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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Vasco e Gonçalo

... No entanto, aprecia realmente aquele jogo ... Num movimento preciso e seguro
Margarida estende as cartas na mesa em carreira, viradas para baixo, para que cada um
levante uma. Cabe a Miguel ser o primeiro dealer ... Costuma apelidá-lo para si de “Um
concentrado de Vida!” (pensa que está aí grande parte da explicação para que o poker
exerça um efeito de atracção tão forte sobre aquelas crianças e adolescentes).
Concentrado de vida, é certo, mas particularmente de vida moderna: é possível entrar,
sair e voltar a entrar quando se quiser, o número de jogadores é indefinido, e pode-se
participar com graus diversíssimos de atenção e empenho. ... Mas sabe que esta visão é
também uma sua racionalização ... o poker simula muito razoavelmente o modo como
geralmente está na vida. Algumas pessoas sempre por perto, realizando, no entanto,
actividades diversas quando bem entendem, em mundos diferentes, que não têm
forçosamente que se articular, e trocando de mundos com frequência, e sempre que lhes
apetece, sem que se perturbem por aí e além ... Miguel distribui do baralho duas cartas a
cada um dos jogadores e coloca na mesa cinco cartas viradas para baixo mais o monte
de cartas que sobram, numa sequência e disposição escrupulosamente segundo as
regras. Margarida assim o exige ... E naqueles pókeres de Várzea joga-se realmente a
vida (sorri para si) ... Ao vencedor – e esse é o único valor em disputa, para além do
prestígio e prazer da vitória – é atribuído um dia inteiro de total autoridade sobre a PS2
instalada na sala. João, quando vence, sede rotativamente os seus direitos aos poucos
que realmente estão interessados em usufruí-los. O mesmo acontece com Rita e
Margarida. Quanto aos outros, as disputas são sérias ... Para João acaba por ser também
importante ganhar de vez em quando para poder exercer uma influência pacificadora e
tranquilizante. Usa do sentido de equidade para que os mais novos, que quase nunca
ganham, também tenham rotativamente os seus dias de jurisdição sobre a PS2. Procura,
somente, garantir a transparência de todo o processo, já que a justiça é inalcançável
porque não existe. ... Todos, excepto Margarida, acompanham a aposta big blind de
Vasco, que está dois lugares à esquerda de Miguel. Margarida, à direita deste, deita as
suas cartas para cima do baralho e sai da jogada. Utiliza, como sempre, critérios
estritamente racionais. Não tem o hábito de tentar ganhar com bluff. A sua expressão
tranquila, de conformismo perante uma má mão, assim o demonstra mais uma vez. João
não se lembra de Margarida alguma vez ter ganho as fichas de uma mesa sem ter que

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mostrar o seu jogo. ... É como no resto da vida ... quando alguém pensa que descobriu
as boas regras, normas, leis, que garantem a aplicação generalizada da justiça, está
apenas a justificar, quase sempre inconscientemente, a primazia dos interesses do Eu
sobre os do Outro. É preferível ficarmo-nos por um objectivo menos “ambicioso”, como
no poker, que é o de simplesmente todos conhecerem as regras e estarem-lhes sujeitos
por igual, e assumir-se à partida – e contar com isso, não fechar os olhos – que a
injustiça sobrevirá. Esta será inevitável, como sempre, porque a sorte e o azar sempre se
distribuirão inexoravelmente em proporções desiguais. ... Miguel vira as primeiras três
cartas da mesa. Várias expressões faciais diferentes se apresentam na mesa. Todas
tentando esconder as verdadeiras emoções por trás. Gonçalo, à sua esquerda, faz a
aposta mínima que lhe é permitida, no que é acompanhado pelo resto da roda em jogo
até, de novo, Miguel. Este fica uns segundos em silêncio, olhando para todos em jeito
de desafio. João percebe que vem lá algo que vai animar a jogada. ... Tal como no resto
da vida, o importante é o que cada um faz com a sua sorte ou azar, sempre face às dos
seus parceiros de jogo, e de vida. E que conheça as regras dos jogos em que se mete, e
que se meta neles, ou não, os mais livremente possível. O verdadeiro perigo, a injustiça
mais abjecta porque hipócrita, está na crença de alguns poderosos de que serão capazes
de descobrir e implementar regras justas em absoluto. Muitas vezes auto-eregidos em
defensores dos mais fracos ... Deviam preocupar-se antes com a transparência das regras
– as possíveis e em vigor em cada momento -, e sua aplicação com equidade a todos
sem excepção, e sempre. No poker a postura dos jogadores terá que ser precisamente a
de aceitar a própria sorte e azar, tirar o máximo partido da primeira, minimizar os
efeitos do segundo, e jogar de acordo com regras conhecidas de todos, aplicáveis por
igual a todos. ... Miguel diz, olhando João nos olhos e acentuando a sua expressão e
postura de desafio, “all in”, e com as duas mãos arrasta e aproxima todas as suas fichas
do centro da mesa. João pensa: “começam cedo as disputas e escaladas irracionais!
Miguel está a querer compensar rapidamente as perdas dos últimos dias e limpar a sua
imagem”. ... Mais importante ainda, perceber que sorte e azar são relativos – no poker
de forma evidente, em função das mãos de cada um, a sorte e azar de um é relativa à
sorte e azar dos outros -, e nunca absolutos, ... e que na complexidade da vida, das
relações, dos múltiplos interesses divergentes e convergentes, sempre em
transformação, aquilo que num momento é para uns azar, no mesmo momento ou
noutro, é sorte para outros. E ainda há as convicções e crenças variáveis de cada um e
em cada momento sobre a sua sorte e a dos outros! ... E o mesmo se poderá dizer sobre

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justiça ..., e também a propósito de felicidade, amor, liberdade, amizade ... No poker
desenrolam-se enredos que concentram todos estes aspectos ... estas nuances
ininprescrutáveis da vida ... Onde também, como nesta, a comunicação relevante quase
não se suporta no significado expresso das palavras, e raramente é intencional, sendo
quase sempre subliminar – e veiculada essencialmente através de gestos, mímicas e
posturas do corpo - e, no entanto, é o substracto das decisões dos jogadores. ... Teresa
demonstra agora grande excitação. Percebe que se está num momento alto do jogo. Só
Rita e Gonçalo acompanham Miguel na aposta. Gonçalo pelo gozo do desafio uma vez
que ainda não é capaz de avaliar com sensatez qual o valor da sua mão e a probabilidade
de vitória, e ainda não sabe usar o bluff. Rita, vê-se na sua expressão facial de
complacência, acompanha sobretudo porque o seu coração lho dita. Não quer
desapontar Miguel (é quase certo que Miguel o percebe, sem ter consciência do facto,
intui João). ... João atreve-se a dizer que são os cérebros comunicando entre eles, todos
com todos em simultâneo, a uma velocidade estonteante, fora dos territórios de qualquer
consciência, sem prestar contas aos respectivos “donos”, e emitindo em contínuo
instruções às mentes – o que quer que isso seja! – e corpos presentes. E depois, muitas
vezes, tentamos explicar os resultados racionalizando explicações lineares de causa e
efeito que disfarçam de simples o incomensuravelmente complexo. Por outro lado,
sendo ali à mesa a comunicação presencial, esta serve para contrabalançar a tendência
dos dias de hoje para as relações à distância, quase sempre suportadas maioritariamente
no uso da palavra escrita, da qual estão ausentes também os matizes dados pela
entoação, variações de ritmo e de volume, silêncios entre as palavras e frases,
articulação, pronuncia, etc ... “Ao contrário do que muita gente pensa, será um bom
treino para as crianças, desde que não haja dinheiro envolvido. É uma ocasião para a
aprendizagem, por osmose, daquilo que é dificilmente verbalizável e que, no entanto ...
e por isso, é o mais importante.”, conclui João para si. ... Miguel, com um sorriso ao
mesmo tempo de entusiasmo e de insegurança, vira de uma assentada as quarta e quinta
cartas da mesa, uma vez que a roda de apostas tinha encerrado com os três temerários
all in. A sua expressão altera-se de imediato para uma de aparente impassibilidade e
desvia o olhar para as cinco cartas expostas. Todos os olhos da mesa se concentram em
Gonçalo. É a sua vez de mostrar o jogo que tem, ou sair da jogada. Teresa sorri nervosa
enquanto olha as duas cartas na mão de Rita. Para ela o desafio crucial é o de encontrar
duas cartas iguais, uma na mesa e outra na mão de um dos jogadores ...

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O poker é um jogo no qual se sente particularmente bem também por motivos mais
recentes: desde que se apercebeu da importante transformação que o seu corpo está a
sofrer, quando os médicos, há mais ou menos um ano, lhe revelaram que as suas cordas
vocais estavam a definhar. Como o vaticínio foi o de que se tornarão gradualmente cada
vez mais inúteis, sente-se desde então condenado a comunicar de forma espartilhada, e a
contrariar algumas das suas tendências naturais, com as quais se tinha habituado a viver,
e que tinha aprendido a contornar quando lhe apresentavam dificuldades. Não sabem
explicar porquê, os doutores, mas João está convencido que é pelo pouco uso que
sempre deu ao seu aparelho vocal. Agora, para se fazer entender sem esforço
demasiado, já necessita de falar ao ouvido do interlocutor uma vez que pouco mais do
que sussurros consegue emitir. Isto implica por um lado, quando usa as palavras, que o
faça quase sempre só por escrito, chegando aos outros com desfasamento no tempo, e
sem o auxilio dos sons e expressões corporais que outras dimensões e largura
emprestam à comunicação presencial. Por outro, na comunicação bilateral just in time
necessária à convivência do dia-a-dia, é obrigado a sair da penumbra e a tornar-se bem
visível para que os outros, sobretudo quando em grupos, lhe possam ler todos os sinais
do seu corpo, olhando-os nos olhos, e sendo olhado bem nos olhos, e isto porque
praticamente ficou impedido de usar as palavras nessas ocasiões por mais do que alguns
segundos seguidos. ... Gonçalo expõe o seu jogo, pouco convicto: “tenho um par de
noves ...”. Rita logo afirma, lançando as suas duas cartas para a mesa: “E eu um trio de
valetes!”. Tinha sido bafejada pela sorte in extremis. Contra sua vontade, a sua singela
manifestação de amor de mãe para com Miguel foi ironicamente recompensada
precisamente no sentido contrário ao dos seus desejos. As duas últimas cartas da mesa
são dois valetes que se somam a um da sua mão ... Todos olham agora Miguel num
momento de tensão e expectativa. Rita, por seu lado, olha-o com uma expressão
particular de ternura angustiada, num misto de réstia de esperança nas duas cartas de
Miguel, mas já pedindo-lhe desculpa pela sua vitória mais que provável (não há mais
nenhum par na mesa, nenhuma das cinco cartas é mais alta do que o valete, os quatro
naipes estão todos nelas representados, e os seus valores são bastante afastados entre si
o que torna a composição de uma sequência altamente improvável). ... Está consciente
de que estas transformações fisiológicas estão a provocar em si alterações profundas no
modo como se relaciona, e naquilo que valoriza. Por ironia do destino, é agora impelido
a usar ostensiva e intensamente todo o seu corpo para se fazer entender, expondo-se
como nunca – e ainda por cima quando os outros não necessitam reciprocamente de o

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fazer para que os perceba! -, e a usar as palavras quase exclusivamente na sua vertente
escrita mais formal e instituída, menos sua, menos espontânea. Cada vez mais associa às
palavras o dispêndio de um esforço desmesurado, que é cada vez menos compensador.
O poker não o obriga a falar, muito menos a escrever, e também não requer grande
esforço para se fazer entender. Só tem que olhar as cartas, olhar e ouvir os parceiros de
jogo – competências que tem desenvolvido ainda mais -, e apostar, ou não. Ao mesmo
tempo, usufrui da companhia deles (Percebe agora melhor porque Vitória tantas vezes o
convidava, e continua a convidar, para realizar com ela actividades a dois que se
limitam à repetição de gestos simples em coordenação e complementaridade). Por outro
lado, aprende a suportar o modo como os outros intensa e continuamente perscrutam e
tentam descodificar os seus sinais corporais, para compensarem o seu mutismo, a quase
ausência de sinais sonoros de si provenientes. Está também claramente mais consciente
dos efeitos neles da sua linguagem corporal, e como pode igualmente dissimular e
insinuar ... e isso significou no início quase estrear-se num mundo desconhecido ..., no
qual a velocidade a que tudo acontece nada tem a ver com a da troca de palavras! Muito
menos da escrita das mesmas. ... Miguel, pesaroso, desconsolado, olhos baixos que
apenas por um instante fugidio olham os de sua mãe - para Rita qual farpas de aço
gelado que se espetam instantaneamente fundo no seu coração! -, numa expressão de
desapontamento deixa cair as suas duas cartas na mesa sem as mostrar. Margarida
pergunta-lhe se as pode ver ao mesmo tempo que avança com a sua mão esquerda para
lhes pegar. Miguel interrompe-lhe o movimento com a sua mão direita e diz-lhe
bruscamente que não ... Rita sorri-lhe e tenta animá-lo num tom que emana
inequivocamente culpa: “Deixa estar, ainda vais recuperar!”. João toca suavemente no
braço esquerdo de Rita para que esta o olhe e dá-lhe a entender, com um ligeiro franzir
dos olhos, um quase imperceptível menear da cabeça para a direita e um encolher de
ombros, que não há motivos para ficar preocupada. Teresa abraça-se a Rita e olha
orgulhosa o enorme monte de fichas que se acumulou à frente delas. Miguel começa a
contar fichas da banca para se fornecer de novo, lentamente. João observa-o em
silêncio, com uma expressão que procura instilar-lhe ânimo. Sabe que, no caso de ser
ele, João, ou Rita ou Margarida, a ganhar, pelo sistema rotativo que tem estado
espontaneamente em vigor, caberá a Miguel o dia de autoridade absoluta sobre a PS2. ...
“E, no final destas deambulações todas, ainda há azar e duplo azar. Este último é
quando se tem azar e se está rodeado de gente também com ele e que deseja as mesmas
coisas! Sorte para o Miguel porque não é o seu caso, pelo menos para já ...”, conclui

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João. ... Parece-lhe ouvir o grasnar de patos, ... ou serão corvos ou alguma ave
semelhante? Atenta no céu por cima e não vê nada. Todos os finais de tarde passam por
ali bandos de aves negras, vindos do lado da Serra, na direcção, aparentemente, da
barragem da Aguieira, e do sol poente. Interroga-se sobre onde deixou os seus binóculos
... Sobrevem-lhe a tentação, por muito breves instantes, de aproveitar o clima emocional
que lhe parece favorável para desafiar Miguel, e os outros por arrasto, para um passeio a
pé. Resiste ... por agora. Prefere aguardar por outra ocasião ... Vasco é o dealer que se
segue. Os dois primos mais velhos lá de dentro chegam, aproximam cadeiras para se
sentarem à mesa, e pedem também para si duas cartas e a sua maquia de fichas. Miguel
anima-se, pega na banca, conta e forma dois conjuntos iguais de fichas, e entrega a cada
um o seu.

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