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Ngoenha
José P. Castiano
PENSAMENTO ENGAJADO
Ensaios sobre Filosofia Africana,
Educação e Cultura Política
Editora EDUCAR
Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC)
Universidade Pedagógica
Comecemos pela imagem na capa deste livro: trata-se de uma árvore com
cerca de 250 anos de idade, 42 metros de altura, cujo nome local é Mbaua
e o científico é khya myasica. A árvore encontra-se a aproximadamente 80
Km de Quelimane, na localidade de Umbauane, Província da Zambézia em
Moçambique. Por um mero acaso ela ainda está «viva» e frondosa: esteve
prestes a ser abatida em troca de apenas 100 dólares americanos com os
quais um «empreendedor» estrangeiro queria comprá-la de um camponês
que tinha a sua casa por baixo dela. Esta árvore serve de sombra e «sala de
jantar e de estar» ao camponês. O empreendedor pretendia abater a árvore
por causa da madeira. A sua intenção era de a revender na sua pátria lon-
gínqua, algures na Ásia.
A vida desta árvore foi salva por um cidadão moçambicano engajado
que ofereceu ao camponês o equivalente aos 100 dólares... como seu salá-
rio mensal, desde que este não a vendesse e cuidasse dela, como um «bom
selvagem!».
Só assim é que podemos hoje ainda ver esta árvore frondosa a olhar-nos
através dos séculos comparando-se à figura literária Azaro, o rapaz espírito,
na novela do escritor nigeriano Ben Okri, The Famished Road. Azaro, um
menino que atravessa séculos da História da Nigéria «conversando» tanto
com os vivos quanto com os espíritos dos parentes e outros já mortos, sem
crescer e, por isso, a colocar as mesmas perguntas ingénuas e infantis em
todas as épocas; ele indaga sobre o sentido dos episódios históricos que vai
assistindo duma forma que embaraça os adultos vivos e mortos. Esta é uma
imagem similar ao Menino da Trompeta do prémio Nobel da literatura, o
alemão Günter Grass.
Pelo que a acção deste cidadão, que salvou a árvore, representa, de-
cidimos dedicar o que este acto simboliza de patriotismo e africanismo, o
Pensamento Engajado.
6 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
concêntrico numa boa parte dos artigos contidos neste livro. É um dos eixos
que escolhemos para o nosso pensamento e engajamento.
Um outro eixo temático subjacente aos artigos apresentados neste livro
é a busca de novas formas de INTERSUBJECTIVACÇÃO. Isto é, um pro-
jecto de «deconstrução» e de «construção» epistémicas da ideia de África.
Enquanto uma deconstrução epistémica, o projecto de intersubjecti-
vacção comporta duas partes: trata-se de deconstruir, por um lado, as con-
sequências que a implantação duma modernidade não negociada em África
comporta como riscos para todo o continente: Continuaremos a olhar para o
Ocidente como a fonte eterna do nosso modelo de desenvolvimento donde
pretendemos copiar as suas instituições, a sua moda, os seus valores, os seus
modelos democráticos, etc.? Substituímos Deus pelo Ocidente, quais camelos
nitzscheanos que se rendem perante os valores decadentes de um Ocidente
moribundo e desorientado? Aceitaremos simplesmente ser eternos escravos/
colonizados/globalizados de forma moderna?
Por outro lado, a deconstrução pretende revoltar-se contra um discurso
que procura nas tradições milenares moçambicanas/africanas uma panaceia,
uma caixinha mágica, donde podemos retirar soluções para os problemas que
África moderna enfrenta; queremos deconstruir um discurso que busca o
nosso futuro, como nação, deliberadamente no passado e, sobretudo, chamar
a atenção para o facto de que o passado e as tradições milenares, interessam
ao pensamento filosófico engajado, somente na medida que este passado
oferece soluções válidas para afastarmos os obstáculos à nossa Liberdade
de continuar a sonhar com a própria Liberdade e a de agir livremente em
função deste sonho milenar.
A intersubjectivacção é, ao mesmo tempo e como dissemos, um projecto
de construção epistémica no contexto africano; a construção integra duas
partes fundamentais; a primeira: procura dizer adeus ao paradigma da dico-
tomia na análise dos fenómenos sociais, políticos, culturais e económicos de
África/Moçambique; ou seja, hoje, não faz muito sentido olhar para a África
como este continente dual onde, por um lado temos a tradição que nos puxa
para trás e, num outro canto, a modernidade esperando pacientemente que a
tradição se decida a avançar, ambos numa luta conflituosa eterna, de vida ou
morte. Pretendemos dizer que esta forma (dicotómica) de olhar para o Ser
10 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
José P. Castiano e
Severino E. Ngoenha
13
eram indemnes a qualquer sanção. Esta violência social, porque é disso que
se trata, tem que ser analisada em todos os seus parâmetros. As populações
começaram a ser violentas. Podemos dizer que os miúdos da rua são violen-
tos, há assassinatos na cidade, assaltos à mão armada que culminaram em
violência-espectáculo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Ma-
cuácua. Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dólar-cracia»: a
instauração do dólar em valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dólar»,
justifica todos os meios.
Então, ao mesmo tempo que o número e a qualidade de carros e casas
de luxo aumenta na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilândia
e mesmo Portugal aumentam, que se multiplicam as viagens para Dubai,
para bronzear-se no Estoril ou para o Carnaval no Rio, o número de pobres,
de miseráveis não cessa de aumentar. O número de doentes que morrem de
malária devido à falta de saneamento de meio aumenta.
Assim, a segunda República muito depressa oscilou da democracia à
«dólar-cracia». Com a passagem da primeira à segunda República, deitou-se
fora a água suja e o bebé. Valores verdadeiros para qualquer sociedade foram
negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos.
Durante o período da primeira República nós cantámos que a linha
de ordem do nosso povo era a unidade, o trabalho e a vigilância. Podemos
perguntar se estes valores não têm todo o seu lugar no Moçambique de hoje.
Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime político? A
unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo
e o racismo não constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O
trabalho, o facto de contar com as próprias forças, num mundo de assistidos
e objecto das ajudas e caridade internacional não é um valor a cultivar? A
vigilância contra as divisões, com o perigo de recair no colonialismo, na
dominação não é um valor a cultivar e a defender?
De facto, a falta desta vigilância condena a maior parte da população,
os mais fracos, a processos que recordam muito o que era a época colonial,
mas sobretudo distância entre o Estado da sociedade. Vale a pena recordar o
debate português1 em volta da Sociedade de Geografia no fim do século XIX,
1
BIGNASCA, A., La Singolarità terribile del Colonialismo Portoghese: il Dibattito
della Società di Geografia. Roma: Armando, 1971, pp.71-82.
Pensamento engajado 19
A Questão da Legitimação
A participação nas eleições de 1994, mais do que legitimar as novas forças
políticas em presença e a nova governação nacional, era um assentimento
que ia mais em direcção da necessidade de terminar com a guerra e todas
as consequências que ele comportou em termos de acentuação da pobreza,
da fome, da imigração das populações do campo para a cidade, etc. Mas,
de nenhuma maneira, uma legitimação política. Com efeito, ninguém pode
legitimar o que não conhece, e nenhuma legitimidade é possível (legítima)
se ela não parte e não se alimenta do substrato mental, cultural e filosófico
do povo que deve supostamente governar e representar.
Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cida-
dãos moçambicanos não possuem os apetrechos intelectuais necessários
para participarem, e por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos
Pensamento engajado 23
3
Cfr. NGOENHA, S.E., Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.14.
Pensamento engajado 25
4
Cfr. NGOENHA, S.E. Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.21.
Pensamento engajado 29
A Democracia Representativa
A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parla-
mentar. Todavia, para que o parlamento seja democrático, deve respeitar
três princípios fundamentais: a tolerância, a separação dos poderes, a justiça.
Isto significa que uma democracia digna desse nome não se pode contentar
em ser uma democracia formal, cega às desigualdades materiais entre os
membros da sociedade, mas ela deve visar um objectivo concreto: a justiça
social. Podemo-nos perguntar: em que condições reina a justiça social? Isto
é uma questão difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua realização
5
Cfr. NGOENHA, S. E., Para uma reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de
Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração estatal
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.33.
Pensamento engajado 31
A Questão da Soberania
A constituição de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios
gerais ou, se quisermos, as proposições de base que orientam o conjunto de
normas jurídicas e a promulgação das leis. Trata-se de ideias ou de proposi-
ções que inspiram e orientam todos os enunciados e todos os actos do direito.
O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «Um Estado
soberano, independente e democrático sob a direcção da FRELIMO». O
artigo II define a ideologia moçambicana como Democracia Popular. O ar-
tigo III indica a Frelimo como a entidade que «supervisa a acção dos órgãos
estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os
interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV indica
os objectivos fundamentais da República: «a eliminação das estruturas de
opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes
está subjacente a extensão e reforço do poder popular democrático; a edifi-
cação de uma economia independente e a promoção do progresso cultural
e social; a defesa e consolidação da Independência e da unidade nacional;
o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação
com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra o colonialismo
e o imperialismo».
Estes artigos mostram a vocação libertária da constituição e a filosofia
prática subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituição.
A constituição da II República não renuncia ao substrato filosófico de
base e aos seus corolários de lógica jurídica. Só que o exercício deste projecto
libertário não se exercerá, doravante, através do partido Frelimo (apesar de
se reconhecer o seu papel fundamental na construção de Moçambique), mas
através de um sistema de competição entre partidos autónomos, com obri-
gação de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como
Pensamento engajado 33
Contrato Cultural
A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional.
A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade
em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades
naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito
pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela
dignidade das pessoas.
Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conhe-
ceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma
vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história,
das sociedades e das culturas.
As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia podem
e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade
38 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles
concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.
Contrato Social
A segunda República é percebida pelos moçambicanos como profun-
damente injusta.
O conceito de justiça não é e nunca foi exclusivamente político. Ain-
da menos jurídico. Ele pode ser apreendido em diferentes sentidos: ético,
metafísico-histórico (justiça imanente), religioso (transcendental), até mesmo
estético. Entre estas múltiplas acepções, não separáveis por nenhuma fron-
teira bem definida, toda uma série de ligações mais ou menos subterrâneas
se teceram durante séculos. Esta é a razão pela qual a dimensão política e
a dimensão ética estão ligadas, como bem prova John Rawls (1987) na sua
Teoria da Justiça que, há trinta anos, teve o grande mérito de dar um novo
alento à questão da filosofia política, que tinha sido transcurado depois de
Rousseau e de Kant.
Contrato Político
Sabemos da História que o processo da escravatura foi facilitado pelas
nossas divisões internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado
pelas nossas divisões; sabemos que, para neo-colonizar a África, o Ocidente,
desde o Congo até Moçambique, passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou
divisões.
Mas a Historia também nos ensina que quando fomos capazes de uni-
dade, fomos fortes e conseguimos, se não ganhar, pelo menos resistir! Eis
porque o «contrato político» que permitiu a unificação da Udenamo, Unamu
e Mani e a fundação da Frelimo tem um grande valor pragmático-político,
mas sobretudo moral.
É necessário que as diferentes forças políticas e sociais do país sejam os
principais interlocutores uns dos outros, que tenham o sentido da significação
profunda da «palavra» em termos de escuta, diálogo, espaço de reconcilia-
ção. Mas como família moçambicana, que tenhamos o sentido do segredo
Pensamento engajado 39
(prudência, cautela) familiar, isto é, do que não pode a nenhum preço ser
dito aos estrangeiros, seja eles quem forem. Isso permitiria evitar a ingerên-
cia dos que se sentem autorizados a meter o nariz nas nossas coisas privadas
(ministérios) com a pretensão de querer resolver problemas em nosso lugar.
Por conseguinte, os partidos políticos devem considerar-se adversários
e não inimigos. Devem rivalizar uns com os outros não a partir de pertenças
étnicas ou regionais, de amizades e apoios internacionais, mas de progra-
mas políticos com vista a incrementar as liberdades nacionais, os espaços
democráticos, a participação das culturas no debate civil, do nível de vida
moçambicano, etc. É indispensável criar um espaço público e uma espécie
de contratualismo moçambicano. Para isso, deve-se concretizar um múnus
de princípios, um contrato político que os governantes, independentemente
da família política a que pertençam, deverão imperativamente respeitar e
defender a todo o custo, um número de valores mesmo materiais, que não
podem ser alienados sem o consentimento explícito dos moçambicanos,
através de um referendo, por exemplo.
As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais
interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças
políticas moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscu-
tível, deveriam fazer com os povos de Moçambique uma espécie de contrato
social sobre a essência mesma da liberdade moçambicana, sobre o que não
é negociável, o que deveria constituir o fundamento normativo do Estado.
A nível de bens económicos que constituem o património nacional (portos,
caminhos de ferro, minas, a terra, etc.), de jurisdição política, espaços estri-
tamente nacionais que não são acessíveis a estrangeiros (ministérios, lugares
de defesa, de segurança, de planificação, etc.), prerrogativas ciumentamente
nacionais não cedíveis a ONG, cooperações, doadores, etc.
41
O «ESPÍRITO» DA DEMOCRACIA
7
Veja-se, por exemplo, o Manifesto Eleitoral da Frelimo onde a justificação apresentada a mobilização
do respeito pela «Unidade Nacional» são a «origem étnica, rácica, religiosa, de região» e também
«línguas». (Frelimo, Manifesto Eleitoral. Maputo, Outubro 2004, p.16).
8
Aqui fazemos referência à diferenciação adiantada por Ferdinand Tönnies entre as noções Gesells-
chaft (sociedade) e Gemeinschaft (comunidade). Os laços entre os cidadãos numa sociedade são
burocráticos (a Constituição é o último garante) e entre os membros das comunidades são sanguíneos.
Os termos «concepção cívica» e «concepção étnica» foram emprestados de Habermas do artigo
Porquê necessita a Europa de uma Constituição? In: ROCHA, A.S.E., «Europa, Cidadania e Mul-
ticulturalismo». Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, Minho, 2004, pp. 21-40.
46 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
9
Sobre esta Constituição lê-se, no preâmbulo do texto de 2004: com a Independência Nacional
«devolveram-se ao Povo moçambicano os direitos e as liberdades fundamentais».
10
No mesmo texto lê-se: «A Constituição de 1990 introduziu o Estado de direito democrático […]
para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições
multipartidárias».
11
Sobre a Constituição aprovada em 2004 diz-se que « desenvolve e aprofunda os princípios funda-
mentais do Estado moçambicano» (carácter soberano do Estado, baseado liberdade de expressão,
organização partidária e garantia de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos).
48 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
12
Cfr. BECK, U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1986. Neste livro Beck divide a «Sociedade de Riscos» em duas classes: os «afectados» e
os «ainda-não-afectados» pelos riscos, mas nenhuma delas pode evitar os seus efeitos.
13
Cfr. BECK, 1986,p.66.
50 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
14
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste
do Brasil, 2007,p.171.
Pensamento engajado 53
15
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste
do Brasil, 2007,p.172.
54 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
pela saída do homem da sua menoridade. E diz que é o próprio homem que é
o culpado da sua menoridade (selbsverschuldet). Acrescenta ainda que o lema
do iluminismo é: «tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento».
Assim, o valor máximo, que é a conquista da modernidade, é a liberdade
(«para este iluminismo porém nada mais se exige senão Liberdade» – escre-
ve Kant). Este filósofo acrescenta ainda que a liberdade fundamental é a de
fazer um «uso público» – diferentemente do «uso privado» – da razão em
todas as questões.
Em Locke, por exemplo, há valores que são prévios ao próprio contrato
social entre os cidadãos, sendo a liberdade um deles (ao lado da propriedade
e da tolerância). Ou seja, só homens livres é que podem entrar em contrato
social. Por natureza, o soberano ou o tirano tiram partes da liberdade dos
outros para poderem governar.
Um outro valor muito evocado no contexto do espírito democrático
moçambicano é a tolerância. Em muitas campanhas para a paz foi frequente
ouvir apelos para que todos os concorrentes nas lutas políticas permaneçam
«tolerantes» para com os adversários. Este valor é muito cultivado no seio
das congregações religiosas, particularmente após a guerra em Moçambi-
que. Curiosamente, porém, quase todos os escritos do iluminismo sobre a
tolerância eram dirigidos contra a intolerância da religião cristã para com o
pensar diferente.
O apelo à tolerância tem, em todo caso, a sua funcionalidade no con-
texto das democracias modernas, principalmente das democracias africanas,
algumas das quais nasceram e triunfaram após lutas armadas. Portanto após
um ambiente social de intolerância das potências colonizadoras. O que
pode, porém, incomodar ao espírito da democracia, e a medida que ela se
desenvolve como sistema e como método, não é o valor tolerância em si,
mas os seus limites. Muitos adversários políticos no contexto dos debates
democráticos parlamentares se perguntam frequentemente «até aonde pode
ir a tolerância?» Ou seja, o paradoxo deste valor é mesmo o apelo de termos
que ser tolerantes perante intolerantes: estaríamos legitimados a, em nome
da tolerância, a não tolerar os intolerantes?
Mais uma vez, o problema do exercício prático do valor tolerância
é teórico: não podemos chegar a uma definição positiva de quando é que
Pensamento engajado 61
16
NGOENHA, S.E., Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII, Porto: Ed. Salesianas,
1992.
64 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
17
DUMOUCHEL, P., Mondialisation et Philosophie de l’Histoire. In: BONIN Pierre-Yves (dir.), Mondia-
lisation: perspectives philosophiques, Laval: Les Presses de l’Université, 2001.
Pensamento engajado 65
18
LATOUCHE, S., Décoloniser l’imaginaire: la pensée créative contre l’économie de l’absurde. Paris,
Parangon, 2003.
19
Cfr. NGOENHA, S.E., O Retorno do Bom Selvagem. Uma perspectiva filosófica-africana do problema
ecológico, Edições Salesianas, Porto, 1994.
20
DUSSEL, E., L’éthique de la libération. À l’ère de la mondialisation et de l’exclusion, Paris:
L’Harmattan, 1998.
68 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
No seu livro auto-biográfico Africa, The Time has Come, Thabo Mbeki21
mostra-se um fino conhecedor da história dos movimentos panafricanos e
das filosofias políticas que subentenderam os seus diferentes movimentos.
Por isso, quando fala de African Rennaisance conecta deliberadamente o
substrato filosófico-político da nova África do Sul, com o espírito do movi-
mento de Harlem entre os anos ‘20-‘40, que mereceu da parte do filósofo
afro-americano Alain Locke, o nome de Black Rennaisance.
O pai imputativo do movimento americano, William Dubois, desde os
seus primeiros trabalhos The Philadelfia Negro, passando pelo Black Folks,
até às controversas com Booker Washington, tinha claramente demonstrado
que a questão negra era fundamentalmente política, e era a esse nível que
tinha que ser resolvida. O objectivo de Dubois era fazer com que os negros
gozassem, como os outros cidadãos, de todas as prerrogativas previstas pela
constituição americana. Mas esta passagem tinha que ser acompanhada por
uma série de medidas de descriminação positiva, susceptíveis de levar os
então negativamente descriminados a integrar a sociedade global. A posição
deboista recorda de perto a política pós-apartheid da África do Sul.
Langston Hugues, na tentativa de colmatar o maior deficit histórico-
identitário dos negros nos EUA, como aparece no Black Folks de Dubois22 ,
isto é, a necessidade de uma autónoma definição de si lança-se a procura da
sua blackness. Porém, nesta sua busca existencial ele descobre a sua twoness.
A busca de uma autodefinição de si, leva-o a cair na conta que para fazê-lo,
como os intelectuais do Renascimento Irlandês, tinha necessariamente que
passar pelo outro, pelas suas categorias linguísticas e culturais. Ele então se
dá conta que o pluralismo cultural lhe é interior. Ele poderia ter dito como
Rambow eu sou um outro. Este é o sentido profundo da sua afirmação eu
também sou a América.
O espírito que atravessa o renascimento afro-americano e o sul-africano, é
de uma busca identitária que por razões históricas e sociológicas não pode ser
exclusiva mas inclusiva, não é de separação mas de integração no respeito da
dignidade e das particularidades de cada pessoa e grupo. Este é o significado
mais profundo do conceito Ubuntu, cuja expressão iconográfica é Rainbow
21
Ed. por Thabo MBEKI, 1998.
22
DU BOIS, W. E. B., As Almas da Gente Negra, Lacerda Editores, 1999.
Pensamento engajado 71
26
Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.),
Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
27
DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.),
Vérité, Reconciliation, Réparation. Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
28
Cfr. CHARLAND, M., Prudence Plurielle. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Re-
conciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.205-215
74 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
José P. Castiano
29
Os exemplos que se seguem foram adaptados da página electrónica http:/www.algosobre.com.br
(consultada a 20 de Setembro 2007).
78 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
A filosofia emerge – e penso que não deve perder esta sua origem e na-
tureza – de uma luta com o seu oposto, o mito, encostando os argumentos
que tenham fundamentos duvidosos cada vez mais contra a própria parede.
Marx, por sua vez, desmistifica o capitalismo mostrando que este siste-
ma é uma ideologia que se baseia no carácter fetichista perante o dinheiro.
Ele descobre que, por causa do dinheiro, o homem aliena-se da sua essência
que é o trabalho. O capitalismo não é uma ordem natural da sociedade e
nem a última palavra do desenvolvimento das sociedades. É por causa deste
elemento de alienação capitalista que Marx denuncia, que hoje somos capa-
zes de ter consistência teórica na luta contra a opressão do capital global e
podemos denunciar que o liberalismo político não assenta necessariamente
numa ordem económica capitalista. Por outras palavras, Marx despertou-nos
para a ideia de que podemos ter uma democracia liberal que esteja assente
numa ordem económica mais justa que supere as injustiças inerentes ao ca-
pitalismo selvagem (i.e., sem regras que limitem o fetichismo pelo dinheiro
e pela propriedade), como o que impera hoje em Moçambique. Mostrar as
fraquezas e as contradições internas de um capitalismo selvagem deveria ser
uma batalha de qualquer que se preze ser filósofo africano engajado pela
liberdade.
Nietzsche foi o mais radical na destruição do mito. Ele denuncia a racio-
nalidade como sendo um mito da modernidade. Quer transmutar todos os
valores modernos. Para ele o Homem moderno sucumbira perante a religião
e perante o Estado, tornando-se um camelo. É preciso renascer como uma
criança que abandona toda a carga da tradição. Para ele a razão não é mais
outra coisa que a vontade pelo poder, uma ambição que a razão ocultara em
forma de iluminismo.
Nietzsche quer ver de volta o culto ao Dionísio: Zeus engendrou Dioní-
sio com Semele, uma mulher mortal. Hera, mulher de Zeus, ficou colérica e
condenou Dionísio à loucura. Desde então, Dionísio vagueia sem rumo pela
África do Norte e na Ásia Menor. Um «deus estranho» este que vagueia e
desaparece de repente. Dionísio distingue-se de todos os deuses pelo facto
de ser um deus ausente. Mas ele voltará liberto da loucura, renascido dos
mistérios da vagabundagem. Assim, o caos do Ocidente é um presságio do
regresso de Dionísio para repor a moral, a ordem e a liberdade. Para mim, um
filósofo deve desvelar tudo o que se tornara tradição: a própria racionalidade
e a tradição propriamente dita. Aliás, um filósofo deve ir muito mais além:
demonstrar que o pensamento dicotómico, que está por trás da nossa forma
82 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
José P. Castiano
local abrimos a porta ao aluno e à aluna para que eles mesmos se inspirem
na cultura local para poderem encontrar soluções localmente fundados aos
problemas globais.
Na prática, porém, para conhecer as tradições, não basta (embora seja
importante) que o aluno ou a aluna seja levado a observar factos e artefactos
na sala de aulas ou através de uma visita de estudo. É necessário que o pro-
fessor elabore textos onde descreva estes eventos históricos ou os artefactos
culturais; os textos devem ser escritos por formas que sirvam de apoio ao
próprio professor e sirvam também como meio de aprendizagem ao aluno e
à aluna. Para isso, o professor precisa de registar minuciosamente os eventos
e artefactos no acto da recolha dos conteúdos junto à comunidade e às insti-
tuições locais. O professor precisa de reunir o maior número de informações
possível, não só sobre o passado mas também sobre o presente de que ele
deve ser um testemunha atento.
Pensamos que para poder recolher as informações e registá-las correc-
tamente, o professor precisa de um apoio concertado das autoridades da
educação e das instituições do Ensino Superior, particularmente da Universi-
dade Pedagógica. Este poderia muito bem constituir também um dos campos
ainda virgem para muitas investigações dos estudantes do nível de mestrados.
Dos Perigos
num engajamento pela justiça social. Lutar pela liberdade hoje significa lutar
por uma justiça social, é o que queremos dizer. Uma educação glocal deve
estar em condições de avaliar os aspectos do passado, dos hábitos culturais,
dos saberes locais a partir do ângulo em que eles se aproximam ao ideal da
justiça social. Este é, se assim quisermos, um fim pelo qual vale a pena engajar
o nosso pensamento e engajarmo-nos.
97
A Dimensão Antropológica
Decidi subordinar esta reflexão às metamorfoses do meu percurso iden-
titário e a maneira como entrei em contacto com a minha identidade tsonga,
categoria etno-linguística intrinsecamente ligada as classificações linguísticas
e a monografia etnológica de Junod.
Eu nasci na então cidade de Lourenço Marques, de pais oriundos da
província de Gaza, Ngoenha -Tusini da parte paterna e Mondlane - Cambane
da parte materna. O estado actual das investigações da etno-história moçam-
98 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
bicana avança a hipótese de uma origem Ndau dos ngoenhas, que teriam sido
forçados a emigrar para as actuais províncias mais ao sul, sobretudo Gaza e
Maputo, em seguida aos conflitos zulo do sec. XIX que acabaram levando os
vencidos a fugirem para Moçambique e a constituírem o Império de Gaza.
A minha avó paterna, apesar de ter sempre sido idiomática e cultural-
mente uma Changana perfeita, quando tinha dois copos, metamorfoseava-
se e metia-se a cantar em Ndau. Contudo, apesar da guerra, dita civil, que
assolou o nosso pais durante anos, ela nunca quis deixar o seu Chibuto natal,
provavelmente porque nessas terras repousavam os restos mortais do seu
querido marido, Ukjafeno Ngoenha, avó que não tive a sorte de conhecer.
Assim, apesar dos esforços de toda a família ela persistiu em ficar em Chibuto
perto do seu marido.
Todavia, o fenómeno das terras pesadas acabou fazendo claudicar a sua
tenacidade; e quando se sentiu muito perto da morte tomou a última grande
decisão da sua vida, mas infelizmente foi para trocar Chibuto pelo cemitério
de Lhanguene.
O meu pai, se tivesse hoje vinte anos estaria na moda! Desde sempre tem
dois furos nas orelhas, o que significa moda para muitos jovens hoje, mas que
no passado remoto, era sinónimo de submissão aos vencedores Ngunis que
chamavam aos futuros Tsongas junianos, thongas isto é vencidos, escravos
ou mesmo cães.
Quando eu nasci, os meus pais viviam no Bairro do Aeroporto. Em
casa, a língua era obviamente o Changana, mas bem cedo o meu Changana,
como de muitas crianças da minha idade era uma mistura entre o Changana
-intra-muros- e o Ronga da socialização ambiente, gradualmente substituí-
dos pelo português devido ao factor escola e por ter ido habitar num bairro
cristão-lusofilo de São José de Lhanguene.
Nós changanas-rongas-lusofilos não tínhamos ritos de iniciação, grios,
circuncisão, e se os tínhamos, eu não os conheci. Os meus pais, cristãos
praticantes, eram também contrários aos Timambas, não acreditavam nos
feiticeiros, não frequentavam curandeiros. Breve, não fui educado no orgu-
lho de uma particular pertença identitária nem a nenhum munus axiológico
culturalmente (etnicamente) conotado. A isto contribuiu o facto que quando
a independência chegou eu tinha doze anos apenas.
Pensamento engajado 99
doze anos tornou-se minha esposa. Por acaso essa moça era Suiça – da parte
italiana e, ainda mais por acaso, entre as diferentes possibilidades que tinha
ela escolheu fazer os seus estudos universitários em Lausanne.
Junod era suíço de Neuchatel. O azar quis também que a única missão
Suiça de língua francesa - havia outra de língua alemã em Basel - tivesse sido
fundada em Lausanne.
Foi um antropólogo de Universidade de Lausanne, Gerald Berthoud,
que me levou a me interessar pela missão romande. Nunca soube se a sua
principal motivação fosse a estima que ele tinha pelo trabalho científico de
Junod, a quem ele consagrou um capítulo num dos seus livros, Antropolo-
gia Geral Teoria, ou se estava a procura de traços de um outro Berthoud
que no fim do sec. XIX de Neuchatel, de onde ambos eram oriundos, tinha
desembarcado em Moçambique fundado a missão Suíça. Alías Berthoud e
Junod são os únicos missionários cujos restos mortais repousam em Rikathla.
Apesar de existirem algumas obras e objectos, sobretudo de carácter
etomológico e etno-museológico nos depósitos e na biblioteca do museu de
etnologia de Neuchatel, os principais trabalhos de Junod encontram-se nos
arquivos de departamento missionário de Lausanne, sobejamente conhecido
entre nós, por ter sido frequentado por investigadores, como Teresa Cruz
e Silva, Alexandrino José, Janet Mondlane, Nicolas Monnier, entre outros.
Quando pela primeira vez fui ao Departamento Missionário, fui rece-
bido por um bibliotecário angolano que se mostrou interessado em receber
um investigador moçambicano, mesmo se o meu «catolicismo» e percurso
jesuíta – a universidade gregoriana onde fiz a minha tese é a Meca do saber
jesuíta – suscitou algumas perplexidades. Soube rapidamente que o traba-
lho de arquivo e de catalogação dos diferentes documentos existentes na
biblioteca era obra de um certo André Clerc, antigo missionário que depois
do seu regresso definitivo para Suiça nos anos sessenta, tinha dedicado a
esse trabalho o essencial do seu tempo. Para além de ser a principal chave
para a compreensão da particular organização dos arquivos do DM, André
Clerc passou a ter para mim uma importância ainda maior quando soube
que ele tinha sido o tutor de Eduardo Mondlane com quem manteve uma
correspondência intensa – que se pode consultar nos arquivos – quer no
período em que Mondlane esteve em Chikuki, quer no período americano
Pensamento engajado 103
passando pelo período delicado dos seus estudos na África do Sul. Por outro
lado, vim a saber que Clerc tinha sido o fundador dos miklawas onde tinham
germinado ideais nacionalistas nos jovens como Mondlane, Mocumbi, Graça
(…). Soube que Clerc era o responsável da comissão das bolsas de estudo
que permitiu a formação de um certo número dos quadros moçambicanos
do post-independência. Soube das relações estreitas que existiram, durante
a Luta de Libertação Nacional, entre a Frelimo e o DM; basta pensar que
esta estava constantemente sob vigilância da PIDE.
Um dia enquanto trabalhava na biblioteca e falava com curiosidade e
interesse do papel importante de Clerc na vida de Mondlane, de Moçambique
e da sistematização dos arquivos ouvi-me perguntar, porque não vai vê-lo?
Ele é velho mas ainda completamente lúcido.
Foi assim que vim a saber que ele estava ainda vivo.
Pedi o número de telefone e chamei imediatamente. Alô, aqui André
Daniel Clerc. Quem é o senhor? Quem era eu? Ou para dizer como Mon-
taigne, quem sou eu? Católico educado em Roma por Jesuítas, casado com
uma Suiça, membro da Universidade de Lausanne, não como estudante, mas
como professor. A minha imagem (portait) não correspondia em nada ao
que o «velho missionário», educador de gerações de moçambicanos poderia
esperar.
– Sou «moçambicano» e chamo-me Severino (…); antes que eu pudesse
terminar Clerc interrompeu-me para perguntar U wa ka mani (Donde vens
e de quem és filho ou qual é o teu apelido):
Ni wa ka Ngoenha, ni huma kapfumo (je suis un Ngoenha, je suis ori-
ginaire de Maputo).
U wa ka hina (Tu és dos nossos!). Eu acabava de descobrir, que ao lado
da minha identidade moçambicana ligada, primeira a delimitação geo-colonial
de Berlim e depois a Independência nacional mas sobretudo a minha escolha;
ao lado da minha identidade africana ligada a minha africanização em Roma
mas também a minha adesão, eu tinha uma outra identidade imputativa que
até então eu ignorava: que se declina missiologica e antropologicamente
como Tsonga.
O que é que significava e de quê (circunstâncias) e quem dependia uma
tal identidade?
104 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Junod e o Colonialismo
Entre os vários conotativos atribuíveis a Junod – missionário, antropó-
logo – a categoria mais geral, mas também mais problemática é a categoria
de colonizador. Com efeito, Junod defendia a colonização dos africanos,
ele veio para a África como colonizador. Só que colonialismo no sec. XIX
é um conceito positivo. Colonizar queria dizer libertar o negro da pobreza,
da escravatura, do islamismo, etc. Então dizer-se grande colonizador no sec.
XIX era sinónimo de grande filantropo, humanista. Os colonialistas, aliás
humanistas de hoje chamam-se doadores, ONGs, cooperantes, ...
Se o missionário era tão colonizador como o militar e o mercante, eles
diferiam contudo nos objectivos. O que diferencia Junod de António Ennes
primeiro e de Mouzinho de Albuquerque depois, é que os portugueses que-
riam colonizar Gaza de um colonialismo de exploração. Enquanto Junod
concebia a colonização da África e dos africanos por parte dos europeus
simplesmente como meio para libertar os negros do paganismo e da igno-
rância. Como a escola de Salamanca no sec. XV (Soares, Vitória) a propósito
da colonização da América, ele subordinava a Ius inventionis à Ius praedi-
canda evangelium. Era necessário que a colonização fosse rentável para as
duas partes senão seria moralmente injustificável. Esta é a razão pela qual no
conflito do fim do sec. XIX que opôs portugueses – que queriam reintroduzir
a escravatura através do xibalo – e Gaza, ele era da parte de Ngungunhana.
Este combate de Junod é ainda de grande actualidade, dado que algumas
práticas económicas e sociais de hoje (condições de trabalho e salários) levados
a cabo pelos novos «Mouzinhos» de Albuquerque, que sejam moçambica-
nos, portugueses de volta, sul-africanos ou outros agentes da globalização
económica se parecem muito com o xibalo do passado.
A diferença específica do colonialismo de Junod era a missão cristã. Foi
por razões de envagelização que ele deixa a Suiça, e atravessa fronteiras geo-
gráficas, linguísticas, culturais até chegar no que hoje é Moçambique. Todavia,
110 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
ele trazia já consigo uma certa inclinação para os estudos sociais – o que vai
muito interferir no seu trabalho de missionário -, na medida que ele fazia
parte daquelas pessoas que olhavam com uma certa angústia as transforma-
ções bruscas que se produziram na Europa em seguida à revolução industrial
e que levaram a perda de identidades locais, do folclore, de especificidades
culturais, de referências morais, etc.
Este processo de transformação era tanto mais significativo, quanto na
esteira da filosofia e da teologia românticas, Junod pensava que as identida-
des, as línguas e as culturas fossem espaços epifánicos privilegiados para a
revelação divina. Por isso, Junod chega à Moçambique com predisposição
de defender particularidades. O grande dilema é como conciliar a actividade
missionária com a actividade antropológica.
O missionário é alguém com convicções fortes, que tem «verdades» a
levar aos outros homens, povos e culturas. E em nome das suas verdades ele
intima os outros a abandonarem as suas crenças e práticas culturais inerentes.
Neste sentido o missionário é um reformador de crenças mas ao mesmo tempo
também de culturas. Como consequência, o missionário que acredita que a
sua fé pode ser difundida sem limites de fronteiras geográficas, linguísticas
e culturais, é na realidade um universalista.
O etnólogo, por sua vez, de um lado não tem verdades a transmitir, está
mais interessado a aprender das culturas que a ensinar; por outro lado está
interessado na maneira particular através da qual a humanidade dá razão a
existência por meio de uma cultura particular. Neste sentido, a pior coisa que
pode acontecer com um antropólogo é chegar a um lugar por onde tenha já
passado um missionário.
Ora, Junod – e aqui reside ambiguidade do seu trabalho – é ao mes-
mo tempo um reformador de culturas e um defensor de particularidades.
Podemos questionar a sua pretensão de ter estado, exactamente porque
missionário, numa posição privilegiada para fazer a sua inchiesta etnológica,
como podemos também questionar a pertinência epistemológica de inchiesta
antropológica que se limita unicamente a aurir informações nos já convertidos
membros da Igreja.
Mutatis mutandis devemos relevar que já na introdução da sua célebre
monografia ele afirma querer ser o mais objectivo possível, tentando render
Pensamento engajado 111
PEDUCAÇÃO E POBREZA*
José P. Castiano
A questão que pretendo tratar é esta: Nos tempos de pobreza que afec-
ta a maioria dos moçambicanos, qual pode ser a contribuição específica da
pesquisa educacional no alívio ao sofrimento dos moçambicanos (devido à
pobreza)?
E a proposta que quero defender é esta: Para que a educação contribua
realmente para o combate à pobreza é necessário que o projecto educacio-
nal assente nas necessidades materiais e espirituais das comunidades. Esta
proposta parte do pressuposto básico que a pobreza da qual a sociedade
moçambicana enferma, tem uma face material, mas também tem outra face
que é imaterial. Por consequência, a pesquisa educacional é chamada em
primeira linha a elaborar um discurso pedagógico a partir do inventário atu-
rado que deve fazer sobre as necessidades básicas de aprendizagem materiais
e imateriais tendo como centro comunidades concretas. Penso que esta é a
direcção que as linhas de pesquisa que se desenvolvem, tanto na Universidade
Pedagógica assim como em outras instituições de educação, poderiam tomar
se têm como pretensão serem úteis na luta contra a pobreza.
Se formos a falar em termos gerais, a pobreza material e a pobreza espi-
ritual, chama-nos a atenção para a necessidade de acelerar o aprofundamento
de duas «revoluções» que penso estarem a tomar seus contornos próprios
na sociedade moçambicana: uma é a revolução agrícola cujo objectivo é
eliminar a fome e a pobreza material. A outra é a revolução cultural cujo
marco fundamental é uma dupla abertura: para as novas tecnologias e para
os saberes locais. A luta contra a pobreza é apenas uma fase dum objectivo
mais amplo: o desenvolvimento de Moçambique. Mas o desenvolvimento
deve basear-se no homem moçambicano que vive em comunidades concretas.
Este deve estar apto para dominar tanto as novas tecnologias e usá-las em
prol do desenvolvimento, assim como ser capaz de beber dos saberes locais
e tradicionais que estão depositados em pessoas concretas nas comunidades
na medida em que (as tradições) são mobilizáveis para dar respostas aos
problemas inerentes à pobreza.
Para ilustrar a ligação entre a pobreza material e imaterial, permitam-me
que o faça por meio de uma história:
Durante um festival tradicional chamado «Ndaam Koya», David Millar,
membro de uma organização denominada CECIK encontrou Adongo Nso,
um velho da comunidade Gowrie-Konkwa no norte de Gana. O velho esta-
va a tocar um instrumento musical muito antigo que emitia melodias estra-
nhas, mas muito bonitas, próprias para celebrar o evento. Esta era a primeira
vez que David via aquele instrumento e escutava aquele tipo de música, não
obstante ele estar a trabalhar há muito tempo naquela mesma vila. Assim, ele
aproximou-se ao velho que lhe fez revelações interessantes:
David: Que idade tem este instrumento e há quanto tempo o tem estado a
tocar? Eu venho anualmente para estas celebrações de «Ndaam Koya», mas
nunca lhe tinha visto a tocar este instrumento!
David: Imagino que tens uma família muito grande. Quantas pessoas da tua
família sabem tocar este instrumento e quantos jovens da tua família sabem
tocar ou estão a aprender de si a usá-lo?
tuar a sua pobreza; como vê, as pessoas vêm a pobreza em várias dimensões.
Adicionando ao facto de não ter condições materiais, pode também ver-se
como uma pobreza de espiritualidade, de conhecimento e de habilidades.
31
Tradução livre minha de: MILLAR, D.; HOOFT, K.; HAVERKORT, B.; HIEMSTRA, W., An-
cient Visions and New Challenges. In: Compas Magazine for Endogenous Development. Nr. 4,
March 2001.
32
Segundo o Telejornal das 20 horas, de 17.02.2005 na Televisão de Moçambique (TVM).
116 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
para o indivíduo. Por outro lado o básico é confundido com o mínimo ou seja,
as necessidades básicas passaram a ser entendidas e aplicadas no sentido de
«o mínimo que se pode dar», de «pacote restrito e elementar de capacidades»
úteis para satisfazer as necessidades imediatas. Na aplicação dos programas
de ensino básico, o conceito de necessidades básicas passou a ter a conotação
de «programa mínimo», «conteúdos mínimos», ou ainda «padrões mínimos»
de aprendizagem. Mas partindo da ideia de que cada escola deveria ter o
seu projecto pedagógico e este deve assentar-se nas necessidades básicas da
comunidade, então e pondo a comunidade no centro da pesquisa, teremos
que ser capazes de definir o que pode ser considerado uma educação básica
para cada escola numa determinada comunidade.
O outro termo a equacionar é o de «todos». No tempo das matrículas,
as nossas comunidades e bairros quase que se dividem em duas partes: en-
tre as crianças que conseguiram a matrícula e as que vão ficar mais um ano
fora da escola; entre os pais e encarregados que conseguiram matricular os
seus filhos e educandos e aqueles que não conseguiram fazê-lo. Então aí o
termo «todos» se restringe aos poucos com lugar na escola. A pergunta é:
e os «outros» que não conseguiram entrar na escola perdem o seu direito?
Ficam desempregados? Quais são as alternativas que se lhes oferece? O sis-
tema de educação elitista que herdamos do colonialismo está desenhado por
formas a «lavarmos as mãos» para os «outros» mal o processo de matrículas
termine. Pois, após terminar o processo das matrículas, concentramo-nos
então literalmente na parte das crianças da comunidade que conseguiram
matricular-se para lhes fornecer livros, afectar ou contratar professores, etc.
Os jovens que perderam a matrícula, os adultos e as mulheres fora do sistema
escolar, ficam a espera para o outro ano. Estão condenados a não terem a
oportunidade de desenvolver as suas capacidades para o combate efectivo
à pobreza material e imaterial. A linha divisória nas comunidades e bairros
entre as pessoas nas comunidades passa a ser a escola.
Penso que aqui a pesquisa educacional tem muito a dar na luta contra
a pobreza, apontando ou reordenando as linhas de pesquisa tanto para os
que estão dentro do sistema como para os que estão de fora.
Para as crianças que estão dentro do sistema poderia formular questões
concretas que afectam a aprendizagem nas comunidades (que podem ser
118 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
33
Cfr. CASTIANO, J.P., Community-Based-Research and Education: Towards an African Approach.
In: INDILINGA 2003.
122 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
FILOSOFIA, ENSINO E
INTERSUBJECTIVACÇÃO
José P. Castiano
parece ser mais de negócio que de ócio, como disse o professor Machado da
Universidade do Minho. O desenvolvimento económico com a sua filosofia
de empreendedorismo parece estar a conquistar mais espaços na educação
em Moçambique do que a reflexão desinteressada. Uma boa vida é, hoje em
dia, aquela que procura permanentemente dar respostas mecânicas às ne-
cessidades materiais. O penso logo existo cartesiano passou a ser substituído
pelo consumo logo existo. Ninguém como o filósofo francês Gilles Lipovetsky
fundamentou a era do consumo. No seu recente livro A Felicidade Paradoxal
ele sustenta que a sociedade evoluiu para o hiperconsumismo: o indivíduo,
divorciado da política e do interesse colectivo, centra-se no prazer buscando-
o no consumo dos bens materiais. Ora, o ócio é a casa da filosofia porque é
nele que se reflecte. Pensar passou a parecer luxo e inutilidade. Terceiro, a
institucionalização da filosofia no ensino, formação e investigação parece estar
contrária à essência da própria filosofia como um pensar livre. É que assim a
filosofia passa a submeter-se aos critérios de utilidade. E neste caso ela não
tem outra saída senão ser tentada a ser uma espécie de estudo de legislação,
estudo do direito, ou como é o caso na UP, a aceitar o seu lado pragmático
criando um curso de filosofia do desenvolvimento. Filosofia começa a ficar
ao serviço do Estado desde Napoleão Bonaparte. Em vez de, com o ensino
da filosofia, se cultivar para uma cidadania crítica, cultiva-se para uma cida-
dania aparentemente engajada, significando este engajamento justificar ou
fundamentar a normatividade do Estado. Nas universidades não se ensina o
pensar senão o empreendedorismo.
Uma quarta desvantagem específica para Moçambique é a desconfiança
(ou o desejo) permanente de que filosofia aprendida seja ou uma ideológica
ou religiosa. A recente experiência de Moçambique com o ensino unilateral
da filosofia marxista e com uma literatura filosófica mais virada para o campo
libertário (Fanon, Nkrumah, Cabral, Nyerere) encontra-se ainda recalcada
nas preconcepções das pessoas que, quando ouvem falar de filosofia, não a
separam das conotações ideológicas. Por outro há a experiência do ensino
da filosofia nas escolas missionárias que leva a ligar a filosofia à religião,
confundindo-a ou reduzindo-a ao ensino da moral religiosa.
Com estas desvantagens todas é lógico que a pergunta (o que significa
o ensino da filosofia e a respectiva formação filosófica dos professores hoje?)
ganha ainda mais sentido hoje em Moçambique.
Pensamento engajado 127
Focault
O que significa, então que a filosofia profissional africana deve des-
marginalizar-se? Significa que ela deve deixar de predeterminar as condições
epistémicas pelas quais se produz um discurso para que seja considerado
como filosófico.
Michael Foucault encontra três procedimentos externos e outros três
internos na base dos quais um tipo de discurso exclui outros discursos con-
correntes. Aos procedimentos externos pertencem a interdição, a oposição
entre o racional e o louco e a oposição entre o verdadeiro e o falso (Foucault
1971,10pp.). Aos procedimentos internos de exclusão dos discursos perten-
cem o comentário, o autor e a disciplina.
Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filosofia
africana profissional deve esconjurar-se para que ela própria esteja apta para
desmarginalizar-se. A forma elementar de exclusão que os filósofos africanos
profissionais mais usam é a interdição, isto é, tirar o direito aos seus colegas
sábios de dizerem tudo e em quaisquer circunstâncias; justifica-se que não
é qualquer um que pode ser cientista e, por extensão, filósofo. Os sábios
interditos de entrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais,
etc.), embora possam contribuir lá com o seu saber. O sistema formal de
qualificações não prevê equivalências para as suas qualificações e nem os
quadros nacionais profissionais prevêem as suas qualificações. Embora uma
grande parte da sociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários
tipos de perturbações individuais e colectivas, esses sábios são interditos, na
linguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos.
Foucault chama o segundo procedimento por oposição razão e loucura:
[O] louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. A
palavra do louco é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo
verdade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-se de
excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de não ser
escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada como palavra de
louco. No entanto, diz Foucault, todo este discurso do louco não desaparece,
mas continua a provocar ruído no seio do discurso formal. Por isso, diz ele,
que é no teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a possi-
Pensamento engajado 129
Marx
forma parcial aos fenómenos sociais como este é uma forma típica de como
a burguesia capitalista tende a fazer. Se adoptarmos uma perspectiva mar-
xista, segundo o neo-marxista brasileiro Michael Löwy, esta crise de todo
um modelo da civilização ocidental e moderno capitalista. O problema é que
a classe operária mundial é actualmente duplamente explorada: de forma
clássica isto é, pela venda da sua força de trabalho em troca de um salário,
mas ao mesmo tempo pelo sistema financeiro através dos bancos que cobram
juros astronómicos. Estes juros provocam um sucessivo endividamento dos
operários que são obrigados a trabalhar cada vez mais. Portanto, trata-se de
uma crise do sistema todo e não de cada um deles. Assim também, não se
acaba com a crise com reformas senão com uma revolução total civilizacional.
Hountondji
O filósofo beniniano Hountondji interessa-nos na sua segunda fase onde
ele retrata-se da sua posição em relação ao seu conceito inicial de filosofia.
Em quanto que na primeira fase ele define a filosofia como um «conjunto
de textos escritos por africanos e considerados por eles como filosóficos»,
Hountondji da segunda fase já admite que a filosofia africana pode também
conter textos orais. Portanto, o Houndondji da segunda fase é aquele que,
não abandonando a crítica unanimista, distancia-se da sua posição inicial
admitindo implicitamente que pode haver filósofos de tradição oral.
É importante sublinhar que o projecto filosófico de Hountondji não
visava escapar ao debate sobre os conteúdos que os chamados etnofilósofos
arrolavam nas suas obras e que, de certa forma, estavam a fazer furor. Pelo
contrário ele queria, com essa definição restritiva da filosofia, evitar que o
debate sobre a identidade da filosofia africana se limitasse à ideia de que
esta só poderia nascer e desenvolver-se em volta de questões tradicionais,
e que, à semelhança da ideia geral sobre a tradição, a filosofia africana se
transformasse num pensamento de consenso e unânime a todos os africanos.
Ele queria cortar o crescimento de uma filosofia africana que tivesse uma
imagem anti-filosófica: uma que não contem em si mesma a possibilidade de
um debate crítico. Era preciso, segundo Hountondji, desmistificar a ideia de
uma África homogénea no pensamento.
Pensamento engajado 139
Para nós interessa repisar, usando Hountondji, que, ainda hoje, a ten-
tação unanimista está sempre a espreita. A filosofia profissional africana
ensinada em Moçambique pode cair nesta tentação. Mas não é tudo. O
projecto do Hountondji visava também libertar a própria filosofia africana
do debate poluído tradicionalista. O método do Hountondji foi cortar este
debate e permitir que, na filosofia africana, houvesse outras tendências que
não fossem do continente negro.
Por último Hountondji dá-nos pistas para subjectivar a filosofia africa-
na. Como fazê-lo? O próprio Hountondji não dá resposta a esta questão. A
resposta virá, no entanto, do queniano Odera Oruka.
Oruka
Sage Philosophy, um projecto iniciado por Odera Oruka, parte dos se-
guintes pressupostos básicos: [i] Que o pensamento tradicional africano, em
várias áreas, não está escrito ou transcrito; ele é veiculado de forma oral; [ii]
Tal como Platão escreveu os diálogos de Sócrates (e através deste de outros
como Thales de Mileto), ao filósofo profissional africano cabe-lhe a missão
de transcrever o pensamento filosófico tradicional. Porque na sua maioria
está de forma oral.
Estes princípios levantam, à partida também dois problemas, a saber:
o problema do critério para identificar o «sábio» que potencialmente pode
ser considerado como um filósofo; o segundo problema é o do critério ou
dos critérios para classificar um certo pensamento tradicional como sendo
filosófico.
Como pois identificar um filósofo tradicional do qual depende a escolha
da pessoa que podemos transcrever o seu pensamento para texto escrito e
comentado? Convém antes dizer que há uma atitude geral – denunciada por
Oruka – segundo a qual considera-se «sábio» a uma pessoa iletrada que vive
numa comunidade cuja maioria dos seus habitantes também é iletrada; supõe-
se também que a comunidade não seja tecnologicamente não desenvolvida.
Assim, a sobrevivência da comunidade entanto que tal, a vida espiritual e
transcendental é explicada e interpretada com a ajuda destes sábios.
140 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
que são sábias e outras comuns (recorda-se que Foucault também opinava
que em qualquer sociedade existem dois tipos de discursos: o racional e
o do senso comum). Em segundo lugar, Oruka propõe que, por questões
metodológicas, o pesquisador deve distinguir três tipos de afirmações: [i]
afirmações sábias, [ii] afirmações comuns e [iii] afirmações loucas.
Na sua opinião, o entrevistador-filósofo profissional deve agir como
um provocador, de certo modo agindo com ironia socrática, para ajudar ao
entrevistado a dar parto às suas ideias (método maiêutico). Oruka conta um
episódio que demonstra que este papel nem sempre é fácil e gratificante.
Numa das entrevistas ele perguntou sobre a morte. Enquanto um dos sábios
mostrou-se indignado com a pergunta e reagiu perguntando se Oruka queria
a sua morte, um outro, pelo contrário, respondeu dizendo que a morte é tão
boa como a vida; porque segundo ele se não morrêssemos não haveria comida
suficiente para todos e isto mostra, na sua própria opinião, a bondade de Deus
A obra de Oruka é interessante para mim por duas razões: embora
retomando o espírito principal do empreendimento da etnofilosofia (que é
procurar conteúdos filosóficos por trás dos saberes populares), Oruka no
fundo faz duas críticas fundamentais. Por um lado, nega alinhar no unani-
mismo da etnofilosofia. Por outro, ao apresentar os saberes tradicionais como
resultado de uma reelaboração individual acerca de questões fundamentais
da vida da comunidade por parte do sábio, ele critica a ideia de que os sábios
tradicionais não têm pensamento individual elaborado sobre as questões
fundamentais da vida. Oruka resiste assim à tentação unanimista da filoso-
fia africana denunciada por Hountondji, mas constituindo um projecto de
filosofia subjectiva africana, mas consequente com a realidade africana do
que o projecto do beniniano.
Conclusão
Kant, na sua informação acerca da orientação dos seus cursos no semes-
tre de Inverno de 1765/1766 apresenta-se mais desolado do que confiante
perante o ensino e a formação filosóficos.
Pensamento engajado 143
MUDANÇA PARADIGMÁTICA
NA EDUCAÇÃO
I
Este artigo tem como objectivo explorar a possibilidade de referências
teóricas na busca de respostas à seguinte questão: como e até que ponto os
resultados de pesquisas realizadas pelos docentes universitários em contextos
culturais moçambicanos são integrados nos programas de ensino, particular-
mente nos programas de formação de professores? Duma forma mais ampla a
mesma questão coloca-se nos seguintes termos: qual é o estatuto dos saberes
resultantes das pesquisas feitas pelos africanos no quadro geral da academia?
A resposta a esta pergunta parte do pressuposto da existência de duas
formas idealtípicas de integrar os saberes produzidos localmente num con-
texto mais amplo da produção científica: Uma forma de integração é como
«exemplo» e outra como «paradigma». Se abordarmos a questão em termos
do estatuto desses saberes no quadro das (re)formulações curriculares em
curso nas nossas universidades moçambicanas, significa que no primeiro caso
– isto é como «exemplo» – o saber produzido localmente pelos docentes ad-
quire o estatuto periférico, marginal, ilustrador das regularidades e das formas
(pré) estabelecidas no quadro das ciências modernas. Como diz Ngoenha35
(num dos artigos deste livro), tem um estatuto de «pedreiro». No segundo
caso – isto é como paradigma – o estatuto seria o de serem estruturantes, de
modelos, de formas, enfim de organizadores do conhecimento, e não de um
35
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
146 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
36
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
Pensamento engajado 147
II
A tese que defendemos neste artigo, é a seguinte: existem (já) sinais e
tendências de superação do estatuto periférico (exemplo, pedreiro) dos sabe-
res produzidos pelos pesquisadores africanos para um estatuto paradigmático
(central, arquitecto) na produção (pesquisa) e na disseminação (educação);
todavia, o pressuposto básico para esta mudança é o engajamento do professor-
pesquisador universitário na criação intencional e na ampliação de espaços de
intersubjectivacção dos saberes produzidos.
37
Cfr. CASTIANO, J.P., African Traditional Knowledge and Education Today. In: Hountondji,
P.J.: La Production du Savoir dans l’Afrique d’Aujourd’hui. Centre Africaine des Hautes Études.
Porto-Novo, Bénin, 2009,pp.425-456.
Pensamento engajado 149
III
Formulamos o primeiro argumento da seguinte maneira: Tendo como
pressuposto a extraversão na produção e na disseminação dos resultados de
pesquisa, o estatuto quer dos saberes produzidos por formadores-pesquisadores
africanos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional em
África produzidos pelos sábios nas comunidades permanece, para ambos casos,
periférico, marginal, de exemplo.
38
Cfr. CASTIANO, J.P.., Os Saberes Locais vão à Escola. In: Síntese, Revista da Faculda-de de Ci-
ências Sociais da UP, Maputo, 2008.
150 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
39
Este artigo foi escrito, primeiramente, no âmbito de uma comunicação apresentada no seminário
sobre Formação de Professores em Moçambique, realizado na Universidade Pedagógica em Maputo
(Maio 2008) no qual Jó Capece apresenta o tema referido no texto.
152 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
as folhas e põem-se numa bacia com água depois esfrega-se todo o corpo,
serve também para curar dores de estômago.
Nhapheraphera – serve para prevenir em caso de adulteiro, a continuação
de doenças como: febres, diarreias e tosse. Recolhe-se as folhas, lava-se e
mergulha-se num copo e os adultos tomam um copo e os adultos tomam um
copo as crianças uma colherinha.
Folha de limoeiro – serve para curar tosse. As próprias folhas fervidas be-
bendo água.
Vungute – é uma planta que trata as mulheres que tem problemas em produ-
zir leite materno. Para os homens serve para aumentar sexo. Modo de pre-
parar: nas mulheres leva-se a fruta e fura-se a mesma e pegam nos mamilos
e colocam-nos no burraco (quer dizer buraco) a mulher vai usando até sair
leite sendo duas vezes por dia. Para os homens sobe na árvore e abre bura-
quinho na fruta fixa na respectiva árvore e o rapaz que ainda não atingiu a
idade de casamento, vai subindo de manhã e a tarde para introduzir seu sexo
no buraco (6 aos 11 anos).
Raiz de papaeira – cura dores de dente. Coloca-se no dente que possui um
buraco, deve ser posto no dente que estiver a doer.
Folha de eucalipto alivia as febres fortes e malária. Junta-se as folhas de au-
calipto, da goiabeira, limoeiro e mistura-se numa panela com água que basta
e ferve-se faz-se bafo (duas vezes por dia).
Raiz de piri-piri – usa-se para curar a mordedura de cobras. Preparação: tira-
se a raiz, raspa-se e deita no recipiente de preferência copo e mistura-se com
água uma quantidade regulada e depois toma-se a água.
Raiz de rícino – serve para curar dores de dente. Preparação: leva-se a raiz
de rícino e das bananeira, pilam-se e depois juntam-se com óleo do rícino
mistura-se muito bem, coloca-se no buraco onde estiver a doer.
Kmbamcolo e Khundokundo serve para curar ferida; modo de preparar:
pila-se a raiz de khundokundo e raspa-se; a farinha é posta da ferida.
Mpaguire – serve para tirar grávida (abordo). Tira-se as folhas, lava-se e
pila-se. Põe-se no copo com água e toma-se a própria água. Evita-se usar a
mulheres que tenham grávida de dois meses ou mais se não pode morrer.
Gonadzololo – serve para dar mais potência sexual masculina. Estrai-se
(extrai-se) a raiz, lava-se, raspa-se e guarda-se e depois pila-se até ficar em
pó e guarda-se num frasco. No momento preciso tira-se uma colheirinha e
mistura-se com água e toma-se. Aconselha-se usar gonadzololo a partir dos
156 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
40 anos ou mais.
Nhanfunga – serve para dar força, vitamina, aumenta sangue as mulheres
grávidas e fortalece a mulher no momento de parto.
Ntsumbe e Nkotamo – serve para tratar as mulheres que não concebem.
Sequece – serve para curar tuberculose e tosse. Modo de preparação: tira-
se folhas e as próprias raízes, põe-se na panela com água e põe-se a ferver.
Toma-se a água fervida para adulto metade de chávena e duas colherinhas
para as crianças, sendo três vezes por dia.
Minimini – serve para prevenir conjuntivite e complicações de parto. Modo
de preparar: pode se tomar as sementes ou pilar-se mistura-se com água e
toma-se. Também pode ser usada por pessoas que não têm boa mão para
melhorar a criação.
Santo António: serve para dores de estômago e para curar cólicas (dores de
barriga) para bebé.
Texto 2: A Pescaw
(FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)
C.Naturais
3. Classe
2. Ciclo
A Pesca é uma actividade extra praticada pelas comunidades que vivem per-
to do rio. Pela natureza dos rios do distrito de Marínguè. A pesca é artesanal
e periódica. Para esta actividade a comunidade utiliza o anzol, redes, konga,
ndzize.
Os principais pescados são: peixe muni-muni, macacana e nsimbo.
6.Classe
Ciências Naturais
1.Ciclo
Vocabulário
Valor: importância
Afugentar: expulsar, tirar, correr
Questionário:
s -ENCIONE ALGUMAS PLANTAS DE VALOR ESPIRITUAL
s 4RAGA PELO MENOS TRÐS PLANTAS ESTUDADAS
Sugestões metodológicas
Propor aos alunos que tragam para a sala das aulas plantas de valor espiritual
que os pais conhecem
Visitar um lugar onde estas plantas existem.
O professor organiza o plantio das plantas em redor da escola.
Consequências
Crê-se que com estas práticas será devorado pelo leão ou leopardo.
158 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Vocabulário
Mito: justificação
Tabu: proibição
Tradição: hábito, costume
Questionário
1.O que são mitos e tabus?
2.Quais são os tabus do distritos que aprendeste?
Sugestões Metodológicas
O professor poderá recorrer a entrevista aos líderes comunitários e pessoas
mais velhas da comunidade, ou convidar alguém da comunidade para falar
sobre o tema.
Postos Administrativos:
1. Sede – com as seguintes localidades:
1.1 – Mavinga
1.2 – Zimuala
1.3 – Javane
Pensamento engajado 159
2.Divinhe
2.1 – Divinhe
2.2 – Maropanhe
2.3 – Buene
3.Chiloane
3.1 – Chiloane
3.2 – Inharingue
Comité Distrital
Secretário do Comité Distrital – 1º secretário
Secretário para Organização, Mobilização e Propaganda
Chefe do DAF
Dentro desta estrutura existe uma outra denominada Comité de Verificação
composta por 1º Secretário e 4 membros.
Comité de Zona
1º Secretário do Comité de Zona
Secretário para organização
Comité de Círculo
Secretário do Comité do Círculo
Secretário para a organização
Célula do partido
Secretário da célula
Assistentes
Composição da estrutura tradicional
1- Régulo
2- Chefes de povoação
3- Chefes de grupos de povoação
O régulo tem a sua equipa de trabalho conhecida por Sacutas destes fazem
parte os mensageiros, polícia do regulo e advogados.
Principais regulados do Distrito: Chiteve, Beia-Peia, Zimuala, Javane, Mo-
160 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
IV
Vejamos, pois, o segundo argumento: O estatuto periférico e subordi-
nado quer dos saberes produzidos por formadores no âmbito das pesquisas,
quer o que é produzido pelos professores-pesquisadores no âmbito do cur-
rículo local têm pouco impacto nas reformulações dos fundamentos das (re)
construções curriculares ao nível universitário e ao nível do Ensino Básico.
Desdobremos, também, este segundo argumento em duas partes. Na
primeira mostra-se que ainda está muito longe um impacto paradigmático dos
resultados das pesquisas dos formadores na concepção das reformas curri-
Pensamento engajado 161
ensino centralmente definido. Também notou-se que este tema não deveria
ser integrado na 5ª classe porque as crianças da 6ª classe são mais crescidas e
as da 5ª classe não; também deixou-se de lado a possibilidade de enquadrar
este tema no capítulo sobre Aparelho reprodutor da 5ª classe, porque esta
planta não serve os propósitos da reprodução; a outra possibilidade afastada
é de incluir a planta Gona Dzololo no capítulo que fala de medidas para
evitar gravidez, da 7ª classe ou ainda na disciplina das Ciências Naturais, na
6ª classe, onde existe uma unidade temática sobre plantas.
NOTA: neste caso viu-se que era importante o professor primeiro
informar-se com todos os detalhes sobre o conteúdo do tema (Gona Dzolo-
lo). Em segundo lugar o professor deve consultar os programas de ensino e
analisar os objectivos ou competências descritas no programa para decidir
sobre a inclusão ou não desta planta na sua planificação da aula. Por exem-
plo, as competências contidas no programa de Ciências Naturais (6. classe)
são: conhecer as principais plantas existentes na sua comunidade; conhecer
a importância das principais plantas da comunidade; usar plantas da comu-
nidade para resolver os problemas da vida real; conhecer as características
gerais botânicas das principais plantas da comunidade e dominar métodos
de protecção e conservação das principais plantas da comunidade42 . Depois
de estar claro sobre as competências o professor pode então decidir em que
capítulo ou tema centralmente definido pode integrar o Gona Dzololo como
um exemplo local.
Em relação ao texto sobre as pescas foi observado que é preciso localizar
mais os textos. Localizar significa fazer um texto mais interdisciplinar abran-
gendo aspectos das Ciências Socais (que costumes e hábitos estão ligados à
pesca? Quem vai geralmente à pesca? Como são distribuídas as partes do
peixe? Há peixes que têm um significado especial como por exemplo azar,
má sorte? O que se faz para que a pessoa tenha sorte na pesca? Quais são
os mitos ligados à pesca), da disciplina de Ofícios (sugerindo que os alunos
fabriquem ou tragam os instrumentos de pesca na escola como anzol, konga,
ndzize). Uma outra vertente de localizar este tema significaria colocar os no-
mes tradicionais dos instrumentos, procurar saber o significado dos nomes dos
42
MEC/INDE, Programa do Ensino Básico, 3, ciclo, 6. e 7. Classes. Maputo, Moçambique, 2003, p.496.
164 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
43
Cfr. KUNH, T.S., A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva, Ciência, S. Paulo,
Brasil, 2000,p.3.
\44
Idem, 2000,p.72.
166 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Paradigma da Objectivação
A primeira tendência, que chamo por objectivação, nasce da ideia de
que, como consequência da escravidão, da colonização e da globalização, o
Eu africano se tenha alienado a si mesmo a ponto de se tornar estranho ao
seu próprio corpo (Mbebe 2001). O discurso sobre a condição da própria
existência, a redimensão da identidade enquanto africano, são feitos a partir
do lugar que a história dita universal, elaborada a partir duma perspectiva
predominantemente do Ocidente, o reserva. É essa a base do ocidentalismo
no qual a figura do africano sofre um processo de objectivação: ele entra na
história dita universal como objecto (e não sujeito) da sua própria história. Na
historiografia o Ocidente, apresenta-se como uma posição de localização his-
tórica e científica, como o centro referencial da produção do saber de natureza
tecno-científica. O sujeito ocidental apropria-se das referências simbólicas e
tecno-científicas, incluindo as que encontrara nas colónias, reelaborando-as
e disseminando-as de acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao outro
africano. Se antes era a Antropologia que se encarregava de estudar o «ou-
tro», hoje encontramos uma certa continuidade da tendência objectivação
no chamado movimento das etno-ciências, incluindo a etnofilosofia.
Depois da independência em Moçambique a tendência de objectivação
continuou por uma série de estudos antropológicos, etnográficos em diversos
ramos das etnociências, particularmente na Etnomatemática, levados a cabo
nas diferentes instituições superiores e de pesquisa moçambicanas. Entretanto
o saber científico moderno é o único que continua a ser reconhecido na esfera
pública formal, precisamente pela sua qualidade de saber dominante. A sua
transmissão nas diferentes vertentes é legitimada pela estrutura dos cursos
ministrados em diferentes faculdades, perpetuando a condição colonial no
ensino.
Pensamento engajado 167
Paradigma da Subjectivação
A segunda referência, que chamamos de subjectivação, tenta contrapor-
se à perspectiva eurocêntrica/ocidental do discurso sobre a condição su-
balterna do africano-objecto na dita história universal, refugiando-se num
discurso do imaginário tradicional, de nostalgia em relação ao passado idílico
e de idolatria às tradições locais. Mais do que isso, busca e rebusca a sua
legitimidade em tradições muitas vezes recriadas a partir das quais pretende
elaborar significações e identidades homogeneizantes. Trata-se, desta feita, do
afrocentrismo e da filosofia ubuntu. Estas referências procuram re-centrar o
sujeito africano na sua própria História e na produção do saber de natureza
científica. O afrocentrismo e a filosofia ubuntu apresentam-se como esforços
académicos de subjectivação ou seja de retomada da perspectiva das tradições
e dos valores africanos depositados, acredita-se, nas comunidades africanas.
Ambos manifestam-se numa semântica de «autenticidade», «originalidade»,
«nossa cultura» e por aí fora.
Senghor e Alassane Ndaw, na sua visão afrocêntrica, defendem uma
posição animista do conhecedor (Cfr. Ngoenha 1992): para conhecer as
propriedades do mundo a epistemologia africana tradicional defende que o
sujeito cognoscente deve estar em união com o seu objecto, e não na posição
de um observador alheio e frio – como é no caso da epistemologia ociden-
tal. Duma posição de observador não se chega ao âmago das coisas, não se
chega ao conhecimento delas. Não é a análise do mundo, mas a união com o
mundo que nos pode levar a conhecê-lo na sua essência, numa dança eterna
de amor, pois, conhecer é captar o espírito da coisa, do objecto em causa. A
epistemologia negro-africana ignora a separação entre a “ordem do conhe-
cer” e a “ordem do ser”. O conhecimento é um ser e não só um instrumento
ao serviço do homem45 . De facto, assim se defende, é só numa relação de
amor, de sentimento, que o conhecedor revela os mistérios do seu objecto
do conhecimento, chega a compreender o sentido da existência do objecto.
A unidade, e não a separação entre o objecto e o sujeito, é aqui defendida.
No caso de Moçambique a Independência em 1975 trouxe consigo a
necessidade de reconstituir e dar uma nova direcção à produção científica.
45
Cfr. NGOENHA, S. E., O Retorno do Bom Selvagem. Edições Salesianas, Porto, 1992, p.24.
168 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Paradigma da inter-subjectivação
Passemos agora ao quarto argumento segundo a qual, a inter-subjecti-
vação constitui uma referência de superação dos paradigmas de objectivação
e da subjectivação.
Pensamento engajado 169
46
HABERMAS, J., Discurso Filosófico da Modernidade. Publicações Dom Quixote/Nova Enciclo-
pédia, Lisboa, 1998, p.277.
Pensamento engajado 171
VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA
ATRAVÉS DA EDUCAÇÂO
José P. Castiano
47
Cfr. HOUNTONDJI, P., The Struggle for Meaning. Reflections on Philosophy, Culture and De-
mocracy in Africa. Ohio University Center for International Studies, Africa Series No.78. Athens,
Ohio, 2002.
Pensamento engajado 175
48
Cfr. MASOLO, D.A., African Philosophy in Search of Identity. East African Educational Publishers. Nai-
robi, 1995.
49
Cfr. SAID, E.W., Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. Caminho das Letras, São Paulo, 1978.
Pensamento engajado 177
50
Trata-se de The Struggle for Meaning. Reflexions on Philosophy, Culture and Democracy in Afri-
ca traduzido para o inglês por John Conteh-Morgan e leva um prefácio assinado por K. Anthony
Appiah. O título original em francês leva o subtítulo Un itinéraire africain (Um itinerário africano)
como Appiah nota no seu prefácio ao livro (HOUNTONDJI, 2002,xi).
Pensamento engajado 179
racial dos portugueses. Já nos princípios do sec. XX, Blyden notava que o
resultado da educação colonial era uma criança que era metade europeia e
metade africana, uma criança em dois mundos. Isto contrariava o objectivo
mais sagrado de qualquer educação que é o de formar em pessoas aquelas
qualidades que lhe permitam mais tarde uma óptima inserção na sua própria
sociedade e cultura51 .
Em Moçambique, desde o tempo colonial até hoje, a língua portuguesa
é a língua oficial de ensino. Ela garante a ligação entre as elites económicas,
políticas e intelectuais moçambicanas com o mundo internacional. Os falantes
do português têm acesso mais facilitado aos mercados de trabalho e maiores
possibilidades de ascensão social. O português também é o meio de participa-
ção política: É a língua parlamentar, é a língua pela qual circulam os panfletos
eleitorais, etc. Dificilmente uma pessoa seria escolhida para cargos públicos
de alto nível se ela não fosse bom falante e cultor da dita língua de Camões.
Com a introdução das línguas maternas no novo currículo do ensino
básico deve estimular-se uma comunicação ‘inteligente’ com as milhões de
pessoas vivendo no interior e aprender mais das culturas locais. Efectivamen-
te, no interior de Moçambique vivem milhões de moçambicanos que mantêm
também as instituições correspondentes. O contacto com estas pessoas, so-
bretudo com os estudiosos locais, só pode ser frutífero através da sua língua.
Retornando a Hountondji. Ele escreve sobre a necessidade de apropria-
ção da herança científica universal existente e desenvolvê-la duma maneira
selectiva e independente de acordo com as nossas necessidades e programas
de desenvolvimento. Ele continua dizendo que o «vasto movimento da
apropriação» deve ser acompanhado por um processo de re-apropriação
metodológica e crítica do que é usualmente chamado de Conhecimento Local
e Tradicional. A re-apropriação seria, neste ponto de vista, uma condição
básica para a existência e o desenvolvimento de uma ciência africana que
seja responsável aos problemas específicos dos povos africanos. (Hountondji
2002,243f.)
51
Cfr. AKIMPELU, J.A., An Introduction to Philosophy of Education. The Macmillan Press, London
and Basingstoke, 1981.
180 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
52
Cfr. NGOENHA, E.S., Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica. Edições
Salesianas, Porto, 1992.p.22.
182 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
53
Cfr. CASTIANO, J. P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos: Estudo
de Casos nos Distritos de Báruè, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. Comunicação produzida
para Primeira Conferência Nacional da OSSREA em Moçambique, Maputo, 2003.
Pensamento engajado 183
CONCEPÇÕES AFRICANAS
DO SER HUMANO
Cada vez que um velho morre, é uma inteira biblioteca que se queima
Os Discursos Antropológicos
Para um filósofo dizer concepções do ser humano invoca em primeiro
lugar a antropologia, mas dado que outras antropologias nasceram no sec.
XIX ocorre precisar que se trata do que tradicionalmente se chamava an-
tropologia filosófica. Falar assim é sentir o eco da pergunta fundamental de
Kant o que é o Homem? pergunta a qual se devem subordinar quer a questão
188 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Conclusão
No interior dos três campos discursivos distintos que tomamos em
consideração - o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discursos
antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento
africano (sapiente) - parece que se possa fazer emergir um dado constante,
que é a inscrição da figura do homem africano no interior de uma polarida-
de, que opõe o indivíduo a sociedade, e a sua determinação pela afirmação
da primazia desta sobre aquela. Qualquer que seja o lugar do discurso, o
ser africano como ser comunitário, no qual a individualidade se absorve na
coesão do grupo, aparece como postulado fundamental.
Mas, por outro lado, levanta-se a questão da origem dos lugares dos
discursos. De facto, podemo-nos perguntar, em primeiro lugar, se o pensa-
mento tradicional não é construído a partir da relação ao mundo ocidental;
em segundo lugar, se o discurso proveniente da antropologia não tende a
essencializar as posturas e, a partir de lá, a idealizar um communalismo afri-
cano pensado como alternativa ao individualismo ocidental que, por sua vez,
é carregado de todas as determinações negativas; em terceiro lugar, em que
medida os discursos dos intelectuais africanos não são discursos ocidentais
assimilados e reproduzidos, a partir das suas origens imaginárias, por africanos
radicalmente ocidentalizados.
Em suma, a África, em quanto modo específico de ser humano, construiu-
se como uma espécie de reservatório de solidariedade ou de sociabilidade,
quer como solução aos problemas, próprios do Ocidente, do viver-juntos
numa sociedade individualista.
Então, a questão do lugar epistemológico da africanidade não é uma
questão de tipo genealógico ou arqueológico, mas uma questão propriamen-
te filosófica, neste sentido deve ser formulado a partir do questionamento
das posições existentes. Aliás, este questionamento releva também de uma
198 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
ENSINO DA FILOSOFIA E
POVOS AFRICANOS
54
NGOENHA, 1993, p.91.
55
NGOENHA, 1993, p.95.
208 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
esses conhecimentos eram fracos e foi essa fraqueza que fez dos africanos
vítimas predilectas de todo o tipo de esclavagistas e colonizadores. Mas ad-
mitindo que esses conhecimentos tenham ajudado os africanos do passado,
que relação existe entre esses conhecimentos e o mundo moderno?
Esta questão divide hoje os filósofos africanos em duas posições con-
trastantes: os que – como Towa, Ilungu, E. Njoh-Mouelle – defendem a
ideia de uma irredutibilidade fundamental entre as tradições africanas e a
racionalidade moderna e, em consequência, a necessidade para a África ter
a coragem de sacrificar a sua história e as suas tradições sobre o altar do
desenvolvimento.
Esta posição levanta enormes problemas de carácter antropológico,
dado que a cultura aparece como uma espécie de acessório vestimental que
se pode levianamente despir, e não uma estrutura constituinte da existên-
cia humana. Ela levanta também problemas de carácter filosófico, se como
Herder56 concebermos a cultura como a segunda natureza do homem, sem
a qual a vida do homem não é simplesmente possível.
É verdade que a cultura não tem nada de genético, que é intrinsecamente
ligada a uma determinada sociedade (Edward Tylor)57 , mas a antropologia
(Remotti) demonstrou suficientemente que mesmo se a cultura é uma es-
trutura precária e exactamente por causa da sua fragilidade e precaridade
- ligada ao facto que a cultura só ganha vida através da vida de indivíduos
que são diferentes uns dos outros, e ao facto que a simbologia da cultura
exige a priori um consenso social, que nunca se obtém completamente – as
sociedades reificam as culturas a fim de se protegerem. Por isso, a ideia de um
abandono puro e simples da cultura levanta problemas epistémicos enormes.
Outros filósofos africanos (W.E. Abraham, M.V.Tsangu Makua, O.A.
Onwubiko, P. Apostle, J.B. N’tandou, Y. Assogba, E.R. Mbaya, Tshipanga
Matala, A. M. M’bow, C. P. M. Kamala) defendem a compatibilidade entre as
tradições africanas e o desenvolvimento moderno. Eles sustentam que o que
permitiu a África de sobreviver, não obstante a escravatura e o colonialismo
56
HERDER, Ainda por uma filosofia da história para a educação da humanidade. São Paulo : Ed.
Universitarias, 1974, p.111.
57
TAYLOR, E., Culture Primitive. Paris, Seuil, 1974, p.79.
Pensamento engajado 209
a que foi sujeita, foi exactamente a vitalidade das culturas africanas. Se essa
vitalidade não se manifestou no período pós-colonial e, por conseguinte, não
contribuiu para desenvolver o continente, foi devido essencialmente às elites
políticas, que manipularam as tradições e as culturas para solidificarem as
suas posições de poder.
O interesse deste debate reside na sua dimensão crítica, na sua intros-
pecção cultural, e esta não é completamente denuda de interesse para nós.
A primeira República moçambicana (1975-1990), em nome da luta contra
o tribalismo, tinha pura e simplesmente banido as tradições e as culturas do
campo do político. A segunda República (1990-2004), sobretudo por obra
de doadores (credores), parece reabilitar as chamadas autoridades tradicio-
nais, sem um debate prévio quanto à sua capacidade de contribuir positiva
ou negativamente para o actual curso histórico.
De uma maneira mais incisiva, o debate africano interroga-se quanto à
capacidade democrática das tradições africanas onde o peso do chefe ou do
ancião impediu toda a dimensão de debate de ideias e, em consequência, do
desenvolvimento democrático.
A filosofia africana interroga-se quanto ao valor estatutário dos meca-
nismos tradicionais da transmissão do saber que, contrariamente ao modelo
democrático do sistema de educação moderno, reserva os seus conhecimentos
a uma casta de eleitos, cujo desaparecimento equivale muitas vezes à perda
definitiva do saber acumulado.
Interroga-se sobre a compatibilidade do sistema familiar africano com
as necessidades económicas modernas, dado que sob a aparência de solida-
riedade, se esconderia, de um lado, um sistema de esbanjamento que impede
a acumulação e os investimentos; e do outro, alimentaria um sistema de
parasitismo no qual boa parte dos membros da família vive sobre os ombros
dos poucos que trabalham.
Todavia, na esteira de Eboussi-Boulaga58, podemos pensar a tradição
como uma utopia crítica. Isto é, os aspectos acima mencionados relativos
às fraquezas da tradição têm que ser tomados a sério. Mas, por outro lado,
temos que pensar que alguns aspectos aporéticos da vida política e social
58
EBOUSSI-BOULAGA, La Crise du Muntu. Paris: Présence Africaine, 1979: 45 e 123.
210 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
africana de hoje deixam-se interpelar por aquilo que para o sentido comum
constituem o espírito da tradição.
O primeiro elemento é a chamada solidariedade africana. Os factos de
hoje desmentem a famosa solidariedade africana e fazem dela um mito. Os
nossos países têm uma elite económica sempre mais importante, no momento
mesmo em que o número de miseráveis progride. Mesmo nos momentos
dramáticos, não vimos da parte dos que têm mais meios algum sinal de so-
lidariedade. Os nossos ricos não só não são solidários, mas nós não vimos
emergir nem mecenas nem evergetas dedicados a participar na ajuda do
bem-estar da maioria. Apesar destes factos, nós continuamos a pensar que
o homem africano é solidário.
Se pensarmos no espírito da tradição tentando mobilizar os aspectos do
passado que podem nos ajudar na nossa aventura em direcção ao futuro (Paul
Ricoeur), podemos inferir que a solidariedade deve ser pensada como um
dever ser. Insisto, trata-se de mobilizar o espírito da tradição, o que aplicado
a este caso, quer dizer que as formas que essa solidariedade deve tomar no
quadro da vida moderna. Por conseguinte, uma defesa de um contracto so-
cial renovado, que se materializa sob forma de impostos por exemplo, pode
apelar-se às teorias clássicas do contracto, desde os sofistas até John Rawls,
passando por Hobbes, Rousseau e Locke; mas pode ser postulado a partir
do espírito das tradições africanas.
Um outro elemento que me parece fundamental é o domínio da justiça.
A iconografia envolta da justiça apresenta-nos muitas vezes a justiça confi-
gurada numa mulher com uma espada na mão. Mas a verdadeira essência
da justiça, que significa tornar possível a relação social e a vida dos indiví-
duos em sociedade, estaria melhor afigurada na imagem de uma costureira
que pega em linhas dispersas e diferentes e cose-as a fim de fazer um todo.
Quando pensamos numa sociedade como a nossa, depois dos conflitos que
conheceu, quando prestamos atenção ao tribalismo e ao racismo crescentes,
o que precisamos é o trabalho paciente e atento de uma costureira que tece,
mas fortificando as partes que cose de maneira que o pequeno incidente não
rasgue o tecido. Isto significa que é necessário fazer todo um trabalho de
carácter ético, mas que não pode prescindir de uma redistribuição de bens
materiais.
Pensamento engajado 211
59
ROLAND, N., Anthropologie juridique. Paris, Seuil, 1975.
60
DIOP, C.A., Nation nègre et culture. Paris, Présence Africaine, 1989.
61
TOURÉ, H., Les étudiants africains parlent. Revue Présence Africaine, Paris, 1953.
212 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
José P. Castiano
62
FRONET-BETTENCOURT, R.: Interculturalidade: Críticas, Diálogo e Perspectivas. Nova Har-
monia. Campestre, São Leopoldo, 2004, p.12.
Texto lido na II Conferência Nacional de Cultura realizada em 2009, Maputo.
216 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Queremos Moral!
Na preparação da II Conferência Nacional de Cultura de 2010 foram
realizadas as conferências preparatórias em todos os distritos e províncias. Os
extractos a seguir reflectem as queixas apresentadas num distrito de Sofala,
218 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
64
Cfr. MAZRUI, A., Cultural Forces in World Politics. Heinemann Portmouth, Naiorobi, Lon-
don,1990, p.7.
Pensamento engajado 221
65
NGOENHA, S.E., Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique: O Paradigmático Ques-
tionamento da Missão Suíça. Livraria Universitária, UEM, Maputo, 2000, p.30.
222 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
67 Cfr. CASTIANO, J.P., African Indigenous Knowledge in Education Today. In: HOUN-
TONDJI, P. (Ed.).: Traditional Knowledge and Modernity. Benin. 2009, pp.101-120.
226 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
68
Numa entrevista realizada em 2006 numa escola primária do distrito do Dondo, Sofala, um grupo
de pais e encarregados de educação queixava-se sobre as crianças “de hoje” dizendo que “não
respeitam aos mais velhos”. Quando perguntei quais seriam os sinais ou manifestações da falta de
respeito, em resposta, deram-me os seguintes exemplos: as crianças não dão lugar aos mais velhos
nos locais de falecimento em particular, fazem barulho quando passam pelos locais de falecimento,
não respeitam os cemitérios e outros lugares sagrados, levantam a voz quando falam com os mais
velhos, não ajudam aos mais velhos nos trabalhos de casa, etc. estes eram, para eles, os “sinais de
respeito”. Quase tudo girava em volta das necessidades dos mais velhos e pouco dizia respeito às
preocupações das crianças mesmo, como seja, o direito de brincarem, de jogarem, de serem ouvi-
das, de perguntarem, etc. é aqui onde a escola deve, para além de confrontar às crianças com uma
espécie de código de ética “do respeito aos mais velhos”, deve também introduzir a temática dos
direitos da criança tomando a partir da perspectiva tradicional.
230 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
69
SEN, A., Identidade e Violência. A Ilusão do Destino. Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2006, p.20.
70
Refiro-me ao facto de a introdução de línguas maternas no ensino básico em Moçambique ser feita
em função do desenvolvimento das competências linguísticas para o uso exclusivo do português
como língua de instrução nos níveis superiores. Na prática se está a “instrumentalizar” as línguas
maternas para a aquisição do português como finalidade.
Pensamento engajado 231
71
Cfr. FANON, F., Black Skin, White Masks. Grove Weidenfeld, New York, 1967, p.17.
72
Idem, p.84.
232 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
A quinta função das culturas que foi objecto acima é a delas servirem de
lentes de percepção e de cognição. Como dissemos, este aspecto se refere à
necessidade de introduzir os saberes locais na sala de aula. Mais uma vez, a
educação é chamada aqui não somente a ajudar ao aluno a absorver os saberes
locais mas sim ensinar este a ser crítico perante os saberes de natureza local.
Como irei desenvolver exaustivamente este aspecto no último ponto deste
artigo, basta a esta altura sublinhar que é o professor que deve poder trazer
estes saberes para a sala de aulas e para isso ele precisa de muita ajuda, não
podendo ser deixado sozinho.
O facto de ter sublinhado a importância que tem a educação no desen-
volvimento das línguas nacionais não é contraditório ao papel da educação
na construção de identidades plurais, no sentido de Amartya Sen. Bem pelo
contrário, se tomarmos em conta que a função das culturas é a de desenhar
padrões do comportamento humano (a sexta função no sentido de Ma-
zrui), quanto mais se desenvolverem as culturas singulares, mais padrões
de comportamento haverá para as nossas escolhas. O que é fundamental
é a educação ser institucionalmente o acervo das matrizes disponíveis de
escolha desses padrões do comportamento. O mais importante ainda é a
educação concentrar-se no desenvolvimento de atitudes abertas aos outros
padrões na mesma medida que confronta criticamente ao aluno com os seus
padrões locais.
A sétima e última função das culturas, a da estratificação social, é somente
visível combinada com a educação; ou seja, as pessoas, mesmo que sejam do
mesmo grupo linguístico cultural, são classificadas socialmente na base do
saber. Nas zonas urbanas e no país em geral, quando alguém termina o ensino
superior, tem já o passaporte mais facilitado para o mercado de trabalho, para
a política, para o acesso a uma boa remuneração, do que os seus concidadãos
que não fizeram um curso superior. Paradoxalmente, no entanto, é através da
educação que existe a possibilidade e a condição institucional de fazer com
que estas desigualdades sócias não coincidam com as culturas moçambicanas
e perigar assim um verdadeiro diálogo entre as culturas.
234 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Possibilidade Institucional
A história da relação institucional entre a educação e a cultura em Mo-
çambique está repleta de casamentos e divórcios. Depois da Independência de
Moçambique, mais exactamente em Fevereiro de 1976 forma-se o Ministério
de Educação e Cultura (MEC) que desdobra em Direcção Provincial de Edu-
cação e Cultura (DPEC) nas províncias e Direcções Distritais de Educação
e Cultura ao nível dos distritos. Dentro do MEC a cultura era administrada
por uma Direcção Nacional de Cultura. Este casamento institucional durou
pouco, pois, de 1977 a 2004 o MEC dissolve-se em Ministério da Educação
(MINED) e Ministério da Cultura (MINEC). Ao nível provincial e distrital
havia um desdobramento das funções de cultura e educação pelas suas res-
pectivas direcções distritais.
A partir de 2004 a cultura e a educação voltam a casar-se formando o
Ministério de Educação e Cultura (MINEC), voltando, portanto, ao modelo
de 1976; da mesma forma a gestão do ensino superior regressa para o MI-
NEC. Ao nível das províncias criam-se as DPECs e, ao nível dos distritos
criam-se primeiro os Serviços Distritais de Tecnologia, Juventude, Cultura e
Educação que cobrem as áreas da juventude, desportos, ciência, tecnologia e
Pensamento engajado 235
Da mesma forma, desta feita ao nível da escola, parece haver alguns pro-
blemas em fazer interessar aos pais e membros das comunidades a ensinarem
danças e canções aos seus próprios filhos. Se por um lado os pais e encarre-
gados de educação exigem alguma remuneração pelo seu tempo e material,
por outro, algumas danças, se não forem salvas através da educação, correm
o risco de desaparecerem. Foi-me dado o exemplo da dança zore, praticada
em alguns distritos da província de Inhambane, tende a desaparecer porque
é neste momento praticada somente pelos velhos e não integram aos mais
novos para aprenderem talentos dos mais velhos.
O que também não ajuda muito na relação entre a escola e a cultura é a
atitude dos pais e dos encarregados da educação perante a dança e a música
que não incentiva a participação das crianças naquelas actividades: tocar viola
ou dançar são vistas como actividades de ‘bandidos’ ou de ‘perca de tempo’,
especialmente para as meninas, disse-me um professor.
Estes pequenos exemplos deixam-nos concluir que, embora na perspec-
tiva institucional o casamento entre a cultura e a educação ao nível nacional
esteja a ser, de certa forma feliz, já ao nível dos distritos e das escolas a ligação
institucional entre as comunidades e a escola, pelo menos na sua vertente
de ‘ligação curricular’, deixa ainda muitos desafios pela frente para que seja
também feliz. São esses desafios que são matéria do próximo ponto que vou
tratar, isto é, a possibilidade de o currículo local ser a ponte curricular entre
as culturas e a educação.
74
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo
de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum.
Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
74
Agradeço à GTZ/PEB que me permitiu, por intermédio da consultoria na implementação do cur-
rículo local nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane, ter beneficiado de estadias prolongadas
em quase todos diferentes distritos e escolas localizadas nas três províncias o que possibilitou inú-
meros encontros com os professores e gestores do sector de educação. Um agradecimento especial
à Adla Barreto que, durante muito tempo, foi o “ponto focal” do currículo local e, nesta qualidade,
“cúmplice” de muitas reflexões e ideias. Ela entregara-se ao currículo local em Moçambique, como
o teria feito (não me atrevo a dizer “mais do que teria feito”) no seu próprio país, Cabo Verde.
75
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo
de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum.
Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
238 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
76
Numa das entrevistas, Carlitos D. Uire, na altura Chefe da Secção dos Serviços Distritais de Edu-
cação, Cultura, Juventude e Desportos de Chibabava, disse criticando a falta de diversificação das
fontes: «A comunidade não é só o régulo; a escola pertence ao cidadão». Por isso, para ele, era
importante encontrar o maior número possível de fontes para fazer os textos do currículo local: «é
preciso envolver os professores, alunos, representantes das comunidades, profissionais de diferentes
áreas, líderes políticos locais, médicos tradicionais, diferentes instituições, etc.»
Pensamento engajado 241
por eles mesmos, não tendo eles beneficiado de uma formação metodológica
adequado ao desafio do currículo local e adicionando a isto os considerandos
políticos locais – principalmente na província de Sofala onde a guerra entre os
soldados do Governo e da Renamo foi particularmente forte – os professores
quase que se sentem desamparados pelas estruturas que lhes dera a missão
trazer elementos culturais para a sala de aulas.
O segundo conteúdo mais frequente neste tema é o que descreve as
danças tradicionais locais; notei que há pouca informação relevante para a
elaboração de um texto didáctico que possa servir de base para transmitir
às novas gerações este momento cultural importantíssimo na vida cultural
das diferentes comunidades; exemplos de informações que falta são: em que
ocasião se dança? Qual é o sentido de danças? Qual é o vestuário específico?
Qual é a letra das canções? Há festivais regulares de manifestações culturais,
quando se realizam? Um outro grupo de problemas colocados neste conteú-
do diz respeito à sua especificidade nas cidades capitais das três províncias:
Beira, Chimoio e Inhambane; no caso da cidade de Chimoio, por exemplo,
os professores alegam não ter sido possível identificar as danças típicas da
Cidade de Chimoio porque as pessoas diziam que as danças não são origi-
nárias da cidade; elas são importadas de outras regiões das províncias para a
cidade, justificam. A mesma situação encontra-se na cidade da Beira onde a
justificação era que não existe uma dança típica da cidade senão que todos
executam tanto as danças provenientes dos Senas, Ndaus, como também
dos Macondes e outros.
Este caso de danças esconde por trás, penso, um outro problema fun-
damental, nomeadamente o facto de alguns os professores parecer terem
implicitamente compreendido o termo local como sendo tradicional ou
originário; tem sido difícil fazer passar a ideia de o termo local referir-se
também (portanto, incluir) às práticas, valores, conteúdos que, embora
provindo de fora daquela localidade, estejam porém a ser praticadas pelas
pessoas independentemente da sua origem. Esta porém parece não ter sido
a compreensão no seio dos alunos; na cidade do Dondo, por exemplo, numa
entrevista que fiz aos alunos perguntando sobre quais são as danças que
desejariam praticar? incluíram nas suas respostas para além das danças tradi-
cionais originárias (varimba, utse), também danças pop como o rap, kuduru,
242 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Educação de Valores
Os conteúdos sugeridos nos manuais (inspirados no Manual elaborado
pelo INDE) para o tema Educação de Valores dizem respeito aos princípios/
regras de conduta na comunidade, às formas de resolução pacífica de conflitos
na comunidade, às regras de trânsito (segurança rodoviária); à questões de
equidade de género, aos ritos de iniciação, às cerimónias tradicionais; aos
mitos e ritos, aos locais sagrados e às autoridades locais.
244 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Neste capítulo julgo ser mais interessante, para respeitar o âmbito desta
comunicação, concentrar-me em questões que podemos, não encontrando
uma expressão melhor, em chamar de valores morais locais (uma espécie de
ética local). A minha proposta é que esta ‘ética local’ se concentre nos valores
de integridade familiar e de respeito pelo outro seja rapaz, rapariga, adulto,
idoso, mulher, etc.
Vou abordar este tema trazendo exemplos saídos de Sofala; e aqui
faço referência particular às entrevistas realizadas no distrito de Chibabava
(mais concretamente em Muxúngwe) aos professores e a representantes da
comunidade.77 A pergunta lançada foi de saber sobre as regras básicas de
conduta que os alunos deveriam aprender na sala de aulas. As respostas
foram as seguintes:
s .ÍO FAZER SEXO NO MATO PORQUE PODE NÍO CAIR CHUVA NO DISTRITO DE
Dondo informaram-me sobre a mesma norma mas com uma justifica-
ção diferente: quem fizer sexo fora de casa será devorado pelos leões);
s 1UANDO HÈ FALECIMENTO NINGUÏM PODE IR Ë MACHAMBA DAQUELE DIA
até ao enterro, independentemente de ser membro da família ou não
(aqui é interessante que um dos participantes precisou que o que
é proibido é pegar numa enxada, mas as lojas podem abrir e que
as pessoas da vila [Muxúngwe] não cumprem porque aqui há uma
mistura de tradições);
s .ÍO SE PODE ARRASTAR LENHA DEPOIS DA RECOLHA PORQUE A PESSOA QUE
o fizer está também a puxar os espíritos maus para a sua casa. Os
alunos devem aprender esta regra para não trazerem estes espíritos
para dentro da sua casa e não serem preguiçosos;
77
Uma boa parte dos «tabus», «direitos» e, em geral, muitas das “ideias” que se seguem foram
recolhidos em entrevistas realizadas em Muxúngue (Distrito de Chibabava, Província de Sofala)
entre os dias 2 e 6 de Julho de 2007. Participaram os seguintes professores: Manuel Mucuchura da
ZIP de Chibabava-Sede, Mário Nassone da ZIP de Goonda, Gabriel Bondamar da ZIP Cudove
III-Nhango, Abrão Fopence Pundo da ZIP Nhaboa, Gonçalves Jacinto Bonera da ZIP Muxún-
gue, André Manhoca da ZIP Mangunde, Nelson Miguel da ZIP Mucheve, Jaime António da ZIP
Hamamba, Carlitos D. Uire Povo da Direcção Distrital para a área da educação, Augusto Esteves
Chaima técnico administrativo, Ema Maria da Conceição Jossias e Celeste Eugénio Cudeca, ambas
técnicas da Alfabetização e Educação de Adultos.
Pensamento engajado 245
s /S ALUNOS DE #HIBABAVA
3EDE DEVEM APRENDER QUE NÍO SE DEVE SEME-
ar ou fazer machamba na floresta sagrada porque saem frutos muito
grandes e podes ser apedrejado; acrescenta-se que no mesmo dia a
planta cresce e reproduz-se muito depressa [em frente à sede admi-
nistrativa de Chibabava existe uma floresta de cerca de 500 metros
quadrados que é considerada sagrada porque é lá onde se reúnem as
pessoas para fazerem cerimónias tradicionais e sacrificam animais em
preces; é nesta floresta onde é proibido fazer machamba];
s ! MULHER NÍO PODE MATAR GALINHA SEM A AUTORIZAÎÍO DO MARIDO E
quando matar a galinha ela deve saber que as partes da galinha que deve
servir ao marido são o pescoço, a cabeça, a bacia, as patas [enquanto
a mulher não servir as patas ou mphalacaço ao marido significa que
ainda resta carne na panela], perna, moela e fígado; a criança come
asas, molho e tripas; a mulher come o peito;
s -ULHER NÍO PODE SENTAR NA CADEIRA E DEVE AJOELHAR AO ATENDER O MA-
rido; isto é o sinal de respeito para com o seu marido;
s 5MA MULHER QUANDO TIVER PARTO NÍO PODE FAZER RELAÎÜES ANTES DE
sunga ndima (amarrar um fio), senão a criança apanha diarreia;
s ² PROIBIDO A UMA MULHER CUMPRIMENTAR A QUALQUER HOMEM NA ESTRADA
porque mostra que ela está disposta a ir para o mato com este homem;
s 3OBRE OS DIREITOS DAS MULHERES AS RESPOSTAS FORAM QUE ELA TEM DIREITO
a ser lobolada [nenhuma mulher séria sai de casa sem ser pedida por
um homem e este deve deixar dinheiro em casa dela]; a mulher tam-
bém tem o direito de ser assistida pelos pais no seu primeiro parto [o
primeiro parto deve ser em casa dos seus pais]; a mulher tem direito
à casa e à roupa oferecidas pelo marido; ela tem direito ao transporte
quando o marido vai trabalhar nas minas da África do Sul; tem direito
a permanecer na família do seu homem, mesmo que este arranje uma
outra mulher;
s 5M HOMEM NÍO PODE FAZER TRABALHO CASEIRO OU DOMÏSTICO ELE SØ PODE
ajudar na machamba; o homem não pode varrer; quando o casal vai
à machamba, a mulher leva todos os instrumentos e alimentação e o
homem vai à frente com a catana. Esta regra de conduta é óbvia: trata-se
de uma divisão de trabalho num contexto onde se considera o homem
246 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Da descrição dos tabus e deveres feita acima dois aspectos que saltam à
vista: o primeiro aspecto é que a maior parte do que se pode considerar como
sendo valores locais estão muito concentrados na convivência familiar e colec-
tiva na comunidade; poderia até aventurar dizendo que os pais e encarregados
de educação estão preocupados pela forma como a escola encarrega-se de
passar a sua normatividade e o seu conteúdo para os rapazes e raparigas que
vão à escola; não precisa de uma análise muito grande para nos darmos conta
de que, em vez de a escola promover uma atitude de confrontação racional
com estes valores (ou contravalores, como quiserem) promove sim um dis-
tanciamento, uma espécie de censura por meio da exclusão total. Então não
há espaço na escola para uma confrontação argumentativa em torno de um
conjunto de valores vistos pela comunidade como sendo importantes para a
sua harmonia. Assim, para o meu propósito actual, de pouco vale começar a
analisar cada um dos pontos mencionados acima para chegar a esta conclusão
de base: os valores veiculados na escola são diferentes dos que a comunidade
acredita e segue (ou pior que o próprio aluno, quando está fora da escola, é
obrigado a seguir). A escola fecha as suas portas a estes valores.
O segundo aspecto que não salta assim tanto à vista é uma certa confusão
que pode resultar em começar a introduzir estes aspectos e outros como os
ritos de iniciação, cerimónias tradicionais, mitos, etc. na escola. Professores
mostram-se, com alguma frequência, reticentes em relação a estes elementos
tradicionais porque acham que não se deve ensiná-los na escola justificando
senão estaríamos a estimular a sua prática, correndo o risco de trazermos
248 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Notas Conclusivas
LITERATURA I
LITERATURA II