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Capitalismo e precarização do trabalho

João Areosa
Universidade Nova de Lisboa, CICS.NOVA, Lisboa, Portugal
ISLA-Leiria, Leiria, Portugal

Introdução
O trabalho permanece um aspeto central na vida dos atores sociais con-
temporâneos, entre outros fatores, porque a esmagadora maioria da po-
pulação mundial faz depender a sua subsistência desse mesmo trabalho.
O nosso modelo atual de organização social – capitalismo – está na ori-
gem de múltiplas condicionantes que degradam as relações de trabalho e
a qualidade de vida das populações, visto que a sua natureza implica mais
horas de trabalho, está na génese de um exército de desempregados, pro-
move diferentes formas de precarização com salários desmesuradamente
baixos, elabora a organização do trabalho de um modo que corrói os laços
de solidariedade entre trabalhadores e gera condições de trabalho, por
vezes, degradantes e potenciadoras de acidentes ou doenças. É perante
este cenário pouco animador que uma parte significativa da população
mundial tem de trabalhar, mantendo-se a secular exploração do homem
pelo homem.

Um esboço sobre a noção de trabalho


Início este texto com algumas considerações sucintas acerca da noção
de trabalho. Assim, por trabalho, entende-se todo o conjunto de ações
humanas, que apresentem como finalidade última a produção de um

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ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

bem ou serviço. A teleologia do trabalho é sempre definida com ob-


jetivos pré-determinados, tentando alcançar metas preestabelecidas.
O trabalho pode ser considerado, metaforicamente, como um organismo
vivo, onde cada indivíduo é um órgão que assume uma função específica.
O trabalho caracteriza-se por poder ser dividido socialmente. Por este
motivo é natural que a noção de trabalho esteja intimamente relaciona-
da com a estrutura e com a dinâmica das diversas sociedades modernas;
ao trabalho são atribuídas interpretações, valorizações e representações
muito distintas, quer de sociedade para sociedade, quer mesmo entre os
grupos ou classes sociais dentro da mesma sociedade. “Pela variedade de
formas que assume, pela diversidade de entendimentos que suscita, pela
maneira como se apresenta aos agentes consoante a localização destes
na estrutura social, pelas evoluções que tem sofrido no tempo, o trabalho
bem pode aparecer-nos como algo de abstracto, fugidio e ilusório que,
não obstante, é impossível deixar de contemplar, tal a sua permanência
e tal a magnitude da sua presença e da sua função na vida dos indivíduos
e no funcionamento das sociedades. Imaginar um mundo sem trabalho
soa a algo de absurdo e, no fundo, mais difícil de conceber racionalmente
do que enfrentar os perigos – reais – de o tentar cingir num ensaio de
definição” (Freire, 1997: 12).
Em determinados momentos históricos o trabalho foi entendido
como uma forma de punição e sofrimento (convertido numa espécie de
“instrumento de tortura”, tal como refere Antunes, 2005); talvez para
contrariar a sua penosidade algumas religiões transformaram-no numa
forma de salvação da alma. Esta “nova” conceção do universo laboral
metamorfoseou o seu carácter negativo para positivo – designarei este
processo como sublimação do trabalho. Nas últimas décadas verificaram-se
significativas alterações à forma como o trabalho é compreendido, or-
ganizado e executado, nomeadamente após a década de 1980 (quando
se começaram a introduzir novas formas de exploração, a partir de no-
vas técnicas de organização do trabalho, algumas delas mais perversas
do que as anteriores). A atividade em call centers é um bom exemplo de
como as “novas” formas de organização do trabalho podem ser profunda-
mente castradoras para a saúde e a dignidade dos sujeitos (Roque, 2014).
Em empregos deste tipo, cujos trabalhadores já foram designados como
infoproletários (Antunes e Braga, 2009), parece que esses mesmos traba-
lhadores têm de vestir uma espécie de carapaça de ferro antes de iniciar o
seu labor (devido ao desgaste que estas funções implicam); nestes casos,

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CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

toda a gratificação e reconhecimento das suas funções aparentam estar


irremediavelmente postergadas.
De modo simplificado pode afirmar-se que o trabalho tem duas fun-
ções sociais primordiais: a produção de bens ou serviços e a reprodu-
ção social. Podemos compreender o trabalho como o contributo que
cada ator social oferece à sociedade, recebendo em troca os frutos desse
mesmo esforço. Contudo, a referida troca está, em muitos casos, longe
de ser justa e proporcional. A título de exemplo, um empresário que fica
“repentinamente” milionário só atinge esse patamar através da usurpa-
ção do trabalho alheio, ou seja, não é algo que dependa apenas do seu es-
forço e empenho individual (um exemplo de imoralidade ainda maior é
o enriquecimento através de investimentos em ações na bolsa). Na reali-
dade, é a gigantesca maioria de homens e mulheres que vende a sua força
de trabalho quem produz a riqueza mundial, mas não é ela que usufrui
dessa mesma riqueza. Os lucros gerados coletivamente por um deter-
minado conjunto de trabalhadores deveriam ser distribuídos de forma
equitativa, ou como já foi referido: “Não deve ser um punhado de ricos,
mas todos os trabalhadores, a gozar os frutos do trabalho comum. As má-
quinas e outros aperfeiçoamentos devem facilitar o trabalho de todos e
não enriquecer uns poucos à custa de milhões e dezenas de milhões de
pessoas” (Lénine, 1984: 10).
O conceito de trabalho1 é polissémico e multifacetado, apesar de
poder conter algumas regularidades relativamente à sua organização
social. Revela, no entanto, um papel fundamental na construção de iden-
tidades (individuais e sociais), é passível de conter resistências e confli-
tos, depende de afetividades e emoções, está repleto de diferentes for-
mas de poder e dominação e é ainda suscetível de gerar quer coesão e
emancipação, quer descompensações, mal-estar, doenças ou acidentes.
É, portanto, suficientemente ambivalente, podendo ser compreendido
de forma polarizada: entre o prazer que suscita e o sofrimento que pro-
duz (Dejours, 2013; Areosa, 2014). Dada a sua influência sobre a moral

1
  Ilustrativamente, vale a pena referir que Dejours (1998) tentou distinguir o conceito de traba-
lho do ato de trabalhar. Segundo o autor, o conceito de trabalho está cheio de controvérsias sendo
mesmo, nos dias de hoje, insuscetível de se tornar consensual (tendo em conta as diversificadas
correntes que o abordam). Paralelamente, trabalhar está relacionado com a forma de mobilizar o
corpo e com a utilização da inteligência do trabalhador, no sentido de produzir algo que incor-
pore valor. Nos seus estudos mais recentes, Dejours (2013) acabou por atenuar a importância
desta distinção.

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ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

coletiva (entendida como as diferentes formas de convivência social),


o trabalho é algo que merece uma permanente reflexão ética. É impor-
tante lembrar que o trabalho é algo que não parou de sofrer múltiplas
evoluções ao longo dos tempos (ou retrocessos, em determinados casos)
e por isso mesmo carece de uma “constante” reavaliação.2 As ciências do
trabalho têm concentrado a sua atenção na análise e descodificação des-
tas constantes dinâmicas do universo laboral (incluindo a sua influência
social e individual). Contudo, apesar dos inúmeros conhecimentos que
foram sendo alcançados, é importante referir que este objeto de estudo
é ainda uma “caixa negra” longe de estar totalmente decifrada. Na ver-
dade, do ponto de vista epistemológico é um debate que ainda se encon-
tra em aberto.
Para Dejours (2005) o trabalho carece de técnicas para a sua execu-
ção e traduz-se numa atividade socialmente útil; esse mesmo trabalho
assume, na atualidade, uma enorme variedade de formas, suscita uma
grande diversidade de entendimentos e é concebido de maneiras dife-
rentes pelos múltiplos atores/agentes sociais, consoante, por exemplo,
a sua localização na estrutura social (Freire, 2002). Tentar idealizar um
mundo sem trabalho (tal como foi preconizado por alguns autores, os
quais profetizavam “o fim do trabalho”), parece cada vez mais um cená-
rio irrealista ou dificilmente sustentável.3 Tal como já foi sublinhado por
Freire (1997), devido à magnitude da sua presença e da sua função na
vida dos indivíduos, bem como no funcionamento das sociedades, ima-

2
  Vejamos ainda mais uma contribuição para a noção de trabalho: “Não há, pois, trabalho sem
recurso à técnica, seja elementar e individualmente detida, seja supercomplexa e já só possível
em conjuntos altamente organizados. (…). Por outro lado, quais são os atributos que, como resul-
tado, transformaram a actividade humana em trabalho? É trabalho o esforço continuado de um
atleta amador para melhorar os seus «máximos» desportivos? Não! Ou a organização de um acam-
pamento de fim-de-semana por um grupo de jovens escuteiros? Não! Para haver trabalho (em
termos sociais) é preciso que os outputs dessa actividade tenham, simultaneamente, utilidade
geral (isto é, que satisfaçam uma necessidade sentida por um conjunto considerável de pessoas)
e, por outro lado, valor económico. Ora, independentemente do juízo (moral, estético, político,
etc.) que possamos fazer acerca do mérito intrínseco de certos bens (por exemplo, as armas de
destruição, ou as práticas de prostituição) é indiscutível que toda a produção de mercadorias e
de serviços que encontra um mercado de compradores prontos a pagar o respectivo preço é uma
produção «socialmente útil» e com «valia económica» (definida pelo nível monetário em que se
fixa a transacção)” (Freire et al., 2014: 9).
3
  Para além disso, esta visão sobre o “fim do trabalho” é excessivamente eurocêntrica e não repre-
senta o mundo do trabalho ao nível global (Antunes, 2005).

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CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

ginar um mundo sem trabalho é algo profundamente estranho.4 Sem


querer entrar no campo das previsões (deixo a jurisdição dessa tarefa
a cargo dos astrólogos e de alguns economistas), penso que o trabalho
continuará a acompanhar a história da humanidade (pelo menos nos
tempos mais próximos, exceto se ocorrer uma alteração tão extraordina-
riamente inesperada que possa ser designada como um Cisne Negro – no
sentido proposto pelo filósofo Nassim Taleb, 2008). Profetizando que
não ocorrerá esse tal evento inesperado, manter-se-á a pertinência de
tentar aferir quais são os diversos efeitos que o trabalho produz para as
sociedades e na vida das pessoas. Para além disso, é imprescindível não
esquecer que a esmagadora maioria da população mundial faz depender
a sua subsistência do trabalho, ou seja, são uma enorme classe-que-vive-
-do-trabalho (Antunes, 2008).
Continua a fazer sentido afirmar que a vida em sociedade perma-
nece, ainda hoje, profundamente dominada pelo trabalho, apesar dos
avanços técnicos e tecnológicos das últimas décadas terem atingido ní-
veis de desenvolvimento singulares em toda a história da humanidade.
Seria suposto que os referidos avanços tivessem libertado o homem não
somente dos trabalhos fisicamente mais fustigantes (o que acabou, em
parte, por acontecer), mas particularmente do tempo que despende a
trabalhar. Atualmente, poderíamos e deveríamos reduzir os horários de
trabalho, porque temos um nível de desenvolvimento sociotécnico que
nos permite manter um elevado padrão de vida sem ter de trabalhar
tanto tempo.5 É pertinente não esquecer que a divisão social do traba-
lho é excessivamente assimétrica, bem como a distribuição dos recursos
produzidos por esse trabalho coletivo. Na verdade, nunca produzimos

4
  Pretendo deixar claro que não é minha intenção efetuar uma apologia do trabalho em detri-
mento do lazer, até porque me parece que o equilíbrio entre ambos será, em princípio, mais
vantajoso em diversos níveis. Sob o formato de analogia, evoco, neste contexto, as palavras de
Aristóteles, onde o filósofo grego apontava que a felicidade do Homem (provavelmente a fina-
lidade última da nossa existência e a maior de todas as virtudes) estaria no meio-termo, no ponto
médio entre o excesso e o defeito, ou seja, entre dois extremos (neste caso, no equilíbrio entre o
trabalho e o lazer).
5
  Para além disso, há diversos estudos a demonstrar “que a equação «mais tempo de trabalho =
mais produção» era uma falsa equação, em grande número de circunstâncias. Na verdade, a intro-
dução de pausas de repouso durante a jornada de trabalho, o encurtamento desta e outras medi-
das do género tinham, em muitos casos, provado traduzir-se, pelo contrário, em um aumento da
produção, validando a equação contrária: «menos tempo de trabalho = mais produção»” (Freire,
2002: 83).

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ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

tanto, nem nunca tivemos tanta capacidade produtiva, mas isso não sig-
nifica que estejamos a produzir cada vez melhor.6 No mundo ocidental
a discrepância entre ricos e pobres parece estar “inexplicavelmente”
a crescer, embora as desigualdades sociais sejam um problema secular
na história da humanidade. O modelo de organização social capitalista,
através das suas atuais políticas neoliberais, é o principal responsável
por muitas das imorais assimetrias contemporâneas. Em determinados
contextos, surpreendentemente, o capitalismo nem sempre tem sofrido
grande resistência por parte dos trabalhadores (Varela, 2012), talvez por
serem alvo de profunda manipulação.
Incompreensivelmente, as técnicas e as tecnologias (que suportam
largamente o aumento produtivo) não foram colocadas ao serviço do ho-
mem (leia-se, em favor do bem comum), mas antes em prol de pequenas
fações ou grupos dominantes, tal como os autores da Escola de Frankfurt
(Marcuse, Habermas, Adorno e outros) tão oportunamente já tinham
identificado. Com a emergência da revolução tecnológica seria suposto tra-
balhar menos do que aquilo que trabalhamos, mas, como já foi referido,

6
  O motivo pelo qual não estamos a produzir cada vez melhor está longe de ser aleatório ou ino-
cente. Provavelmente se lhe dissesse que uma lâmpada (similar às que tem em sua casa) poderia
durar mais de cem anos iria desconfiar e talvez esboçasse um sorriso irónico. Mas digo-lhe que
pode! E não é mera ficção, pois existe uma lâmpada em Livermore (Califórnia, EUA) que tem
atualmente cerca de 114 anos de existência e continua a funcionar (estima-se que em junho de
2015 tenha completado 1 milhão de horas a trabalhar). Esta situação intrigou um empresário de
Barcelona – Benito Muros – e levantou-lhe a seguinte questão: se há mais de cem anos existiam
técnicas e tecnologias suficientes para fazer uma lâmpada durar tanto tempo, porquê que hoje
“já não somos capazes disso”? É neste contexto aparentemente intrigante que vale a pena re-
fletir sobre a noção de “obsolescência programada”, a qual está intimamente relacionada com o
capitalismo atual. Na verdade, a obsolescência programada é uma prática fraudulenta, efetuada
por algumas empresas (particularmente as de maior dimensão), dado que fabricam intencional-
mente produtos para durarem pouco tempo. Obviamente que o que está por trás desta política
é vender mais e, por consequência, lucrar mais. O nosso modelo económico atual, baseado no
consumo, tem de vender em grandes quantidades para sobreviver, logo, se os produtos durassem
muito tempo as vendas cairiam de forma drástica. É por isso que atualmente se produz, de forma
programada, quase tudo com um ciclo de vida relativamente limitado, quer seja uma simples
lâmpada doméstica, quer sejam eletrodomésticos, roupas, computadores ou automóveis. Uma
outra forma ainda mais perversa de obsolescência programada parece estar a ser utilizada pela
indústria farmacêutica, quando limita os efeitos curativos dos medicamentos. Todavia, os diver-
sos tipos de obsolescência programada utilizados à escala global tem diversos efeitos negativos
(alguns incalculáveis), tanto ao nível do desperdício de recursos (os quais são suscetíveis de afe-
tar gravemente o meio ambiente), como no âmbito dos direitos humanos, laborais e da qualidade
de vida individual e coletiva (porque, por exemplo, este modelo de organização social obriga as
pessoas a trabalhar mais e em piores condições quando, na verdade, não há necessidade disso).

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CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

o capitalismo só funciona mediante a obtenção de lucro (e para isso é ne-


cessário que se produza em larga escala e se mantenham níveis elevados
de consumo). Se é verdade que o capitalismo nos trouxe alguns benefí-
cios,7 também é verdade que acarretou inúmeras perversidades sociais,
onde podemos incluir, por exemplo, diversas assimetrias que estão na
base da pobreza e da exclusão, além de promoverem uma competitivi-
dade empresarial exacerbada, o desemprego e a precariedade.8
Porém, olhar para o precariado9 implica incluir uma enorme diver-
sidade de situações, as quais nem sempre são exclusivamente negativas
(embora a esmagadora maioria o seja). Aquilo que une o precariado são
os salários tendencialmente baixos e a insegurança no emprego; mas par-
ticularmente esta última caraterística inibe a construção de uma identi-
dade sócio-profissional e a ideia original de carreira (enquanto percurso
continuo ao longo da vida). Deste ponto de vista a precariedade é um
processo de profissionalização falhada. Para além disso, o trabalho precá-

7
  As estatísticas apontam para que sejamos hoje as pessoas mais saudáveis, mais ricas e mais lon-
gevas de toda a história da humanidade (Gardner, 2008).
8
  Ainda no âmbito das inúmeras consequências nefastas do capitalismo, vejamos a extraordiná-
ria reflexão de Bourdieu sobre este aspeto: “Quando o desemprego, como hoje em numerosos
países europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afecta uma parte muito impor-
tante da população, operários, empregados de comércio e de indústria, mas também jornalistas,
docentes, estudantes, o trabalho torna-se uma coisa rara, desejável a qualquer preço, que põe os
trabalhadores à mercê dos empregadores e estes, como podemos verificar todos os dias, usam e
abusam do poder que assim lhes é dado. A concorrência em torno do trabalho é redobrada assim
por uma concorrência no trabalho, que continua a ser uma forma de concorrência em torno do
trabalho, que é preciso preservar, por vezes sem querer saber dos custos, contra a chantagem do
despedimento. Esta concorrência, por vezes tão selvagem como aquela a que as empresas se en-
tregam, encontra-se no princípio de uma luta de todos contra todos, que destrói todos os valores
de solidariedade e de humanidade e, por vezes, assume uma violência sem disfarce. Os que de-
ploram o cinismo que caracteriza, em seu entender, os homens e as mulheres do nosso tempo não
deveriam esquecer-se de o relacionar com as condições económicas e sociais que o favorecem ou
o exigem e que o recompensam” (Bourdieu, 1998: 116).
9
  A propósito da crescente precarização laboral, Standing (2014) refere que pode estar a emergir
uma nova classe social “perigosa”, dado que os trabalhadores precários têm, regra geral, pouco a
perder no atual contexto de políticas neoliberais. Mas afinal porquê que o precariado é designado
como uma potencial classe perigosa? Consideremos a seguinte explicação: “As tensões no seio do
precariado estão a colocar as pessoas umas contra as outras, impedindo-as de reconhecer que a
estrutura social e económica está a produzir um conjunto de vulnerabilidades que lhes é comum.
Muitos serão atraídos por políticos populistas e mensagens neofascistas, uma situação crescente
que já é claramente visível em toda a Europa, nos Estados Unidos e noutros países. É por isso
que o precariado é a classe perigosa e é por isso que é necessária uma «política de Paraíso» que
responda aos seus medos, inseguranças e aspirações” (Standing, 2014: 58).

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ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

rio não oferece mobilidade ascendente e isso é profundamente desmo-


tivador. Não há qualquer sonho ou perspetiva de progressão e tudo se
transforma numa frustrante consciencialização de que o trabalho exe-
cutado não é valorizado nem reconhecido. Contudo, tal como já ficou
subjacente, o precariado é bastante heterogéneo na sua constituição.
“O adolescente que entra e sai do café com Internet enquanto sobre-
vive de empregos temporários não é equivalente ao migrante que usa
a sua perspicácia para sobreviver, estabelecendo febrilmente uma rede
de contactos, ao mesmo tempo que se preocupa com a polícia. Nem é
semelhante à mãe solteira preocupada com a forma de arranjar dinheiro
para a alimentação da próxima semana, ou ao homem de 60 anos que
arranja trabalhos ocasionais para ajudar a pagar as contas do médico e
da farmácia. Mas todos eles partilham a sensação de que o seu trabalho é
instrumental (para viver), oportunista (aceitando o que aparece) e pre-
cário (inseguro)” (Standing, 2014: 40).

Os efeitos do capitalismo no mundo moderno do trabalho


Os pressupostos que estiveram na origem e na essência do capitalismo,
preconizados por Max Weber (2001), são bastante diferentes daqueles
que podemos observar na atualidade. Nas palavras de Sennett (2001)
houve uma rutura significativa entre o velho capitalismo de classe e o novo
capitalismo flexível. As consequências desta transformação foram, no mí-
nimo, aterradoras para algumas formas de interação e convivência con-
temporâneas, nomeadamente ao nível do trabalho. O lucro tornou-se,
cegamente, no único objetivo das empresas (ou pelo menos o principal)
e a ideologia utilitarista foi levada ao extremo, tendo em conta que os
meios utilizados para atingir esse fim (lucro) são, em certos casos, imo-
rais. Foi também por isso que no mundo atual do trabalho as pessoas
se tornaram descartáveis e este tipo de práticas originou um verdadeiro
batalhão de trabalhadores precários e um exército de desempregados.
No entanto, cada desempregado representa a nossa incapacidade de or-
ganizar eficazmente as sociedades onde vivemos e isso traduz-se na dimi-
nuição da qualidade de vida das populações (com todas as repercussões
que isso acarreta). Se o trabalho que cada um realiza na sociedade é o
seu contributo para o bem coletivo, logo, quando alguém quer trabalhar
e está impedido de o fazer por uma alegada “falta de trabalho”, há uma
diminuição da qualidade de vida da população. Também deste ponto de

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CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

vista o capitalismo que promove o desemprego é profundamente deses-


truturador. Mas o desemprego está longe de representar apenas a nossa
alegada falta de capacidade para organizar as sociedades; ele serve para
lembrar constantemente aos trabalhadores que ter emprego é um privi-
légio cada vez mais escasso e que quem ainda trabalha está muito longe
de ser insubstituível. Esta constante ameaça oriunda do mercado de tra-
balho serve para desmoralizar e desmobilizar eventuais práticas subver-
sivas das massas. Parece que não restam dúvidas que o desemprego é uma
forma eficaz de controlo social.
O trabalho de cada um deveria estar ao serviço da comunidade, mas
o capitalismo tem provocado a implosão do mundo do trabalho e a con-
sequente falência de um universo social coerente. O capitalismo flexível
tem originado uma profunda desestabilização dos empregos estáveis e,
para muitos trabalhadores, uma intermitência entre trabalho precário e
desemprego. Além de todas as consequências materiais que o desem-
prego acarreta, ele gera medo, ansiedade, porque faz pairar sobre nós o
fantasma da inutilidade (Sennett, 2006) e isso é absolutamente aterrador
para o nosso bem-estar psicossocial. Para Sennett (2001) o trabalho na
era da flexibilização tornou-se ilegível e incompreensível. Talvez o maior
desafio que o capitalismo flexível nos coloque seja o de saber “quem pre-
cisa de nós”? Esta pergunta está longe de ter uma resposta imediata, mas
se não houver o reconhecimento de que o nosso trabalho é importante,
de que exercemos uma função social útil,10 o nosso ego sente-se perdido
no universo social, bem como nós próprios enquanto seres sociais; e as
pessoas sentem falta de maior coesão social, de relações humanas susten-
tadas e de objetivos duradouros (Sennett, 2001: 153).

10
  Richard Sennett (2006) refere que entrevistou alguns trabalhadores de diferentes áreas pro-
fissionais, os quais afirmaram que não tinham mudado para empregos melhores, com remunera-
ções superiores, devido ao facto de sentirem que estavam a fazer algo útil nos empregos onde es-
tavam. O reconhecimento simbólico que pode advir do trabalho é uma peça fundamental para a
nossa identidade. “Uma enfermeira de Nova York disse-me que por este motivo é que ficava num
hospital público sem recursos, em vez de ganhar mais dinheiro com serviços particulares. As duas
formas de trabalho são úteis, mas no hospital ela «fazia a diferença»” (Sennett, 2006: 39 e 40).
Creio que não é difícil imaginar diversas situações que podem gerar prazer no trabalho, nomea-
damente quando nos sentimos úteis para os outros. Lembremos, por exemplo, uma equipa de
cirurgia que conclui com sucesso uma intervenção, cujo paciente estava em risco de vida; um
jogador de futebol que marca o único golo na final de uma competição importante e sente a eufo-
ria de milhares de adeptos; ou um agricultor com sensibilidade suficiente para se orgulhar ao ver
florescer os frutos do seu trabalho, os quais irão alimentar outras pessoas.

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ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

A elevada competição11 e o crescente individualismo nas empresas


implicam que estejamos cada vez mais desligados dos outros. Contudo,
a solidão é suscetível de provocar anomia social e destrói os sentimen-
tos mais nobres de humanismo. Talvez seja por isso que a pobreza e a
exclusão se alastram num mundo de crescente produção e abundância,
pois nunca tantos recursos estiveram tão concentrados – e assimetrica-
mente distribuídos – na história da humanidade. O capital passou a ter
um valor superior ao próprio Homem. Esta afirmação não é exagerada
se considerarmos que a hegemonia financeira dos mercados de capitais
empurra para a miséria largas camadas da população em alguns países.12
As consequências negativas para a qualidade de vida das populações são
demasiado evidentes, mas os efeitos que estas situações acarretam para
a saúde/sanidade mental dos indivíduos e para a sua própria identidade
estão, ainda hoje, longe de ser totalmente compreendidas.
A forma como estamos a gerir politicamente as nossas sociedades le-
vanta alguns paradoxos, os quais só encontram explicação na “irracional”
procura do lucro. Vejamos apenas dois exemplos assustadores: 1- Exis-
tem milhões de homens e mulheres desempregados, mas continuamos a
obrigar alguns de nós a trabalhar mais de 60 horas por semana ou, ainda
pior, a recorrer ao trabalho infantil; 2- Produzimos cada vez mais, mas,
pelo contrário, não produzimos cada vez melhor,13 apesar dos constan-

11
  É pertinente lembrar que “As pessoas que começam a entrar em competição escondem das
outras conhecimentos, informações, contactos e recursos que, caso fossem revelados, anulariam
uma vantagem competitiva” (Standing, 2014: 54).
12
  Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2014: “Em 104 países em desenvolvi-
mento, 1,2 mil milhões de pessoas tinham um rendimento de 1,25 dólares, ou menos, por dia.
Contudo, o número de pessoas em situação pobreza multidimensional em 91 países em desen-
volvimento foi estimado em cerca de 1,5 mil milhões de pessoas – segundo a medida do Índice
de Pobreza Multidimensional (IPM)” (p. 42). Acedido em 23/12/2015, através do link: http://
passthrough.fw-notify.net/static/879715/downloader.html
13
  Dada a sua importância, volto a frisar que a noção de “obsolescência programada”, a qual está
intimamente relacionada com práticas “fraudulentas” de produção, acaba por ser um exemplo da
nossa profunda “desorganização social do trabalho”. Continua a fazer sentido falar no fetichismo
da mercadoria, bem como da atual forma de produzir bens, os quais vivem da imagem exterior
(superficial) e parecem ser produzidos com uma espécie de revestimento ou laminagem a ouro (Sen-
nett, 2006), para esconder a fragilidade do seu interior. Em parte, foi por isto que o novo estádio
evolutivo não significou uma diminuição considerável do trabalho, bem como o tempo que se lhe
dedica; logo, por consequência, não libertou o homem, por exemplo, para o campo do lazer, da
cultura e do bem-estar. O resultado desta desnecessária (sublinho desnecessária porque atual-
mente, ao contrário do passado, existem alternativas sustentáveis para inverter esta lógica) so-
brecarga de trabalho para o homem transforma-se, entre muitas outras situações, na perpetuação

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CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

tes avanços técnicos e tecnológicos. Para além disso, nem mesmo aquilo
que produzimos em excesso é distribuído pelas classes desfavorecidas
(em particular por aqueles que morrem de fome, literalmente) e isto
demonstra a profunda decadência das sociedades modernas e o quão
inumanos continuamos a ser uns com os outros.
O nosso carácter parece estar a ficar profundamente corroído, em
parte, por termos perdido a sensação de que somos úteis para os outros e
de que temos um papel a desempenhar no seio da comunidade, ou seja,
é a nossa própria vivência ancestral coletiva que parece estar a desmoro-
nar-se. A coesão está mais frágil e a conceção de que temos uma função
social útil para desempenhar torna-se cada vez menos clara e evidente.
Paralelamente, a ideia de contrato social (onde está subjacente a noção de
que cada um dos membros da sociedade tem mais vantagens em viver em
conjunto do que isoladamente) parece estar a desvanecer-se, devido aos
processos de individualização impulsionados pelo atual capitalismo fle-
xível. Estaremos nós a caminhar para aquilo que Hobbes designou como
estado de natureza, em que, neste caso, a fugaz sobrevivência humana só
poderia ser obtida através da guerra de um contra todos? O problema é
que perante este cenário hipotético não haverá vencedores, todos esta-
remos inevitavelmente vencidos! É precisamente por isso que a noção
de contrato social é mais vantajosa para todos. Dentro deste contexto, é
importante vincar a seguinte ideia:
“Um regime que não dá aos seres humanos razões profundas para cuidarem uns dos
outros não pode manter por muito tempo a sua legitimidade” (Sennett, 2001: 225).

Segundo uma assertiva expressão utilizada por diversos autores, desde


meados da década de 1970, existe uma dualização do mercado de trabalho,
dado que muitas empresas têm gerado, por um lado, uma elite de tra-
balhadores, com rendimentos consideráveis e relativamente estáveis ao
nível da sua situação laboral e, por outro lado, uma esmagadora maioria
de trabalhadores precários, mal remunerados e sem qualquer nível de
proteção e segurança no emprego.14 Por motivos diferentes, quer uns,

de níveis elevados de acidentes de trabalho e em múltiplos danos à saúde, os quais acabam por
desestruturar a integridade física e mental dos trabalhadores (Areosa, 2012a).
14
  A escritora Viviane Forrester (1997) refere ironicamente uma terceira “categoria de pessoas”:
os supérfluos. São indivíduos que estão fora do mercado de trabalho e que a economia os pre-
tende rotular como nefastos para a sociedade. Paralelamente à questão da dualização do mercado
de trabalho existem autores que não partilham esta visão determinista do mundo do trabalho,
referindo que ele é bem mais complexo e diversificado do que esta visão dualista traduz (Kovács,

249
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

quer outros, acabam por estar sujeitos a pressões significativas oriundas


do seu ambiente laboral, devido, por exemplo, ao excesso de trabalho e a
jornadas bastante mais longas do que seria admissível.15

Flexibilização ou flexploração?
Outro aspeto que tem contribuído fortemente para a degradação da rela-
ção que as pessoas têm com o trabalho é a designada flexibilização (aqui
podemos incluir a legislação laboral, o mercado de trabalho e o funcio-
namento interno das próprias empresas). O conceito de flexibilização no
trabalho está relacionado com a polivalência funcional, com a desregu-
lação dos horários de trabalho, com a liberalização das condições de em-
prego, particularmente a precariedade16 e maior facilidade em despedir.
Tendo em consideração que os velhos modelos da fábrica de alfinetes
de Adam Smith, o fordismo e o taylorismo entraram sucessivamente em
crise, muitos gestores acreditam que a era da flexibilidade emerge como
sendo a “salvação” do modelo produtivo. A génese da palavra flexibilidade
derivou da cultura helénica em resultado da observação direta da capa-
cidade que uma árvore pode ter em inclinar-se com a força do vento e
voltar à posição original (sem danos).

2006). É pertinente não esquecer que, por exemplo, dentro das profissões existem hierarquias e
divisões que propiciam níveis de prestígio e estatuto social muito diversificados para os membros
de uma mesma profissão (Areosa e Carapinheiro, 2008).
15
  A propósito destas duas situações surgiu o termo japonês karoshi para se referir aos trabalha-
dores que morrem por causa do excesso de trabalho, normalmente devido a problemas cardíacos
e após longas horas sem interrupção para descansar. Paralelamente, também no Japão, foram
detetados alguns casos de trabalhadores que se suicidaram devido ao excesso de trabalho. Esta
situação foi apelidada por karojisatsu (Amagasa et al., 2005). Os autores colocam como hipótese o
seguinte: longas jornadas de trabalho, sobrecarga de trabalho e níveis reduzidos de apoio social
podem causar depressão, a qual, por sua vez, pode conduzir ao suicídio. Estes são alguns dos tra-
ços comuns nos casos de suicídio analisados por esta pesquisa (Amagasa et al., 2005).
16
  Na perspetiva de Paugam (2013) a precariedade corresponde a uma forma de desqualificação so-
cial que promove a degradação moral e a desvalorização do ser humano, particularmente quando
tem de recorrer a terceiros para subsistir. Nestes casos os trabalhadores auferem um rendimento
do trabalho abaixo daquilo que é considerado como um “salário de subsistência”. Segundo uma
publicação recente a precariedade no trabalho ou no emprego é entendida como “uma condição
de insegurança na relação contratual que pode corresponder a vínculos temporários, trabalho a
tempo parcial, colaborações pontuais, como sucede com o trabalho sazonal, sucessão de estágios
ou os chamados «falsos recibos verdes», isto é, prestadores de serviços que desempenham efec-
tivamente tarefas de necessidade permanente e que são mantidos continuadamente em funções,
contornando a lei” (Freire et al., 2014: 153 e 154).

250
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

“Flexibilidade designa a capacidade da árvore de ceder e recuperar, de alterar e resta-


belecer a sua forma. Idealmente, o comportamento humano flexível devia ter a mesma
resistência tênsil: ser adaptável à mudança de circunstâncias mas sem ser quebrado
por ela” (Sennett, 2001: 73).

Porém, na perspetiva de Sennett, a flexibilidade, com todas as suas


estratégias e práticas, tende a vergar os indivíduos, ultrapassando a sua
capacidade de “resistência tênsil”, corroendo o seu carácter pessoal.
No final da década de 1980, a flexibilidade surge associada a uma cono-
tação e valorização social positiva, com fracos nichos de resistência.
Nos dias de hoje, este modelo apesar de conter inúmeros adeptos dentro
da “classe de decisores”, acaba simultaneamente por sofrer diversas crí-
ticas de alguns grupos sociais, onde podemos incluir, por exemplo, sin-
dicatos, comissões de trabalhadores, grupos de trabalhadores precários e
movimentos sociais anti-capitalismo.
A obra de Richard Sennett enquadra-se numa perspetiva crítica do
novo modelo produtivo baseado no regime de flexibilização. Os argu-
mentos utilizados pelo autor revelam que a flexibilidade tende a gerar
desordem, fragmentação, incerteza, instabilidade, torna o tempo des-
continuo (sem perspetivas de carreira a longo prazo, porque cada tra-
balhador pode mudar de emprego diversas vezes, ao longo da vida, até
ficar aposentado) e sem uma sequência lógica dotada de significado.
Na verdade, há uma perda de sentido numa das mais importantes dimen-
sões da nossa vida quotidiana: o trabalho. A flexibilidade tende a aumen-
tar a precarização no emprego.17 Estas formas atípicas de contratação la-
boral já foram apelidadas como o reino dos McEmpregos, onde podemos
incluir trabalhos como: fritar hambúrgueres, entregar pizzas, trabalhar
em lojas de centros comerciais e caixas de supermercados ou fazer aten-
dimento em call centers. Na verdade, a crescente flexibilização dos merca-
dos de trabalho veio transferir (ainda mais) os riscos e a insegurança para
os trabalhadores e respetivas famílias (Standing, 2014).
Segundo as palavras de Bourdieu (1998) a precariedade está em toda
a parte, é uma patologia social que se alastra. Mas a precariedade tem

17
  Nesta linha de pensamento, podemos dividir a flexibilidade em dois grandes tipos: “(…) «fle-
xibilidade interna», como a possibilidade de alterar o tempo de trabalho ou a promoção da po-
livalência, e a «flexibilidade externa», como o outsourcing, o recurso ao trabalho temporário ou
a facilidade de despedimento. A flexibilidade é, em todo o caso, indissociável do debate sobre a
precariedade” (Freire et al., 2014: 156).

251
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

ainda múltiplas consequências perniciosas: promove a degradação da


auto-imagem dos trabalhadores e da sua identidade, suscita a destrui-
ção das resistências dos trabalhadores e a fragilização do seu coletivo,
que, por sua vez, gera obediência, submissão, passividade, incentiva o
servilismo e produz uma maior capacidade de aceitação da exploração.
Neste contexto de flexibilização e precariedade sabemos que os indiví-
duos não estabelecem relações de aliança com a empresa onde laboram,
pois é difícil estabelecer relações de confiança no seio da precarização
laboral.18 Na perspetiva de Sennett (2001) todas as situações enume-
radas acima acabam por ir minando o carácter individual dos sujeitos.
Resumidamente, a sua principal conclusão defende que o novo espírito
de capitalismo, baseado nas práticas flexíveis, em que as redes de solida-
riedade são frágeis, vão corroendo o carácter dos trabalhadores. Alguns
psicólogos sociais acreditam que a nossa espécie tem uma determinada
propensão para confiar e cooperar, mas num ambiente de constante fle-
xibilidade e incerteza essas caraterísticas diluem-se (Standing, 2014: 53).
O modelo japonês de lean prodution apresenta-se como um exemplo
paradigmático do regime de flexibilização nas empresas; as suas carate-
rísticas principais passam pela eliminação de todos os desperdícios, qua-
lidade total (zero defeitos), responsabilização ao nível da execução e dis-
ponibilidade ilimitada às exigências da empresa. Este modelo produtivo
japonês de “produção magra”, também designado de Toyotismo, colocou
a economia deste país no “centro” da economia-mundo, isto se recorrer-
mos à teoria do “sistema-mundo” elaborada por Immanuel Wallerstein.
Mas a excessiva racionalização, automatização e estandardização do mo-
dus operandi das organizações flexíveis (particularmente neste modelo

18
  Segundo as palavras de Standing (2014) o precariado pode estar a transforma-se na nova classe
perigosa, devido, em parte, às múltiplas formas de opressão às quais se encontra submetido. Esta
situação gera uma espécie de subcidadãos (pois encontram-se privados de alguns direitos de cida-
dania), representando também a imagem de nómadas urbanos. Vejamos ainda mais algumas cara-
terísticas desta “classe emergente”: “O precariado não sente que faz parte de uma comunidade
solidária de trabalho. Isso intensifica a sensação de alienação e instrumentalidade naquilo que os
seus membros têm de fazer. Ações e atitudes, derivadas da precariedade, tendem a derivar para o
oportunismo. Não há qualquer «laivo de futuro» que paire sobre as suas ações, para lhes dar uma
sensação de que o que lhes dizem, fazem ou sentem hoje terá um efeito forte ou uma ligação com
os seus relacionamentos de longo prazo. O precariado sabe que não há laivo de futuro, porque
não há futuro no que estão a fazer. Ser «posto na rua» amanhã não é olhado com surpresa; e sair
pode não ser uma coisa má, se aparecer outro trabalho ou uma atividade que os atraia” (Standing,
2014: 38).

252
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

lean prodution) tende a transformar o trabalho vivo em trabalho morto. No


entanto, ao trabalho estandardizado por regras e procedimentos é nor-
malmente necessário acrescentar a inteligência dos trabalhadores para
que as coisas funcionem. A aplicação desta inteligência é designada
como trabalho vivo, o qual se torna imprescindível para o normal fun-
cionamento de qualquer organização. Não há nenhuma organização que
possa prescindir do trabalho vivo (Dejours, 2013).19
No presente, os modelos de gestão empresarial contemplam em
grande medida a ideia de flexibilidade e de adaptação, que tentam de-
monstrar do seu interior para o exterior como sinónimos de eficácia e
de sucesso no mercado concorrencial; os comportamentos e práticas
flexíveis têm implícita a ideia de mudança, que procuram recriar as ins-
tituições (algumas delas transformando-se em organizações camaleónicas,
tal como refere Sennett, 2006), gerando muitas vezes descontinuidades
irreversíveis, entre o passado e o presente. É pertinente voltar a subli-
nhar que a atual cultura de gestão flexível baseia-se em modelos e práti-
cas de exclusão; e tende a reconhecer uma importância diminuta a todo
um capital de conhecimentos adquiridos ao longo da vida, a experiência,
afirmando que a juventude tem uma maior capacidade de adaptação às
novas exigências do mercado de trabalho e às necessidades das empresas.
Consequentemente, estigmatiza os trabalhadores de meia idade e tem
uma certa propensão para afastar os das faixas etárias mais avançadas.
A utilização desta “cultura” nos modelos de gestão flexíveis estabelece
rupturas profundas com as caraterísticas dos modelos anteriores, que se
baseavam profundamente na experiência acumulada dos trabalhadores,
como factor de maior produtividade para as empresas. A flexibilização

19
  Para além disso, este aumento da dimensão tecnocientífica do universo laboral é, em certos
casos, bastante arriscado. Porque ao limitar a estrutura cognitiva dos trabalhadores, diminuindo
a necessidade de uso da sua inteligência (ou seja, transformando o trabalho vivo em trabalho
morto), são gerados novos riscos, por vezes difíceis de antecipar. Um exemplo paradigmático
desta situação, embora circunscrito a um contexto muito específico, é relatado por Taleb (2012):
a Federal Aviation Administration (FAA) obrigou as empresas de transportes aéreos a aumentar a
sua dependência da pilotagem automática. Porém, a automatização dos aviões deixa poucos de-
safios aos pilotos, tornando a sua condução “demasiado” confortável e perigosamente tranquila.
A redução da atenção devido à escassez de solicitações e desafios aumentou o número de aciden-
tes fatais. Quando se baixa demasiado a carga de trabalho e o respetivo esforço mental, levamos
mais tempo a tomar decisões; mas isso em situações de emergência pode ser desastroso. Para bem
de todos nós, a FAA compreendeu posteriormente que o problema do aumento de acidentes
estava na excessiva delegação de responsabilidades nos sistemas automáticos e voltou novamente
a limitar o uso do piloto automático.

253
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

tende a reconfigurar decisivamente o universo laboral, rejeitando os


antigos pilares que legitimavam e sustentavam o funcionamento das em-
presas e do mercado de emprego. Ao nível individual, segundo Sennett
(2001), é onde se sentem as maiores dificuldades de adaptação, dado
que esta nova política de gestão assenta na instabilidade e na desconti-
nuidade.
Apesar de tudo, as mudanças institucionais, baseando-se nas práti-
cas flexíveis, tornaram-se em diversas situações num negócio rentável
para as empresas, visto que, no decorrer destes processos de mudança
as ações das empresas sobem nos mercados financeiros. O problema é
que esta vantagem tende a ser momentânea e fugaz. Existem diversos
exemplos, em que as “empresas-mãe” vendem unidades de produção lu-
crativas, reinventando-se internamente, para mais tarde voltar ao negó-
cio que anteriormente sabiam lucrativo; estas políticas “subversivas” das
empresas flexíveis, levam alguns autores, a falar sobre o fim do capitalismo
organizado, ou de um capitalismo desorganizado (Beck et al., 2000).
Supostamente a designada reengenharia tem como meta prioritária
o aumento da produção com a utilização de menos recursos ou com a
sua melhor utilização. Muitas vezes as empresas recorrem a consultores
“criativos e experimentalistas” que desconhecem por completo o pulso e
a dinâmica das organizações que pretendem restruturar. Não é raro ocor-
rer a transferência de trabalhadores que levaram anos a desenvolver as
suas competências para áreas onde estão completamente às cegas. Após
concluírem o seu “trabalho”, normalmente bem remunerado, os consul-
tores, por vezes, deixam as organizações num estado não muito longe do
caos e da desordem. Para além disso, a redução do número de trabalha-
dores considerados dispensáveis é um dos principais objetivos da reen-
genharia, isto é, promovem o downsizing dos empregos. As restruturações
das empresas adeptas da flexibilidade, tendencialmente eliminam postos
de trabalho, que segundo os gestores podem desaparecer; praticando es-
tas políticas as empresas apresentam uma maior credibilidade no merca-
do, particularmente no económico e financeiro, visto mostrarem capaci-
dade de mudança (creio que é relevante acrescentar que mudança não
é por si só sinónimo de maior eficácia). Embora esta cultura de gestão
flexível se tenha tornado dominante nas empresas dos Estados Unidos os
resultados em termos de eficiência parecem não ser muito animadores.
“Erik Clemons, um dos mais sóbrios e práticos desses consultores, observou de forma
autocrítica que «muitos, se não a maioria, dos esforços de reengenharia falham», em

254
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

grande medida porque as instituições se tornam disfuncionais durante o processo de


redução do pessoal: os planos de negócios são postos de parte e revistos; os benefícios
esperados acabam por ser efémeros; a organização perde a orientação” (Sennett,
2001: 77).

O downsizing é um processo que vem gerando profunda instabilidade,


quer no mercado de trabalho, quer no seio das próprias empresas. No
centro deste “furacão” estão os trabalhadores mais vulneráveis que per-
dem a sua fonte de rendimento, por via do trabalho, os quais acabam por
partilhar um sentimento de fracasso pessoal (além da consequente de-
gradação da sua qualidade de vida). A explicação privilegiada, por parte
dos gestores, para o desencadear destes processos é o de que a mudança
é necessária. É ela a grande responsável pelo downsizing; a partir deste
cenário tentam despersonalizar e desresponsabilizar os atos de gestão,
culpabilizando as condicionantes e exigências do mercado.20 As práticas
do mundo do trabalho contemporâneo mudaram radicalmente com a
flexibilização e entrámos na era da flexploração (recorrendo a uma asser-
tiva expressão utilizada por Bourdieu, 1998). Contudo, a flexibilidade
que conduz à precariedade está longe de ser uma inevitabilidade econó-
mica decorrente da globalização, é acima de tudo uma decisão política
ou gestionária.
Este novo modelo de produção flexível é perverso, visto que, a parte
económica domina em absoluto e não contempla a parte humana; os ges-
tores não se preocupam com a manutenção dos empregos, com a estabi-
lidade social, com as condições de trabalho, no fundo, com as condições
de vida dos trabalhadores. A decisão de mudar uma fábrica de um país
para outro rege-se exclusivamente pela redução dos custos de produção
que visam a obtenção de maior lucro. A crescente mobilidade do capital
e a deslocalização das empresas para países com salários mais reduzidos
promove a concorrência de trabalhadores à escala mundial. Mas estas
políticas não são apenas perversas para quem perde o emprego, são-no
também para os trabalhadores do outro extremo do mundo que têm de
aceitar remunerações miseráveis (Bourdieu, 1998). Na verdade, este mo-
delo vicioso de organização global deve ser colocado em ampla discus-
são, sendo urgente repensar as estratégias políticas, sociais e económicas
dos nossos dias. As políticas capitalistas de maximização dos lucros e o

20
  Os psicólogos designariam este processo de auto-desculpabilização como atribuição causal
externa.

255
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

“livre” funcionamento dos mercados vêm pôr em causa a qualidade das


sociedades em que vivemos, sendo de questionar a sua própria legitimi-
dade, bem como o legado que pretendemos oferecer às gerações futuras.

A organização do trabalho e as suas implicações para a saúde do


trabalhador
As novas formas de gestão das organizações, impostas pela cúpula hie-
rárquica, acabam por fomentar a diluição dos elos sociais, da coesão e
da interajuda entre pares; este fenómeno é suficientemente nocivo para
a identidade e integridade dos trabalhadores, dado que quebra as suas
redes de solidariedade, incorporando o medo e a solidão no mundo do
trabalho (Dejours, 2011). É pertinente lembrar que as pessoas procuram
muitas vezes provar o seu valor através do trabalho; mas, as atuais formas
de gestão empresarial irradiam indiferença, e por isso mesmo a satisfa-
ção, o reconhecimento e a realização pessoal no trabalho parecem estar
constantemente a ser procrastinados. A entreajuda entre pares parece
um território cada vez mais estranho e deserto. Uma das muitas formas
para compreender a atual desestruturação sócio-organizacional já foi
anteriormente designada por desintegração do grupo de trabalho (Areosa e
Dwyer, 2010), a qual pode ser efetuada, por exemplo, através de políticas
de outsourcing, dado que estas estratégias, utilizadas no orbe capitalista,
tendem a promover a precarização do trabalho e uma elevada rotativi-
dade de trabalhadores nas empresas (Sennett, 2001).
Tudo isto tem como consequência imediata uma maior vulnerabili-
dade dos trabalhadores “da linha da frente” às patologias do foro men-
tal, as quais podem ter custos e consequências muito elevados. A título
ilustrativo, os dramáticos suicídios em algumas organizações francesas
(extensíveis a outras realidades espalhadas pelo mundo inteiro)21 pare-
cem ter-se tornado virais (utilizo este termo no sentido de contagioso, algo

21
  Em algumas empresas multinacionais com sucursais na China também se verificaram diver-
sos casos de trabalhadores que se suicidaram. “A reação imediata da Foxconn para com os suicí-
dios foi paternalista. Cercaram os edifícios com redes para apanhar as pessoas se estas saltassem,
contrataram conselheiros para os trabalhadores angustiados, trouxeram monges budistas para os
acalmar e pensaram em pedir aos trabalhadores para assinarem documentos de compromisso em
como não se iriam suicidar. Celebridades de Silicon Valley, na Califórnia, expressaram a sua preo-
cupação. Mas não tinham razões para estar surpreendidas. Tinham ganho milhares de milhões de
dólares com os produtos a um custo ridiculamente baixo” (Standing, 2014: 64).

256
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

que se tornou numa espécie de mini-epidemia). Na base desta sequên-


cia de suicídios esteve, entre outras situações, o silêncio, a covardia e o
abandono por parte dos colegas de trabalho (Dejours e Bègue, 2009).
Esta conduta parece ter como explicação as alterações na organização do
trabalho e as consequentes perdas de solidariedade entre pares. Isto não
significa, obrigatoriamente, que o sofrimento seja maior hoje do que foi
no passado, significa antes que as nossas resistências se tornaram menos
eficazes. E porquê? Porque estamos cada vez mais isolados nos nossos
locais de trabalho.
Neste ponto pretendo, essencialmente, abordar algumas questões
relativas aos “novos” métodos da organização do trabalho, bem como as
suas implicações para a saúde dos trabalhadores. Dentro das organiza-
ções o trabalho depende de dois fatores chave: a coordenação (a qual
implica o uso de poder de uns sobre os outros, enquanto forma de do-
minação) e a cooperação (onde está implícita uma certa forma de con-
vivialidade). Segundo a perspetiva de Dejours (opinião expressa numa
entrevista ao jornal Público, em 1 de Fevereiro de 2010),22 a organização
do trabalho sofreu nos últimos anos profundas alterações a partir de três
grandes vetores: 1) Emergência de novos métodos de gestão, particular-
mente a avaliação de desempenho (ao nível individual); 2) Introdução de
técnicas ligadas à designada “qualidade total” (sistemas de certificação,
círculos de qualidade, protocolos de atuação, etc.); e 3) Políticas de outsour-
cing (que conduzem à precarização no emprego).
A avaliação das performances individuais dentro das organizações tem
como propósito principal medir “objetivamente” o desempenho dos tra-
balhadores, de forma quantitativa e comparativa. Mas nos moldes atuais
a avaliação individual de desempenho pode estar a transformar-se numa
“odiosa” comparação entre trabalhadores, dado que estas práticas se tor-
nam, em certos casos, profundamente estigmatizantes ao nível pessoal.
Na verdade, dificilmente se pode medir o trabalho em si mesmo, aquilo
que se pode medir são os resultados do trabalho. Todavia, o trabalho
realizado e os resultados do trabalho são coisas muitas vezes distintas.23

22
  Acedido em 21/12/2015, através do link: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/um-suici-
dio-no-trabalho-e-uma-mensagem-brutal-1420732
23
  Em relação à falta de proporcionalidade entre o trabalho realizado e os resultados do trabalho
é interessante confrontar as noções de profissões com trabalho escalável e trabalho não escalável
(Taleb, 2008). As profissões com trabalho não escalável são, por exemplo, pagas à hora e implicam
normalmente a presença física do profissional; estou a falar de casos como: consultas de médicos,

257
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

Na prática não se consegue medir o tempo que os trabalhadores levam


a formar as suas competências (técnicas e/ou relacionais), os saberes e
habilidades que necessitam aprender, ou mesmo o tempo psíquico e in-
telectual que cada um dedica para conseguir realizar as suas atividades
(incluindo o tempo de descanso que passam a pensar no trabalho, por
vezes roubando horas de sono quando já estão na cama). Para além dis-
so, os resultados do trabalho dependem de diversas circunstâncias (por
vezes exteriores ao trabalho) que podem ter uma fraca correlação com o
esforço e empenho desenvolvidos pelo trabalhador. A sorte está longe de
ser um fator despiciente nas nossas vidas, incluindo a vida profissional.
É pertinente referir que a relação do trabalhador com a sua hierar-
quia (avaliador do desempenho) está normalmente longe de ser isenta.
Regra geral, as relações sociais (abrangendo também as de trabalho) são
profundamente dominadas por interesses diversos, por empatias e sim-
patias pessoais, por imposições ou, pelo contrário, por escolhas livres, por
estratégias coincidentes ou descoincidentes entre os sujeitos envolvidos
(isto só para referir alguns exemplos), logo, não são neutras, isentas ou
justas como inicialmente pressupõem os modelos de avaliação de desem-
penho. A partir deste ponto de vista a alegada “justiça” dos modelos de
avaliação individual é em determinados casos uma fraude e potenciadora
de inúmeras situações de conflito (Areosa, 2012a). Mas a relação entre

psicólogos e psicanalistas ou ainda os serviços prestados por advogados ou prostitutas! Por mais
bem pagos que sejam estes trabalhadores há quase sempre um limite monetário que não é ultra-
passado por cada consulta ou serviço prestado e, claro está, também há um limite máximo para
o número diário de horas para trabalhar. Isto significa que quer o rendimento, quer o número de
horas trabalhadas são relativamente limitadas.
Agora imagine que os Metallica lançam um novo álbum de originais e vendem vários milhões de
CD’s. O tempo que levaram a gravar o disco e a compor as músicas é o mesmo, quer vendam os re-
feridos milhões de cópias, quer vendam apenas algumas dezenas de CD’s. Os músicos que gravam
discos ou os autores que publicam livros são exemplos de profissões com trabalho escalável, isto
porque o trabalho feito uma única vez pode ser reproduzido várias vezes com relativa facilidade
(e não necessita da presença de cada um deles); ou seja, nem a banda necessita de estar presente
cada vez que algum dos seus fãs quiser ouvir o seu disco, nem o escritor precisa de escrever cada
um dos livros dos seus leitores. Isto pode libertar tempo para outras atividades, nomeadamente
o lazer. Contudo, as profissões com trabalho escalável são perigosas e podem constituir-se numa
frustrante ilusão, pois apenas uma restrita minoria consegue obter um elevado sucesso profissional
e, por consequência, enriquecer (lembre-se, por exemplo, que existem muito poucos jogadores
de futebol com salários similares ao Cristiano Ronaldo, mas existem muitos milhões espalhados
pelo mundo com rendimentos parecidos ao seu e ao meu). Esta é uma situação do tipo “o ven-
cedor fica com tudo”. Por isso, tenha cuidado se escolheu uma profissão com trabalho escalável
apenas porque pretende “trabalhar pouco” e, simultaneamente, enriquecer!

258
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

hierarquias e subordinados pode estar na origem de casos bem mais dra-


máticos para a saúde dos trabalhadores. Uma reveladora pesquisa sueca
que monitorizou a saúde de mais de 3000 trabalhadores do sexo mascu-
lino, durante cerca de dez anos, com idades compreendidas entre os 19
e os 70 anos, sugere que os “maus chefes” (incompetentes, autoritários
ou autocráticos) aumentam significativamente o número de problemas
cardíacos nos trabalhadores, incluindo casos fatais (Nyberg et al., 2009).
O estudo demonstrou ainda que este efeito é cumulativo, ou seja, quanto
mais tempo os trabalhadores estiverem sob a alçada deste tipo de hie-
rarquias, maior é o risco de adoecerem. Isto significa que um mau chefe
pode matar, literalmente.24
Christophe Dejours afirma que o mundo do trabalho se transformou,
em parte, numa guerrilha que faz cada vez mais vítimas; não porque este
“combate” seja exatamente novo, mas porque a solidão a que cada um fi-
cou remetido afetou profundamente a saúde mental. A etimologia desta
espiral catastrófica para a saúde do trabalhador está em grande medida
dependente das atuais formas de organização do trabalho, onde se inclui
os modelos de avaliação de desempenho. Não posso deixar de citar um

24
  Tal como na perspetiva anterior, Freire (1991) preconiza que as relações que se estabelecem
entre trabalhadores e hierarquias são um aspeto decisivo nas relações sociais de trabalho, par-
ticularmente na forma de dirigir a execução do trabalho. No caso específico dos encarregados
e capatazes da construção civil, enquanto agentes de comando de “primeira linha” (hierarquia
direta), o autor afirma que estes atores podem ter um papel importante no aumento ou diminui-
ção do número de acidentes de trabalho, devido ao papel específico que desempenham dentro
das organizações. Se a sua sensibilidade para os temas da segurança no trabalho for significativa,
o poder e autoridade inerente ao seu cargo podem constituir-se como um fator inibidor para os
acidentes. Contudo, é pertinente lembrar que os acidentes são eventos heterodeterminados e
representam de forma muito clara a desumanização do trabalho contemporâneo (Areosa, 2015a).
Ainda dentro do tema dos acidentes de trabalho uma investigação realizada pela Universidade
Católica ajudou-nos a compreender melhor uma dimensão importante deste complexo pro-
blema. Assim, o estudo apresentava como objetivo prioritário, a elaboração de um perfil geral (ti-
pificação) do trabalhador sinistrado, em Portugal. Neste trabalho foram inquiridos mais de 4000
indivíduos, sendo a amostra representativa em termos de género, região, sector de atividade e
níveis de instrução. “(...) O perfil do trabalhador sinistrado é um indivíduo do sexo masculino,
de baixo nível de escolaridade, trabalhador por conta de outrem e de uma certa antiguidade na
empresa. O trabalho de pé e em espaço restrito é o mais associado à sinistralidade laboral, assim
como a variabilidade das tarefas ao longo da jornada ou do ano, a execução de tarefas repetitivas
e monótonas em posições dolorosas ou fatigantes. Também aparecem associados à sinistralidade
a flexibilidade de horários, o regime de turnos rotativos e uma duração de trabalho superior a 40
horas semanais. No que diz respeito às condições psicossociais, a maior autonomia e responsabi-
lidade no desempenho das tarefas parece associar-se a um menor risco de sinistro laboral ou de
doença profissional” (Rego e Freire, 2001: 29).

259
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

pequeno excerto do texto de Dejours, onde são referidas as consequên-


cias deste tipo de práticas:
“Efetivamente, a avaliação individualizada e quantitativa do desempenho coloca
todos os assalariados em concorrência uns com os outros. Os sucessos de um colega
tornam-se uma ameaça para o outro assalariado. É agora cada um por si e todos os
golpes são permitidos. A desconfiança e o medo recaem sobre o mundo do trabalho.
A deslealdade torna-se banal. A amabilidade e a entreajuda desaparecem. As pessoas
já não se falam. A solidariedade desaparece. No fim, cada um se encontra só no meio
da multidão, num ambiente humano e social repleto de hostilidade. A solidão abate-
-se sobre o mundo do trabalho e isso muda radicalmente os dados no que diz respeito à
relação subjetiva com o trabalho e à saúde mental” (Dejours, 2013: 21).

Na sequência da avaliação individual de desempenho surge um se-


gundo vetor associado à organização do trabalho, o qual é designado
por “qualidade total”. Esta é uma outra forma de controlo e avaliação
do trabalho em que os gestores traçam como objetivo a “qualidade to-
tal”. Porém, a “qualidade total” é algo carregado de utopia (similar aos
“zero-defeitos” ou aos “zero-acidentes”); é um mito, é algo idealizado
(mas inexistente ou impraticável no mundo real). Pode ser importante
ter um ideal de “qualidade total” se este aspeto servir de referencial, se
apontar um caminho ou direção, desde que acompanhado por um enten-
dimento absolutamente claro de que não é possível atingi-lo em pleno.
De certo modo, aquilo que se torna assustador nesta questão é que os
gestores nem sempre conhecem verdadeiramente as especificidades
de cada profissão, mas são eles que vão definir os critérios de avaliação
e do controlo da qualidade. Isso acaba por gerar diversos problemas.
Na verdade, a “qualidade total” é um contra-senso, pois a própria reali-
dade constantemente nos mostra que o mundo real não funciona de
forma ideal (por exemplo, o trabalho prescrito é algo que está distante do
trabalho real e é por isso que o trabalho vivo25 se torna imprescindível).
Afinal o mundo é um local repleto de riscos, onde predominam as incer-
tezas, as aleatoriedades, as indeterminações, as contingências, os impre-
vistos, os imponderáveis ou as não-linearidades (Areosa, 2010), mas pa-
rece que agimos sem ter consciência disso.

25
  O modo de produção capitalista é descrito por Marx (num capítulo inédito de “O capital”)
como um “processo de sucção” do trabalho vivo, isto é, tem acentuado a transformação do tra-
balho vivo em trabalho morto. Este processo foi também designado por Castillo como liofilização
organizacional (cf. Antunes, 2005).

260
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

Nos dias de hoje, podemos observar que muitas empresas entraram


na “loucura” da estandardização dos seus processos para obter determi-
nadas certificações (em que normalmente acaba por estar subjacente a
ideia de “qualidade total”, “zero-defeitos” ou “zero-acidentes”). Veem
isso como a “salvação” para os seus problemas externos (pois supõem
que isso lhes permite aumentar a credibilidade e o prestígio) e internos;
neste último caso, imaginam que as certificações servem para controlar
o grande vilão existente dentro das organizações: as falhas humanas!
Contudo, estas certificações são muitas vezes uma ilusão fraudulenta e,
ainda pior, implicam diversos problemas que em certos casos as tornam
desastrosas. Isto acontece porque quando o ideal de “qualidade total” se
torna na condição obrigatória para obter a referida certificação, as falhas
passam a ser escondidas ou omitidas e o funcionamento da organização
transforma-se numa “dissimulação consentida”. As pessoas passam a ter
pudor em falar das dificuldades do seu trabalho real (porque a idealiza-
ção do trabalho prescrito raramente as consegue antecipar) e porque se
torna “politicamente incorreto” abordar o que não funciona bem ou o
que correu mal, tal como incidentes, erros ou lapsos. Agora imaginem o
quão arriscado se torna os trabalhadores sentirem medo, receio ou ansie-
dade em reportar falhas ou incidentes em organizações de alto risco.
Na verdade, este tipo de inibições pode transformar-se em algo fatal ou
catastrófico (Areosa, 2012b).
Ao nível da saúde do trabalhador, particularmente ao nível psico-
lógico, a “qualidade total” pode também acarretar diversos problemas.
E porquê? Porque em certos casos nos obriga a vivenciar a traumática
experiência de realizar o nosso trabalho de forma que nos envergonha.
Estar fortemente condicionado a fazer batota, a ter de mentir ou a omitir
pode transformar-se numa forma atroz de sofrimento ético.26 Nos trabalha-
dores mais zelosos isso tem um efeito (negativo) poderoso sobre a sua

26
  O sofrimento ético acontece quando o trabalhador é obrigado a praticar determinadas ações que
condena moralmente, por causa do seu trabalho. É uma espécie de traição de si mesmo ou traição
do ego. Nas palavras de Dejours: “O novo capítulo do sofrimento ético torna mais compreensível
uma segunda faceta da forma como «a nossa escala social de valores entra em linha de conta», a
saber, o julgamento que o sujeito faz de si próprio, não só sobre a qualidade da sua contribuição
no que concerne a produção, mas sobre o valor ético da sua prestação. Porque, pela sua atividade
de produção, o trabalhador compromete, de facto, o destino de outro, em particular do cliente
que tem obrigação de enganar ou do subordinado que deve «colocar sob pressão». Isto significa
que o trabalho não se reduz a uma atividade, implica dimensões que advém da ação, no sentido
que Aristóteles dá ao conceito de praxis: ação moralmente justa” (Dejours, 2013: 23).

261
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

saúde. Em diversas profissões, nomeadamente a medicina, existem múl-


tiplos protocolos que devem ser seguidos rigorosamente (caso contrário
podem existir fortes penalizações). Por vezes, verifica-se que o protocolo
não está em consonância com a avaliação pericial do profissional (dado
que as generalizações nunca conseguem compreender e incluir todas as
especificidades associadas aos casos particulares); mas o médico sente
medo em violá-lo, porque no caso de as coisas “darem para o torto” po-
derá ser acusado de negligência, porque não fez o que deveria fazer.
Caso o profissional opte por seguir o protocolo em detrimento daquilo
que a sua experiência pessoal lhe indica que seria adequado fazer, além
do sofrimento ético que isso lhe pode custar (e isso já é suficientemente
grave), também estamos perante uma profunda limitação da sua autono-
mia profissional,27 imposta pelo ideal de “qualidade total”. Obviamente
que a “qualidade total” oferece algumas vantagens, mas se tivermos em
conta aquilo que referi anteriormente, verifica-se que em certos con-
textos ela torna-se perigosa e contraproducente.
O terceiro e último aspeto referido por Dejours está relacionado
com as políticas de outsourcing. Contudo, esta questão tem um outro pro-
blema a montante: os processos de reestruturação/reengenharia das or-
ganizações, os quais se traduzem muitas vezes pela redução do número
de trabalhadores (downsizing dos empregos). Já referi anteriormente que
na ótica de Sennett (2001) o downsizing acaba por estar intimamente
relacionado com a crescente desigualdade no mundo do trabalho con-
temporâneo. Porém, mesmo para as próprias empresas estes processos
são normalmente um fracasso, entre outras coisas, porque a moral e a
motivação dos trabalhadores caem a pique perante cenários desta na-
tureza. Nem mesmo os trabalhadores “sobreviventes” aos processos de
downsizing conseguem alegrar-se, regra geral sucede o inverso; porque
além de verem os seus pares partirem (desintegrando-se o seu coletivo
de trabalho), instala-se o medo de serem eles próprios as vítimas seguin-
tes no próximo processo de reengenharia.
Muitos gestores ainda acreditam que o recurso à terceirização28 (out-
sourcing) de determinadas tarefas ou serviços será a chave para reduzir

27
  Recordo que a autonomia é um dos pilares “sagrados” da profissão médica (Areosa e Carapi-
nheiro, 2008).
28
  Alguns autores complementam esta noção ao afirmarem que existe já uma quarteirização, isto
é, são “empresas contratadas para gerir contratos com as terceiras, caracterizando a cascata de
subcontratação” (Franco et al., 2010: 233).

262
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

os custos e melhorar a funcionalidade da organização. Também aqui


estamos perante uma enorme ilusão, baseada numa crença infundada!
O recurso ao outsourcing é conhecido no jargão dos gestores como dessedi-
mentação organizacional (Sennett, 2006). Este tipo de práticas caracteriza-
-se por passar a atribuir determinadas funções a terceiros, libertando a
organização de certas “camadas” consideradas secundárias. Com a flexi-
bilização organizacional as empresas engordam ou emagrecem (em ter-
mos de número de trabalhadores), mediante a transição de uma tarefa
para outra. Muitos empregos permanentes transformam-se em sazonais.
Porém, é importante lembrar que a boa relação entre pares é normal-
mente construída a partir da confiança, a qual é cimentada, por vezes, ao
longo de vários anos. As estratégias informais – as quais implicam rela-
ções de confiança – são imprescindíveis e dominam largamente o funcio-
namento interno de algumas organizações.29 Mas quando as pessoas não
se conhecem, porque por exemplo trabalham em empresas diferentes
ou quando as próprias empresas têm uma elevada rotatividade interna
(turnover), é mais difícil construir relações de confiança e criar redes de
solidariedade no trabalho. A integração ou coesão dos grupos de traba-
lho entre trabalhadores de empresas diferentes tende a ser bastante mais
fragilizada. E tudo isto afeta negativamente a capacidade de desempe-
nho dos trabalhadores, pois os locais de trabalho transformaram-se em
espaços anti-sociais, onde a cooperação parece estar moribunda.

29
  A propósito desta afirmação, observe-se as consequências destas dimensões no relato da ci-
tação seguinte: “Pude verificar o valor e a deficiência da confiança informal em dois acidentes
industriais separados por trinta anos. No primeiro, numa fábrica ao velho estilo, irrompeu um
incêndio, e verificou-se que o circuito de mangueiras de incêndio estava defeituoso. Os operários
da linha de montagem se conheciam suficientemente para saber como distribuir as tarefas de
urgência. Os gerentes berravam ordens, mas ninguém lhes dava atenção naquela emergência;
os riscos para a fábrica logo foram controlados por uma sólida rede informal. Trinta anos mais
tarde, eu estava numa fábrica do Vale do Silício quando o sistema de refrigeração começou a
sugar em vez de expelir gases nocivos, um desastre nada previsível num prédio de alta tecnologia.
As equipes de trabalho não se coadunaram. Muitos empregados correram em pânico para as saí-
das, enquanto outros, mais corajosos, não sabiam como se organizar. No fim das contas, os ge-
rentes, muitos dos quais reagiram bem, perceberam que aquela fábrica onde trabalhavam 3.200
pessoas estava, no dizer de um deles, apenas «superficialmente organizada no papel»” (Sennett,
2006: 65).

263
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

Notas finais
O principal objetivo deste texto foi debater a questão do trabalho, tendo
como pano de fundo a influência que o nosso modelo de organização
sociopolítico (capitalismo) acaba por ter na qualidade de vida das po-
pulações. Se o lucro e a acumulação de capital não fossem uma meta
prioritária dentro de quase todas as organizações, os recursos poderiam
ser aplicados na melhoria das condições de vida de todos nós. Claro que
independentemente do modelo de organização social que possamos ter,
os percalços e as contrariedades continuarão sempre a ocorrer no futuro,
dado que não existem modelos de convivência perfeitos e totalmente efi-
cazes. O mundo é um local demasiado incerto e aleatório para nos per-
mitir essa façanha!
Mas volto a sublinhar que o modelo económico capitalista baseado
na maximização dos lucros e no alegado “livre” funcionamento dos mer-
cados há muito que está a pôr em causa a qualidade das sociedades em
que vivemos, construindo, por exemplo, mercados de trabalho flexíveis
e formas atípicas de emprego (cada vez menos estáveis e duradouros).
As consequências disto para os trabalhadores são desastrosas nos mais di-
versificados níveis, nomeadamente na precarização do emprego, na saúde
e na sua identidade social, a qual se afirma em grande medida através
da ocupação/profissão. A desumanização do trabalho é secular, mas as
novas formas de precarização estão a dar origem a uma verdadeira socie-
dade dos descartáveis. O desemprego tornou-se estrutural e presenciamos
todos os dias uma dessociabilização crescente dentro do universo produ-
tivo. A flexibilização do trabalho reproduz diversas “forças destrutivas”
para a vida dos trabalhadores, pois, entre outros aspetos, quebra os laços
sociais, a entreajuda e a coesão social; por vezes, incompatibiliza os rit-
mos biológicos naturais com os ritmos laborais (trabalho noturno, turnos
rotativos ou longas jornadas de trabalho) e isso há muito que transfor-
mou a nossa organização social numa espécie de sociedade-patológica. As
empresas flexíveis promovem uma ideologia de excelência organizacional,
a qual suga e esgota os trabalhadores e exclui os menos adaptados a esta
nova modalidade. Esta seletividade organizacional já foi designada como
neurose da excelência (cf. Franco et al., 2010: 240).
Segundo as palavras de Dejours (1999) o nosso modelo de organi-
zação social banalizou a injustiça social. Atualmente tudo parece girar
em torno do lucro (onde estão incluídas inúmeras formas de exploração
e alienação), adiando a felicidade humana por causa do trabalho. Volto

264
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

a sublinhar que se o principal objetivo das organizações não fosse a ob-


tenção do lucro e a acumulação de capital, estes recursos poderiam ser
aplicados na melhoria das condições de trabalho (o que naturalmente
permitiria reduzir, por exemplo, as doenças ocupacionais e os acidentes
de trabalho) e, principalmente, poderíamos reduzir o tempo que passa-
mos a trabalhar.
O aumento dos padrões tecnocientíficos nas organizações tem ge-
rado a implementação obsessiva de cada vez mais normas, regras, pro-
cedimentos, protocolos e estandardizações, cujo expoente máximo pas-
sa pelas certificações (em busca da “qualidade total”); mas todos estes
pressupostos partem do princípio ilusório e falacioso de que existe um
trabalhador ideal e perfeito, capaz de se lembrar, em todos os momentos,
de toda esta enorme panóplia de instruções. Noutro contexto já apeli-
dei esta situação como: Perspetiva Ilusória do Ser Humano Ideal (PISHI)
(Areosa, 2015b). Tendo em conta que as nossas capacidades cognitivas
são limitadas,30 em algum momento irão ocorrer falhas, lapsos, erros ou
acidentes. Normalmente os mentores do trabalho prescrito ignoram esta
importante dimensão da condição humana.
Ao longo deste texto fui destacando algumas formas atuais ou secula-
res da desumanização do trabalho. As consequências do trabalho podem
ser ambíguas, dado que tanto podem oferecer o melhor como o pior para
a existência humana. Esse mesmo trabalho está cheio de representações,
significados e metas, que é necessário interpretar e compreender. O so-
ciólogo Ricardo Antunes tem dedicado uma parte significativa da sua
investigação a refletir sobre estas questões; por isso, creio que o excerto
seguinte traduz de forma assertiva quais devem ser os sentidos do trabalho
nas sociedades contemporâneas:
“Uma vida cheia de sentido em todas as esferas do ser social somente poderá efetivar-
-se por meio da demolição das barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo

30
  A propósito deste aspecto veja-se, por exemplo, o trabalho do psicólogo George Miller (1956),
onde é defendido que a nossa espécie só tem capacidade para processar uma certa quantidade
limitada de informação de cada vez. Quando essa fronteira é ultrapassada parece que ficamos
sobrecarregados e o nosso rendimento começa a baixar drasticamente. Talvez seja por isto que
só conseguimos prestar atenção a um número restrito de situações e tendemos a ignorar outras.
Um exemplo marcante desta situação é relatado no livro de Daniel Simons e Christopher Chabris
(2010), onde os participantes de uma pesquisa estão tão concentrados numa determinada tarefa
(contar o número de passes que os jogadores de basquetebol com camisola branca fazem, igno-
rando os de camisola preta) que a maioria não consegue visualizar um alegado gorila que surge
inesperadamente no meio do ringue.

265
ANARQUISMO, TRABALHO E SOCIEDADE

de não-trabalho, de modo que, a partir de uma atividade vital cheia de sentido, auto-
determinada, para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital
hoje vigente e, portanto, sob bases inteiramente novas, possa se desenvolver uma nova
sociabilidade, na qual ética, arte, filosofia, tempo verdadeiramente livre e ócio, em
conformidade com as aspirações mais autênticas suscitadas no interior da vida co-
tidiana, possibilitem a gestação de formas inteiramente novas de sociabilidade, em
que liberdade e necessidade se realizem mutuamente. Se o trabalho se torna dotado
de sentido, será também (e decisivamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da
literatura, da música, do tempo livre, do ócio, que o ser social poderá humanizar-se e
emancipar-se em seu sentido mais profundo” (Antunes, 2005: 65).

266
CAPITALISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

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