado, avaliado e criticado no contexto dos planos de desenvolvimento?
Como é que podemos transcender a «coexistência silenciosa» entre o discurso
institucional e científico moderno e o chamado discurso tradicional em que
o conhecimento local se encontra embutido?
Não há dúvidas que para tirar os saberes locais da dupla marginalização
será necessário primeiro um trabalho de re-apropriação do local. No entanto
essa não pode ser cega. O critério que temos, para submeter o chamado co-
nhecimento local ao escrutínio, só pode derivar dos desafios da nação, entre
os quais destaco a eliminação da pobreza. Uma vez feita a apropriação, o
conhecimento local deverá ser integrado no discurso universal começando
pela via do currículo local. Mas o problema da des-marginalização não se
coloca e nem se reduz à integração das racionalidades locais no discurso
científico universal. De facto, as racionalidades locais estão já integradas no
discurso nacional desde o advento do colonialismo. Mas trata-se de uma
integração incompleta e mutilada pela inexistência de um local de encontro
que tivesse o papel de «espaço público» habamariano. A desmarginalização
será real quando o retorno (no segundo sentido de Cesaire) às tradições
locais deixar de ser em jeito de recurso. Ou seja, se for uma apropriação
que se faz em função dos desafios actuais colocados pela globalização das
economias e pelos avanços das tecnologias de comunicação. Não se trata pois
de escolher as tradições e sistematizá-las num quadro epistémico lógico, mas
sim de fazer um escrutínio destas tradições em função dos desafios nas áreas
económicas, políticas e sociais. Aqui devemos trabalhar com a «hipótese de
uma coexistência de discursos» cuja luz só uma verdadeira Sociologia da
Ciência no contexto africano nos pode fornecer.
Severino Ngoenha escreve o seguinte no seu livro dedicado à cons-
ciência histórica da moçambicanidade: «O problema mais importante de
Moçambique de hoje não é a escolha de um modelo político, jurídico, ou
Pensamento engajado 181

constitucional, mas é muito mais profundo do que isso. O problema é saber


que lugar queremos exercer na história de amanhã. Se queremos continuar
a ser simples instrumentos em mãos alheias como até aqui, ou se, por uma
vez, queremos ser protagonistas da nossa própria história e do nosso próprio
destino»52
Penso que o desafio lançado de sermos protagonistas da nossa história é
fundamentalmente filosófico. Porque a filosofia, no dizer de Hegel e cito de
memória, «é o resumo do tempo no pensamento». A Modernidade é simples-
mente uma tese no pensamento; a tradição é uma antítese no pensamento.
O grande desafio é procurar a síntese e traduzi-la em pensamento, isto é,
num discurso que já não evoque a existência de dois mundos contraditórios,
conflituosos ou senão mesmo incompatíveis. Hountondji (2002) chama-nos
atenção para a necessidade de transcendermos esta «coexistência silenciosa»
entre os discursos institucional-moderno e o tradicional-local. De facto, na
África moderna, podemos partir já da hipótese de uma integração destes
discursos. O desafio é reconhecer estes novos contornos (ou paradigmas)
que se desenham e projectar-lhes numa racionalidade própria.
É uma tarefa ampla procurar os espaços de coexistência de discursos.
Pode ser que ao nível do discurso (científico) se esteja atrás dos aconteci-
mentos enquanto na realidade esta coexistência já esteja a ser praticada por
certos agentes sociais. Assim, podemos identificar, como hipótese, alguns
contornos de espaços ou actores sociais que encarnam a coexistência entre
os «dois mundos, com probabilidade de superarem a coexistência silenciosa
de que Hountondji nos fala.

Eis alguns exemplos dos espaços.


Em primeiro, e o mais evidente é o da área da agricultura onde há uma
partilha não só do espaço físico mas também ao nível do conhecimento e
tecnologias. É muito interessante o papel dos extensionistas agrários (ou,
ultimamente, a figura introduzida do «camponês de contacto») como in-
terlocutores entre os saberes dominados pelos camponeses e a infusão de

52
Cfr. NGOENHA, E.S., Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica. Edições
Salesianas, Porto, 1992.p.22.
182 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

técnicas modernas representadas por instituições como o Ministério para a


Agricultura e Desenvolvimento Rural em Moçambique.
Nas artes, a área da música é a mais evidente e que tem registado maior
integração dos dois mundos. Efectivamente, com o fenómeno da utilização
de instrumentos urbanos/modernos, lado a lado com o tambor, a timbila etc,
resultando a fusion. O resultado é na prática uma terceira identidade que tem
uma estrutura própria. Embora ainda seja uma mistura ela pode perfeitamente
passar para um estado de constituição própria, de síntese. As músicas de Isaú
Menezes, do grupo Djaka e as do saudoso compositor e cantor do Chiveve
Mazembe são exemplos da síntese na área das artes.
Da mesma forma podemos explorar a educação em Moçambique, o
currículo local em particular, como o espaço epistémico ao nível do Ensino
Básico para cultivar a coexistência dos discursos. Também podemos ver no
professor primário o potencial agente integrador entre o conhecimento local
e o conhecimento universal, e a escola primária, por consequência, como a
instituição privilegiada para o cultivo da coexistência dos discursos.
Outros exemplos também se podiam explorar na área da administração
territorial, onde há cada vez mais e maiores zonas de intercessão entre as
estruturas do poder local em representação do poder estatal instituído e as
chamadas autoridades comunitárias que respeitam o direito costumeiro local.
Num estudo sobre o currículo local que recentemente fiz na cidade de
Chimoio e nos distritos de Báruè e Sussundenga, cheguei à conclusão de que
o professor é, de facto, o elo epistemológico mais fraco53 . Os professores
devem ser valorizados para serem verdadeiros agentes no processo educativo.
Eles não podem ser deixados sozinhos nesta «revolução» do conhecimento.
Em parte, a introdução do currículo local no ensino básico vem desafiar
toda uma lógica de fundamentar e praticar a educação em Moçambique: se
ontem o professor era mais um transmissor de conhecimentos que lhe caíam
em forma de «instruções pedagógicas» ou ainda de «orientações metodoló-
gicas», com o currículo local o mesmo professor deverá estar em condições

53
Cfr. CASTIANO, J. P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos: Estudo
de Casos nos Distritos de Báruè, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. Comunicação produzida
para Primeira Conferência Nacional da OSSREA em Moçambique, Maputo, 2003.
Pensamento engajado 183

de procurar e produzir conhecimentos. Ora isto exige novas abordagens não


só metodológicas mas também na própria forma como o professor percebe
a sua profissão.
Mas esta revolução é fundamentalmente de carácter ético e epistémico.
Ético porque o professor terá de se confrontar com matérias de ensino que
dizem respeito a usos, costumes e tradições locais, algumas das quais podem
contradizer os seus próprios princípios éticos e religiosos ou serem pura e
simplesmente de uma cultura alheia à sua origem; neste caso o professor terá
que se referir à outras culturas, sem no entanto perder a perspectiva da sua
própria identidade cultural. Mas sobretudo terá que ser vigilante em não
impor os seus próprios valores usando o seu poder pedagógico.
O desafio é também epistémico porque o professor, com o currículo
local, deixa de ser o único conhecedor da sua matéria na aldeia ou na comu-
nidade: em algumas questões ele terá que consultar aos elementos da comu-
nidade que mais informações têm ou mesmo ao próprio aluno seu. Em alguns
momentos ele terá que conviver com a incerteza e insegurança profissional.
Mas há um patamar mais amplo no desafio: Os professores deverão
mostrar uma vigilância epistemológica pelo facto de ser o argumentador
principal sobre os valores e conhecimentos entre os dois discursos (moderno
e tradicional) na sala de aulas. Ele é a peça principal na área da educação que
pode tornar a coexistência de discursos rumo ao diálogo entre as culturas e
o poderoso discurso científico moderno.
Gostaria de terminar com as palavras de um antigo pensador grego mas
que foram repetidas pelo Professor Veigas Simão aquando da sua oração
de sapiência na abertura do ano lectivo 2004 na Universidade Eduardo
Mondlane: «o vento só é favorável para quem sabe para onde ele sopra». O
vento da modernidade só vai ser favorável à nossa agenda e história como
moçambicanos se, como intelectuais e professores, mantivermos uma vigi-
lância epistemológica responsável a estes desafios; da mesma forma, o vento
da tradição e das culturas locais só vai ser favorável aos nossos programas
nacionais se for submetido a uma vigilância epistemológica avaliadora em
função do futuro. Assim, uma vigilância epistemológica deve ser dupla: em
relação aos discursos que exacerbam o modernismo e os que o fazem em
relação ao tradicionalismo. A reforma curricular no ensino básico abriu o
184 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

espaço institucional para a coexistência de discursos num debate aberto. A


Universidade Pedagógica tem a nobre missão de contribuir, formando pro-
fessores cientificamente competentes e através da pesquisa educacional, para
que a educação seja realmente um espaço em que se encontra e se equacio-
nam ambos discursos em função dos programas de desenvolvimento social.
A Universidade Pedagógica deve assumir o desafio e a sua missão iniciando
um processo de pesquisa de contextos sócio-culturais das escolas para derivar
propostas de paradigmas educacionais que sejam vigilantes aos extremos que
exacerbam tanto um modernismo como um tradicionalismo cego.
Pensamento engajado 185

CONCEPÇÕES AFRICANAS
DO SER HUMANO

Severino Elias Ngoenha

Existe uma humanidade especificamente africana? E se sim, qual é o


lugar epistemológico a partir do qual se pode formular uma tal especificidade
antropológica?
Desde 1945 existe em África um debate dialéctico vivo em volta da
filosofia africana que não cessou de incrementar-se, quer na evolução dos
temas tratados - durante muito tempo foi prisioneiro de um debate rico e
contraditório em volta da questão da sua própria existência e do seu estatu-
to epistemológico e científico. Nos últimos anos discutem-se problemas do
estatuto moral e científico da antropologia, da relação entre a tradição e a
modernidade, da relação entre a oralidade e a escrita, da natureza das nossas
democracias, dos impasses do desenvolvimento, etc.
Por outro lado, os intervenientes em termos de áreas culturais hoje não
são só francófonos e anglófonos, mas são também lusófonos, aos quais depois
do apartheid vieram ajuntar-se a África do Sul que mesmo sendo anglófona
tinha ficado a margem dos debates do continente.
Quando se percorrem as grandes linhas do debate sobre a filosofia em
África como ele se desenrolou na segunda metade do século, identificam-se
claramente três lugares de discurso a partir dos quais uma figura do homem
africano se construiu: o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discur-
sos antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento
africano (sapiente), isto é, a reflexão dos intelectuais africanos sobre a própria
identidade.
186 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Cada vez que um velho morre, é uma inteira biblioteca que se queima

Qual é o significado ontológico desta famosa afirmação de Hampatê


Bâ (1972)?
Contra a primazia e a superioridade suposta da escrita sobre a orali-
dade, Hampatê Bâ sugere um duplo postulado. Primeiro, que os anciãos
são depositários de um saber que é equivalente aos arquivos e a biblioteca
tanto defendidos por Paulin Houtondji (1977:47), ao ponto de fazer deles
a condição necessária da existência de uma filosofia africana. Houtondji
sustenta que a condição sine qua non para que exista uma filosofia africana
é que ela escreva os seus arquivos; não tanto por uma questão de imitação
do ocidente, como ela foi injustamente acusada, quanto por aquilo que a
escrita é suposta permitir: a introdução de uma tradição crítica sem a qual
a filosofia não é possível.
Na tradição da escrita o pensador não ocupa a memória com a necessi-
dade de preservar e com o medo de esquecer. Mas ao mesmo tempo, o que
escrevo já não me pertence, é algo disposto ao público e susceptível de ser
submetido ao juízo crítico de todos.
Em contrapartida Hampatê Bâ parece defender a tese segunda a qual,
não existiriam critérios objectivos para comparar a escritura e a oralidade.
Por conseguinte, a oralidade não seria necessariamente inferior a escrita, mas
um saber diferente cuja importância só podia ser pertinentemente avaliada
por aqueles, ou a partir daqueles, cujas vidas são animadas por ela.
Mas por outro lado, por detrás da oralidade se esconde não simples-
mente a apreciação subjectiva e adjectivante das pessoas e grupos culturais
por ela animados, mas a oralidade pode compreender uma sabedoria e até
mesmo uma filosofia.
Mesmo se se reconhece que a escrita favorece uma maior circulação do
saber, ela não é necessariamente superior a oralidade, a não ser que se queira
reduzir o estatuto e a dignidade da língua a possibilidade de fixa-la em signos
simbólicos, artificiais e socialmente concordados, que chamamos escrita.
Para H. Bâ uma coisa é a escrita e outra é o saber. A escrita é a fotografia
do saber, mas ela não é o saber. Para o homem esta é como a luz. É a He-
rança de tudo o que os antepassados puderam conhecer e nos transmitiram
os germes...
Pensamento engajado 187

Segundo H. Bâ a questão não é tão a dicotomia entre escritura e orali-


dade, mas o facto de que na África contemporânea a cadeia de transmissão
foi interrompida pela colonização o que comporta o risco de uma possível
perda dos conhecimentos dos anciãos, que por sua vez seria dramático não
só para a África mas para o mundo inteiro.
Alexis Kagame (1956), considerado por Marcien Towa (1979) o pai da
etnofilosofia, foi mais longe, e mete as bases para uma dimensão filosófica das
línguas africanas, procurando uma estrutura ontológica da língua ruandêsa.
O que é importante para nós não é tanto a dimensão relativista da tese de
Kagame mas o facto, relevado por Houtondji (1977: 82), de ter sugerido que
os filósofos africanos pensariam de toda uma outra maneira se utilizassem as
suas línguas maternas para satisfazer as suas necessidades teóricas.
A análise de Kagame tem o mérito de ter atirado a atenção sobre a con-
tingência da linguagem e ao enraizamento de todo o pensamento humano a
um universo de significados pré-estabelecidos.
A língua é portanto a chave de leitura através da qual Kagame se propõe
a apreender a maneira bantu de conceber o mundo. Ele pensava que ques-
tionando a gramática e as categorias gramaticais das línguas bantu, se podia
descobrir as significações do real. Para fazer isso ele comparou as categorias
bantu com as categorias aristotélicas.
Kagame pensa que existe uma filosofia e portanto também uma antro-
pologia nos nossos substratos culturais, e esta filosofia foi formulada. De
todos os documentos institucionalizados, a língua é a melhor formulação
desta filosofia.
O método de Kagame consiste em procurar na estrutura da língua ru-
andêsa, o que Aristóteles teria feito para a língua grega.

Os Discursos Antropológicos
Para um filósofo dizer concepções do ser humano invoca em primeiro
lugar a antropologia, mas dado que outras antropologias nasceram no sec.
XIX ocorre precisar que se trata do que tradicionalmente se chamava an-
tropologia filosófica. Falar assim é sentir o eco da pergunta fundamental de
Kant o que é o Homem? pergunta a qual se devem subordinar quer a questão
188 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

metafísica (o que me é permitido esperar) como as questões epistemológicas


(o que posso saber) e éticas (o que devo fazer).
O ponto mais elevado deste questionamento está na generosidade da
proclamação dos direitos humanos, que contudo eram vítimas de um uni-
versalismo ou se quisermos de uma antropologia que era uma meta narrativa
etnocêntrica. Aliás, naquilo que é considerado por muitos pensadores como
sendo o primeiro debate sobre os direitos do homem, refiro-me a disputa
entre Las Casas e Sepúlveda, a possibilidade de uma humanidade africana
foi encoberta no sentido de Heidegger e sobretudo da filosofia de libertação
latino americana. Têm que se esperar o Hegel da filosofia do direito, mas
sobretudo da filosofia da história, para se decretar que o africano estava fora
do movimento da história porque não tinha consciência da sua liberdade.
Por conseguinte, a primeira imagem da humanidade do africano é ligada
a filosofia ocidental, ignorada em Valladolid, expulsa da história acusada de
não ter consciência da sua própria liberdade, de viver numa condição de
inocência, pré-histórica (e pré-racional) e inconsciente.
Esta tese encontra um eco nas teses de Lévy-Bruhl (1922) sobre o
prélogismo. O antropólogo afirma que a estrutura do aparelho cerebral
dos primitivos é o mesmo que dos homens evoluídos; a diferença é que os
primeiros são dominados por representações colectivas, sem o hábito da
abstracção, do raciocínio e de outras operações familiares do pensamento.
Esta é razão pela qual as sociedades humanas têm que ser repartidas em dois
tipos fundamentais, as sociedades civilizadas e as sociedades primitivas, as
quais correspondem duas epistemologias morais diferentes. Dada a distância
que separa as duas sociedades, cada uma deve ser apreendida no interior do
seu próprio sistema (conceptual e moral) de referência, lógica para estas e
pré-lógicas para aquelas.
Estas leituras contribuíram na criação de uma imagem da África e do
africano intelectualmente inferior, dominado por crenças colectivas e de
natureza essencialmente mágicas, incapaz de um pensamento crítico e do
desenvolvimento histórico. Assim se estabeleceu uma oposição significativa
entre o logos ocidental que teria uma percepção do mundo fundamentalmente
racional e a emoção africana, que seria dominado por uma visão emotiva e
instintiva do mundo.
Pensamento engajado 189

Os antropólogos do terreno começaram com Edward Tylor a redimen-


sionar a pretensa superioridade da kultur eletista ocidental contra os costumes
dos selvagens, continuaram negando a existência de povos sem culturas, e
acabarm afirmando categoricamente o valor das culturas africanas. Foi assim
que a partir da segunda metade da década vinte, a etnologia passou por uma
metamorfose espectacular no seu interesse e relacionamento com as culturas
africanas, esforçando-se por superar as teorias racialistas de Lévy-Bruhl, de
Gobineau, de Spengler. A nova escola francesa de etnologia recusava, contra
a administração colonial, de considerar os povos africanos como desprovi-
dos de civilização. É assim que no seu livro Les Nègres, Maurice Delafosse
(1927) procedia a um estudo da história da África ocidental e descobria que
a idade média africana tinha sido, em muitos aspectos, comparável a idade
média europeia. Ele tirava a conclusão que, não só a pretendida inferioridade
intelectual negra nunca tinha sido provada, mas que se podiam encontrar
muitas provas do contrário.
No mesmo ano, Georges Hardy (1927) revelava as consequências de-
sastrosas da influência europeia sobre a África e exaltava a profunda espiri-
tualidade religiosa da alma negra.
Frobenius (1936) descobria que se uma barbaridade existia em África,
ela tinha aparecido só com a chegada dos brancos. E descobria os restos de
uma antiga civilização que ele ligava ao antigo Egipto.
Esta metamorfose na apreciação científica da civilização africana teve um
impacto enorme na geração ascendente de intelectuais negros, nomeadamente
nos criadores da negritude (Senghor, Damas e Cezaire). Esta nova geração
de intelectuais sentiu-se investida de uma missão; só que os fundamentos
da missão-negritude eram intrinsecamente ligados às diferentes visões que
o Ocidente tinha da África. Tanto mais que muito rapidamente a ousadia
dos primeiros etnólogos passou a contar com as contribuições de etnólogos
célebres como Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier, Lévi-Strauss
e Mircea Eliade; o que aliás tinha levado Lévy-Bruhl ele mesmo a se corrigir
e afirmar em seus Cahiers de 1938 que não havia diferença quantitativa entre
a mentalidade primitiva e a mentalidade dos povos evoluídos.
Como diz Valentin Mudimbe (1988) no seu livro The Invention of África,
as imagens da África que resultam dos propósitos dos africanistas ocidentais,
190 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

são mais o resultado de incompreensões e de preconceitos que de um quadro


correspondente a realidade africana; de tal maneira que ela nos ensina muito
mais sobre as orientações culturais dos autores que do objecto em questão.
Todavia, segundo a corrente crítica da filosofia africana, sobretudo dos
trabalhos de Eboussi-Boulaga e Marcien Towa (Ngoenha 1993,89-101), o
apogeu do trabalho etnológico foi atingido, paradoxalmente com o trabalho
de Tempels, que constitui o apogeu da história das visões europeias sobre
a África. Aliás, o próprio Tempels qualifica o seu trabalho de etnológico na
medida em que consiste numa investigação etnológica sobre a metafísica dos
bantus, pois para compreender a alma bantu é necessário reconstruir a sua
ontologia, mesmo se esta ontologia deve ser paradoxalmente reconstruída
com os instrumentos da etnologia. Contudo, para que esta não se reduza ao
simples folclore, ela tem que procurar uma penetração filosófica. Em outras
palavras, Tempels, não se limita a polemizar e tentar ultrapassar Lévy-Bruhl,
mas avança que a investigação etnológica não se pode contentar por um
simples e puro inventário de crenças e de conceitos bantu, mas que é neces-
sário a elaboração de uma teoria sistemática, é nisto que reside a dimensão
filosófica, e o elo entre a antropologia e a filosofia.

Sou porque somos; dado que somos todos, também eu sou.


Em 1945, Placide Tempels publicou o seu livro a Filosofia Bantu no qual
expunha o que ele considerava ser a metafísica da força vital dos bantus. A
força vital seria para os Bantus o único valor fundamental, identificável com a
existência. Todo o ser é dotado de força vital, ou melhor, é uma participação
da força vital e a sua vitalidade é variável. Todas as forças vitais estão inter-
conectadas, interdependentes, e situadas hierarquicamente por referências
cruzadas. Se o próprio universo é concebido como uma vasta rede de forças
interactivas, nenhuma das quais pode actuar sem produzir um impulso vital
nas outras forças individuais e na totalidade. Esta influência pode ser positiva
ou negativa. E a meta de todo o ser é penetrar no núcleo do sistema vital para
fortalecer a sua própria força e assim fortalecer o sistema todo.
Os seres humanos encontram-se no centro do tecido vital e a geração
presente na terra constitui o centro da humanidade inteira que inclui mortos
Pensamento engajado 191

e os ainda não nascidos. A natureza deve servir para melhorar e perpetuar


a vida, a cultura, a religião e todas as instituições do saber humano estão
orientados a este mesmo propósito: favorecer a vida e superar todo e qual-
quer perigo para a vida.
O sistema articula-se em volta do conceito da força vital que por sua vez
coincide analogicamente com o conceito do ser. Enquanto a metafísica oci-
dental tem um carácter estático, a metafísica bantu tem um carácter dinâmico.
O que é necessário meter em evidência, é que a filosofia das forças vitais deve
ser compreendida como uma filosofia da vida, noção que invade e condiciona
a vida dos bantus. A ontologia bantu constitui a vida comum de todos os
povos primitivos, clánicos. Mesmo se as práticas mágicas variam de região
à região, de grupo étnico a grupo étnico, trata-se de variações acidentais.
A obra de Tempels tem sido alvo de muitas críticas, muitas das quais
pertinentes. Mas por outro lado, foi também o ponto de partida duma refle-
xão filosófica africana que muitos pensadores continuam a seguir (1984,16-
17). De facto, muitos intelectuais africanos provenientes de todas as regiões
do continente descrevem a concepção africana do mundo de uma maneira
análoga, o que poderia levar-nos a uma hipótese da existência de uma certa
identidade cultural africana. Os elementos culturais que reconhecemos co-
muns são fundamentais e portanto a unidade se referiria ao essencial.
A definição que Senghor dá do que ele chama ontologie négro-africaine
é muito próxima da ideia bantu do mundo exposta por Tempels. É unitária e
existencial, um sistema totalmente baseado no conceito de força vital, que é
o fundamento do ser e mesmo mais radical do que o ser. A sua fonte é Deus,
do qual tiram também as suas forças vitais todos os outros seres.
Como aparece nos livros Liberté I (1964) e Liberté III (1977), Senghor
refere-se a uma negritude que se caracteriza por uma razão instintiva, se-
gundo a qual os valores da civilização negra são governados por uma razão
de percepções, que compreende por intuição, e se exprimem por sensações
emotivas e pelos sentimentos. Ele mete muitas vezes em evidência, que
contrariamente a razão discursiva, observa-se na razão instintiva, um aban-
dono do eu e uma identificação deste com o objecto através do mito, isto é,
através dos arquétipos presentes no imaginário colectivo e, nomeadamente,
no mito primordial ligado às imagens do cosmos. Os traços característicos
192 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

da negritude são por conseguinte o sentido de comunhão, os dons inatos da


imaginação, do ritmo, etc. Estas características encontram-se em todos os
negros independentemente das diferenças étnico-sociais.
Como se pode ver, Senghor, na caracterização dos negros procede de
uma maneira dicotómica, isto é, os valores e os traços característicos do que
constitui o mundo negro, são formulados em oposição aos supostos traços
característicos do mundo ocidental. O negro é homem da natureza em oposi-
ção ao homem branco da técnica. Razão instintiva contra a razão da vontade,
intuição contra reflexão, emoção contra a racionalidade; ou então razão sinté-
tica contra a razão analítica; identificação através do mito do sujeito-objecto
contra a separação do sujeito-objecto da história, comunitarismo contra o
individualismo. La raison est grecque comme l’émotion est hellène.
É em oposição a tradição ocidental que ele afirma que o negro não cons-
tata através de um processo racional; mas ele sente através de uma percepção
emotiva. Enquanto o cogito cartesiano supõe a afirmação da existência do
sujeito enquanto pensante e de um objecto que está fora dele, o negro africano
é suposto sentir o objecto; mais, ele dança o objecto.
Segundo John Mbiti (1972) não se pode dizer que para os africanos o
homem ocupa o centro do universo. Nessa posição ele pode servir-se do
universo, retirar dele algum proveito por meios físicos, místicos ou sobrena-
turais. A partir da sua posição o africano vê o universo e procura viver em
harmonia com ele. Mesmo se não há vida no objecto concreto, o africano
atribuí-lhe uma vida mística e assim estabelece uma relação directa com o
mundo em volta.
O homem não é dono do universo, só o seu centro, é amigo, o benefici-
ário, o utilizador. Deve, por conseguinte, viver em harmonia com o universo,
obedecer as suas leis de ordem natural, moral e místicas. Se estas leis são
violadas é o homem que sofre as consequências. Os africanos chegaram a
estas conclusões através de uma larga experiência de observação e de reflexão.
O carácter global é condividido segundo Manzini (2007) por K. C.
Anyamwu, Alassane N’Daw, Edem Kodjo, Charles Nyamiti, George Omaku
Ehusani, M. V. Tsangu Makumba.
Duma maneira geral, todos estes escritores defendem a não existência de
uma ordem dual da realidade. Porém, defendem a existência de uma hierar-
Pensamento engajado 193

quia dentro da ordem unitária do universo. Esta hierarquia compreende Deus,


os antepassados, os espíritos, o homem e a natureza. Não há dicotomia entre
matéria e espírito, sagrado e profano, natural e sobrenatural, comunidade
e indivíduo, sujeito e objecto. O universo africano é um todo, os africanos
viveriam em simbiose com Deus e com a natureza.
Segundo Manzini (2007) John Mbiti, Marie-Viviane Tsangu Makumba,
G. Omaku Ehusani, Kwasi Wiredu, W. E. Abrahm, J. T. Erumevba, defen-
dem que todas as sociedades africanas são fundadas sobre o clã. O parentesco
clánico num tal vitalismo se basearia sobre a consanguinidade e lá onde a
consanguinidade não existiria se elaboraria um mito de origem comum. O
parentesco clánico se funda sobre o sangue. Esta seria a regra geral quase
sem excepções; por conseguinte trata-se de um parentesco estritamente de
linhagem. A questão é de saber se se pode ampliar este parentesco estrito a
uma comunidade mais ampla. Ntumba (in Budunrin The question of african
philosophie) propõe uma interpretação universalista do parentesco africano.
O ujamaa de Julius Nyerere (1968) toma a mesma posição. Para alguns inte-
lectuais africanos o vitalismo é um tecido de relações místicas. Toda a força
vital circula nos canais da vida em todas as direcções; relacionando-se desta
maneira com todas as outras forças da vida.
Bodunrin e J. T. Erumevba se opõem às posições de Ntumba e de Nyere-
re respectivamente. Segundo Etounga Manguelle, se se tivesse que citar uma
única característica da cultura africana, o ponto de referência fundamental
seria o desaparecimento do indivíduo face a comunidade.
O comunalismo é a característica africana mais destacada por um nú-
mero considerável de intelectuais africanos. Ser comunidade, seria parte
integrante da estrutura pessoal do africano. A descrição, o significado e as
consequências de ser comunidade são interpretadas de diferentes maneiras.
Mas a afirmação de que a comunidade tem precedência sobre os indivíduos
é aceite pela maioria. O slogan de John Mbiti Sou porque somos; dado que
somos todos, também eu sou, tornou-se paradigma para discussão do homem
africano, tanto para os seguidores como para os detractores. Para Mbiti, o
indivíduo não só não existe e não pode existir se não corporativamente, mas
ele deve a sua existência aos demais, e até somente através de outras pessoas
ele chega ao conhecimento do seu próprio ser. O indivíduo não tem por si
194 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

mesmo, nem existência, nem consciência de ser; só pode tê-los no grupo.


K. C. Anyanwu (1984) defende que a origem da consciência individual
ocidental está no isolamento. Para o indivíduo africano, uma força relacionada
com as outras forças, é óbvio que não há indivíduos isolados, pois que todas
as forças da natureza estão necessariamente inter-relacionadas. No contexto
africano a consciência individual não é possível fora duma comunidade de
forças. O comunalismo africano resulta assim ser um dos aspectos do vitalis-
mo africano; ambos têm como quadro de fundo, uma concepção holista do
mundo. Ifeanyi A. Menkiti afirma que a precedência da comunidade sobre
o indivíduo deve-se aplicar não só ontologicamente mas também no que diz
respeito ao conhecimento. O indivíduo chega a saber-se homem por sua
implicação dentro duma comunidade humana em marcha. Ao cabo de um
processo de conhecimento mediante a sua iniciação na comunidade, chega
a ser consciente da sua personalidade.
R. K. Nkurunziza defende a identificação do indivíduo na comunidade
mais em termos de vida que em termos de conhecimento. Comunidade sig-
nifica participação existencial de uma vida na vida de muitos. Uma vida sem
participação na vida da comunidade não é vida. Elungu P. E. A. também vê
a identificação do indivíduo no grupo em termos de vida. Não há distinção
real entre ambos: são realidades emersas na mesma cadeia vital sem distinção
conceptual que faça mediação entre elas. A sua distinção se funda unicamente
nas experiências sensíveis, porém se unem de novo na imaginação mítica
fundada sobre a experiência sensível. Para Elungu a África tradicional carece
duma consciência individual conceptualmente diferente e independente da
experiência ordinária da vida.
Segundo J. Nyasani, Tshiamalenga Ntumba, consideram a socialidade
anterior a intersubjectividade na experiência africana. Na tradição ocidental
a sociedade se caracteriza por uma subjectividade que privilegia o EU na
sua interacção com o TU. Na tradição africana esta comunidade de diálogo
centra-se sobre o NÓS em interacção com o VÓS, uma relação simbiótica em
que o EU e o TU são absorvidos em qualidades de participantes do diálogo
no interior de nós. EU e NÓS não parecem funcionar como consciência
individual.
Pensamento engajado 195

Por J. Nyasani o individuo não existe exclusivamente por e para si mes-


mo; ele sente e pensa que somente pode desenvolver as suas potencialidades,
a sua originalidade em união com os outros homens.
Existe o perigo duma supressão do indivíduo ou então a sua redução a
um ser sem identidade. O’Donohue (A critical look of spirits and magic, in
Spearhead) afirma que numa sociedade, as pessoas têm que escolher entre
cooperar ou morrer; e convida-nos a pensar que o africano nem sequer sabe
que é uma pessoa até ao momento em que pensa que não é mais nem menos
membro do grupo. J. A. Sofola coloca a pessoa no panorama do humanis-
mo que promove relações humanas saudáveis. O indivíduo não se encontra
isolado do grupo nem desintegrado no seu próprio interior. Toda pessoa
representa o seu próprio papel social em benefício dos outros e não só com
a finalidade de sobreviver ou de satisfazer as suas necessidades biológicas.
Trata-se de uma dedicação altruísta de uns para com os outros até o ponto
de um sacrifício pessoal.
A crise do sec. XX é uma crise de relações humanas. O problema é que
África tem o seu próprio saber neste âmbito, mas não se lhe dá ocasião de
dar forma a sua arte. Segundo E. R. Mbaya a sociedade africana era huma-
nista e colectivista (...). O humanismo africano não desmembra o indivíduo
nem lhe desintegra nas suas componentes. Em particular, não considera o
indivíduo como uma entidade isolada ou independente da sociedade. O
conceito integrado do indivíduo podia constituir uma contribuição positiva
ao conceito moderno dos direitos humanos.
Para G. Omaku Ehusani o sistema africano não faz dos indivíduos escra-
vos como dizem os seus críticos; é a realização local da fraternidade humana.
Deveria por conseguinte ser protegido e generalizado como pressuposto de
uma nova ideologia. A existência individual é um facto na África tradicional,
mas um facto secundário que não pode existir nem ser entendido se não em
referência ao facto primário que é a comunidade. O indivíduo realiza a sua
identidade somente se o faz em referência a comunidade.
Segundo Maurier (1985), o pensamento africano afirma a individuali-
dade, só que esta individualidade parte e se refere continuamente a comu-
nidade. É certo que o indivíduo não está completamente determinado pela
comunidade. Porém, esta condiciona-o de muitas maneiras. Mesmo escri-
196 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

tores que defendem e repetem que o comunalismo africano deixa campo


livre ao desenvolvimento de personalidades individuais, reconhecem que as
comunidades exercem uma grande força sobre o indivíduo. O’Donohoue
sustenta que ninguém ousaria negar que a sociedade domina a vida moral e
mental do indivíduo.
Apesar de toda a insistência que ele faz sobre a subjectividade e indi-
vidualidade, H. Maurier, reconhece que o indivíduo está rigorosamente
submetido a comunidade. Estamos diante dum totalitarisme villagois e dum
totalitarisme lignagier como afirma Daniel Etounga Manguelle (1991).
Njoh Mouelle (1975) considera o africano de hoje «medíocre», estando
na metade do caminho da verdadeira humanidade. Ele é incapaz de distan-
ciar-se do seu próprio ambiente social, e a adesão total a ele, conduz-lhe
inevitavelmente a mediocridade cuja primeira manifestação é o gregarismo
e a falta de originalidade. O que faz que a gente não se distancie do grupo
é o espírito de conservação e a necessidade de segurança. Este espírito de
conservação acaba por ser um instinto de morte. Para Mouelle a medio-
cridade chama-se rotina, conformismo, repetição, que são sinais evidentes
de uma indiscutível deterioração. E acrescenta que se diria que a cultura
africana está estruturada para proteger um ambiente conservador e o seu
correspondente modo de vida. As mudanças são mínimas e controladas. A
sobrevivência do grupo, a sua segurança e solidariedade são os valores mais
altos. Não há lugar para dúvida, não se pode experimentar nada de novo.
Um tal conceito de sociedade, uma tal praxis social tem travado o progresso
em África desde muitos séculos.
Joseph Nyasani (1991) quer dar um passo mais em frente e pergunta-se
o que faz com que o africano busque refúgio nos outros? Ou melhor, porque
se submete ao destino da comunidade? Porque todo africano acredita existir
por obra e graça a existência dos outros. Porque a comunidade é anterior e
superior ao indivíduo? Ele responde que a socialidade africana consiste no
manifesto acto de submissão do EU ao NÓS.
Segundo Nyasani a abundante literatura sobre o sujeito gira em volta de
aspectos sociais e antropológicos. Mas é importante ir mais longe e referir-
se a base metafísica em que se funda a experiência africana. A sociedade
do africano é ao mesmo tempo única e transcendental. Isto está ligado ao
Pensamento engajado 197

seu vitalismo que implica o vivo e o morto, natureza e Deus, um vitalismo


centrado sobre o clã. Toda a existência, toda a vida, toda possível fonte de
vida são vistas nas suas relações com o clã. As relações internas do vitalismo
africano são relações verdadeiramente de existência.

Conclusão
No interior dos três campos discursivos distintos que tomamos em
consideração - o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discursos
antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento
africano (sapiente) - parece que se possa fazer emergir um dado constante,
que é a inscrição da figura do homem africano no interior de uma polarida-
de, que opõe o indivíduo a sociedade, e a sua determinação pela afirmação
da primazia desta sobre aquela. Qualquer que seja o lugar do discurso, o
ser africano como ser comunitário, no qual a individualidade se absorve na
coesão do grupo, aparece como postulado fundamental.
Mas, por outro lado, levanta-se a questão da origem dos lugares dos
discursos. De facto, podemo-nos perguntar, em primeiro lugar, se o pensa-
mento tradicional não é construído a partir da relação ao mundo ocidental;
em segundo lugar, se o discurso proveniente da antropologia não tende a
essencializar as posturas e, a partir de lá, a idealizar um communalismo afri-
cano pensado como alternativa ao individualismo ocidental que, por sua vez,
é carregado de todas as determinações negativas; em terceiro lugar, em que
medida os discursos dos intelectuais africanos não são discursos ocidentais
assimilados e reproduzidos, a partir das suas origens imaginárias, por africanos
radicalmente ocidentalizados.
Em suma, a África, em quanto modo específico de ser humano, construiu-
se como uma espécie de reservatório de solidariedade ou de sociabilidade,
quer como solução aos problemas, próprios do Ocidente, do viver-juntos
numa sociedade individualista.
Então, a questão do lugar epistemológico da africanidade não é uma
questão de tipo genealógico ou arqueológico, mas uma questão propriamen-
te filosófica, neste sentido deve ser formulado a partir do questionamento
das posições existentes. Aliás, este questionamento releva também de uma
198 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

problemática limitada a África, na medida em que, na sua tensão própria, a


figura do homem africano se constitui numa relação com a alteridade, isto
é, no campo da interculturalidade.
199

ENSINO DA FILOSOFIA E
POVOS AFRICANOS

Severino Elias Ngoenha

Este artigo reflecte a cerca do ensino da filosofia em Moçambique. Para


o efeito, abordei de forma muito breve a história da filosofia em África para
contextualizar e explicar as formas como a filosofia se encontrou e se encontra
em África. Moçambique é um pedaço do Mundo e da África, por isso, toda
abordagem tem em conta este facto. A especificidade da problemática da
filosofia em Moçambique deriva da de África, daí a abordagem em relação
à questão africana ocupar maior extensão.

Breve Itinerário da Filosofia em África


A terra onde, segundo a paleontologia, o homem teria visto o dia, tem
uma relação controversa com a filosofia, o saber mais abstracto que o homem
tenha produzido. A tradição filosófica ocidental, sobretudo depois do século
XIX, quer que a filosofia seja um fenómeno grego (M. Heidegger), isto é,
unicamente Ocidental; desconectado assim a Grécia e a filosofia da África - e
da Ásia - como denuncia Martin Bernal no Black Athen.
No início do século XX o Afro-americano William Dubois, mas so-
bretudo a partir dos anos sessenta, Cheikh Anta Diop, primeiro, e Teófilo
Obenga, depois, denunciaram o eurocentrismo desta posição e apoiando-se
nos trabalhos históricos de Heródoto, reivindicam uma relação intrínseca
entre Grécia e o Egipto e entre este e a África negra.
O que invés é indiscutível, é que a reforma da filosofia medieval pela
filosofia realista de Aristóteles contra o Platão canonizado por Agostinho,
deveu-se a conservação dos escritos de Aristóteles pela tradição árabe. To-
200 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

davia, pouca importância se dá contudo a uma eventual filiação africana de


Agostinho como de outros Pater eclesiae, assim como se mete pouco o acento
sobre a relação que existe entre a tradição árabe e a África.
Desde o sec. XV a África tornou-se o non mens land; este não reconhe-
cimento jurídico depende essencialmente da desqualificação ontológica da
sua condição antropológica. De facto, a justificação filosófico-teológica da
prática da escravatura, primeiro, e do colonialismo, depois, por parte de um
Ocidente humanista e racionalista, dependia de uma prévia desqualificação
ontológica, do alter, do Ocidente.
Mas se a escravatura foi um processo deconstrutivo da realidade histó-
rico-existencial para as populações africanas, o colonialismo foi um processo
reconstrutivo entre historicidades humanas, a partir do quadro da filosofia
da história hegeliana ligada a um darwinismo biológico, histórico e social, na
qual a África ocupava o último lugar num processo evolutivo.
Isto explica duas coisas: que a filosofia, estado supremo da reflexão
humana se tenha aplicado minuciosamente no racialista sec. XIX a um
revisionismo histórico a fim de tirar todas e quaisquer manchas negras no
arianismo sem mácula do ocidente. Mas, mutatis mutandis, que os africanos
tenham visto na filosofia o lugar epistemológico da reivindicação de uma
humanidade que lhes era negada (Eboussi-Boulaga).
Assim, os sistemas coloniais mesmo quando se viram obrigados, a partir
dos anos trinta, a formar elites africanas para colaborar com eles, continua-
ram a pregoar uma história esquizofrenicamente dicotómica, mas sobretudo
foram muito réstios a educar os africanos à filosofia.
Assim, só nos anos 40 e por questões teológico-missionárias, se introduziu
em África uma filosofia de índole escolástica, vocacionada a ser uma ancilla
theologia. Paralelamente e, desta vez por razões administrativas, os regimes
coloniais francês e britânico introduziram na mesma década as primeiras
escolas secundárias para os filhos de colonos e para alguns assimilados.
Como os programas destes sistemas de ensino eram o prolongamento dos
sistemas das metrópoles, com eles se introduziram programas de filosofia de
cujas referências, inspirando-se na filosofia do humanismo renascentista e
sobretudo a herança laicista do Aufklärung, estavam em luta aberta com a
escolástica. Assim se transferiram para a África problemas teórico-filosóficos
do passado mas não ultrapassados.
Pensamento engajado 201

Nos anos sessenta ocorrem dois fenómenos concomitantes que tiveram


uma influência determinante para a filosofia em África e o substracto desses
dois fenómenos foi o fim do colonialismo. Com ele nasceu uma filosofia
africana, primeiro etnofilosófica (Placide Tempels, Kagame) e depois crítica
(M. Towa, Eboussi Boulaga, Paulin Hountodji). As metamorfoses históricas
que estão na origem da filosofia africana levantam questões de fundo quanto
ao seu estatuto e a pertinência de uma filosofia africana, a sua relação com as
tradições africanas, com a modernidade ocidental e com o futuro do conti-
nente. Todos os países africanos independentemente da região geográfica ou
linguística não podem, doravante, fazer a economia dos problemas levantados
pela filosofia africana que, se resumem na questão da dignidade do homem
negro-africano e na questão do desenvolvimento.
No mesmo momento, a África independente, apesar dos seus esforços em
aderir a um não-alinhamento ideológico e a sua aposta na unidade africana
(K. Nkrumah) encontra-se confrontada com o conflito ideológico que opõe
o que sumariamente se chamou de direita e esquerda com os seus corolários
ideológicos que se apresentavam sob formas de filosofia liberal e de mate-
rialismo. Assim, como demonstra Hountondji no seu relatório ao BREDA
intitulado Formation et Recherche Philosophiques en Afrique: Eléments pour
une Stratégie a África tem entre os anos sessenta até a queda do murro de
Berlim – que Francis Fukuyama com uma falácia hermenêutica da filosofia da
história de Hegel interpretou como o fim da história – três tipos de programas
de ensino da filosofia. O primeiro tipo calca-se ad literam nos programas das
antigas potências coloniais. O segundo tem uma forte conotação ideológica
e o terceiro mete um acento forte sobre a identidade africana.
A África lusófona tem no contexto africano um percurso sui generis.
Portugal foi a única potência colonial a não conceder as independências por
vias negociadas, o que vai levar as suas colónias a recorrer à lutas de libertação,
mas ao mesmo tempo e por questões estratégicas da política-mundo, a serem
obrigadas a se apoiarem no bloco comunista para alcançarem os seus fins. Mas
a natureza subalterna do colonialismo português não era só económico mas
também intelectual. De facto, Portugal não produziu intelectuais ou filósofos
de relevo, até o fim do fascismo em 1974, era um dos países ocidentais com
o índice do analfabetismo mais elevado e, os que tinham a sorte de estudar,
seguiam programas que eram uma cópia dos programas franceses.
202 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Nos anos cinquenta, quando as independências dos países africanos pare-


ciam inelutáveis, Portugal actualiza os ideais de António Ennes, Governador
de Moçambique no fim do sec. XIX que apregoava que os missionários da
África deviam-se formar em África. Mas sobretudo, a ideia de uma alian-
ça entre a Igreja Católica e o governo colonial (chamada concordata) que
postulava que a Igreja devia primeiro formar portugueses, ou melhor, fazer
dos indígenas portugueses e só num segundo tempo cristãos. A concordata
permitiu a introdução de uma filosofia nos seminários que era ancilla theo-
logia. Mas ela compreendia uma dimensão hegeliana evidente, ligada a uma
presunta superioridade racial e histórica do lusitano em relação ao africano.
A pressão da comunidade internacional contra a natureza do colonia-
lismo português, mas sobretudo as exigências dos militares em ver os seus
filhos educados nos mesmos programas e mesmos períodos que em Portugal,
levou o colonialismo português a abrir as primeiras escolas secundárias na
África lusófona três décadas depois que os franceses e os britânicos tinham
aberto as primeiras escolas secundárias em África. Os livros de base eram
texto de F. Saraiva e uma tradução do italiano de um texto de história da
filosofia de Franco Américo.
As guerras nas colónias africanas foram determinantes para a chamada
revolução dos cravos em Abril de 1974 em Portugal. Todavia, as alianças Já
estabelecidas levaram Portugal em direcção a democracia e empurraram as
antigas colónias portuguesas em direcção ao marxismo. Assim começaram a
combater os rudimentos da escolástica que Moçambique e Angola conheciam
nos seminários católicos, e substitui-se com outros rudimentos anacrónicos
em relação à história e aos substractos culturais locais, que foi o marxismo-
leninismo.
Com a sua independência política, a África lusófona com uma década
de atraso, alcançava os países africanos e passava a pertencer aquele terço
de países onde o ensino da filosofia era de uma conotação ideológica muito
pronunciada.
O fim da guerra fria trouxe consigo o fim das filosofias ideológicas. Mas
ao mesmo tempo a nova meta-narrativa em que se tornou o liberalismo era
de natureza a levantar novos problemas mesmo para os maiores assertores
do pós-modernismo. Com efeito, o fim da história que encontrava a África
Pensamento engajado 203

no último lugar numa escala de desenvolvimento, não significa uma conde-


nação ulterior do continente africano? Mas que relação existe entre o fim da
história e as liberdades que os africanos procuram desde a cinco séculos? O
que pode fazer a filosofia na luta pela democratização do continente? Qual
é o papel da filosofia na luta pelo desenvolvimento? Que relação existe
entre as tradições africanas e a racionalidade moderna? Foi neste contexto,
do repensar de questões fundamentais que fui contactado para pensar num
programa de filosofia «post ideológico» para a formação de professores, que
por sua vez deveriam introduzir a filosofia nas escolas.
A filosofia em Moçambique a qual eu era suposto reflectir, inscreve-
se necessariamente num quadro geral da filosofia africana, sobretudo pela
natureza comum dos problemas que nos ocupam. Não quero dizer que as
problemáticas da etnofilosofia, da filosofia crítica ou da hermenêutica africana,
tenham alguma coisa a ver com as preocupações que impregnam a filosofia
moçambicana. Aliás, penso mesmo que o debate actual da filosofia africana
representa um momento de involucão na história do pensamento africano.
Penso mesmo que a filosofia africana não está à altura do debate do pen-
samento africano que é muito mais antigo e muito mais profundo. O facto
de não nos identificarmos com a esclerose do debate que gravita à volta da
sua própria existência não implica não identificarmos a nossa busca, a nossa
contextualidade com a problemática geral que está na génese do pensamento
africano, do qual, finalmente, a filosofia africana é um derivado.
O substracto filosófico do pensamento africano é, sem dúvida, a busca
da liberdade, devido à situação categorial oprimido/escravo/colonizado/
subdesenvolvido na qual os povos africanos se encontraram, depois do
encontro-choque com o ocidente. Estas buscas tomam formas diferentes
segundo as épocas, os períodos históricos e os lugares geográficos.
A primeira manifestação da busca da liberdade tomou a forma de luta
pela emancipação da escravatura. Basta pensar nas lutas dos escravos nos Es-
tados Unidos, na Jamaíca, no Brasil e no Haiti. A segunda forma da busca da
liberdade foi a luta pela integração social nos países onde os antigos escravos
passaram a ser cidadãos (B. Washington, William Dubois) de segunda cate-
goria. O terceiro movimento identifica a liberdade com a autodeterminação
política. A figura mais preponderante é Kwame Nkrumah que, ultrapassan-
204 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

do a Renascente África de Azikiwé, reivindica, primeiro no V Congresso


Pan-africano de Manchester de 1945 e depois no livro África Must Unit, a
liberdade-independência de todo o continente, e se faz o paladino de uma
unidade continental em termos políticos e económicos. O quarto nível de
liberdade é o desenvolvimento económico e social. Este nível, iniciado logo
depois das independências, ocupa ainda hoje o essencial das elucubrações
dos africanos, e é aqui que se situa também o nascimento de uma filosofia
africana crítica (Towa, Eboussi, Houtondji).
As diatribes da história africana, as vicissitudes existenciais primeiro
e, do pensamento em seguida, deram à política africana, mas também à sua
filosofia um cunho muito particular a que eu chamo de libertário. A natureza
dos estados africanos (se quisermos ir mais longe diremos negros), quer se-
jam os da Serra Leoa e da Libéria, primeiro, e, depois, os do Gana e Congo
são, na essência, libertários; contra a escravatura primeiro e o colonialismo
em seguida, aos quais durante séculos os negros estiveram submetidos. A
filosofia africana emerge também deste fundo comum de busca de liberdade.
Se existe um paradigma - no sentido de Kuhn - do pensamento e da
filosofia africanos como eles se desdobraram historicamente, esse paradigma
chama-se a busca da liberdade. Não de uma liberdade metafísica ou moral,
mas de uma liberdade política.
Não podemos pensar a África nem sob ponto de vista político, nem
filosófico perdendo de vista o paradigma libertário que deve ser a referência
e o critério de julgamento das nossas lucubrações intelectuais e das nossas
opções políticas.
As nossas reflexões e opções em torno do liberalismo e da democracia
devem ser subordinadas a esta busca secular da liberdade. Devem ser analisa-
das não em função da dinâmica mundial (mesmo se não a podemos ignorar),
mas subordinadas à nossa busca secular e histórica. Só na medida em que
um regime político, um sistema económico colaboram para incrementar a
esfera paradigmática da nossa busca histórica é que eles podem ser avaliados
positivamente.
Um esforço filosófico a partir de Moçambique não pode não inscrever-
se no quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da
filosofia africana que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da
Pensamento engajado 205

liberdade que caracteriza a visão continental da África. Contudo, se as nossas


inquietações não são geneticamente diferentes das preocupações dos outros
países africanos, também não são completamente idênticas. Estamos a nível
daquilo que os lógicos chamam analogia.
Os problemas e as preocupações que norteiam a filosofia africana são
também nossos. Mas com algumas diferenças significativas de ângulos de
ataque e mesmo reservas sobretudo relativas ao solipsismo que tem caracte-
rizado alguns filósofos que centram as suas reflexões em torno da existência
da filosofia africana, esquecendo-se de acompanhar criticamente a evolução
(ou talvez a involução) dos diferentes países do continente. Isto fá-los cair
no mesmo erro da negritude e da etnofilosofia que era, como dizia Fanon,
de continuar a remoer em sarcófagos e não mobilizar as inteligências para a
dinâmica histórica da África.
Nos meus primeiros trabalhos (Por uma Dimensão Moçambicana da
Consciência Histórica; Das Independências às Liberdades; O Retorno do
Bom Selvagem; Mukatchanadas) tentei pensar Moçambique, aurindo a base
do meu pensamento na história da filosofia e na maneira como ela tem sido
pensada e discutida no continente africano. Tentei contribuir para uma
reflexão em volta das metamorfoses históricas próprias de Moçambique.
Por outro lado, solicitando a filosofia com a sua história e métodos a seguir
dialogicamente o percurso histórico de Moçambique e a sua história a se
deixarem interpelar pelo saber filosófico.
Este esforço de trazer a filosofia ao debate moçambicano atingiu
inesperadamente proporções inauditas quando em 1995 me foi dada uma
daquelas ocasiões únicas, isto é, conceber um curriculum da filosofia para a
Universidade Pedagógica e acompanhar a formação de professores que se
encarregariam num segundo momento, de introduzir a filosofia em todas as
escolas secundárias do país.
A primeira preocupação que tive foi tentar saber a razão pela qual
o Ministério da Educação tinha decidido introduzir a filosofia no ensino
secundário. Isto é, a que problemas a filosofia devia contribuir a trazer solu-
ções? Tratava-se de criar um curriculum que mesmo respeitando a secular
história da filosofia nas suas disciplinas nucleares (história da filosofia, teoria
de conhecimento, antropologia filosófica, ética e metafísica) fosse construído
206 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

em função das necessidades do pais. Tratava-se de aculturar a filosofia ao


contexto moçambicano sem desapropriá-la da sua dimensão de busca do
universal centrado sobre a realidade da condição humana.
A vontade política de introduzir a filosofia no ensino era, em si mesma,
o reconhecimento da capacidade desta disciplina de contribuir na fase cru-
cial e na encruzilhada histórica em que Moçambique se encontrava a nível
político-social, mas também a nível moral. Assim decidi propor um curso de
filosofia aculturado às preocupações reais de Moçambique, para levar a filo-
sofia a ser um parceiro sério na elucidação dos problemas e das suas causas,
mas também na busca de soluções. Após um período de investigação e de
reflexão identifiquei três campos fundamentais da possível contribuição da
filosofia em Moçambique. A ética – devido a desestruturação de referências
axiológicas que se seguiu a empresa colonial, a revolução marxista e a guerra
civil; a política – pela necessidade de pensar numa democracia participativa
que não se limite ao voto de a cada cinco anos – e a epistemologia.
A escolha da epistemologia como campo de investigação da filosofia em
Moçambique resultou, em primeiro lugar, das dificuldades que os estudan-
tes têm que fazer face a questões abstractas. Este défice epistemológico está
ligado não só a falta de filosofia (lógica), mas também à fraca preparação do
conjunto das disciplinas humanísticas como a história, a literatura, as línguas
clássicas, a gramática, etc.
Para além de contribuir, dando aos estudantes utensílios de análise mais
refinados, a epistemologia pode trazer uma outra contribuição, menos eviden-
te, mas não menos importante. Historicamente, ela teve outras denominações
que podem nos ajudar a compreender os seus desafios e, em consequência
a alargar o seu campo de aplicação na educação dos jovens. Ela é também
conhecida por gnoseologia, teoria de conhecimento e crítica.
Dizer «crítica», significa referir-se a uma atitude do espírito que consiste
em analisar rigorosamente e sem condescendência os nossos mecanismos de
conhecimento, o conteúdo mesmo do que nós dizemos saber, assim como o
valor intrínseco dos nossos conhecimentos.
Nos últimos anos, uma parte da filosofia africana (P.E. Elungu, M.
Towa, Ka Mäna, Ali Mazrui, Georges Ayittey, J. Sofola, Kwasi Wiredu,
E. Njoh Mouele) tem centrado os seus debates à volta do valor dos nossos
Pensamento engajado 207

conhecimentos ditos tradicionais e a sua relação com a racionalidade moder-


na. A premissa deste debate é a paradigmática busca da liberdade africana,
centrada hoje sobre o desenvolvimento económico e social. Até a década
setenta, o discurso africano acusava de uma maneira unilateral a escravatura
e o colonialismo de serem os únicos responsáveis do estado actual do con-
tinente. Esta atitude impedia um trabalho de introspecção crítica sobre as
nossas responsabilidades, sobre a responsabilidade das nossas instituições
ancestrais na instauração desses sistemas odiosos.
Por outro lado, a grande exaltação das tradições africanas, por obra
sobretudo dos adeptos da negritude, encobriu uma análise fundamental
quanto ao valor intrínseco dos conhecimentos tradicionais, o seu eventual
enquadramento na modernidade, que constitui o substracto mental e filosó-
fico do desenvolvimento a que aspiramos.
Marcien Towa (1971) membro, com Houtondji e Eboussi Boulaga, da-
quilo que Ilungu chamou de escola crítica54 , não só se distancia do caminho
traçado pela etnofilosofia aberta por Tempels e Kagame55 , como nem sequer
ataca a «negritude-servitude» de Senghor que ele associa à etnofilosofia.
Ele vai mais longe e afirma que o tempo das reivindicações acabou: trata-se
agora de concentrarmo-nos sobre a questão do desenvolvimento e do pro-
gresso. Para Towa a questão é tentar saber o que permite ao ocidente o seu
desenvolvimento, a sua superioridade e o seu poder sobre nós. Trata-se de
descobrir e de se apoderar do segredo do Ocidente.
Para o filosofo camaronês o segredo e a superioridade do Ocidente reside
nos seus conhecimentos técnico-científicos. Eis porque a África deveria, se-
gundo ele, concentrar todas as suas energias a desenvolver a ciência e a técnica.
P. E. A. Ilungu (1987) prolonga esta tese ajuntando que o segredo ocidental
não é meramente técnico, mas trata-se da racionalidade técnico-científica. A
superioridade do Ocidente é, assim, remetida para uma dimensão filosófica.
A África tem os seus conhecimentos, ditos tradicionais, os seus saberes
que no passado certamente ajudaram os africanos a fazerem frente aos pro-
blemas com que estavam confrontados - alguns pensadores defendem que

54
NGOENHA, 1993, p.91.
55
NGOENHA, 1993, p.95.
208 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

esses conhecimentos eram fracos e foi essa fraqueza que fez dos africanos
vítimas predilectas de todo o tipo de esclavagistas e colonizadores. Mas ad-
mitindo que esses conhecimentos tenham ajudado os africanos do passado,
que relação existe entre esses conhecimentos e o mundo moderno?
Esta questão divide hoje os filósofos africanos em duas posições con-
trastantes: os que – como Towa, Ilungu, E. Njoh-Mouelle – defendem a
ideia de uma irredutibilidade fundamental entre as tradições africanas e a
racionalidade moderna e, em consequência, a necessidade para a África ter
a coragem de sacrificar a sua história e as suas tradições sobre o altar do
desenvolvimento.
Esta posição levanta enormes problemas de carácter antropológico,
dado que a cultura aparece como uma espécie de acessório vestimental que
se pode levianamente despir, e não uma estrutura constituinte da existên-
cia humana. Ela levanta também problemas de carácter filosófico, se como
Herder56 concebermos a cultura como a segunda natureza do homem, sem
a qual a vida do homem não é simplesmente possível.
É verdade que a cultura não tem nada de genético, que é intrinsecamente
ligada a uma determinada sociedade (Edward Tylor)57 , mas a antropologia
(Remotti) demonstrou suficientemente que mesmo se a cultura é uma es-
trutura precária e exactamente por causa da sua fragilidade e precaridade
- ligada ao facto que a cultura só ganha vida através da vida de indivíduos
que são diferentes uns dos outros, e ao facto que a simbologia da cultura
exige a priori um consenso social, que nunca se obtém completamente – as
sociedades reificam as culturas a fim de se protegerem. Por isso, a ideia de um
abandono puro e simples da cultura levanta problemas epistémicos enormes.
Outros filósofos africanos (W.E. Abraham, M.V.Tsangu Makua, O.A.
Onwubiko, P. Apostle, J.B. N’tandou, Y. Assogba, E.R. Mbaya, Tshipanga
Matala, A. M. M’bow, C. P. M. Kamala) defendem a compatibilidade entre as
tradições africanas e o desenvolvimento moderno. Eles sustentam que o que
permitiu a África de sobreviver, não obstante a escravatura e o colonialismo

56
HERDER, Ainda por uma filosofia da história para a educação da humanidade. São Paulo : Ed.
Universitarias, 1974, p.111.
57
TAYLOR, E., Culture Primitive. Paris, Seuil, 1974, p.79.
Pensamento engajado 209

a que foi sujeita, foi exactamente a vitalidade das culturas africanas. Se essa
vitalidade não se manifestou no período pós-colonial e, por conseguinte, não
contribuiu para desenvolver o continente, foi devido essencialmente às elites
políticas, que manipularam as tradições e as culturas para solidificarem as
suas posições de poder.
O interesse deste debate reside na sua dimensão crítica, na sua intros-
pecção cultural, e esta não é completamente denuda de interesse para nós.
A primeira República moçambicana (1975-1990), em nome da luta contra
o tribalismo, tinha pura e simplesmente banido as tradições e as culturas do
campo do político. A segunda República (1990-2004), sobretudo por obra
de doadores (credores), parece reabilitar as chamadas autoridades tradicio-
nais, sem um debate prévio quanto à sua capacidade de contribuir positiva
ou negativamente para o actual curso histórico.
De uma maneira mais incisiva, o debate africano interroga-se quanto à
capacidade democrática das tradições africanas onde o peso do chefe ou do
ancião impediu toda a dimensão de debate de ideias e, em consequência, do
desenvolvimento democrático.
A filosofia africana interroga-se quanto ao valor estatutário dos meca-
nismos tradicionais da transmissão do saber que, contrariamente ao modelo
democrático do sistema de educação moderno, reserva os seus conhecimentos
a uma casta de eleitos, cujo desaparecimento equivale muitas vezes à perda
definitiva do saber acumulado.
Interroga-se sobre a compatibilidade do sistema familiar africano com
as necessidades económicas modernas, dado que sob a aparência de solida-
riedade, se esconderia, de um lado, um sistema de esbanjamento que impede
a acumulação e os investimentos; e do outro, alimentaria um sistema de
parasitismo no qual boa parte dos membros da família vive sobre os ombros
dos poucos que trabalham.
Todavia, na esteira de Eboussi-Boulaga58, podemos pensar a tradição
como uma utopia crítica. Isto é, os aspectos acima mencionados relativos
às fraquezas da tradição têm que ser tomados a sério. Mas, por outro lado,
temos que pensar que alguns aspectos aporéticos da vida política e social

58
EBOUSSI-BOULAGA, La Crise du Muntu. Paris: Présence Africaine, 1979: 45 e 123.
210 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

africana de hoje deixam-se interpelar por aquilo que para o sentido comum
constituem o espírito da tradição.
O primeiro elemento é a chamada solidariedade africana. Os factos de
hoje desmentem a famosa solidariedade africana e fazem dela um mito. Os
nossos países têm uma elite económica sempre mais importante, no momento
mesmo em que o número de miseráveis progride. Mesmo nos momentos
dramáticos, não vimos da parte dos que têm mais meios algum sinal de so-
lidariedade. Os nossos ricos não só não são solidários, mas nós não vimos
emergir nem mecenas nem evergetas dedicados a participar na ajuda do
bem-estar da maioria. Apesar destes factos, nós continuamos a pensar que
o homem africano é solidário.
Se pensarmos no espírito da tradição tentando mobilizar os aspectos do
passado que podem nos ajudar na nossa aventura em direcção ao futuro (Paul
Ricoeur), podemos inferir que a solidariedade deve ser pensada como um
dever ser. Insisto, trata-se de mobilizar o espírito da tradição, o que aplicado
a este caso, quer dizer que as formas que essa solidariedade deve tomar no
quadro da vida moderna. Por conseguinte, uma defesa de um contracto so-
cial renovado, que se materializa sob forma de impostos por exemplo, pode
apelar-se às teorias clássicas do contracto, desde os sofistas até John Rawls,
passando por Hobbes, Rousseau e Locke; mas pode ser postulado a partir
do espírito das tradições africanas.
Um outro elemento que me parece fundamental é o domínio da justiça.
A iconografia envolta da justiça apresenta-nos muitas vezes a justiça confi-
gurada numa mulher com uma espada na mão. Mas a verdadeira essência
da justiça, que significa tornar possível a relação social e a vida dos indiví-
duos em sociedade, estaria melhor afigurada na imagem de uma costureira
que pega em linhas dispersas e diferentes e cose-as a fim de fazer um todo.
Quando pensamos numa sociedade como a nossa, depois dos conflitos que
conheceu, quando prestamos atenção ao tribalismo e ao racismo crescentes,
o que precisamos é o trabalho paciente e atento de uma costureira que tece,
mas fortificando as partes que cose de maneira que o pequeno incidente não
rasgue o tecido. Isto significa que é necessário fazer todo um trabalho de
carácter ético, mas que não pode prescindir de uma redistribuição de bens
materiais.
Pensamento engajado 211

Ora, a justiça moderna decide cortando, separando, dividido como um


Leviatã, espada na mão. Axiologicamente, o espírito da justiça tradicional é
muito mais próximo da costureira. Os estudos da antropologia confirmam
(Norbert Roland59 ) que muitos conflitos acabavam (mesmo depois de guerras
sangrentas) em casamentos entre vencedores e vencidos; ou na incorporação
dos vencidos nos vencedores (Império de Gaza).
O último aspecto a relevar, para pensar e propor um modelo político,
é uma certa aversão de certas culturas africanas aos sistemas centrais de
poder (Pierre Clastre, 1974). O exemplo disto entre nós podia ser a história
particular dos Chopes.
A filosofia pode ajudar a tomar consciência da necessidade de uma
introspecção crítica filosófica sobre o nosso «eu histórico» como ponto de
partida a um debate de ideias. A filosofia, antes de lançar-se num discurso
sobre o futuro, deve interrogar-se quanto a natureza do colonialismo, das
condições históricas, políticas e sociais que permitiram a sua emergência.
Da mesma maneira, temos que nos interrogar quanto as razões da escolha
do marxismo, sobretudo quanto os sinais da sua decadência eram visíveis;
quanto às razões do fracasso de um sistema de não-alinhamento, dos siste-
mas alternativos como o socialismo Ujaama; quanto às razões endógenas
da inviabilização dos Estados Unidos de África prospectada por Nkrumah;
quanto à inviabilidade de uma revisão das fronteiras coloniais para criar
espaços culturalmente homogéneos (C. A. Diop60 ) ou economicamente
complementares (Mamadou Touré61 ).
A filosofia deve também interrogar-se sobre a natureza filosófica do
liberalismo como foi pensado por Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart
Mill (1806-1873), John Locke (1632-1704); as metamorfoses históricas que
esta doutrina político-social subiu no curso da história, as diferentes faces que
ele tem no mundo de hoje, da maneira como tenta reconciliar o imperativo
incondicional da liberdade e a necessidade de um pacto social para que a
vida em sociedade seja possível. Temos que nos interrogar quanto a relação

59
ROLAND, N., Anthropologie juridique. Paris, Seuil, 1975.
60
DIOP, C.A., Nation nègre et culture. Paris, Présence Africaine, 1989.
61
TOURÉ, H., Les étudiants africains parlent. Revue Présence Africaine, Paris, 1953.
212 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

entre o liberalismo e a existência do Estado (o nosso é obrigado em esvaziar-


se das suas funções essenciais), recordando-se que para os pais da economia
política como Adam Smith, como para os teóricos que fazem mais referência
a filosofia, consideram o Estado uma instituição indispensável para a garantia
das liberdades dos indivíduos. Isto tem que nos levar a uma interrogação
quanto à relação entre o liberalismo clássico e o neo-liberalismo.
Por outro lado, é necessário interrogar a democracia na relação do seu
espírito e das instituições que dão ou podem dar corpo aos seus ideais. A
filosofia deve poder demonstrar que se o espírito é uno, as formas que a de-
mocracia toma nos diferentes países do mundo são múltiplos e dependem
de uma aculturação dos ideiais democráticos às diferentes maneiras com as
quais os povos entendem e interpretam a sua vida social. Por consequência,
no respeito mesmo da democracia, nós temos o dever de tomar a sério a es-
pecificidade cultural que nós somos e representamos, e inventar um modelo
institucional que se inspira nos substractos culturais das populações.
O específico das ciências filosóficas no contexto actual deveria ser a
invenção de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer
contra o intervencionismo anti-democrático dos democratas ocidentais,
quer, e sobretudo, no trabalho sobre as condições susceptíveis de libertar
a imaginação e a criatividade nos africanos, a fim de podermos assumir res-
ponsavelmente a nossa liberdade.
A «tarefa» da filosofia é não esquecer que a nível interno ainda não somos
capazes de ser cabalmente responsáveis pela nossa liberdade. Incumbe-nos,
portanto, descobrir e inventar espaços de liberdade concretos, dar material
e instrumentos teóricos aos políticos nacionais.
A reflexão filosófica africana tem que se situar na intersecção do conflito
de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e a África; entre
a nossa vontade de soberania e a nossa incapacidade de assumi-la; entre a
nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ocidentais de se libertarem
dos seus élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve investigar as razões
históricas, culturais e sociais que estão na base da nossa fraqueza existencial
e as maneiras concretas de combatê-la. A ideia da soberania (liberdade) tem
uma validade interna condicionada pelo movimento de participação cultu-
Pensamento engajado 213

ral, que comummente se chama «democracia». Esta deve ser internamente


garantida por uma cultura política africana que se forja a partir das culturas
políticas nacionais e que tenha em conta a preservação e o incremento da
soberania africana.
A filosofia africana, na sua validade política, deve contribuir para a
realização das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acção
significa interrogar as legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e
internacionais), e tentar dar palavra às pessoas, grupos e culturas que foram
privadas dela até aqui. A filosofia não se pode contentar em justificar o status
quo, mas, ao contrário, deve dessacralizar os equilíbrios políticos que pare-
cem únicos. Eis porque eu proponho um contracto cultural, social e político.
A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional.
A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade
em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades
naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito
pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela
dignidade das pessoas.
Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conhe-
ceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma
vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história,
das sociedades e das culturas.
As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia, podem
e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade
dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles
concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.
215

O DIÁLOGO ENTRE AS CULTURAS


ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO*

José P. Castiano

De princípio pediram-me para que abordasse o tema as Interfaces entre


a Cultura e a Educação. Achei o tema muito oportuno sobretudo pelo facto
de haver uma crença generalizada, segundo a qual o nosso sistema de edu-
cação, de certa forma, anda descalço sem as suas botas, que são as culturas
moçambicanas.
Por isso, decidi reelaborar o tema para o Diálogo entre as Culturas
através da Educação; o sentido desta mudança é para tornar mais clara a
ideia principal que quero defender, nomeadamente, que a educação é o es-
paço institucional epistémico privilegiado para a construção da Identidade
Nacional através do cultivo da interculturalidade.
O termo ‘interculturalidade’ é crucial para os argumentos que desenvol-
vo. Assumo a interculturalidade na acepção de Fornet-Bettancourt que diz:

«…por interculturalidade compreende-se […] não uma posição teórica,


nem tão pouco um diálogo de/e/ou entre culturas […] no qual as culturas
se tomam como entidades espiritualizadas e fechadas; senão que intercultu-
ralidade quer designar, antes, aquela postura ou disposição pela qual o ser
humano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias
em relação aos chamados ‘outros’, quer dizer, compartindo-as em convivên-
cia com eles.»62

Adopto esta definição para explicitar a perspectiva educacional na


interculturalidade: a formação de atitudes e predisposições no indivíduo
que o capacita para o diálogo intercultural; este diálogo entre as culturas é

62
FRONET-BETTENCOURT, R.: Interculturalidade: Críticas, Diálogo e Perspectivas. Nova Har-
monia. Campestre, São Leopoldo, 2004, p.12.
Texto lido na II Conferência Nacional de Cultura realizada em 2009, Maputo.
216 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

a condição básica para a formação da identidade nacional. Esta perspectiva


educacional da interculturalidade (formação de atitudes e predisposições),
entendo, deve ter, porém, como pressuposto, uma educação cultural na qual
os aprendentes se confrontam com os conteúdos, valores e práticas culturais
do seu meio identitário.
Por isso, para o meu propósito nesta comunicação, e como sublinha o
próprio Fornet-Bettencourt, a interculturalidade, para além de ser uma ati-
tude, é uma experiência ou uma vivência que, por tirar de nossas seguranças
teóricas e práticas, permite-nos perceber o analfabetismo cultural do qual
nos fazemos culpáveis quando cremos que basta uma cultura, a ‘própria’,
para ler e interpretar o mundo.
A partir desta definição, aproveito aqui para propor olhar a educação
como um campo onde se formam estas mesmas atitudes e predisposições
necessárias para formar uma identidade nacional baseada na consciência das
diferenças culturais entre os moçambicanos sem, no entanto, menosprezar o
cultivo dos aspectos comuns humanos.
Repare-se que na tese que formulei falo de Identidade Nacional e não
identidades moçambicanas; ou seja, falo no singular porque se trata de um
projecto político que visa preservar a nossa moçambicanidade pela qual se
deve lutar com todas as energias, incluindo a intelectual. Esta, mais do que
teórica, é uma posição política que parte da experiência recente de Moçam-
bique com uma guerra devastadora de dez anos por causa de tendências
etnocentristas e divisórias. Falo, portanto, de identidade no singular para me
referir à minha aderência ao projecto político de construção de bases culturais
que justifiquem o projecto nacionalista, um projecto, a meu ver, libertador.
Falo, pelo contrário, de culturas e não de «cultura» nacional, ou seja no
plural, para significar que o projecto político de construção da Identidade
Nacional só tem sentido no quadro da inclusão de todas as culturas moçam-
bicanas neste mesmo projecto político.
A partir destes, consideramos as instituições políticas que criamos,
devem ser desenhadas e funcionar por formas a poder responder aos dois
imperativos: espelhar a identidade e unidade nacionais e, ao mesmo tempo,
comportar ou serem espaços concretos para o desenvolvimento de cada cul-
tura a partir de uma perspectiva de interculturalidade. Em outras palavras,
Pensamento engajado 217

o desenvolvimento de cada cultura significa o desenvolvimento de atitudes


e experiências que abrem campo para a aderência de cada pessoa às várias
identidades ao dispor dos moçambicanos.
Por último é importante notar que quando falo de educação, emprego
este termo no seu sentido restrito, isto é, no seu sentido formal. Concentro-
me assim no que comummente chamamos por “sistema de educação” para
significar um conjunto de acções institucionalizadas para transmitir às ge-
rações mais novas valores éticos e políticos que precisam como cidadãos e,
ao mesmo tempo, um conjunto de competências profissionais que precisam
para se sustentarem como indivíduos nas famílias e desenvolverem o país em
geral. Nesta definição o peso está no termo acções institucionalizadas porque
isso dá ao Governo do dia uma responsabilidade particular na organização
de uma educação baseada no diálogo entre as culturas.
Vou desenvolver a tese acima anunciada com base em dois argumentos. O
primeiro argumento sustenta-se na ideia de que é na educação, em particular
na Educação Básica, onde se criam as bases para que o futuro cidadão entre
na nação unida com os pés firmes. Por isso a educação a este nível deve ser
cultural porque é a cultura que lhe dará estes pés firmes.
O segundo argumento sustenta-se a partir da ideia de que é através da
educação que se ampliam os espaços de argumentação e se melhora a quali-
dade dos argumentos; por outras palavras, é através da educação que o aluno
pode desenvolver atitudes e experiências como ferramentas necessárias para
a sua entrada no diálogo entre as culturas.
A ideia fundamental que quero defender, sublinho, é a de que a cons-
trução da Identidade Nacional depende, em grande medida, da forma como
a educação cria um espaço de diálogo intercultural de qualidade para o
desenvolvimento de cada cultura que compõe o nosso país.

Queremos Moral!
Na preparação da II Conferência Nacional de Cultura de 2010 foram
realizadas as conferências preparatórias em todos os distritos e províncias. Os
extractos a seguir reflectem as queixas apresentadas num distrito de Sofala,
218 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Dondo, numa reunião (Maio 2009) onde participaram, segundo o relatório63


deste mesmo distrito, líderes religiosos, comerciantes, académicos, fazedores
de cultura, políticos e outros membros influentes.
O sentimento geral destas auscultações é que, actualmente, «há perca
da cultura moçambicana», como se pode ler a dado passo:
«Os grupos com os quais reflectimos opinam que houve uma evolução
cultural em Moçambique precisamente no que concerne aos hábitos e ou-
tras formas de manifestação cultural. No entanto há que lamentar a falta
de consciencialização no que diz respeito aos aspectos propriamente mo-
çambicanos. Por exemplo, cita-se a perca de valores de cultura africana e
moçambicana que se reflecte na forma de vestir, ensinamentos tradicionais,
forma de dançar. Esta perca de valor se manifesta como as pessoas vestem
que muitas vezes transparecem a nudez, e é permitido na televisão que as
pessoas se apresentem desta maneira e dancem com um certo exagero que
dá entender um exotismo. Desta feita, estando num mundo globalizado as
pessoas chegam a pensar que isto é normal e seguem fielmente esta maneira
de viver como se fosse normal, assim aos poucos vamos defraudando a nossa
nobre e insubstituível cultura moçambicana».

Parágrafos mais abaixo, já no sentido crítico, aquele documento queixa-


se sobre os curandeiros (médicos tradicionais) que fazem parte da nossa
tradição há já longa data. O documento diz que as reflexões feitas indicam
que estes médicos nalgumas vezes criam contradições entre famílias e vizinhos
porque acusam de feiticeiros a alguns membros de famílias quando não forem
sucedidos nos seus projectos ou em caso da existência de alguma doença
no seio da família. Assim, para eles, “os curandeiros não contribuem para a
harmonia no seio familiar, mas sim para a sua separação”.
Num dos parágrafos, o mesmo relatório lamenta a perca da cultura de não
trabalhar, aspecto que a comunidade do Dondo considera muito importante
mas que é pouco referido no debate sobre a questão da cultura e desenvol-
vimento, embora o lema da II Conferência Nacional de Cultura seja Cultura
como Chave do Desenvolvimento. A justificação aí apresentada refere:
63
Refere-se ao documento Síntese da Auscultação da Comunidade, documento elaborado pelo Serviço
Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia do Distrito de Dondo, Província de Sofala. Essa sín-
tese foi elaborada no âmbito da preparação da II Conferência Nacional de Cultura para o ano 2009.
Pensamento engajado 219

«[que] … é comum no seio dos trabalhadores ter-se a concepção de só as-


sinar o livro do ponto e não efectuar o trabalho que lhe foi confiado. Assim
esta pode ser denominada cultura de ‘não trabalho’. Esta forma de manifes-
tação da atitude (…) atrasa o desenvolvimento da economia moçambicana e
consequentemente o desenvolvimento social…»

Entretanto, a constatação que julgo ter sido a mais profunda é a que


releva a centralidade da cultura para a formação do Homem Moçambicano.
O documento diz que a história deste país nos ensinou que o povo moçam-
bicano foi ensinado a negar o mais nobre de si mesmo durante muitos anos
pelo colonialismo português. Tudo o que é negro é uma questão de vergonha.
Assim imitar o que é do branco ou de outros povos, é bom; por isso mesmo
a imitação às coisas estrangeiras tem raízes históricas.
E o documento constata que para mudar isto é preciso projectar o ho-
mem moçambicano; e acrescenta: o colono projectou o seu homem com as
características de ser servo, obediente, vergonhoso de si mesmo. E termina
mostrando que o problema está no sistema de educação actual de Moçambi-
que, ou seja, sublinha que não há uma educação moçambicanizada. Queremos
moral!, afirma-se sublinhando que é preciso que as pessoas que estejam em
frente às nossas crianças apresentem o mínimo de moral.

De como as Culturas cultivam a Educação


Comecemos pelas funções da cultura para com a educação. O meu ob-
jectivo é mostrar como as culturas “cultivam” a educação. Para isso vamos
recorrer às sete funções da cultura desenvolvidas pelo historiador da cultura
Ali Mazrui, adaptando-as para o contexto educacional. Digo adaptando em
três ângulos: primeiro, porque Mazrui escreveu estas funções da cultura
numa perspectiva de análise da geopolítica mundial no contexto da Guerra-
Fria. A adaptação que faço para este texto é, segundo, no sentido de falar de
“culturas” e não de cultura, no singular. Por último, a adaptação é no sentido
de contextualizar estas funções tendo em conta o sistema de educação em
Moçambique.
220 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Mazrui64 (1990, p.7) identifica as seguintes funções da cultura: [1]


como lentes de percepção e de cognição, [2] como base do comportamento
humano, [3] como critério de avaliação, [4] como base de identidade, [5]
como modo de comunicação, [6] como base para a estratificação (aqui vou
empregar o termo diferenciação) social e [7] como determinante para o
sistema de produção e de consumo.
Vou adoptar estas funções, mas reelaborando a ordem proposta por
Mazrui, sem andar muito distante do espírito que ele queria atribuir à cada
função. Comecemos pela última, nomeadamente a de que as culturas são
determinantes para a configuração do sistema, desta feita, de educação (e não
de produção e de consumo como Mazrui). Esta função é a mais simples e a
mais profunda, simultâneamente. De facto, a educação é uma parte de cada
cultura; no entanto, ela constitui a sua parte especial porque as diferentes
culturas criam e desenvolvem seus sistemas de educação para que as próprias
culturas não morram. É uma forma de elas garantirem que as gerações mais
novas continuem a transportar os seus traços fundamentais e estas, por sua
vez, continuem esta tarefa de transmissão. Como veremos, esta transmissão
é acompanhada pelas novas gerações por algum grau de inovação, mas isto
é matéria mais adiante.
Cada cultura, olhando para esta função, deveria, em princípio, alimentar
o seu sistema de educação para garantir que ela própria não morra. Olhando
porém para Moçambique como país, seria indesejável, mesmo impossível,
querer que cada uma das culturas que compõem esta pérola do Índico que
é Moçambique tivesse o seu próprio sistema de educação. No entanto, se
concentrarmo-nos na função declarada, nomeadamente a de garantir a sua
continuidade pelas gerações futuras, então é possível (e imperativo) criar no
sistema nacional da educação espaços culturais diferenciados onde cada uma
das nossas culturas possa viver e inovar-se.
Essa possibilidade de criar espaços culturais deve ser ao nível de políti-
cas e de práticas. Porque, se continuarmos a fazer até como agora, i.e. criar
políticas educacionais simpáticas para a diversidade e não investirmos na

64
Cfr. MAZRUI, A., Cultural Forces in World Politics. Heinemann Portmouth, Naiorobi, Lon-
don,1990, p.7.
Pensamento engajado 221

sua implementação prática, corre-se o risco de a educação ser um sistema


culturocídio, isto é, que mata as culturas menos bem posicionadas.
Passemos para a segunda função da cultura (mais uma vez, na nossa
ordem) mormente a de servir de critério de avaliação. Para Mazrui a cultura
serve de medida para classificar a acção ou o comportamento das pessoas
como sendo bom ou mau, bonito ou feio, moral ou imoral, atractivo ou
repulsivo e por aí fora. Em relação à educação esta função é de extrema
importância, senão mesmo a fundamental. A educação, antes de ser um
lugar onde vamos buscar conhecimento e habilidades profissionais, é antes
de nada e sobretudo um processo de confrontação (alguns preferem usar
termos como “transmissão” ou “indotrinação”) de valores. As culturas são
os espaços onde a educação deveria buscar esses valores.
Todavia, a forma como a educação deveria transmitir os valores que
pesca das culturas deve ser de confrontação e não de indotrinação e nem de
moralização. A confrontação pressupõe uma assimilação dos valores, mas de
uma forma crítica e não cega.
A este respeito, o filósofo moçambicano Ngoenha pergunta-se: Para quê
serve a educação? A quais valores a educação moçambicana deve responder?
Qual é o estatuto do saber Moçambicano?65 . De facto, lendo o nosso sistema
de educação encontramos uma espécie de melting pot de valores, não estando
claro que valores são essenciais tendo em conta a nossa condição cultural
em Moçambique. Alguns deles são importados de sistemas educacionais e
culturais diferentes dos nossos e apresentam-se, por isso mesmo, de forma
não consequente. Como, pois, se quer cultivar os valores moçambicanos
(mesmo não estando claro sobre que valores são esses moçambicanos) se nas
nossas escolas os jogos tradicionais, os advérbios, as músicas, as canções locais
e os seus cantores, a língua em que essas canções são cantadas, as religiões
tradicionais, etc. têm um estatuto subalterno e periférico?
A terceira função das culturas seria constituir o fundamento da nossa
identidade como moçambicanos. Ou seja, é através das nossas culturas que
nós manifestamos e renovamos o nosso contrato político de sermos moçam-

65
NGOENHA, S.E., Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique: O Paradigmático Ques-
tionamento da Missão Suíça. Livraria Universitária, UEM, Maputo, 2000, p.30.
222 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

bicanos. As nossas culturas oferecem as raízes que precisamos para sermos


reconhecidos como moçambicanos no plano da humanidade e da História.
Muitas vezes e no seu sentido mais amplo, a identidade de um povo,
expressa-se na forma do espírito desse mesmo povo, para falar como Hegel.
E a educação é a forma como esse mesmo povo transmite aos mais novos
a parte positiva deste mesmo povo. O espírito é o resumo daquilo que um
povo é, no pensamento.
Alguns exemplos servem para ilustrar o que acabo de formular. Quando
se fala do povo alemão nós logo pensamos nos termos de povo de grandes
pensadores da filosofia por causa de um Hegel, Kant, Nietzsche, Herder,
Einstein e outros que elevaram a cultura alemã ao ponto de ter sido consi-
derada como clássica. Ou quando se fala de americanos podemos exclamar,
ah aqueles pragmáticos referindo-nos à ideia geralmente espalhada de que
os americanos são muito práticos no que pretendem fazer. Ou ainda quan-
do falamos de moçambicanos podemos enaltecer a ideia de um povo que
busca todas as formas para manter a paz e a sua independência arduamente
conquistada.
Mas também há actos que sucedem na história dos povos que, por
serem negativos, servem para vincar a necessidade de mobilizar o espírito
positivo. Voltando aos mesmos exemplos, se falamos de alemães podemos
muito bem dizer «ah, aquele país de Hitler que iniciou a Segunda Guerra
Mundial»; dos americanos «ah aquele país que teve Governo que lançou a
primeira bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki e forçou a invasão ao
Iraque»; de moçambicanos podemos ainda ouvir exclamar, «ah aquele país
de calamidades e que esteve envolvido numa guerra fratricida».
Nestes casos é o espírito da cultura política de um país, mais do que
as culturas particulares e as suas manifestações artísticas, que pesam para a
Identidade. Assim, a educação deve centrar-se em cultivar a parte positiva do
espírito da cultura nacional e confrontar aos mais novos com as experiências
negativas (contravalores) da História. A educação, neste contexto, deveria
poder exaltar os valores de paz, democracia, tolerância, justiça social, que
são aqueles valores com que todos os moçambicanos se identificam.
Se olharmos o nosso sistema de educação na perspectiva da cultura
política, então está justificada a pergunta se o nosso sistema de educação já
Pensamento engajado 223

esgotou as suas potencialidades para cultivar uma identidade cultural nacional


com base em valores positivos desta mesma.
Como vemos, esta função de identidade está muito de perto ligada à
função de critério para valores. Só que esta se submete mais ao plano da ética
política, enquanto que aquela se submete mais ao plano da moral individual.
Muito perto ainda da função da identidade (na verdade só as separo
por questões analíticas) está a quarta função das culturas: a de modos de
comunicação. O conceito comunicação aqui é empregue no seu sentido
sociológico, isto é comunicação como coordenação da acção; é interessante
notar a coincidência deste conceito com a combinação dos termos «acção»
e «comum». Assim, comunicação apela para a clarificação das condições
para o tipo de acções humanas que sejam de natureza social e que, portanto,
precisam de ser coordenadas, comungadas, enfim, comunicadas.
Os modos de comunicação informados pelas culturas são vários, desta-
cando-se o modo que é feito através de uma língua comum; a complementar
a língua existe outras formas de comunicação também importantes como
a música, a arte, o teatro, a ciência; mas estas todas dependem da língua,
melhor, no maior dos casos, usam a língua para fazerem passar a mensagem
que pretendem transmitir às sociedades ou para uma parte dela.
Aplicado ao sistema de educação podemos dizer que o domínio da língua
de ensino pelos alunos tem um papel importante para que os conteúdos de
aprendizagem sejam entendidos. Seria impensável que nas escolas do Japão
ou da Alemanha, só para dar dois exemplos, as crianças não fossem escola-
rizadas em japonês ou em alemão respectivamente.
Nos países africanos, na sua maioria diga-se de passagem, optaram pelas
línguas europeias para o ensino. No nosso caso é o português a língua de
ensino desde as primeiras classes até à universidade. A justificação política
de Unidade Nacional, ou seja, uma língua que todos podem falar, é histo-
ricamente válida, mas nem por isso inquestionável. Se assim fosse há países
africanos que são praticamente monolíngues (o Botswana, a Suazilândia, por
exemplo) mas que usam o inglês como língua de instrução. Aí não se põe mui-
to o problema de «muitas línguas». De facto o problema está na valorização
das línguas nacionais através do sistema de educação e pelas esferas políticas,
sociais e sobretudo a sua utilização no mundo da economia e emprego.
224 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

O nosso sistema de educação tem sido ainda muito tímido em tomar


decisões corajosas no campo das línguas e as camadas que mais problemas
têm com isso são as nossas elites políticas e intelectuais. Neste campo as
culturas moçambicanas ainda têm muito a cultivar o nosso sistema de edu-
cação. O sistema moçambicano de educação, deve ainda fazer muito para
cultivar e valorizar as línguas nacionais ensinando-as, sem isso significar a
temida divisão étnica.
A quinta função das culturas é a de ser lentes de percepção e de cognição.
No que diz respeito ao sistema moçambicano de educação, esta função ajuda
a equacionar o facto de os saberes locais e tradicionais (os países anglófonos
chamam de saberes indígenas) continuarem, apesar dos avanços, a terem um
estatuto periférico, marginal e folclórico na definição dos nossos currículos
a todos os níveis.
Depois de uma fase muito longa em que estes saberes eram apelidados
indiscriminadamente por supersticiosos, o Ministério da Educação em Mo-
çambique, através do INDE, iniciou um processo de introdução dos saberes
locais no currículo do ensino básico, o que é conhecido como currículo local.
De facto não fazia sentido que aspectos culturais e tradicionais das comuni-
dades onde as escolas estão inseridas (hábitos e costumes, música, danças,
jogos, formas de produção, plantas medicinais, plantas venenosas, animais
domésticos e selvagens, técnicas e arquitectura de construção de casas, ces-
taria, latoaria, culinária, personalidade locais, formas de administração local
da coisa pública, etc.) continuassem a não fazer parte dos conteúdos que as
crianças devem aprender na escola. Até parece que a educação se envergonha
das formas de ser do seu povo preferindo entulhar os estudantes de saberes
exógenos. Claro que, ao marginalizar os nossos saberes ancestrais da escola,
o resultado é que a criança não conheça (reparem bem que emprego o verbo
conhecer e não assimilar) as suas tradições e dos seus pais e parentes; o re-
sultado último, porém, é uma criança que cresce sem raízes culturais e, como
consequência lógica, não as respeite e nem respeite àqueles que seguem estas
tradições, isto é, aos seus pais e parentes. Estes tornam-se pessoas retrógradas
aos olhos das crianças. Enfim, as lentes pelas quais as crianças moçambicanas
aprendem a olhar, perceber e conhecer o mundo hoje é diferente da lente dos
pais e não são dadas as oportunidades de fazerem as suas escolhas culturais
Pensamento engajado 225

e nem de aperfeiçoarem as suas mensagens nas línguas moçambicanas. A


educação faz um epistemecídio cultural, emprestando um termo usado pelo
sociólogo português Boaventura Sousa Santos.
A nossa próxima função das culturas – a sexta – é base do comporta-
mento humano. Aparentemente, a forma como nos comportamos parece
informada pelo conjunto de motivações, interesses e valores influenciadas
pela cultura em que nascemos. Por exemplo, poderíamos supor que a forma
como um moçambicano pertencente ao grupo étnico macua conduz ou se
comporta (veste-se, cumpre os rituais, etc.) numa cerimónia de casamento,
digamos, é diferente como um moçambicano do grupo linguístico Sena,
Nhungue ou Betonga. É natural que os pais esperem dos seus filhos um
certo comportamento que, na óptica deles, esteja conforme com aquilo que
eles julgam serem as tradições da sua cultura. Assim, as aparentemente as
culturas emitem motivações, interesses e valores diferentes que informam o
nosso comportamento e podem determinar o comportamento que temos.

De como a Educação educa a Cultura


Vou, nesta parte, explorar a segunda perspectiva da possibilidade do
diálogo entre as culturas e a educação moçambicanas, adoptando desta vez a
perspectiva da educação. E aqui, o denominador comum, a tese, a ideia prin-
cipal a defender é a seguinte: o papel da educação é o de inovar, modernizar
as nossas culturas tradicionais; por inovar não quero significar destruir ou
ser hostil a elas; quero sim dizer que a educação deve apropriar-se da riqueza
tradicional depositada nas nossas culturas moçambicanas e, a partir desta
riqueza, propor soluções para os problemas modernos e futuros inspirados
pela tradição66; inovar significa que a educação é o espaço privilegiado para
que o aluno se confronte criticamente com o mundo de valores, ‘hábitos,
costumes, saberes e a língua da comunidade em que ela nasceu ou os pais
escolheram67.
66 Cfr. CASTIANO, J.P., Can African IKS provide Solution for Modern Problems? In:
INDILINGA, African Journal for Indigenous Knowledge Systems. Vol.4, Nr.2, 2005 (foreword).w

67 Cfr. CASTIANO, J.P., African Indigenous Knowledge in Education Today. In: HOUN-
TONDJI, P. (Ed.).: Traditional Knowledge and Modernity. Benin. 2009, pp.101-120.
226 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Devo dizer antes que sublinho o termo confrontar-se criticamente. Por


‘confrontar-se’ quero sublinhar o elemento cognitivo da aprendizagem, isto é,
que o aluno tenha a oportunidade de conhecer as tradições (valores, hábitos,
costumes, saberes, língua) que a sua comunidade segue; esta oportunidade
deve ser-lhe proporcionada pela escola. Por seu lado, o termo ‘criticamente’
quer significar que ao aluno se devem dar as ferramentas e a liberdade de
perguntar o porquê? das tradições; assim, ele próprio estará em condições
de escolher, duma forma consciente, a identidade do conjunto de identida-
des possíveis na sociedade moderna moçambicana e global. Desta forma,
pensamento crítico significa, para mim, aquele que não reduz a realidade à
necessidade, mas sim vê a realidade como um campo de possibilidades, de
contingências.
Depois destas observações preliminares, concentro-me, agora nas ‘fun-
ções’ da educação para com as culturas moçambicanas. Por uma questão de
coerência, vamos seguir o mesmo roteiro do ponto anterior.
Em relação à função de as culturas serem determinantes para a confi-
guração do sistema de educação: como referimos acima, todas as culturas
produzem, no seu interior, um sistema de educação com vista a garantirem
a continuidade das suas práticas, saberes e valores; neste sentido a educação
tem um papel de reprodutora do sistema cultural. Mas, como todos sabemos,
os professores, os alunos e toda a estrutura dos sistemas de educação, não
reproduzem simplesmente o que as culturas nos parecem estar a ditar. Por
sua vez, a educação, por ser um sistema dinâmico, tem a função de inovar
esses valores, saberes e práticas ditadas pela cultura.
Neste passo, convém destacar que nenhuma tradição é em si estática.
As tradições evoluem no sentido de adaptarem-se às transformações sociais,
económicas e às mudanças ambientais que os grupos que professam uma
determinada tradição sofrem. E estas adaptações às transformações são me-
lhoradas pela educação. Se os membros da comunidade tradicional forem
submetidos à educação, estarão em condições de adaptarem as suas práticas e
saberes aos novos desafios colocados pelo progresso do conhecimento sobre
os fenómenos naturais, sociais e económicos.
Dois exemplos podem bastar para ilustrar o papel inovador da educação
em relação aos sistemas culturais.
Pensamento engajado 227

É sabido, por exemplo, que na região centro de Moçambique, princi-


palmente entre os Senas, existem as cerimónias do Pita Kufa; esta cerimónia
consiste em a viúva ser tomada pelo irmão do seu falecido marido para ga-
rantir a sua protecção social e económica por parte da família do defunto.
Ora, o ritual tradicional, suposto acompanhar esta cerimónia, é a prática de
relações sexuais entre a viúva e o novo marido que toma a ela e aos filhos
sob sua protecção. Porque ultimamente se avolumam causas de morte de
homens por causa do SIDA, há cada vez mais consciência entre as pessoas
que esta cerimónia representa um vector de transmissão desta doença. O
resultado era toda uma família infectar-se e não se cumprir a função social
desta cerimónia que é, como dissemos, a protecção social da viúva e a guarida
dos filhos. Numa pesquisa de campo que fiz, fiquei a saber que em muitas
comunidades não se consuma, de facto, a relação carnal durante a noite de
núpcias. Os nubentes somente dormem no mesmo recinto ou compartimento
simbolizando este acto uma união e um compromisso. Assim, não se acabou
com a tradição do Pita Kufa, senão que se manteve o seu valor simbólico
(ao pernoitarem ambos nas mesmas divisões) retirando-se o possível vector
de transmissão do SIDA. Também soube que, naquela região, a escola foi
determinante para disseminar esta inovação.
Um outro exemplo, desta feita da área das construções. Quando os
antropólogos europeus chegaram a África, notaram que estes fazem muitas
coisas usando o círculo: são as casas, as danças, o sentar para resolver assun-
tos sérios e por aí fora. Então, por qualquer coincidência, as casas circulares
transformaram-se em nossos símbolos de construção, a nossa arquitectura. De
uns tempos para cá, nota-se muitas construções (principalmente os lodges)
que mantêm esta arquitectura circular fazendo reconhecer a qualquer cidadão
do mundo que se trata de um modelo africano. Mas estas casas redondas já
são feitas com tijolos e têm canalização e energia eléctrica no interior. Tam-
bém já têm divisões por dentro. Ou seja, e este é o ponto, o ensino técnico
profissional pode transmitir aos mais novos a inovarem as tecnologias da
construção das casas mas sem eliminar a arquitectura tradicional africana.
Em ambos casos, podemos notar que a escola pode jogar um papel
importante na transmissão de capacidades e competências para a melhoria
das condições de saúde preventiva (no primeiro caso) e das condições habi-
228 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

tacionais (no segundo caso) sem no entanto se abandonarem a essência das


tradições. No fundo, o que quero dizer é evidente: a escola tem um grande
potencial de educar as culturas a melhorarem os componentes do seu sistema,
ou seja, a inovarem-se. As culturas não morrem, mas tornam-se mais fortes
para oferecerem soluções para os problemas modernos.
Em relação à segunda função mencionada (critério de avaliação), des-
tacamos o facto de ser nas culturas onde se deve ir buscar os valores a partir
dos quais se alinham os conteúdos programáticos, ou seja, se desenham os
curricula. A escola deve criar espaços formais e implementar metodologias
apropriadas para que os mais novos se confrontem criticamente com estes
valores. Em fim, a escola deve submeter estes valores à prova dos desafios
modernos que se colocam aos indivíduos e às comunidades.
Como a Agenda 2025 destacou, a educação deveria promover valores
tradicionais familiares (espírito do ubuntuismo, de ajuda mútua, de solida-
riedade, de harmonia e respeito) ao mesmo tempo que cultiva os valores
nacionais mais altos de patriotismo, auto-estima, paz, diálogo e reconciliação
entre os moçambicanos, valores estes que estão profundamente enraizados
nas diferentes culturas moçambicanas.
Entretanto cabe à educação não só ensiná-los, isto é, levar ao aluno a
assimilá-los, senão sobretudo a ajudar ao aluno a reconhecer nesses conteúdos
potencialidades para enfrentarem a sociedade moderna. As reflexões que a
educação pode ajudar aos alunos a fazerem são, por exemplo, as seguintes:
o que significa aproveitar o espírito tradicional de solidariedade no contexto
de busca de justiça social hoje? Como fazer com o espírito de ajuda mútua
seja o guia da acção governativa? O que significa uma gestão corporativa
adoptando como o seu substrato o espírito do ubuntuismo?
Pensamento engajado 229

Outros aspectos de ética mais tradicional que merecem uma confrontação


mais individualizada são: porquê devemos respeitar aos mais velhos? Quais
são os actos que demonstram respeito?68 Que razões estarão por trás deste
valor respeito? Qual é a justificação para a mulher ser tratada diferentemen-
te nas sociedades tradicionais? Será que elas têm alguns direitos naquelas
sociedades? Quais são?
Ou seja, o que queremos destacar é a necessidade da educação, em
relação a esta função, ter um papel crítico (no sentido que disse acima) com
o intuito de dar oportunidades e criar espaços formais visíveis para que
cada aluno possa escolher as suas próprias opções identitárias no mosaico
das existentes como possibilidades. O que as culturas aprendem com esta
confrontação de valores? Aprendem elas próprias a olharem-se no espelho
não na base de superstição, mas como sistema que cada vez mais se consolida
com a sua abertura ao escrutínio da razão.
No que diz respeito à função das culturas como base de identidades é
preciso destacar que, com a modernização e com a mobilidade social daí resul-
tante, não existe coincidência necessária entre as culturas na perspectiva das
tradições, e os padrões de comportamento resultantes da pertença às culturas
nas outras perspectivas que não sejam tradicionais; tais outras perspectivas
identitárias são hoje, por exemplo, religiosas, profissionais, políticas, gera-
cionais ou ainda determinadas pelo estatuto social ao qual cada membro da
sociedade pertence. Estas identidades são transversais, ou melhor, «plurais»
como o diz Amartya Sen, no seu livro Identidades e Violência.

68
Numa entrevista realizada em 2006 numa escola primária do distrito do Dondo, Sofala, um grupo
de pais e encarregados de educação queixava-se sobre as crianças “de hoje” dizendo que “não
respeitam aos mais velhos”. Quando perguntei quais seriam os sinais ou manifestações da falta de
respeito, em resposta, deram-me os seguintes exemplos: as crianças não dão lugar aos mais velhos
nos locais de falecimento em particular, fazem barulho quando passam pelos locais de falecimento,
não respeitam os cemitérios e outros lugares sagrados, levantam a voz quando falam com os mais
velhos, não ajudam aos mais velhos nos trabalhos de casa, etc. estes eram, para eles, os “sinais de
respeito”. Quase tudo girava em volta das necessidades dos mais velhos e pouco dizia respeito às
preocupações das crianças mesmo, como seja, o direito de brincarem, de jogarem, de serem ouvi-
das, de perguntarem, etc. é aqui onde a escola deve, para além de confrontar às crianças com uma
espécie de código de ética “do respeito aos mais velhos”, deve também introduzir a temática dos
direitos da criança tomando a partir da perspectiva tradicional.
230 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Sen expressa o seu temor de as identidades serem aproveitadas para a


acção política da seguinte forma:
«De facto, uma das principais fontes potenciais de conflito no mundo
contemporâneo é o pressuposto de que as pessoas podem ser classificadas
unicamente com base na sua religião ou na sua cultura. Acreditar no poder
alargado de uma única classificação pode tornar o mundo altamente inflamá-
vel. O mundo é muitas vezes considerado como um conjunto de religiões (ou
de civilizações, ou de culturas), ignorando as outras identidades que definem e
valorizam as pessoas, e que envolvem a classe, o género, a profissão, a língua,
a ciência, a moral e a política. O carácter redutor das teorias baseadas num
só critério de classificação pode contribuir, muitas vezes inadvertidamente,
para a violência da acção política69»
Por consequência, seria perigoso que a educação procurasse restringir-se
a interpretar o comportamento individual ou de grupos somente a partir do
conceito restritivo de cultura como sendo hábitos e costumes no âmbito dos
grupos étnicos. Muitas vezes, no mundo de hoje, não é a pertença a uma cultura
específica que constitui a matriz para a leitura de comportamento e gostos.
Acima da função da educação como possibilidade de levar os mais novos
a escolherem as suas identidades, esta outra politicamente mais sublinhada:
como construir o projecto da identidade nacional sem passar por cima das
culturas particulares e quais são as possibilidades e as condições da educação
poder ser o espaço privilegiado de interculturalidade para a construção duma
identidade nacional mas que mantenha e dê oportunidades institucionais
para que se desenvolvam as singularidades culturais?
Neste ponto quero destacar que a função da educação é, em primeira
linha, inserir o aluno do nível básico na sua cultura onde ele ganhará os pés
firmes para entrar no palco do contrato político nacional; nesta inserção está,
naturalmente, contado o ensino de línguas maternas não só na sua perspectiva
instrumentista70 como hoje se faz no ensino, mas sobretudo na perspectiva

69
SEN, A., Identidade e Violência. A Ilusão do Destino. Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2006, p.20.
70
Refiro-me ao facto de a introdução de línguas maternas no ensino básico em Moçambique ser feita
em função do desenvolvimento das competências linguísticas para o uso exclusivo do português
como língua de instrução nos níveis superiores. Na prática se está a “instrumentalizar” as línguas
maternas para a aquisição do português como finalidade.
Pensamento engajado 231

de desenvolvê-las no quadro da inovação. Assim, acoplada a esta função de


inserção na cultura (que os sociólogos prezam em chamar socialização), está
o papel que a educação tem de desenvolver as culturas particulares. O termo
desenvolver, neste caso, significa a educação poder proporcionar ao aluno a
oportunidade de conseguir comunicar-se e argumentar a partir do seu ponto
de vantagem de informações e saberes: a sua própria cultura.
Tecidas as considerações acima, é mais fácil agora abordar a questão
da língua como meio de comunicação, neste caso concreto como meio de
instrução. E aqui os debates são acesos. Pois a questão é a seguinte: se os
nossos contos, as nossas canções, as nossas negociações familiares, os nossos
provérbios, a nossa forma de ser e estar no mundo, tudo isso é expresso ou
(para a maioria dos moçambicanos) usando a respectiva língua materna como
meio de comunicar e agir, ou usando permutadamente a língua materna e a
língua portuguesa, então uma pergunta lógica se coloca: porque é que nas
nossas escolas (e, consequentemente, nas instituições públicas como o par-
lamento, a administração, etc.), apesar da independência conquistada, ainda
continuamos a usar somente o português? O que justifica isto?
Frantz Fanon, no seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, dá grande
importância à nossa atitude perante a língua nativa e do colonizador. Para
ele, falar é existir completamente para o outro71 , querendo expressar com
isto que o colonizado (black man), quando fala, a sua linguagem tem duas
direcções segundo as circunstâncias: uma dirigida aos seus compatriotas ne-
gros e outra dirigida ao colonizador, tentando imitá-lo; esta outra demonstra
que por trás do aparente complexo de superioridade que o colonizado tem
quando mostra dominar com mestria a língua do colonizador, esta atitude
é, pelo contrário, motivada pelo complexo de inferioridade; segundo ele, é
que o negro colonizado pensa que só pode ser homem civilizado falando a
língua do colonizador e imitando o estilo de vida dele.
Para Fanon é esta atitude para com a língua própria que se deve com-
bater; esta posição de Fanon compreende-se a partir do conceito geral que
ele tem do colonialismo quando ele afirma que …”o problema do colonia-

71
Cfr. FANON, F., Black Skin, White Masks. Grove Weidenfeld, New York, 1967, p.17.
72
Idem, p.84.
232 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

lismo inclui não somente as inter-relações da condição histórica objectiva


mas também as atitudes humanas perante estas condições72”. O agarrar-se à
língua do colonizador é uma patologia, segundo Fanon.
Esta atitude de auto-inferiorização descrita por Fanon é compreensível
no contexto em que Frantz Fanon a descreveu, ou seja, no contexto de domi-
nação política e cultural colonial. Hoje, a caminharmos para quatro décadas
depois da Independência de Moçambique e do derrube do poder colonial,
deve reconhecer-se que torna-se difícil conseguir argumentos plausíveis que
possam justificá-la. O problema está nas nossas mãos como membros da elite
moçambicana com mentalidade ainda não descolonizada, especialmente no
que se trata à nossa atitude perante estas línguas. A atitude inferiorizante da
elite moçambicana perante as suas próprias línguas maternas é o que justifica
a falta de coragem para se tomarem grandes decisões em termos de política
linguística na educação.
Penso que aqui falta uma grande decisão política em relação ao uso das
línguas maternas na escola. Mas o uso delas é somente uma parte da moeda
porque, quando assim pensamos, partimos do pressuposto que as crianças
conhecem as suas línguas. Acho porém que o grande salto de coragem que a
educação deverá fazer é ensinar estas línguas em todos os níveis, assim como
faz com o português. Assim, a educação estará em condições de fazer com
que as diferentes culturas reaprendam a sua própria língua e, por sua vez,
desenvolvam as diferentes expressões de manifestação cultural (literatura
oral, provérbios, canções) e também a capacidade destas línguas entrarem
no debate político.
Temos que nos desvestirmos, pois, do matope (lama, em xiSena) da
alienação colonial de que as nossas línguas servem somente para cantar e
dançar, mas não servem para ensinar as nossas crianças a escreverem nos
computadores, os nossos deputados a falarem no parlamento e os nossos
adultos a preencherem requerimentos para solicitar terreno para machambas
ou construção.
A educação, e em particular as universidades, devem jogar um papel
decisivo neste desafio de desenvolver as línguas nacionais originárias de Mo-
çambique; o seu papel específico seria, para além de investiga-ção, formar
professores e desenvolver os cursos e programas escolares.
Pensamento engajado 233

A quinta função das culturas que foi objecto acima é a delas servirem de
lentes de percepção e de cognição. Como dissemos, este aspecto se refere à
necessidade de introduzir os saberes locais na sala de aula. Mais uma vez, a
educação é chamada aqui não somente a ajudar ao aluno a absorver os saberes
locais mas sim ensinar este a ser crítico perante os saberes de natureza local.
Como irei desenvolver exaustivamente este aspecto no último ponto deste
artigo, basta a esta altura sublinhar que é o professor que deve poder trazer
estes saberes para a sala de aulas e para isso ele precisa de muita ajuda, não
podendo ser deixado sozinho.
O facto de ter sublinhado a importância que tem a educação no desen-
volvimento das línguas nacionais não é contraditório ao papel da educação
na construção de identidades plurais, no sentido de Amartya Sen. Bem pelo
contrário, se tomarmos em conta que a função das culturas é a de desenhar
padrões do comportamento humano (a sexta função no sentido de Ma-
zrui), quanto mais se desenvolverem as culturas singulares, mais padrões
de comportamento haverá para as nossas escolhas. O que é fundamental
é a educação ser institucionalmente o acervo das matrizes disponíveis de
escolha desses padrões do comportamento. O mais importante ainda é a
educação concentrar-se no desenvolvimento de atitudes abertas aos outros
padrões na mesma medida que confronta criticamente ao aluno com os seus
padrões locais.
A sétima e última função das culturas, a da estratificação social, é somente
visível combinada com a educação; ou seja, as pessoas, mesmo que sejam do
mesmo grupo linguístico cultural, são classificadas socialmente na base do
saber. Nas zonas urbanas e no país em geral, quando alguém termina o ensino
superior, tem já o passaporte mais facilitado para o mercado de trabalho, para
a política, para o acesso a uma boa remuneração, do que os seus concidadãos
que não fizeram um curso superior. Paradoxalmente, no entanto, é através da
educação que existe a possibilidade e a condição institucional de fazer com
que estas desigualdades sócias não coincidam com as culturas moçambicanas
e perigar assim um verdadeiro diálogo entre as culturas.
234 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Possibilidades de Diálogo entre as Culturas


A este passo é importante explorar duas possibilidades de organizar o di-
álogo intercultural na educação, nomeadamente a possibilidade institucional
e a possibilidade curricular. Vou explorar estas duas possibilidades com base
nas observações que fiz nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane. Por
possibilidade institucional quero sublinhar a dimensão do desenho da relação
entre as instituições que cuidam dos processos da educação e aquelas que
cuidam da parte cultural. Por possibilidade curricular pretende-se evidenciar
as diferentes formas de integrar os saberes locais culturais nos programas do
ensino. As duas dimensões, longe de serem concorrentes, complementam-se.

Possibilidade Institucional
A história da relação institucional entre a educação e a cultura em Mo-
çambique está repleta de casamentos e divórcios. Depois da Independência de
Moçambique, mais exactamente em Fevereiro de 1976 forma-se o Ministério
de Educação e Cultura (MEC) que desdobra em Direcção Provincial de Edu-
cação e Cultura (DPEC) nas províncias e Direcções Distritais de Educação
e Cultura ao nível dos distritos. Dentro do MEC a cultura era administrada
por uma Direcção Nacional de Cultura. Este casamento institucional durou
pouco, pois, de 1977 a 2004 o MEC dissolve-se em Ministério da Educação
(MINED) e Ministério da Cultura (MINEC). Ao nível provincial e distrital
havia um desdobramento das funções de cultura e educação pelas suas res-
pectivas direcções distritais.
A partir de 2004 a cultura e a educação voltam a casar-se formando o
Ministério de Educação e Cultura (MINEC), voltando, portanto, ao modelo
de 1976; da mesma forma a gestão do ensino superior regressa para o MI-
NEC. Ao nível das províncias criam-se as DPECs e, ao nível dos distritos
criam-se primeiro os Serviços Distritais de Tecnologia, Juventude, Cultura e
Educação que cobrem as áreas da juventude, desportos, ciência, tecnologia e
Pensamento engajado 235

educação.73 Ou seja, ao nível distrital encontramos a cultura a ser, pelo menos


na intenção, a base não só da educação, mas também dos assuntos juvenis
e da tecnologia. Este casamento distrital, segundo alguns depoimentos, é o
mais problemático neste momento.
Mais devido ao modelo socialista de monopólio e hegemonia estatal
de fazer política do que pela junção da educação e cultura no MEC, no
período após a Independência era notável, no quadro da construção de
uma Identidade Nacional, o esforço em promover o intercâmbio cultural
entre os moçambicanos, particularmente entre os jovens. A organização de
encontros interprovinciais entre os jovens, que implicam viagens programa-
das, era frequente; no campo da educação eram frequentes a formação de
grupos culturais nas escolas que, em nome da unidade nacional, tinham que
executar todo o tipo de danças existentes em Moçambique ou cantar a maior
parte das canções revolucionárias que eram mesmas ou do mesmo formato
do Rovuma ao Maputo.
Os jovens da chamada Geração 8 de Março, hoje muitos deles nas rédeas
das instituições ao mais alto nível, sabem dançar tanto xigubo como libondo,
makwaela como o makwai, o mapico como a varimba, independentemente
da sua proveniência. O mesmo sucede com as canções populares. Hoje –
queixa-se um professor de Inhambane – os alunos não dançam no âmbito das
aulas e nem querem saber disto; não é como antigamente quando na escola
cada turma tinha um grupo cultural ou pertencia a um grupo coral da escola.
A cultura aparece como um apêndice da educação.
Embora ao nível macro nacional o casamento institucional entre a cul-
tura e a educação pareça estar a ser feliz, ao nível local do distrito e de cada
escola não parece ser de idêntica sorte. E isto pode avaliar-se pelos resultados
que obtive em algumas observações e entrevistas. Segundo as entrevistas que
fiz mostra-se que, ao nível do distrito, muitas vezes se pega em alguém, por
saber dançar, pensa-se que pode chefiar a repartição que trata das questões
culturais na Direcção Distrital, não tendo porém uma formação especializada
para gerir o sector da cultura.
73
Nos últimos anos do apartheid na África do Sul, os assuntos da educação e da cultura eram admi-
nistrados pelo Department of Education and Culture. Quando em 1994 Nelson Mandela sobe ao
poder, forma o Ministry of Education e o Ministry of Arts and Culture separando assim institucio-
nalmente a gestão da cultura e educação. Esta estrutura predomina até hoje.
236 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Da mesma forma, desta feita ao nível da escola, parece haver alguns pro-
blemas em fazer interessar aos pais e membros das comunidades a ensinarem
danças e canções aos seus próprios filhos. Se por um lado os pais e encarre-
gados de educação exigem alguma remuneração pelo seu tempo e material,
por outro, algumas danças, se não forem salvas através da educação, correm
o risco de desaparecerem. Foi-me dado o exemplo da dança zore, praticada
em alguns distritos da província de Inhambane, tende a desaparecer porque
é neste momento praticada somente pelos velhos e não integram aos mais
novos para aprenderem talentos dos mais velhos.
O que também não ajuda muito na relação entre a escola e a cultura é a
atitude dos pais e dos encarregados da educação perante a dança e a música
que não incentiva a participação das crianças naquelas actividades: tocar viola
ou dançar são vistas como actividades de ‘bandidos’ ou de ‘perca de tempo’,
especialmente para as meninas, disse-me um professor.
Estes pequenos exemplos deixam-nos concluir que, embora na perspec-
tiva institucional o casamento entre a cultura e a educação ao nível nacional
esteja a ser, de certa forma feliz, já ao nível dos distritos e das escolas a ligação
institucional entre as comunidades e a escola, pelo menos na sua vertente
de ‘ligação curricular’, deixa ainda muitos desafios pela frente para que seja
também feliz. São esses desafios que são matéria do próximo ponto que vou
tratar, isto é, a possibilidade de o currículo local ser a ponte curricular entre
as culturas e a educação.

O Currículo Local como Possibilidade de Interculturalidade


Para além do casamento institucional entre as culturas e a educação, a
mais profunda porém, é aquela que se verifica ao nível dos saberes, valores
e práticas (ligação curricular). É sobre esta dimensão da possibilidade de
diálogo que me vou referir de seguida, explorando as possibilidades de
aprofundamento do diálogo entre as culturas e a educação que o currículo
local oferece ao sistema de educação. Mais adiante, vou analisar estas pos-
sibilidades de diálogo à luz de conteúdos concretos. Antes, porém, algumas
considerações históricas e avaliativas sobre o processo de introdução do
currículo local.
Pensamento engajado 237

Há sensivelmente sete anos, com a introdução do Novo Currículo para


o Ensino Básico em Moçambique, foi criado um espaço para as crianças se
confrontem nas escolas com os conteúdos locais. Estou a falar da introdu-
ção do currículo local como uma das inovações do novo currículo escolar.
Formalmente, os conteúdos locais devem ocupar um quarto (1/4), ou 20%,
do tempo total destinado para uma determinada disciplina. Quer dizer que
os professores devem trazer para a sala de aulas aqueles conteúdos que a
comunidade onde a escola está, ter-lhes-à dado a sua responsabilidade social
de ensinar esses conteúdos de uma forma também responsável.
A minha avaliação, que se segue, sobre a evolução desta inovação cultural
muito importante no nosso sistema de educação baseia-se no acompanha-
mento que venho fazendo sobre a implementação do CL nas províncias de
Sofala, Manica e Inhambane desde 200374 .
A minha primeira avaliação sobre o processo foi a de reconhecer que,
se as ideias do currículo local forem bem aplicadas, esta inovação é de facto
uma revolução cultural no nosso sistema de educação75 . Este juízo baseou-
se no facto de ser pela primeira vez que no nosso sistema cria-se um espaço
formalmente reconhecível (refiro-me aos 20% de tempo) para que conteúdos
de natureza local entrem oficialmente na escola e os alunos possam também
oficialmente aprender e serem avaliados na base deles.
Para mim o currículo local representa uma oportunidade ímpar do siste-
ma de educação fazer com o que os alunos se confrontem criticamente com

74
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo
de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum.
Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
74
Agradeço à GTZ/PEB que me permitiu, por intermédio da consultoria na implementação do cur-
rículo local nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane, ter beneficiado de estadias prolongadas
em quase todos diferentes distritos e escolas localizadas nas três províncias o que possibilitou inú-
meros encontros com os professores e gestores do sector de educação. Um agradecimento especial
à Adla Barreto que, durante muito tempo, foi o “ponto focal” do currículo local e, nesta qualidade,
“cúmplice” de muitas reflexões e ideias. Ela entregara-se ao currículo local em Moçambique, como
o teria feito (não me atrevo a dizer “mais do que teria feito”) no seu próprio país, Cabo Verde.
75
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo
de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum.
Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
238 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

os conteúdos locais, tradicionais e culturais do seu meio; é a oportunidade


que o conhecimento local e tradicional tem de revelar as suas potencialidades
de, de forma argumentativa, mostrar soluções alternativas para os problemas
modernos. Quando falo de problemas modernos refiro-me à pobreza, ao
SIDA, à nossa configuração democrática representativa, ao nosso sistema de
eleições, à nossa medicina, ao desenvolvimento da música e arte, à formas de
interpretação dos fenómenos sociais, naturais e políticos de Moçambique, à
nossa própria educação, enfim, para todas as áreas da vida social, económica
e política. O princípio é que para todas estas áreas o conhecimento local tem
propostas de soluções que podem ser estudadas na escola e confrontadas ar-
gumentativamente pelos alunos, com a mediação do professor, naturalmente.
Para garantir que isto se faça, os professores de cada escola do ensino
primário foram organizados em grupos para entrevistarem aos membros das
comunidades, aos pais e encarregados de educação, às instituições formais
locais (saúde, economia, desporto, etc.), às autoridades locais e outros inter-
venientes interessados na vida da escola. Estas entrevistas eram para aferir
os conteúdos que o INDE classificou de relevantes para a vida do aluno e
da comunidade. A ideia do INDE e, por extensão do MEC, ao introduzir
o currículo local, era de garantir que o aluno, após ter terminado o ensino
básico pudesse reinserir-se na sua comunidade sabendo fazer qualquer coisa
para a sua própria vida. Então, o termo relevante referia a esta possibilidade.
Não admira pois que, nos primeiros anos da sua implementação, quase
todos os professores e direcções pedagógicas das escolas pelo país adentro,
tivessem interpretado o currículo local reduzido ao saber fazer, ou seja, ao
conteúdo da disciplina de Ofícios (que, por coincidência foi uma das inova-
ções introduzidas com o novo currículo). As outras dimensões da educação,
nomeadamente o saber saber, o saber ser e o saber estar com os outros ficaram
praticamente ofuscadas no desenho dos conteúdos que iriam fazer parte do
currículo local. Nos primeiros anos o currículo local correu o risco de ser
reduzido a levar as crianças a aprenderem alguns ofícios como carpintaria,
fazer blocos, latoaria, fabricar potes e panelas, etc., ou seja, a aprenderem
algumas profissões que lhes permitiriam sustentar-se.
Mas há ainda um problema de maior profundidade que iria emergir a
meio do caminho da implementação: a preparação dos professores primários
Pensamento engajado 239

para este desafio, mormente para a elaboração de textos didácticos na área


do currículo local. Os professores necessitavam de apoio na transposição
didáctica, isto é, no ‘transporte’ dos conteúdos locais relevantes em matérias
‘ensináveis’ na sala de aulas. A questão é: como transportar estes conteúdos da
comunidade para a sala de aulas produzindo textos usáveis na sala de aulas?
Para esta tarefa parecia que os professores estavam abandonados à sua sorte.
Para ser efectiva a implementação do currículo local tornara-se neces-
sário, primeiro, capacitar os professores em matérias de metodologias apro-
priadas de recolha dos conteúdos locais (preparar entrevistas com os pais e
encarregados de educação, com as autoridades locais, fazer anotações das
suas observações, programar visitas às instituições locais, etc.). Em segundo
plano era necessário ajudar aos professores a construírem grelhas curriculares
onde os conteúdos locais recolhidos nas comunidades e no seio dos pais e
encarregados de educação são inseridos nas respectivas unidades didácticas
do currículo nacional. Num terceiro plano era necessário sugerir e desenvolver
sugestões metodológicas específicas de ensino dos conteúdos do currículo
local. Num quarto plano, e talvez o mais importante, tratar-se-ia de ajudar
aos professores em matérias de transposição didáctica para a elaboração de
textos didácticos relativamente ao currículo local.
O INDE, num esforço de apoiar aos professores na determinação dos
conteúdos e na sua leccionação, elaborou o Manual de Apoio ao Professor
para a Implementação do currículo local na Sala de Aulas. Neste manual
estão propostos os temas que devem fazer parte das brochuras do CL de
cada escola. Os temas propostos no manual são: tema 1: Cultura, História e
Economia Local; tema 2: Educação de Valores; tema 3: Ambiente; tema 4:
Agropecuária; tema 5: Saúde e Nutrição; e tema 6: Ofícios.
Em seguida vou analisar os conteúdos levantados em cada um dos temas.
A análise tem como base todos os esboços dos manuais do currículo local de
todos os distritos das províncias de Sofala, Inhambane e Manica. Os esbo-
ços dos manuais do currículo local que servem de base para este artigo são
da versão de Dezembro 2008. Neste momento estão em revisão linguística
e alguns conteúdos estão a ser revistos. Mas a sua tendência mantém-se e
isso não vai retirar a validade das observações que se seguem aos temas se
considerarmos a perspectiva analítica que se pretende dar nesta palestra.
240 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Cultura, História e Economia Local


Os conteúdos integrados neste tema são sobre danças, canções tradi-
cionais, jogos tradicionais, instrumentos musicais tradicionais, história local,
economia local, mitos e ritos, locais sagrados, literatura oral e artes plásticas.
Ao observar os textos deste tema nota-se que a maior parte deles dizem
respeito à História da minha Escola e História da minha Comunidade que
são agrupadas no subtema História Local; a razão mais forte da super pre-
sença destes conteúdos neste tema prende-se com o facto deles já fazerem
parte integrante do Currículo Nacional, que é obrigatório para o todo o país.
Porém, uma boa parte dos textos que reportam a história local são
escritos numa perspectiva eurocêntrica da História de Moçambique: geral-
mente, começam por dizer que o fundador ou a pessoa que deu nome a uma
certa região, cidade ou mesmo montanha são portugueses quando chegaram
àquela região sem, no entanto, fazer-se alguma referência ao nome anterior
que os próprios habitantes locais davam ou ainda dão ao mesmo local. Em
alguns casos, mesmo que o nome local esteja patente, a tendência é ver o acto
fundador no momento da escrita ou registro do nome quando o português
perguntasse aos locais como se chama esta região.
Uma outra característica observada nos textos históricos prende-se com
o facto de os professores limitarem-se a usarem uma única fonte de infor-
mação para descrever factos históricos ou sociais locais, geralmente sendo
esta fonte a que se considera ser oficial (organismos de estado ou estruturas
partidárias do partido no poder76 ); a dificuldade em diversificar as fontes
pode provir de dois problemas: por um lado a diversificação de fontes im-
plicaria deslocações e disponibilização de meios e tempo para os professores
envolvidos; a outra causa, que julgo ser a fundamental para este caso, é falta
de cultura de confrontação de fontes pelos professores; pois, sendo esta a
primeira oportunidade que se lhes oferece para elaborarem os textos de apoio

76
Numa das entrevistas, Carlitos D. Uire, na altura Chefe da Secção dos Serviços Distritais de Edu-
cação, Cultura, Juventude e Desportos de Chibabava, disse criticando a falta de diversificação das
fontes: «A comunidade não é só o régulo; a escola pertence ao cidadão». Por isso, para ele, era
importante encontrar o maior número possível de fontes para fazer os textos do currículo local: «é
preciso envolver os professores, alunos, representantes das comunidades, profissionais de diferentes
áreas, líderes políticos locais, médicos tradicionais, diferentes instituições, etc.»
Pensamento engajado 241

por eles mesmos, não tendo eles beneficiado de uma formação metodológica
adequado ao desafio do currículo local e adicionando a isto os considerandos
políticos locais – principalmente na província de Sofala onde a guerra entre os
soldados do Governo e da Renamo foi particularmente forte – os professores
quase que se sentem desamparados pelas estruturas que lhes dera a missão
trazer elementos culturais para a sala de aulas.
O segundo conteúdo mais frequente neste tema é o que descreve as
danças tradicionais locais; notei que há pouca informação relevante para a
elaboração de um texto didáctico que possa servir de base para transmitir
às novas gerações este momento cultural importantíssimo na vida cultural
das diferentes comunidades; exemplos de informações que falta são: em que
ocasião se dança? Qual é o sentido de danças? Qual é o vestuário específico?
Qual é a letra das canções? Há festivais regulares de manifestações culturais,
quando se realizam? Um outro grupo de problemas colocados neste conteú-
do diz respeito à sua especificidade nas cidades capitais das três províncias:
Beira, Chimoio e Inhambane; no caso da cidade de Chimoio, por exemplo,
os professores alegam não ter sido possível identificar as danças típicas da
Cidade de Chimoio porque as pessoas diziam que as danças não são origi-
nárias da cidade; elas são importadas de outras regiões das províncias para a
cidade, justificam. A mesma situação encontra-se na cidade da Beira onde a
justificação era que não existe uma dança típica da cidade senão que todos
executam tanto as danças provenientes dos Senas, Ndaus, como também
dos Macondes e outros.
Este caso de danças esconde por trás, penso, um outro problema fun-
damental, nomeadamente o facto de alguns os professores parecer terem
implicitamente compreendido o termo local como sendo tradicional ou
originário; tem sido difícil fazer passar a ideia de o termo local referir-se
também (portanto, incluir) às práticas, valores, conteúdos que, embora
provindo de fora daquela localidade, estejam porém a ser praticadas pelas
pessoas independentemente da sua origem. Esta porém parece não ter sido
a compreensão no seio dos alunos; na cidade do Dondo, por exemplo, numa
entrevista que fiz aos alunos perguntando sobre quais são as danças que
desejariam praticar? incluíram nas suas respostas para além das danças tradi-
cionais originárias (varimba, utse), também danças pop como o rap, kuduru,
242 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

passada, etc. Por seu lado os pais e encarregados de educação incluíram o


mapiko, uma dança originária de Cabo Delgado. Assim, todas estas danças
passam a ser considerdas «locais» sem necessariamente serem originárias de
Dondo, no nosso exemplo.
Um outro problema colocado, por exemplo em Inharrime (Inhambane),
diz respeito ao papel do currículo local (escola) na transmissão das danças
para as gerações mais novas. Quando os professores estavam a fazer as en-
trevistas sobre os grupos culturais locais, notaram que estes são integrados
por pessoas idosas e não contemplam pessoas jovens e crianças: «corre-se um
grande risco de desaparecerem as danças porque não há a sua transmissão
para os mais novos», disse-me um professor de Inharrime, vendo o currículo
local como uma grande oportunidade para a passagem do património cultural
para as gerações mais jovens.
Um outro aspecto observado nos manuais diz respeito à descrição dos
locais sagrados e de cerimónias. Nos textos que tratam deste assunto verifica-
se uma tendência de mistificação dos castigos que são aplicados para casos de
violação das regras desses lugares. Escreve-se, por exemplo, que em lugares
sagrados como Serra Vumba, Monte Chinhangowe, Monte Nhamundimu,
Monte Chitsito, Madzimbawe, não se pode falar escândalo, fazer necessi-
dades maiores e relações sexuais. Para os que transgridem essas normas,
geralmente desaparecem ou são perseguidos pelos animais e devorados ou
ficam temporariamente descontrolados.
A questão da educação musical local, que inclui também danças tradicio-
nais, é também de extrema importância; a situação nesta disciplina é dramática
porque actualmente não existe treino de professores especializados em música
e dança, não há instrumentos musicais (só havia uma guitarra numa escola de
Homoine informou-me um dos professores) e, no curricular escolar a partir
do terceiro ciclo, fala-se de notas musicais, mas não há instrumentos, só se
dá teorias. A esta dificuldade acresce-se o facto de não se incluírem, muitas
vezes, os textos das canções que acompanham as danças. Em alguns manuais
insiste-se na aprendizagem dos alunos em fabricarem os instrumentos mu-
sicais tradicionais tais como a timbila (veja-se o currículos locais do distrito
de Zavala), do ngoma ou batuque (veja-se a maioria dos currículo local dos
distritos da província de Sofala e alguns de Manica) e outros, o que é muito
Pensamento engajado 243

positivo. Em minha opinião o papel inovador da educação deveria ser mais


explorado nesta área da educação musical, seja melhorando tecnicamente o
fabrico dos instrumentos, seja inovando-os, ou ainda as letras das canções
mais reflectivas e as melodias mais instrumentalizadas.
No que diz respeito ao conteúdo economia local, os textos tendem a
descrever as profissões existentes, sem no entanto abordar analiticamente
o problema do desenvolvimento local na perspectiva política da economia,
isto é, em termos de potencialidades, oportunidades de emprego, o uso dos
recursos disponíveis, etc. A falta de focalização deste conteúdo nos aspectos
políticos da economia faz com que esta parte faça alguma confusão com o
tema Ofícios integrado no mesmo manual.
Até este momento, parece-me que as grandes ausências em termos de
conteúdos são os Jogos Tradicionais e a Literatura Oral Local. De facto, para
a área de educação física e desportos, não tenho conhecimento de estudos
sistemáticos que descrevam, num primeiro passo, as formas locais tradicionais
de fortalecimento físico e, num segundo passo, que contenham estratégias
pedagogicamente fundadas sobre a sua integração nos vários níveis do ensino
da disciplina; também faltaria aqui a promoção sistemática de uma espécie
de olimpíadas distritais, provinciais e nacionais dos jogos tradicionais o que
iria divulgar e obrigar a uma inovação das regras e dos espaços desportivos.
Em relação à literatura oral local é pena que ainda se esteja muito longe de se
coleccionar fixar em escrita os provérbios, as adivinhas, os contos e as lendas
de cada distrito; o que ainda é mais dramático é a ausência de um espaço na
educação que torne visível o talento no seio das crianças.

Educação de Valores
Os conteúdos sugeridos nos manuais (inspirados no Manual elaborado
pelo INDE) para o tema Educação de Valores dizem respeito aos princípios/
regras de conduta na comunidade, às formas de resolução pacífica de conflitos
na comunidade, às regras de trânsito (segurança rodoviária); à questões de
equidade de género, aos ritos de iniciação, às cerimónias tradicionais; aos
mitos e ritos, aos locais sagrados e às autoridades locais.
244 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Neste capítulo julgo ser mais interessante, para respeitar o âmbito desta
comunicação, concentrar-me em questões que podemos, não encontrando
uma expressão melhor, em chamar de valores morais locais (uma espécie de
ética local). A minha proposta é que esta ‘ética local’ se concentre nos valores
de integridade familiar e de respeito pelo outro seja rapaz, rapariga, adulto,
idoso, mulher, etc.
Vou abordar este tema trazendo exemplos saídos de Sofala; e aqui
faço referência particular às entrevistas realizadas no distrito de Chibabava
(mais concretamente em Muxúngwe) aos professores e a representantes da
comunidade.77 A pergunta lançada foi de saber sobre as regras básicas de
conduta que os alunos deveriam aprender na sala de aulas. As respostas
foram as seguintes:

s.ÍOFAZERSEXONOMATOPORQUEPODENÍOCAIRCHUVANODISTRITODE
Dondo informaram-me sobre a mesma norma mas com uma justifica-
ção diferente: quem fizer sexo fora de casa será devorado pelos leões);
s1UANDOHÈFALECIMENTONINGUÏMPODEIRËMACHAMBADAQUELEDIA
até ao enterro, independentemente de ser membro da família ou não
(aqui é interessante que um dos participantes precisou que o que
é proibido é pegar numa enxada, mas as lojas podem abrir e que
as pessoas da vila [Muxúngwe] não cumprem porque aqui há uma
mistura de tradições);
s.ÍOSEPODEARRASTARLENHADEPOISDARECOLHAPORQUEAPESSOAQUE
o fizer está também a puxar os espíritos maus para a sua casa. Os
alunos devem aprender esta regra para não trazerem estes espíritos
para dentro da sua casa e não serem preguiçosos;

77
Uma boa parte dos «tabus», «direitos» e, em geral, muitas das “ideias” que se seguem foram
recolhidos em entrevistas realizadas em Muxúngue (Distrito de Chibabava, Província de Sofala)
entre os dias 2 e 6 de Julho de 2007. Participaram os seguintes professores: Manuel Mucuchura da
ZIP de Chibabava-Sede, Mário Nassone da ZIP de Goonda, Gabriel Bondamar da ZIP Cudove
III-Nhango, Abrão Fopence Pundo da ZIP Nhaboa, Gonçalves Jacinto Bonera da ZIP Muxún-
gue, André Manhoca da ZIP Mangunde, Nelson Miguel da ZIP Mucheve, Jaime António da ZIP
Hamamba, Carlitos D. Uire Povo da Direcção Distrital para a área da educação, Augusto Esteves
Chaima técnico administrativo, Ema Maria da Conceição Jossias e Celeste Eugénio Cudeca, ambas
técnicas da Alfabetização e Educação de Adultos.
Pensamento engajado 245

s/SALUNOSDE#HIBABAVA 3EDEDEVEMAPRENDERQUENÍOSEDEVESEME-
ar ou fazer machamba na floresta sagrada porque saem frutos muito
grandes e podes ser apedrejado; acrescenta-se que no mesmo dia a
planta cresce e reproduz-se muito depressa [em frente à sede admi-
nistrativa de Chibabava existe uma floresta de cerca de 500 metros
quadrados que é considerada sagrada porque é lá onde se reúnem as
pessoas para fazerem cerimónias tradicionais e sacrificam animais em
preces; é nesta floresta onde é proibido fazer machamba];
s! MULHER NÍO PODE MATAR GALINHA SEM A AUTORIZAÎÍO DO MARIDO E
quando matar a galinha ela deve saber que as partes da galinha que deve
servir ao marido são o pescoço, a cabeça, a bacia, as patas [enquanto
a mulher não servir as patas ou mphalacaço ao marido significa que
ainda resta carne na panela], perna, moela e fígado; a criança come
asas, molho e tripas; a mulher come o peito;
s-ULHERNÍOPODESENTARNACADEIRAEDEVEAJOELHARAOATENDEROMA-
rido; isto é o sinal de respeito para com o seu marido;
s5MAMULHER QUANDOTIVERPARTO NÍOPODEFAZERRELAÎÜESANTESDE
sunga ndima (amarrar um fio), senão a criança apanha diarreia;
s²PROIBIDOAUMAMULHERCUMPRIMENTARAQUALQUERHOMEMNAESTRADA
porque mostra que ela está disposta a ir para o mato com este homem;
s3OBREOSDIREITOSDASMULHERESASRESPOSTASFORAMQUEELATEMDIREITO
a ser lobolada [nenhuma mulher séria sai de casa sem ser pedida por
um homem e este deve deixar dinheiro em casa dela]; a mulher tam-
bém tem o direito de ser assistida pelos pais no seu primeiro parto [o
primeiro parto deve ser em casa dos seus pais]; a mulher tem direito
à casa e à roupa oferecidas pelo marido; ela tem direito ao transporte
quando o marido vai trabalhar nas minas da África do Sul; tem direito
a permanecer na família do seu homem, mesmo que este arranje uma
outra mulher;
s5MHOMEMNÍOPODEFAZERTRABALHOCASEIROOUDOMÏSTICOELESØPODE
ajudar na machamba; o homem não pode varrer; quando o casal vai
à machamba, a mulher leva todos os instrumentos e alimentação e o
homem vai à frente com a catana. Esta regra de conduta é óbvia: trata-se
de uma divisão de trabalho num contexto onde se considera o homem
246 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

como o protector da família, neste caso como o desbravador do mato;


e isso o dispensa, de certa forma, dos trabalhos caseiros;
s5MRAPAZENTREOSEANOSDEVESABERFAZERARMADILHASDECAÎA
a animais selvagens comestíveis para trazer caril para casa e com 16
anos deve aprender a construir uma casa assim como ter uma mulher
em casa;
s5MHOMEMQUEÏDEFORADECASAVISITANTE NÍOPODEUSARCALÎÜESNA
casa dos outros;
s3OBREOSDEVERESDOHOMEMPARACOMAMULHERRESPONDEU SEQUEESTE
deve pagar lobolo, construir uma casa para a mulher, abrir machamba
(particularmente fazer matema, isto é, destroncar as árvores para que
a mulher possa cultivar), fazer despesas da casa como comprar sabão,
açúcar, pão; para além disso o homem deve atender e obedecer às
cerimónias que se realizam em casa e noutras famílias;
s®UMAPERGUNTAOQUESECONSIDERASERUMACRIANÎARESPEITOSAAS
respostas foram que é aquela que cumprimenta as pessoas/visitantes
no caminho, chega cedo à casa, aceita ser mandada, ajuda em casa nos
trabalhos domésticos, despede quando quer sair de casa, não mente,
cumpre com os recados que os pais deixam quando estiverem a sair
de casa, cumprem com os ritos de iniciação, (quando é uma menina)
não brinca muito com os rapazes, (no caso de rapaz) sabe construir
sozinho a casa/palhota;
s®PERGUNTAOQUEPODERÓAMOSCONSIDERARUMAMULHERRESPEITOSAAS
respostas foram: as que usam decentemente, saúdam as pessoas, trata
bem aos visitantes (principalmente da família do marido), dá cadeira
aos visitantes, ajoelha ou baixa a cabeça quando cruza com alguém, não
se zanga e nem ralha com o marido e os filhos, tem a casa e o quintal
sempre limpos, respeita ao marido;
s5MHOMEMRESPEITOSOÏAQUELEQUEBATEASPALMASOUJUNTAASMÍOS
em sinal de reconhecimento) quando se cruza com alguém (desconhe-
cido) e pergunta para onde é que pessoa vai, trata bem a sua esposa
(compra roupa, constrói casa, atende aos desejos da mulher), veste
decentemente, não é grosseiro com a sua esposa, não bebe todo o di-
nheiro, participa nas cerimónias da zona (por exemplo: maphale que
Pensamento engajado 247

é limpeza conjunta das campas; cerimónias de pedido de chuvas, etc.);


s0ERGUNTADOS QUE MOTIVOS DE FUNDO PODEM SER CONSIDERADOS COMO
suficientes para o divórcio as respostas foram: [1] quando o homem
apanha a sua esposa com outro homem; [2] quando a mulher ou o
homem é preguiçosa/o [3] Quando o parceiro (marido ou esposa) é
apanhado muitas vezes pelo curandeiro nas consultas (é por isso que
ao curandeiro não se deve ir sozinha/o, senão sempre acompanhado
pela/o parceira/o); [4] Quando não há crianças no lar (quando a mu-
lher não faz filhos o marido pode procurar uma segunda mulher ou
tem o direito de ser entregue uma irmã da sua mulher).

Da descrição dos tabus e deveres feita acima dois aspectos que saltam à
vista: o primeiro aspecto é que a maior parte do que se pode considerar como
sendo valores locais estão muito concentrados na convivência familiar e colec-
tiva na comunidade; poderia até aventurar dizendo que os pais e encarregados
de educação estão preocupados pela forma como a escola encarrega-se de
passar a sua normatividade e o seu conteúdo para os rapazes e raparigas que
vão à escola; não precisa de uma análise muito grande para nos darmos conta
de que, em vez de a escola promover uma atitude de confrontação racional
com estes valores (ou contravalores, como quiserem) promove sim um dis-
tanciamento, uma espécie de censura por meio da exclusão total. Então não
há espaço na escola para uma confrontação argumentativa em torno de um
conjunto de valores vistos pela comunidade como sendo importantes para a
sua harmonia. Assim, para o meu propósito actual, de pouco vale começar a
analisar cada um dos pontos mencionados acima para chegar a esta conclusão
de base: os valores veiculados na escola são diferentes dos que a comunidade
acredita e segue (ou pior que o próprio aluno, quando está fora da escola, é
obrigado a seguir). A escola fecha as suas portas a estes valores.
O segundo aspecto que não salta assim tanto à vista é uma certa confusão
que pode resultar em começar a introduzir estes aspectos e outros como os
ritos de iniciação, cerimónias tradicionais, mitos, etc. na escola. Professores
mostram-se, com alguma frequência, reticentes em relação a estes elementos
tradicionais porque acham que não se deve ensiná-los na escola justificando
senão estaríamos a estimular a sua prática, correndo o risco de trazermos
248 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

o curandeirismo para o recinto escolar. As reticências são ainda maiores


quando se trata particularmente dos ritos de iniciação porque os professores
em diversas ocasiões da sua carreira interiorizaram de que essas práticas são
humilhantes para a mulher; afinal é lá onde aprendem a submeter-se ao ho-
mem. Contra este tipo de argumentação penso que se deve por claro que a
abordagem destes aspectos tradicionais na sala de aulas não visa, em primeira
linha, e nem é a mesma coisa que ensinar e incentivar a sua prática pelos
rapazes e pelas raparigas; o objectivo pedagógico é sim que estes, ao conhe-
cerem, terão uma atitude de respeito perante aquelas práticas, e, por esta via,
não faltarão ao respeito que os pais reclamam tanto; mas ter uma atitude de
respeito não bastaria; a outra intenção educacional é a de permitir que cada
um adira a esses valores por escolha e não por uma obrigação geracional;
pois, a confrontação com estes valores na escola permite aos rapazes e às ra-
parigas poderem colocar a questão de porquê é ou deve ser assim?, questão
esta que, muitas vezes, não se lhes é deixada colocar no seio familiar; mas há
uma última razão que é a mais importante: é a que já repisei, nomeadamente
de que a escola tem o papel de inovar as nossas culturas; neste caso inovar
os valores significaria, de uma forma muito resumida, proporcionar ao aluno
as ferramentas necessárias para que ele olhe para estes valores tradicional
e procure, por si mesmo, adaptar ao contexto actual; por outras palavras, a
escola, ao inserir estes valores na sala de aulas, deve poder concentrar-se no
seu valor educativo (por exemplo, respeito para com o outro, simpatia, par-
tilha, ubuntuismo, etc.) e encontrar conteúdos mais adequados aos tempos
modernos para ensinar os mesmos valores.
Tendo em conta o argumento de que a aderência aos valores deve ser
baseada na escolha racional, sobretudo se tratando da confrontação entre
os chamados valores tradicionais e os chamados modernos veiculados pela
escola, penso que o termo educação para valores (e não educação de valores)
seria o mais adequado, sobretudo se estivermos a tratar a educação de valo-
res no quadro do currículo local; neste contexto, penso que se deve indicar
claramente de que valores tratam-se; i.e. de valores que regram a conduta
familiar em comunidades determinadas e concretas.
E, para terminar este ponto, seriam pertinentes duas observações, uma
metodológica e outra de conteúdo; estas observações têm sentido somente
Pensamento engajado 249

na perspectiva da educação para valores. A primeira: há um trabalho sério


de interpretação que deve ser feito pelos professores para poderem desco-
brir os valores. Eles não se encontram, pois, escritos em decretos e nem em
dissertações já prontas. Estes valores estão inscritos (não descritos) de forma
implícita (não explícita) nos contos, lendas, provérbios, adivinhas, nas letras
das canções, nas danças e em outras manifestações. Assim, para este tema,
deverá um forte apoio metodológico ao professor, apoio este que deve ir para
além da distribuição dos manuais.
A segunda observação (a metodológica) tem a ver com a ideia de valores
culturais tradicionais em contraste com valores culturais locais numa comuni-
dade. Entre os dois termos há certamente zonas de intercepção e zonas dife-
rentes. Valores tradicionais referem-se àqueles que são directamente ligados
à cultura predominante na zona, cujo elemento básico de classificação é a
língua que se fala (sem no entanto se limitar a isso); por outro lado, o termo
valores locais inclui todos os valores que podem ser inferidos na comunidade
em que está inserida a escola. Estes incluem certamente os valores de natureza
tradicional, mas também incluem valores que tenham sido adquiridos pelo
processo de modernização e adoptados/adaptados às condições locais. Ao
professor deve ser mostrado a importância de ele destacar esta diferenciação,
deixando para ele, entretanto, a decisão de escolha de valores.
Em relação ao tema Ambiente há pouca coisa a dizer no quadro desta
comunicação. Os conteúdos deste tema foram indicados tendo em conta mais
a pressão da agenda nacional que a agenda local. Os conteúdos indicados para
este tema são: conservação e preservação da natureza, calamidades naturais,
problemas ambientais, principais rios da zona, uso e conservação da água,
tipos de solo, vegetação, silvicultura, perigo das minas (no distrito de Guru)
e questões do saneamento do meio ambiente.
O desafio aqui será o de evitar que os conteúdos deste tema se tratem
numa perspectiva muito nacional face à falta de dados concretos para os casos
de cada localidade ou distrito. Para que este tema seja devidamente tratado
numa perspectiva cultural e local, sair do esquema quase estabelecido de que
a pobreza é responsável pela destruição do ambiente e explorar as formas
locais de preservação do ambiente natural e social. O exemplo que dei acima
de como os habitantes de Chibabava protegem a sua floresta pode servir-nos.
250 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Por certo que a floresta, sendo um centro de cerimónias tradicionais, também


é uma espécie de farmácia para os médicos tradicionais. Assim têm lógica
as medidas de protecção, mesmo que cobertas por inferências metafísicas.
Sobre os restantes temas (agro-pecuária, saúde e nutrição e ofícios) há
pouca coisa que se oferece a dizer ainda neste âmbito.

Notas Conclusivas

O propósito principal que eu quis demonstrar ao longo desta comuni-


cação foi o de explorar a possibilidade de o currículo local ser um campo de
interculturalidade, ou seja, o campo onde se criam as atitudes a as predispo-
sições básicas no futuro cidadão para um diálogo entre as culturas. Defendo
que o desenvolvimento deste diálogo entre as culturas através da educação é
a base para a construção de uma identidade nacional firme.
Concluímos também que, para além das atitudes e das predisposições
a serem criadas pela via do currículo local, o mais importante ainda é pro-
porcionar aos alunos do ensino primário a possibilidade de fazerem suas
próprias experiências com a sua cultura inicial; chamei a isso também como
um processo de vivenciar a própria cultura.
Entendi ainda que as atitudes e as experiências vivenciadas na cultura
inicial não bastam para que o aluno entre com os pés firmes no quadro do
contrato nacional. É preciso e é imperativo que ele se confronte criticamente
com os saberes, valores e práticas tradicionais. O currículo local possibilita
esta confrotação do aluno com diferentes temas expostos relevando acima
de tudo a questão porquê? do que propriamente a questão como?.
Por fim, espero ter demonstrado que as culturas devem ser a base para
a construção curricular no sistema de educação em Moçambique; mas ao
mesmo tempo quis sublinhar que o papel da educação para com as culturas
deve ser o de inovação dos vários aspectos das mesmas, desde as línguas, até
às esculturas, etc.
Essa inovação só será possível, tratei de argumentar, por via de um aluno
que já na sua fase primária é confrontado criticamente com uma educação
que chamei de cultural; esta educação visa inserir o aluno na sua tradição
Pensamento engajado 251

viva78, ponto a partir do qual o aluno tem vantagens argumentativas para


se colocar no meio de uma identidade nacional. Só assim é que teremos uma
identidade nacional que respeite as diferenças dadas pelas culturas diferentes
que compõem o mosaico deste nosso país.
252 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

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Pensamento engajado 253

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