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Hermenêutica fenomenoló gica da

experiência de si mesmo e psicoterapia!


ROBERTO NOVAES DE SÁ
Um das tendências centrais do pensamento filosó fico contem- porâ neo é a chamada
desconstruçã o da noçã o substancialista da alma lumana, ou do sujeito, na
terminologia da filosofia moderna. Subs- [ancialidade, aqui, nã o entendida apenas
como característica do que tem um modo de ser extenso, mas daquilo que subsiste por
si mesmo enquanto algo dado no mundo, ainda que em um modo nã o extenso, como a
res cogitans cartesiana. Essa tendência desconstrucionista tem influenciado as
prá ticas psicoló gicas clínicas de maneira significativa. Constata-se no heterogêneo
campo dessas prá ticas, paralelamente à pevitalizaçã o dos projetos cientificistas
biologizantes e fisicalistas, uma perspectiva crítica que tende a deslocar a questã o
metafísica o que é O homem, qual a sua quididade, o seu ser em-si, para a questã o
sobre o sentido do seu ser, ou seja, uma questã o hermenêutica. Com esse des-
locamento do plano metafísico para aquele de uma hermenêutica que “e sabe
irremediavelmente histó rica, as psicoterapias se definem menos à partir de
formulaçõ es técnico-cientificas e se afirmam como prá ticas reflexivas de
conhecimento e transformaçã o de si, envolvendo as di- fmensõ es ontoló gicas,
estéticas, éticas e políticas da existência humana. As abordagens fenomenoló gicas e
existenciais na psicologia têm um papel relevante nestas transformaçõ es histó ricas da
psicoterapia, justa- mente por se inspirarem em uma concepçã o nã o metafísica de
homem + assumirem uma posiçã o crítica com relaçã o aos projetos cientificistas da
psicologia moderna.
Apresentaremos neste trabalho algumas dificuldades que, ao nos- so ver, a crítica da
moderna metafísica do sujeito encontra e o enca- minhamento que a questã o ganha no
pensamento de Heidegger. Em seguida relataremos um caso clínico no qual as
questõ es discutidas nos parecem essencialmente implicadas. Nã o estabeleceremos
uma corre- laçã o pontual entre as noçõ es filosó ficas de Heidegger e o desenrolar do
processo psicoterapêutico apresentado, até porque entendemos ser este um caminho
perigoso, facilmente assimilá vel pela compulsã o técnico- científico de sistematizaçã o e
controle dos entes. O saber clínico es- sencial é aquele que somos e nã o o que temos
enquanto representaçã o conceitual, A contribuiçã o que buscamos na filosofia nã o é a
de funda- mentaçã o de uma teoria psicoló gica, mas a de uma reflexã o essencial que, na
medida em que afeta nosso horizonte de compreensã o e dispo- siçã o afetiva, altera
necessariamente nosso modo de cuidado clínico.
A crítica contemporâ nea ao sujeito, principalmente fundamenta- da nas filosofias de
Nietzsche e Heidegger e amplamente desenvolvida no pensamento francês por
Derrida, Deleuze, Foucault e na psicaná lise de Lacan, aponta a inconsistência da ideia
de um eu ou si-mesmo hu- mano auto fundado na razã o e na vontade, suporte de uma
identidade constante, coerente e auto transparente. Por outro lado, as desconstruçõ es
de cará ter fisicalista, como as dos behaviorismos e de grande parte das neurociências,
apesar de se apoiarem em uma perspectiva radicalmente distinta daquele
desconstrucionismo filosó fico, convergem na produçã o de uma cultura intelectual de
desilusã o com respeito ao. valor e à s expectativas que o humanismo moderno havia
depositado no eu livre e soberano. Mas, curiosamente, mesmo no ambiente cultural
em que esta desconstruçã o é produzida e promovida, muitas vezes com entusiasmo
libertá rio, os comportamentos individuais e sociais, as relaçõ es em geral, nã o parecem
menos fundadas em uma experiência de si com egoidade. Isto é, nã o há , até agora,
indícios aparentes de que a crítica intelectual à noçã o de um eu substancial tenha
como consegii- ência um modo de ser menos egoísta. Parecem se aplicar bem à nossa
experiência contemporâ nea do si-mesmo, as palavras de Simone Weil:
O fato de terem perdido o eu nã o significa que nã o tenham mais egoísmo. Ao
contrá rio. Certamente, isso acontece al- gumas vezes, quando se produz uma devoçã o
de cã o. Mas geralmente o indivíduo é reduzido, ao contrá rio, ao egoís- mo nu,
vegetativo. Um egoísmo sem eu. (1993, p. 27-28)
Apesar das críticas, a intuiçã o cotidiana nos doa, em um primeiro momento, a vida
psíquica como interioridade — denominada como eu, pessoa, personalidade, espírito,
alma, sujeito, consciência — como mundo pró prio, interno correlativamente à nossa
experiência do mundo cir- cundante. A dissoluçã o do dado intuitivo que essas noçõ es
encobrem, enquanto produçã o histó rica ou estrutura bioló gica de funçõ es adap-
tativas, é uma abstraçã o científica sem preenchimento em nossa expe- rência direta de
si ou do outro como semelhante a nó s. O ú nico efeito Imediato desta reduçã o
apressada parece ser um afastamento maior vom relaçã o aos problemas existenciais e
responsabilidades concretas implicados no fato de que a experiência que faço é
sempre e a cada vez minha: eu sou. Com isso nã o queremos pregar o resgate de uma
meta- física do sujeito, longe disso, nossa intençã o é questionar apenas a in-
suficiência de uma desconstruçã o meramente intelectual, tal como tem sido
promovida pelo pensamento contemporâ neo no Ocidente. O fato de que a experiência
ô ntica, cotidiana, do eu nã o seja base adequada e suficiente para sua tematizaçã o
ontoló gica, também nã o autoriza que se descarte simplesmente essa experiência sem
uma investigaçã o mais detida do seu sentido. A ideia da insubstancialidade e
heteronomia do eu nã o é uma originalidade histó rica da modernidade e da contempo-
puncidade ocidental. Linhagens tradicionais do pensamento oriental e mesmo
correntes do pensamento místico no Ocidente têm explorado há séculos, de forma
consistente, esta concepçã o. Queremos pensar, ainda que de modo introdutó rio, sobre
a necessidade de uma via longa para essa desconstruçã o, que considere uma
fenomenologia da experiência de si-mesmo, em suas mú ltiplas possibilidades e
sentidos, além das prá - ficas e estratégias existenciais de transformaçã o da
experiência de si. Compreender o eu é compreender a si mesmo, nã o se trata,
portanto, de um tipo de conhecimento que se possa meramente ter, no sentido de
aumentar o acervo de nossas representaçõ es conceituais sobre as coisas. Aqui, mais
do que em qualquer outro tipo de interrogaçã o, fica patente a impossibilidade de
dissociaçã o entre saber e ser.
Criticar a noçã o de um sujeito substancial nã o significa, obrigato- rlamente, reduzir a
experiência de si a um mero efeito de causas físicas ou histó ricas. A fenomenologia de
Husserl, nos alerta para a insepara- bilidade das noçõ es de ser e de experiência. Ser é
aparecer: fenô meno. A crítica fenomenoló gica ao eu empírico de Descartes, ou a
qualquer forma de objetivaçã o da consciência, visa justamente preservar a origi-
nariedade da consciência e sua irredutibilidade à condiçã o de algo dado dentro do
mundo. O eué a condiçã o ontoló gica de possibilidade para a doaçã o de qualquer coisa
enquanto coisa, nã o podendo ser, portanto, ele mesmo tomado como alguma coisa,
sem que se perca a si mesmo no que lhe é mais essencial. É para expressar esse
cará ter radicalmen- te originá rio que Husserl lança mã o da noçã o de eu
transcendental, embora a expressã o tenha dado margem a interpretaçõ es ambíguas, já
que sugere facilmente, no contexto de nossa tradiçã o metafísica, a ideia de uma
reificaçã o idealista do eu. Se lembrarmos, no entanto, o papel fundamental que a
intencionalidade teve na pró pria origem da fenomenologia, podemos compreender
porque a noçã o husserliana de consciência já aponta para uma unidade
antepredicativa com o mundo. A característica essencial da consciência é ser sempre
consciência de algo. O ser nã o é simplesmente dado como quididade em-si, como pro-
põ e uma metafísica realista, nem dado por uma consciência prévia auto subsistente,
como quer uma metafísica idealista. Como disse Merleau-Ponty (1994): “Trata-se de
reconhecer a pró pria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que
ela nã o abarca nem possui, mas em direçã o ao qual ela nã o cessa de se dirigir” (p. 15).
De qualquer modo, para ser mais fiel à fenomenologia que o pró prio mestre, e nã o
para negá -la, Heidegger substitui a noçã o do eu transcendental pela de ser-no-mundo
(In-der-Welt-sein), tentando evitar, assim, o peso semâ ntico depositado nas noçõ es de
eu, sujeito ou consciência, pela tradiçã o metafísica. Aqui, ao contrá rio da tradiçã o ou
mesmo da fenomenologia husserliana, é a condiçã o pró pria ao homem de abertura ao
ser, o ser-aí (Dasein), que constitui a condiçã o ontoló gica de possibilidade da cons-
ciência e do si-mesmo.
Ao chegar, apó s o exercício metó dico da dú vida, ao cogito ergo sum, penso, logo existo,
Descartes prioriza o cogito, penso, em detri- mento do sum, existo. Considera, assim, o
eu, a partir da ontologia natural do ser-simplesmente-dado, como coisa pensante, res
cogitans. Embora Kant negue a substancialidade do eu e conceba o eu penso como
mero sujeito, isto é, como consciência de si no pensamento ou na açã o, é ainda da
constâ ncia e da identidade de algo simplesmente-dado que se trata no sujeito
kantiano. Heidegger (1990, p. 112-5) argumenta que nã o basta evitar a separaçã o
entre o eu e o pensar, como fez ant esquecendo-se de que na determinaçã o
fundamental da experiência de “ mesmo já está desde sempre, como pressuposto
ontoló gico, o eu penso alguma coisa. Neste alguma coisa pressupõ e-se, implicitamente,
a do, Dizer eu significa dizer, portanto, eu-sou-no-mundo-com e nã o um sujeito
isolado que acompanha, como substrato está vel, a diversidade das vivências.
A aná lise fenomenoló gica da existência revela na experiência do vu, que nã o necessita
ser discursivamente explicitada, a constituiçã o antoló gica do eu como ser-no-mundo.
A apropriaçã o cotidiana da ex- periência de si parte, no entanto, do mundo das
ocupaçõ es e tende a interpretar-se do mesmo modo como toma aquilo que lhe vem ao
en- contro no mundo, isto é, como sendo simplesmente dado dentro do mundo. No
falató rio natural sobre o eu pronuncia-se um eu que, de Início e na maior parte das
vezes, eu nã o sou. É na experiência silencio- aa de si como acontecimento
originalmente entrelaçado com tempo e mundo, justamente quando nã o se diz eu, que
emerge o ser sissriesmo vm um modo pró prio. A possível subsistência do eu como
continuida- «le do ser si mesmo nã o se fundamenta em nenhum tipo de giididade, mas
na pura liberdade de poder perder-se naquilo em que se ocupa ou antecipar-se na
lembrança de si como ser-no-mundo.
Heidegger, em sua analítica da existência cotidiana, realizada em Ser e Tempo, nos
alerta sobre as dificuldades de uma fenomenologia da volidianidade mediana do ser-aí
(Dasein) humano. Ao interpelar dire- tamente a experiência de si e dizer sempre eu
sou a existência cotidiana ainda nã o dá provas de que subsiste na atençã o e escolha de
suas possibi- lidades singulares de ser si mesma. É possível que, justamente, ta de sur
sempre minha a existência encontre suas motivaçõ es para, de início e na maior parte
das vezes, nã o ser ela pró pria. Isso nã o quer dizer que ela neja absolutamente
desprovida de eu, mas que o modo de ser deste eu é 4 perda de si pró prio enquanto
singularidade. A existência encontra, de
início, a si mesma naquilo que lhe vem ao encontro no mundo: as coisas de que se
ocupa e os outros com quem convive. Tanto a eficiência das peupaçõ es, quanto a
deficiência das convivências cotidianas tendém a encobrir o mundo como abertura de
sentido, isto é, a lançar a existência em uma pré-compreensã o de si e dos outros como
simplesmente dados dentro de um mundo igualmente dado. Essa convivência
deficiente, re- gida pela ocupaçã o, dissolve o ser si mesmo no modo de ser dos outros,
de tal forma que os outros desaparecem em sua diferença e singularida- de para
constituir o todo mundo que nã o é ninguém específico. Heideg- ger denomina essa
dinâ mica vigente na cotidianidade como o impessoal (Das Man, substantivaçã o do
pronome impessoal): falamos cotidiana- mente como impessoalmente se fala, nos
comportamos em cada situa- çã o como as pessoas devem se comportar, somos
diferentes e originais como se deve ser e até criticamos a impessoalidade da vida
cotidiana como todo mundo critica. Quanto maior a falta de estranhamento e
surpresa, mesmo quando a curiosidade e a novidade sã o exaltadas, mais a
impessoalidade domina a existência cotidiana.
Esta aná lise, feita por Heidegger, nã o deve em hipó tese alguma ser tomada como uma
crítica valorativa à cotidianidade, como se denun- ciasse um erro imputá vel a um
sujeito negligente ou de má índole. Tal interpretaçã o seria por si mesma contraditó ria,
pois é justamente a difi- culdade de determinaçã o de um sujeito imputá vel que foi
desvelada na investigaçã o. Trata-se, antes, de uma estrutura ontoló gica, constitutiva,
portanto, da existência. Nã o se passa de um modo impessoal para outro pessoal e
singular como se isso fosse um desenvolvimento evolutivo da personalidade.
Impessoalidade e singularidade sã o possibilidades exis- tenciais sempre em jogo a
cada momento do existir concreto.
Se o essencial ao homem nã o é objetivá vel, se o ser-aí humano é mero poder-ser, é
pura abertura de sentido, cabe, entã o a pergunta: por que de início e na maior parte
das vezes a existência se toma como algo simplesmente dado dentro de um mundo
também dado? Entre- tanto, para que a pergunta possa se encaminhar de forma
adequada à natureza do que se interroga, é necessá rio que descartemos de antemã o as
direçõ es mais usuais em que perguntamos pelos porquês das coisas.
Nã o poderia se tratar aqui de perguntar pela decisã o voluntarista de um | sujeito
autô nomo, nem, muito menos, por uma causa, no sentido determinista das ciências
naturais. A interrogaçã o se dirige, antes, ao sentido da experiência cotidiana
impessoal, ao â mbito daquilo que ainda nã o sendo nela apropriado, se constitui, por
isso mesmo, como sua moti- vaçã o essencial. Toda a cotidianidade mediana se
estrutura como uma fuga, um desvio da existência em relaçã o ao seu modo mais
pró prio de ser, À existência cotidiana é sempre temerosa; teme por si mesma frente à s
ameaças do mundo. Mas, todo temor ô ntico, enquanto temor por algo ameaçador,
ancora-se ontologicamente na possibilidade distintiva da existência de poder nã o mais
ser, em sua finitude. Esse temor sem objeto é denominado como angú stia. Na angú stia
a existência é arran- vada das ocupaçõ es com os entes intramundanos para a livre
abertura em que se dá o mundo como tal. Mas a angú stia, neste sentido pró - prio é um
fenô meno raro na existência cotidiana, predomina em geral sa experiência impró pria
enquanto medo de algo com o qual possa- mos nos ocupar, controlando e assegurando
a habitaçã o impessoal na qual nos protegemos da liberdade e da responsabilidade
constitutivas de nosso poder ser si mesmo singular. Encontramo-nos aqui em um
eirculo hermenêutico, no interior do qual a cotidianidade permanece encerrada: a
existência desvia-se de si mesma enquanto ser-no-mundo, prendendo-se à s ocupaçõ es
e tomando-se como simplesmente dada, por que se angustia diante do mundo como
livre abertura de sentido; e nã o ultrapassa a angú stia, em direçã o à possibilidade de
um deixar-ser livre e sereno, por que permanece fechada na experiência de si como
um eu isolado, simplesmente dado no interior do mundo.
As reflexõ es de Heidegger sobre o ser do homem levam a um es- tranho paradoxo. Se,
por um lado, trata-se de superar toda concepçã o «le um eu simplesmente dado ou
qualquer forma de subjetivismo, essa experiência apenas pode ser posta em curso na
medida em que o ho- mem se aproxima de seu ser-si-mesmo. Nenhuma desconstruçã o
de vará ter meramente intelectual ou moral é capaz de deslocar o ser-aí liumano em
direçã o ao seu centro pró prio e, somente a partir desta von-centraçã o é possível ao
homem uma autêntica experiência de des- ventramento. Quando suspendemos ou
somos arrancados das identifi- vaçõ es cotidianas dos entes em geral e de nó s mesmos
como coisas auto aubsistentes, abrimos a experiência do mundo como co-emergente e
Interdependente de nó s. Se suportarmos a vertigem inicial e a angú s- [in perante esse
nada (no sentido de que nada aparece como simples- mente dado), apreendemos
nosso ser mais pró prio como mero poder- net, mera transparência, através da qual os
entes aparecem segundo o jugo de luz e sombra que se articula nesta abertura de
possibilidades. Con-centrados em nosso ser si-mesmo mais pró prio, enquanto ser-no-
mundo-com, percebemos que nosso verdadeiro centro nã o é nenhum nú cleo
substancial está vel no interior de nó s mesmos, ser originaria- mente em-meio-aos-
entes significa ser ex-cêntrico ou ter o seu centro naquela abertura transparente que
sempre ultrapassa nossa consciência de sujeitos. O si-mesmo do ser-aí jamais se
confunde, portanto, com qualquer compreensã o psicoló gica de algum verdadeiro self
interior, em oposiçã o ao eu ordiná rio. Se o deslocamento da experiência de si,
efetuado pela suspensã o do mundo impessoal das ocupaçõ es cotidianas, abre sempre
outras possibilidades de identificaçõ es, o essencial deste movimento nã o sã o essas
novas identificaçõ es possíveis, mas o simples poder-ser, a pura liberdade aberta ao
mistério. Nã o sendo o si-mesmo um verdadeiro self, nã o há oposiçõ es em relaçã o a
falsos selfs. Nã o há nenhum verdadeiro self a ser alcançado, ser si-mesmo em um
sentido pró prio ou impró prio diz respeito apenas ao grau de aprisionamento ou de
liberdade em relaçã o à s nossas identificaçõ es.
Inspirando-se no místico alemã o Mestre Eckhart, Heidegger de- nomina como
Serenidade (Gelassenheit) a disposiçã o espiritual em que nos colocamos para além da
experiência de um sujeito auto fundado na razã o e na vontade. Embora este tema seja
tratado pelo filó sofo a partir da década de quarenta, em um contexto semâ ntico já
distante de Ser e Tempo, dois motivos nos autorizam uma aproximaçã o entre essas
conceitualidades diacrô nicas. Primeiro, em um texto de 1945, Diá logo num caminho
do campo, que Heidegger sugere como comentá rio à con- ferência Serenidade, ele
pró prio faz uma aproximaçã o entre a serenida- de e a noçã o de decisã o
(Entschlossenheit), utilizada em Ser e Tempo. De acordo com ele, decisã o, “[...] tal
como é pensada em “Ser e Tempo; deve se entender como: “o propriamente assumido
abrir-se do ser-aí ao aberto” (2000, p. 58), acreditamos, portanto, ser essencial esta
luz re- trospectiva do chamado segundo Heidegger sobre a compreensã o de Ser e
Tempo. Segundo, é ainda o pró prio Heidegger quem sugere, em uma carta a Boss de
1971, a leitura da conferência Serenidade para os psiquia- tras participantes dos
seminá rios de Zollikon e membros da, entã o, re- cém fundada Associaçã o Suiça de
Daseinsanalyse (2001, p. 301-2). Mas, para que tal aproximaçã o faça sentido, devemos
deixar em suspenso as interpretaçõ es que estabelecem uma tensã o conflitiva entre os
chama- dos primeiro e segundo Heidegger, e compreender suas diferença apenas
como uma modulaçã o complementar de perspectivas. Se o primeiro Heidegger trata
do ser-aí humano, nã o é para construir uma antropolopia filosó fica, mas para pensar a
essência do homem como abertura ao wr; e se o segundo Heidegger trata mais
diretamente do acontecimento histó rico do ser, ainda é da apropriaçã o histó rica do
homem ao ser que também se trata.
Heidegger retoma a noçã o de serenidade, apreendida com Eckhart, para pensar um
caminho, em meio à nossa época dominada pela técni- va, de resgate da experiência
daquilo que é mais essencial ao homem, sua abertura ao ser. Para ele, a serenidade,
enquanto uma equanimida- de da alma perante tudo aquilo que é, nos permitiria dizer
sim e nã o, simultaneamente, à técnica moderna, estabelecendo deste modo uma
relaçã o mais livre com ela. A disposiçã o de serenidade nã o se confunde pum nenhuma
espécie de passividade, que seria ainda uma possibili- dade interna à posiçã o
voluntarista. A serenidade é um modo de ser livre c aberto ao mistério. Seguindo a
breve referência que Heidegger [uz a Ser e Tempo no texto proposto como comentá rio
à serenidade, já mencionado acima, sugerimos que, além da disposiçã o afetiva da an-
fú stia, a serenidade também poderia ser pensada como uma disposiçã o privilegiada
para a experiência do ser-aí humano em seu modo mais pró prio e singular. Usando a
conceitualidade de Ser e Tempo, pensamos aque a partir da serenidade é possível
dizer, simultaneamente, sim e nã o du Idlentificaçõ es do impessoal. É possível dizer
sim porque o mundo das Heupaçõ es cotidianas é visto como um horizonte de
desvelamento de sentido, nã o sendo o caso de negá -lo reativamente em nome de
alguma pulra suposta verdade. Ao mesmo tempo, é possível dizer nã o porque fazemos
a experiência de que o poder deste horizonte nã o lhe é inerente, tuas, faz parte de uma
dinâ mica de originaçã o que o ultrapassa.
Essas consideraçõ es têm por objetivo, como apontamos inicial- mente, contribuir para
uma discussã o sobre a crítica da metafísica mo- dera do sujeito no â mbito das prá ticas
psicoló gicas clínicas. Acredita- mos que na maioria das psicoterapias contemporâ neas
entra em jogo tma experiência de desconstruçã o e desidentificaçã o das identidades
aubjetivas que se tornaram rígidas, impedindo um poder corresponder qmais livre e
flexível à s variadas demandas de tudo aquilo que nos vem ao encontro no mundo.
Mas, pensamos também que na grande maioria dos tusos, à nova identidade
estabelecida é entendida como um si-mesmo mais verdadeiro do que aquele com o
qual se estava identificado antes.
Muitas teorias psicoló gicas reforçam essa tendência, de lastro existencial, através de
noçõ es essencialistas do psíquico. Para uma clínica de inspi- raçã o heideggeriana,
talvez O insight terapêutico mais essencial, nã o seja a descoberta de potenciais
identidades positivas, mas a experiência de si como mero poder-ser. Narramos a
seguir um caso clínico? que, em nossa perspectiva de compreensã o, foi um processo
de abertura da experiência de si, para além da mera mudança de identidades
subjetivas.
Ao falar de seus problemas, no primeiro encontro, a principal quei- xa de Clara diz
respeito ao modo de relaçã o que ela tem com o seu pai, sente-se aprisionada a uma
teia de sentimentos ambivalentes que seu consegue explicitar para si mesma
adequadamente. Os afetos sã o dissi- mulados através de uma forma de diá logo que,
segundo ela, possui sem- pre um tom de ironia, humor negro ou cinismo. Chora ao
lembrar-se da frase que ele falava quando ela era pequena e se machucava: vaso ruim
nã o quebra. Ela diz que ficava muito magoada diante da indiferença dele e que a dor
de se sentir um vaso ruim era maior que a do machucado.
Ela se identifica com uma imagem muito negativa de si mesma. Considera-se burra,
sem jeito, pouco feminina. Clara é formada em Psicologia, mas nunca exerceu a
profissã o. Sente-se incompetente para lidar com qualquer tipo de problema e nã o
gosta de atividades que envolvem grupos de pessoas, pois nunca sabe o que dizer.
Acha que fez psicologia porque sua mã e queria que alguma filha fosse freira. Assim;
ela poderia ajudar as pessoas e, de certa forma, realizar o desejo da má Sua família
possuía uma pequena confecçã o de roupas, na qual Clara trabalhava no setor de
encomendas, visitando os clientes, funçã o que exigia dela um grande esforço
emocional para lidar com as situaçõ es de exposiçã o. Ela explicava seu medo de
encontrar os compradores do seguinte modo: como vou vender, fazer propaganda do
meu produto? É como se eu estivesse falando bem de mim e isso nã o combina.
Clara tem uma irmã aproximadamente dois anos mais velha. Ela me diz que sempre
competiu com a irmã pela atençã o do pai e se com- para a ela fregientemente. Procura
justificar racionalmente a maior proximidade do pai em relaçã o à irmã por eles terem
mais interesses em comum, mas nã o parece dar muita importâ ncia a essa explicaçã o.
2 Apesar de verossímil, o caso clínico apresentado é ficcional e foi criado a partir de
minha pró pria experiência como Psicoterapeuta, supervisor clínico e orientador de
pesquisa. Agradeço aos bolsistas de PIBIC e estagiá rios do Servi- go de Psicologia
Aplicada da UFF pela colaboraçã o.
( vem uma frase negligentemente solta em meio ao discurso, ela expres- 4 «le modo
bem mais significativo seus sentimentos: meu pai nunca postou de mim.
Quando procura a terapia, Clara tem trinta anos de idade. Casada desde os vinte e
dois, ela tem um filho de cinco anos. Sente-se sobre- varregada com os afazeres
domésticos e os cuidados com o filho. Diz aus o marido age sempre como uma criança
e que nã o divide nenhum problema com ela: ele é casado apenas na alegria e na saú de
e nã o na dristeza e na doença.
Com relaçã o ao seu filho, ela tem uma preocupaçã o específica: será que ele vai
conseguir crescer? Este receio nã o se refere apenas ao tumanho físico, mas também à
maturidade. Clara acha que ele é muito halxo em comparaçã o à s crianças da mesma
idade e teme que, no futu- to, ele tenha dificuldades para relacionar-se no mundo dos
adultos, da ihesma forma que ela sente. Aquele mundo é visto como chato por ser
sério demais. Ela se considera infantil e teme que suas experiências se tepitam na vida
do filho. Esse temor leva Clara, de certa forma, a reali- gar a expectativa temida ao
trocar o filho de escola a cada ano, dificul- tando, assim, que ele estabeleça vínculos
mais está veis com os colegas.
Afirmaçõ es do tipo: eu fiz psicologia porque minha mã e queria uma hilhia freira, meu
marido é assim porque a mã e o superprotegeu ou meu filho vai pegar o há bito da
mentira porque o pai dele mente, fazem parte da sua teoria de que o modo de ser das
pessoas é determinado por aquilo que os pais foram ou fizeram com elas. Embora, a
partir de nossa visã o fenomenoló gica existencial do homem, essas afirmaçõ es possam
pare- per simplistas e ingênuas, a psicoterapia nã o é um espaço para críticas,
discussõ es ou explicaçõ es conceituais. O essencial seria elaborar tema- localmente o
sentido dessas crenças no projeto existencial de Clara, que implicaçõ es elas tinham no
seu modo de lidar com as indeterminaçõ es, 48 temores, a liberdade e a
responsabilidade perante a existência?
Clara gosta de desenhar e acha que se pendurasse todos os seus ilesenhos na parede e
ficasse olhando todos os dias, entenderia melhor a sua vida. Ela pergunta,
espontaneamente, se há papel e lá pis cera na sala para que possa desenhar durante os
atendimentos. Embora as téc- nicas lú dicas e expressivas sejam mais utilizadas com
crianças, nã o há , em princípio, nenhum problema quanto à sua utilizaçã o em uma
abordagem fenomenoló gica, a especificidade se apresenta apenas no modo de
compreensã o das imagens ou histó rias elaboradas, mas esta especifi- cidade já
caracteriza a escuta do relato usual em primeira pessoa. Seus desenhos, todos em
estilo abstrato, sã o feitos enquanto conversamos. Em um dos encontros, pergunto se
alguma daquelas formas lhe su- gere algo. Ela aponta um girino em um dos desenhos e
conta que tem observado os girinos virarem sapos no aquá rio que o marido montou
para o seu filho, mas que nã o consegue compreender como é possível essa
transformaçã o. Lembra-se, ainda, de um desenho animado em que um girino, ao
observar a metamorfose de uma lagarta, pensou que um dia ele também se
transformaria em borboleta. Enquanto ele observava este processo, transformou-se,
sem se dar conta, nã o em borboleta, mas em sapo. Ela finaliza a histó ria com um tom
de perplexidade, dizendo que o girino queria ser como as borboletas, mas ao
compreender que era um sapo, sentiu-se muito bem.
Seu discurso revela a dificuldade em compreender as transforma- çõ es. Clara
demonstra ambivalência e resistência à s novidades, o que ela mesma é capaz de
identificar nã o apenas na esfera emocional, mas também nas atividades corriqueiras
do cotidiano. Seu temor e dificul- dade de experienciar transformaçõ es, traduz-se em
um modo queixo- so e esquivo de lidar com a vida. Na terapia, procura voltar sempre à
temá tica do desamparo paterno, como explicaçã o para os sentimentos de insuficiência
e restriçã o existencial. Oscila entre a culpa, por ser a filha que nã o desabrochou para
uma vida adulta rica em realizaçõ es, e a raiva do pai, que nã o teria lhe dado o afeto e a
segurança necessá rios para esse amadurecimento.
Durante anos, Clara teve um sonho recorrente: o mar invadia o quintal de sua casa, ela
estava trancada em seu quarto, olhava aterrori- zada para a janela fechada na
expectativa de que ela nã o resistiria à for- ça da á gua, mas, embora isso nã o a
trangú ilizasse, nã o Pingavam nem gotas pelos cantos da janela. Falamos sobre esse
sonho diversas vezes, ela percebia que o medo que sentia no sonho era semelhante ao
que sentia em alguns momentos da vida quando se sentia demandada por situaçõ es
que achava estarem além de suas possibilidades. Diante des- sas cobranças do mundo
adulto ela também se trancava completamente e nenhuma gota de transformaçã o
penetrava sua existência.
Quase um ano apó s o início da terapia, Clara fala sobre seu medo da morte e
acrescenta que se a vida melhorasse, morrer se tornaria ainda
56 «Roberto Novaes de Sá
tais terrível porque a perda seria maior. Nã o corroboro essa interpre- taçã o de que o
medo da morte seria, entã o, a causa das suas resistências à mudanças. Entendo que o
sentido da morte aqui ainda estava restrito ao de um evento bioló gico pontual.
Remeto, ao contrá rio, a questã o da morte ao medo das transformaçõ es, ao medo da
vida em sua dimen- sã o trá gica de indeterminaçã o e insegurança. Percebemos que era
um momento importante da terapia, pois o sentimento do desamparo esta- va sendo
explicitado e elaborado em uma perspectiva de compreensã o mais ampla do que
aquela do desamparo paterno.
Seu humor continuava fechado para a realizaçã o de novos projetos. Mas o discurso de
auto censura ou de queixas contra o pai já nã o eram tã o enfá ticos. Em alguns
momentos, as cobranças morais eram substituí- tas por um questionamento mais
objetivo sobre as possibilidades de sua existência. No final de uma sessã o, Clara diz já
ter cumprido todas as suas ubrigaçõ es: terminou a faculdade, se casou e teve filho.
Agora nã o queria alwidecer a mais nada. Pergunto a ela o que significa isso: se ela
quer di- por que nã o precisa fazer mais nada na vida ou se agora pode escolher o que
quer fazer? Fica calada alguns segundos e depois responde com um aurriso
irô nico:...significa que agora posso escolher nã o fazer mais nada. Concordo, também
com um sorriso, e nos despedimos.
Em uma das sessõ es seguintes, Clara relata um sonho que a dei- sou intrigada: Eu
morava em uma casa velha, cheia de lixo, coisas ve- Ilhas, quebradas e sem valor.
Aparecia, entã o, um catador de lixo com um urrinho de madeira para levar aquelas
coisas embora. Mas, quando ele momeçava a separar as tralhas, encontrava muitos
objetos bons, coisas novas e de valor que ele ia colocando feliz no seu carrinho. Eu
ficava com vara de boba e eram tantas coisas boas que ele nem conseguia colocar fú do
no carrinho.
Discutimos o conteú do deste sonho pensando sobre o modo somo ela estava se
relacionando com suas coisas velhas e sem valor e atas coisas boas e caras na vida
desperta. Atendo-nos estritamente ao material onírico (surpresa ao encontrar estas
coisas de valor que ela pensava serem apenas lixo e o fato de só conseguir ver este
valor media- dlo pelo olhar de um outro), percebemos que, também aqui, Clara nã o de
vé como alguém que possui outras possibilidades de ser, apenas se feconhece como
uma pessoa inú til e sem valor. Porém, ao revelar que “4 valor das coisas muda de
acordo com o observador, o sonho amplia
Situaçõ es Clínicas | + 57
o espaço existencial de apropriaçã o de outros modos de ser possiveis para Clara,
liberando-a, para sua surpresa (eu ficava com cara de boba), do peso da identificaçã o
restritiva de sua existência com significaçõ es de insuficiência e carência de valor. Esta
ampliaçã o do espaço existen- ciá rio” do poder-ser nunca é uma conquista definitiva,
no momento seguinte a uma experiência de desencobrimento de possibilidades, po-
demos retornar a uma identificaçã o encobridora. Por outro lado, tais experiências de
desidentificaçã o nunca deixam a existência incó lume, como fazem as meras
compreensõ es representacionais, sem nenhum preenchimento intencional na pró pria
existência.
Sentimo-nos ameaçados quando nosso contexto cotidiano de sig- nificaçõ es é abalado
por algum acontecimento que emerge como im- previsto, inusitado ou carente de
sentido no â mbito deste horizonte. Na maior parte das vezes, essas experiências nos
remetem, de modo nã o temá tico, à condiçã o de desabrigo existencial. A ameaça é tã o
mais in- tensa e insuportá vel, quanto mais restrita e rigidamente estruturada for a
existência, isto é, quando nosso modo de ser se constrange à identi- ficaçõ es
rigidamente cristalizadas, nã o havendo, portanto, flexibilidade para lidar com aquilo
que surge como diferente. Mas, é também aí que pode se abrir de modo privilegiado a
experiência de co-pertencimento entre homem e mundo. O desabrigo e a angú stia
perante a ausência de qualquer sentido previamente dado para a vida sã o a
contraparte, na maioria das vezes necessá ria, embora nem sempre suficiente, das
experiências de liberdade, gratuidade e aceitaçã o serena do existir em sua condiçã o
pró pria de mistério. Os eventos que suscitam essas expe- riências de estranhamento
nã o precisam ser exó ticos ou grandiosos, Acontecimentos simples do dia-a-dia podem
produzir pequenas ilu- minaçõ es a partir do modo de co-respondência daquele que os
acolhe, Clara relata uma experiência em que um contra tempo corriqueiro a convidou
à reflexã o sobre si: uma abelha picou seu braço na varanda de casa. Convite ao qual
ela correspondeu produzindo uma poesia:
3 O termo “existenciá rio” faz referência à dimensã o ô ntica da existência.
Ontologicamente, o poder-ser é uma determinaçã o existencial constitutiva do ser-aí,
apenas por isso é possível que onticamente a existência sofra restriçõ es em seu poder-
ser.
58 « Roberto Novaes de Sá
Abelha-espelho,
Com veneno má gico (todo veneno é má gico?) Me transformou em mulher-com-dor.
Do canto do meu quarto, Quadrado,
Me vi no centro, Mulher-abelha.
A dor passou,
Virou histó ria.
Desta vez escapei,
Mas ainda temo a abelha E seu má gico veneno, Capaz de me acordar
Ou me adormecer
Na dor.
Recuando diante da experiência da dor, desidentificando-se ela pú de ver sua dinâ mica
de constituiçã o (mulher-abelha, mulher-com- dor), tornando-se, assim, mais livre
(acordada) com relaçã o à dor. Al- guns dias depois, Clara chega excitada, dizendo ter
feito uma descober- [a muito importante, que a frase Meu pai nunca gostou de mim,
contém 4 afirmaçã o: Meu pai gostou de mim, bastando para isso, retirar o nã o p, da
mesma forma, Meu pai gosta mais da minha irmã do que de mim também contém Meu
pai gosta de mim. Ela fala que se moveu de um ponto pra outro, que nã o sabe muito
bem explicar como, mas que agora palava diferente com o pai. Pergunta-me como é
que ocorrem estas mu- danças, porque ela nã o consegue localizar exatamente quando
houve pase salto, mas que era estranho como, de repente, as queixas contra seu pai e o
sentimento de abandono nã o pareciam mais tã o reais. Pergunto u que cla sentia
naquele instante, e que significado essa descoberta tinha vim sua vida. Ela responde
que estava se sentindo mais independente e que nã o havia mais necessidade de
colocar à prova ou competir pelo amor do pai.
Clara comprou um livro que falava sobre o que as pessoas apren- dem em diferentes
idades. Cada pá gina começava da mesma forma: Eu (lulano) aos (tantos anos) aprendi
que.... Ela escreveu na ú ltima pá gina:
Situaçõ es Clínicas | 59
Eu, Clara, aos 32 anos de idade, aprendi que meu pai gosta de mim e o deu de presente
ao pai. No dia seguinte, sua mã e telefonou dizendo que o pai havia lido o livro e que
estava muito emocionado. Clara diz ter apenas confirmado o que já havia
compreendido, o quanto ela também sempre havia sido importante para ele, e que
para amar de forma adulta tinha que sair de si mesma para olhar o outro.
Neste mesmo período, ao dizer sua idade para alguém que preen- chia uma ficha de
cadastro, Clara teve a estranha sensaçã o de nã o estar falando a verdade, isto porque
nã o se sentia com 32 anos: Como 32, se eu acabei de acordar? Como, se foi agora que
eu nasci e abri os olhos pro mundo? ... Acho que sempre associei juventude à
liberdade, talvez por isso me sentisse como uma criança velha, sem liberdade, agora
que me sinto amadurecendo, sinto-me também mais jovem.
Fazendo um balanço sobre o caminho percorrido durante estes dois anos de terapia,
ela me fala sobre o que mudou e, ao referir-se ao marido, o coloca na posiçã o de
adormecido, como aquele que está fechado à s mudanças, abandonado à s traças, frase
que a mã e dele cos- tuma dizer. Lê, entã o, uma poesia de Fernando Pessoa que
transcreveu pra ele em um belo cartã o que deu junto com um presente pelos de; anos
de casados:
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o
caminho errado Por o que a Princesa vem.
A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
60 + Roberto Novaes de Sá
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. lile
dela ignorado.
lila para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino. Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,
Ergue a mã o, e encontra hera, E vê que ele mesmo era,
A Princesa que dormia.
Clara diz, sorrindo, que tem em casa um belo adormecido. Que, por muito tempo se
chateou e brigou, pois, ela mesma adormecida, só via o adormecido, mas que agora
também via o belo.
Em outra sessã o, Clara diz que, recentemente, releu um de seus livros da época da
faculdade e compreendeu textos que antes pareciam absurdos. A insistência da família
para que ela encontre um emprego somo psicó loga nã o tem mais o mesmo efeito
constrangedor. Recente- mente, Clara iniciou uma distribuidora de roupas em um
anexo de sua vasa, além de vender a produçã o da família, também compra de outras
vonfecçõ es. Ter o seu negó cio pró prio e fazê-lo ao seu modo tem lhe
dado muita satisfaçã o. Nã o acha mais tã o difícil fazer propaganda dos «eus produtos.
Lembro-me que ela expressava essa dificuldade antes, dlizendo que falar bem daquilo
que vendia era como falar bem de si
Situaçõ es Clínicas | * 61
mesma e isso parecia nã o combinar. Pergunto se, agora, a boa imagem dos produtos
combina com a auto imagem dela. Clara diz que, agora, simplesmente, a boa ou má
qualidade das roupas nã o tinha nada a ver com as qualidades dela. A resposta de Clara
me surprendeu, pensei que eu mesmo talvez ainda nã o tivesse me dado conta do
quanto ela podia ver as coisas de forma madura e perspicaz. Por outro lado, foi
também um sentimento tranqgiuilizador. Nas ú ltimas semanas eu me lembrava com
fregiiência de que em breve estaria viajando para um intercâ mbio acadêmico e teria
que interromper minhas atividades clínicas por um período mínimo de seis meses.
Ainda nã o havia comentado o assunto com Clara. A viagem dependeria de apoio
financeiro de uma agência de pesquisa e eu dizia para mim mesmo que só falaria
quando houvesse algo concreto, mas eu já tinha essa confirmaçã o há quinze dias e
tivera dois encontros com ela desde entã o sem mencionar nada. Embora eu nã o
considerasse ter problemas pessoais com o término das relaçõ es te- rapêuticas,
identificava em mim uma certa dificuldade quando pensava no assunto. Mesmo nã o
achando que a origem deste desconforto era alguma presunçã o de que ela nã o poderia
prescindir da terapia comigo,
o fato de ela ter mostrado uma compreensã o das coisas para além da.
minha intervençã o psicologizante foi confortador. Senti que era uma boa
oportunidade para lhe dizer que daí a três meses eu teria que ausentar. Para minha
surpresa, ela expressou um desapontamento ape-. nas educado e tratou o assunto com
objetividade. Observei em mim misto de decepçã o e rejeiçã o diante de sua
objetividade fria, junto com preocupaçã o por achar que a reaçã o dela era um modo de
suportar seu pró prio sentimento de abandono. Estaria eu novamente subestimando
Clara e, desta vez, para lidar com minha pró pria dificuldade em aceitar que talvez eu
nã o fosse tã o importante assim para ela?
Na sessã o seguinte, discutimos melhor as opçõ es diante da i terrupçã o que se
aproximava: continuar com outro terapeuta ou pa sem previsã o de data para o
retorno. Clara diz que nã o queria parar, tinha medo de que interromper a terapia
significasse parar também as transformaçõ es que sentia em sua vida: Tenho vontade
de desistir e ficar satisfeita com o que já mudou, mas ainda falta algo muito
importante falta mú sica, ia dar um colorido todo especial. Clara havia recentemente.
voltado a brincar, como ela dizia, com o violã o que ela tocara um pou- co na
adolescência. Estava fazendo uma letra para uma cançã o, mas
62 « Roberto Novaes de Sá
diria nã o se sentir capaz de fazer a mú sica e que pediria a aro amigo pata compor para
ela. Se conseguisse dominar a mú sica, seria perfeito. Pergunto a ela: é possível
dominar a mú sica? Ela me responde ss assim que a palavra dominar saiu de sua boca
teve certeza que eu para algum comentá rio a respeito. Sinto-me desconfortavelmente
previsível. Ela vuntinua dizendo que, na verdade, nã o achava que seria à pala vi mais
alequada ao que estava querendo dizer, mas que nã o conseguiu encon- trar outra. No
final desta sessã o, Clara diz que nã o pretende procurar uutro terapeuta e que tudo vai
ficar bem. Sorrio condga mesmo sem ffansparecer e penso que ela inverteu os nossos
papeis. pe
Nas sessõ es seguintes, Clara retoma questõ es de sua vida cotidiana. Fala sobre o filho
que está com alergia respirató ria e comenta que ss pe suas à recriminam porque ela
fica com pena de levá -lo para tomar injeçã o. Lembra-se de sua infâ ncia e do quanto
era terrível para ela ir ao pesa de Wivinaçã o. Questiono a suposiçã o de que a
experiência do filho será igual hua, Ela entã o me pergunta por que eu estou sempre
interrogando a fespeito das causas que ela me expõ e como explicaçã o para o que aee
Junho vontade de discorrer para ela sobre fenomenologia, mas me asso mulizer que as
perguntas visam apenas compreender melhor o sentido, di aque acontece. Ela retruca:
é muito bonito na teoria, mas na prá tica é difícil. E ancordo com ela. Clara retorna a
um discurso muito parecido com o a Inicio da terapia. Fala sobre o pai, sobre o
marido, sobre ia quei- | no mesmo tom de lamentaçã o. Acho estranha a maneira como
ela coloca neste momento porque nã o sinto como uma fala autêntica, mas pú mmo
uma provocaçã o dirigida a mim. Nã o acho oportuno peniana: o discurso, digo apenas
que sei bem o quanto, à s vezes, à vida parece vil e solitá ria. Clara retorna mais
animada na semana seguinte. Traz uma letra mú sica que fez sobre a luta diá ria a
procura de uma vaga a estacio- hento para seu carro quando visita os clientes. Diz que
ainda está curando alguém para fazer a melodia. Enquanto leio, uma plura- lade de
significaçõ es vai me ocorrendo. Estacionar o carro és corta ate, um problema bastante
comum nos centros urbanos, mas nã o wderia ela estar falando também sobre a sua
busca por um lugar, no dentido de se posicionar diante das situaçõ es e ocupar seu
espaço se “diferenciados contextos da vida? É uma possibilidade de interpretaçã o que
faz sentido diante da sua histó ria. Digo isto a cla. Quanto à melodia, me recordo de
nossa conversa sobre a interrupçã o da terapia, em que ela disse que faltava a mú sica.
Explicito a analogia e pergunto se nã o seria interessante que ela mesma tentasse
compor a mú sica. Clara me diz que, na verdade, já está tentando, mas ainda nã o sabe
se vai conseguir, por isso, nã o é bom descartar a possibilidade de uma parceria.
Concluo, dizendo que essa liberdade de compor sozinha ou fazer parcerias é, ao meu
ver, muito mais interessante do que dominar a mú sica.
No início de nossa penú ltima sessã o, Clara diz que ainda nã o as- similou muito bem
essa ideia de parar a terapia. Nã o está segura de que seja o momento certo e teme nã o
conseguir continuar o processo sozinha. Em seguida, me conta que começou a
conversar com uma pes- soa desconhecida pela internet: estava buscando alguém
para dialogar quando acabassem os atendimentos. Segundo Clara, esta pessoa, com
quem ela conversaria on-line, ocuparia um lugar semelhante ao de um terapeuta,
porque nã o teria o mesmo nível de envolvimento cotidiano de um amigo, seria um
outro tipo de intimidade, menor e maior ao mesmo tempo. Pergunto por que, entã o,
ela nã o considera melhor a possibilida- de de continuar a terapia com outro psicó logo,
eu mesmo poderia lhe dar alguma indicaçã o. Ela diz que vai pensar, mas que talvez
seja apenas
medo e nã o uma necessidade real. Falo que a internet pode ser um.
meio de comunicaçã o para pessoas que se encontram a grandes dis- tâ ncias físicas, e
pergunto se poderia entender a alusã o a um terapeu! virtual como uma sugestã o para
a continuaçã o de nossas convers Clara ri e diz que nã o havia pensado nisso, mas agora
me ouvindo fal parecia ó bvio. Digo a ela que esta possibilidade já tinha me ocorrido
que já ouvira até falar em pesquisas sobre atendimento psicoterapêu: tico on-line, mas
além de ser um campo onde eu nã o gostaria de me aventurar no momento, também
nã o poderia assumir outros compro- missos, pois minha agenda de trabalho no
período em que estaria fora seria bastante apertada. Ela me diz que entende e que nã o
vê realmen- te necessidade de que eu lhe dê alguma indicaçã o de outro terapeuta.
Afirma que está bem com sua vida e que é mesmo difícil abrir mã o de um espaço que
foi tã o importante para o seu crescimento, diz que será mais uma transformaçã o e
embora ainda nã o consiga entender como acontece, já sabe que acontece.
Chega o momento de nossa ú ltima sessã o. Clara sugere que tro- quemos nossos
lugares, sentando um na cadeira do outro. Eu concordo.
Acho desnecessá rio entulhar este movimento tã o significativo com pa- iuras. Ela diz
que a perspectiva da sala sob aquele â ngulo é mais bonita. Vigo que talvez seja o
deslocamento de posiçã o que esteja permitindo vor essa beleza, pois eu também estou
achando a vista da minha nova perspectiva bastante interessante. Ficamos em silêncio
a maior parte tempo, mas nã o há aquele desconforto tenso do silêncio que ain- da é
apenas a impotência do falató rio diante da grave proximidade do futro. Na terapia, o
silêncio do cliente é, com frequência, associado ao Iuslvamento, mas aqui o silêncio
era reconhecimento e gratidã o pela ex- periência da abertura existencial, que nos foi
proporcionada através do pncontro. Nã o apenas a abertura circunstancial de uma
autoimagem po- ailiva, desta precisamos sempre falar mais. No entanto, nenhum
discurso pode dar abrigo definitivo ao homem. O silêncio é o traço essencial distintivo
da existência humana, condiçã o ontoló gica de possibilidade “ale qualquer discurso.

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