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CARPE DIEM

Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

CARPE DIEM
Diálogos Contemporâneos

2ª edição

Recife | 2010
Copyright© 2010 Antônio Campos

Reservados todos os direitos. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida
– em qualquer meio ou forma, seja mecânico, eletrônico, fotocópia, gravação, etc. – nem
apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização do Autor.

Projeto gráfico
Patrícia Lima

Revisão
Norma Baracho Araújo

Dados Internacionais de Catalogação e Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
___________________________________________________
C198c Campos, Antônio, 1968-
CarpeDiem : diálogos contemporâneos. 2. ed. / Antônio Campos. – 2. ed. – Recife : CarpeDiem,
201 0.
166 p. : il.

ISBN 978-85-62648-06-9

I. ENSAIOS BRASILEIROS – PERNAMBUCO. I.
I. Titulo.

CDU 869.0(81)-4
CDD B869. 4
PeR – BPE 10-0435

___________________________________________________
ISBN 978-85-62648-06-9

Foi feito o depósito legal.


Apresentação
Luiz Carlos Monteiro

Neste conjunto de artigos de Antônio Campos o que


prevalece é o senso de atualidade, a consciência do instan-
te veiculada em proposições de uma visada nova para um
mundo em constante transformação. E isso se realiza em
forma de diálogos que não se restringem ao local nem ao
nacional, embora tenham sido publicados pela imprensa
escrita nesses âmbitos. São textos breves e de variada pro-
cedência, versando sobre eventos correntes e diferenciados
em sua natureza de base: da diplomacia cultural ao roteiro
biográfico sucinto, da complexidade da religião ao fluxo
institucional dos bens culturais.
Quando fala de diplomacia cultural, o escritor chama
a atenção para a política internacional e as relações ex-
teriores, geralmente mais voltadas para o mercantilismo
em grandes acordos e negócios de guerra, quais políticas
públicas e privadas que sobrepujam as nuanças culturais
que legitimam e referenciam povos e países. Empreende a
defesa veemente de criação do Instituto Machado de Assis
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(IMA), cuja plataforma inicial foi ventilada a partir de uma


declaração conjunta de representantes de Portugal e do
Brasil, na VIII Cimeira Luso-Brasileira, ocorrida na cidade
do Porto em 2005.
Ao referir-se a aspectos às vezes pouco conhecidos da
vida e da obra de personalidades tão diferentes quanto
um Albert Camus e um Joaquim Nabuco, ou uma Clarice
Lispector, passa a estimular a curiosidade de leitores diver-
sos, pelo que expõe desses escritores. Instantâneos da vida
da menina Clarice no Recife, com indicações dos lugares
em que morou, das escolas que frequentou e das circuns-
tâncias da imigração da sua família; a faceta libertária de
Nabuco na luta espetaculosa pelo fim da escravidão brasi-
leira, dispondo do luxuoso, guerreiro e financista auxílio
inglês; a breve práxis revolucionária de Camus militando,
mesmo que subterraneamente, na Resistência Francesa, e
propagando, da sua estatura precoce de escritor e filósofo,
a junção de existencial, surreal e marxismo.
Do lado dos vivos, fica-se sabendo do modo inusitado
de pintar de Christina Oiticica, que enterra literalmente
seus quadros por um tempo, até que apreendam o cheiro,
a consistência e a pele da terra. A saga de um Aldo Rebelo,
político que vem desenvolvendo uma luta intransigente dos
direitos vilipendiados dos índios brasileiros, algo que não
tem a devida repercussão, provavelmente pelos altos inte-
resses exploratórios ali envolvidos e embutidos.
As funções do “quase” podem ser constatadas no arti-
go As faces do quase, que refletem uma inclinação esotérica.
Elas se originam do artigo O quase, de autoria da catarinense
Sarah­ Westphal Batista da Silva, que foi divulgado na In-

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Antônio Campos

ternet e traduzido para o francês como sendo do escritor


Luis Fernando Verissimo. Um campeão que jamais perde ou
perdeu, não conhece o significado profundo do “quase”. O
perdedor que se contenta por ter lutado com todas as forças,
sem alcançar a vitória, poderá dar-se por satisfeito com o fato
de “quase” ter chegado lá, na consecução de seu intento, este,
sim, conhece as variações e ambiguidades da palavra. Há o
“quase” que frustra e preocupa e o que é alívio e libertação
da tensão e do perigo. As possibilidades de realização advin-
das do “quase” podem estar hospedadas no acaso, ou deriva-
rem diretamente da decisão individual ou coletiva.
Em outro texto de especial importância, Presença judai-
ca no Brasil, é feita uma relembrança histórica da imigração
quase sempre forçada dos judeus, das perseguições que
sofreram mundo afora, e que ainda sofrem, mas em menor
e mais velada escala. Do outro lado, aflora a contribuição
inestimável para a cultura, a educação e o trabalho que esse
povo de gente sábia proporcionou nos lugares onde esteve
ou está instalado. O arremate do artigo serve para anunciar
o que norteará a VI Fliporto: A literatura judaica e o mundo
ibero-americano, cuja homenagem principal será prestada a
ninguém nada mais nada menos que Clarice Lispector, que
tinha no sangue o forte estigma da descendência judia e a
marca voluntariosa do povo ucraniano.
O que está por trás das novas e sedutoras mídias, a
problemática universal do livro como objeto supostamente a
desaparecer ou a ser preservado em suas formas seculares
e presentes, o trabalho individual de figuras da política, do
pacifismo ou da cultura, que mudaram a história de um
país ou de um continente refletem abordagens definidoras e
persistentes, aliadas a uma investigação paulatina e ininter-

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

rupta. Cada modalidade dessas amplia-se e gera extensiva-


mente outra gama de textos escritos sob um ponto de vista
assemelhado em seus modos afirmativo, descritivístico e ar-
gumentativo. E assim, o autor apresenta ao leitor atento um
grupo de realizações textuais que logram ultrapassar a visão
provincialista pelas reflexões instigantes que permitem e pe-
las questões e problemas que suscitam, pelo fato de trazerem
a lume temáticas e assuntos que ainda estão sendo pensados
e absorvidos, alguns em pleno processo de experimentação,
numa tentativa mais de abrangência e largueza de raciocí-
nio, do que de falseados e incipientes aprofundamentos.
Antônio Campos constrói sem alarde e trabalha com
paciência os seus escritos. Foi uma surpresa para todos que
o conheciam a sua aparição como poeta quando do lança-
mento de Portal de sonhos em 2008. Anteriormente, ele já
havia lançado outro livro de boa repercussão nos meios
literários, um mosaico de artigos, cartas e crônicas a que
intitulou Território da palavra. Mas agora, com este Carpe
Diem: diálogos contemporâneos, volta com novas surpresas,
sustentadas de um ângulo conceitual e questionador, sem
pretender ser dono da verdade e sem escamotear a incli-
nação jornalística que tais artigos expressam e configuram.
Além disso, é de notar a conquista cotidiana de um estilo
em progresso a partir de estruturas sintáticas, semânticas e
formais que vem apurando e refinando.
Algo desse desempenho é consequência da forte rela-
ção que manteve com o pai, o escritor Maximiano Campos,
com quem jamais deixou de aprender, e de quem recebeu
o necessário incentivo para a leitura e a escrita. No pre-
sente, Antônio Campos esmera-se nas tarefas culturais a
que se propõe, entre as quais produzir eventos, publicar

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Antônio Campos

livros, ministrar palestras, participar de entidades diversas.


Contudo, sua pauta fundamental consiste em estabelecer
diálogos onde quer que esteja.
Numa palavra, está na razão de ser deste livro a sua
orientação para temas, fatos e situações que oferecem novas
motivações para discussões, embates, reflexões e questiona-
mentos acerca do que vai pelo planeta. E o que deflagra
o nível de importância dessas digressões são justamente o
ensejo e o esforço de tomá-las como assuntos fundadores e
relacionais na escrita, evitando, sempre que possível, o fei-
tio circunstancial que as reveste pela sua condição de atua-
lidade gritante, cujas revelações em bloco não prescindem
inteiramente do estigma e da onipresença de um real mais
aproximado e direto.

Luiz Carlos Monteiro é poeta, crítico literário e


mestre em Teoria da Literatura pela UFPE.

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Sumário

Por uma nova diplomacia cultural, 17


Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 2010
Folha de Pernambuco, 8 de fevereiro de 2010

Joaquim Nabuco: intérprete do Brasil, 23


Jornal do Brasil, 13 de fevereiro de 2010
Folha de Pernambuco, 15 de fevereiro de 2010

Presença judaica no Brasil, 29


Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 2010
Folha de Pernambuco, 22 de fevereiro de 2010

Clarice Lispector: uma geografia fundadora, 35


Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 2010
Folha de Pernambuco, 1º de março de 2010

O livro no século XXI, 41


Jornal do Brasil, 6 de março de 2010
Folha de Pernambuco, 8 de março de 2010
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Diálogos culturais no mundo global pós-moderno, 47


Jornal do Brasil, 13 de março de 2010
Folha de Pernambuco, 15 de março de 2010

Poemas que inspiram, 53


Jornal do Brasil, 20 de março de 2010
Folha de Pernambuco, 22 de março de 2010

Aldo Rebelo: um novo Nabuco, 59


Jornal do Brasil, 29 de março de 2010
Folha de Pernambuco, 29 de março de 2010

Jogo de Deus, 65
Jornal do Brasil, 3 de abril de 2010
Folha de Pernambuco, 5 de abril de 2010

Alice, o livro e o filme, 71


Jornal do Brasil, 10 de abril de 2010
Folha de Pernambuco, 12 de abril de 2010

Christina Oiticica e sua arte de plantar quadros na terra, 77


Jornal do Brasil, 12 de abril de 2010
Folha de Pernambuco, 8 de abril de 2010

O amor e a religião no futuro, 83


Jornal do Brasil, 17 de abril de 2010
Folha de Pernambuco, 19 de abril de 2010

A reinvenção do livro, 89
Jornal do Brasil, 24 de abril de 2010
Folha de Pernambuco, 26 de abril de 2010

O legado de Camus, 95
Jornal do Brasil, 1º de maio de 2010
Folha de Pernambuco, 3 de maio de 2010

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Antônio Campos

As faces do quase, 101


Jornal do Brasil, 8 de maio de 2010

Viver é uma arte, 107


Folha de Pernambuco, 10 de maio de 2010

O Google e os livros, 111


Jornal do Brasil, 17 de maio de 2010
Folha de Pernambuco, 17 de maio de 2010

O deserto do real, 117


Jornal do Brasil, 24 de maio de 2010
Folha de Pernambuco, 24 de maio de 2010

Umberto Eco: o fim dos livros?, 123


Jornal do Brasil, 31 de maio de 2010
Folha de Pernambuco, 31 de maio de 2010

Aliança de civilizações, 129


Jornal do Brasil, 7 de junho de 2010
Folha de Pernambuco, 7 de junho de 2010

Direitos autorais e economia criativa, 135


Jornal do Brasil, 14 de junho de 2010
Folha de Pernambuco, 14 de junho de 2010

A estrela fria, 141


Jornal do Brasil, 21 de junho de 2010
Folha de Pernambuco, 21 de junho de 2010

Criação imperfeita, 145


Jornal do Brasil, 28 de junho de 2010
Folha de Pernambuco, 28 de junho de 2010

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José Saramago, a consistência dos sonhos, 149


Jornal do Brasil, 5 de julho de 2010
Folha de Pernambuco, 5 de julho de 2010

As enchentes e a solidariedade humana, 155


Jornal do Brasil, 12 de julho de 2010
Folha de Pernambuco, 12 de julho de 2010

Saudades do poeta da cor, 161


Jornal do Brasil, 19 de julho de 2010
Folha de Pernambuco, 19 de julho de 2010

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Antônio Campos

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

Por uma nova diplomacia cultural

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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O BRASIL EXPERIMENTA o melhor momento de toda
sua história quanto à estabilidade econômica e, melhor,
com uma feliz perspectiva de crescimento. O país não só
resolveu a dívida externa, acumulada desde o tempo em
que era colônia de Portugal, como passou a ser credor
do Fundo Monetário Internacional (FMI). Vem obtendo
fechamentos cada vez mais positivos em sua balança co-
mercial e recebido fortes investimentos de companhias
estrangeiras, que apostam com vigor no mercado na-
cional. Descobriu uma extensa camada de óleo sob suas
águas (pré-sal) e até recebeu a concessão para sediar
sua segunda Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e a
primeira Olimpíada a ser realizada no continente sul-­
-americano, que acontecerá no Rio de Janeiro, em 2016.
Além disso, atravessou uma das mais violentas crises
econômicas globais de todos os tempos e saiu praticamente
ileso. Por isso mesmo, o Fórum Econômico Mundial es-
colheu o presidente Lula como o primeiro vencedor do
recém-criado Prêmio Estadista Global, pela condução da
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economia brasileira, durante a crise financeira mundial.


Antes mesmo desse Fórum, economistas de vários países
já previam que o Brasil será a quinta maior economia do
planeta até 2020. Todos esses fatos são extraordinários.
Contudo, as relações internacionais do Brasil precisam ser
vistas não apenas sob o prisma dos entendimentos político-
-econômicos. É necessário se pensar e desenvolver de for-
ma mais eficaz a nossa diplomacia cultural, o nosso diálogo
com as culturas dos outros países.
A atividade mercantil e os negócios financeiros promo-
vem o contato entre as pessoas, mas nada melhor que a cul-
tura para fortalecer as raízes do processo de integração entre
as sociedades. As desconfianças e rivalidades atenuam-se ra-
pidamente quando há um maior nível de conhecimento das
especificidades do outro. Se atentarmos para isso, veremos
que a difusão da história cultural dos povos influencia positi-
vamente na maneira de pensar as relações entre os Estados.
As representações das diversas culturas constituem objetos
históricos legítimos, portanto um maior intercâmbio das prá-
ticas e produções culturais precisa ser sempre promovido.
Infelizmente, a cultura ainda é considerada por muitos
algo supérfluo, não é valorizada nem como um instrumen-
to de aproximação das sociedades nem como facilitadora
do avanço da integração mundial ou regional. No Merco-
sul, por exemplo, as questões culturais são muito pouco
debatidas. Os ricos patrimônios culturais dos países inte-
grantes permanecem ignorados e não são utilizados como
instrumentos para a construção de vínculos de confiança e
de cooperação entre seus povos. A ausência de uma política
cultural dos países que o integram deixa claro quais são as
prioridades: as de natureza comercial.

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Antônio Campos

O aspecto cultural nas relações internacionais brasilei­


ras pode e deve ser mais bem cultivado. Precisamos pro-
mover iniciativas integradas aos países de todos os conti-
nentes para estimular um conhecimento mútuo e divulgar
os principais aspectos da cultura brasileira, instaurando, as-
sim, uma política cultural que vise à harmonia e ao congra-
çamento entre os povos, antes mesmo de qualquer comer­
cialização do produto cultural.
Uma significativa ação nesse sentido seria a implemen-
tação do Instituto Machado de Assis (IMA), instituição que
deverá ficar ligada ao Ministério da Cultura (MinC). O ins­
tituto foi idealizado para formular e coordenar as políticas
de promoção da língua portuguesa, no Brasil e no mundo,
induzindo e organizando pesquisas sobre o idioma, além
de ser referência para o ensino e a formação de profes-
sores e promoção de atividades científicas e culturais de
divulgação da língua portuguesa e da cultura lusófona.
O Português é o idioma usado por duzentos milhões
de pessoas, constituindo o quinto mais falado, no mundo.
Cabe ao governo brasileiro estruturar o projeto de criação
do IMA nos moldes da declaração conjunta entre Brasil
e Portugal, por ocasião da VIII Cimeira Luso-Brasileira,
realizada na cidade do Porto, em 2005, na qual ambos os
países asseveram a importância da promoção da língua
portuguesa em âmbito internacional. Servirão como refe-
rência, para a contextualização e o início da constituição
de uma entidade adequada à realidade brasileira, insti-
tuições tradicionais e experientes nesse mesmo trabalho, a
exemplo do Instituto Camões, Instituto Cervantes, Instituto
Dante Alighieri e do British Council. O Instituto Machado
de Assis deve contribuir ainda para o efetivo desempenho

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

das práticas sociais da escrita e da leitura para todos os


cidadãos brasileiros. É imperioso que em breve seja tirado
do papel, para que possamos iniciar uma nova diplomacia
cultural no Brasil.

Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 2010


Folha de Pernambuco, 8 de fevereiro de 2010

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J
Antônio Campos

Joaquim Nabuco:
intérprete do Brasil
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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O CENTENÁRIo DE MoRTE do escritor, político, historiador,
jurista, jornalista, diplomata e abolicionista pernambucano
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910)
foi a referência histórica que deu origem à Lei Federal n.
11.946 que institui 2010 como o Ano Nacional Joaquim
Nabuco. Nada mais justo e oportuno, pois que permite à
nossa sociedade a chance de debater a relevância histórica
e a atualidade das ideias de um importantíssimo e mun-
dialmente respeitado brasileiro. Também em 2010, se vivo
fosse, Gilberto Freyre, outro grande escritor e pensador
pernambucano, completaria 110 anos. Portanto, este ano é
substancialmente importante no tocante a se reverenciar as
obras de dois grandes brasileiros e realizar iniciativas que
democratizem e perpetuem os seus legados.
Como quem reconhece um mestre, Gilberto Freyre
sempre enalteceu o conjunto da obra de Joaquim Nabuco.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Foi dele, quando era deputado federal por Pernambuco, o


projeto de lei que criou o então Instituto Joaquim Nabuco
de Pesquisas Sociais (atual Fundação Joaquim Nabuco, no
Recife). Freyre escreveu os prefácios para a oitava e a dé-
cima edição da autobiografia intelectual de Nabuco, Minha
formação, publicada pela Editora Universidade de Brasília,
e fez ainda o prefácio da Iconografia de Joaquim Nabuco,
com o estudo Em torno da importância dos retratos para os es-
tudos biográficos: o caso Joaquim Nabuco. A personalidade e a
obra de Nabuco foram interpretadas por Freyre em muitos
outros textos, publicados em revistas e jornais que serão
editados este ano, em coletânea, pela Fundação Gilberto
Freyre, com organização de Edson Nery da Fonseca, para
lançamento em agosto, durante a FLIP de Paraty, numa
merecida homenagem ao sociólogo pernambucano.
Joaquim Nabuco foi um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras (ABL), embaixador do Brasil nos Esta-
dos Unidos e viveu ainda na Inglaterra e na França, onde
se destacou como proponente do pan-americanismo, presi-
dindo a conferência de Pan-Americanos de 1906. Nabuco
veio a ser um dos primeiros intelectuais a pensar a formação
histórica do Brasil a partir da escravidão. Combateu a prá-
tica e a cultura escravagista tanto através de suas atividades
políticas, quanto por meio de seus escritos. Fez campanha
contra a escravidão, na Câmara dos Deputados, em 1878, e
fundou a Sociedade Antiescravidão Brasileira, constituindo
um dos principais responsáveis pela abolição, em 1888.
Como bem pontua o historiador Evaldo Cabral de
Mello, que assina o prefácio dos seus diários, publicados
em 2005 pelas Editoras Bem-te-vi e Massangana, Nabuco
analisou o regime escravocata sem nenhuma complacência,
como uma verdadeira instituição que moldou o ethos brasi-

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Antônio Campos

leiro ao definir a nação econômica, política e organizacio-


nalmente. Para Evaldo Cabral, grande parte do pensamen-
to social no Brasil recai sobre a herança dessa reflexão.
Nabuco dizia que a generosidade dos escravos se con-
trapunha ao egoísmo dos senhores. E mesmo depois de ter
presenciado a grande vitória de sua causa com a abolição
proclamada, profetizou que a escravidão permaneceria por
muito tempo como uma característica nacional do Brasil. De
fato, apesar de termos avançado significativamente nos nossos
indicadores sociais, estamos longe dos ideais defendidos pelo
histórico abolicionista nas campanhas para deputado por Per-
nambuco: garantir terra às famílias de ex-escravos e educação
para as crianças dessas famílias. Acabar com a escravidão não nos
basta, é preciso destruir a obra da escravidão, já era o que advertia
Nabuco, quatro anos antes do fim da escravatura no país. A
desigualdade, no entanto, ainda persiste de maneira cruel.
Temos uma considerável parcela da população eminentemen-
te formada por negros sofrendo com a exclusão social.
Considerando-se o alcance social de seu pensamento e a
abrangência e magnitude de seu desempenho político e de
sua produção intelectual em todas as áreas em que atuou,
há que se reconhecer em Joaquim Nabuco um homem ou-
sado, um intelectual que não se omitiu de cobrar e atuar
em razão dos menos validos. Os ideais de Joaquim Nabuco
permane­cem vivos, por sua grandeza, pelo seu espírito, pelo
seu gênio. E as novas gerações precisam conhecer a obra, o
pensamento e a história desse ilustre pernambucano, cida-
dão do mundo e um dos principais intérpretes do Brasil.

Jornal do Brasil, 13 de fevereiro de 2010


Folha de Pernambuco, 15 de fevereiro de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

Presença judaica no Brasil

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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RECENTEMENTE, o presidente Lula participou, no Recife,
de uma cerimônia pelo Dia Internacional em Memória das
Vítimas do Holocausto. A Sinagoga Kahal Zur Israel — a
primeira das Américas, situada à Rua do Bom Jesus, antiga
Rua dos Judeus — ficou lotada para assistir a uma bela ce-
rimônia religiosa, incluindo apresentação artística com violi-
no e leituras poéticas. Alguns ali (os mais novos) talvez não
soubessem ser de autoria de um cristão-novo português cha-
mado Bento Teixeira o que para muitos é a primeira obra
poética do Brasil: Prosopopeia. Outros, porventura, desco­
nhecem que há ainda os que defendem ser do intelectual ju-
deu português Isaac Aboab da Fonseca as primeiras poesias
escritas em nossas terras. O rabino Aboab da Fonseca foi o
primeiro religioso judeu, nas Américas, enviado ao Recife
para chefiar a então crescente comunidade judaica, quando
da tomada da cidade pelos holandeses.
Independentemente de qual corrente de historiadores
esteja certa, fica evidenciado que a semente da herança
cultural judaica no mundo ibero-americano foi plantada
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

em solo pernambucano. Pernambuco é no Brasil o lugar


que mais cedo definiu uma clara vocação para o cosmopo-
litismo e o que primeiro se organizou em torno da cultura,
não só da cana-de-açúcar, mas do urbanismo, das artes, das
ciências. Foi especificamente no século 17 que essa caracte-
rística se evidenciou, mais precisamente nos anos que vão
de 1630 a 1654, no famoso tempo dos flamengos ou, mais
popularmente, dos holandeses, estudado exaustivamente
pelo historiador José Antônio Gonsalves de Mello.
Os judeus constituíram uma importante presença dessa
época, que se tornou há muito uma das mais estudadas do
ponto de vista histórico da cultura pernambucana. Gonsalves
de Mello também fez sobre eles um elaborado estudo e di-
versos outros trabalhos foram publicados abordando a temá-
tica dos judeus que vieram para Pernambuco nesse período.
O povo de Israel deixou traços que não podem ser apagados
da história e da imaginação pernambucanas, entre eles, a
edificação da sinagoga na Rua do Bom Jesus e a aventura
dos que saíram daqui para a outra América, onde ajudaram
a fundar aquela que hoje vem a ser a cidade Nova Iorque.
Na verdade, os judeus estão em Pernambuco desde
o início da colonização. Quando da chegada de Pedro Ál-
vares Cabral, em terras brasileiras, Olinda, sede da então
capitania hereditária, e Recife foram destinos para vários
judeus e cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianis-
mo por medo da Inquisição) vindos da Península Ibérica
(Portugal e Espanha). Graças à influência judaica, o povo
pernambucano aprendeu a cultivar, com igual intensidade,
o gosto pelo cosmopolitismo e por suas raízes mais profun-
das, instaurando um forte orgulho regional, tão peculiar
nesse efervescente pedaço do Brasil. Além disso, reconheci-
damente exímios comerciantes, os judeus do Recife foram

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Antônio Campos

responsáveis diretos pela consolidação da cidade como im-


portante polo comercial no Nordeste do país.
Os judeus deram uma contribuição riquíssima, em varia-
dos aspectos, sobretudo à cultura de Pernambuco. É inteira-
mente reconhecida a inseparável influência deles no tocante
às identidades ibéricas e transnacionais do Estado. Aliás, se
fizermos um exercício de trocadilhos, podemos até observar
que o Estado foi o berço de uma América Ladina, dentro da
América Latina, uma vez que o Ladino é um dialeto judeu-
hispânico, o idioma dos sefaraditas, os judeus de Sefarad,
nome hebraico da Península Ibérica. O Ladino tornou-se uma
língua caracteristicamente judaica apenas depois da expulsão
dos judeus da Espanha — até então era apenas a língua da
província onde moravam. Quando os judeus foram expulsos
da Espanha e de Portugal, perdeu-se o contato com o desen-
volvimento posterior da língua, mas continuaram a usá-la em
comunidades formadas nos países para os quais emigraram.
A natural consideração de todos esses fatos levou a Fes-
ta Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto) a
definir o tema para o evento este ano: A literatura judaica e
o mundo ibero-americano. Nesse contexto, a escritora Clarice
Lispector foi escolhida para ser a homenageada da VI Flipor-
to. Além de ter uma obra literária digna de todas as home­
nagens, Clarice­ era de família judia de origem ucraniana e
viveu parte da infância no Recife (1925-1934), residindo em
um casarão da Praça Maciel Pinheiro, tradicional reduto ju-
deu no centro da cidade. Em sua diáspora, a nação judaica
legou ao Brasil um dos pontos mais altos de sua Literatura.

Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 2010


Folha de Pernambuco, 22 de fevereiro de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

Clarice Lispector:
uma geografia fundadora

C
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Ao CHEGAR Ao RECIFE, com cinco anos de idade incomple-
tos (1925), Clarice já viajara muitas milhas: para nascer, obri-
gou a família emigrante a uma estada na aldeia Tchetchelnik­,
em 10 de dezembro de 1920. Chaya (Clarice), os pais e as
duas irmãs ainda passariam por Bucareste para chegar ao
porto de Hamburgo, quando só então atravessariam o Atlân-
tico e chegariam a Maceió, em 1922. Fugiam dos pogroms, ata-
ques violentos aos judeus, que ocorreram em muitas partes do
mundo, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Na cidade
alagoana, exceto Tania, todos da família mudariam de nome,
por iniciativa do pai, Pinkhas, que passaria a se chamar Pedro;
a mãe, Mania, Marieta; a irmã, Leia, Elisa; e Chaya, Clarice.
Mesmo assim, seu sobrenome, Lispector, causaria estranheza
aos menos avisados sobre a flor-de-lis no peito que ela era.
Singular em suas origens, Clarice acentuaria seu des-
tino emigrante: no Brasil, além de Maceió e do Recife,
viveu no Rio de Janeiro e em Belém do Pará; no exterior,
durante 16 anos, transitou entre várias cidades, residindo
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

por períodos mais significativos em Nápoles (1944), Ber-


na, Suíça (1946), Torquay, Inglaterra (1950), Washington,
EUA (1952).
Portanto, seria difícil fundar uma geografia para a es-
critora de origem judia se não a ouvíssemos afirmar: Morei
no Recife, morei no Nordeste, me criei no Nordeste. Clarice faz
essa afirmativa em entrevista a Júlio Lerner, em fevereiro
de 1977, dez meses antes de sua morte. Justificava assim a
tônica de seu romance, então inédito, A hora da estrela, que
surpreenderia a todos com uma abordagem sociorregio-
nalista, à qual nunca se rendera, mesmo no início de sua
carreira, quando ainda em voga. Os críticos já apontavam,
nessa época, indícios de um modo de ser mais direto, mais
explícito, na sua produção e Nádia Batella Gotlib sugere
que a autora se ficcionalizara em seus últimos trabalhos: dei-
xa de ser apenas a escritora para ser a persona que ela pró-
pria criava. A simultaneidade espacial e temporal de seus
romances entra em perfeita simbiose com essa perspectiva
de sua biógrafa brasileira.
São as declarações dela mesma, em sotaque peculiar-
mente nordestino, e a abordagem desse seu último romance,
A hora da estrela, com protagonistas nordestinos imigrantes
no Rio de Janeiro, que permitem apontar a importância de
uma geografia fundadora da escritora Clarice Lispector que
afirma: desde que comecei a ler e escrever eu comecei também a
escrever pequenas histórias. Sua alfabetização se deu no grupo
escolar João Barbalho, no Recife, aos sete anos de idade.
Aos nove, ela já havia escrito uma peça de três atos que
escondera de todos entre as estantes. Revelaria depois: Era
uma história de amor. Nesse mesmo ano, morre sua mãe
que, dentre os da família Lispector, foi a maior vítima da

38
Antônio Campos

violência dos pogroms. Já se encontrava, então, no Collegio


Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano pri-
mário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Em 1931, ao in-
gressar no Ginásio Pernambuco, a tímida e ousada Clarice já
apresentava seus trabalhos para publicações em jornais lo-
cais. Foi recusada muitas vezes, mas não deixava de enviar
suas histórias, embora nunca tenha sido agraciada com os
prêmios concedidos às crianças leitoras, talvez — observa
a crítica literária Ermelinda Ferreira — porque seus textos já
focalizassem menos o enredo do que a reflexão.
A essa altura, as dificuldades financeiras da família já
eram menores e assim mudaram-se do pequeno sobrado da
Praça Maciel Pinheiro para o segundo andar do sobrado nú-
mero 21 da Rua da Imperatriz, onde, no térreo, funcionava
a livraria de Revecca Berenstein, conhecida como Livraria
Imperatriz. Da sacada, avistava-se o rio Capibaribe.
Em 1935, Clarice já estaria em terras cariocas, mas
anotava: Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer
uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto na-
quelas temporadas de banhos em Olinda, Recife. Meu pai também
acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol
nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair
de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para
Olinda ainda na escuridão?
Muitas outras anotações preciosas encontram-se em
Clarice­: fotobiografia, de Gotlib, no entanto, para descobrir a
paisagem do Recife no universo ficcional, o livro Felicidade
clandestina (1971) traz narrativas exemplares, quase autobio-
gráficas, da menina e da adolescente Clarice, revisitada pela
então mãe de dois filhos, Pedro e Paulo, um casamento des-

39
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

feito, variados níveis de dificuldades socioeconômicas contras-


tantes com o reconhecimento internacional que já obtivera,
além de graves episódios comprometedores de sua saúde.
“Felicidade clandestina” é o nome de um dos 25 contos
que compõem a obra e é o que lhe dá título. Além dele, a
paisagem recifense insere-se acentuadamente em “Restos
do carnaval”, “Cem anos de perdão” e “Os desastres de
Sofia”. São narrativas em primeira pessoa povoadas pela
arguta menina de nove anos, que Não era mais uma menina
com um livro: era uma mulher com o seu amante, ao ter em
mãos o primeiro volume de Monteiro Lobato; pela pri-
meira máscara que permitia esconder-se dela mesma; pelo
seu professor grande e silencioso, de ombros caídos; pelas ro-
sas roubadas das mansões não frequentadas pela Lispector,
hoje inserida em todas as geografias indimensionais de seus
milhares de leitores no mundo.

Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 2010


Folha de Pernambuco, 1º de março de 2010

40
Antônio Campos

O livro no século XXI

O
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

42
HÁ MAIS DE 3 MIL ANoS, na China, os livros eram feitos
com chapas de madeira e de bambu, ligadas por barbantes
de seda ou couro, e os caracteres eram pintados com pin-
céis feitos com pelos de animais. Hoje, produtos eletrônicos
como os audiobooks ou os e-books (livros eletrônicos), com
seus suportes portáteis como o Kindle, da Amazon, o Sony
Reader, da Sony, o Mix Leitor D, que está em vias de entrar
no mercado, ganham cada vez mais espaço de exposição e
discussão. Constatando esse crescimento, as editoras estão
discutindo essa nova realidade tecnológica e de negócio.
Realmente, o fulminante avanço tecnológico para a
publicação de conteúdo de texto mexeu com o mercado
editorial. Está na ordem do dia, na indústria do livro, o
debate sobre os impactos que as novas tecnologias trarão
para o processo de produção, edição, impressão e divulga-
ção de livros em sua forma convencional. Em novembro do
ano passado, já discutimos o tema na Fliporto Digital, que
é um dos braços da Fliporto, e lançamos pioneiramente o
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

primeiro concurso brasileiro de literatura no celular. Essa


discussão dominou a importante Feira de Frankfurt, no
final do ano passado.
Recentemente, a Microsoft fechou acordo de coopera-
ção com a Amazon, firmando uma parceria em que cada
uma das empresas poderá utilizar as tecnologias da outra.
Incluídos aí, principalmente, o leitor de livros eletrônicos
Kindle e o sistema operacional Windows. A Amazon anun-
ciou também que o Kindle já possui para download obras
em português, espanhol e italiano. Editoras e autores que
desejarem disponibilizar livros nos três idiomas podem en-
viar o conteúdo pelo serviço Digital Text Platform (DTP).
De 29 a 31 deste mês, a Câmara Brasileira do Livro
realiza, em São Paulo, o 1º Congresso Brasileiro do Livro
Digital, durante o 36º Encontro Nacional de Editores e
Livreiros. Especialistas de todo o mundo vão debater os
novos rumos do negócio do livro, as oportunidades ante
um potencial imenso de leitores, as questões de direitos
autorais, as novas mídias, entre outros assuntos que surgem
nesse novo universo do livro digital.
Devemos observar que as mudanças fazem parte do
processo evolutivo. O e-book certamente não vai levar o
livro de papel à extinção. Assim como o cinema não matou
o teatro, a televisão não aboliu o cinema e o computador
não extinguiu a literatura. A humanidade sempre temeu
o novo.
O importante é que em qualquer uma de suas formas,
o livro não é apenas uma celebração do conhecimento e
registro da memória da espécie humana, mas uma celebra-
ção da vida.

44
Antônio Campos

O inesquecível bibliófilo José Mindlin, recentemente


falecido, citou um exemplo sobre o fetiche que exerce o
livro impresso, em entrevista que concedeu, no Recife, em
25 de agosto de 2005. Diz o artigo: “Na última vez em que
[o poeta argentino Jorge Luís] Borges veio ao Brasil, nos
anos 80, ele já estava cego e ainda assim queria a primeira
edição de Os sertões. Como eu tinha mais de um exemplar,
dei um deles para Borges. Ele não queria o livro para ler,
Borges não podia mais fazer isso. Borges queria tocar nele,
pegar, sentir o livro. Era o seu fetiche”.
Grande exemplo para os amantes da literatura, José
Mindlin nunca foi um Peter Kien, personagem do livro
Auto-de-fé, de Elias Canetti, para quem a vida se abria da
porta para o interior de sua biblioteca. Homem de sensibi-
lidade, Mindlin foi, antes de tudo, um leitor, e sempre se
declarou mais um depositário, um guardião dos livros que
um proprietário de uma riquíssima e preciosa biblioteca.
Sempre haverá alguém que prefira o livro em sua for-
ma de papel. Alguém que escolha alcançar, dessa maneira,
a intimidade com um autor, por meio das páginas que vão
cobrando a vida enquanto se abrem. Sempre haverá al-
guém que preferirá voltar a um livro só na edição em que
o leu pela primeira vez, às dedicatórias, às recordações e
aos passados que ficaram unidos a esse objeto.
Não vamos confundir o futuro do livro com o futuro
do papel, que é o seu tradicional suporte. Nunca tantas
idei­as foram escritas na era digital. Se há algo que possa
ameaçá-lo é a falta de leitores e não a mudança de base em
que se firma. O que precisamos fazer é combater essa gran-
de fome de livros que há no Brasil. Cerca de 23% dos jovens

45
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

brasileiros entre 15 e 24 anos nunca leram um livro sequer


(fonte: Instituto Cidadania). Dados da Câmara Brasileira
do Livro (CBL) demonstram que apenas 26 milhões dos
mais de 170 milhões de brasileiros leem pelo menos um
livro a cada três meses. Pior, 61% dos adultos alfabetizados
têm pouco ou nenhum contato com livros.
A leitura e o acesso ao livro são direitos sociais básicos
e transformadores de indivíduos em cidadãos. A leitura de
um livro não pode parecer uma obrigação, deve, ao con-
trário, ser um ato de prazer ou de paixão. Um livro tem
que ser uma forma de felicidade. O livro é uma forma de
resistência e reexistência do ser humano numa globalização
que deveria mais aproximar do que separar as pessoas.

Jornal do Brasil, 6 de março de 2010


Folha de Pernambuco, 8 de março de 2010

46
Antônio Campos

Diálogos culturais no
mundo global pós-moderno

D
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

48
A GLobALIZAÇÃo ECoNÔMICA e financeira aliada ao pro-
gresso das tecnologias de comunicação e informação têm
tido impacto sobre as identidades culturais, colocando em
risco também a diversidade cultural no mundo.
As identidades nacionais, que têm nas culturas nacio-
nais as suas principais fontes, estão com uma tendência de
fragmentação, como resultado da homogeneização cultural
da pós-modernidade global. Novas identidades híbridas co-
meçam a ganhar força. Dialeticamente, algumas identidades
estão sendo reforçadas pela resistência à globalização, num
processo de tensão entre o local e o global, entre culturas.
O século XXI passou da diversidade como riqueza
para a interculturalidade como problema. As relações ou
diálogos entre as culturas estão sendo alterados pelos des-
locamentos de imigrantes, como também pela crescente
interdependência entre as sociedades, ante os efeitos da
globalização, surgindo daí um mundo sem fronteiras, o que
torna as relações mais complexas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Los Angeles é a segunda cidade em número de mexi-


canos. Buenos Aires é a segunda em número de bolivianos.
O que significa ser europeu, num continente marcado não
apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também
por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diás-
poras pós-coloniais? Calcula-se que a Europa tenha em seu
território cerca de 20 milhões de muçulmanos.
No seu livro Choque de civilizações, o professor e ensaís-
ta americano Samuel P. Huntington previu que, depois da
Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e
da religião.
Recentemente, a Suíça proibiu em seu solo novos mina­
retes (cúpula de mesquitas). Debate-se na França o uso da
burca, onde cerca de 1,5 milhão de muçulmanos vive na
região de Paris. A legislação inglesa antiterrorismo tornou-
se mais rigorosa, ante o temor do radicalismo islâmico. Na
Alemanha, cresce o medo de terrorismo, num momento
em que a comunidade muçulmana chega a mais de 2 mi-
lhões de habitantes.
Melhorar o convívio ou o diálogo entre culturas ou indi-
víduos, admitindo as diferenças, sem discriminações, passou
a ser uma das principais preocupações do século XXI.
O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura
de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerân-
cia e convívio entre raças e culturas, quase numa democracia
racial. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas.
Esse traço marcante do Brasil foi objeto de estudos
de alguns brasileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto
Freyre, que no dia 15 de março de 2010 faria 110 anos se
vivo fosse.

50
Antônio Campos

Está no centro da vida contemporânea, o desafio de


construir diálogos de paz entre culturas que estejam em cho-
que – real ou aparente –, ante o fato de que, tais sociedades,
a cada dia, se tornam mais interculturais que multiculturais.
Somos “Di-versos”, como afirma o poema do músico
brasileiro Marcelo Yuka, pois entre a revolta e a obediência,
crescer com diferenças e crescer pelas diferenças, será sempre en-
tender que o amor é a nossa maior forma de inteligência.

Jornal do Brasil, 13 de março de 2010


Folha de Pernambuco, 15 de março de 2010

51
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

Poemas que inspiram

P
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

54
O GRANDE PoEMA é uma oração. Particularmente, acre-
dito que também podemos orar a Deus, através de alguns
poemas, tal como se citássemos versos bíblicos. E não estou
sozinho nessa crença de que existem verdadeiros poemas-
orações, capazes de nos inspirar e até transformar nossos
pensamentos e atitudes, fortalecendo-nos para os embates
da vida. O escritor e documentalista Edson Nery da Fonseca
gosta de conversar com Jesus, declamando o poema Encontro,
de Deolindo Tavares:
Vou me encontrar com Cristo
a uma e meia da manhã.
Por que, então, neste momento
não me cega a estrela das grandes vigílias?
Preciso mais do que nunca estar desperto
e sinto que adormeço sobre finíssimas lâminas de ouro.
O poeta Manuel Bandeira assim começa um poema-
oração:
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Nossa Senhora, me dê paciência


para estes mares, para esta vida.
Poema-oração, aliás, é o título de uma belíssima poesia da
escritora e poetisa portuguesa Maria José Rijo. Verdadeira
súplica, o poema é escrito com tamanha leveza e mostra sua
fé e intimidade com Deus:
Se há coisas que eu entendo
nos cantos que a vento entoa;
se há mensagens que eu pressinto
nas vozes que eu ouço à toa;
se outros olhos choram mágoas
que eu sinto no coração,
e de tudo isso eu posso
fazer a minha oração...
É, porque, então, sei rezar!
E se rezar é amar...
quero cantar essa alegria.
Ainda que dos meus olhos
corra o pranto sem cessar
que nada turve o meu canto
se eu nasci para cantar!
A palavra poética tem sua força ancorada na miríade
de portos de beleza, que resgata o homem sequestrado pela
multidão de ilusões que o confundem e o diminuem. A
poesia interpreta o sonho da humanidade e, muitas vezes,
indica possíveis caminhos. Ela toma o nosso partido e inse-
re-se de corpo, alma e palavra na ideologia do homem.
Foi acreditando no poder inspirador e transformador
da literatura e sobretudo da poesia, que Nelson Mandela
conseguiu não só manter sua sanidade mental, como alcan­
çar um equilibrado grau de sabedoria, sobriedade e pers­
picácia, não perdendo seu foco, durante os 27 anos em que

56
Antônio Campos

passou na prisão. Predestinado, ele estava determinado a


mudar o seu país. E mudou. Protagonista de uma luta polí-
tica que constitui um dos capítulos mais extraordinários do
século XX, Nelson Rolihlahla Mandela saiu da prisão, em
1990, aos 71 anos, para unificar a África do Sul, marcada
pelo ódio entre negros e brancos, e extinguir o apartheid.
Depois de ser libertado da sentença de prisão perpé-
tua, graças à pressão política internacional junto ao então
governo sul-africano, o ex-guerrilheiro e líder do Congres-
so Nacional Africano (CNA), partido formado pelos negros,
ganhou o Nobel da Paz em 1993 e elegeu-se presidente da
África do Sul um ano depois. Foi a primeira eleição multir-
racial da história daquele país. Para acalmar o ímpeto dos
negros — que viviam teoricamente momento perfeito para
a vingança dos anos de apartheid — e o receio dos brancos,
Mandela sabiamente pregou em seu país: O perdão liberta a
alma. Ele remove o medo. Por isso é arma tão poderosa.
Nelson Mandela sempre foi um homem de ideias, das
palavras, que nunca deixou de acreditar em sua causa e no
poder de inspiração que esta lhe deu. E essa força interior
sustentada por Mandela para passar por tudo que lhe foi im-
posto e encarar a obra que realizou é abordada no filme In-
victus, do diretor Clint Eastwood. O roteiro de Invictus, basea­
do no livro Nelson Mandela e o jogo que mudou uma nação, de
John Carlin, traz uma série de histórias da vida de Mandela­
que poderiam ser ficcionais e por isso impressionam.
O filme mostra como o ex-presidente usou a força da
linguagem universal do esporte e juntou-se ao capitão da
equipe nacional de rugby (um dos símbolos do apartheid no
país) para unir os sul-africanos e amenizar as tensões ra-
ciais entre negros e brancos. O intuito era mobilizar a Na-
ção em torno de um objetivo comum: vencer o campeonato

57
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

mundial de rugby, disputado na África do Sul, em 1995.


Num grande exemplo de superação, a equipe da África
do Sul, considerada azarão, venceu a copa do mundo de
rugby, que foi tratada por Mandela com peso de atividade
política. A história mostra que o poema Invictus — que dá
título ao filme —, do inglês William Ernest Henley, foi a
grande oração de Mandela no período em que passou pre-
so e acabou sendo a fonte de inspiração para o triunfo do
time sul-africano.
No poema Invictus, do alto de seu aparente ceticismo
religioso, Henley se rende à força do divino e agradece pela
consciência de permanecer firme diante das adversidades:
Do fundo desta noite que persiste
a me envolver em breu — eterno e espesso,
a qualquer deus — se algum acaso existe,
por mi’alma insubjugável agradeço.
Mandela gosta mesmo de repetir a última estrofe da
poesia do inglês:
Por ser estreita a senda — eu não declino,
nem por pesada a mão que o mundo espalma;
eu sou dono e senhor de meu destino
eu sou o capitão de minha alma.
Não se pode desconhecer a criação humana, em todas
as Artes, como uma imitação da divindade, uma vez que,
tentando criar, o homem imita o Criador Incriado. Mas a
palavra poética, em especial, quando revestida de singular
beleza, realmente encanta, inspira e extasia. Há poemas
que são verdadeiros mantras, elevam o homem a Deus,
transformam mentes e corações, alavancam almas.

Jornal do Brasil, 20 de março de 2010


Folha de Pernambuco, 22 de março de 2010

58
Antônio Campos

Aldo Rebelo: um novo Nabuco

A 59
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

60
HoMEM DE FoRMAÇÃo nacionalista e político maduro e coe-
rente, o deputado federal Aldo Rebelo, presidente da Comis-
são de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara
Federal, tem assumido fortemente ao longo de sua trajetória
parlamentar o cuidado com a causa indígena no Brasil. A
garantia e preservação dos direitos elementares para os povos
indígenas são fundamentais para a manutenção da identidade
nacional. Rebelo defende uma completa integração das etnias
indígenas com a sociedade brasileira, mas respeitando os di-
versos estágios de todas as populações de índios no país.
Sua visão é a de que os índios devem ser efetivamente
integrados à nossa sociedade, tendo liberdade e real opor-
tunidade para desenvolver atividades sustentáveis produti-
vas e exploradoras nas suas terras, e não viverem tutelados
tanto pelo Estado, quanto pelas ONGs nacionais e interna-
cionais. Com propriedade na causa, Aldo Rebelo observa
que os índios não têm direitos sobre suas reservas e que
hoje muitos deles não têm sequer como sobreviver. Os ín-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

dios não podem explorar a madeira, nem os minérios. Para


Rebelo, o Estado poderia ajudá-los nessas atividades, mas
tudo continua imobilizado.
Há situações assim em outros países. No Canadá, os ín-
dios fizeram acordos com grandes empresas para a explo-
ração do petróleo em suas terras. O PIB dos índios norte-
americanos é de 25 bilhões de dólares por ano. Milhares
de índios têm fortunas acima de 1 milhão de dólares nos
Estados Unidos. Mas para chegar a essa realidade, segundo
Aldo Rebelo, é necessário haver um consistente processo
de integração e não essa segregação, que mantém os índios em
determinado estágio, para que as pessoas possam produzir suas
teses antropológicas de mestrado e doutoramento, critica.
Na pauta internacional, o tema da questão social foi
substituído pela questão do meio ambiente. Aldo Rebelo é
relator do novo Código Florestal brasileiro, em tramitação
na Câmara Federal, que ao ser votado e aprovado vai nos
permitir viver no país com a legislação mais avançada do
mundo, no tocante à conservação e ampliação das áreas flo-
restais. Ao longo de seus mandatos como deputado federal,
Rebelo foi um importante mediador e interlocutor entre os
índios e o Governo Federal e até entre as tribos indígenas
e os produtores rurais. É de se enaltecer o seu esforço para
a regulamentação da demarcação da reserva indígena na
Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
Do alto de sua sensibilidade para com a causa indí-
gena, Rebelo, em seu livro Raposa-Serra do Sol, o índio e a
questão nacional (Ed. Thesaurus 2010), grafa o nome da
reserva com hífen por acreditar que Raposa e Serra do
Sol são áreas geograficamente distintas, habitadas por tri-
bos e populações igualmente distintas (Macuxi, Wapichana,

62
Antônio Campos

Ingarikó, Taurepang e Patamona). Faz questão de colocar


o hífen, portanto, como iniciativa de denúncia, de alerta
para essa observação — tão importante do ponto de vista
geopolítico — sobre a área demarcada.
As maiores reservas de urânio do mundo estão nas
terras indígenas, em Roraima. Há muitos minérios impor-
tantes nessas terras, inclusive um que tem o apelido de
alexandrita, e que só foi encontrado nas Américas na terra
ianomâmi. Para Aldo Rebelo, os índios nunca são ouvidos
pelo Governo Federal e o processo da Raposa-Serra do Sol
é patente em relação a isso. Ali, um grupo grande de indígenas
contestou a demarcação proposta pela Funai. No entanto, não foi
levado em consideração, destaca.
Rebelo observa ainda que a relação entre os grupos de
índios que vivem na reserva Raposa-Serra do Sol não é das
mais amistosas e que eles preferiam que a demarcação fosse
feita em ilhas, onde cada tribo teria sua área determinada,
sem precisar conviver com outras. Tal divisão não levaria em
conta apenas o aspecto das rivalidades, mas principalmente
o estágio de evolução de cada grupo. Em Roraima, existem
indígenas que vivem da coleta, da caça, e outros formados
por pequenos fazendeiros, comerciantes, a exemplo dos Ma-
cuxis. Na opinião de Rebelo, a demarcação estabelecida, em
área contínua e de fronteira, só interessa às ONGs interna-
cionais e ameaça a soberania nacional.
Grande admirador de Joaquim Nabuco, o alagoano Aldo
Rebelo é um verdadeiro entusiasta da obra Um estadista do
império (1896). Neste que é reconhecido como seu principal
livro, Nabuco registra e analisa a vida e a obra de seu pai,
o senador José Tomás Nabuco de Araújo, bem como a vida
política, econômica e social do Brasil durante a atuação do

63
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

pai. Considero o livro Um estadista do império a maior e melhor


biografia desenvolvida no Brasil em todos os tempos, por sua
forma brilhantemente escrita. Além de sua ferrenha cam-
panha pela abolição da escravidão do povo negro, Joaquim
Nabuco também defendeu uma importante causa indígena.
Em seu primeiro mandato como deputado geral pela então
província de Pernambuco, Nabuco combateu um projeto de
exploração do Xingu, defendendo os direitos dos indígenas.
Por sua atuação efetiva na preservação dos direitos das
várias etnias indígenas e suas culturas no Brasil, demons­
trando que a iniciativa é de fundamental importância para
o futuro e a manutenção da identidade nacional, Aldo Re-
belo pode ser comparado a Joaquim Nabuco, que tanto
batalhou pela causa dos negros neste país. Aldo Rebelo é
um novo Joaquim Nabuco, o Nabuco dos índios.
O Brasil é um país mestiço e por isso temos que viver
numa sociedade que integre perfeitamente as nossas ascen-
dências e culturas indígenas, africanas, europeias e asiáti-
cas. O Brasil deve ser o paradigma para o mundo no que
diz respeito ao convívio entre raças, religiões e culturas.
Ser um facilitador para uma aliança de civilizações. Assim,
perfeita a colocação de Aldo Rebelo quando diz que cabe
ao país adotar medidas drásticas para proteger as popula-
ções indígenas e assegurar a preservação do meio ambiente
em consonância com os interesses sociais e econômicos da
população e da Nação, sem hipotecar seu futuro às pressões ile-
gítimas e divorciadas de nosso bem-estar e segurança.

Jornal do Brasil, 29 de março de 2010


Folha de Pernambuco, 29 de março de 2010

64
J
Antônio Campos

Jogo de Deus
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

66
VIvEMoS A ERA da velocidade e sob a pressão (opressão)
do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois inva-
diu nossa casa e passou a nos tiranizar na parede. Com o
progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso
pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo.
Vivemos sob o feitiço do tempo, que é um jogo de
Deus. Mas é a eternidade que dá sentido à vida. Tempo é
movimento. Repouso é eternidade. A eternidade é um jogo e
uma esperança, já dizia Platão.
Rubem Alves, em seu Concerto para corpo e alma, apre-
goa-nos que:
Eternidade não é o tempo sem fim [...] Eternidade é o
tempo completo, esse tempo do qual a gente diz valeu a
pena.
A mente, esse portal do ser humano, lutando para
escapar do confinamento e do feitiço do tempo, insiste em
resistir e produz, entre outras coisas, arte. A arte é uma
tentativa de se eternizar. É uma briga do homem com a
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

morte e com o tempo, que é um relógio mágico e trágico


que marca a vida.
O sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre falou de um
tempo tríbio em que o passado, o presente e o futuro estão
dinamicamente inter-relacionados. Trouxe tal conceito de
tempo baseando-se nas considerações de Santo Agostinho
sobre a essência do tempo, no livro XI das Confissões, consi-
derações essas, que foram magistralmente sintetizadas pelo
poeta T. S. Eliot nos versos iniciais de Four quartets (1943),
que nos traz a seguinte mensagem:
O tempo presente e o tempo passado
estão ambos talvez presentes no tempo futuro
e o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
todo tempo é irredimível.
Em As emboscadas da sorte, o escritor Maximiano Cam-
pos afirma que tudo é velho e novo, e só o tempo não tem
idade. O homem carregará as lembranças do seu passado,
mas será sempre novo, mesmo além da sua vontade. Ele,
em texto intitulado Ladrão de tempo, nos diz que o maior
ladrão é o de tempo.
A humanidade ainda está presa a conceitos lineares
de tempo e espaço. Albert Einstein revolucionariamente
fundiu tempo e espaço num contínuo, que chamou espa-
ço—tempo. Em 1988, Stephen Hawking publicou sua hoje
famosa Uma breve história do tempo, do ponto de vista de um
físico. A física quântica tenta explicar a direção do tempo.
Na presença de campos gravitacionais intensos, podem
existir caminhos que levem ao passado. Por isso, é possível
passar duas vezes pelo mesmo ponto no espaço—tempo.
Deveríamos entender o tempo como um círculo, e não uma
linha reta, como imaginou a história ocidental, e, ainda,

68
Antônio Campos

que ao caminharmos para o futuro estamos nos aproxi-


mando do passado.
Proust, na literatura, escavou com profundidade em
busca do tempo perdido.
Será que a vida não é buscar e mesmo perder, prous-
tianamente, o tempo?
O poeta russo Joseph Brodsky nos instiga: quem é
mais nômade, aquele que se desloca no espaço ou aquele
que migra no tempo?
Na realidade, há dois modos, básicos, de percepção do
tempo: o quantitativo e o qualitativo, ou melhor, o crono-
lógico e o existencial. O modo quantitativo adota um fato
como referência e um fenômeno periódico para contagem
do tempo. Na cultura cristã, considera-se o ano do nasci-
mento de Cristo como inicial e o ciclo da Terra em torno
do Sol como período de um ano. O modo qualitativo con-
sidera as mudanças que ocorrem em nossas vidas. Usamos
expressões como novo tempo, tempos difíceis e tempos fá-
ceis. No filme Perfume de mulher, o personagem cego repre-
sentado por Al Pacino pede a uma jovem para dançar um
tango. Ela diz que não pode porque, em instantes, o noivo
dela vai chegar. E ele diz: ...em um instante se vive uma vida.
Esse é o tempo qualitativo ou existencial. Podemos intuir o
tempo como relativo ou mesmo uma ilusão.
Afinal, aprendi a contar melhor o tempo. Ele não se
conta pelas folhas que secam e caem no caminho, mas pe-
los frutos colhidos ao longo da vida. O tempo não é mais
que um momento, mas será eterno se for belo o gesto.
Carpe Diem, como já disse o poeta Horácio.

Jornal do Brasil, 3 de abril de 2010


Folha de Pernambuco, 5 de abril de 2010

69
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

Alice, o livro e o filme

A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

72
A LITERATURA SEMPRE foi fonte inspiradora para o cine-
ma. Mais recentemente, não só para a sétima arte. Além de
inspirar filmes, os livros passaram a contribuir com ideias
que podem se estender também na criação de jogos eletrô-
nicos. Com o desenvolvimento da tecnologia e o surgimento
dos e-books e audiobooks, o mercado editorial atravessa um
período de turbulência com o avanço no terreno do mundo
virtual. O caminho rumo ao digital é mesmo sem volta para
a produção literária. E junto a tudo isso são vistas, de for-
ma cada vez mais frequente, obras literárias que suscitam
imagens fantásticas na cabeça do leitor (muitas delas até
surreais) e servem de roteiros para filmes de linguagem e
exibição que exploram bastante a tecnologia. Alguns deles
lançados, também, em terceira dimensão (3D), recurso que
passa uma forte sensação de realidade às imagens.
No 1º Congresso Internacional do Livro Digital, rea-
lizado recentemente em São Paulo, o presidente da Feira
do Livro de Frankfurt, Juergen Boos, afirmou que o livro
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

não é apenas um objeto, mas uma experiência. A edição do


livro não é mais um setor isolado, agora estamos dentro do negócio
do conteúdo. O livro se torna uma ideia que pode servir para a
criação de filmes e até jogos, apontou Boos.
O desafio para roteiristas e diretores, no entanto, é jus-
tamente a adaptação de obras literárias, que, em sua maioria,
são densas e/ou complexas e grandes, para a linguagem ágil
e dinâmica do cinema. Há sempre certo impasse, caminhos
distintos entre a obra literária concebida pelo autor (o cria-
dor de palavras) e a percepção que o diretor de cinema (o
criador de imagens) tem do texto. Mas isso é perfeitamente
normal. Uma boa tradução não se faz literal. Quando um
grande criador de universos se aproxima do outro não há
obediência completa de nenhum dos lados.
Um significativo exemplo de êxito, nessa aproximação
entre um gênio do mundo da imagem e a obra de um
brilhante escritor, é o filme Alice no país das maravilhas,
que estreia no Brasil este mês. Dirigido por Tim Burton,
o longa é certamente a melhor adaptação para o cinema
da obra do inglês Lewis Carroll (1832-1898). Diretor dos
filmes Edward, mãos de tesoura e A noiva-cadáver, Burton é o
que se pode chamar de um mago do universo jovem, por
isso a união feliz com Carroll, que era um exímio conhece-
dor do mundo infantil. Entretanto, há diferenças entre o
livro e o filme. Nada mais que adequações do universo de
Carroll para o de Burton, seguindo ainda as especificidades
da linguagem e aspectos da literatura e do cinema.
Em vez de uma menina de sete anos, o filme Alice­
no país das maravilhas traz a bela atriz australiana Mia
Wasikowska­, com trajes bastante sensuais, no papel prin-
cipal. Outras diferenças significativas entre livro e filme

74
Antônio Campos

ficam por conta de personagens como a Rainha Vermelha


e o Chapeleiro Maluco.
Mas o que vale a pena ressaltar é a junção de nomes
que, embora sejam de épocas tão distintas, obtiveram algo
bastante raro no meio artístico: sucesso de crítica e público.
Professor de matemática na Universidade Oxford, Carroll
chegou ao estrelato com dois livros: Alice no país das maravi-
lhas e Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, até hoje
bastante estudados nas universidades, lidos por pessoas de
todas as idades e objetos de várias traduções. No mundo do
cinema, Tim Burton também alcançou o sucesso, com estou-
ros de bilheteria, a exemplo de Batman e A lenda do cavaleiro
sem cabeça. Além disso, está tendo o privilégio de ter uma
exposição, neste momento, com mais de 700 peças de sua
vida e obra (desenhos, cartazes, fotografias e animações), no
Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA).
O filme Alice é um belo diálogo entre as artes literária
e cinematográfica com uma releitura contemporânea da
linguagem do cinema. Burton fez um livro em cinema,
através da tecnologia 3D, utilizando a linguagem literária e
também cinematográfica de Carroll, mostrando a tendência
da diminuição do limite entre as linguagens da literatura,
do cinema e mesmo da vida real.

Jornal do Brasil, 10 de abril de 2010


Folha de Pernambuco, 12 de abril de 2010

75
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

76
Antônio Campos

Christina Oiticica e sua arte


de plantar quadros na terra

C
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

78
FoI UM GRANDE sucesso a exposição Amazônia da pinto-
ra Christina Oiticica, que teve início no dia 15 de março,
no Hotel Diplomat, em Estocolmo, na Suécia, por ocasião
da conferência O Brasil e o Futuro — Biocombustíveis, No-
vas Energias, Ciência e Cultura, uma iniciativa do Jornal do
Brasil, da Casa Brasil e da Câmara de Comércio Brasilei­
ra na Suécia. Companheira do escritor Paulo Coelho, essa
talentosa artista plástica brasileira, que já expôs em tantos
países pelo mundo (França, Espanha, Estados Unidos, Suí­
ça, Itália, Polônia, Bélgica, Alemanha, Holanda, Irlanda e
Eslováquia), agora vê sua arte brilhar na terra onde são
escolhidos os vencedores dos prêmios Nobel.
Christina Oiticica — como ela própria gosta de dizer
— planta quadros na terra. Em suas telas, a natureza pinta,
deixa marcas, sendo cocriadora da obra. Na realidade, a
terra é cocriadora de tudo, inclusive de nós. Dona de uma
arte originalíssima e apaixonante, sua pintura vem tendo o
reconhecimento crescente do público e da crítica. Apresen-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

tada pela primeira vez, a exposição Amazônia é composta de


20 quadros, que foram enterrados na floresta amazônica
da região do Acre e retirados após um ano. Os quadros re-
nascem e são tratados e expostos por Christina. O quadro
Portal de Gaia destaca-se na mostra. A tela é uma grande
janela para o interior da terra, nossa grande mãe, local da
aventura humana.
Desde 2003, Christina Oiticica divide sua vida entre os
Pirineus do Sudoeste da França e o Rio de Janeiro, locais
que escolheu para morar e que a inspiram para desenvolver
seu trabalho. A artista estabelece uma generosa parceria
com os elementos naturais, concebendo seus trabalhos com
essa interferência direta, uma vez que suas telas são deixa-
das em leitos de rios, florestas, dentro de árvores, para, só
depois de certo tempo, fazer o que ela chama de correção.
De maneira simples e direta, a pintora retrata em seu
trabalho o mundo, o momento presente e as sociedades
em que vive. A força e a magia das suas telas nos foram
apresentadas, desde sua primeira exposição, por intermé-
dio de belíssimos quadros surgidos da sensibilidade de sua
impressão visual em uma peregrinação pelo Caminho de
Santiago de Compostela, em 1990, na Espanha. A mos-
tra foi montada, à época, na Casa de Espanha, no Rio de
Janeiro­, de modo que o visitante pudesse não só observar
a temática dos quadros, mas que experimentasse também
um percorrer simbólico do Caminho Santo.
A artista diz que enterra seus quadros porque se in-
teressa pela participação da natureza como coautora de
sua arte, não só pela intervenção estética dos elementos
naturais em contato com suas telas, mas também pelo que

80
Antônio Campos

chama de marcas invisíveis deixadas por esses elementos.


Christina pinta ao ar livre já há bastante tempo. Deixou
as paredes dos ateliês e passou a exercer os momentos de
criação de suas telas no chão dos bosques e nos leitos dos
rios. E foi assim que chegou a essa técnica de fazer dos
elementos da natureza coautores de sua obra. Casualmente,
um dia, trabalhando em um campo, viu um inseto e uma
flor de algodão passando sobre um quadro que pintava.
Longe de incomodá-la, isso lhe pareceu belíssimo.
A pintura de Christina é muito simbólica. Sendo gran-
de devota da Virgem Maria, sempre trabalhou com o uni-
verso feminino: o corpo; os círculos; as transparências; a
boca que se transforma em coração ou em rosa. Então,
logo veio a ideia de trabalhar na terra, que simboliza o úte-
ro e a fecundidade, e tudo se encaixou na semiótica arte
de Christina Oiticica.
Sensível, doce e muito forte, ela é amante das mari-
posas, da terra e da água. Um espírito livre, que irradia
agradecimento pela vida em cada pensamento seu. A sua
pintura é uma espécie de carta da terra a lembrar que a
natureza é nossa criadora, nossa morada, lugar sagrado.
Talvez, por isso, as obras que a natureza lhe devolve não
sejam exatamente quadros, mas pequenos tesouros, pre-
sentes da terra, dos pequeninos seres vivos que ali deixam
suas marcas, da chuva, da Lua, do Sol e da imensa energia
das quatro estações.
Christina percebe a arte como um caminho de pesqui-
sa. Ousa, inventa, reinventa. O caminho do belo para ela é
encontrado em várias linguagens de tradução de sua obra.
Tenho a intuição de que as raízes familiares e culturais de

81
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Christina, no Nordeste do Brasil, a estão chamando para um


projeto nos Sertões nordestinos. Afinal, o Sertão está em
todo lugar, como já dizia o mago de Codisburgo, Guimarães­
Rosa. E a arte e vida de Christina Oiticica são peregrinas,
levando-a a colher quadros plantados mundo afora.

Jornal do Brasil, 12 de abril de 2010


Folha de Pernambuco, 8 de abril de 2010

82
Antônio Campos

O amor e a religião no futuro

O
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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APRESENTAR ÀS PESSoAS uma clara perspectiva de como
construir o mundo que desejamos, ou o que vai existir
independentemente de nossas vontades, analisando possi-
bilidades e pontos determinantes do passado e do presente
sobre um assunto específico é o objetivo da Futurologia, a
ciência que estuda o futuro. Apesar da exigência de eleva-
do grau de precisão em suas abordagens, o papel de um
futurólogo não é indicar o que vai acontecer, mas o que
pode vir a se desenrolar como tendências a médio e longo
prazo. Os cenários, portanto, são definidos como possíveis,
prováveis ou desejáveis.
A maioria das pessoas não está familiarizada com a
Futurologia, embora haja estudiosos e conhecimento do seu
exercício em quase todas as áreas da ciência: na Sociologia;
no Marketing; na História; na Demografia. Assim, a Futu-
rologia apresenta-se como uma significativa ajuda na toma-
da de decisões, mas o desenvolvimento de um bom trabalho
nesse campo depende de muitos estudos e pesquisas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Um dos maiores futurólogos que conhecemos foi o luso-


-brasileiro Pe. Antônio Vieira (1608-1697), com seus célebres
e geniais sermões (editados em 16 volumes) e o livro História
do futuro (volumes I e II). Suas ideias de abolir a distinção
entre cristãos-novos (judeus convertidos perseguidos à época
pela Inquisição) e cristãos-velhos (católicos tradicionais), de
defender o fim da escravatura e de criticar severamente a In-
quisição mostravam que o Pe. Antônio Vieira era um grande
pacificador, um homem realmente à frente de sua época.
Atualmente, um dos futurólogos mais comentados no
mundo é Adjiedj Bakas, autor de vários best-sellers a exem-
plo de Living without oil (Vivendo sem petróleo) e Beyond the
crisis (Além da crise). Filho de indianos, Bakas nasceu em
1963, no Suriname, mas vive e trabalha na Holanda des-
de 1983. Especialista em Ciência da Comunicação, Adjiedj
Bakas combina conhecimento do mercado de diversão com
distribuição de informação de entretenimento, sendo hoje
um dos maiores trendwatchers (profissional que realiza análi-
ses e monitoramento das macrotendências, coordenação de
pesquisas, e acompanhamento dos estudos realizados por
agências especializadas) e dos mais destacados do mundo.
Autor de dez livros publicados, todos nessa linha das ten-
dências para o futuro, e dono de um bom humor contagiante,
Bakas é frequentemente convidado para proferir conferên-
cias em países de todo o mundo. Considerado pela imprensa
internacional especializada em literatura como um fascinante
pesquisador, um falante visionário e uma figura pública pro-
vocante e inspiradora, Bakas faz juz às classificações em duas
de suas obras mais instigantes: Futuro de Deus (Espiritualidade
2.0), escrito em 2006, em coautoria com Minne Buwalda, e O
futuro do amor, concluído em janeiro desse ano.

86
Antônio Campos

Em Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), Bakas e Buwalda­


apresentam 49 tendências em religião e espiritualidade.
O livro analisa o fato de que a transformação do mundo
numa grande aldeia global ofereceu múltiplas chances para
algumas pessoas, mas há muitos que se sentem ameaçados
com essa situação. A globalização, sem dúvida, causou im-
pacto sobre a religião. Grupos religiosos que não conviviam
cinquenta anos atrás, hoje vivem e trabalham nos mesmos
bairros e escritórios.
Já em O futuro do amor, Adjiedj Bakas traz afirmações
cortantes, ácidas para o leitor, que o fazem refletir sobre os
novos paradigmas, com reflexões pertinentes, e o posicio-
nam nas condições atuais de vivência humana e relaciona-
mentos interpessoais. O autor responde a questionamentos
a exemplo de: Como o amor se relaciona com o trabalho?
Como tecnologia e globalização se unirão com o amor? Será
que vamos avançar para múltiplas relações (o que Bakas
chama de a latinização de amor) ou caminhar para a monoga-
mia serial? Como continuará a divisão aguda entre homos-
sexuais e heterossexuais, agora que há cada vez mais cruza-
mentos? Será que vamos chegar a uma multissexualidade?
Nesse que pode ser considerado um de seus livros mais
fascinantes, Bakas descreve a evolução da vida amorosa de
pessoas de várias gerações, além de estilos de vida e práti-
cas étnicas e culturais no mundo veloz de hoje.
A Editora Girafa vai lançar os interessantes Futuro de
Deus (Espiritualidade 2.0) e O futuro do amor, em julho, aqui
no Brasil, e Adjiedj Bakas virá para proferir uma de suas
famosas palestras.

Jornal do Brasil, 17 de abril de 2010


Folha de Pernambuco, 19 de abril de 2010

87
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
Antônio Campos

A reinvenção do livro

A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

90
ONTEM (23 DE AbRIL) comemorou-se o Dia Internacional
do Livro e do Direito Autoral, data oficializada pela UNES-
CO, em 1996, e que é festejada em mais de 100 países. A
Espanha, desde 1926, já celebrava o livro na data da morte
de Shakespeare e Cervantes. Na região espanhola da Ca-
talunha, comemora-se, nessa data, o dia de São Jorge, da
rosa e do livro, ou seja, o dia do padroeiro, do amor e da
cultura. As mulheres recebem flores dos homens, que re-
tribuem, presenteando livros.
Diante da profusão de novas plataformas de leitura,
agentes da cadeia produtiva do livro começam a se preo-
cupar com o futuro do livro impresso. Após o surgimento
das novas tecnologias para a publicação de conteúdo, como
a Internet, o processo de produção, edição e impressão de
livros na forma convencional se tornou motivo de debate.
Não vamos confundir o futuro do livro com o futuro
do papel. Nunca tantas ideias foram escritas na era digital.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

As plataformas impressas e digitais não são excludentes,


mas complementares. Ao lado do livro impresso temos o
livro eletrônico e a Internet já é a maior biblioteca do mun-
do. Vivemos uma verdadeira reinvenção do livro ante o
mundo digital com novos paradigmas no mercado editorial
e de linguagem. Contudo, em qualquer uma de suas for-
mas — o livro não foi só uma celebração do conhecimento
e registro da memória da espécie humana, mas uma cele-
bração da vida.
O filme O leitor nos mostra que se existe alguma reden-
ção para o ser humano, ela passa pela linguagem. A falta
ou o erro de comunicação podem ser determinantes na vida
das pessoas. Os livros falam e dialogam com os homens e
são amigos valiosos em nossas vidas. O mundo vive um pa-
radoxo: na era da Internet e do celular, ainda reina a inco-
municabilidade, pois as questões essenciais não são ditas.
Em 2008, uma escola formada por escritores, em Lon-
dres, que se denominou Escola da Vida, criou a chamada
biblioterapia, que consiste em indicar leituras para o perfil
do aluno/cliente, numa verdadeira terapia, através dos li-
vros. Em tempos em que um livro é publicado a cada 30
segundos e seriam necessárias 163 vidas para lermos todos
os livros oferecidos somente pelo site Amazon (como bem
lembra o site de escola), as sessões de biblioterapia podem
ser um guia para quem está perdido.
A boa leitura é uma experiência mágica. Por meio dos
livros, conhecemos santos, reis, filósofos e homens comuns.
Podemos saber o que disseram Jesus Cristo na Palestina e
Gautama Buda no continente indiano. A leitura de um livro
não pode parecer uma obrigação, mas deve ser um ato de

92
Antônio Campos

prazer ou de paixão. Um livro tem que ser uma forma de


felicidade. Alguém já disse que o livro é apenas um instru-
mento para encontrarmos a verdade por nós mesmos. Todo
leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra é um instrumento
que lhe permite discernir o que, sem ele, não teria visto em si, afir-
mava o escritor Marcel Proust, filosofando sobre a leitura.
O livro atravessou eras de guerras e perseguições, so-
breviveu e, mais ainda, saiu fortalecido. Nesta época de
contradições e incertezas, a cultura e o livro são as armas
para se manter os valores básicos do homem acima dos
conflitos econômicos e de credo.
Desejamos contribuir para que o amor pelos livros seja
disseminado em nosso país, o qual ainda precisa conquistar
para seu povo um maior acesso ao livro. Queremos con-
tagiar o maior número possível de pessoas, ou, no dizer
de José Mindlin, inoculá-las com essa espécie de loucura
mansa, que é a paixão pelos livros. O livro é uma forma
de resistência e reexistência, numa globalização que trouxe
mais exclusão social. Longa vida ao livro!

Jornal do Brasil, 24 de abril de 2010


Folha de Pernambuco, 26 de abril de 2010

93
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

94
Antônio Campos

O legado de Camus

O 95
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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ESTAMoS No ANo do cinquentenário de morte do escri-
tor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Talento re-
conhecido em todo o mundo, Camus é um dos mais repre-
sentativos escritores do século 20. Nascido em uma família
pobre na cidade de Mondovi, na Argélia, então colônia da
França na África, teve uma vida sacrificada e dura. Perdeu
o pai (francês) quando tinha menos de um ano de idade,
vitimado em uma batalha da 1ª Guerra Mundial. Foi criado
pela mãe (espanhola), que não sabia ler nem escrever, e
uma avó, extremamente austera, em meio a uma condição
que contemplava apenas as necessidades essenciais de so-
brevivência, num subúrbio da capital Argel. Graças à ajuda
de um mestre (Jean Grenier), graduou-se em Licenciatura
em Filosofia, mas quando estava prestes a começar a do-
cência contraiu tuberculose.
A doença o acompanhou pelo resto de sua breve vida e
a frequente ameaça de morte o marcou profundamente, re-
fletindo de maneira significativa na sua visão de mundo e na
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

literatura que proferiu. Camus faleceu aos 47 anos em um


acidente de carro, no sul da França. Entre seus livros mais
conhecidos: O estrangeiro, escrito em 1942 e traduzido para
mais de 40 línguas; A peste, de 1947, e A queda, de 1956. Par-
ticularmente, destaco, ainda, na obra do vencedor do prêmio
Nobel da Literatura de 1957, O homem revoltado.
Em O estrangeiro, Camus nos deu uma história tensa,
dura, intensa. Como era próprio no autor, é marcante o
sentimento existencialista do personagem principal, sua so-
lidão, dúvidas e o quase surrealismo de seus conflitos. Ain-
da que o livro seja uma obra de ficção, o personagem é
inerente ao escritor, com a clara proximidade entre seus
pensamentos e valores em relação à sociedade em que vive.
A peste é uma alegoria da guerra e da ocupação nazista e,
mais amplamente, da condição humana, através da descri-
ção de uma cidade ameaçada pela epidemia. Em O homem
revoltado, a reflexão existencialista acaba por descobrir que
somente se revoltando é que pode o homem dar sentido a
um mundo dominado pela “completa ausência de sentido”.
“O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites...
Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias”, são
frases que marcam bem o pensamento do escritor.
Albert Camus questionou, em sua obra, assuntos sobre
os quais continuamos debatendo. O escritor não queria ser
apontado como um filósofo, mas filosofou sim — e muito
—, imprimindo admirável comprometimento com a busca
de um caminho ético na existência humana. Camus pro-
curou sempre o real sentido da vida e o grande valor do
agir nos indivíduos. Expôs as inquietações fundamentais da
condição humana e os delineamentos de um itinerário hu-
manista conciliado à experiência cotidiana da dignidade.
Antônio Campos

Até mudar-se para Paris, onde começou a fazer parte


da resistência contra os nazistas e fundou o jornal clandes-
tino Le Combat, Camus viveu na Argélia. Apesar das dificul-
dades econômicas impostas pelo colonialismo, sua terra na-
tal o extasiava com suas belezas naturais, seu romantismo,
e a poesia que brotava de sua gente mestiça. Apaixonado
pelo céu, pelo mar e pela exuberância feminina, Camus se
deleitava ao ver as mulheres a amassar os absintos. Em seus
romances, a Argélia resiste insistentemente como uma bela
e sedutora paisagem de fundo.
Quando jovem, o escritor foi goleiro da seleção uni-
versitária. Conta-se que um bom goleiro. Um dos fatos que
mais o impressionaram quando da sua visita ao Brasil, em
1949, foi o amor do brasileiro pelo futebol. Tanto que uma
das primeiras atitudes que Albert Camus teve ao pisar no
Brasil foi pedir para que o levassem para assistir a um jogo.
E seu amor pelo futebol o acompanhou por toda a vida.
O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do
homem, devo ao futebol, costumava dizer Camus.
Recentemente, por conta do cinquentenário de morte
do escritor, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, aca-
bou por lançar uma grande polêmica no país ao propor a
transferência dos restos mortais de Albert Camus para o
Panthéon, monumento em Paris  onde já se encontram os
mausoléus de célebres personagens da literatura francesa,
entre eles Voltaire, Rousseau, Victor Hugo e Emile Zola.
Para os críticos, a proposta de Sarkozy é uma tentativa de
apoiar-se politicamente no legado de Camus, que é uma
figura mítica da esquerda francesa. Parece que a tentativa
do presidente francês não sensibilizou os filhos do escritor,
os gêmeos Jean e Catherine, a qual acaba de publicar o li-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

vro Camus, mon père (Camus, meu pai), ainda sem tradução
para o português.
Meio século após sua morte, quando vivemos em um
mundo marcado por irracionalidades, intolerâncias e fana-
tismos, lembrar e recomendar a leitura desse extraordinário
escritor é fundamental para que possamos sempre buscar
um melhor entendimento sobre a aventura existencial do ser
humano. Sua obra nos deu uma admirável lição de auten-
ticidade. Nunca esqueci uma frase de Albert Camus que li
num monumento em Tipasa, quando estive na Argélia pela
primeira vez: Aqui, eu conheci a dor de viver e a glória de amar.

Jornal do Brasil, 1º de maio de 2010


Folha de Pernambuco, 3 de maio de 2010

100
Antônio Campos

As faces do quase

A 101
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

102
VIvEMoS FUGINDo de uma palavra que expressa, na maio-
ria das vezes, um sentimento de frustração, de desaponta-
mento e de tristeza: quase. Mas nem todo fato que chega
próximo a se realizar, a acontecer é tido como frustrante.
Para os que têm verdadeiro pavor do quase, um conciso tex-
to escrito em 2003 por uma então estudante de medicina ca-
tarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva e lançado
na Internet com autoria atribuída ao cronista e escritor Luis
Fernando Verissimo tornou-se um ícone para uma legião
de pessoas que se identificam com aquela argumentação tão
bem colocada. Depois de tantas negativas de Verissimo de
que o texto tinha sido escrito realmente por ele, a autora de
O quase foi descoberta em 2005, quando o seu texto já havia
sido traduzido para o francês, numa coletânea de textos e
versos de brasileiros, entre os quais Clarice Lispector, Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
Atribuído a Verissimo, estava lá O quase, de Sarah, que
na tradução virou Presque. Muito bem escrito, o texto sacode
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

os que, na opinião da autora, estão acomodados a viver na


incerteza do talvez e acostumados com a desilusão de um quase.
Mas a mente humana é muito farta de possibilidades e de
pontos de vista. O quase pode ser observado pelo prisma
abordado por Sarah e ser definido como decepcionante, o
nada. No entanto, temos o quase que nos traz o alívio por
nos livrar de algo desastroso: escapar de um atropelamen-
to; levar um choque elétrico forte e ficar vivo para contar a
história; sofrer um acidente de moto e sair ileso ou apenas
com pequenas escoriações, entre tantos outros exemplos.
Este seria, sem dúvida, o lado do quase que todos querem
para si quando se deparam com situações de perigo.
Há pessoas que acreditam — da mesma maneira que
Sarah­ Westphal — ter o quase como uma verdadeira sín-
drome em suas vidas. Pessoas que pensam que o quase
as persegue e, mesmo assim, encaram a perspectiva com
resignação e tranquilidade, pois dizem estar acostumadas a
ver seus anseios e metas sempre chegarem apenas perto de
acontecer. Mas não se culpam por isso e nem se revoltam.
Essa visão também nada tem a ver com falta de determi-
nação ou pessimismo. Para quem pensa assim, o namoro
que por um triz não decolou ou aquele emprego que quase
deu certo só deixaram de acontecer em suas vidas porque,
certamente, dessa forma, seria melhor para elas. E assim
dizem: Não era a pessoa certa ou a melhor oportunidade para
mim... Trata-se de uma filosofia de vida voltada para a ne-
cessidade de não se martirizar ou de partir para a próxima,
acreditando que o melhor está por vir.
Existem também aqueles que sequer admitem a hipóte-
se do quase em suas vidas. Acostumado com as glórias das
vitórias e com o doce sabor das conquistas, Ayrton Senna­,

104
Antônio Campos

por exemplo, nunca se contentou com qualquer outra colo-


cação, em corridas ou em campeonatos de Fórmula 1, que
não fosse a primeira. O importante é ganhar. Tudo e sempre.
Essa história de que o importante é competir não passa de demago-
gia, era o que defendia. Desde a época do cart, Senna estava
tão habituado a vencer que para ele o chegar perto não
servia. O quase, portanto, era desprovido de qualquer valor
para o piloto. Há muitas pessoas assim, que desconhecem
outro gosto que não seja o do triunfo e isso se reflete em
todos os aspectos de suas vidas. Talvez essa característica
acabe por formar indivíduos mais intolerantes e perfeccio-
nistas, ou apenas com forte autoestima e autoconfiança.
Por outro lado, o quase pode ainda assumir ares confor-
tantes. Tem gente que se sente bem só porque chegou perto
de conseguir algo tão almejado. Esse comportamento é visto
no ex-atleta, que faz questão de enfatizar o fato de quase ter
ido às Olimpíadas. Ele não alcançou o seu grande objetivo,
mas fica satisfeito por ter desenvolvido sua melhor perfor-
mance e até orgulhoso em dizer que faltou pouco para reali-
zar o sonho. Há um sentimento de plenitude nesse quase.
Essa pode ser uma visão um tanto quanto romântica,
certamente defendida e praticada por poucos, e uma ma-
neira de se confortar, uma espécie de defesa do incons-
ciente, mas diferente da visão da jovem catarinense Sarah
Westphal, e certamente compartilhada por muitos, na qual
ela contesta a covardia e a falta de coragem nas pessoas. A
escritora considera o quase como uma condição recorrente
de quem escolhe viver de maneira morna e apática. A leveza
e o orgulho do tal ex-atleta residem na certeza de que ele,
pelo menos, arriscou, fazendo tudo o que lhe era possível.

105
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Vimos este ano o presidente de honra da Grande Rio,


Jayder Soares, e todos na escola comemorarem bastante o
vice-campeonato na Marquês de Sapucaí. Para a comunida-
de de Caxias, o segundo lugar no carnaval do Rio teve sabor
de título. Recentemente, também assistimos aos jogadores
do Santa Helena darem a volta olímpica no campo de jogo,
após terem sido derrotados na disputa de uma final que os
manteve, pela segunda vez, com o vice-campeonato goiano.
Mas foi pela desilusão de mais um fracasso amoroso e
por analisar apenas a frequência do quase como consequên-
cia da apatia e da falta de atitude que, no final do seu texto,
Sarah Westphal sugere: ...Não deixe que a saudade sufoque, que
a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do desti-
no e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planejando, vivendo que esperando, porque, embora
quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.
O conselho serve para os casos que se enquadram no
ponto de vista abordado, mas, mesmo seguindo-o, não es-
taremos livres do quase. Competitiva como a vida é, haverá
sempre os que terão êxito, os que conseguirão realizar os
objetivos, os vencedores e os tantos outros que, chegando
perto, ficarão no quase e não conseguirão alcançar um
sonho, um objetivo, um casamento, um bom negócio fe-
chado. Portanto, o quase deve ser encarado como fato co-
mum em nossas vidas, não apenas como fracasso. O quase
tem múltiplas faces, tanto pode ser uma grande frustração
como ser valorizado muitas vezes, sim. Trabalhemos, por-
tanto, os nossos quase!

Jornal do Brasil, 8 de maio de 2010


Antônio Campos

Viver é uma arte

A
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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Vinicius de Moraes dizia que é melhor viver do que ser
feliz. O propósito da vida não é necessariamente a busca
da felicidade. O mais interessante na vida reside na curio-
sidade, nos desafios, no bom combate, com suas vitórias e
derrotas, na busca da harmonia, e coisas afins. A vida é
mais uma busca do que um encontrar. Fernando Pessoa
fala sobre a verdadeira história da humanidade: Ah! Quem
escreverá a história do que poderia ter sido?
Vivemos fugindo de uma palavra que expressa, na
maioria das vezes, um sentimento de frustração: quase. Um
texto escrito em 2003 por uma então estudante de medi-
cina catarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva
e lançado na Internet com autoria atribuída ao cronista e
escritor Luis Fernando Verissimo tornou-se uma referência
sobre a síndrome do quase. Depois de tantas negativas de
Verissimo de que o texto tinha sido escrito realmente por
ele, a autora de O quase foi descoberta em 2005, quando o
seu texto já havia sido traduzido para o francês numa co-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

letânea de textos e versos de brasileiros, entre os quais Cla-


rice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel­
Bandeira.
No fim do seu texto, Sarah Westphal sugere: ...Não
deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo
impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste
mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando,
vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja
vivo, quem quase vive já morreu.
Muitos já falaram, com maior maestria e conhecimento
que eu, sobre a dor e a delícia de viver. Contudo, faz-se neces-
sário pregar, mais do que nunca, um novo humanismo para
o século XXI, em que o homem afinal se convença de que a
grande viagem a ser feita é em torno de si mesmo, em busca
da sua identidade, e que a grande descoberta é a do outro –
seu irmão – através da fraternidade e da solidariedade.
Não faça de sua vida um quase. Todo homem pode
nascer uma segunda vez ao dar um sentido à sua vida, fa-
zendo-a valer a pena. Viver é uma arte. Saiba viver. Jamais
perdi a esperança.

Folha de Pernambuco, 10 de maio de 2010

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Antônio Campos

O Google e os livros

O 111
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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DEPoIS Do ORKUT e do e-mail que nunca está cheio (o
Gmail), um dos últimos projetos do Google é a ferramenta
Google Book Search, inaugurada em novembro de 2005.
Outro projeto é a venda de livros eletrônicos (e-books),
através do Google Editions, que começa ainda este ano.
Assim, o Google está fazendo a maior biblioteca e o maior
negócio livreiro do mundo.
A maior companhia da Internet tem uma meta nada
modesta nesse ramo: quer digitalizar praticamente todos
os livros do planeta. Segundo dados do Online Computer
Library Center (CLC), dos 55 milhões de títulos existentes
no mundo, 10% representam o catálogo ativo das editoras;
15% caíram em domínio público e 75% — ou 40 milhões
— são livros não mais comercializados, mas que ainda não
estão em domínio público. O foco inicial do Google são es-
ses dois últimos grupos. No fim de 2009, o total de títulos
convertidos em bits pela empresa já havia alcançado os 10
milhões. Os engenheiros da empresa Google criaram um
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

método específico de digitalização, em que mil páginas são


escaneadas por hora.
O Google Book investe em parcerias com bibliotecas no
sentido de digitalizá-las.
Tal iniciativa gerou uma demanda judicial nos Estados
Unidos, que acabou em acordo, sujeito à aprovação do Tri-
bunal Distrital dos Estados Unidos pelo Distrito Sul de Nova
York (o texto integral do acordo está disponível no site:
<www.googlebooksettlement.com/agreement.html>).
O modelo de negócio do Google tem gerado contro-
vérsias relacionadas à infração de direitos autorais, questões
de monopólio e privacidade. O historiador Robert Darnton,
autor da obra A questão dos livros, fala do papel das biblio-
tecas e a iniciativa do Google de digitalizar livros: O Google
tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas
bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar
lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos —
entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não
pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos auto-
rais do Google configura uma situação de monopólio.
Darnton também fala da falta de critérios para a digitali-
zação realizada pelo Google, que não tem bibliógrafos no seu
quadro funcional: O Google emprega milhares de engenheiros, mas
até onde sei, não tem nenhum bibliógrafo em sua equipe. Seu desca-
so com qualquer preocupação bibliográfica visível é particularmente
lamentável, tendo em vista que a maioria dos textos, como acabo de
argumentar, foram instáveis por boa parte da história da imprensa.
O Google está criando um comunicador universal com
o seu tradutor de línguas. Atualmente, traduz 52 línguas. E
mais: no Google estão sendo armazenadas as biografias das

114
Antônio Campos

pessoas no mundo contemporâneo. O livro Google: o fim do


mundo como o conhecemos de Ken Auletta merece ser lido.
É preocupante o fato de um empreendimento comer-
cial deter o controle de tanta informação. O Google já está
sabendo mais a nosso respeito que, por exemplo, a Receita
Federal. Precisamos cuidar para que a sociedade da infor-
mação na qual vivemos seja a mais democrática possível
e que não seja monopólio de ninguém. Vamos cobrar do
Google que siga fielmente seu lema formal: organizar a in-
formação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil, e
informal: não faça maldade.

Jornal do Brasil, 17 de maio de 2010


Folha de Pernambuco, 17 de maio de 2010

115
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

116
Antônio Campos

O deserto do real

O 117
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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O ESCRIToR E FILÓSoFo Slavoj Žižek nasceu em Liubliana,
na antiga Iugoslávia. Atua como professor na European Gra-
duate School e no Instituto de Sociologia da Universidade de
Liubliana. Žižek é conhecido pelas suas teorias sobre o real,
o simbólico e o imaginário.
Extrai seu pensamento do idealismo alemão e da psi-
canálise, sendo fortemente influenciado por Lacan, Marx,
Hegel e Schelling. Žižek defende o Real em sua violência
extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas en-
ganadoras da realidade. Afirma que o real é um enigma que
não deve ser equiparado com a realidade que enxergamos.
Segundo ele, nossa realidade foi construída a partir de
símbolos. A realidade seria uma ficção. É preciso anali-
sar constantemente aspectos como o antagonismo social, a
vida, a morte e a sexualidade para compreender melhor
esse contexto no qual estamos inseridos.
A obra de Slavoj Žižek tem estado na linha de frente
do debate filosófico, político e cultural nos últimos tempos.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Da teoria da ideologia até a crítica da subjetividade, a ética,


a globalização, o espaço cibernético, nos estudos sobre cine-
ma, no cognitivismo, na teologia e na música, a influência
do sociólogo se estende amplamente no mundo contempo-
râneo. Suas intervenções continuam a provocar debates e a
transformar nossa maneira de pensar.
As ideias do filósofo estão presentes em várias obras,
entre elas, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da
ideologia; O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan; Um
mapa da ideologia; As portas da revolução; Arriscar o impossível
e Bem--vindo ao deserto do real!.
No livro Bem-vindo ao deserto do real!, Žižek alega que os
arquétipos de uma superestrutura capitalista globalizante
não deixam as pessoas enxergarem a realidade, mas apenas
uma falsa reprodução da mesma.
O filme Matrix (1999), sucesso dos irmãos Wachowski,
levou essa teoria ao ápice. Na teoria, a realidade material
que sentimos e vemos à nossa volta é virtual. Tudo é gera-
do e coordenado por um gigantesco computador ao qual
estamos ligados.
No filme, o herói, interpretado por Keanu Reeves,
acorda e se depara com a cidade de Chicago completamen-
te destruída após uma guerra global. O líder da resistência,
Morpheus, lança-lhe uma estranha saudação: Bem-vindo ao
deserto do real. Essa frase é exatamente uma metáfora do
que vivemos.
O homem vive preso a uma matriz materialista, mas
somos mentais e espirituais. O mundo é mental. A intenção
move o universo. Tornamo-nos aquilo que pensamos.

120
Antônio Campos

Há quem diga que a vida real acontece quando ador-


mecemos. No momento em que acordamos estamos dor-
mindo, pois o homem acordado é tridimensional e sente o
tempo linearmente, no tempo do não tempo. Ao dormir e/
ou ativar o lado direito do cérebro seria possível despertar
uma quarta dimensão, a intuição, conectando uma grande
rede cósmica numa quinta dimensão.
Somos parte de uma realidade ficcional. Ilusória. Onde
nada existe. Tudo foi construído. Precisamos despertar
para o mundo real. Isso é um pouco do pensamento desse
filósofo, cuja obra merece ser mais bem esmiuçada.

Jornal do Brasil, 24 de maio de 2010


Folha de Pernambuco, 24 de maio de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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Antônio Campos

Umberto Eco: o fim dos livros?

U 123
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos
A obRA Não contem com o fim dos livros, escrita pelo ita-
liano Umberto Eco, foi lançada no Brasil em maio e faz
uma análise da existência do livro na atualidade. A ideia
da morte da literatura clássica e o pretenso fim dos livros
são duas das maiores obsessões de Umberto Eco, surgindo
daí o interesse em publicar o livro, numa parceria com o
ensaísta francês Jean-Claude Carrière, organizado pelo jor-
nalista Jean-Philippe de Tonnac.
Escritor, filósofo, semiólo, linguista e bibliófilo, Eco é
um estudioso das falhas humanas. Fascinado pela má-fé
e pela estupidez, o italiano acredita que o erro sempre
aponta para algo que não devemos esquecer, e que ressalta
a verdade. Para ele, existem apenas duas diretrizes no ce-
nário literário: ou o livro permanecerá sendo o suporte da
leitura ou existirá alguma coisa similar que fará com que
ele não peca seu valor original.
As variações em torno do livro como objeto não modi-
ficam sua função, nem sua construção gramatical. O livro é
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez in-


ventados, não podem ser aprimorados. Não é possível fazer
com que uma colher seja melhor que outra. Segundo Eco,
quando pensamos que havíamos ingressado na civilização
das imagens, surgiu o computador, que nos reintroduziu
na galáxia de Gutenberg, na era alfabética. Com o advento
das novas tecnologias, todos se viram predestinados a ler
de uma maneira nova.
Na obra recém-lançada, Carrière e Eco dizem estar
mais preocupados com a extinção do presente que com a
suposta ameaça ao livro. Pois acreditam que nós vivemos
oprimidos entre a obsessão pelo futuro e o passado que nos
alcança a toda velocidade.
Ao proferir uma palestra na atual Biblioteca de Alexan-
dria, Umberto Eco já defendia, desde 2002, que a expansão
da Internet não ameaça a existência dos livros. O escritor ita-
liano falou sobre os três possíveis tipos de Memória: orgâni-
ca, mineral e vegetal. A orgânica é feita de carne e sangue e é
administrada pelo nosso cérebro. A Memória mineral era, há
milênios, representada por tijolos de argila e por obeliscos,
onde as pessoas entalhavam seus textos. Porém, esse segundo
tipo é também a Memória eletrônica dos computadores de
hoje, cuja base é o silício. O terceiro, e último tipo de Me-
mória, é a vegetal, representada pelos primeiros papiros e
posteriormente pelos livros, feitos de papel.
O filósofo acredita que a Biblioteca foi, no passado, e
será, no futuro, dedicada à conservação de livros e que,
portanto, é e será um templo da Memória vegetal. As bi-
bliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais im-
portante de conservação do nosso saber coletivo. Uma bi-

126
Antônio Campos

blioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma


mente divina, onde o universo inteiro é visto e compreendido ao
mesmo tempo, afirmou o italiano.
No livro, Carrière faz um importante questionamento
em relação ao valor que o presente deveria ter para o co-
tidiano das pessoas. Onde enfiaram o presente? O maravilhoso
momento que estamos vivendo e que diversos conspiradores tentam
nos roubar?. Com o excesso de informação da web em um
mundo acelerado e entulhado, impõe-se a necessidade de
uma espécie de edição do presente e o livro impresso é um
grande parceiro nessa construção.
Eco e Carrière afirmam que é falsa a premissa de que
o livro esteja com os dias contados. Não podemos usar um
computador sem saber ler e escrever. A escrita é um pro-
longamento da mão e, nesse sentido, é quase biológica, afirma o
escritor italiano. No prefácio, diz o jornalista Jean-Philippe
de Tonnac: a cultura é muito precisamente o que resta quando
tudo foi esquecido e conclui que o livro é a memória desse
grande resto que nos constitui.
O debate de Carrière e Eco com mediação de Jean-
-Philippe de Tonnac é uma importante obra sobre o livro
e o mundo contemporâneo.

Jornal do Brasil, 31 de maio de 2010


Folha de Pernambuco, 31 de maio de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

128
Antônio Campos

Aliança de civilizações

A 129
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

130
APRESENTAR NovAS dimensões para os problemas entre
as diferentes culturas e chamar a atenção para questões
que afetam diretamente os países, como emigração, fome
e educação. Esses foram alguns eixos temáticos discutidos
durante o 3º Fórum da Aliança de Civilizações, que reu-
niu cerca de 7 mil participantes de 100 países, no Rio de
Janeiro­. Realizado nos dias 28 e 29 de maio, o Encontro
abordou questões referentes aos conflitos mundiais e às
diferenças culturais, além de propor soluções, através do
diálogo, para superação dos conflitos entre as nações.
A Aliança de Civilizações é uma iniciativa da Organiza-
ção das Nações Unidas, cujo objetivo é mobilizar a opinião
pública a fim de superar preconceitos e ideias que, muitas
vezes, geram conflitos entre países e etnias diferentes. Foi
inicialmente proposta pelo presidente do Governo da Es-
panha, José Luis Rodríguez Zapatero, na 59ª Assembleia
Geral das Nações Unidas (AGNU), logo após os atentados
terroristas no metrô de Madri, em 2004.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

O evento aconteceu em boa hora, pois métodos para me-


lhorar o convívio ou diálogo entre culturas ou indiví­duos, ad-
mitindo diferenças, sem discriminações, passou a ser um dos
principais desafios do século XXI. Atualmente, as relações ou
diálogos entre as culturas estão sendo alteradas pelos desloca-
mentos de imigrantes, como também pela crescente interde-
pendência entre as sociedades, pelo efeito da globalização.
Exemplo disso é o que acontece em Los Angeles, segun-
da cidade em número de mexicanos, e em Buenos Aires, a
segunda em número de bolivianos. O que significa ser eu-
ropeu num continente marcado não apenas pelas culturas
de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e
povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais?
Recentemente, a Suíça proibiu novas cúpulas de mes-
quitas. Debate-se na França o uso da burca e a edição
de uma legislação proibindo o uso de vestimentas árabes,
quando cerca de 1,5 milhões de muçulmanos vivem na re-
gião de Paris. Cresce o medo de terrorismo, na Alemanha,
num momento em que a comunidade muçulmana chega a
mais de 2 milhões de habitantes.
No seu livro Choque de civilizações, o sociólogo Samuel P.
Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas
se dariam no terreno da cultura e da religião. O historia-
dor Eric Hobsbawm comentou, em entrevista publicada na
Folha de S.Paulo, em abril de 2010, que: Hoje, porém, o fator
xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Trata-se
de algo muito mais cultural que político.
Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal e alto repre-
sentante da ONU no Fórum Aliança de Civilizações, ressal-
tou duas notas em entrevista recentemente publicada:

132
Antônio Campos

Em primeiro lugar, entendo que a governança democrá-


tica da diversidade cultural se tornou questão central do
desenvolvimento sustentável, como seu quarto pilar, para
além das dimensões econômica, social e ambiental. Em
segundo lugar, a questão das relações entre o Ocidente
e o Islã comporta uma vertente global e, nesse sentido,
interessa a todos independentemente do tecido étnico, cul-
tural e religioso de cada.
O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura
de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tole-
rância e ao convívio entre etnias e culturas. Prescindimos de
identidade, porque temos todas elas. O Brasil pode e deve
ser um paradigma importante para o diálogo entre culturas
e etnias no mundo contemporâneo. Esse traço marcante da
mistura racial do Brasil foi objeto de estudos de alguns bra-
sileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre.
Ultimamente, o Brasil tem tido papel relevante nas re-
lações diplomáticas internacionais, destacando-se o acordo
firmado entre Brasil, Irã e Turquia, que mostra um ca-
minho do diálogo entre o Ocidente e o Islã. O cineasta
Oliver Stone, diretor do filme Platoon, comentou em visita
ao Brasil que o país é muito importante no mundo, mas
que a parceria firmada com o Irã pode não ser bem vista
por todos. Nós queremos paz. Nós não queremos uma guerra.
E a situação do Irã pode se tornar outro caso como o Iraque. Me
parece que os Estados Unidos estão interessados em outra marcha
para a guerra, afirmou.
Está no centro da vida contemporânea, o desafio de
construir diálogos de paz entre culturas que estejam em
choque – real ou aparente –, ante o fato de que, tais socie-

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

dades, a cada dia, se tornam mais interculturais que multi-


culturais. É preciso lutar contra os comportamentos de dis-
criminação e de condenação do diferente. Resistir à tentação
fácil da xenofobia e do racismo de toda espécie. Diálogo
é a palavra-chave do mundo contemporâneo: entre artes,
etnias, religiões e culturas.

Jornal do Brasil, 7 de junho de 2010


Folha de Pernambuco, 7 de junho de 2010

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Direitos autorais e economia criativa

D
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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O SÉCULo 21 É marcado por uma transição para a era da
economia do conhecimento. A riqueza revolucionária da 3ª
Onda, defendida por Alvin Toffler, é cada vez mais basea­
da no conhecimento e está muito associada à tecnologia.
O Brasil pode ser o melhor do BRIC, por meio do
fortalecimento da economia criativa e da transformação da
inventividade em competitividade. A tendência é aumentar
a riqueza gerada pela economia baseada no desenvolvi-
mento das indústrias culturais e de criatividade. A revisão
da legislação que envolve o direito autoral é um impor-
tante instrumento para o desenvolvimento dessa economia
criativa no país.
Em 1998, quando a Lei dos Direitos Autorais foi pro-
mulgada, o Brasil vivia um cenário completamente dife-
rente deste que temos agora. As novas formas de mídias
sociais, sites de compartilhamento de arquivos e todas as
novidades tecnológicas fizeram os dias de hoje diferen-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

tes daqueles que vimos há cerca de dez anos. Ferramen-


tas como internet, pen drives, mp3, iPods, leitores digitais,
CDs e DVDs modificam as maneiras mais tradicionais de
disseminar conteúdos e produções artísticas.
Nesse descompasso entre a atual lei autoral brasileira e
a nova realidade do mundo digital, é fato que a nossa lei é
considerada a quarta pior do mundo pela ONG Consumers
International IP Watch List. Ela limita excessivamente o
acesso do consumidor para o uso privado e não comercial,
conhecido nos Estados Unidos como uso justo. Na lei atual,
não há permissão, por exemplo, para cópias de livros didá-
ticos cujas edições já se esgotaram.
Atento a essa nova realidade, o Ministério da Cultu-
ra discute, desde 2005, a possibilidade de revisar a Lei nº
9.610/98 que regulamenta o direito autoral, devendo o an-
teprojeto de reforma entrar em breve em consulta pública
no site do MinC.
A busca por mais estabilidade entre o direito do autor
e os direitos do cidadão comum de ter acesso a educação,
cultura, informação e conhecimento; o aperfeiçoamento do
trato legal entre autor e editoras/gravadoras e a regulação/
fiscalização eficaz do direito autoral são apontadas pelo
diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Souza,
como as principais razões para a reforma.
O desequilibrio nos contratos entre gravadoras e com-
positores, que privilegiam demasiadamente a livre negocia-
ção contratual, merece mais atenção. É necessária uma re-
gulação e supervisão mais eficazes das sociedades de gestão
coletiva a fim de criar critérios mais justos e transparentes
na distribuição de direitos autorais.

138
Antônio Campos

É fato que a lei dos direitos autorais precisa se moldar às


novas tendências e ao formato do mundo globalizado. Afi-
nal, essas mudanças não têm volta. A grande questão do pro-
cesso de mudança na legislação é garantir um maior debate
com os compositores, escritores e produtores culturais para
se fazer um arcabouço jurídico que proteja os direitos do
autor, mas que crie mecanismos que permitam uma maior
democratização do acesso ao conhecimento por parte do ci-
dadão comum e o desenvolvimento da economia criativa.

Jornal do Brasil, 14 de junho de 2010


Folha de Pernambuco, 14 de junho de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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Antônio Campos

A estrela fria

A 141
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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JoSÉ ALMINo RECoRRE às lembranças de sua vida pessoal
para a construção de seu pensamento poético e literário. O
poeta pernambucano, que é presidente da Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, já escreveu os livros de
poemas De viva voz (1982) e Maneira de dizer (1991) e as
novelas O motor da luz (1994) e O Baixo da Gávea, diário de
um morador (1996). Sua mais recente obra se chama A estrela
fria e é uma coletânea de poesias escritas por Almino ao
longo de sua história.
Almino, que nasceu no Recife, tinha apenas 19 anos
quando foi obrigado a partir para o exílio com sua famí-
lia. Lembranças dessa intervenção política são marcantes
nesse seu livro. A poética de Manuel Bandeira e o estilo
oposto presente nos textos de João Cabral de Melo Neto
são presentes no livro, que faz uma espécie de mistura de
linguagens literárias.
Autor de palavras peculiares, José Almino traz na obra
momentos de sua vida pessoal, relatos do cotidiano, lem-
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

branças de sua infância em Pernambuco, do exílio junto


com sua família, sobre a vida no Rio de Janeiro e suas
experiências amorosas. Almino traz nos poemas algo ino-
vador. A estrela fria é uma metáfora sobre a infância e ju-
ventude do pernambucano. Muitas vezes fazendo relatos
do passado com um tom de nostalgia. Talvez seja mais
migrante quem migra no tempo do que na geografia como
disse o poeta russo Joseph Brodsky.
A nostalgia que rodeia os textos faz com que o autor
pareça ser vários personagens em apenas um. Lembranças
de várias situações vividas em tempos diferentes por uma
mesma pessoa. As palavras traduzem tempos que já se fo-
ram. São apenas recordações de uma época que não volta
mais. Que é citada, porém, com extrema nostalgia. A poe-
sia de Almino parece balançar entre a poesia tradicional e
a prosa cotidiana. Por meio de citações nos textos, as vozes
do autor parecem gritar das páginas.
Nos poemas fica clara a lembrança que o escritor sen-
te de sua juventude. Através de palavras, consegue pas-
sar o que sentiu nas ocasiões lembradas. Sentimentos que
teve por várias pessoas. Desabafos de indivíduos próximos.
Sensações que viveu em momentos de alegria, tristeza ou
estranhamento. Almino expõe sua vida de maneira inusita-
da. Em frases curtas e versos simples fala da saudade que
sente de si próprio. Obra poética que merece ser conheci-
da, afinal “Não há crepúsculo, mas o rangido do sol a pino
varrendo a sombra e a árvore: quintal pelado. De longe a
infância queima: ela é a luz de uma estrela fria”.

Jornal do Brasil, 21 de junho de 2010


Folha de Pernambuco, 21 de junho de 2010

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Antônio Campos

Criação imperfeita

C 145
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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MARCELo GLEISER É FÍSICo, astrônomo, escritor e profes-
sor da Dartmouth College, em New Hampshire nos EUA.
No Brasil, é colunista da Folha de S.Paulo, mas ficou conheci-
do por escrever obras sobre física para o público leigo, como
A dança do universo e O fim da terra e do céu. Lançou recente-
mente sua obra Criação imperfeita. O livro, que faz uma refle-
xão de 250 anos de pensamento científico, vai de encontro
a um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidental: o
de que uma Unidade nos liga ao resto do universo.
Há milhares de anos, a física tenta explicar como fun-
ciona a Natureza e, sobre ela, diz tratar-se da encarnação
científica do monoteísmo. Não é de hoje que cientistas afir-
mam que, escondida na complexidade existente na nature-
za, há uma única realidade que, por sua vez, é mais fácil
de ser compreendida. A “Teoria do Tudo” liga as tradi-
cionais leis da física, que regem grandes corpos e grandes
forças, à ideia de que as partículas, apesar de pequenas,
são essenciais. Foi com o objetivo de comprovar essa tese
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

que o autor escreveu a obra. O professor e escritor Stuart


Kauffman acredita que Criação imperfeita representa o iní-
cio de uma fase, na qual a sociedade verá o mundo e suas
mutações de maneira diferente.
Gleiser desmonta um dos maiores mitos da ciência e
da filosofia ocidentais: o de que a Natureza é regida pela
perfeição. Em Criação imperfeita, o cientista brasileiro desta-
ca a importância de coisas imperfeitas no desenvolvimento
da matéria e do ser humano. Ele acredita ainda que a as-
simetria de algumas coisas é responsável por algumas das
propriedades básicas da natureza e que as transformações
que ocorrem no mundo são fruto de algum desequilíbrio.
Inverte a ideia de Vinicius de Moraes, de que “beleza é
fundamental”, alegando que o imperfeito é que deve ser
celebrado e não a perfeição.
Gleiser argumenta que todas as evidências apontam
para uma realidade em que imperfeições e diferenças são
imprescindíveis na matéria e no tempo. O livro sugere um
novo “humanocentrismo”, quando afirma que todo e qual-
quer tipo de vida é, segundo o autor, “raro e preciso”. Para
o astrônomo, o surgimento de todas as estruturas materiais
é fruto de alguma assimetria. O prêmio Nobel de Química
Roald Hoffmann concorda com o pensamento do autor e
afirma que Gleiser é uma espécie de “guia lúcido” para en-
contrar a beleza em um universo cheio de imperfeições.

Jornal do Brasil, 28 de junho de 2010


Folha de Pernambuco, 28 de junho de 2010

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J
Antônio Campos

José Saramago, a consistência dos sonhos

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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TIvE A oPoRTUNIDADE DE vER, há dois anos, no Insti-
tuto Tomie Ohtake, na capital paulista, a exposição José
Saramago­: a consistência dos sonhos. A mostra, que também
foi exibida em países como Espanha e Portugal, reuniu
cerca de 500 documentos originais do escritor apresenta-
dos por meio de recursos digitais e audiovisuais. Organi-
zada pelo diretor da Fundação César Manrique, Fernando
Gómez Aguilera, o evento contou com obras inéditas, tra-
duções, manuscritos, notas, primeiras edições, fotografias
pessoais e vídeos. Foi uma forma de comemorar os 85 anos
bem vividos de Saramago. Uma bela exposição.
No último dia 18 de junho de 2010, uma nota publicada
pela Fundação José Saramago anunciara que o escritor por-
tuguês, homenageado pela Instituição, havia falecido, aos 87
anos. O intelectual sofria de leucemia e vinha lutando contra
a doença havia anos. No momento de sua morte, o autor
de Ensaio sobre a cegueira estava em casa junto da família no
arquipélago espanhol Lanzarote, onde vivia desde 2003.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Conheci Saramago na minha adolescência, durante o


segundo governo de Miguel Arraes em Pernambuco. O
escritor era um dos integrantes da comitiva do presidente
de Portugal na época, Mário Soares. Na ocasião, lembro-
me de que meu pai, o escritor Maximiano Campos, con-
versou longamente com Saramago e que Arraes – meu avô
– recebera de presente de Mário Soares uma litografia do
pintor português Júlio Pomar com a imagem de Fernando
Pessoa. Uma mesma litogravura fora dada também a José
Saramago, que a expunha em sua casa. Hoje, guardo ca-
rinhosamente o quadro que herdei de meu avô e que me
traz lembranças dele, de Fernando Pessoa, de Saramago e
de nossa ancestralidade ibérica.
O vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1998
ficou conhecido pela originalidade de obras como Memorial
do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo e O ano da morte
de Ricardo Reis, livro através do qual conheceu sua segunda
esposa: a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Rio, que
passou a se interessar pela obra de Saramago depois da
leitura do romance traduzido para espanhol La muerte de
Ricardo Reis. A jornalista afirmou que ao terminar de ler o
clássico se sentiu bastante emocionada e “chorou compulsi-
vamente”. Foi então que resolveu procurar o escritor para
agradecer o livro e a emoção que sentira ao lê-lo. Nasceu
assim uma relação de amizade, que, aos poucos, deu lugar
a uma relação sedimentada, levando-os, em 1988, a um
casamento construído com a mais intensa cumplicidade.
Viveram juntos uma grande história de amor. Ouso dizer
que Saramago, ao viver o amor maduro com Pilar del Rio,
de certa forma, conheceu a grande energia de Deus, em-
bora a negasse.

152
Antônio Campos

No dia em que o falecimento do português comple-


tou sete dias, a escritora e atual diretora da Casa Fernando­
­Pessoa, Inês Pedrosa, que esteve na edição da Fliporto 2009,
ao lado da viúva de Saramago criaram um evento em me-
mória do autor. Com a leitura coletiva do clássico O ano da
morte de Ricardo Reis, centenas de pessoas puderam recor-
dar ­Saramago. O mundo ficou um pouco mais cego e triste
com a morte de Saramago. Contudo, a consistência de seus
sonhos por um mundo mais livre e justo permanecerá, pela
força e beleza de suas palavras: ”Olho de cima da riban-
ceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada,
e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi
se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da in-
fância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje longa
e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, impelir,
sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até
às fronteiras do sonho um certo ser que flui e deixei enca-
lhado algures no tempo.”

Jornal do Brasil, 5 de julho de 2010


Folha de Pernambuco, 5 de julho de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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Antônio Campos

As enchentes e a solidariedade humana

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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QUAL A SEMELHANÇA entre um gari desempregado de
rua e um médico? O que leva uma pessoa a sair de casa
em uma manhã de folga do trabalho para carregar sacolas
e cestas básicas? O que faz com que um morador de rua
dedique dez horas de seu dia ajudando pessoas tão pobres
e sofridas quanto ele? A resposta é mais simples do que se
imagina.
Recentemente, 69 municípios foram fortemente atin-
gidos pelas fortes chuvas que passaram por Pernambuco,
sendo 27 em estado de emergência e 12 em estado de
calamidade. Os municípios de Cortês, Escada, Palmares,
Barreiros e Catente são alguns dos locais que ficaram pra-
ticamente destruídos. O governo do Estado criou pontos
de apoio aos desabrigados e vítimas das enchentes, na ope-
ração reconstrução. As “embaixadas” – como foram cha-
madas – têm como objetivo prestar os serviços de maior
urgência às vítimas.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Mas o que realmente chama a atenção nas ações de-


senvolvidas pelas embaixadas é a quantidade de voluntários
que trabalham diariamente nessa rede de solidariedade. O
Quartel da Polícia Militar de Pernambuco, no Recife, é o
principal ponto de doação de materiais para as vítimas das
recentes chuvas. Além dos funcionários do Estado, milha-
res de pessoas ajudam nessa luta pela sobrevivência. Apro-
ximadamente 2,4 mil já se cadastraram como voluntários.
Gente que perdeu sua casa ou que tem parentes desa-
brigados. Pessoas que não tinham quase nada e que perde-
ram o pouco que possuíam. Conta-se até mesmo com aque-
les que nada sofreram com as chuvas, mas que se uniram
em torno de um mesmo propósito: ajudar o próximo.
É o caso do médico Paulo Santana e do morador de
rua Airton Oliveira, que foram objeto de matéria jornalísti-
ca publicada recentemente. Ambos têm dedicado boa parte
do tempo trabalhando voluntariamente em prol dos desa-
brigados, apesar de fazerem parte de realidades tão dife-
rentes – o primeiro, um conceituado cirurgião dos hospitais
particulares do Recife; e o outro, um gari desempregado
que vive nas ruas da cidade desde 2000, os dois trabalham
arduamente para que as doações cheguem o mais rápido
possível às mãos dos necessitados. São heróis anônimos.
Em Palmares, por exemplo, cerca de quinhentas pesso-
as, das quais trezentos são voluntárias, trabalham incansa-
velmente para ajudar as vítimas dessa verdadeira tragédia.
A todo instante, caminhões e carros lotados de água mine-
ral, roupas e alimentos descarregam na cidade, onde, outro
grupo, com um número cada vez maior de pessoas, está
a postos para receber, selecionar e dar destino às doações
vindas de todo o país.

158
Antônio Campos

Em um momento como esse ajudar os que mais preci-


sam é de fundamental importância. Pobre ou rico. Branco
ou negro. Jovem ou idoso. O que realmente vale em si-
tuações como essas é o amor ao próximo. É através desse
sentimento que nossa vida ganha mais sentido. Como disse
o sem-teto Airton de Oliveira, ao ajudar os outros “a per-
sonalidade cresce”.
Temos de praticar a solidariedade. Ela é a única espe-
rança ante esse cenário repleto de tristeza e desespero.

Jornal do Brasil, 12 de julho de 2010


Folha de Pernambuco, 12 de julho de 2010

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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Antônio Campos

Saudades do poeta da cor

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Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

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No ÚLTIMo DIA 1º DE jULHo estivemos há exatos 50 anos
da morte do escritor pernambucano Carlos Pena Filho. O
poeta, que nasceu no Recife em 17 de maio de 1928, fa-
leceu em um acidente de carro ao lado de seu amigo José
Francisco de Moura Cavalcanti. Pouco antes, meu padri-
nho de crisma, o advogado Syleno Ribeiro, chegou a entrar
no mesmo veículo, mas saiu antes do ocorrido. Estudou o
primário e o ensino fundamental em Portugal, pois era
filho de portugueses.
Assim como eu, formou-se Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco e descobriu logo
cedo sua paixão pela literatura. Com apenas 19 anos já
demonstrava habilidade com letras de música e poemas.
Em 1947, publicou, no Diario de Pernambuco, o soneto “Ma-
rinha”. Era o primeiro de vários que viria a lançar nos su-
plementos dos jornais nordestinos e em publicações do Sul
e Sudeste brasileiro.
Carpe Diem | Diálogos Contemporâneos

Carlos Pena Filho era considerado uma das grandes


promessas da poesia nacional. Suas primeiras obras foram
reunidas e publicadas no livro O tempo de busca. Profunda-
mente telúrico, inspirou-se na literatura de cordel e escre-
veu um longo poema chamado Memórias do boi Serapião. O
escritor de A vertigem lúcida e Livro geral fazia parte de uma
geração ligada diretamente à arte e atuante na vida política
e literária do país.
Em suas obras, nas quais é possível perceber a personi-
ficação da natureza, de objetos, paisagens e até de obras de
arte, tudo ganhava vida e cor ao toque dos pincéis de letras
de Carlos Pena Filho, como no poema Fazendo nova: “Vistas
de longe, essas pedras/ de irregulares tamanhos/ são lem-
branças renascidas/ de abandonados rebanhos.” Em Soneto
raspado das telas de Aloísio Magalhães, a inspiração alcança o
azul, a cor vertical de suas obras: “Aquém do sonho e além
dos movimentos/ uma nesga de azul perdeu as asas./ Quem
a invadir, invade os próprios ventos/ que varrem mares e
entram pelas casas.”
A sucessão de imagens bem engendradas em cada poe-
ma forma uma espécie de pinacoteca da palavra, com pre-
dominância da cor azul. Mais lírica que sensual ou erótica.
Numa declarada relação do poeta com as artes visuais, con-
siderou-se certa vez um “pintor frustrado”. Como afirmou
o escritor Renato Carneiro Campos em seu ensaio Carlos
Pena Filho: poeta da cor, nas mãos do poeta pernambucano
“as vogais e as consoantes magicamente se transformavam
em ornamentos coloridos”. E encerrou magistral palestra
sobre Carlos Pena, reiterando o amor do poeta pela cor
azul, “o homem quando foi à lua e avistou a Terra, disse:
a Terra é azul”.

164
Antônio Campos

Na diversidade das paisagens alcançadas pelo poeta,


uma se destaca, a cidade do Recife. Quando de sua morte,
Jorge Amado escreveu: “Foi preciso que faltasses assim,
brusca e terrivelmente, para que compreendessem que eras
o dono da cidade, que eras a cidade, em sua infinita e com-
plexa realidade”. Carlos Pena Filho, poeta da cor e do Reci-
fe, consagrou-se imortal pela força e beleza de sua poesia.

Jornal do Brasil, 19 de julho de 2010


Folha de Pernambuco, 19 de julho de 2010

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Antônio Campos

Rua do Chacon, 335 | Casa Forte


Recife | PE | CEP 52061-400
fone 55 81 32675787 | 34418090
fax 55 81 33047342

http://www.antoniocampos.com.br
http://blog.antoniocampos.com.br
camposad@camposadvogados.com.br

Este livro foi composto em fonte Basset, corpo 11,8/15,8, e


impresso pelas Edições Bagaço para a Carpe Diem -
Edições e Produções, no inverno de 2010, no Recife.
Antônio Campos

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